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MEMÓRIA ENSAIADA

A personagem sem nome acordou na praia de terno e sem memória. A areia recém-aquecida
pelo sol provavelmente foi a causa desse despertar confuso e desconfortável. Seria uma empresária
que cansou-se de si mesma e abandonou-se na praia durante a madrugada? Uma desiludida com a
trigésima entrevista de emprego no mês que confundiu a função do salva-vidas com “salvo a sua
vida”? Ela não sabia, mas, como não se lembrava de ter estado em qualquer outro lugar na vida, não
estranhou estar no litoral tal como um bebê não estranha estar afogado em líquido amniótico. Primeiro
tateou seus bolsos tentando localizar qualquer volume que poderia indicar a presença de documentos,
chaves ou celular. Nada. Após alguns minutos de visão turva, se levantou e concentrou-se em observar
ao seu redor buscando algum rosto conhecido ou de algum rosto que parecesse conhecê-la. Próximo
ao mar, um garoto estava sozinho com um saco enorme de jujubas e atirava com certa obsessão os
doces no mar. “Poderia ser meu filho” - ela especulou com si mesma - “Com certeza eu trabalho
demais e arrumei um tempo entre uma reunião e outra para levar meu filho a praia”. Se aproximou
do garoto e, temendo revelar uma maternidade amnésica, perguntou descompromissadamente:
— O que você está fazendo?
— Estou atirando jujubas.
— Por quê?
— Minha professora me tirou pontos porque eu disse que o mar é doce. Vou deixar ele doce e
ganhar os pontos de volta.
Com a indiferença do menino em responder veio a certeza de duas coisas: Ela não era a mãe
daquele garoto e também não era sua professora. Ainda sem saber quem era, se divertiu com o
pensamento de que, pelo menos, podia distinguir quem não era. Teve uma ideia. Esqueceu-se
totalmente de seu rosto e, com certeza, se reconheceria, e talvez até lembraria de algo mais, ao se
olhar em algum espelho. Saiu da praia e procurou qualquer carro para se olhar através do retrovisor.
Curvou-se ao lado de um Ônix com vidro fumê e assustou-se com o que viu: Era jovem. Ela poderia
jurar que tinha 40 anos ou mais, mas parecia ter 20 anos ou menos. Seu cabelo preto curto revelava
alguma espécie de mistura quase contraditória entre profissionalismo e rebeldia. No rosto pôde
identificar traços asiáticos, sobrancelhas anguladas, olhos pequenos, rosto redondo. Passava a mão
no rosto tentando moldá-lo para algo mais reconhecível, estava cada vez mais confusa, assustada e
encarava obsessivamente espelho do retrovisor como um gato irritado com o próprio reflexo. Após
mais alguns segundos do que não se poderia dizer ao certo se era uma massagem facial ou uma
cirúrgica plástica tentando ser feita com as mãos, ela foi interrompida por uma voz que vinha de
dentro do carro na medida que o vidro dianteiro ia se abaixando:
— Olha, eu ia ficar aqui fingindo que não existo até você ir embora, mas a curiosidade me
venceu. Por que está aí há 5 minutos fazendo caretas?
Desconcertada, a automassagista facial percebeu o homem de cabelos longos e que levava
instrumentos musicais nos bancos de trás. Ela cogitou em se desculpar e ir embora, mas se rendeu a
ideia de que inevitavelmente teria que procurar ajuda e era um momento perfeito para começar:
— Acordei na praia com essa roupa e sem nada. E estou com amnésia de tudo. Tudo.
— Sério? Você não parece ter sofrido nenhuma pancada na cabeça.
— E também não bebi. Não estou de ressaca. Acordei como acordam todos.
— Todos não. Eu acordei de ressaca e com um pijama rasgado. Você acordou com um terno
visivelmente caro.
— Mas você acordou numa cama e sabendo quem é.
— E cadê a vantagem nisso? Brincadeira. Olha, tem uma guarita da polícia ali na frente, em
algum momento alguém dará queixa do seu desaparecimento.
Ela temeu que não houvesse nenhuma alma no mundo que sentisse sua ausência pelas
próximas semanas. Um medo tão presente que, mesmo não tendo o respaldo da memória, sentia que
era verdade. Disse ao homem do Ônix que procuraria a polícia, mas era mentira, pois sabia que
preferiria ficar semanas vagando sem memória do que descobrir que é uma solitária quase invisível
aos olhos da família e amigos. Antes de se despedir fez uma pergunta:
— Qual nome você acha que combina comigo?
— Você parece muito a Daniella Perez. Então que tal Daniella?
— Será que sou ela?
— Ela morreu. Então espero que não.
O tempo começou a ficar nublado. Ela voltou em direção a praia e começou a caminhar pela
orla. Não tinha nenhuma informação relevante sobre si e a identidade mais próxima com que poderia
se identificar era a de uma jovem atriz assassinada em 1992. No fim das contas poderia até ser isso
mesmo. Considerou ser um fantasma, uma aparição, um espírito de mais uma jovem que se levava a
sério demais e se afogou no mar. Acordou na praia porque o mar não está aceitando mais almas e
passou toda a responsabilidade para a juridição da areia. Começou a chover e rapidamente as pessoas
começaram a ir embora. Tinham um lugar pra ir, uma direção, rotina ou origem que causavam em
“Daniella” sentimentos confusos de inveja e pena. Inveja porque ainda era incômodo não saber quem
era ou se lembrar de nada. Pena porque começava apreciar a leveza que a falta de memória poderia
proporcionar. Não se lembrar de nada era como não ser ninguém, o que era terrível, mas não ser
ninguém era como poder ser qualquer um e, disso, ela gostou. Encontrou um quiosque coberto que
tinha uma rede pendurada, entrou, deitou-se na rede e lá resolveu ficar esperando.
Começou a sonhar. Sonhou que o garoto que encontrara mais cedo tinha conseguido
finalmente deixar o mar doce de tanto atirar jujubas. A vida marinha acostumada a água salgada
totalmente extinta, mas as águas estavam inegavelmente doces e potáveis. Um grande palco tinha
sido instalado na orla da praia para a realização de um show em homenagem ao pequeno grande
cientista que teria garantido água doce para toda a humanidade por milhares de anos. Nas ruas, as
pessoas se dividiam: metade comemorava o fim da seca mundial; a outra metade defendia a
importância econômica e ambiental da fauna e flora dos oceanos. Mas nada mais disso importava. As
jujubas transformaram os oceanos em um lugar doce e vazio. O homem do Ônix foi convidado para
se apresentar no show e ele tocou vários instrumentos ao mesmo tempo, uma música catártica que
contagiava a todos, mas todos quem? As milhares de pessoas do público eram iguais. Clones? Não.
Eram, com certeza, pessoas diferentes, mas eram todas Daniella Perez. O show acabou com toneladas
de fogos espalhados pelos céus e com a promessa do garoto cientista de que agora mudaria a cor do
céu de azul para roxo com a ajuda de tinta spray.
A sonhadora anônima despertou ouvindo o barulho de alguém gritando. Ainda chovia bastante
e não teve tempo para pensar no sonho que teve, pois logo avistou uma mulher saindo do mar e
correndo na direção do quiosque, onde agora estava sozinha. Encharcada e com uma expressão feliz
no rosto uma jovem de cabelos loiros chegou ofegante e sentou-se em um banco ao lado de nossa
protagonista desconhecida. Ficou algum tempo recuperando o fôlego até se romper o silêncio entre
as duas:
— Você acredita que eu ainda estava no mar no meio dessa chuva?
— Inacreditável.
— Deixei minha aliança de noivado cair.
— E por que você tirou do dedo?
— Quis tirar uma foto segurando o anel no meio do mar. Uma onda me desequilibrou e eu
acabei derrubando o anel e o celular. Não saí do mar até encontrar.
— Não é melhor colocar o anel no dedo agora então? Você pode derrubar de novo.
— Ah. O anel eu nem procurei. Fiquei procurando o celular mesmo. Com essa capinha ele
flutua na água. Muito útil. A foto ficou muito boa. Quer ver?
E de fato a foto tinha ficado incrível, talvez valesse mais do que a aliança. A noiva começou
a contar sobre como tinha se separado do seu grupo de amigos e se perdeu totalmente. Tagarelou sem
parar sobre a viagem que planejava fazer nas férias e como estava desiludida com a faculdade. Em
determinado momento, após tanto falar de si, quis saber do outro:
— E você? Qual é o seu nome?
— Daniella.
— Por que tá de terno na praia?
— Sou atriz. Eu estava gravando um filme em que uma mulher de negócios perde a memória.
Começou a chover e o pessoal do set foi embora. Eu fiquei.
— Nossa, que legal! Esse filme vai passar em algum lugar?
— Temos um contrato com a Netflix.
— Ela consegue se lembrar das coisas no final?
— Ela inventa memórias novas.
— Que esquisito.
— Muito.
A chuva parou. A noiva perguntou se Daniella gostaria de acompanhar ela até o seu grupo de
amigos, a jovem atriz, que não tinha muitas opções, aceitou. Enquanto caminhavam pela praia,
Daniella avistou o saco de jujubas que o garoto estava atirando no mar mais cedo. Ainda tinham
algumas jujubas dentro. Começou a se lembrar do dia que havia tido, das pessoas com quem
conversou, do seu sonho, do estranhamento que teve consigo mesma ao se olhar no espelho e começou
a lembrar também de outras coisas, coisas que tornavam a vida mais definida, salgada e sem graça.
Sentiu inveja e pena de si mesma.
Se aproximou do mar e começou ela mesma a lançar as jujubas restantes na água.

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