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CRÍTICA PÓS-COLONIAL

panorama de leituras contemporâneas


Organizadoras
Júlia Almeida
Adelia Miglievich-Ribeiro
Heloisa Toller Gomes

CRÍTICA PÓS-COLONIAL
panorama de leituras contemporâneas
© 2013 Júlia Almeida, Adelia Miglievich-Ribeiro e Heloisa Toller Gomes
Sumário
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Agradecimentos 7
Isadora Travassos
Perspectivas pós-coloniais em diálogo 9
Produção editorial Júlia Almeida
Cristina Parga
Eduardo Sussekind parte i
Rodrigo Fontoura o texto pós-colonial brasileiro?
Sofia Soter ancoragens e especificidades
Victoria Rabello
A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra 33
Revisão Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Sandra Pássaro O olhar etnográfico e a voz subalterna:
para uma teoria da subalternidade e do luto cultural 55
Foto de capa
José Jorge de Carvalho
Claudio Bergstein
A problemática inter-racial na literatura brasileira:
novas possibilidades interpretativas à luz da crítica pós-colonial 100
cip-brasil. catalogação na publicação Heloisa Toller Gomes
sindicato nacional dos editores de livros, rj A antropologia/antropofagia darcyniana e a
C951 consciência do colonialismo intelectual  119
Crítica pós-colonial : panorama de leituras contemporâneas / organização Júlia Almeida, Adelia Miglievich-Ribeiro
Adelia Miglievich-Ribeiro, Heloisa Toller Gomes. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2013.
Quando o sujeito subalterno fala:
404 p. ; 23 cm.
especulações sobre a razão pós-colonial 139
isbn 978-85-421-0114-0 Sandra Regina Goulart Almeida
1. Sociologia - Brasil 2. Antropologia - Brasil 3. Colônias. i. Júlia Almeida. ii. Miglievich-
Ribeiro, Adelia. iii. Gomes, Heloisa Toller. parte ii
fricções culturais: áfrica, américas, brasil
13-00022 cdd: 301.81
cdu: 316(81) As literaturas pós-coloniais da África lusófona 159
Bárbara dos Santos
Paulina Chiziane e a história da poligamia 176
2013 Jurema Oliveira
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 sl. 320 – Ipanema Questões de poder e representação:
Rio de Janeiro rj – cep 22410-002 conexões diaspóricas nas Américas 186
Tel. (21) 2540-0076 Stelamaris Coser
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Na cartografia do romance afro-brasileiro, Agradecimentos
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves 208
Eduardo de Assis Duarte
Identidade e modernização como modelos de
ações culturais no “entre-mundos” 228
Paulo Marcondes Ferreira Soares
parte iii
descolonizações epistemológicas
O pós-colonial ante portas: algumas notas de rodapé  247
Elísio Macamo
(Re)Encontrando-se nas redes?
As ciências humanas e a nova geopolítica do conhecimento 257
Sérgio Costa
Dom, religião e eurocentrismo na aventura colonial  275
A revisão das epistemologias modernas se impõe nas diferentes áreas
Paulo Henrique Martins
do saber quando temos o compromisso de alargar o nosso escopo de
Rumo a uma sociologia não exemplar: modernidade, análise, contemplando experiências e sujeitos até bem pouco tempo
decolonialidade e lutas por terra na África do Sul e no Brasil 287 subestimados. Agradecemos, assim, a todos os autores convidados que
Marcelo C. Rosa
abraçaram conosco a proposta de desenhar um panorama de leituras
Os massificados da terra 301 pós-coloniais que, desejavelmente, possa contribuir para o diálogo com
Luís Eustáquio Soares outros estudos afins, no Brasil e no exterior.
parte iv O ato corajoso de duvidar dos enredos consagrados e atentar para
movimentos sociais e trânsitos de diferenças as pistas que nos levam a um mundo em vias de se (re)fazer nos reúne na
O espaço da negritude e o reverso da africanidade: adesão a este projeto, confirmando que não estamos sós em iniciativas
crítica sobre as relações raciais contemporâneas 317 nesse sentido.
Carlos A. Gadea Agradecemos ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea
As margens nos meios: Rap, “Literatura Marginal”, mídias 344 – PACC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela oportunidade
Jorge Nascimento de realização deste projeto, no âmbito da pesquisa de pós-doutoramento
O zapatismo e a crítica à situação colonial: de Júlia Almeida, sob a supervisão de Heloisa Toller Gomes, coordena-
pluralismo étnico, movimentos indígenas e novas dora da linha de pesquisa Cultura e Desenvolvimento do referido Pro-
formas de organização política e social na América Latina 365 grama. Somou-se a este empenho Adelia Miglievich-Ribeiro que, na
Antonio Carlos Amador Gil confluência com o Programa Cátedras IPEA/CAPES para o Desenvolvi-
Como/quando pensar em língua indígena? mento, também assegurou que a ideia ganhasse materialidade.
Resistências e conformidades 383 À Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, somos gratas pelo
Lillian DePaula incentivo aos grupos de estudos, eventos acadêmicos, cursos e ativida-
des de pesquisa interdisciplinares que uniram as pesquisadoras Júlia
Sobre os autores 393
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Almeida e Adelia Miglievich-Ribeiro na salutar inquietação intelectual Perspectivas pós-coloniais em diálogo
da qual o presente livro é um dos frutos. Especialmente, aos Programas
de Pós-Graduação em Letras, onde ambas atuam, e aos Programas de Júlia Almeida
Pós-Graduação em Linguística e em Ciências Sociais nos quais cada uma
das autoras tem, respectivamente, também seu vínculo. Sem dúvida, a
nossos alunos, graduandos e pós-graduandos na UFES, que participam
de nossos esforços.
À FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Rio de Janeiro – manifestamos nosso reconhecimento pelo indispen-
sável auxílio de editoração concedido.
Na organização da coletânea, contamos particularmente com a
ajuda de José Augusto Carvalho na revisão do texto de Bárbara dos
Santos, mantido com a sua ortografia original de Portugal; com o apoio
de Renzo Passamani, na formatação dos capítulos; com as traduções de
Patrick de Rezende Ribeiro; com o empenho de Rosângela Gomes, do Quando pensamos em uma publicação reunindo textos de diversos pes-
PACC-UFRJ, fundamental na preparação do processo junto à FAPERJ. A quisadores brasileiros que têm se beneficiado com a crítica pós-colo-
eles e a todos os que, de muitas formas, participaram desta realização, nial, queríamos que o resultado desta tarefa – a disponibilização em um
nossos sinceros agradecimentos. volume de um material disperso em várias publicações e áreas – trou-
xesse uma visibilidade maior ao amplo espectro de abordagens pós-
coloniais no país, facilitando as tarefas de ensino e pesquisa nessa área
As Organizadoras de estudos e imediações. Convidamos, assim, autores e textos que nos-
sas pesquisas e experiências em sala de aula apontavam como formado-
res de uma percepção mais acurada das potencialidades e realizações do
pós-colonial no Brasil e, com o acolhimento de muitos desses autores ao
nosso convite, creio termos conseguido reunir um conjunto expressivo
de pesquisas, que fornecerá ao leitor uma visão bem dimensionada dos
problemas, conceitos e análises que têm marcado a crítica pós-colonial
a partir de uma angulação brasileira. Mas nosso empenho em dialogar
com autores de outros recortes do heterogêneo “tempo-espaço da lín-
gua portuguesa” (SANTOS, 2002, p. 9) levou-nos a estender o convite a
pesquisadores estrangeiros, permitindo assim ao leitor encontrar coor-
denadas de pesquisa que expressam também a problematização pós-
colonial da perspectiva de países da África de língua oficial portuguesa.
Ao iniciar a escrita desta introdução, evidenciou-se a condição de
estes textos formarem um corpus muito significativo de pesquisas que
não merecia uma apresentação de praxe, mas uma indagação mais

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aprofundada dos gestos que o caracterizam. O hábito da pesquisa e o Spivak), os sujeitos coloniais híbridos (H. Bhabha). Em sua ativação nas
propósito didático da coletânea transformaram a oportunidade de ler e obras inaugurais desses três autores, Orientalismo, de 1978 (SAID, 2007),
apresentar estes textos em desafio no sentido de apontar – sem querer Pode o subalterno falar?, publicado originalmente em 1985 e republicado
esgotar – o que se passa entre eles, isto é, de buscar tanto singularida- em 1998 (SPIVAK, 2010), e O Local da Cultura, de 1994 (BHABHA, 2007),
des da crítica pós-colonial brasileira quanto suas relações com pesquisas esses estudos revisitam os grandes arquivos disciplinares, dominantes,
de outras vertentes geoculturais. Com esse intuito, fizemos um rápido que foram as narrativas e os conhecimentos produzidos pelo coloniza-
sobrevoo por algumas abordagens do pós-colonialismo (inglês, fran- dor inglês, pelos quais se objetivaram e subjetivaram povos e culturas
cês, hispano-americano e português) que nos servirá de referencial para colonizados, cujo ethos se transporta contemporaneamente aos sujeitos
introduzirmos, então, especificidades do conjunto de textos e autores pós-coloniais das metrópoles e das ex-colônias inglesas.
aqui presentes. Tentaremos formular, embasando-as nesse corpus de Se a metodologia teórica é europeia em sua gênese, o objeto dis-
textos, tendências dessa crítica pós-colonial a partir do Brasil e perspec- cursivo que dessa prática emerge – o sujeito colonial e pós-colonial no
tivas para novos diálogos transculturais. Pouparemos o leitor de deta- processo histórico de subjetivar-se e dessubjetivar-se como tal – foi
lhes e referências que já estão bem apresentados no corpo dos capítulos. trazido à pauta por Frantz Fanon, no texto seminal Os condenados da
terra (2005, primeira edição em francês de 1961), uma exploração radi-
preliminares: gestos e vertentes pós-coloniais cal das condições políticas, psíquicas e afetivas dos povos colonizados
da África em sua potência iminente de se descolonizar no contexto da
Se adotarmos circunstancialmente para a crítica pós-colonial recortes segunda metade do século XX. Inventariar as heranças coloniais e pós-
por domínios linguísticos e culturais, podemos delimitar alguns gestos coloniais – nos sujeitos e nos saberes/poderes que os constituem – para
que caracterizam as várias vertentes de estudos pós-coloniais, entendi- superá-las é um dos gestos que os estudos pós-coloniais reinventam,
dos como teorização e crítica das heranças coloniais e pós-coloniais que decompondo nos discursos literário, antropológico, social, histórico,
a partir das últimas décadas do século XX intervêm nos debates contem- filosófico etc. os detalhes textuais que serviram aos interesses coloniais
porâneos.1 Inicialmente na cena cultural de língua inglesa, essa crítica e imperialistas ocidentais e que consolidaram a episteme moderna com
utiliza-se de ferramentas teóricas de correntes do pensamento europeu sua repartição entre o sujeito do conhecimento europeu e o sujeito
(pós-estruturalismo e marxismo, sobretudo), mas as coloca em fun- silenciado colonizado.
cionamento com relação a objetos que não teriam emergido nas car- Um outro gesto que ressaltamos dos estudos pós-coloniais em lín-
tografias pós-estruturais: os sujeitos coloniais e pós-coloniais em seus gua inglesa é aquele que se depreende das conhecidas afirmações de Said
itinerários de produção e reinvenção. A partir de metodologias teóri- na Introdução ao Orientalismo, quando diz que muito do seu investi-
cas (Foucault, Derrida) que evidenciam as condições de emergência de mento pessoal naquela pesquisa é resultado de sua experiência como
formas históricas (discursos, conhecimentos, subjetividades, poderes), oriental (desanimadora, segundo ele, para quem vive nos Estados Uni-
o pós-colonialismo submete à análise as literaturas, os conhecimentos, dos), enredada pelo “nexo de conhecimento e poder que cria o ‘oriental’
os discursos variados e os poderes que subjetivaram, numa relação de e, num certo sentido, o oblitera como ser humano” (said, 2007, p. 57-59).
subalternidade, o oriental (E. Said), o sujeito subalterno feminino (G. Como define Boaventura de Sousa Santos, a acepção crítica (e não his-
tórica) de pós-colonialismo se pauta em “um conjunto de práticas e dis-
1 Walter Mignolo situa os estudos pós-coloniais contemporâneos como parte de uma cursos que desconstroem a narrativa colonial tal como foi escrita pelo
“razão pós-colonial” que desde a colonização e bem antes mesmo dos autores pós-colo-
niais ingleses já interrogava as heranças coloniais, inclusive na América Latina, que inte-
colonizador, e tenta substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista
gra o primeiro continente a ser libertado da Europa (1996). do colonizado” (santos, 2002, p. 13, tradução minha), e nesse sentido

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Said é exemplar: produz uma desconstrução das narrativas coloniais um “déficit importante na paisagem editorial e intelectual francesa”, em
a partir das tensões de sua experiência colonial e pós-colonial, como “desconfiança” e “reserva” daí decorrentes com relação aos estudos pós-
palestino nos Estados Unidos, situação híbrida que ao contrário de apa- coloniais, em “estado embrionário” dessas pesquisas na França (2006,
gar sua inscrição como oriental parece-lhe fundamental para constituir p. 17, tradução minha).
essa posição de fala que quer “desaprender” o modo dominante de rela- “Intelectuais franceses estão ‘atrasados uma guerra’”, disse Françoise
ção com outros povos. Lionnet a propósito da demora na publicação dos teóricos feministas
Esses gestos da chamada vertente inglesa dos estudos pós-colo- e pós-coloniais anglo-saxões, citação retomada por Yves Clavaron no
niais que brevemente retomamos aqui e outros não revistos encontrarão prefácio intitulado “História de um atraso” ao livro Études postcoloniales
ressonâncias fecundas dentro e fora dos espaços de colonização inglesa (clavaron, 2011, p. 7, tradução minha), que dá sinais de que a área já
ao longo das últimas décadas, singularizando discursos, métodos e teo- pode oferecer um bom panorama, relacionando pesquisas importantes
rias, e convocando ao debate sobretudo pesquisadores e intelectuais de em literaturas francófonas, lusófonas etc., inclusive contendo o texto de
países que experimentam as consequências da colonização europeia Bárbara dos Santos “Littératures postcoloniales d’Afrique lusophone”,
(especialmente as ex-colônias de assentamento profundo), sejam as que convidamos para nossa coletânea, e que a autora gentilmente o
que se libertaram antes da metade do século XX, mas especialmente as traduziu para o português, permitindo um diálogo com nossas leituras
emancipadas a partir de 1945 (Mignolo, 1996). Os vários usos críticos pós-coloniais.
dos termos “pós-colonial” e “pós-colonialismo” tendem a deslocar o Também é importante lembrar que outros vieses de discussão sobre
sentido linguístico mais evidente de “pós” como “depois” ou “fim” para colonização existem na França, a exemplo dos espaços de ensino do
um gesto de ir além, de pensar criticamente a condição periférica des- Musée du quai Branly, com inclinação mais antropológica, cuja midia-
ses espaços historicamente coloniais e pós-coloniais, procurando abrir teca abriga a documentação que Édourd Glissant destinou para a cria-
novos modos de entendimento, longe de recusar as evidências de que ção de um centro nacional pela memória da escravidão e de sua abo-
as sociedades contemporâneas são marcadas pela tensão entre o fim da lição. Três eixos de discussão parecem assim bons indícios do debate
colonização oficial e sua presença reiterada. pós-colonial da França: o das literaturas pós-coloniais, fortalecido com
Ecoando nos domínios de línguas e culturas neolatinas – particu- essa publicação recente – da qual temos o prazer de publicar o texto
larmente nos domínios do francês, espanhol e português – esses estudos de Bárbara dos Santos – o da escravidão, no viés aberto por Glissant, e
pós-coloniais tomarão rumos diferenciados, dos quais gostaríamos de o encenado pela revista Multitudes, articulando a filosofia política em
ressaltar alguns aspectos. Começamos pelo francês, com a suspeita de torno de Negri e Hardt à consolidada vertente pós-colonial latino-ame-
que tenha ocorrido na França uma demora importante na recepção de ricana, protagonizada então por autores como Ramon Grosfoguel e San-
obras e discussões pós-coloniais oriundas do mundo anglófono. Algu- tiago Castro-Gómez.
mas publicações, particularmente o número 26 da Revista Multitudes, A América Latina de língua espanhola constituiu um repertório
publicada em 2006, dedicada ao tema da Pós-colonialidade, e a primeira vigoroso de pesquisas e intervenções nesse debate e parte dos esfor-
tradução de textos de Stuart Hall em francês, reunidos no livro Identité ços dessa corrente centrou-se na desconstrução do conceito eurocên-
et cultures – Politiques des Cultural Studies (2007), fazem menção ao trico de modernidade – como racionalidade e desenvolvimento –, que
fato de não haver ainda naquele período traduções em francês da lite- não leva em conta o que se passou fora da Europa e desde o século
ratura que suscitou o desenvolvimento dos estudos pós-coloniais e dos XV, especialmente a colonização e sua “práxis irracional da violência”
estudos culturais. Os organizadores do número 26 da revista Multitudes, (dussel, 2000, p. 472), baseadas na diferença colonial, o modo pelo
Yann Moulier Boutang e Jérôme Vidal, falam no texto de abertura em qual negros, índios e mestiços foram construídos como outros, infe-

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riorizados e passíveis de exploração e escravidão. Autores como Walter não acadêmicos, a separação entre conhecimentos ligados à escrita, à
Mignolo, Anibal Quijano, Enrique Dussel e outros se dedicaram à rees- oralidade e às semióticas alternativas (do corpo, do audiovisual), como
crita dessa noção, redesenhando seus contornos históricos, geográficos, essas repartições estariam se redesenhando hoje, tanto em função da
epistemológicos, culturais e integrando a colonialidade ao conceito de vitalidade de movimentos sociais e diaspóricos, como também em fun-
modernidade, explicitado na matriz modernidade/colonialidade. Um ção das consequências do capitalismo global.
pensamento descolonial é a rubrica que agrega muitos desses trabalhos A vertente portuguesa dos estudos pós-coloniais contemporâ-
(mignolo, 2008). neos ganhou fôlego com o texto de Boaventura de Sousa Santos “Entre
Mas a persistência das hierarquias epistêmicas e do racismo no Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade”,
mundo contemporâneo parece sugerir que novas formas de coloniali- publicado em 2002 em versão inglesa e portuguesa, e no Brasil em
dade global teriam força neste contexto e parecem redefinir, mais do 2004.2 Partindo de uma análise das especificidades do colonialismo por-
que extinguir, uma dinâmica de poder que racializa e discrimina pes- tuguês, em que Portugal figura como um colonizador “colonizado” – daí
soas e povos. Assistimos a uma “reorganização pós-moderna da colo- sua indecidibilidade e sua interidentidade – ineficiente e dependente da
nialidade do poder”, como afirma Santiago Castro-Gómez (2006, p. 28), Inglaterra, incapaz de regular eficazmente sua colônia, mas nem por isso
que reatualiza as hierarquias epistêmicas produzidas pela modernidade/ menos colonizador, Santos propõe que essas diferenças se reflitam na
colonialidade – como a política de patentes que hoje beneficia os conhe- crítica pós-colonial em português, a partir da seguinte relação de pro-
cimentos produzidos nos países ricos, pagando pelo que eles próprios blemas: à diferença do pós-colonialismo inglês, para o qual a hibridação
definem como inovação tecnológica e transformando em propriedade é uma aposta, uma das tarefas da crítica portuguesa seria distinguir tipos
os conhecimentos e a diversidade dos países periféricos. Pós-coloniali- mais ou menos emancipatórios de hibridação, uma vez que a miscigena-
dade do poder seriam então novas formas de representações do desen- ção é uma prática do colonialismo português; seria preciso particulari-
volvimento, do conhecimento, do saber que reforçam as hierarquias zar as formas de racismo e de regras que dão origem à miscigenação no
existentes, garantindo a hegemonia dos países ricos e o desenho impe- império português (contrariamente ao que fez crer o luso-tropicalismo);
rial do mundo. também dar-se conta das complexidades da relação colonizador-colo-
É exemplar, como produto dessa corrente crítica hispano-ameri- nizado quando o colonizado ele mesmo experimenta a disjunção entre
cana e de sua contribuição para uma nova geopolítica do conhecimento, ser colonizador e colonizado; e ainda perceber os efeitos de uma dupla
a coletânea Indisciplinar las Ciências Sociales, organizada por Cathe- colonização (por Portugal e pela Inglaterra) no colonizado brasileiro
rine Walsh, Freya Schiwy e Santiago Castro-Gómez (2002), reunindo – duplamente pressionado por falta e excesso de colonizador, ou por
diversos autores em torno da reflexão sobre os dispositivos conceituais excesso de passado ou de futuro. Uma crítica pós-colonial, sensível às
hegemônicos, suas metodologias disciplinares e tecnologias. Na intro- tonalidades e especificidades culturais, seria consolidada na direção de
dução, os organizadores afirmam que “indisciplinar as ciências sociais um pós-colonialismo situado, e não sobrepondo valores hegemônicos
não significa se desfazer das ferramentas ou conceitos centrais das ciên- da colonização e do pós-colonialismo ingleses. A publicação no Brasil
cias nem tampouco das hermenêuticas críticas das Humanidades”, mas da coletânea Epistemologias do Sul (santos; meneses, 2010) deu visi-
“incitar a repensar sua utilidade ou seus efeitos sobre as relações colo- bilidade a essa perspectiva, que envolve iniciativas de pesquisadores do
niais, perguntando até que ponto perpetuam (involuntariamente talvez)
a lógica vigente” (Castro-Gómez; Schiwy; walsh, 2002, p. 14, tradução 2 Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e interidentidade. In: BUARQUE
DE HOLLANDA, Heloísa (org.). Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004,
minha). Há nessa coletânea a discussão sobre a formação das disciplinas p. 22-73. A versão publicada no Brasil não contém a parte inicial (e muito elucidativa do
e áreas de conhecimento, a divisão entre conhecimentos acadêmicos e texto), motivo pelo qual citamos a publicação em inglês.

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Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, dirigido por acadêmica multidisciplinar. Quisemos não reproduzir as fronteiras dis-
Santos, e projetos em vários países.3 ciplinares na organização e, assim, pensamos numa sequência que: par-
Uma pauta para um pós-colonialismo mais especificamente tisse dos textos que enunciaram mais diretamente estratégias fundadoras
luso-brasileiro foi aberta em eventos e discussões que resultaram da crítica pós-colonial e que colocaram a pergunta pela singularidade
no livro Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros (bastos; brasileira nesse contexto – reunidos na primeira parte intitulada O texto
almeida; Feldman-bianco, 2002), em que antropólogos e historia- pós-colonial brasileiro? Ancoragens e especificidades; passasse pelas resso-
dores radicados no Brasil e em Portugal revisitam à luz da teorização nâncias culturais inter-hemisféricas que a crítica contemporânea rever-
pós-colonial o antigo império português e suas reconfigurações atuais. bera, apresentadas na segunda parte, Fricções culturais: África, Américas,
Conjunturas históricas diversas do colonialismo e do pós-colonialismo Brasil; seguisse pelas Descolonizações epistemológicas, abrindo um leque
portugueses são analisadas, incluindo temas como escravidão e etni- de desdobramentos e revisitações que se torna possível e necessário a
cidade, lusotropicalismo, Comunidade dos Países de Língua Portu- partir das reconfigurações do pós-colonial; concluindo-se com a quarta
guesa – CPLP, migração e racismo hoje em Portugal, entre outros. O parte, Movimentos sociais e trânsitos de diferenças, que lança perspecti-
livro, publicado em Portugal em 2002, e posteriormente no Brasil em vas para análises de ações sociais e culturais negras e indígenas.
2007,4 faz apostas importantes para o recorte luso-brasileiro da crítica O texto “A recepção de Fanon no Brasil e da identidade negra”, de
pós-colonial, e uma afirmação de Miguel Vale de Almeida nos servirá Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, abre a coletânea e a primeira parte,
aqui de provocação: “os postulados da teoria pós-colonial não parecem e isso por um motivo claro: levanta, desde a década de 1950, os indícios
úteis para um cabal entendimento da afro-diáspora, esse produto por de recepção no Brasil de um dos autores fundamentais para os estudos
excelência do colonialismo” (almeida, 2002, p. 30). Ora, o conjunto de pós-coloniais, o jamaicano Frantz Fanon, e de algum modo antecipa
textos de autores brasileiros aqui reunidos parece justamente relativi- as condições de recepção das teorias pós-coloniais que, em parte, dele
zá-la: sua recorrente proximidade de questões étnicas, raciais e sociais, resultam. Guimarães mostra como o silêncio sobre Fanon, nas décadas
sobretudo de matriz afro-brasileira, explicita bem a imbricação entre de 1950 e 60, coincide com certas escolhas que a sociedade brasileira
teorização pós-colonial e demandas da afro-brasilidade. fez neste período – por exemplo, a de se reconhecer como nação mes-
tiça livre de conflitos raciais ou a preferência conceitual e política das
coletânea: textos e ressonâncias esquerdas pelas classes sociais – até que a juventude negra das décadas
de 1970 e 80 (lendo Fanon) viesse a romper com o discurso da democra-
No Brasil, nessa última década, um corpo significativo de teóricos em cia racial. Trazido mais recentemente pela via dos estudos pós-coloniais,
trabalho paralelo tem produzido crítica pós-colonial a partir de diver- Fanon, segundo o autor, pode ainda dar uma grande contribuição à cena
sas áreas de conhecimento: estudos literários, sociologia, antropologia e cultural e acadêmica brasileira, especialmente agora com a formação de
história são as que mais se deixaram afetar por esse debate. Ao constituir mais estudantes e pesquisadores negros nas universidades brasileiras.
este panorama de pesquisas que veem na crítica pós-colonial uma opor- Situando os vários desafios teórico-políticos que envolvem hoje
tunidade de enunciar problemas em pauta no tempo-espaço brasileiro as Ciências Humanas e os estudos da cultura, o texto de José Jorge de
em diálogos com autores de outros espaços de língua portuguesa, pro- Carvalho, “O olhar etnográfico e a voz subalterna – Para uma teoria
curamos retratar essa diversidade de áreas que faz parte de nossa prática da subalternidade e do luto cultural” investiga particularmente o modo
como a antropologia tem respondido aos estudos pós-coloniais e subal-
3 Ver, por exemplo, as publicações do Projeto Tolerace – The semantics of tolerance and
(anti-)racism in Europe disponíveis no site da CES <http://www.ces.uc.pt>. ternos, que é também o modo como a área se submete a uma crítica
4 Publicado no Brasil pela Editora da Unicamp. pós-colonial e à tarefa de “descolonização das paisagens mentais” que

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percorre outros saberes. Embora persiga uma questão própria – a dos pós-coloniais, aí encontrando relações e pontes que urgem ser investiga-
olhares etnográficos e da condição pós-colonial – Carvalho fornece uma das, explicitadas. E assim surge Darcy Ribeiro, sujeito do conhecimento,
excelente síntese das estratégias pós-coloniais inglesas, uma retomada prenunciando experiências e categorias desafiadoras em seu tempo –
das agendas de Spivak, Said e Bhabha em ressonância com as discus- seja a afirmação do entre-lugar que permeia o intelectual com sua vida
sões no Brasil e com nossas potencialidades de intervir nesse diálogo a e seu olhar deslocados ou a postulação do hibridismo, o processo de
partir das especificidades da voz subalterna brasileira. É o texto perifé- transfiguração na formação do povo brasileiro – cujos laços com o pen-
rico, e não o texto do colonizador, como na crítica inglesa, que o autor samento pós-colonial só contribuem para a valorização de uma rica tra-
aponta como objeto de tematização de um projeto etnográfico sensível dição de conhecimento na América Latina.
à condição colonial no Brasil. Analisando o luto cultural e um corpus de O último texto desta primeira parte, “Quando o sujeito subalterno
narrativas de quebradeiras de coco de babaçu como práticas de afirma- fala: especulações sobre a razão pós-colonial”, de Sandra Regina Goulart
ção da dignidade, o autor percebe-os em sua potência de emancipação e Almeida, faz uma aproximação muito oportuna entre a teorização de
de libertação da condição subalterna. Nossa tarefa, em sua proposição, Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? e o trabalho literário mais
seria a de ouvir e inscrever as vozes de nossas populações ainda não ins- conhecido da escritora Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo.
critas no cânone, na medida em que são elas “que inscrevem as relações Pesquisadora e tradutora de Spivak no Brasil,5 a autora refaz o trajeto
hierárquicas de poder que configuram nossa realidade” (p. 92). conceitual desse texto fundamental de Spivak em torno das condições
Apontando justamente para a necessidade de que a crítica pós-colo- de produção, escuta e circulação da fala do subalterno, oferecendo-nos
nial no Brasil desenvolva uma teorização própria, Heloisa Toller Gomes possibilidades de interpretação mais proveitosas da resposta aparente-
contribui para este projeto com seu texto “A problemática inter-racial na mente negativa que o texto mobiliza, para além de uma apreensão rasa
literatura brasileira: novas possibilidades interpretativas à luz da crítica de que o subalterno não fala. É a vez de deixar falar Carolina Maria de
pós-colonial”. Sintetizando com muita clareza a tarefa da crítica pós- Jesus e indagar as condições de uma escuta “tímida e enviesada” que o
colonial, a autora levanta nos extratos da literatura brasileira desde o texto recebeu, mediado pelo lugar de autoridade do editor que selecio-
início do século passado, e especialmente no cânone literário afro-brasi- nou as partes para publicação. Há que se ler o texto e aproveitar também
leiro, as tensões de nossas relações inter-raciais incrustadas nas malhas a ótima contextualização inicial sobre a produção intelectual de Spivak.
do tecido discursivo, a enredar forçadamente discursos hegemônicos Abrindo a segunda parte do livro, Fricções culturais: África, Améri-
e subalternos num mesmo ato de fala. Esse tratamento tensionado da cas, Brasil, o texto da pesquisadora francesa Bárbara dos Santos “As lite-
questão racial na ficção brasileira é o projeto de leitura que a autora raturas pós-coloniais da África lusófona” é um mapeamento preciso de
propõe como alternativa aos modelos de análise que privilegiam ora a literaturas pós-coloniais de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São
herança europeia ou as matrizes negra e indígena, ora a ênfase na mis- Tomé e Príncipe, apresentando autores e tendências em termos de gêne-
cigenação, fazendo-se revelador do tecido sociocultural complexo do ros, procedimentos, registros, temáticas etc., mas sobretudo contextua-
nosso passado-presente. lizando-os no ambiente político e cultural de antes e depois da inde-
Com o ensaio “A antropologia/antropofagia darcyniana e a cons- pendência dos Palops (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa)
ciência do colonialismo intelectual”, Adelia Miglievich-Ribeiro dá um de Portugal. Partindo da cena literária que denuncia o colonialismo e
passo importante na revisitação que vem fazendo da obra de Darcy prenuncia a descolonização, o texto se centra nas literaturas produzidas
Ribeiro, conjugando em seu olhar as perspectivas do pensamento social depois da independência, que evoluem junto com a construção das
brasileiro e da crítica pós-colonial. É o necessário esforço de articular
a produção intelectual nacional anticolonial aos debates mais recentes 5 Traduziu recentemente Pode o subalterno falar? (SPIVAK, 2010) pela Editora da UFMG.

18 19
nações, constituindo uma relação que é um dos focos da pesquisa tação dos operadores teóricos que têm servido à análise dessa vertente
pós-colonial na África. Inserido nesta coletânea, o texto permite um literária, Duarte se volta à lapidação do conceito de literatura afro-bra-
sobrevoo sobre uma das direções mais produtivas da crítica pós-colo- sileira, de caráter não essencialista, como lugar de enunciação política
nial no mundo, a que se volta às literaturas pós-coloniais africanas, e culturalmente identificado à afrodescendência, para então analisar os
capazes de testemunhar na atualidade as complexidades da colonização vestígios de constituição no romance de um sujeito diaspórico, marcado
e da descolonização tardias da África. pelo trânsito, pela resistência, pelos traços de cultura que traz consigo
É também no contexto da produção literária pós-colonial da África em sua deambulação entre África e Brasil. Que seja uma mulher prota-
que se inserem os romances de Paulina Chiziane, autora moçambicana, gonizando essa saga, só acrescenta mais complexidade ao romance e à
que Jurema Oliveira no ensaio “Paulina Chiziane e a história da poliga- análise, que o autor desdobra em muitos fios e extratos.
mia” interroga a crítica aos costumes patriarcais: O sétimo juramento e O capítulo de Paulo Marcondes Ferreira Soares “Identidade e
Niketche: uma história da poligamia são as cenas preferenciais para uma modernização como modelos de ações culturais no ‘entre-mundos’”
leitura pontuada por observações de Walter Mignolo e Elísio Macamo a traz uma contribuição importante à problematização das fricções
respeito das práticas e saberes coloniais e descoloniais. Jurema Oliveira inter-hemisféricas no campo do audiovisual. O cinema em contexto
mostra como o texto literário se abre à encenação dos saberes tradicio- periférico – reverberando provocações da identidade/modernidade,
nais e práticas ritualísticas, de certo modo renegados pelo saber colo- do latino-americanismo, da indissociabilidade entre teoria e prática
nial. A escrita crítica de Chiziane projeta um saber africano, para além – é o pano de fundo para uma indagação mais pontual sobre a nossa
do saber tradicional, na esteira dos sistemas comunitários em ruptura situação cinematográfica e o fazer estético e teórico do Cinema Novo,
com o conhecimento eurocêntrico. como projeto de elaboração de narrativas anticolonialistas em contra-
Privilegiando o âmbito dos diálogos transnacionais e das parce- posição ao discurso dominante europeu, abrindo a agenda de um pro-
rias intra/ intercontinentais, o texto de Stelamaris Coser “Questões de jeto de cinema como lugar periférico – e logo questionador – de fala e
poder e representação: conexões diaspóricas nas Américas” abre uma ação política.
rica perspectiva de pesquisa quando explora a diversa produção cultural Abrindo a terceira parte do livro, Descolonizações epistemológi-
de escritoras negras americanas resultante de viagens e deslocamentos cas, o texto de Elísio Macamo, intelectual de Moçambique radicado na
pelo Caribe e América do Sul. São depoimentos, impressões de viagem, Europa, “O pós-colonial ante portas: algumas notas de rodapé”, é uma
romances, relatos autobiográficos, obras que a autora costura no intuito breve intervenção crítica – estendida pelas várias notas de rodapé que
de desvelar redes de experimentação de uma consciência diaspórica nas referenciam e consubstanciam o texto – a respeito do direcionamento
Américas, latente na herança cultural africana dispersa no continente curricular das humanidades e das letras na recém-criada Universidade
e ativada nessas trocas e traduções transculturais. Uma oportunidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, no Ceará. Nas
ímpar para acompanhar os movimentos de afeto e pensamento para entrelinhas das ementas de um concurso público recente nessa Univer-
além do nacional e de suas filiações e encontrar novas e antigas solida- sidade, o autor desvela um discurso que ainda reflete muito pouco os
riedades em torno da reconstrução de uma iconicidade africana. deslocamentos que uma compreensão pós-colonial contemporânea (a
É a mesma verve diaspórica que anima a escrita do texto de Eduardo partir de Said, Appiah etc.) permitiu surgir nas ciências sociais, explici-
de Assis Duarte e do romance que analisa: “Na cartografia do romance tando exatamente a necessidade de leituras pós-coloniais no país.
afro-brasileiro: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves” é uma leitura “(Re)Encontrando-se nas redes? As ciências humanas e a nova
potencializadora dos efeitos desse romance que marca recentemente a geopolítica do conhecimento”, de Sérgio Costa, incide também sobre os
vertente afro da literatura brasileira. Partindo de uma precisa explici- desdobramentos epistemológicos da crítica pós-colonial em uma (nova)

20 21
geopolítica do conhecimento, diante dos desafios de se pensar as Ciên- Ativando ferramentas da análise guatarriana da cultura, o texto de
cias Humanas na atualidade. Constituindo uma breve fundação desses Luís Eustáquio Soares “Os massificados da terra” transforma a descolo-
estudos nas orientações de Said e Hall – em torno de como o conheci- nização projetada por Frantz Fanon em vetor de fuga à perspectiva con-
mento ocidental configura-se a partir de polaridades e fronteiras ins- temporânea dos novos processos de “colonização” do pensamento pelo
tituídas entre o ocidente e o “resto” – o autor investiga as posições de capitalismo cultural. Descolonizar-nos das formas da cultura de massa
diferentes vertentes pós-coloniais que hoje lutam para combater as assi- é o principal motor de sua fala, na medida em que essas constituem um
metrias legadas pela episteme moderna. Uma análise de termos usados lugar importante de atualização da violência colonial, apagando e mas-
acriticamente no cotidiano acadêmico europeu aponta a necessidade sificando as experiências emancipatórias do passado. Dialogando de
dessa reflexão e de uma transformação nas estruturais de produção do perto com a filosofia política de Hardt e Negri, Soares reencontra numa
conhecimento vigente, que, segundo o autor, deve ser feita de dentro (e “viva cultura insubmissa” o lugar de uma resistência crítica às práticas
de fora) das gramáticas institucionais. culturais de colonização da vida e do pensamento.
O ensaio “Dom, religião e eurocentrismo na aventura colonial”, Em nossa última parte, Movimentos sociais e trânsitos de diferen-
de Paulo Henrique Martins, é uma revisitação ao momento fundador ças, Carlos A. Gadea apresenta “O espaço da negritude e o reverso da
da colonização, pensado a partir da relação múltipla e paradoxal entre africanidade: crítica sobre as relações raciais contemporâneas”, em que
conquistadores e populações locais que operam, com lógicas e imagi- reúne os conceitos e os indícios para explicitar uma transição em curso
nários distintos, as trocas de bens simbólicos e materiais. A partir das na diversidade da experiência negra da atualidade brasileira, particular-
relações entre dom e religião, são pensados os momentos do pacto colo- mente motivada pela observação da cena social domingueira do Par-
nial, que fazem o trânsito entre uma sociabilidade inicial baseada nas que da Redenção, em Porto Alegre. A ampliação no quadro de relações
trocas espontâneas de presentes à violência da negação do dom sacri- sociais, afiliações e grupos de referência que experimenta o jovem negro
ficial pelos colonizadores – o sacrifício humano como limite intrans-
hoje parece distanciá-lo de sua pertença primeira a uma comunidade
ponível da humanidade. É essa recusa radical do dom agonístico que
negra percebida como africanidade. Sem considerar que tal experiência
abre caminho à subalternização e à destruição das culturas autóctones, à
seja a do “branqueamento”, o autor se ampara nos conceitos de indivi-
submissão do dom à lógica colonial, mercadológica, em que a cobertura
dualização e diferenciação social para dar conta desse processo que, em
cultural justifica a apropriação mais fácil das riquezas naturais e da mão
sua leitura, resulta do ganho de visibilidade e autoestima desses grupos
de obra indígena.
inseridos em novos espaços sociais de trabalho, conhecimento, cultura,
“Rumo a uma sociologia não exemplar: modernidade, decoloniali-
diversificando e ampliando sua experiência individual.
dade e lutas por terra na África do Sul e no Brasil”, de Marcelo C. Rosa,
Jorge Nascimento, em “As margens nos meios: RAP, ‘Literatura Mar-
propõe uma reflexão sobre os limites da sociologia do norte e as possi-
ginal’, mídias”, nos traz uma intervenção em um debate caro à contem-
bilidades da sociologia do sul diante de processos sociais não exempla-
poraneidade brasileira, no contexto em que as periferias passam tam-
res, isto é, frente à incomensurável vida social que escapa à análise dos
bém a protagonizar a produção cultural. Entre o discurso dos Racionais
centros produtores de teoria sociológica. A terra e os movimentos que a
MC’s e alguns posicionamentos críticos da mídia em relação à produção
reivindicam no Brasil e na África do Sul são pensados como “fonte epis-
temológica” capazes de renovar o imaginário sociológico, contrariando lítero-musical de periferias, Nascimento descortina, a partir de afirma-
as práticas habituais de desclassificação dos objetos que não se encaixam ções Stuart Hall, as tensões contínuas entre cultura dominante e cultura
nas teorias exemplares. de periferia, entre discursos que negam o racismo no Brasil e as vozes
(taxadas de não cordiais) que o apontam.

22 23
Trazendo os movimentos indígenas da América Latina, mais especi- Como situar esse conjunto de textos no universo de discursos, que
ficamente o zapatismo, da região mexicana de Chiapas, Antonio Carlos não é pequeno, que já tratou das configurações históricas coloniais e
Amador Gil, em “O zapatismo e a crítica à situação colonial: pluralismo pós-coloniais do Brasil? Por vezes somos mesmo referidos como tendo
étnico, movimentos indígenas e novas formas de organização política revelado “híbridos pós-coloniais avant la lettre”,7 através, por exemplo,
e social na América Latina”, contempla um tema decisivo para o pen- da reivindicação modernista da antropofagia ou do Brasil miscigenado
samento descolonial latino-americano, que dialoga intensamente com a de Gilberto Freire.8 Uma das tarefas das pesquisas pós-coloniais no Bra-
produção intelectual indígena da América Latina hispânica. O texto, que sil tem sido, na ampla direção apontada por Elísio Macamo, em seu texto
é também uma contribuição da área da história às nossas críticas pós- aqui reunido, “identificar os princípios éticos na base da ordem social
coloniais, traça o desenho complexo do movimento zapatista: desde o brasileira que foram violados no processo de constituição da nação bra-
processo de politização de que é fruto, suas exigências políticas e éticas sileira” (p. 251). Essa tarefa requer uma releitura dos discursos que fun-
em ruptura aos modelos etnocêntricos de luta revolucionária, sua incli- daram a singularidade brasileira em um hibridismo excepcionalista e
nação pluriétnica, fazendo uma reflexão decisiva sobre a noção de etnia. que se refinem os meios e categorias de análise: seja distinguindo hibri-
“Como/quando pensar em língua indígena? Resistências e confor- dismos (mais ou menos ativos nas suas seleções, mais ou menos força-
midades”, de Lillian DePaula, fecha o livro conjugando as perspectivas dos, assimilados etc.); seja reconstituindo gestos e enunciados de resis-
da tradução com o pensamento pós-colonial, tendo como foco os movi- tência lá onde se percebia uma ausência de voz; seja buscando, como em
mentos de resistência no Brasil pela soberania das línguas indígenas. O Silviano Santiago (2011, p. 179), uma impostação étnica capaz de impor
bi/multilinguismo e a tradução, tomados no sentido mais amplo de ope- o limite necessário ao expansionismo ocidental europeu e à “noção de
radores de trânsito entre diferenças (inter e intralinguísticas, semióticas, mestiçagem espontânea como concreto pré-fabricado do legitimamente
culturais, educacionais etc.), nos permitem questionar a troca colonial e nacional”, na esteira do que Shohat dizia: “negociar locais, identidades
unidirecional entre línguas e realçar o potencial de descolonização que e posicionalidades em relação à violência do neocolonialismo é crucial
o conhecimento e a valorização das línguas indígenas incitam. O texto para que a hibridização não se torne uma figura de consagração da hege-
de DePaula sugere uma crítica pós-colonial que se faça não só nos espa- monia” (1992, p. 110, tradução minha).
ços de fala dominantes das línguas coloniais, mas que se abra às tensões Nas intervenções dos autores brasileiros aqui presentes, são propos-
e múltiplas perspectivas das línguas suprimidas ou quase suprimidas tos modos distintos de ver e dizer as dinâmicas de nosso passado-pre-
pelos processos coloniais e pós-coloniais. O próprio conceito de lusofo- sente colonial e pós-colonial. Na direção de uma voz subalterna, José
nia encobre o fato de que, para falantes de línguas autóctones do Brasil Jorge de Carvalho encontra na narrativa de uma quebradeira de coco de
e da África, a língua portuguesa constitui um problema, um impedi- babaçu uma fala que desloca a subalternidade, não “foraclusa” a escravi-
mento, e não um bem comum a nos unir. Uma das tarefas de uma crítica dão nem a pertença étnica e impõe-se como denúncia da falta de cida-
pós-colonial nos variadíssimos tempos-espaços de língua portuguesa
deve ser, assim, desconstruir os conceitos que “naturaliza[m] a nossa 7 “Os protagonistas culturalmente sincréticos dos modernistas brasileiros [...], os “heróis
pertença a um espaço comum”, questionando “os pressupostos sobre os sem caráter” cunhados por Mario de Andrade podem ser vistos como ‘híbridos pós-
quais a história que produziu esse espaço comum assenta” (MACAMO, -coloniais’ avant la lettre. As teorias canibalistas dos modernistas brasileiros e sua elabo-
ração pelo movimento tropicalista [...] simplesmente assumiram que os povos dos Novos
2012, p. 1).6 Mundos são culturalmente misturados, um amálgama não resolvido de identidades indí-
genas, africanas, europeias, asiáticas e arábicas” (Shohat, 1992, p. 109, tradução minha).
6 Devo a dois cientistas sociais de Moçambique, Elísio Macamo e Patricio Vitorino Langa, 8 “Freyre, nos anos 30 do século XX, foi o ideólogo do Brasil miscigenado. Poderia dizer-se
em conferências no I Congresso Nacional Africanidades e Brasilidades (Vitória, UFES, que apresentou um discurso pós-colonial avant la lettre, considerando o seu fascínio com
2012), a explicitação dos riscos de um uso acrítico do conceito de lusofonia. a hibridização cultural” (ALMEIDA, 2002, p. 31).

24 25
dania em tom de ternura. Mas adiante é a vez de Heloisa Toller Gomes são evidências de uma insistência em contribuir para o enfrentamento
oferecer uma lente interpretativa alternativa quando propõe perceber no dos problemas que se impuseram a partir das diferenças e desigualda-
texto literário brasileiro as tensões inerentes aos embates inter-raciais: o des herdadas da colonização e que pertencem ao que, dialogando com
texto como lugar de espessamento das relações obscuras e não resolvidas Roberto Schwarz (1977, p. 31), entendemos como “campo de problemas
de nossa formação sociocultural em lugar de uma acomodação miscige- reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias” que têm
nada. Recuperam-se percursos de subjetivação diaspóricos, tensionados peso, necessidade e exigem nossa atenção nesse lugar geocultural em
pelos jogos de diferenças e identidades: sejam aqueles que se produziram que nos inserimos como intelectuais.
no contexto da escravidão, trazidos por Eduardo de Assis Duarte; ou os É neste ponto que a relação com outras sensibilidades pós-colo-
que se reinventam na atualidade, nas trajetórias das escritoras negras niais, com o que tem sido feito em outras partes do mundo, pode trazer
pelas Américas, reescritas no trabalho de Stelamaris Coser, nos raps dos um grande estímulo a pesquisas relacionadas e a metodologias com-
Racionais MC’s, na leitura de Jorge Nascimento, ou nas múltiplas rela- paradas. As reverberações que se fazem ouvir nesta coletânea entre os
ções e trajetos que se abrem aos jovens negros da atualidade brasileira, textos que se debruçam sobre as literaturas lusófonas da África pós-
na perspectiva de Carlos A. Gadea. Distintas e reiteradas problematiza- colonial – os de Bárbara dos Santos e Jurema Oliveira – são estímulo a
ções da afro-brasilidade – contrariamente ao previsto por Miguel Vale que iniciativas transnacionais sejam realizadas nessa grande cartografia
de Almeida – são articuladas em uma perspectiva de descolamento dos pós-colonial que se escreve em língua portuguesa, desde que a língua
“atalhos” da modernidade, seja a miscigenação espontânea ou a demo- não seja tomada como fator de apagamento da história e das diferen-
cracia racial, de que ainda hoje a produção intelectual brasileira não está ças, mas espaço de sociabilidade e de interferência crítica, como o texto
livre. Mas não só a matriz afro, as questões indígenas em uma perspec- de Elísio Macamo a respeito do Brasil aponta. Se o Brasil e as reflexões
tiva pós-colonial também surgem aqui nos escritos de Antonio Carlos sobre nossa colonização funcionaram no passado como paradigma para
Amador Gil e Lillian DePaula, suscitando novos modos de relação entre a colonização dos países africanos por Portugal, as trocas intelectuais
diferentes. Em ambos os casos, reler Darcy Ribeiro através de Adelia atuais com a África pós-colonial nos permitem revisitar nosso entendi-
Miglievich-Ribeiro é encontrar os meios de cumprir a tarefa ensejada mento sobre processos que constituíram e constituem a colonialidade e
por Boaventura de Sousa Santos: de enfrentar a necessidade de produzir a pós-colonialidade no universo luso-afro-brasileiro, inclusive termos
uma tipologia mais complexa de processos e produtos da hibridização caros ao Brasil e à África, como o luso e o neocolonialismo.
luso-brasileira, que deu origem a uma vida cultural tão rica em nosso As diferentes tonalidades do pós-colonial no mundo expressam
país e a uma desigualdade social tão profunda, que necessitará séculos – particularidades geo-históricas de processos e fluxos que se constituí-
e muita crítica pós-colonial! – para ser superada. ram em grandes movimentos para além mesmo de cada língua colo-
Somando-se aos esforços de outras áreas, os estudos pós-coloniais nial, e nesse sentido a pesquisa comparada é uma forma de tensionar
no Brasil contribuem com ferramentas, posicionamentos e fôlego novo os dispositivos de leitura e os resultados da análise. Chama a atenção
para pautar processos de discursivização e subjetivação em temporali- como pesquisas sobre migração hoje na Europa raramente observam o
dades diversas, sem, no entanto, pretender traduzir os diferentes proces- fenômeno da chegada dos imigrantes nas metrópoles em sua articula-
sos a um operador comum. Nesse sentido, os outros problemas para os ção com o que aconteceu e acontece nas ex-colônias que hoje exportam
quais os textos da coletânea confluem, desde a revisitação à colonização, suas populações, países recentemente libertados da Europa e que ainda
à escravidão – nos textos de Paulo Henrique Martins e Eduardo de Assis sofrem muito diretamente as consequências da colonização e da “colo-
Duarte –, às demandas por uma nova geopolítica do conhecimento – nização sem colono”, para usar a bela expressão de Mia Couto. Interessa
com Sérgio Costa, Luís Eustáquio Soares, Marcelo C. Rosa e outros – apenas aqueles que partem e que chegam ou não, mas não os que ficam.

26 27
O pós-colonial constitui redes de pesquisa que procuram dar visibili- CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Le chapitre manquan d’Empire. Multitudes, Paris, n.
dade aos problemas que dos centros hegemônicos não interessa ver, ver- 26, p. 27-49, aut. 2006.
dadeiros pontos cegos que parecem resolvidos quando uma expressão é ______; WALSH, Catherine; SCHIWY, Freya. Introducción. In: WALSH, Catherine;
SCHIWY, Freya; CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Indisciplinar as ciências sociais.
retirada de circulação – “terceiro mundo”, “periferia” – ou quando uma
Quito: Universidade Sandina Simon Bolivar/AbyaYala, 2002, p. 7-16.
nova categoria redistribui novas relações – “império” e não mais “impe-
CLAVARON, Y. Histoire d’um retard. In: ______ (org.). Études postcoloniales.
rialismo”. Paris/Nîmes: Société Française de Littérature Générale et Comparé / Mon-
Finalmente, queria retomar uma fala de Conceição Evaristo que dial Livre, 2011.
servirá para fechar este comentário ao conjunto de textos aqui reuni- DUSSEL, E. Europe, Modernity, and Eurocentrism. Nepantla: Views from South,
dos: dizia a escritora o quanto as palavras de Edward Said no início de Durham, n. 1.3, p. 465-478, 2000.
Orientalismo – atando sua condição de oriental a suas pesquisas sobre FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
o orientalismo – foram de grande utilidade ao pesquisador negro, habi- HALL, S. Identités et cultures: politiques des Cultural Studies. Paris: Éditions
tuado a ouvir de professores e orientadores que o investigador deve se Amsterdam, 2007.
distanciar de suas circunstâncias de vida – a “ladainha da neutralidade”.9 MACAMO, E. A moral da História: adiar conversa como intervenção epistemo-
Em seu trabalho como escritora e pesquisadora, a contaminação de seus lógica. Anais do I Congresso Nacional Africanidades e Brasilidades. Vitória:
UFES, 2012, p. 1-7.
escritos como mulher negra é a tônica – o que a autora explicitou na
MIGNOLO, W. Herencias coloniales y teorias postcoloniales. In: Gonzáles
expressão escrev(ivência). De fato, com aquelas considerações sobre seu
Stephan, Beatriz. Cultura y Tercer Mundo: 1. Venezuela: Nueva Sociedad,
método, Said inaugurava condições de o pensamento relacionar-se de 1996, p. 99-136.
outra forma com seu contexto de experiência. Essa relação dinâmica ______. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de iden-
com a vida está na base de uma nova maneira de se produzir conheci- tidade em política. Cadernos de Letras, Niterói, n. 34, p. 287-325, 2008.
mento, de uma nova solidariedade entre pesquisadores e intelectuais das SAID, E.W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
periferias do mundo e que enseja uma nova relação entre pesquisas do Companhia de Bolso, 2007.
sul e do norte. SANTIAGO, S. Destino: Globalização. Atalho: Nacionalismo. Recurso: Cordia-
lidade. In: DUARTE, Eduardo de Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares.
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WALSH, Catherine; SCHIWY, Freya; CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Indisciplinar as
9 Em conferência no Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) intitu- ciências sociais. Quito: Universidade Sandina Simon Bolivar/AbyaYala,
lada “Nos labirintos do silêncio de Anastácia: um grito de muitas vozes”, em 6 de outubro
de 2011.
2002.

28 29
parte i
O texto pós-colonial brasileiro?
Ancoragens e especificidades
A recepção de Fanon no Brasil
e a identidade negra1
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Frantz Fanon é um nome central nos estudos culturais, pós-coloniais e


africano-americanos, seja nos Estados Unidos, na África ou na Europa.
Falamos muitas vezes de estudos fanonianos, tal o volume de estudos
que têm a sua obra como objeto de reflexão. Meus colegas e alunos
negros brasileiros devotam a ele a mesma admiração, respeito e devoção
que os africanos, os asiáticos e seus irmãos de cor do hemisfério norte.
No entanto, quando busquei material para escrever esse capítulo, me
deparei com o quase completo silêncio sobre sua obra, que perdurou até
meados da década de 1960, em revistas culturais ou acadêmicas.
No Brasil, como em toda a parte, Fanon entrou na cena cultural
quando a violência revolucionária estava na ordem do dia, embora,
mesmo então, tenha sido lido timidamente, ombreado por guerrilhei-
ros pensadores como Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Torres; ou
por lideranças negras como Stockley Carmichael, Malcom X e Eldridge
Cleaver; ou Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Kwame N’Krumah. Pas-
sada essa fase, seu pensamento não foi objeto de reflexão exegética e
crítica por parte de universitários e acadêmicos brasileiros, ao contrário

1 Versão modificada do artigo “A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra”, origi-


nalmente publicado em Estudos Cebrap, v. 81, p. 99-114, 2008.

33
do que ocorreu alhures, por parte de intelectuais de cor, abrigados em O Brasil começa a se familiarizar com as ideias de Fanon um pouco
centros de estudos e pesquisa afro-americanos ou pós-coloniais. antes de sua morte, mais precisamente durante a estadia de Jean-Paul
Nesse capítulo, defenderei duas teses. A primeira é que essa recepção Sartre e Simone de Beauvoir no país, entre agosto e setembro de 1960.
morna deu-se por conta de uma formação nacional totalmente avessa Sartre e Beauvoir (1963) chegam ao Rio de Janeiro, vindos de Havana,
aos conflitos raciais, fortemente alimentada por uma classe média inte- para promover a solidariedade internacional necessária para sustentar
lectual mestiça e branca que rejeitava qualquer particularismo étnico, a revolução cubana e a guerra de libertação da Argélia. Certamente a
regional ou racial. Ou seja, o Brasil da democracia racial, para ser mais intelectualidade brasileira, tão próxima do que se passava em Paris,
claro. A segunda é que a pouca penetração dos estudos fanonianos se acompanhava, através do Les Temps Modernes, as posições anticolonia-
explica, complementarmente, pela presença também miúda de profes- listas do filósofo. A sua peregrinação à China, a Cuba e ao Brasil tinha
sores e pesquisadores negros nas universidades brasileiras, que se inte- claramente um caráter militante. “O colonialismo é um sistema que nos
ressem em afirmar como sua área de estudos a formação afro-brasileira infecta com seu racismo” escrevera Sartre, em 1956. A sua militância vai
ou a história da afirmação política de sujeitos racialmente oprimidos. além das palavras: durante sua estadia no Brasil, Sartre passará a respon-
O pensamento de Fanon chegou ao Brasil como chegavam todas as der a um processo criminal em Paris, junto com outros 121 intelectuais
ideias novas – em livros europeus – e numa época em que o marxismo que assumiram abertamente a cooperação com a Frente Nacional de
e o existencialismo disputavam o proscênio da cena cultural e política Libertação da Argélia.
brasileira. Na década anterior, o jornal negro Quilombo publicara trechos de
seu Orfeu Negro, em que ele argumenta que o “racismo antirracista” dos
os anos 1960 e a epidemia sartre negros francófonos encerrava em si uma nova dialética de libertação.
No entanto, não há registro de que Sartre tenha se encontrado com
Uma leitura atenta das principais revistas culturais brasileiras dos anos Abdias do Nascimento ou com qualquer outra liderança política negra
1950 não me rendeu nenhum conhecimento sobre a recepção de Fanon. brasileira. Terá se encontrado com Edison Carneiro, tão próximo a Jorge
É como se a publicação de Peau noir, masques blancs (fanon, 1952) Amado, que o ciceroneava? Não sei. Mas o fato é que Sartre estava entre
tivesse passado despercebida. A Anhembi, de São Paulo, publica, entre nós, defendendo as mesmas posições anti-imperialistas dos comunistas
1953 e 1955, todos os estudos de relações raciais entre brancos e negros e da esquerda católica com relação a Cuba e à América Latina, à Ásia e à
em São Paulo, frutos do projeto coordenado por Roger Bastide e Flores- África; e a luta antirracista e anticolonial dos africanos começava a ficar
tan Fernandes, além de algumas reações a estes estudos. O próprio Bas- mais próxima.
tide, depois de retornado a Paris, em 1954, escreve regularmente críticas Também não tenho informações sobre se Sartre citou Fanon em
e comentários a livros que estão sendo lançados na Europa, principal- suas conferências, mas as ideias do jovem martiniquense causavam
mente na França; mas não menciona Fanon em sua atividade recensó- grande impressão sobre Sartre à época, como se pode inferir dos diários
ria. Nada encontramos também na Revista Brasiliense. Clovis Moura, de Beauvoir. Ao recordar-se de uma visita a um barracão em Ilhéus,
Florestan Fernandes e Octávio Ianni escrevem na revista sobre temas por exemplo, ela nota “os homens de pele e cabelos escuros nos olha-
negros (revolta dos malês, relações raciais, poesia), mas sem mencionar vam, machadinhas em mãos, o ódio nos olhos”. A revolução no terceiro
o autor martiniquense. Sérgio Milliet, em 1958, faz uma resenha abran- mundo, como pensava Fanon, deveria ser obra de camponeses e não de
gente da poesia negra e, como não podia deixar de ser, cita os poetas da trabalhadores como aqueles que eles também viram nas docas de Ilhéus,
négritude e Sartre. Apenas. “musculosos, saudáveis, que sabiam rir e cantar”. “Comparado aos cam-
poneses, o proletariado se constitui no Brasil uma aristocracia”, anotou

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Beauvoir (1963, p. 549). Sartre também chamou a atenção para a segre- racismo, que opunham o norte ao sul. Sartre participara ativamente da
gação que os negros brasileiros sofriam, à medida que percebia que seus construção desse polo. Escrevera o prefácio da Anthologie de la nouvelle
interlocutores eram todos brancos ou mestiços claros das classes médias poésie nègre et malgache de la langue française (Sartre, 1948, 1949), em
e altas: que abraçara a negritude, o movimento de afirmação identitária e de
reconstrução cultural, étnica e racial de africanos e afro-caribenhos,
Jamais vimos nos salões, nas universidades, nem nos auditórios um rosto
chocolate ou café com leite. Sartre fez essa observação em voz alta durante
ainda que fazendo uso da velha concepção de racismo enquanto dou-
uma conferência em São Paulo, depois se corrigiu: havia um negro na sala trina – a negritude, segundo ele, seria um racismo antirracista. Desde
– um técnico de televisão. (Beauvoir, 1963, p. 561) os anos 1950, porém, passara a acolher nas páginas de sua revista uma
nova concepção do que era o racismo no pós-guerra: aquele, que apesar
Evidentemente, Sartre e Beauvoir não encontraram no Brasil quem de negado doutrinariamente, era realizado e vivido nas práticas sociais
pensasse que os negros brasileiros fossem vítimas de racismo; encontra- e políticas de colonizadores e colonizados. No segundo eixo, a polari-
ram, ao contrário, o discurso unânime de que a segregação dos negros zação se dera entre os intelectuais que defendiam a ordem burguesa e
era econômica e a luta libertadora deveria ser de classes. Não pareceram liberal, por um lado, e aqueles que se faziam porta-vozes dos interesses
plenamente convencidos, pois, segundo Beauvoir, “o fato é que todos operários e camponeses, a partir do marxismo ou de outras ideologias.
os descendentes dos escravos continuaram proletários; e que, nas fave- O primeiro eixo é marcado pelas raças e pela descolonização; o segundo,
las, os brancos pobres se sentem superiores aos negros.” Talvez. Mas o pela luta de classes e pelo anti-imperialismo. Ora, Sartre e Fanon repre-
sucesso de Sartre no Brasil se deveu às suas conferências sobre o colo- sentavam a fusão do anti-imperialismo, do antirracismo, da descoloni-
nialismo e a necessidade histórica das lutas de independência dos povos zação e das lutas de classes.
do Terceiro Mundo. No Brasil dos anos 1950 e 1960, entretanto, esses dois eixos não se
O antirracismo e o anticolonialismo de Sartre conviveram, no Bra- encontravam: liberais e marxistas, brancos e negros, igualmente, tinham
sil, com o republicanismo de sua audiência – a classe média letrada de o mesmo projeto antirracista de construção de uma nação mestiça, bra-
estudantes, escritores e intelectuais. O Brasil, para Sartre, não era um sileira e pós-europeia, que ultrapassasse a polaridade entre brancos, de
simples transplante europeu como os Estados Unidos; afinal, “todos os um lado, e negros e indígenas, do outro. O que os dividia era apenas a
[brasileiros] que encontrei sofrem a influência dos cultos nagô” (Beau- defesa da ordem burguesa ou a aposta na luta de classes. As raças desapa-
voir, 1963, p. 561). A assimilação e a integração não pareciam aqui reciam, assim, na superexposição conceitual e política das classes sociais.
engenhosos discursos de dominação; ao contrário, pareciam ter amu- Passava-se o mesmo em toda a América Latina, inclusive na Cuba socia-
latado o país, como queria Freyre e também pensava Jorge Amado, seu lista, que Fanon quisera conhecer (Gordon, Sharpley-Whiting e
anfitrião. Aliás, Sartre e Beauvoir já estavam de há muito familiariza- White, 1996, p. 4) e que Sartre conhecera em 1960.
dos com as ideias de ambos. Devemos lembrar que extratos de Cacau Não fora Fanon fruto da convergência entre essas duas polariza-
haviam sido publicados no Les Temps Modernes (Amado, 1954), assim ções, Guerreiro Ramos, ativista negro e sociólogo, poderia tê-lo intro-
como uma resenha elogiosa da edição francesa de Casa Grande e Sen- duzido aos brasileiros de 1960, pois tinha alguma afinidade com o seu
zala (Pouillon, 1953), e que Quincas Berro D’Água seria publicado na pensamento. Não só ele, mas todos os demais membros do ISEB, como
mesma revista depois de seu retorno a Paris (Amado, 1961). observou Renato Ortiz (1998, p. 51):
Para compreender a posição de Sartre é preciso lembrar que o
mundo do pós-guerra polarizara-se rapidamente em dois eixos. No O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do ISEB é que ambos se
estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e
primeiro, a contraposição se dera em torno da descolonização e do

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o de situação colonial. As fontes originárias são também, nos dois casos, provavelmente ainda em dezembro de 1961.4 Há que se notar dois fatos
idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier. na informação: primeiro, foi o prefácio de Sartre e não o artigo ou o
livro de Fanon que foi discutido; segundo, a esquerda brasileira discutia
Se Guerreiro não o fez foi porque a desalienação e a descoloniza-
seriamente a violência revolucionária, o que significava que os autores
ção cultural que buscava não passavam pela luta de classes. Provavel-
que escreviam sobre a América Latina, sobre táticas de guerra urbana
mente conhecia Fanon, pois era leitor do Présence Africaine (Fanon,
ou guerrilha ou faziam a teoria geral da revolução em sintonia com a
1956, 1959), do Esprit (Fanon, 1951, 1956, 1959) e do Les Temps Moder-
filosofia europeia, eram privilegiados na leitura.
nes (Fanon, 1956, 1961), além de revistas acadêmicas francesas. O fato
O silêncio da esquerda brasileira sobre Fanon precisa ser entendido,
é que, para articular o seu libelo contra a colonização cultural dos bra-
ademais, como discordância política, tantos são os sinais indiretos de
sileiros “claros” e “escuros”, Guerreiro bebera em algumas das mesmas
sua presença, a partir de meados dos 1960. O que acontece tanto no
fontes que Fanon, mas não em todas. A mesma inclinação por Hegel e
mundo negro quanto no branco.5 Alguns fatos devem ser listados para
pelo existencialismo, quando somadas a situações nacionais e projetos
que se compreenda como se estabeleceu essa relação difícil entre Fanon
pessoais diversos, levara Guerreiro a posições nacionalistas e populistas
e a esquerda no Brasil. O primeiro deles é que pouco depois desse con-
(Paiva, 1980), afastando-o de doutrinas revolucionárias que pregavam
tato aligeirado e indireto sobreveio o golpe militar em 1964, que levou
a violência como modo de transformação social ou que defendiam a
ao exílio um grande número de militantes. O segundo é que aqueles
manutenção de diferenças culturais entre colonizados e colonizadores.2
que acreditavam na violência revolucionária passaram à clandestini-
Também a imprensa negra paulistana dos anos 1960, formada por
dade, tornando tênues os seus elos com o mundo cultural. O que se leu
homens e mulheres com situação de classe mais precária que Guer-
de e sobre Fanon, portanto, nos anos 1960, foi muito pouco. A situa-
reiro, parecia desconhecer Fanon em sua campanha de solidariedade
ção começa a mudar apenas quando as cidades norte-americanas são
aos movimentos de libertação africana, continuando sintonizada com
tomadas pelas chamas das riots negras, e se sabe que Fanon era lido e
o discurso da négritude de Senghor e de Sartre dos anos 1948, a quem
discutido febrilmente pelos revolucionários norte-americanos, como os
citam diretamente.3
Panteras Negras.
A revista Tempo Brasileiro publica em 1966 um artigo de Gérard
fanon e a esquerda revolucionária Chaliand, em que o autor abre uma nota de pé de página para registrar:
Certamente, a esquerda brasileira tomou conhecimento de Fanon “apoiando-se nas análises mais contestáveis de Fanon – aquelas sobre
através do extrato de Damnés de La Terre (Fanon, 1961), publicado no os camponeses africanos. Ver sobre esse assunto a melhor e, aliás, a
Temps Modernes, e do prefácio de Sartre. Ou seja, o Fanon sartriano de única análise marxista consagrada ao pensamento de Fanon: “Fanon et
De la violence. Michel Lowy, por exemplo, me afirmou se lembrar de ter les problèmes de l’indépendance”. La Pensée. n. 107”. Referia-se a Nghe
discutido o prefácio de Sartre com seus companheiros em São Paulo, (1963), um dos grandes adversários de Fanon no mundo africano.
Os marxistas brasileiros, portanto, seguiam as críticas marxistas –
e também liberais (Arendt, 1970) – às concepções políticas de Fanon.
2 Em A redução sociológica, de 1958, Guerreiro cita explicitamente Césaire (1955), Diop 4 Informação de Michel Lowy ao autor, em dezembro de 2007. Lowy saiu do Brasil em
(1954) e Sartre (1956) em francês, mas não se refere a Fanon (1952, 1955). Na segunda agosto de 1961 e voltou em dezembro do mesmo ano por dois ou três meses, provavel-
edição, de 1965, Guerreiro acrescenta a essas leituras Balandier (1955) e continua sem se mente trazendo uma cópia do Damnés de la Terre, recém-lançado em Paris.
referir a Fanon. 5 Em entrevista a Verena Alberti e Amilcar Pereira (19 dez. 2006), José Maria Nunes
3 Ver a coleção do Niger, jornal dirigido por José Assis Barbosa e José Correia Leite, em São Pereira, que dirigiu o Centro de Estudos Asiáticos da Cândido Mendes, entre 1973 e 1986,
Paulo, 1960. Coleção Mirian Ferrara, IEB-USP. comentou: “Fanon era nome cortado na esquerda.”

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No Brasil, a esquerda reverenciava Fanon, mas se o lia em francês, não colm X – que junto com Frantz Fanon, foi a principal inspiração de Car-
o citava; impondo a si mesma um silêncio obsequioso. O mesmo não michael – foi o único líder negro americano que aplaudiu o assassinato
se passava com os marxistas da Monthly Review (MR), cujos artigos de Kennedy.”
eram regularmente traduzidos e publicados por revistas brasileiras. O Na mesma revista, o crítico literário comunista Werneck Sodré
motivo da reverência e do silêncio sobre Fanon pode ser buscado, como (1968, p. 198), num grande balanço dos lançamentos do ano, registra:
já sugeri, na sua centralidade para as lutas que se desenvolviam nos “O colonialismo, em sua brutalidade, está espelhado na obra de Frantz
Estados Unidos daquele tempo, quando os rebeldes afro-americanos se Fanon, Os Condenados da Terra, que estuda os efeitos da tortura.” Nesta
consideram também sujeitos coloniais, atitude muito bem captada pelas frase ouve-se o eco dos maus-tratos que a ditadura militar começa a
palavras dos editores da MR: rotinizar em torturas aos presos políticos, assim como a simpatia por
interpretações semelhantes à de Goldman (1966, p. 55):
Se você ainda não conhece, grave bem o nome de Frantz Fanon que se tor-
nou talvez o mais respeitado porta-voz dos oprimidos coloniais. Seu livro Uma das contribuições mais importantes para o pensamento social [...] é
Les Damnés de la Terre acaba de ser publicado sob o título The Wretched sua brilhante análise das relações entre desordem mental e colonialismo,
of the Earth, e o recomendamos enfaticamente. (Monthly Review, n. 17(1), entre desajustamento sexual e repressão política.
1965, contracapa)
Psicanalista brilhante e mau político, para uns; ideólogo radical,
Em novembro de 1966, Goldman (1966) resenha em cinco páginas para outros, Fanon terá de esperar por uma nova esquerda para ser
Studies in a Dying Colonialism, e cunha um texto lapidar sobre o que lido com simpatia. Até mesmo o líder negro Abdias do Nascimento
significava Fanon para a rebelião negra daqueles anos: (1966, 1968), em seus artigos dos anos 1960, ao traçar as influências do
Fanon é popular porque fala, sobretudo, da própria luta e por dentro da
movimento negro e analisar a conjuntura internacional, reconheceu a
Revolução, como um participante. Os jovens radicais negros que o lêem, importância da négritude e sua ênfase na cultura negra, denunciou o
que internalizam sua visão e respondem com fervor às suas idéias são, estupro que está na origem da miscigenação brasileira, defendeu as lutas
ademais, pessoas que lutam intensamente contra um sistema que não têm de libertação na África, exaltou o “fermento do negro norte-americano”,
certeza se podem derrubar. Para Fanon, o importante é a transformação, a mas calou-se sobre Fanon. Leia-se um trecho seu de então:
mutação interior que ocorre durante a luta, o modo como os ‘condenados
da terra’ se libertam durante a confrontação inevitável entre opressores e Parafraseando Toynbee, e em virtude de certas condições históricas, um
oprimidos. E há outra idéia que o médico negro da Martinica, que escreve decisivo papel está destinado ao negro dos Estados Unidos num rumo
sobre a Revolução argelina, sugere a esses jovens radicais: é que o sistema novo – político e cultural – para os povos de cor de todo o mundo. Seria,
contra o qual eles lutam é o mesmo contra o qual ele, Fanon, luta, e que por assim dizer, o recolhimento da herança legada pela atual geração de
ambos se opõem a um opressor comum em nome de um mesmo ideal. grandes negros – Leopold Sédar Senghor, Kwame N’Krumah, Langston
(Goldman, 1966, p. 58) Hughes, Jomo Keniata, Aimé Cesaire, Sekou Touré, Nicolás Guillén, Peter
Abraham, Alioune Diop, Lumumba, James Baldwin, Mário de Andrade.
Significaria Fanon o mesmo para os negros no Brasil? O certo é (Nascimento, 1968, p. 206)
que, finalmente, em 1968, aparece a edição brasileira de Condenados
da Terra, rapidamente retirada de circulação pelos órgãos de repressão Abdias era muito próximo ao ISEB e a Guerreiro Ramos e ambos
política, mas não antes de cair nas mãos de dezenas de militantes. Pen- nutriam imenso respeito por Toynbee, algo comum aos isebianos, como
samento explosivo tanto para a luta de classes quanto para o projeto de nos ensina Vanilda Paiva.6 Apenas depois de 1968 Frantz Fanon tornar-
democracia racial, alimentado pelos militares. Buchanan (1968, p. 34), 6 “Alias, era comum entre os isebianos, influídos pela leitura de Toynbee, a referência aos
países subdesenvolvidos como ‘proletariado externo’ do mundo ocidental” (Paiva, 1980,
na Revista da Civilização Brasileira, escreve: “Deve-se lembrar que Mal- p. 159, nota 33).

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se-á uma referência importante para Abdias, quando provavelmente o nacionalismo anticolonialista do ISEB, quem fez a leitura de Fanon mais
líder negro brasileiro é introduzido à sua obra, largamente traduzida, absorvedora. Em sua Pedagogia do Oprimido, Freire (1970) foi, talvez, o
discutida e comentada nos Estados Unidos, onde está exilado. Só a par- primeiro brasileiro a abraçar as ideias de Fanon.
tir do Genocídio do Negro Brasileiro (Nascimento, 1978) Fanon passa a Pelas indicações do próprio Freire, ele tomou conhecimento do
ser referido nos escritos de Abdias. revolucionário martiniquense entre 1965 e 1968. É o que ele insinua em
O mesmo acontecerá com Octávio Ianni e com muitos intelectuais duas passagens de Pedagogia da Esperança:
brasileiros exilados. Em seu Imperialismo y cultura de la violência em [...] mais tarde, muito mais tarde, li em Sartre (Prefácio a Os Condenados
América Latina, Ianni (1970) já absorve a discussão de Fanon e dos mar- do Terra, de Frantz Fanon) como sendo uma das expressões da “conivên-
xistas da Monthly Review. O mesmo é verdadeiro para Clóvis Moura cia” dos oprimidos com os opressores. (Freire, 1992, p. 19)
(1994). Ianni, de volta ao Brasil nos anos 1980, e reintegrado à universi- [...]
Tudo isso os estimulava [os camponeses africanos] como a mim me esti-
dade, fará de Fanon leitura obrigatória em suas classes e o indicará aos
mulara a leitura de Fanon e de Memmi, feita quando de minhas releituras
estudantes negros que deles se aproximam.7 dos originais da Pedagogia. Possivelmente, ao estabelecerem sua convi-
Mas, se “Fanon era nome cortado na esquerda” brasileira, nos mea- vência com a Pedagogia do oprimido, em referência à prática educativa que
dos de 1960, como disse José Maria Pereira, que vindo dos grupos lis- vinham tendo, devem ter sentido a mesma emoção que me tomou ao me
adentrar nos Condenados da terra e no The Colonizer and The Colonized.
boenses ligados ao MPLA angolano (Alberti e Pereira, 2007), certa-
Essa sensação gostosa que nos assalta quando confirmamos a razão de ser
mente conhecia Fanon em 1962, não o era certamente em toda esquerda, da segurança em que nos achamos. (Freire, 1992, p. 141)
principalmente daqueles que vinham de fora dos quadros partidários.
Os católicos, por exemplo, que ganhavam influência à medida que os A última passagem sugere que a leitura de Condenados se deu
partidos comunistas eram dizimados pela repressão política, não repu- quando o manuscrito de Pedagogia já estava pronto, pois Freire fala
diavam totalmente a violência revolucionária dos colonizados e o antir- em “minhas releituras dos originais”. Como o manuscrito é de 1968 e
racismo, aos quais o nome de Fanon estava indissoluvelmente ligado. A a primeira edição de 1970, essa é uma interpretação plausível. Mas, ao
revista Paz e Terra, órgão muito próxima à esquerda católica, publicou, mesmo tempo, Freire dá indicações de que leu Fanon na edição mexi-
no seu número 7, a tradução de um artigo de Raymond Domergue, que cana de 1965. O certo, portanto, é que ele toma conhecimento de Fanon
toma justamente Os Condenados da Terra como parâmetro para traçar entre 1965 e 1970, um período de radical mudança na sua teorização:
um guia da ação política católica em face da emergência de lutas revolu- Absorvido pelo trabalho prático desde a criação do seu método, restara a
cionárias no Terceiro Mundo. Freire pouco tempo para o trabalho teórico, e quando a queda do governo
Goulart o obriga a parar, ele precisa recuperar o seu ponto de partida em
Esta longa seqüência de citações [de Fanon] nos parecia necessária para 1959. Estamos, efetivamente, diante de “um atraso relativo da teoria”. Freire
demonstrar como a violência que se torna uma situação pode de repente não pudera ainda digerir as novas influências e incorporar teoricamente
fazer uma irrupção sob forma de violência armada. A violência revolucio- novas posições; por isso, sua consciência teórica já não dava conta de toda
nária não é senão uma transposição de uma violência precedente que tem a sua prática e ele carecia, naquele momento, de instrumentos teóricos
suas raízes em uma exploração de tipo econômico. (Domergue, 1968, p. 51) e metodológicos que possibilitassem uma reinterpretação da realidade e
uma revisão profunda do seu discurso pedagógico. Um esforço mais con-
Ainda em 1968, foi o pedagogo revolucionário Paulo Freire, tam- sequente nesta direção ele o fará mais tarde e Pedagogia do oprimido é o
bém muito influenciado pelo pensamento existencialista católico e pelo seu resultado. (Paiva, 1980, p. 141)

7 Informação pessoal que me foi passada por Valter Silvério, professor da UFSCar e ex-aluno
Seja como for, os intelectuais brasileiros disponíveis para receber
de Ianni. a influência revolucionária e radical de Fanon se encontram, em 1968,

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livres de fidelidades partidárias e descolados de correntes filosóficas razão: em Glauber, Fanon parece viver inteiro e não pela metade, ser um
bem estabelecidas. pensamento e não apenas um nome. A tese de Xavier é corroborada por
Outro receptor notável foi Glauber Rocha. Alguns como Xavier Mendonça (1995).
(2004, p. 21) chegaram mesmo a ver influência direta de Fanon nos Não deixa de ser revelador que os dois intelectuais inicialmente
escritos do jovem Glauber: receptivos às ideias de Fanon tenham sido brancos, que nem mesmo
conheciam o Pele Negra, Máscaras Brancas, e iconoclastas à procura de
É notável, em Glauber, o sentimento da geopolítica (de que o cinema é
um dos vetores) como eixo de um confronto no qual o oprimido só se
uma nova linguagem, de um modo novo e terceiro-mundista de fazer
torna visível (e eventual sujeito no processo) pela violência. Apoiado em cinema ou educar. Ambos deixaram o Brasil depois de 1968.
Frantz Fanon, ele explicita tal sentimento em “Por uma estética da fome”, Quando Pele Negra, Máscaras Brancas é publicado no Brasil, depois
acentuando a demarcação dos lugares e o conflito estrutural que deriva da de circular em xerox como livro de formação de consciência negra entre
barreira econômico-social, cultural e psicológica que separa o universo da
jovens militantes, já estamos em 1983. É a editora Fator, especialista em
fome do mundo desenvolvido.
obras psicanalíticas, quem o faz. Ademais, apesar de a edição ter sido
Xavier faz a conexão entre Fanon e Glauber a partir da seguinte impressa no Rio de Janeiro, a Fator estava sediada em Salvador, onde
frase: também o Movimento Negro Unificado editava o seu jornal de circu-
lação nacional. Haverá aí, certamente, alguma confluência entre o inte-
Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolu- resse editorial em obra muito influenciada pela psicanálise e o interesse
cionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a exis-
tência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a comercial em abastecer o mercado novo criado pela classe média com
violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura consciência racial, já que Fanon passara a ser leitura de formação. Diz-
que ele explora. Enquanto não ergue as armas o colonizado é um escravo: nos Florentina Souza:
foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um
argelino. (Rocha, 1965, p. 169) [...] o periódico Nego, boletim do MNU-Ba, no seu número 1, publica suges-
tões de leitura que passam por Obras escolhidas de Amílcar Cabral, África
Mas Glauber, ele mesmo, não se lembra de ter lido Fanon por essa – literatura, arte e cultura, organizado por Manoel Ferreira e, no número
3, o livro Pele negra, máscaras brancas, de Fanon [...] (Souza, 2005, p. 163)
época. O mais provável é que tenha lido Sartre, pois ele diz em outro
texto:
os jovens estudantes negros dos anos 1970 e 1980
Foi na época de JK, inda na Bahia, que ouvi falar em nacionalismo anti/
Ufânico. Entrando jovem no ltamaraty, Arnaldo Carrilho levou a Paixão A influência de Sartre, e da sua leitura de Fanon, foi duradoura entre
do cinema novo pros Festivais Internacionais /era o que Brazyl precisava negros e brancos. Ainda em 1978, o editor-chefe do jornal Versus, da
pra se descolonizar culturalmente no mundo. Dialeticamente uma priori-
Convergência Socialista, cujos militantes negros foram muito ativos na
dade era o desenvolvimento dos mercados internos (economia /cultura)
mas antes de chegar às minhas mãos por indicação do teatrólogo Antônio fundação do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial, que
Pedro Os condenados da terra de Frantz Fanon já o sopro de Jorjamado precedeu o MNU, ainda buscava em Sartre, no seu prefácio a Condena-
nos lançava, antes do Modernismo pra romper as cadeias da submissão dos da Terra, a imagem para expressar o que se viveu naquela noite, nas
ideológica, núcleo do complexo de inferioridade colonial, nostro câncer, escadarias do Teatro Municipal de São Paulo:
principal arma dos invasores. (Rocha, 2004, p. 455)
Certa vez Sartre escreveu sobre a questão negra. Ali, ele falava uma coisa
Ao que parece, Glauber toma conhecimento de Fanon apenas em inesquecível, e que eu vou citar de memória... ‘O que vocês esperavam
1968, pela edição brasileira de Os Condenados da Terra. Mas Xavier tem ouvir quando estas bocas negras se vissem livres das mordaças? Que gri-

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tassem frases doces, amenas?’ Será que estas ‘mordaças’ estão sendo arran- José Maria Nunes Pereira, Luiz Silva (Cuti), Mílton Barbosa, Regina
cadas no Brasil? Sim, então. Foi o que vimos em São Paulo, numa noite Lucia dos Santos e Yedo Ferreira. Em pesquisa semelhante, conduzida
histórica. Bocas negras gritando contra a injustiça e a opressão. Punhos
por Márcia Contins (2005), seis militantes citaram também Fanon.
erguidos, no lusco-fusco daquele momento em que, numa grande cidade,
os homens cansados vão para casa. Não se ouviram frases amenas – e é Michael Hanchard (1994, p. 116) registrou, a partir de entrevistas
bom que tenha sido assim. À humilhação de séculos, só o duro estômago com esses militantes:
do povo poderia resistir. (Faerman, 1978, p. 1)
Membros do Black Soul do Rio de Janeiro e São Paulo – cujas atividades,
Do mesmo modo, a secção “Afro-Latino-América” do Versus é lan- entre outras, incluía distribuir cópias do Poder Negro de Stokely Carmi-
çada, em 1978, com a manchete “Nem almas brancas, nem máscaras chael e de Os Condenados da Terra de Frantz Fanon para discussão em
grupo – eram (mal)identificados pelas elites civis e militares como par-
negras”, que faz trocadilho com o título de Fanon, mas busca referências ticipantes de uma conspiração. Dada a natureza do regime ditatorial, a
cognitivas outras, comezinhas, como o “preto de alma branca”; ou tra- vigilância policial exercida sobre o Black Soul e o movimento negro em
dicionais, como a observação de Nelson Rodrigues – “branco pintado, geral durante esse período, não está documentada. Entretanto, um alto
eis o negro do teatro nacional” – algumas vezes lembrada por Abdias do oficial do Serviço Nacional de Informações, o poderoso braço da inteli-
Nascimento (1996). gência do estado, confirmou-me em entrevista pessoal que vários ativistas
negros foram monitorados de perto nos anos 1970 porque se acreditava
Mais ainda. A seção Afro-Latino-América do jornal Versus, talvez
que faziam parte da engrenagem da conspiração comunista.
ainda movida pelo desconforto que Fanon causava aos marxistas, pre-
fere ignorar Os Condenados da Terra, publicado em 1968 no Brasil, ou Treze anos depois de publicado o livro de Hanchard, quando os
a Pele Negra e Máscaras Brancas – que circulava entre alguns militantes arquivos da polícia política (DEOPS) já estavam abertos aos pesquisado-
negros desde meados dos anos 1970, em fotocópia da edição portuguesa res, Karin Kosling pode documentar a repressão ao MNU:
da editora Paisagem, do Porto – para republicar, em seu número 18, de
1978, extratos do Orfeu Negro, antecedido da seguinte advertência: Em relatório da Divisão de Informações do DEOPS sobre ato público orga-
nizado pelo MNU, em 7/7/1980, Milton Barbosa importante militante do
Dentro do atual contexto político, onde o Partido Socialista apresenta-se MNU citou Fanon para criticar o imperialismo. (Dossiê 50-Z-130- 3773.
como alternativa mais conseqüente para a atuação das camadas margina- DEOPS/SP, DAESP. Apud Kosling, 2007, p. 161)
lizadas da sociedade brasileira, Jean-Paul Sartre pensa a atuação do negro
socialista. Discute a necessidade de não perder de vista as suas condições Analisando a documentação policial e depoimento de militantes da
objetivas de negro e trabalhador. época (Félix, 2000, p. 40-1), Kosling não tem dúvidas em listar as prin-
cipais influências intelectuais dos jovens rebeldes negros:
No entanto, foram estes mesmos jovens estudantes negros dos anos
1970 e 1980 que, no Brasil, leram e viveram Fanon, de corpo e alma, Autores como Fernandes, ao lado de Eldridge Cleaver e Frantz Fanon,
fazendo dele um instrumento de consciência de raça e de resistência entre outros, introduziam a questão da luta de classes nos debates do MNU.
(Kosling, 2007, p. 161)
à opressão, ideólogo da completa rejeição da democracia racial que se
corrompera com a ditadura militar brasileira. As referências a esse fato Florentina de Souza, olhando dois importante jornais negros, con-
pululam na literatura. Vou seguir apenas algumas pistas: corda no que diz respeito a Fanon:
Na pesquisa que Alberti e Pereira (2006) coordenaram no CPDOC
sobre o movimento negro brasileiro contemporâneo, ao menos oito É marcante a influência que os escritores negros no Brasil receberam das
militantes citaram espontaneamente Fanon, ao falar de sua formação: literaturas africanas escritas em língua portuguesa que chegavam ao Brasil
por meio de jornais, revistas e livros, ou ainda a influência das traduções
Amauri Mendes Pereira, Gilberto Roque Nunes Leal, Hédio Silva Júnior,

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de Fanon e de textos de Garvey e DuBois que circulavam no movimento objetivos, com as necessárias adaptações decorrentes de nova realidade.
negro no Brasil desde a década de trinta. (Souza, 2005, p. 162) Ele é um auxiliar dos mecanismos de subordinação neocolonial. (GEPPF,
1981, p. 22)
Lendo alguns depoimentos de militantes negros dos anos 1970,
tenho a impressão de que a recepção de Fanon não foi diferente no A leitura do artigo demonstra também que continua havendo limi-
Brasil daquela que Goldman registrou nos Estados Unidos. Amauri de tes claros à aceitação de Fanon enquanto estrategista político, principal-
Souza, importante quadro do MNU no Rio de Janeiro nos diz: mente à sua crença na potencialidade revolucionária do campesinato:

Quando eu comecei a ler Alma no exílio, que foi a experiência do Cleaver, Ele [Fanon] não faz uma verdadeira análise de classe da sociedade colonial.
que era uma das principais lideranças dos Panteras Negras, e logo depois Existem referências a classes ou camadas. O proletariado, o lumpen-prole-
entrei no Fanon, li os dois ao mesmo tempo... Foi uma loucura! Aquilo era tariado e o campesinato merecem-lhe certa atenção e uma caracterização
demais! Fanon era a crucialidade, a violência como a parteira da História. deficiente. Referências existem à burguesia e às elites locais, possivelmente
Preconizava a violência do colonizador, o ódio... O Fanon era um pouco integradas por elementos da burguesia. A sua análise privilegia a polariza-
mais para mim do que era Che Guevara, porque o Che era um revolucio- ção cidade-campo. (GEPPF, 1981, p. 15)
nário que tinha morrido, portanto perdeu, e foi aqui na América e não era
negro. O Fanon era negro. Foi uma proximidade maior que eu tive com Se o grupo critica a posição excessivamente classista e economicista
ele. E era terrível... O Fanon não foi morto na luta, eles ganharam, fize- da esquerda tradicional, para quem o movimento negro ainda repre-
ram a revolução... E na minha cabeça, aquilo me apaixonou. (Entrevista a sentava um perigo sério de divisão das camadas exploradas, também se
Verena Alberti e Amilcar Pereira: fita 2 – lado A e B) põe a distância daqueles, no movimento negro, que se afastam da matriz
marxista:
Mas a primeira reflexão mais sistemática (e talvez única) sobre o
pensamento de Fanon, feita por intelectuais negros, numa revista acadê- Cremos que a posição dos que procuram minimizar a questão racial
mica brasileira, aconteceu apenas em 1981 e foi assinada por um coletivo, diluindo-a pura e simplesmente na social, assim como os que postulam a
Grupo de Estudos sobre o Pensamento Político Africano (GEPPF), o que independência absoluta das organizações anti-racistas (e sua partidariza-
ção) relativamente ao resto da sociedade, dificultam, ainda que involunta-
denota tratar-se de um meio-caminho entre reflexão acadêmica e refle- riamente, a morte da ideologia da “democracia racial”. (GEPPF, 1981, p. 25)
xão política. O grupo era formado por ativistas, estudantes e professores
do Centro de Estudos Afro-asiáticos, da Universidade Cândido Mendes,
a recepção acadêmica
dirigido por José Maria Nunes Pereira.
Este artigo demonstra a consolidação da preocupação com o Segundo Gordon, Sharpley-Whiting e White (1996) o desenvolvimento
racismo, enquanto questão importante e autônoma, na nova esquerda dos estudos sobre Fanon ocorreu em quatro fases. A primeira foi mar-
marxista em formação: cada pela literatura revolucionária dos anos 1960, que no Brasil, como
vimos, encontrou acolhida nas ideias de Glauber, sobre o cinema-novo;
Fica claro [com a leitura de Fanon] que o racismo é conseqüência de uma
situação de dominação sócio-econômica, mas que possui mecanismos e de Paulo Freire, sobre a pedagogia dos oprimidos. A segunda fase, que
próprios, de ordem psicológica, que concedem a ele certa autonomia. eles chamam de biográfica, não teve representantes no Brasil, e passou
Contudo, a referida situação continua alimentando e alimentando-se do praticamente em branco. Não apenas não há biografia de Fanon escrita
racismo. Isto não se aplica apenas ao fato colonial, mas também ao neo- por autor brasileiro como, até hoje, não há uma só biografia de Fanon
colonial e às sociedades capitalistas com apreciável contingente de mão-
de-obra de antigas colônias. No primeiro caso, como vimos, a função fun-
editada no Brasil. Temos apenas breves notas biográficas (Ortiz 1995;
damental do racismo é a legitimação da ocupação e exploração diretas. Cabaço e Chaves, 2004). A terceira fase, que marca o interesse da teo-
Na situação neocolonial, o preconceito racial é utilizado com os mesmos ria política por Fanon, passaria também quase em branco não fosse o

48 49
fato de Renate Zahar (1974) ter sido leitura de referência do Grupo de tudo, sobre a formação psicanalítica de Fanon. A preocupação explícita
Estudos do Pensamento Político Africano (1981). Cabe mencionar tam- de Ortiz foi com a teorização fanoniana do racismo e da nação. Tempos
bém o já citado livro de Ianni sobre o imperialismo. Mas também com depois, Ortiz (1998) voltou a revisitar Fanon, agora em conexão com seu
relação a essa fase, Fanon é apenas uma referência, sem que tais estudos estudo sobre o pensamento do ISEB, e descobriu as raízes semelhantes
tivessem gerado reflexões brasileiras de maior originalidade ou enverga- do anticolonialismo cultural dos pensadores isebianos – Hegel, Sartre e
dura sobre seu pensamento político. A quarta e última fase, a dos estu- Balandier. Deixou escapar, todavia, a grande influência da fenomenolo-
dos pós-coloniais, é praticamente ainda nova no Brasil, e chega apenas gia de origem católica sobre os principais membros do ISEB.
através dos comentários de Bahba, Gilroy, Gates Jr. ou de comentaristas Cabaço e Chaves (2004), na esteira do 11 de setembro, releram
brasileiros aos pós-colonialistas, como Sérgio Costa (2006) e Olívia da Fanon para retomarem os pontos-chave de seu anticolonialismo e da
Cunha (2002). sua justificativa da violência revolucionária. Relembrando os debates
No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a mobilização negra dos anos 1960, escreveram:
dos anos 1970 não gerou a entrada massiva de negros nas universidades,
[Fanon] abalou a ‘boa consciência’ das metrópoles ocidentais afirmando
e a criação dos NEAB (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) é relativa- que “um país colonial é um país racista” e assustou os círculos colonialis-
mente recente no país. A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros tas denunciando a violência do sistema e explicando que “o homem colo-
data apenas do ano 2000. nizado liberta-se em e pela violência”; escandalizou uma certa esquerda
Os estudos fanonianos no Brasil não se constituíram realmente em intelectual pondo em causa instrumentos teóricos da ortodoxia marxista;
provocou a indignação dos partidos operários ocidentais ao afirmar que
campo com alguma autonomia, e as referências a Fanon, além de espar-
“a história das guerras de libertação é a história da não verificação da
sas, parecem seguir diferentes linhas. Uma rápida busca em bancos de tese” da comunidade de interesses entres classe operária da metrópole e o
dados sobre dissertações e teses universitárias mostra que Fanon é lido povo colonizado; coerente com sua convicção, acusou a não violência e o
nas universidades brasileiras principalmente nos cursos de pós-gradua- neutralismo de serem formas de cumplicidade passiva com a exploração
ção em literatura, em comunicação e artes, em psicologia social, e em dos colonizados ou de “desorientação” das elites dos povos subjugados.
(Cabaço e Chaves, 2004, p. 69)
ciências sociais. Quando os debates que animaram os anos 1960 e 1970
são revisitados, sua obra volta a despertar interesse. Em resumo, também no Brasil, Fanon entrou definitivamente no
No entanto, apenas três autores brasileiros dedicaram artigos ou rol de autores clássicos, aqueles que servem de referência obrigatória
parte de capítulos de livros à discussão de Fanon. Renato Ortiz (1995, para o estudo de alguns fenômenos do mundo moderno, entre eles,
1998) tem, sem dúvida, a reflexão mais profunda e refinada de Fanon. principalmente, o racismo e a violência política. Consolidou-se, do
Estudioso do mundo intelectual francês do pós-guerra, Ortiz (1995) pre- mesmo modo, no panteão dos heróis da raça negra, como autor cuja
parou para a Editora Abril, que publicava, então, uma coleção de divul- leitura forma a consciência racial de ativistas ou cidadãos negros bra-
gação científica, chamada “Grandes Cientistas Sociais”, um volume sobre sileiros. No entanto, isso se deu sem que os estudos fanonianos real-
Fanon. Esse volume nunca chegou a ser publicado, mas Ortiz retomou, mente se desenvolvessem no país. A conta desse subdesenvolvimento
anos depois, os originais da sua “Apresentação” para publicá-la como talvez possa ser debitada, ainda que parcialmente, à pouca presença de
artigo na revista Idéias, do Departamento de Sociologia da Universidade negros nas universidades brasileiras e à consequente falta de reflexão
de Campinas (Unicamp). Foi Ortiz quem retraçou a formação do pen- mais densa sobre racismo e identidades raciais. Se for realmente isso, a
samento de Fanon a três movimentos intelectuais centrais ao mundo atual entrada maciça de negros através de cotas e outras ações afirma-
intelectual do pós-guerra na França – a releitura de Hegel, o debate entre tivas, poderá prover, quem sabe, uma grande avenida a ser caminhada.
marxistas e existencialistas, e, finalmente, a négritude. Silenciou, con-

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de fevereiro de 2012), não foi introduzido no Scielo brasileiro nenhum
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artigo publicado em revista ali indexada que contivesse a palavra-chave
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A ampliação vertiginosa do panorama dos estudos da cultura nas últimas


décadas tem estimulado cruzamentos temáticos cada vez mais comple-
xos e numerosos, bem assim como a consolidação de novas abordagens,
teorias e disciplinas.1 Os Estudos Culturais, por um lado, avançaram
num campo fundamentalmente interdisciplinar (abrangendo inclusive
uma parte do que há menos de trinta anos atrás era considerado de inte-
resse exclusivo dos antropólogos) e liderados pelas propostas teóricas
de Stuart Hall, propõem uma nova abordagem para uma etnografia das
expressões culturais contemporâneas, refazendo os esquemas vigentes
de interpretação de temas como identidade, relações raciais, sexuali-

1 Esta é uma versão inteiramente corrigida e ampliada de um ensaio homônimo publi-


cado em três versões distintas: Carvalho (1999, 2001 e 2002). Agradeço a Júlia Almeida e
Adélia Miglievich pela gentileza do convite de republicá-lo, o que me permitiu a revisão
e atualização deste ensaio. Agradeço também a Igor Nunes Costa, estudante da mesma
UFES, por estimular-me a ampliar aqui a teoria do luto cultural.

54 55
dade, pertença étnica, hibridismo cultural, etc.2 A Psicanálise, sobretudo observação feita por Clifford Geertz há duas décadas passadas de que
em sua vertente lacaniana, expandiu seus métodos de interpretação das o etnógrafo se move num campo de gêneros disciplinares difusos, ou
expressões culturais, como pode ser apreciado nos ousados e inovadores imprecisos. Algumas produções recentes em Antropologia Visual, Reli-
ensaios (sobretudo sobre cinema, virtualidade e cultura de massa) (tam- gião, Etnopoética e Etnomusicologia, para ficar com áreas temáticas que
bém de base lacaniana) de Slavoj Žižek. Outras teorias da imagem e do me são mais familiares, procuram renovar suas abordagens, incorpo-
campo visual, como as de Kaja Silverman, Hal Foster, Mieke Bal e W. J. rando questões e teorias oriundas dos vários campos do saber acima
Mitchell, têm também contribuído para uma renovação das interpreta- mencionados. Seria, pois, interessante compreender como a Antropo-
ções da dimensão imagética dos símbolos culturais, seja na pintura, no logia se situa agora diante de todas essas revisões e combinações dis-
filme, na fotografia, nos pôsteres, etc. A análise marxista da cultura tam- ciplinares.3 Julgo especialmente relevante inquirir sobre o modo como
bém se renovou profundamente com a obra rigorosa e eclética de Fredric tem respondido (ou não) aos desafios teórico-políticos lançados pelos
Jameson, na qual encontramos leituras de textos culturais representati- chamados estudos subalternos e pela teoria pós-colonial, com os quais
vos tanto da chamada alta cultura como das produções midiáticas mais era de se esperar que pudesse construir um diálogo mais direto. Afi-
triviais ou de puro interesse comercial. A teoria de gênero (incluindo nal, esse projeto de ligar-se às vozes dos oprimidos, dos subalternos, dos
a teoria feminista), desenvolvida por pensadoras como Judith Butler e excluídos, foi justamente a promessa, feita por uma geração anterior de
Gayatri Spivak, praticamente subverteu pela raiz os pressupostos mile- antropólogos, de uma prática etnográfica crítica das condições coloniais
nares da ordem cultural e questionou, através da formulação de uma em que se plasmou a disciplina. O que segue é uma tentativa de discutir
teoria densa do poder, as bases da produção etnográfica clássica. E um o marco conceitual do olhar etnográfico, contrastando suas metamorfo-
campo especialmente mais vasto, o da Literatura Comparada (o qual ses com a recente teoria pós-colonial.
inclui, como veremos na parte final deste ensaio, o campo das narrativas
orais, tão caras aos etnógrafos), permitiu o cruzamento e a ampliação da i. metamorfoses do olhar etnográfico
chamada teoria crítica contemporânea com inúmeras teorias da lingua-
gem, como a de Mikhail Bakhtin; do discurso, como a de Foucault; da Como bem o disse Jacques Derrida, o olhar etnográfico foi resultado de
interpretação, como as de Paul de Man; dos textos inseridos no projeto um descentramento ocorrido no interior da visão de mundo ocidental,
moderno, como a de Walter Benjamin; e da leitura textual a contrapelo, após a era clássica, “no momento em que a cultura europeia foi des-
como a atividade de desconstrução de Jacques Derrida, que tanto tem locada, expulsa do seu lugar, deixando então de ser considerada como
desafiado os cânones teóricos e disciplinares que sustentam a produção a cultura de referência” (1971, p. 234). Tal como leio esse esquema (e
atual nas Ciências Humanas. Falamos de um modelo mais universali- já utilizando-o para construir meu próprio argumento), um dos efeitos
zado da literatura comparada. Gayati Spwak tem criticado severamente epistemológicos de consequências políticas mais profundas desse des-
a institucionalização acadêmica de um modelo de literatura comparada centramento foi a separação dos olhares dos dois sujeitos construídos
nos Estados Unidos que foi criado como instrumento geopolítico na pela disciplina: o do etnógrafo (o civilizado) e o do nativo por ele olhado
conformação do atual imperialismo norte-americano. (o primitivo), cujas naturezas pareciam, na perspectiva de quem olhava,
Diante desse quadro tão vasto e aberto de propostas de compreen-
são do campo cultural, ganha uma atualidade ainda mais radical a 3 Falo de uma tendência geral, pois não é meu objetivo oferecer uma resenha exaustiva da
produção antropológica brasileira. Cruzamentos explicitamente teóricos da Antropolo-
gia com Psicanálise, Literatura Comparada, Filosofia, Ciência Política, Teologia, têm sido
2 Para uma avaliação recente, feita por antropólogos, dos desafios dos Estudos Culturais realizados por Roberto Cardoso de Oliveira (1998), Luiz Eduardo Soares (1994), Otávio
para a Antropologia, ver o livro organizado por Stephen Nugent e Chris Shore (1997). Velho (1995) e Rita Segato (1996), entre outros.

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intercambiáveis analiticamente, ao mesmo tempo que existencialmente lização do mundo.4 Em que medida essas nações periféricas são ou não
incomensuráveis. hoje uma continuação do Ocidente – e qual o significado de serem ou
A questão “como olha o primitivo?” não foi posta em discussão não uma continuação do mundo ocidental para a conformação de um
naquele momento fundante, tendo ficado implícito, na teoria, que o saber de pretensões universais surgido na Europa – constitui um grande
olhar do primitivo sobre si mesmo e para o seu entorno era um olhar campo de disputa teórica e ideológica contemporânea, que atravessa pra-
“natural”: imediato, direto, irreflexivo. Partia-se do pressuposto de que a ticamente todo o saber acadêmico, incluindo a História, a Geografia, a
hermenêutica primitiva possuía limites muito bem definidos, enquanto Literatura, a Filosofia, as Artes e, também, a Antropologia. Todas essas
o teórico apresentava o seu próprio horizonte interpretativo como um disciplinas, tanto nos países centrais como nos periféricos, estão envol-
movimento racional de expansão infinita. Derrida pôde então afirmar vidas agora na tarefa de descolonização das paisagens mentais dos seus
que a etnologia é etnocêntrica apesar de combater o etnocentrismo, praticantes, a qual implica uma revisão radical dos seus cânones, tanto
porque o Ocidente, ao mesmo tempo em que praticou esse descentra- teóricos como temáticos.5 Importa apenas sublinhar, para a continuidade
mento, construiu sua imagem diante do resto do mundo como sendo a da discussão central, que esses dois nativos (o sujeito e seu objeto de
única cultura capaz de realizar tal movimento de abertura e autodesdo- estudo etnográfico) negociaram seu encontro existencial nessa encruzi-
bramento. A Antropologia que se estabeleceu como disciplina acadê- lhada de ultramar, na qual se influenciaram mutuamente, de um modo
sempre tenso, uma história – colonial – e um espaço nacional pós-colo-
mica nos países centrais no início do século surgiu desse duplo movi-
nial específicos. Ressalto o caráter específico desse encontro para enfa-
mento. Muito mais tarde, com a crescente politização da disciplina a
tizar os dois polos desse segundo descentramento: por um lado, o vín-
partir das lutas anti-imperialistas e pós-coloniais, pôde ser sustentado
culo com o descentramento original, que permitiu a recriação – crítica
o argumento de que o nativo constrói sua alteridade segundo o modo
ou acriticamente – da Antropologia fora das metrópoles ocidentais; por
em que retruca, de um lugar subalterno, o olhar do colonizador sobre
outro lado, uma enorme variedade de modos de ser “etnógrafo nativo”,
si. Além disso, o projeto de universalização da disciplina a partir do seu
o que conduziu a tradições antropológicas muito diversas, tais como a
descentramento original começou a ser questionado ao se consolidarem
indiana, a australiana, a canadense, a mexicana, a brasileira, etc.6
as tradições nacionais de Antropologia nos países periféricos: nesses
Esse tema descortina um panorama teórico de metáforas visuais de
domínios não (ou às vezes não inteiramente) ocidentais, os antropólo-
grande complexidade, se tentarmos realizar uma decomposição mili-
gos se depararam com a tarefa de terem que inscrever-se a si mesmos e a
seus nativos objeto de estudo num espaço existencial que tem sido, pelo 4 Para duas críticas atuais ao projeto de ocidentalização do mundo, ver Serge Latouche
menos idealmente, assumido como comum a ambos: a nova nação a ser (1996) e o ensaio ainda mais radical de Ziauddin Sardar (1998).
consolidada. 5 Gayatri Spivak apontou com precisão a aporia sobre a qual reside a construção desse
lugar de verdade por parte da Antropologia: “If we relate to something as knowers,
Isso provocou um segundo descentramento dentro da estrutura learned people – le sujet supposé savoir, the subject of the production of knowledge – it
originalmente descentrada da disciplina: os etnógrafos dos países peri- is impossible to have another relationship to learning. No anthropologist has ever, in the
history of anthropology, been able to suggest that there is a ratio in the culture studied
féricos haviam aprendido com seus mestres dos países centrais a teoria which is the equivalent of European reason. They have knocked European reason, but
do olhar descentrado que pressupunha fixar o ponto de fuga dessa pers- nobody has ever been able to substitute for it. On the other hand, it is not true that there is
no ratio anywhere. It is not possible to discover it while you remain le sujet supposé savoir.
pectiva universalista na cultura ocidental europeia. Assim, o projeto de Reason is not ceded.” (Danius & Jonsson, 1993, p. 49).
universalizar a disciplina passou a somar-se (muitas vezes malgrado as 6 Ressalto as considerações metadisciplinares, partindo de pressupostos teóricos distintos
intenções dos mestres) a um projeto neocolonial mais geral de ocidenta- dos que desenvolvo, de Roberto Cardoso de Oliveira, sobre a construção das antropolo-
gias periféricas (Oliveira, 1998 e Oliveira & Ruben 1995). Sobre a Antropologia na Índia,
ver Peirano (1995); e na Austrália e no Canadá, ver Baines (1995 e 1996).

58 59
métrica e completa de todas as possibilidades desses olhares – frontais, nostalgia e subjetividade. “Nossos índios estão desaparecendo”, dito por
contíguos, colados, cruzados, verticais, de baixo para cima, paralelos, Lévi-Strauss, passa a ser uma diglossia, no sentido bakhtiniano, quando o
invertidos, oblíquos, difusos, enviesados, anamórficos, em paralaxe. lemos: somos nós, enquanto brasileiros, que falamos também junto com
Direi apenas que é possível fazer corresponder cada um deles a uma ele; ou de certo modo é ele, em sua mítica lucidez de autor, que resolve
crise específica da autoridade etnográfica. Não cabe aqui fazer uma falar por nós, neófitos no jogo antropológico surgido no Ocidente.
periodização exaustiva dessa sequência de olhares e por isso passarei de Um terceiro momento de mudança de olhar, também muito estu-
um modo sintético, quando não elementar, por alguns dos momentos dado no Brasil, foi consolidado nos anos oitenta. É o momento da crítica
mais marcantes – incluindo uma de suas versões atuais – desse olhar à construção da autoridade etnográfica, exercitado pela Antropologia
humanista intenso que é a perspectiva antropológica. Adapto aqui uma norte-americana, que foi inclusive capaz de devolver, de um certo modo,
distinção já clássica de Lacan entre tempo lógico e tempo cronológi- uma crise gestada na Antropologia europeia (sobretudo britânica), que
co;7 de fato, convivemos hoje com todos os tempos teóricos que tentarei até hoje encontra uma certa dificuldade em assimilar os desafios lança-
identificar historicamente. dos pelos assim chamados pós-modernos em relação à posição privile-
Um momento da teoria antropológica que tem sido emblemático giada do autor – que implica a posição privilegiada do sujeito moderno,
da sua prática disciplinar pode ser ilustrado pela obra de Franz Boas – capaz de olhar o mundo todo do ponto de vista desse lugar, pretensa-
ou ainda melhor encarnada, para nós, em seu discípulo Melville Hersko- mente seguro, de verdade.9 Esse momento, ainda que muito estudado
vits, que fez pesquisa de campo no Brasil. Ambos etnógrafos incansáveis entre nós, me parece que tem sido poucas vezes levado à prática. Apesar
e difusores de métodos e técnicas de pesquisa de campo extremamente da crise do lugar seguro do autor haver sido uma das principais razões
rigorosos, exerceram papel importante como mediadores de seus res- para a colocação dessa nova modalidade de olhar etnográfico, sua assi-
pectivos “nativos” e expressaram uma enorme simpatia pela condição milação no Brasil se deu mais no exercício da introdução da subjeti-
dos índios do Canadá e dos Estados Unidos e dos negros do Novo Mun- vidade, do que na discussão epistemológica da reflexividade. Ou seja,
do.8 Contudo, nesse primeiro estilo de olhar, o etnógrafo escrutina a aquilo que foi basicamente um questionamento radical da autoridade
alteridade sem registrar nenhuma falta essencial do seu ser (no sentido tida como inconteste do etnógrafo transformou-se numa discussão
lacaniano de falta) com relação à cultura e à sociedade do nativo por ele sobre como incorporar a saga biográfica do autor no texto etnográfico e
olhado; a cultura alheia, ainda que respeitada, é basicamente objetivada: na sua interpretação. As discussões se deslocaram em parte dos critérios
o olhar não pressupõe que o nativo esteja implicado na reprodução do empíricos de verdade – os quais incidiriam diretamente na avaliação do
horizonte de vida do próprio etnógrafo. rendimento alcançado pelos modelos interpretativos propostos – para
Um segundo modo de olhar, que estimulou uma geração inteira critérios éticos de envolvimento pessoal, simpatia, empatia, etc., temas
de etnógrafos e teóricos, foi marcado pela obra de Lévi-Strauss, o qual em geral enfocados com muito entusiasmo e criatividade.
encarna o olhar científico em face das instituições culturais em seu Não há espaço, neste ensaio, para entrar nos detalhes de por que a
estado quase puro: o famoso kantianismo sem sujeito transcendental, tal questão da autoridade do antropólogo não foi ainda colocada no Bra-
como sua abordagem foi denominada por Paul Ricoeur. Contudo, em sil. Otávio Velho referiu-se, na conferência em que foi apresentada a
certas passagens de Tristes Trópicos, texto que inscreveu nosso país na primeira versão do presente texto, a uma prática de homogeneização
ordem etnográfica dita universal, ele incorpora também momentos de epistemológica da comunidade de antropólogos brasileiros que não per-
mitiria justamente essa crítica, porque ela levaria à formação de grupos
7 Ver Lacan (1966).
8 Paul Rabinow chegou a argumentar que a posição política de Boas foi até mais progres-
sista que a de Clifford Geertz, discutida mais adiante (ver Rabinow, 1983). 9 Ver James Clifford & George Marcus (1986) e George Marcus & Michael Fischer (1986).

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de interesse e a uma definição mais clara de posições teóricas (as quais lugar clássico, similar ao acima descrito, de autoridade inconteste e de
são sempre políticas) e a polêmicas muito mais explícitas que, devido à pertença acrítica à elite social do país.13
sua atitude corporativa, os antropólogos brasileiros não desejam fazê-lo.10 Chama a atenção, inclusive, o fato do texto de Derrida acima
E o que se incorporou foi muito mais uma espécie de empatia com o citado, certamente um ensaio desafiador para a teoria das Ciên-
nativo, os etnógrafos se colocando subjetivamente na sua pesquisa de cias Humanas na presente geração, embora publicado no Brasil há
campo, mas sempre aspirando preservar para si o lugar de autor seguro quase trinta anos, não haver ainda recebido nenhuma reação (que eu
e inconteste. conheça) por parte de nossos teóricos da Antropologia. Uma exegese
Uma das poucas exceções – e por sinal bastante inspiradora – que de sua aplicação para uma crítica da etnografia como ato de tradu-
conheço é o volume A Antropologia e seus Espelhos, de 1996, ainda não ção cultural foi realizada mais recentemente por Tejaswini Niranjana
muito divulgado, resultado de um debate ocorrido na USP em 1994, do no seu livro Siting Translation.14 Esse texto está ausente também (de
qual tive o prazer de participar.11 Nele falaram alunos de pós-gradua- um modo para mim ainda mais surpreendente, dada a pretensão de
ção em Antropologia da USP tradicionalmente tidos como nativos dos exegese e crítica dos autores) dos dois principais manuais de teoria
antropólogos: pais de santos, índios, capoeiristas, líderes sindicais, femi- crítica da Antropologia norte-americana dos anos oitenta,15 que tanta
nistas, todos interessados justamente em devolver esse olhar de autori- influência causaram na Antropologia brasileira. Interessa-me, porém,
dade, do saber moderno e deslocado, da Europa e dos Estados Unidos em primeiro lugar, registrar sua ausência entre nossos textos teóricos.
para o Brasil. Essa devolução do olhar produziu um texto rico, cheio de Se definimos a partir daí a disciplina antropológica diretamente
interesse e ainda bastante original entre nós.12 Entre outras coisas, ele como uma arena onde se confrontam valores – e não mais como a dis-
nos convida a meditar sobre a baixíssima presença, em nossos cursos de seminação ou adaptação de um valor construído num determinado
pós-graduação, de negros, de índios ou de seus descendentes diretos e, momento da história do Ocidente europeu – somos obrigados a lançar
em geral, de estudantes oriundos das classes menos favorecidas da nossa mão de uma gramática alternativa para a definição de princípios como
população. Na verdade, se comparada com a politização provocada pela solidariedade, fraternidade, justiça, direitos individuais e coletivos, dis-
ação afirmativa e suas múltiplas derivações de críticas calcadas na cons- criminação, etc.16 Passamos a estar todos implicados nessa discussão de
trução de identidades – raciais, étnicas, de gênero, sexuais, etc., as quais valores; o lugar descentrado já não é mais ocupado por ninguém e o
fazem parte neste momento da agenda teórica de praticamente toda a desafio colocado é o de como relegitimar o saber acadêmico a partir
Antropologia do Primeiro Mundo – nossa comunidade antropológica é dessa base comutativa de olhares. Crise análoga passa o saber filosó-
ainda extremamente refratária a qualquer questionamento sobre o seu fico contemporâneo quando se lê O Monolinguismo do Outro, de Jac-
ques Derrida, que já não é mais o olhar do filósofo do Primeiro Mundo
que transparece, mas o olhar marginal de um judeu francês argelino
que relata as agruras por ele sofridas ao submeter-se a um processo, na
10 Ver Otávio Velho (1998). Até onde sei, Otávio Velho não publicou esse argumento, o qual
consistiu, na verdade, em uma crítica contundente ao disciplinamento (que ele chamou
de foucaultiano) no interior da comunidade de antropólogos brasileiros e à homogenei- 13 Obviamente, muitos antropólogos brasileiros constroem um espaço paralelo de ativismo
zação da sua produção acadêmica. junto às comunidades que estudam. O que discuto aqui é a resistência à incorporação da
crise autoral explicitamente nas formulações teóricas e etnográficas exercitadas.
11 Ver Vagner Gonçalves da Silva & Letícia Vidor Reis (1996).
14 Ver Niranjana (1995).
12 Outro rico exemplo “periférico” desse “espelho da Antropologia” é o documentário
Rouch en Reverse, do cineasta malinês Manthia Diawara (1995), em que ele exercita o que 15 Ver Marcus & Fischer (1986) e Clifford & Marcus (1986).
denomina uma “Antropologia ao avesso”, onde o que antes era o objeto de pesquisa (no 16 A relevância da discussão sobre valores para a Antropologia tem sido sugerida por Otá-
caso, o africano) estuda o seu pesquisador (no caso, Jean Rouch). vio Velho (1995).

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infância, de educação monolítica e monológica, em francês, ao custo exerceu sua hermenêutica... quando sabemos muito bem, seja por Hans-
de reprimir o uso letrado de sua língua materna.17 Toda essa questão, Georg Gadamer, Jonathan Culler, Gerald Bruns, Rodolphe Gasché e
de deparar-se com uma verdadeira fuga do lugar centrado, hegemônico tantos outros, que o contexto jamais possui limites e é justamente na
(caricaturizado no olhar masculino, branco, europeu, construído nas tentativa de construir suas fronteiras entre pertencimento e observação
colônias como o olhar universal), costuma ser mais complicada na peri- que podemos captar as recusas do sujeito em implicar-se abertamente
feria que na metrópole, porque construiu-se com mais energia essa ilu- na realidade que interpreta.
são de um lugar puramente acadêmico. Quem estuda o quê sobre quem? Supostamente Geertz foi protegido pelos nativos dos massacres
E quem sabe quais aspectos de sua realidade – cultural, social, política, ocorridos naquele tempo do golpe militar genocida na Indonésia; dei-
ambiental, econômica – estão sendo estudados... por quem? Entre esses xou de fora, porém, a interferência direta dos Estados Unidos na cons-
quês e quens, que implicam posicionalidade (para utilizar um termo de trução e manutenção do regime de terror sob o qual viviam, durante o
Stuart Hall18) e definição explícita da situação do autor no jogo geopolí- seu trabalho de campo, os seus queridos aldeões (com todas as media-
tico (para usar uma expressão central no argumento de Walter Mignolo ções descendentes, as cumplicidades e as capilaridades que caracterizam
e de outros autores pós-coloniais19), pode-se reconstruir e avaliar agora esse regimes ditatoriais, tão nossos conhecidos). O que ele fez, em seu
o exercício etnográfico. último ensaio, After the Fact, foi construir um sofisticado desvio literário
Muitos leitores se perguntarão por que não privilegiar o lugar teó- para reproduzir, com uma nova linguagem, a condição de etnógrafo do
rico de Clifford Geertz, possivelmente o maior ícone, entre nós, do saber centro do mundo que herdou de seus mestres.21 Igualmente George Mar-
antropológico. Geertz introduziu de fato uma crítica ao positivismo ins- cus, ao mostrar as limitações críticas da brilhante proposta ensaística de
crito no primeiro modelo de olhar (e até no segundo), mas sua prática Geertz, não lhe cobra a despolitização do contexto que apresentou para
de reflexividade não difere do que foi descrito até agora. George Marcus enquadrar sua etnografia.22 Dito de outro modo, Marcus, enquanto exe-
repetiu recentemente sua avaliação anterior da contribuição original geta da teoria antropológica, ainda não submeteu Geertz a uma crítica
de Geertz à prática etnográfica, referindo-se à abertura do seu célebre pós-colonial. Mais ainda, fica claro que ele não retirou Geertz do seu
texto sobre a briga de galos em Bali.20 Sem dúvida alguma altamente lugar de sujeito suposto saber (porque ao fazê-lo teria ele também que
eficaz, aquele artifício de cumplicidade foi muito mais uma inovação retirar-se desse lugar).23 O exercício de tentar refazer as condições de
nas estratégias retóricas de legitimação do lugar privilegiado do autor do produção do sujeito suposto saber do antropólogo descortina um novo
que uma proposta de insurreição contra a estrutura fundante da disci-
plina tal como formulada por Derrida na passagem acima citada. Tam-
bém não há, em Geertz, nenhuma mudança na geopolítica da disciplina 21 Ver Geertz (1995).
antropológica enquanto um saber formulado no Primeiro Mundo que 22 Cobrança que é explícita, por exemplo, na resenha de Local Knowledge feita pelo que-
se expandiu dentro de uma estrutura de poder cujos moldes procurei niano Ngugi wa Thiong’o, um dos mais importantes escritores da África contemporânea
e militante radical da tarefa de descolonização do horizonte de valores da elite intelectual
delinear através da metáfora dos olhares. No texto sobre a briga de galos, africana (ver Ngugi, 1981).
ele deixou-se implicar existencialmente no nível da aldeia; delimitou 23 Contudo, num ensaio posterior, George Marcus admitiu que a crise de representação na
para si uma fronteira extremamente conveniente do contexto em que Antropologia deve incorporar a discussão da subalternidade e propõe refazer o projeto
etnográfico a partir de algo parecido com o que chamei acima de uma base comutativa de
17 Ver Derrida (1998). olhares: “The self-perception of the practices of ethnography as a power\knowledge like,
among, and with specific kinds of connections to others, based on certain ethical com-
18 Ver Hall (1996).
mitments and identifications, forces the refiguration of the terrain of research – unfixes
19 Ver Mignolo (1994 e 1998). standard positionings, in which the concepts of elites, anthropologists and subalterns get
20 Ver Marcus (1998). rearranged” (Marcus, 1997, p. 424).

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momento dessa metamorfose de olhares. Tentarei defini-la como a pers- Primeiro para o Terceiro Mundo. O interesse é de relocação. Não se trata
pectiva etnográfica pós-colonial. apenas de devolver o olhar – o que é um pouco a alternativa colocada
pela crítica da reflexividade nas etnografias –, mas de tentar mudar a
ii. o olhar pós-colonial origem do olhar, exercitando assim o que ele chama de uma hermenêu-
tica pluritópica.25
O que segue é uma descrição muito breve da discussão sobre a histó- Gostaria de referir-me brevemente agora a três autores da teoria
ria da perspectiva pós-colonial. O teórico argentino Walter Mignolo pós-colonial que talvez nos ajudem a recuperar discussões que já tive-
argumenta que tivemos nossos teóricos pós-coloniais muito antes de mos antes no Brasil e que têm ficado um tanto quanto silenciadas nas
que surgissem esses famosos acadêmicos de língua inglesa de hoje.24 últimas duas décadas. A primeira é Gayatri Spivak, cujo percurso teó-
Mignolo fala de uma geração anterior, que inclui intelectuais como José rico mais importante passa também pelo próprio hibridismo identitário
Carlos Mariátegui, Rodolfo Kusch, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e outros que ela mesma faz questão de manifestar. Seu projeto teórico-político se
vivos, como Leopoldo Zea, Enrique Dussel e que podem ser entendidos, relaciona com a sua necessidade biográfica de desfazer o duplo lugar de
segundo os mesmo critérios que entendemos pensadores como Gayatri fala subalterna que lhe foi imposto desde a infância, como mulher numa
Spivak, Homi Bhabha, Edward Said, Aijaz Ahmad, Ngugi wa Thiong’o, nação colonizada. A arena discursiva e o campo no qual se conduzia
como pensadores pós-coloniais. O problema é que eles se construíram todo o debate sobre a subjetividade contemporânea, tanto pelo coloniza-
como teóricos num momento anterior à demarche da etnografia como dor como pelo colonizado, estava centrada no Ocidente. O interesse de
prática sistemática inscrita na academia latino-americana. O que deve- Spivak é de refazer essas coordenadas, transportar a arena desse debate
mos fazer agora é propor uma nova agenda etnográfica que recupere para um outro lugar. Com isso ela toca uma questão central, que nos
explicitamente sua crítica à nossa posição de periferia do Ocidente. compete agora retomar, qual seja, discutir a capacidade do subalterno
Isso nos permitiria uma troca intelectual mais direta com os teóricos de se representar. Dito de outra forma, teorizar quais são as possibili-
pós-coloniais do Primeiro Mundo, pois eles já incorporam, como um dades do subalterno de se subjetivar autonomamente. Seu texto já clás-
dos seus pontos de crítica, os textos etnográficos de suas regiões de ori- sico, “Pode o subalterno falar?”, é uma tentativa de refazer esse debate
gem (subcontinente indiano, África, mundo árabe, etc.). Por essa razão, extremamente complexo, que exige uma articulação da teoria marxista
penso que esses autores nos lançam um grande desafio para uma revisão com a Psicanálise e a desconstrução derrideana.26 Isso implica, mais
de nossa situação geopolítica dentro do campo de forças da produção uma vez, em conquistar um espaço de enunciação, assegurar um lugar
intelectual contemporânea. de discurso, entendido como sendo o lugar privilegiado nessa batalha
Ainda segundo Mignolo, o projeto fundamental dos teóricos pós- por uma subjetivação equânime. Esse projeto de Spivak tem sido muitas
coloniais latino-americanos de antes era a tarefa da descolonização. vezes criticado como um mero exercício acadêmico fascinante disfar-
Essa tarefa foi deixada de lado, por um bom tempo, com o crescimento çado de batalha política. Em minha leitura, contudo, nele se fundem,
da nossa absorção do olhar universalizante da Antropologia europeia ineludivelmente, alta teoria com ativismo junto às camadas subalternas.
e, mais recentemente, norte-americana. Vale a pena reintroduzir esse A condição de subalternidade é a condição do silêncio. Daí sua
desafio, na medida em que ele ajuda a ampliar o nosso campo atual de discussão dos dois termos utilizados por Karl Marx no Dezoito Brumá-
reflexão. O ponto central que está por trás do olhar pós-colonial é lutar, rio de Luís Bonaparte para definir o sentido de representar: a Vertre-
como diz Mignolo, por um deslocamento do locus de enunciação, do
25 Para a conceituação da hermenêutica pluritópica, ver Mignolo (1994).
24 Ver Mignolo (1996). 26 Ver Spivak (1993a).

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tung, que é a representação enquanto uma procuração passada a ter- britânico.28 Além dessa agenda tão fértil, parece-me especialmente con-
ceiros, típica da representação política das minorias diante do estado; e tundente a sua discussão da queima das viúvas (o famoso ritual do sati),
a Darstellung, que é a representação enquanto um modo de retratar os tanto com os tradicionalistas indianos quanto com os colonialistas ingle-
sujeitos representados por seu porta-voz, o qual inevitavelmente deve ses. Ao respondê-los, ela invoca um horizonte de significantes que a dis-
também autorrepresentar-se como sujeito histórico nesse processo, na tingue inteiramente de qualquer pessoa que se dispusesse a realizar tal
medida em que deve também identificar-se como membro da catego- tarefa intelectual lançando mão exclusivamente dos recursos intelectuais
ria genérica de seus representados.27 No caso da Vertretung, assistimos gerados no interior da chamada civilização ocidental. Ela argumenta
ao dilema constante das classes oprimidas de necessitarem mediadores que o significante sati vem dos Vedas e do Dharmasastra, textos sagra-
para que sejam consideradas como atores legítimos de reivindicação. O dos de mais de três mil anos de antiguidade. Ao reinterpretar um signi-
subalterno só carece de um representante por sua própria condição de ficante de tão longa duração, ela constrói um suporte hermenêutico que
silenciado. No momento em que o subalterno se entrega, tão somente, desafia a pretensão da modernidade europeia de resolver teoricamente
às mediações da representação de sua condição, torna-se um objeto nas as questões colocadas pelos pensadores de hoje, independente de onde
mãos de seu procurador no circuito econômico e de poder e com isso se situem. Essa profundidade temporal repõe centripetamente o caráter
não se subjetiva plenamente. No capitalismo, o indivíduo que não con- periférico da sua condição de indiana. Considero este um dos argumen-
trola os meios de produção se faz representar, não enquanto sujeito, mas tos mais poderosos, do ponto de vista da contra-hegemonia teórica, que
enquanto um valor de troca. Paradoxalmente, sua legitimidade passa a ela nos apresenta. Coloca-se num lugar de privilégio, porque pode falar
ser dada por outra pessoa, que assume o seu lugar no espaço público, como herdeira de uma duração civilizatória mais longa que a dos países
essencializando-o como o lugar genérico do outro do poder. Daí a busca europeus e do Novo Mundo. Ao fazê-lo, decompõe e desconstrói uma
constante por capturar o momento em que a re-presentação se funde à série de mitos sobre quem fala em primeiro lugar, no lugar privilegiado.
a-presentação, pois ele é especialmente propício para o surgimento de Além disso, quando faz uma introdução ao livro da escritora indiana
processos de Confronto, afirmação, insurreição e de movimentos sociais Mahasweta Devi, Imaginary Maps, por ela traduzido, sustenta que todos
não cooptados e revolucionários, na medida em que as classes subal- os ideais das narrativas pós-modernas são mais bem representados por
ternas tentarão controlar o modo como serão representadas. Formular escritores indianos do que por qualquer escritor ocidental. Enfim, colo-
uma teoria do sujeito da consciência deliberativa soberana e tingi-lo da cando-se no centro e dele distanciando-se enquanto sujeito de fala, mina
condição específica de coparticipação da teórica feminista com os subal- a autoridade do pretenso centro-ocidental do mundo.
ternos e insurgentes (no caso, as mulheres), eis uma síntese da agenda Outro teórico que tem submetido a tradição etnográfica a uma
radical de Spivak, agenda que traz ressonâncias de nossas discussões, crítica pós-colonial é Edward Said, o qual propõe – e exercita – uma
um tanto esquecidas ultimamente, sobre o etnógrafo comprometido, mudança radical de identificação do olhar. Mais do que isso, ele conse-
militante, ainda que crítico das agendas anteriores da Antropologia gue colocar-se na teoria a partir de um olhar que não é mais o olhar cen-
Aplicada. trado na modernidade europeia. De sua obra tão multifacetada, destaco
O que mais me motiva recuperar de Spivak não é tanto a sua discus- aqui a análise extremamente aguda e original que realizou do clássico
são sobre os grupos de estudos subalternos indianos que estão tentando
28 O Grupo de Estudos Subalternos da Índia foi organizado em torno da figura do historia-
refazer a arena da sua relação geopolítica e intelectual com o mundo dor Ranajit Guha. Para uma compreensão de sua agenda, ver Guha (1997). Seu projeto
inspirou o surgimento de grupos similares em outras partes do mundo, inclusive o Grupo
de Estudos Subalternos da América Latina, cujo manifesto de fundação foi publicado
em Boundary 2, num volume dedicado ao debate sobre o pós-modernismo na América
27 Ver Spivak (1990, p. 108-109), para um esclarecimento de seu uso desses termos. Latina (ver Latin American Subaltern Studies Group, 1993).

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Mansfield Park, de Jane Austen. Ao contrário da leitura mais convencio- A postura de Said é bem conhecida no Brasil e seus livros mais
nal, de uma descrição dos costumes ingleses do século XIX, Said procura importantes de crítica à hegemonia ocidental, como Orientalismo e
demonstrar que há um signo horroroso, sinistro, ainda que muito dis- Imperialismo e Cultura, são lidos nos nossos cursos de pós-graduação.
creto, na novela: enquanto discutem como transformar aquela mansão Contudo, são escassos os acadêmicos brasileiros que fazem uso da cate-
de província num lugar idílico, quase edênico, o senhor da casa deveu goria imperialismo ao analisar nossa relação com o Primeiro Mundo e
deslocar-se às pressas para o Caribe a fim de sufocar uma rebelião de mais particularmente com os Estados Unidos.29 No momento presente
escravos em uma de suas plantações. Assim, a proposta de vida perfeita- esse imperialismo é menos disfarçado que nunca e atinge praticamente
mente civilizada que é Mansfield Park está sustentada pela mais horrível todas as áreas da vida pública do cidadão brasileiro e de suas relações
das práticas humanas e imperiais, a saber, a escravidão. É um Éden que com o estado. O conteúdo da mídia, as leis de patentes, a internaciona-
sempre carrega um inferno dentro dele. lização da Amazônia, o controle do modelo econômico nacional, a pri-
Conforme retomarei na parte final deste ensaio, o texto cultural que vatização do ensino superior e o desmonte das instituições de pesquisa,
se pretende servir de modelo universal traz incrustado dentro de si, sob o modelo de relação entre cidadão e estado, a maneira em que a própria
um signo de horror, a presença daqueles oprimidos e silenciados pelos sociedade deve organizar-se democraticamente. Além disso, a paranoia
sujeitos mesmos que o texto celebra. Said sustenta que esse potencial da segurança e dos sistemas de vigilância, públicos e privados, a indús-
de extrema negatividade é uma constante nas grandes obras literárias e tria do entretenimento, os movimentos negros, os movimentos femi-
artísticas dos países imperiais e define seu método de análise dessas obras nistas, os movimentos indígenas, os movimentos ecologistas, todos eles
canônicas como uma leitura contrapontística: o texto metropolitano só sofrem de alguma maneira uma enorme pressão, quando não coerção
pode de fato ser compreendido em toda a sua complexidade simbólica e direta, por adequar-se aos padrões de valores propostos pelos Estados
ideológica quando visto à luz do seu negativo (ou melhor, do seu contra- Unidos. Nós, como bons acadêmicos contemporâneos, lemos uma obra
ponto, para prosseguirmos com sua metáfora musical, qual seja, a rea- como Imperialismo e Cultura, entendemos perfeitamente a relevância
ção colonial à textualidade metropolitana). Seu ponto de partida, nesse do tema ali tratado e em seguida nos silenciamos diante do imperia-
exercício de crítica pós-colonial, é o texto do colonizador. Já segundo o lismo a que estamos atualmente submetidos.
que tentarei desenvolver mais adiante, um projeto etnográfico sensível à Igualmente importante é o seu texto “Representar o colonizado”,
condição colonial inverteria essa peça analítico-musical e colocaria pre- escrito especificamente para a comunidade de antropólogos há já mais
cisamente o contraponto (o texto periférico) como o tema inicial. de dez anos. Nessa conferência, Said conclama as Ciências Sociais para
Lembremos que Walter Mignolo, Gayatri Spivak e Homi Bhabha continuarem lutando contra os enormes obstáculos do imperialismo:
são teóricos pós-coloniais que residem e são professores nos Estados “estou impressionado pelo fato de que em tantos e tão variados escritos
Unidos; e Said, infelizmente falecido, também desenvolveu toda a sua de antropologia, epistemologia, textualidade e alteridade, que em exten-
carreira acadêmica como residente nos Estados Unidos. Todos eles são e temas percorrem a escala que vai da antropologia à história e à
questionam, em suas obras, o modo como o pensamento europeu sub- teoria literária, há uma ausência quase total de referências à intervenção
jetivou, também numa relação de subalternidade, as demais regiões do imperialista norte-americana como um fator que afeta a discussão teó-
mundo, inclusive a nossa. Contudo, maior atenção tem sido dada, até
agora, ao subcontinente indiano, à África, à Oceania, ao Oriente Médio
e ao mundo muçulmano, ficando a América Latina ainda pouco repre-
29 Ver meu ensaio sobre o imperialismo cultural norte-americano, no qual delineio uma
sentada nessa nova rede de teorização sobre a fase atual da descoloniza-
análise das condições de reprodução atual da nossa academia dentro da geopolítica das
ção do mundo. relações do Brasil com os Estados Unidos (Carvalho, 1997).

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rica”.30 Outro estímulo fundamental que podemos extrair de Said (e que o lugar onde o subalterno pode capitalizar a inconsistência simbólica
explorarei no final deste ensaio) é sua preocupação para que os oprimi- dominante a seu favor e devolver o caráter híbrido, precário, frágil, dessa
dos do mundo não se calem e reclamem sempre o seu direito de narrar ordem que se apresenta como autoridade inconteste, legítima, superior,
suas experiências, suas insurreições, suas memórias, suas tradições, suas constante, imutável. O lugar desse terceiro espaço será assim o lugar
histórias. Daí sua postura constante de insurgência contra as tentati- dividido em que se pode delinear um mecanismo de estabelecimento
vas de silenciar a voz dos palestinos em sua luta por sair da situação de de alguma espécie de contradiscurso: é a possibilidade que tem o subal-
subalternidade e opressão a que têm sido reduzidos desde a criação do terno de propor e executar uma contracoerência.33 Tentarei trazer esse
estado de Israel.31 esquema conceitual de Bhabha para um olhar etnográfico que explicite
O terceiro teórico pós-colonial que pode inspirar uma revisão do sua política de alianças com as vozes suprimidas ou silenciadas de nos-
olhar etnográfico é Homi Bhabha. Uma de suas principais contribuições sas comunidades.
é fazer-nos lembrar quão precária é a autoridade cultural a que estão É muitas vezes no exato momento em que o grupo dominante quer
submetidos os subalternos e os sujeitos coloniais. Essa autoridade, atra- se apresentar como dominante que ele é forçado a reestruturar, de um
vés da qual somos levados a estereotipar nossa relação com os países modo contingente, conjuntural, imprevisto, a sua linguagem de domi-
centrais, se baseia num pressuposto de uma ordem simbólica geral que nação. Se deve explicitar uma retórica de autoridade, é porque se vê
é na verdade extremamente precária e frágil, como simplesmente o são levado, concretamente, a exercer o seu poder de controle. No preciso
todas as ordens culturais, sempre passíveis de serem refeitas em qual- momento em que sua força é desafiada ou repudiada, ela se articula.
quer novo ato de enunciação sob o signo do confronto. Bhabha vai então Ocorre sempre, porém, uma negociação, em termos originais e imprevi-
atualizar esse caráter de hibridismo que é fundante da linguagem, e ao síveis, entre a posição do sujeito na linguagem e o enunciado que cons-
qual é submetida a atividade – ininterrupta – de tradução cultural: em trói através dela. Como diz Bhabha, esse é um problema gerado pela
sentido estrito, toda cultura é híbrida. A própria cultura dominante é estrutura mesma do processo de significação. O sujeito nunca é coetâ-
híbrida no momento mesmo em que se anuncia como autoridade. neo à linguagem, devido à historicidade da condição enunciativa. Cada
É o próprio discurso que dá passagem a um hiato, a um intervalo enunciado – seja para expressar o poder, seja para confrontá-lo – é sem-
vazio, parcialmente equivalente ao que Mikhail Bakhtin chamou de exo- pre resultado da maneira como o outro interpreta o signo lançado pelo
topia, isto é, um diálogo que não pertence nem a mim nem ao outro, sujeito. Para quem se constrói no lugar de poder (seja o colonialista, o
mas precisamente a esse espaço exterior que é a característica mesma da imperialista, o escravista, o latifundiário), de nada significa dizer que é
relação do sujeito com a alteridade.32 Homi Bhabha chama esse inter- poderoso previamente a um confronto de posições.
valo vazio de terceiro espaço: o hiato instantâneo entre a estereotipia da Tal como o entendo, o terceiro espaço é então uma abertura gerada
língua e a sua realização viva, concreta; entre a sua estabilidade hegemô- entre o sistema de representação, entre a inércia codificante da lin-
nica e sua contingência no momento em que se estabelecem as hierar- guagem e o seu potencial de renovação, que é ativado numa situação
quias de poder. Como esse ato é um enunciado, vem a ser justamente conjuntural. A cada vez que um enunciado de dominação (o que sinte-
ticamente podemos chamar de pretensão hegemônica) é ativado, soli-
30 Ver Said (1989, p. 214). Na verdade, Said não é o único a restaurar a centralidade da ques-
tão do imperialismo para o equacionamento da ordem político-cultural em que vivemos. citado por uma instância imprevista – um estado de emergência, ou de
A crítica às formas contemporâneas de imperialismo é uma das motivações principais exceção, como diria Walter Benjamin – deverá existir necessariamente
para a escolha da teoria derrideana por parte de Gayatri Spivak, que chega a afirmar que
“a crítica ao imperialismo é a própria desconstrução” (Spivak, 1996, p. 108).
31 Ver Said (1984). 33 Contracoerência é o nome dado por Mieke Bal a sua leitura do Livro dos Juízes da Bíblia,
32 Ver Bakhtin (1990). estritamente do ponto de vista das mulheres. Ver Bal (1988).

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uma negociação de significado. Quando o poderoso começa a se definir cultural na tentativa de construir uma nação britânica mais aberta à
como tal, imediatamente utiliza um significante oriundo do discurso do diferença – melhor, enfim, humana e socialmente. Lembremos, porém,
dominado, justamente para marcar uma polarização a ser lida de uma que o movimento de hibridismo que propõe é fértil no Reino Unido,
perspectiva favorável à sua pretensão hierárquica. O dominado tentará onde há um solo institucional mais bem garantido que o nosso de fala
então devolver para o dominador uma quantidade desses significantes dissidente, isto é, onde a demanda de subjetivação está apoiada num
carregados de tensão demarcadora de territórios. Essa arena aberta de sistema judicial ainda capaz de protegê-la da intolerância censuradora e
possibilidades configura um terceiro espaço; e sobre essa negociação, silenciadora. Não sabemos se ele seria capaz de construir, com idêntico
não há como estabelecer a priori qual será o seu resultado. O que está sucesso, a mesma demanda no subcontinente indiano, com sua sequên-
em jogo, de fato, é a luta pelo controle da narrativa histórica: são as ten- cia de regimes autoritários e de exceção. Em suma, a pressão que exerce
tativas do dominador de silenciar a versão do subalterno e as estratégias para que os britânicos sejam mais democráticos pressupõe, para salva-
desse para desmascarar a versão dominante que se pretende fixar como guardar a integridade intelectual e política de Bhabha, que eles já sejam
verdadeira. democratas em uma boa medida.34
Muito mais tarde surgirão as várias versões do que foi aquele Na verdade, a mesma contradição pode ser detectada na posição de
momento reestruturante e que pretenderão galgar a condição de arquivo, Spivak. O ensaio sobre o ensino de literatura inglesa no seu livro Outside
de memória, ou de patrimônio, de costume ou de lei: como se deu um in the Teaching Machine (1993b) foi escrito com a precípua finalidade de
conflito em um determinado momento; de que maneira o opressor se tentar melhorar a qualidade dos alunos que se formam nos Estados Uni-
posicionou; de que modo o oprimido rebateu a representação que se dos (a maioria dos quais, obviamente, são cidadãos norte-americanos).
pretendeu hegemônica; e qual foi o resultado desse confronto em vários Resta saber em que medida uma geração de estudantes norte-ameri-
planos: uma rebelião, um massacre, a subordinação de um grupo aos canos de literatura mais bem qualificados influenciará positivamente o
interesses de outro, a reestruturação de posições políticas, a morte de processo de descolonização do mundo a partir do império.
uma comunidade, o fim de uma cultura ou de uma forma singular de Enfim, uma atitude comum a esses três autores é ler criticamente
experiência humana, etc. Quando um movimento social se avizinha um conjunto de textos investidos de grande prestígio por pertencerem
de uma região como o terceiro espaço, pode contar com um momento ao que se define e se reproduz como literatura inglesa.35 A partir daí,
mais favorável para mudanças, questionamentos, renovações, rupturas, desenvolvem essa estratégia, típica da crítica pós-colonial, de minar a
insurreições, conquistas. Bhabha pode assim analisar a narrativa subal- autoridade, mostrar o que há de conflitos e expor a monstruosidade pro-
terna situando-a no plano das identidades coletivas, porém vinculando movida por esse discurso colonial literário.36 No momento, enfim, em
sempre sua manifestação aos processos de representação e de significa- que eles minam esses textos de grande autoridade literária, colocam-se
ção, tanto na sua dimensão semiótica quanto na sua dimensão psíquica num espaço privilegiado de fala. E tal espaço os transforma em pen-
(uma das novidades de sua teoria é justamente propor um entrelaça-
34 Refiro-me aqui ao período de Bhabha no Reino Unido, porque a maioria dos textos do
mento dessas duas dimensões). seu livro foi redigida antes de sua mudança para os Estados Unidos. Todavia, acredito que
O texto de Homi Bhabha parece sempre tão impreciso, escorrega- o argumento que desenvolvo ainda se sustenta em sua base.
dio, talvez porque anseia por inscrever-se simultaneamente na tradição 35 Terry Eagleton tem mostrado, em uma perspectiva crítica, como se definiu o cânon da
literatura inglesa e como se expandiu pelo mundo, a partir de um certo momento, até ser
da crítica literária e cultural inglesa e na tradição de crítica indiana. visto como o lugar da excelência literária. Ver Eagleton (1978).
O que unifica esses dois polos da sua intervenção na ordem cultural 36 É o tão discutido “Horror! Horror!” que grita Kurtz no Coração das Trevas de Joseph
Conrad, obra literária que tem recebido várias releituras e reinterpretações que a vin-
estabelecida é a língua inglesa, presente, ainda que de um modo dife- culam, numa perspectiva pós-colonial, à tradição etnográfica. Ver, entre outros, James
renciado, nas duas tradições discursivas. Homi Bhabha faz sua crítica Clifford (1988) e Chinua Achebe (1989).

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sadores que podem nos inspirar, se os vemos da perspectiva de nossa iii. para uma etnografia pós-colonial e anti-imperialista
posição específica de subalternos. Não pretendo, obviamente, fazer vista
grossa para as enormes contradições, justamente de tipo geopolítico, Conforme sugeri, ao visitar acima as ideias de Spivak, Said e Bhabha, a
embutidas nesse projeto de criticar a dominação imperial, denunciar o perspectiva colonialista e imperialista de inscrição simbólica está com-
silenciamento sistemático da fala subalterna e ao mesmo tempo traba- prometida, na sua raiz, por uma ambivalência paradoxal que a debilita
lhar nos Estados Unidos da América no período em que se consolidam e abre portas para que seja confrontada: é que o texto do colonizador
como o maior império de todos os tempos. Em Cultura e Imperialismo, deve incorporar signos do universo do colonizado, o que transforma o
um de seus livros de maior envergadura e influência, o próprio Said se seu discurso num texto heteróclito, com um grau incômodo de desar-
antecipa a essa questão e a responde abertamente, afirmando que, na rumação que não é apenas estético, mas basicamente ético: não é capaz
medida em que reside nos Estados Unidos, é aí onde pode exercer com de exorcizar o impuro, o ilícito, o feio, o horroroso, o perigoso, que se
mais eficácia a sua responsabilidade de intelectual (Said, 1993, p. 54). instaurou no seu núcleo constitutivo, sob pena de enfraquecer-se sim-
Bart Moore-Gilbert faz uma análise excelente desse lugar crítico – desa- bolicamente e deixar de ser um bom modelo de texto eminente do colo-
fiador, porém heterogêneo e confuso – que chamamos de teoria pós- nizador como portador da pretensa moralidade universal. Em outras
colonial.37 Cabe-nos agora equacionar, com intensidade e senso crítico palavras, a obra-monumento do império sempre nasce monstruosa:
análogos, as contradições e as possibilidades do projeto etnográfico no não pode eliminar o rastro semiótico do grupo dominado, que deve
momento presente. forçosamente aparecer com o sinal negativo, de decréscimo do ser. Isso
Sintetizando as metamorfoses do olhar etnográfico resenhadas corrobora a intuição de Walter Benjamin, inspirado em Karl Marx, de
acima, podemos dizer que o estilo de olhar de Boas e Herkovits obje- que não existe nenhum documento de cultura que não seja ao mesmo
tifica, apesar de sua militância em defesa dos indígenas e dos negros, tempo documento de barbárie. Ou seja, a história da humanidade é um
respectivamente; o estilo de olhar de Lévi-Strauss distancia e aproxima, acúmulo de opressões e injustiças, cujo clima de desastre ele descreveu
mantendo fixo, porém, o lugar hegemônico. O olhar dos antropólogos utilizando, de um modo extremamente original, a imagem do Angelus
ditos reflexivos discute a autoridade do lugar hegemônico, porém sua Novus de Paul Klee.39
teoria do poder é limitada ao campo etnográfico – e é precisamente essa Uma das estratégias pós-coloniais mais eficazes consiste em produ-
limitação que é denunciada com veemência por Edward Said. Dito de zir um tipo de texto – uma crítica cultural, enfim – que acuse a barbárie
outro modo, a voz do nativo ainda não é vista como voz subalterna. Na inerente e fundante dos textos monumentais do colonizador. É o que
perspectiva pós-colonial, a questão já não é apenas a voz nativa, como praticam Edward Said e Homi Bhabha, em praticamente todas as suas
a do outro diferente, mas o reconhecimento das condições históricas e leituras das novelas inglesas sobre a Índia e a África. Outra estratégia,
políticas de construção de alteridades submetidas a um regime colonial também utilizada frequentemente por Bhabha e por Spivak, é referir-
de subalternidade. Em outras palavras, trata-se de deslindar os mecanis- se a textos produzidos pelos sujeitos em processo de descolonização:
mos de articulação do nativo (o objeto etnográfico) junto com o etnó- migrantes e exilados indianos, chicanos, africanos, asiáticos, etc., os
grafo (e sobretudo o etnógrafo do país periférico), ambos, na verdade, quais acusam, na sua própria natureza híbrida, a barbárie-monumento
enquanto sujeitos coloniais (ou neocoloniais).38 que os antecedeu e inspirou. Ou seja, do ponto de vista do texto cultu-

37 Ver Moore-Gilbert (1998). Antropologia (ver Rouch, 1975 e 1978). Tem sido retomada, ainda que parcialmente, por
38 Essa perspectiva, me parece, ainda não foi discutida suficientemente no interior da disci- Michael Taussig, Paul Stoller, Janice Boddy, Jean & John Comaroff e Judy Rosenthal, entre
plina, apesar de haver sido pelo menos delineada por Jean Rouch há duas décadas, o que outros.
coloca o filme etnográfico numa posição de vanguarda no processo de descolonização da 39 Ver Benjamin (1969).

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ral gerado ou enunciado diretamente pelos grupos sociais submetidos de faroeste, ou o feiticeiro perigoso nas histórias de paixões românticas
ao poder colonial (ou neocolonial), busca-se ressaltar sua capacidade entre brancos situadas nas regiões ditas “selvagens” do Terceiro Mundo,
cognitiva de devolver uma imagem do colonizador construída a partir invariavelmente nos deparamos com seres tortos, monstruosos, defor-
da experiência do grupo dominado. É possível supor que o processo mados, bufões, malvados, perigosos, impenetráveis, etc. É assim que o
criativo, nesses casos, seja tão inconsciente e intuitivo quanto o expe- colonizado pode reagir à tentativa do colonizador de apresentar essa bar-
rimentado pelos autores cúmplices com a ordem imperial. A estratégia bárie como referência universal dos valores mais altos da humanidade:
de tradução cultural, porém, é deliberada: são textos produzidos com basta que seja visto pelo avesso para passar a exibir essa monstruosidade
a finalidade precípua de inscreverem signos (geralmente com a polari- no centro mesmo da constelação simbólica e estética disseminada pelos
dade axiológica invertida ou pelo menos questionada) do colonizador, quatro cantos do império. Conforme disse anteriormente, aqui a des-
para assim poderem desafiar o modo negativo (quando não silenciado) construção derrideana, muitas vezes tachada de mero exercício acadê-
com que foram inscritos nas narrativas históricas difundidas contra (ou mico, pode tornar-se um eficaz recurso discursivo na representação da
independentemente de) suas vontades. voz subalterna.
Sintetizando minha leitura, todos os atores envolvidos nesse drama Assim, a história inteira da humanidade pode ser vista como a
pós-colonial e imperial necessitam então introduzir um signo, com sinal constante incorporação, por parte do dominador, de signos, com sinal
trocado, nas suas textualidades em relação a outro. O dominador aciona trocado, oriundos da expressão simbólica do dominado.42 E por que é
os documentos da cultura para corroborar, de um modo convincente, importante essa troca de sinal? Porque para o dominado esses signos
a hierarquia que construiu – o universal abstrato, como dizia Michael sequestrados representam valores positivos, como o bem, o belo, o
Taussig,40que pode assumir uma imensa gama de fetiches, ou fantasmas: sonho, a esperança, o caminho da redenção.
por exemplo, a mulher bela do Ocidente, o homem de gênio, a grande
obra literária, etc.41. Todavia, como se vê nos estudos pós-coloniais, em iv. sobre o luto cultural
algum momento, para fixar essa ordem, ele introduz um signo do domi-
nado, invertendo o seu valor emblemático. Ele deve incluí-lo porque Ainda do ponto de vista do dominado, a opressão e a dominação sofri-
necessita apresentar a ordem inteira, completa, da natureza na qual ele das são constantemente ritualizadas. Ele a instaura, como um evento
está inserido e sobre a qual pretensamente reina. Quando o dominado fundador, num processo em todo análogo a um kerigma tal como teo-
lê essa história a contrapelo – isto é, quando ele consegue construir uma rizado por Paul Ricoeur.43 Projeta um evento dramático que lhe pos-
espécie de contracoerência, quando ele subverte essa história – per- sibilite inscrever um signo do dominador e trabalhar o luto que não
cebe que a imagem de coerência, de consistência, de moral prístina do quer desfazer-se; trava uma luta para tentar eliminar o luto de haver
dominador é, na verdade, um Frankenstein simbólico, ou cultural, na sido dominado, para inscrever o resultado da batalha, lembrar a tragé-
medida em que foi construída com signos articulados através da prá- dia de seus mortos, celebrar os ancestrais que clamam por vingança, ou
tica do terror, da tragédia dos oprimidos e dos seres que o império teve por um lugar decente no quadro dos espíritos, já que não encontraram
que canibalizar. Como o mexicano inepto dos filmes norte-americanos o seu devido descanso e porque o opressor não permitiu que recebes-

40 Ver Taussig (1993).


41 Uma das tantas controvérsias provocadas por Said em Cultura e Imperialismo refere-se a 42 Uso incorporação de um modo não técnico – como uma imagem, primeiramente, porém
sua crítica a Dante, que colocou Maomé no Inferno, invertendo a hierarquia de seu esta- inspirado no conceito psicanalítico de incorporação desenvolvido por Nicolas Abraham
tuto aos olhos dos seguidores da fé muçulmana. Para as réplicas a Said, ver Ahmad (1993) e Maria Torok em seus ensaios magistrais (1986 e 1994).
e Moore-Gilbert (1997). 43 Ver Ricoeur (1974).

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sem as honras fúnebres a eles devidas e adequadas.44 Por isso deve haver muharram é a afirmação por excelência da unidade da sh’ia – luto cultu-
uma troca, um sinal. A escravidão, o colonialismo, o imperialismo, o ral que presentifica e projeta o evento fundador, demarcando o martírio
racismo, o neoliberalismo coercitivo foram e são todos regimes de des- dos vencidos em uma narrativa exclusiva, intransferível e intraduzível
truição. Acredito que essa ideia do luto cultural, aqui apenas esboçada, em termos da perspectiva dos perpetradores do massacre. Todos os
pode ajudar a entender as circunstâncias sob as quais ambos, domina- anos, por mil e trezentos anos seguidos, xiitas de todas as nações do
dor e dominado, incorporam, para si mesmos, seus lugares nos confron- vasto mundo islâmico infringem no seu próprio corpo a dor sofrida por
tos históricos unidos. Husayin, filho de Ali. Sacrifício pleno de significado e de fortalecimento
O luto da experiência da opressão, da dominação, da condição espiritual para todos os pertencentes à fé xiita e incompreensível e ina-
subalterna que recusa a saída (aparentemente mais fácil) do suicídio, cessível para quem não pertence ao partido de Ali. O muharram totaliza,
seja individual e/ou coletivo, instala-se, muitas vezes, não somente na dor, no sangue e no êxtase, toda a história passada e todo o futuro
como memória histórica, mas como luto cultural, isto é, como expressão que passará; história e utopia se presentificam no sofrimento e na sua
simbólica que é ao mesmo tempo trabalho de luto da perda irreparável imediata transcendência.
e inspiração de continuidade da vida coletiva como uma experiência Outro exemplo de luto cultural é o poncho lateral utilizado pelos
humana singular. Kataristas no mundo andino, especialmente na Bolívia e no Equador.
O ritual de muharram, praticado há já 1.300 anos ininterrupta- Todos os que se filiam à linhagem da rebelião liderada por Tupac Katari
mente, comum a toda a vasta região das comunidades e nações xiitas no final do século XVIII expressam, no uso dessa vestimenta singular, a
do Islã, talvez seja o exemplo de luto cultural mais antigo em vigência lembrança do martírio do líder de uma das mais importantes rebeliões
hoje no mundo (obviamente se nos restringirmos às tradições escritas dos aimarás contra o jugo espanhol. Assim como Tupac Amaru havia
da humanidade). sido esquartejado no Peru por liderar uma rebelião contra os espanhóis,
A ashura, rito praticado durante o muharram, celebra (e vivencia) Tupac Katari também foi esquartejado por quatro cavalos por liderar
o martírio de Husayn, assassinado em Kerbala, hoje Iraque, no dia 10 de outra rebelião contra o mesmo poder espanhol, na região que é hoje a
outubro do ano 61 da Hégira (ano 680 do calendário cristão), a mando Bolívia, praticamente na mesma época. O luto cultural fundado na nar-
do Califa de Bagdá. Junto com Hasayn foram assassinados sua mulher, rativa histórica desse martírio expressa magnificamente as contradições
filhos e seguidores, em um total de 72 mortos. Essa tragédia inaugura a insolúveis e a monstruosidade destrutiva e ao mesmo tempo autodes-
segunda linha doutrinal e politica da fé islâmica – a shia, (daí xiita em trutiva do texto do colonialista opressor. O juiz Francisco Tadeu Díez
português), também conhecida como o partido de Ali, pai de Husayn, de Medina, ao condenar Tupac Katari ao esquartejamento, proferiu, em
que também havia sido assassinado na luta pela sucessão do califato 1781, a seguinte sentença: “Nem ao Rei nem ao Estado convém que fique
fundado com a morte de Muhammad. semente ou raça deste ou de todo Tupac Amaru e Tupac Katari, pelo
No muharram, os homens, em um ritual de autoflagelação similar muito ruído e impressão que este maldito nome tem causado nos natu-
ao dos penitentes no mundo cristão, cortam-se com facas, espadas, cor- rais. Porque, do contrário, ficaria um fermento perpétuo”. O que fez o
rentes, em uma extraordinária demonstração de fé e fervor religioso. O juiz, na sentença de morte, foi inscrever a sentença de vida da rebelião
dos Tupacs: “ficaria” foi na verdade uma denegação para “ficará”. Antes
44 Esta é a estratégia sistemática das intervenções políticas de Said ao estimular a narra-
de morrer, Tupac Katari proferiu a frase famosa: “Hoje me matam, mas
tiva popular palestina (Said, 1984). Não menos eficazes têm sido narrativas-testemunho amanhã voltarei e serei milhões.”
dramáticas e articuladas como a autobiografia de Rigoberta Menchu, texto que circulou
o mundo e trouxe solidariedade internacional à causa dos índios da América Central
Muitos rituais que marcam lutos de coletividades admitem uma
(Menchu, 1985). dimensão celebratória que é em geral restritiva, na medida em que ape-

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nas aqueles que se filiam à narrativa histórica da tragédia fundante do Como o luto cultural, o orgulho ferido e oprimido e/ou subal-
grupo ou nação podem participar plenamente do ritual ou exibir os sím- ternizado afirma uma posição de essencialismo estratégico e declara
bolos diacríticos do luto: nenhuma pessoa que não seja xiita pode parti- não querer participar de nenhum tipo de ideologia hibridizadora ou
cipar do muharram; e somente os alinhados com a resistência indígena homogeneizadora que apague a memória da diferença que o grupo
atual que se afirma como Katarista se atrevem a usar o manto lateral em traz e que expressa no luto simbólico das derrotas sofridas quando
memória de Tupac Katari. seus membros lutaram contra as forças de silenciamento identitário
Exemplo de luto cultural da nossa sociedade, desenvolvido nas duas ou de eliminação física.
últimas décadas, são as comemorações do dia 20 de novembro como dia Enquanto a comunidade negra não alcançar a igualdade de poder,
nacional da consciência negra. Neste dia, no ano de 1695, o grande líder cidadania e oportunidades que até hoje lhe foram negadas, o luto pela
Zumbi do quilombo dos Palmares foi assassinado pelas forças escravis- morte de Zumbi faz pleno sentido. Somente a celebração da derrota
tas da colônia portuguesa no Brasil e sua cabeça foi exposta em praça marca o anseio histórico pela superação da condição atual de subalter-
pública na cidade do Recife. A própria marcha e a própria data do 20 de nidade acentuada a partir daquela e de outras derrotas. O luto de Zumbi
novembro conformam uma simbólica de luto cultural, o que não se con- coloca na mira dos subalternos a opressão da elite brasileira que sem-
funde, nem neste, nem nos casos citados, com a simbólica do Memorial pre quis evadir sua responsabilidade diante das injustiças cometidas por
aos mortos eminentes. seus membros, passados e presentes; como o luto de Tupac Katari traz
Os memoriais aos mortos se referem a atos passados, enquanto o um espelho incômodo para a elite branca racista andina, a qual também
luto cultural é uma simbólica presente, atual, de luta e afirmação de dig- evade sua responsabilidade apoiando-se na mesma ideologia assimila-
nidade, podendo ser concebida como uma expressão típica do universo cionista e desmemoriadora da mestiçagem invocada constantemente
dos oprimidos, ou melhor, dos ainda oprimidos. Trata-se de um luto pela elite branca brasileira.
que expõe as derrotas, as rebeliões, as tentativas de libertação do jugo De Zumbi sempre se citam duas frases: “E tu deixaste fazer essa
da opressão para enfatizar o caminho de onde se sai para se trilhar o cerca aos brancos? Amanhã seremos entrados, e mortos, e nossas
caminho almejado. Em nada se parece ao luto dos mártires vitoriosos, mulheres e filhos, cativos.”
celebrados em mausoléus nacionais ou imperiais para selar as conquis- Essa fala do líder de Palmares apareceu pela primeira vez em um
tas, as vitórias de batalhas, as submissões dos grupos subalternos. O luto requerimento de Domingos Jorge Velho, o mercenário paulista con-
cultural expressa a derrota e o martírio da tentativa de libertação. Se o tratado pelos escravistas para matar Zumbi e destruir o complexo das
dia 20 de novembro é o dia da Consciência Negra, é porque é a data do aldeias quilombolas situadas ao redor da Serra da Barriga. Do modo em
assassinato do líder da principal rebelião contra a escravidão no Brasil. que é transcrita, um dos inimigos dos palmarinos chega sorrateiramente
No Memorial Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga, no Muni- tão perto da defesa da fortaleza de Zumbi que é capaz de escutar como
cípio de União dos Palmares, estado de Alagoas, estão enfileirados uma o líder de Palmares ralha com o guarda noturno de um lado da paliçada
série de troncos em pé, todos amarrados com um laço, representando do reduto do Macaco, o mais poderoso dos quilombos do complexo pal-
Zumbi, Ganga Zumba, Dandara, Andalaquituche e outros heróis e marino. Ainda formando parte de um texto redigido pelo inimigo, as
heroínas da resistência de Palmares – como o kwaryp das nações do duas frases atribuídas a Zumbi carregam uma força política enorme e
Xingu, trata-se de um memorial dos mortos. Sua presença é uma entro- precisa. Na primeira, Zumbi inscreve a luta de libertação como uma luta
nização da dignidade e da força da luta dos palmarinos, para além do racial, ou pelo menos racializada: foram os brancos os que atacaram para
resultado de uma comunidade livre de negros, indígenas e brancos destruir a república de Palmares. Na segunda, ele reitera o tempo longo
pobres em pleno regime genocida e escravista. da luta antiescravista: “Amanhã seremos entrados, e mortos, e nossas

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mulheres e filhos cativos.” O amanhã de Zumbi durou 193 anos, lem- vavelmente, apesar de si mesma, incorpora a escravidão. No caso do
brando que a escravidão brasileira se estendeu até 1888. Quanto aos seus dominado, os inúmeros rituais de inversão, os mitos fundacionais, as
descendentes serem submetidos a um cativeiro, é a condição dos negros narrativas orais, enfim, todas as expressões de mimese, teorizadas de
no Brasil pós-escravista, uma vez que o problema humano gerado pela diversos modos por Walter Benjamim, por Homi Bhabha e Michael
escravidão não se resolveu pela simples assinatura da Lei Áurea. Taussig, entre outros, de mímica, semelhança, invariavelmente oferecem
No caso brasileiro, o luto cultural da celebração do 20 de novem- um espelho – ainda que oblíquo, irônico, alegórico, indireto, opaco – da
bro é uma recusa e um confronto aberto ao dia 13 de maio, ritual cele- hierarquia pós-colonial criada pelos países centrais e na qual estamos
bratório nacional instituído desde a primeira metade do século vinte todos inseridos.45
como uma proposta de pacto amnésico entre brancos discriminadores Do lado de baixo do mapa do mundo onde fomos colocados pela
e negros discriminados. Silenciado o martírio da decapitação de Zumbi cartografia colonial, penso que existe uma maneira pela qual pode-
em 1695, a Lei Áurea diz apenas: “É declarada extinta desde a data desta mos estabelecer uma outra frente, recuperando inclusive vários traba-
Lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário.” lhos etnográficos que já foram feitos no Brasil. Nós, como etnógrafos,
A concisão e o laconismo do texto propõem a amnésia e o silêncio somos na verdade parte desse vasto campo da Literatura Comparada.
como pacto de convivência entre brancos e negros apenas um dia após Afinal, contribuímos em não pouca monta para a formação daquilo que
o fim de um modelo de convivência, que havia durado trezentos e cin- Goethe chamava de Weltliteratur, a literatura universal no sentido mais
quenta anos, em que os negros eram escravos dos brancos – escravidão completo, porque podemos introduzir a literatura oral em todas as suas
definida, sem eufemismos, como um regime diário de violência física expressões de balbucio, silêncios, fragmentação, nessa assim chamada
e/ou ameaça de extermínio físico. Se pensarmos na escravidão como grande literatura do mundo. Finalizarei então com dois pequenos frag-
uma obra secular de violência e injustiça, a lei declara o oposto do que mentos de narrativa oral que permitem mostrar que a eminência dos
enuncia: é declarada extinta a escravidão; porém a escravidão, enquanto textos é dada justamente nesse espaço negociado entre o cânon da lín-
perda que gerou luto – ou enquanto luto da perda – não foi extinta. gua e a possibilidade da reação individual ao enunciado, sempre histó-
Como no caso do juiz que decreta a extinção da estirpe dos Tupacs, rico, particular e contingente.
o enunciado da Lei Áurea denega o que afirma: na medida em que a Conheci em 1996 na Universidade da Flórida a agrônoma Noemi
escravidão como obra desumanizadora não se extinguiu, o 13 de maio é Porro, que, ao saber que eu escrevia um livro sobre os quilombos do Rio
o evento de pacto amnésico. Porém, onde há luto, há memória; e onde há das Rãs, contou-me do trabalho de apoio comunitário que realizou junto
memória da escravidão, há luto; daí o 20 de novembro inaugurar um dis- a um assentamento de quebradeiras de coco de babaçu de Olho d’Água
curso para o luto cultural. No luto cultural, a força da resistência vem da dos Grilos de Monte Alegre, no Maranhão. Ela havia anotado a história
memória; e não uma resistência para alcançar a vitória e finalmente cele- dessa comunidade que foi vítima de uma barbaridade tipicamente bra-
brar a capacidade de oprimir: trata-se de resistir, apoiados no luto, para sileira: várias casas de seus habitantes foram queimadas por um grileiro
dar fim ao ciclo de opressão e não para reiniciá-lo com o sinal trocado. numa das tantas tentativas de expulsar as famílias de onde viviam. Ela
então gravou os relatos e depois datilografou as narrativas das mulheres
v. narrando a subalternidade
45 Um grande e perturbador exemplo desse mecanismo de inversão de sentido é o culto de
possessão Hauka de Gana, tal como registrado no extraordinário filme etnográfico de
No caso do dominador, citamos acima o Mansfield Park de Jane Aus- Jean Rouch, Les Maîtres Fous (1954-1955). Rouch inspirou Michael Taussig e Paul Stoller,
ten: a narradora não pode deixar de inscrever o que na verdade é uma que por sua vez inspiraram Judy Rosenthal a interpretar a possessão nesse mesmo sen-
tido. Ver a discussão da inversão Hauka em sua recente etnografia sobre transe entre os
monstruosidade dentro dessa ordem que se pretende perfeita e, pro- Ewé (Rosenthal, 1998).

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contando sua luta: como se atreveram a organizar-se, como desenvol- de dupla-voz da sua narrativa.46 Quanto à subjetivação que se apresenta
veram suas estratégias de confronto com o poder e finalmente como na modernidade, ou na pós-modernidade do capitalismo tardio como
conquistaram o reconhecimento oficial de sua terra. Eis que esse texto, diria, por exemplo, Fredric Jameson,47 que é converter-se num ser de
que se localiza nos anos setenta e fala de uma luta que é conhecida de identidade – no caso, “as negras” – ela prefere manter-se numa posição
muitas comunidades brasileiras, qual seja alcançar o reconhecimento de distanciamento. Ela não desceu; ela ficou no navio. Preferiu posicio-
de suas terras, abre com uma pequena história onde o sujeito narrador nar-se num lugar meta, a partir do qual ela pode ponderar, por exemplo,
– na verdade, uma narradora – fala da avó, que morreu nos anos trinta. sobre a entrada ou não na assim chamada e já cansativa “globalização”:
Os eventos narrados, portanto, devem se reportar aos anos setenta do pois o mercado do coco de babaçu depende da Malásia, competidora
século dezenove. Eis essa extraordinária narrativa: do Brasil em escala global. Ou seja, trata-se de um texto em português
brasileiro que fala do mundo em 1999 ao mesmo tempo que fala de 1970
Minha avó Valeriana contava muita história, muita mesmo. Mas a gente
esquece, porque esquece mesmo. Porque já faz muito tempo. Só a morte e também de 1870. Essa capacidade dos textos subalternos de falarem
dela está com muito tempo, que foi em 36. agora e para todos seria um dos projetos que poderíamos colocar num
Ela contava que era escrava, mas não foi muito judiada não. Ela teve um lugar equivalente ao do terceiro espaço proposto por Homi Bhabha. Via-
senhor, lá em Santa Isabel, que se chamava Raimundo Onório. Ela dizia jar e não ir, ficar e mover-se, deixar-se intimidar e aceitar o desafio, che-
que escravo na fazenda de seu Mundico Onório não sofria por demais
gar perto e resistir, observar e preservar-se, sair sem chegar, experimen-
não: mulher, quando chegava naqueles dias dela ia para o hospital de
cabeça amarrada, ouvido tapado, calçada e tudo. Ficava durante oito dias. tar sem sentir, sofrer sem odiar, tudo e nada nessa história antikafkiana,
Então era ruim, porque era escravo, mas tinha aquela libertação sobre terceira margem do mar.
doença, sobre mania de quem não gosta de trabalhar. Minha avó aturou Podemos aqui – por que não? – sonhar com uma retomada da voz
muito. Morreu de velha, não de judiada. De garota, ela vivia andando, ela subalterna à brasileira e sermos capazes de acrescentar algo próprio aos
era natural de Paraíba. Andou esse tempo todo, para aqui, acolá, para ali.
esforços dos indianos, africanos, árabes e oceânicos, em vez de tentar
Ela contou uma história, contou assim, no rumo.
Foi uma viagem que ela fez, mais esse senhor dela, de um ano de demora reproduzir seu estilo de crítica de um modo mecânico e a-histórico. Por
dentro de um navio: seis meses para ir e seis meses para voltar. Ela nunca exemplo, Gayatri Spivak tem optado por tecer uma rede discursiva que
soube dizer qual era a cidade, nessa cidade não existia preto de jeito desafia o leitor e impede que ele ache uma saída fácil para a “contradição
nenhum. Os pretos que tinham eram ela e o irmão dela, agora ela mesma construtiva” do subalterno que não pode chegar a falar, assim provo-
não saiu da embarcação. Só o irmão saiu para amostra. E ele ganhou mui-
cando uma situação de incômodo perene. Já o texto da quebradeira de
tos prêmios por ser ‘preto, de cabelo pixaim.
coco de babaçu utiliza uma estratégia inversa, de impor-se a partir de
Considero essa pequena história particularmente admirável por- sua inesperada suavidade, sua positividade, sua leveza, seu tom terna-
que permite ao sujeito uma capacidade de se representar e de devolver mente revelador da condição feminina de carência de cidadania. Vale-
a compreensão de um mundo maior que aquele em que lhe foi dado riana encontra o respeito pela maternidade como sendo o signo positivo
mover-se e também por ousar negar-se a uma ressubjetivação que lhe pelo qual sua narrativa cumpre o papel ritual de ultrapassar o eterno
vem sendo imposta. A narradora não foraclusa o seu passado de escra- retorno do luto: não chora o horror; pelo contrário, sustenta um fecho
vidão – fala da avó enquanto escrava ao mesmo tempo que esclarece que discursivo capaz de transcendê-lo. O hiato da não chegada, a interrup-
ela morreu de velha e não de doença. Enfrenta, então, a escravidão e se ção do fluxo da viagem, postergam as dores prescritas para as situações
coloca agora num lugar no qual pode se situar como sujeito nos anos
noventa do século vinte que conta a história da avó. E qualquer um de 46 Para a teoria da dupla-voz, ver Bakhtin (1984).
nós pode igualmente se colar nesse lugar de sujeito, dado o potencial 47 Ver Jameson (1991).

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de escrava ou de excluída – não há por que lamentar-se quando não se vi. traduzindo a voz subalterna
é vítima passiva das circunstâncias. Nesse sentido, é um texto em tudo
distante do formato discutido pelos teóricos indianos acima citados. E Há ainda um último texto, que é na verdade um pretexto, um subtexto,
especialmente emblemático para um discurso crítico sobre a mulher um motivo, uma evocação de um ato que marcou a vida da comunidade
oprimida do Terceiro Mundo. (e em alguma escala, marcou também minha vida após conhecê-lo), o
Afinal, Gayatri Spivak acaba de afirmar que “o caso típico do infor- qual foi não apenas narrado por uma mulher, porém serviu também
mante nativo que é hoje foraclusado [no discurso hegemônico compe- para inscrever uma sensibilidade que podemos qualificar de feminina a
tente do Ocidente] é a mulher mais pobre do hemisfério Sul” (spivak, esse movimento social. No momento da queima de todas as casas, exe-
1999, p. 6). Ao superar o luto cultural, horizonte que baliza a maioria cutada pelo oficial de justiça, veio a juíza de Monte Alegre a exigir que
dos textos subalternos, sem tingi-lo com o clima do ressentimento ou as mulheres abandonassem o povoado destruído. Aí, uma das mulheres
do ódio, as quebradeiras de coco de babaçu constroem um documento se aproximou da juíza e lhe deu um coque na cabeça, um golpe leve, de
de cultura que consegue não ser mais um documento de barbárie, para punho fechado. Isso foi feito para acordá-la da injustiça que ela estava
seguir com a imagem pungente de Benjamin. Enfim, caso exista uma contribuindo para perpetuar. A quebradeira de coco cobrou da juíza
ordem de valores humana e espiritualmente emancipada, que deveras que tivesse mais simpatia pelas mulheres: ela, uma mulher que também
transcenda a colonialidade e a subalternidade, é possível imaginá-la pariu, deveria entender o sofrimento daquelas mulheres pobres e injus-
com o tom da fala de Valeriana: o trauma histórico se apresenta, as tem- tiçadas. A juíza então chorou ao receber o coque e mudou: instantanea-
poralidades são ativadas e o presente é afirmado com os mesmos signos mente determinou que medidas fossem tomadas para cessar as hosti-
que no passado opressivo foram negados. lidades contra a comunidade e afastou do horizonte qualquer ameaça
O texto de Valeriana é mítico e histórico simultaneamente; ele se de despejo e de legalização da grilagem. No final da luta, Olho D’água
passa no plano que chamo de mit(h)istórico, uma imaginação exercitada dos Grilos alcançou o estatuto, há tanto sonhado por seus habitantes, de
em forma de canto ou de narrativa – uma poética, enfim – que funda um reserva extrativista.
novo mito. Algo parecido com aquilo que Walter Benjamin chamou de Pode-se perguntar qual é o estatuto literário dessa série arbitrária
Gedichtete – literalmente, aquilo que foi formado poeticamente. Benja- de relatos passados a máquina e agrupados por um grampo. Embrião de
min acunhou esse conceito no seu ensaio sobre dois poemas de Hölder- livro? Pelo menos devemos reuni-los e divulgá-los como comentários
lin (Benjamin, 1996). Uma criativa exegese desse termo, colocada como apócrifos. A soma deles proporá a sabedoria de nossas comunidades e
uma proposta da crítica cultural, foi formulada por Michael Jennings talvez façamos de seu conjunto uma espécie de Talmud Babilônico, de
no seu Dialectical Images: “Gedichtete as that sphere which serves as the Torá alternativa; ou como se fosse uma nova série de hadiths, recen-
transcendental source of meaning and cohesion for the world. The goal temente compilados e que comentam mais uma vez a história sagrada
of criticism – as well as that of poetry – is the mimesis or representation do Profeta; ou mesmo, um novo conjunto de apócrifos sobre a história
of this sphere, its reconstruction out of fragments of literary texts” (Jen- de Jesus. Uma peça polifônica aberta e que se constrói no hiato entre o
nings, 1987, p. 190).
silêncio e a ação que visa libertar o sujeito de sua condição subalterna. E
Nessa poética de luto e perda de realização, a avó e a neta estão na medida em que privilegia esses umbrais, em vários planos – histórico,
falando agora. E como ocorre na maioria dos casos, o sujeito heroico, individual, natural, político – torna-se surpreendentemente próxima do
vitorioso, que reproduz o discurso dominante, deixa coisas de fora, sem- ideal contemporâneo da ficção do espaço intermediário, tal como teori-
pre silencia algo. zada por Claudia Egerer.48
48 Ver Claudia Egerer (1997).

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Conforme dito, a estratégia mais comum da crítica cultural pro- (Unheimliche).50 Enraizada, é o desenraizamento que a enraíza e a faz
posta pelos pesquisadores de Literatura Comparada tem sido a de suge- criar raízes que falam por ela, que contam sua história, como o fez sua
rir releituras de obras escritas já canônicas, consagradas ou silenciadas neta que agora ouvimos.
por algum motivo ideológico ou político. Minha proposta comple- Todos os três autores que discuti estimulam-nos, pelo menos impli-
mentar para nós, etnógrafos, é de que ouçamos e tentemos inscrever as citamente – caso seu pensamento seja capaz de influenciar-nos – que
vozes ainda não inscritas no cânone. No caso desses relatos, eles exer- nós, etnógrafos, devolvamos para o mundo mais amplo textos que se
citam inteiramente a propriedade mais instigante de quantas Mikhail posicionam com a radicalidade cognitiva que eles procuram identificar
Bakhtin conseguiu identificar em sua análise da textualidade humana: nos sujeitos heterodoxos da sociedade ocidental. Homi Bhabha releva
a inacababilidade.49 Não foram terminados quando contados no mato Toni Morrison, Derek Walcott, Nadine Gordimer – três prêmios Nobel
entre as mulheres, não se fecharam quando datilografados por Noemi da periferia do mundo inglês – e Salman Rushdie, centro de uma das
Porro e não se fecham aqui, quando os transcrevo em meio a uma dis- maiores controvérsias político-literárias do mundo contemporâneo.
cussão teórica. Edward Said recupera, entre outros, Jean Genet e o historiador Basil
Há ainda outra associação um tanto original que pode ser feita aqui. Davidson. Está claro que não necessitam conceder prestígio a seus nar-
A narrativa de Valeriana toca também a experiência do Unheimliche, radores. Gayatri Spivak utiliza seu prestígio para colocar no “mapa ima-
do estranho, do insólito, do não familiar. Toca, primeiro, o Unheimli- ginário” da assim chamada “alta literatura” a até então desconhecida no
che no seu sentido freudiano, dado o insólito ato de estar em casa num Ocidente Mahasweta Devi. Há um paralelismo, então, nesse esforço por
barco estranho. Logo, fala do Unheimliche no sentido mais literal em que expandir infinitamente o âmbito da diferença na Weltliteratur.51 Pode-
hoje se discute a condição desterritorializada dos exilados, migrantes, mos usar os mesmos recursos que já usamos como etnógrafos, porém,
trabalhadores sazonais, assunto caro a autores tão diversos como Homi espera-se, com uma consciência maior dessas possibilidades de politizar
Bhabha, Arjun Appadurai e Néstor Canclini. E em terceiro lugar ela toca o espaço discursivo que se abre constantemente a cada vez que nos atre-
o Unheimliche no sentido extremamente criativo que lhe confere Mar- vemos a intervir como sujeitos na cadeia representacional ativada por
tin Heidegger nas suas notas do curso que proferiu sobre o poema O grupos subalternos, para reabri-la antes que se congele, seja na forma de
Ister, de Hölderlin, em 1942. Ela chega ao limiar do estranho e, estranha- cultura incorporada e confinada ao nosso grupo exclusivo de pertença,
mente, não o vive; ou melhor, vive o estranho como uma experiência do seja pela rotina de seu uso como emblema estereotipado (quando não
familiar: não se abala, pois, com o que irrompe seu horizonte de conhe- reificado) de identidade étnica, comunitária, racial, de gênero, etc.
cimento. Inverte, assim, a posição que Heidegger atribui a Hölderlin, de
ver como estranho para si o que era familiar para os gregos. De repente,
Valeriana mostra que não é necessário descender das tradições linguís-
ticas grega e alemã para expressar esse desenraizamento constitutivo 50 Heidegger, Hölderlin’s Hymn ‘The Ister’, pág. 125. Eis o texto de Heidegger na tradução
de William McNeill e Julia Davis: “...the historicality of any human kind resides in being
da experiência histórica humana. Eis como o comentário de Heidegger homely, and... being homely is a becoming homely in being unhomely”.
parece de repente apto e próximo da sua narrativa: “a historicalidade 51 Como o diz Homi Bhabha, “The study of world literature might be the study of the way
de toda humanidade reside em ser enraizado (Heimliche), e ser enrai- in which cultures recognize themselves through their projections of “otherness”. Where
the transmission of “national” traditions was once the major theme of a world literature,
zado (Heimliche), é sentir-se em casa (Heimliche) ao ser desenraizado perhaps we can now suggest that transnational histories of migrants, the colonized, or
political refugees – these borders and frontier conditions – may be the terrains of World
Literature” (1992, p. 146). Faço minhas as palavras de Bhabha, com a ressalva de que não
é necessário pensar apenas no espaço transnacional: em nossos países, o silenciamento
49 Ver Bakhtin (1984). Para uma exegese desse conceito, ver Gary Morson (1990). sistemático de vozes é exercitado constantemente no interior do espaço da nação.

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E quanto à Weltliteratur, baseia-se na tradução cultural, no sen- primeiro de tudo, no próprio etnógrafo: ele deve deixar-se impactar por
tido que lhe dá Walter Benjamin,52 atividade familiar a nós, etnógrafos. um discurso que se apresenta como estranho, distante, inacabado, ina-
Trata-se de produzir gramáticas que possam ser utilizadas num cami- dequado... porém desenraizado, pária, desimpedido, aberto à alteridade,
nho emancipatório das comunidades postas à margem dos recursos do com uma vocação irredutivelmente universalizante – livre para expres-
estado ao qual estão legalmente atadas. Quando se discute hibridismo, sar a todos, enfim.55
não essencialismo, terceiro espaço, descolonização etc., tudo pressupõe Assim, a mulher deu um coque na cabeça da juíza: tocou no juízo da
uma dimensão terapêutica da palavra argumentativa que incentive a juíza, mandou a juíza tomar juízo. Em vez da arma de fogo, usada pelos
autoestima.53 O processo de atribuir significado a um significante qual- homens para eliminar homens e mulheres e não para transformá-los em
quer implica sempre um grau de alienação, no sentido de afastamento, seres humanos melhores, a quebradeira de coco abriu o coco da mulher
distanciamento, descarte, recusa de uma parcela de seu potencial signi- poderosa sem quebrá-lo. Como o toque do polegar do mestre zen na
ficativo. É por isso que o expressivo extravasa o significado e a tradução cabeça do discípulo, que tanto fascinou a Victor Turner quando descre-
cultural se impõe no interior mesmo da tradição nativa ao enfrentar-se veu o toque do mestre de cerimônia do Chihamba na cabeça dos neófitos
com a tradição discursiva dominante. É nessa área do expressivo que o Ndembu, houve ali uma abertura do terceiro olho, uma passagem a um
texto cultural é mais poderoso e mais necessariamente polissêmico, de plano superior da humanidade, que é o exercício da fraternidade, da soli-
modo que o sujeito subalterno pode apropriar-se dele com maior criati- dariedade e da justiça. Foi esse o coque que recebi ao entrar em contato
vidade e força de persuasão. Mircea Eliade menciona, em um de ensaios com esses relatos. Dou um coque em vocês que me escutam.
sobre o sagrado, as raras situações em que uma narrativa visionária pode
cumprir as funções de transcendência mais comumente associadas às epílogo
ações rituais concretas. É assim que interpreta o belo estudo de Henry
Corbin sobre a narrativa visionária de Avicena, com a qual a narrativa Para colocar de novo em circulação o presente ensaio redigido em 1999,
das mulheres quebradeiras de coco pode chegar a dialogar na inusitada submeti-o a uma revisão radical, quando comparado com as versões
dimensão do mundus imaginalis.54 (diferentes entre si) publicadas no Brasil e na Colômbia. Em nome da
É claro que a tradição das narrativas orais possui um caráter frag- fluidez e da síntese, retirei uma seção completa. Como minha intenção
mentário – essa é sua condição mais comum de apresentação. Porém são foi de reapresentá-lo como um ensaio válido hoje, para além inclusive
justamente esses fragmentos que falam da condição de subjetividade, do viés mais disciplinar que teve de início (foi preparado para uma reu-
que inscrevem as relações hierárquicas de poder que configuram nossa nião de antropólogos), acrescentei uma seção nova onde desenvolvo
realidade. Aqui nossa estratégia é parcialmente inversa da estratégia a teoria do luto cultural, conceito que eu havia introduzido e definido
pós-colonial: não a de revisar o quadro de significação (sempre caótico) muito brevemente, dado o tamanho já quase excessivo do ensaio ori-
das obras literárias já de prestígio consagrado dos países centrais, mas ginal. O termo chamou a atenção de Igor Nunes Costa, mestrando da
inscrever as obras (conjuntos de fragmentos) anônimas de nossas popu- Universidade Federal do Espírito Santo, que me escreveu em junho de
lações. E o ato de inscrevê-las não deve ser entendido como um ato neu- 2011 solicitando mais detalhes sobre essa teoria. Sou grato a Igor, pois
tro, puramente acadêmico. O efeito das narrativas deve fazer-se sentir, seu interesse me estimulou a apresentar agora, com mais fôlego, a teoria
do luto cultural que complementa o argumento central do ensaio.
52 Ver The Task of the Translator, de Walter Benjamin (1969).
53 Ver Eliade (1969) e Henry Corbin (1979). 55 Aqui, talvez, finalmente o niilismo radical de Steve Tyler, que não vê muito mais que um
54 Em outro ensaio desenvolvo com mais detalhe as estratégias conceituais de identificação poder terapêutico no esforço etnográfico, encontre sua dimensão política de positividade
e de projeção do etnógrafo em face das narrativas subalternas (Carvalho, 1999). para além das críticas da “inutilidade” de seu “pós-modernismo” radical (Tyler, 1986).

92 93
Outra observação importante é que este ensaio apareceu inicial- ______. Sobre o conceito da História. In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica,
mente como um divisor de águas, pois foi escrito imediatamente antes Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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na Universidade de Brasília. Com a proposta de cotas, acredito que foi
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aberto um novo capítulo do nosso posicionamento diante da estrutura
excludente e colonizada das nossas universidades e passamos a cons- ______. The Location of Culture. Londres: Routledge, 1994.
truir uma postura mais autônoma diante do debate acerca da teoria pós- ______. Culture’s In-Between. In: Hall, Stuart; Gay, Paul du (orgs.), Questions
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alcançaram voz no mundo étnica e racialmente excludente e profunda-
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A problemática inter-racial na literatura tes regiões, nações e culturas americanas, é certo que todo o continente
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brasileira: novas possibilidades interpretativas O levantamento de materiais textuais da contemporaneidade,
à luz da crítica pós-colonial assim como daqueles distanciados no tempo, abordados com os recur-
sos interpretativos de que atualmente dispomos, exibe os dispositivos de
Heloisa Toller Gomes saber-poder em seu funcionamento conjunto e inseparável na dramá-
tica história do colonialismo europeu nas Américas, e podem bem ser
entendidos através da “história do pensamento” elaborada por Michel
Foucault.
Segundo Foucault, as “relações de poder” são modos complexos
de ação sobre a ação de outros, num agenciamento em que se cruzam
práticas, saberes e instituições. Em algum suposto lugar onde o saber
e a ciência existissem “dans leur vérité pure”, ele afirma provocativa-
mente em La Vérité et les formes juridiques, não haveria poder político.
Na trilha de Nietzsche, Foucault busca desmistificar a noção (cara ao
pensamento ocidental, desde Platão) da antinomia entre saber e poder
(Revel, 2008, p. 108).
A diferença colonial cria condições para situações dialógicas nas Foucault analisa como, em cada época, o poder político se entre-
quais se encena, do ponto de vista subalterno, uma enunciação meia ao saber e dá lugar a “efeitos de verdade”; e, inversamente, ele exa-
fraturada, como reação ao discurso e à perspectiva hegemônica.
mina a maneira como os jogos de verdade fazem de uma prática, ou de
Walter Mignolo1
um discurso, um arriscado jogo de poder. A história do pensamento
proposta por Foucault – distinta da história das ideias e das mentali-
O entendimento de mecanismos políticos, ideológicos e socioeconô- dades – examina a maneira específica como, em uma época dada, se
micos da colonialidade ilumina a compreensão de grande parte dos produz um certo tipo de resposta a um certo tipo de problema. Interes-
impasses e percalços da sociedade atual neste início de século XXI. Ao sando-se pelas estratégias desenvolvidas e pelos modos de problemati-
privilegiar as manifestações culturais brasileiras tendo como parâme- zação engendrados, a investigação foucauldiana atenta sempre para as
tro de análise o instrumental da crítica pós-colonial, procuramos captar formas historicamente singulares que o saber-poder (conceito criado
traços e nuances do processo de colonialismo europeu no Brasil (sem- por Foucault) assume, configurando-se no tempo (Dekens, 2004, p. 24).
pre discursivamente dados), com muito de sua herança ainda presente, A teorização de Foucault atende a nosso presente propósito que é
especialmente no que diz respeito à questão das relações inter-raciais. dimensionar, através de mostras do discurso literário (com ênfase, mas
O colonialismo e o pós-colonialismo são aqui vistos como partes de não exclusividade, na expressão afro-brasileira), a questão das relações
um mesmo organismo, como as duas pontas de um processo. Embora inter-raciais no Brasil em contraponto ao verificado em outras nações
haja, decerto, semelhanças e diversidades que unem ou que distinguem americanas, tendo sempre em mente a sua imbricação na sociedade
as expressões discursivas em suas manifestações culturais nas diferen- colonial e pós-colonial.2 Ao se impor nas sociedades americanas, o
2 Este texto é parte da pesquisa que atualmente desenvolvo no Pós-Doutorado do Pro-
grama Avançado de Cultura Contemporânea – PACC-UFRJ, com o título Uma Cartografia
1 Walter Mignolo (2003, p. 11). da Pós-Colonialidade: O caso afro-brasileiro em perspectiva.

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saber-poder da colonialidade moldou as formas como estas se pensa- Trata-se de uma teorização que utiliza suportes interdisciplinares
ram, e ao mundo, condicionando em grande parte não só aquilo que em sua operacionalização e que requer uma visão comparatista com
foram, e fomos, como aquilo que nos tornamos após a colonização, com um sólido embasamento histórico dos fenômenos socioculturais inves-
seus sistemas e projetos. tigados. O desenvolvimento dos estudos pós-coloniais demanda um
A reflexão pós-colonial remete incessantemente ao eixo passa- conhecimento do colonialismo em seus diversos rostos, etapas, modos
do-presente já em sua denominação – “pós-colonial”. A dialética pas- de funcionamento. Uma das críticas a fazer a essa relativamente recente
sado-presente na formação social brasileira, atuando em relação ao disciplina acadêmica e pesquisas correlatas, da forma como têm sido
sistema colonial e seus sucedâneos, é, assim, o grande movimento pen- empreendidas nas últimas décadas é, por vezes, a análise de um “pós”
dular que nos serve de eixo. A conjunção com o passado desenha o uni- fenômeno sem que se conheça o fenômeno sem si, em seus desdobra-
verso do saber-poder entrecortado pela presença insidiosa, mal conhe- mentos através dos tempos.
cida, daquele visto pelas camadas hegemônicas como o “outro”, o “não Por exemplo: ao se falar em colonialismo europeu, há que distinguir
branco”, o não europeizado – que hoje, e cada vez mais, insiste em fazer a sua fase inicial, correspondente à expansão europeia através do Atlân-
ouvir a sua voz. tico e em todo o mundo, e cujo vigor findou-se com a sucessiva inde-
Com a sua abrangente teorização, a crítica pós-colonial apresenta- pendência das antigas colônias americanas; e o colonialismo moderno,
se na academia internacional como um conjunto de estratégias interpre- ou tardio, que teve o seu apogeu entre o último quartel do século XIX e
tativas voltadas para a totalidade de práticas culturais, em sua rica diver- o fim da segunda guerra mundial – a independência da Índia em 1947,
sidade, que emanaram das sociedades antes colonizadas, hoje egressas seguida, nas décadas seguintes, pela das colônias africanas é emblemá-
da colonização que vigorou desde o seu momento inicial, ou seja, no tica de seu ocaso. O feito internacional mais notável desse colonialismo
alvorecer da modernidade. Historicamente localizada, a crítica pós- tardio foi a “partilha da África”, posta em ação pelas nações europeias
colonial problematiza o processo histórico da colonização empreendida presentes à Conferência de Berlim (1884-85) (Wesseling, 1991, p. 220-
pela Europa nos demais continentes e efetua a leitura de textos colo- 232). Ademais, a par do mapeamento cronológico, é crucial entender
nialistas de diversas ordens – literários, científicos, filosóficos, políticos, que, embora se possa falar de “colonialidade” em seus traços básicos,
jurídicos, jornalísticos, de cunho religioso – neles desconstruindo as houve diversos colonialismos com disputas e hierarquias entre os impé-
representações europeias a respeito dos nativos e a consequente fabri- rios envolvidos, e não um colonialismo homogêneo.
cação do sujeito colonial. As singularidades da colonização portuguesa (e em particular da
Os estudos pós-coloniais releem a produção cultural ideologica- luso-brasileira) diante dos demais sistemas coloniais já foram aponta-
mente comprometida com o aparato colonial ao passo que investigam, das pela historiografia clássica e por estudiosos contemporâneos, como
também e principalmente, as vozes discordantes e os caminhos desvian- Boaventura de Sousa Santos (Santos, 2004, p. 10-73). Tais especificida-
tes advindos, em sua maior parte, dos povos subjugados no processo da des derivam, em grande parte, da nossa configuração populacional e do
colonização. Assim, voltam-se para a produção de discursos que expres- colonialismo que nos regeu durante séculos – atrelado, em largos perío-
sam, ostensiva ou camufladamente, projetos de resistência do coloni- dos, ao colonialismo dominante, o britânico – e que acionou modelos
zado e suas estratégias de revide na luta pela autonomia. Sua produção socioeconômicos e delineações identitárias, raciais, étnicas e compor-
crítica avalia, enfim, o impacto da colonização nas antigas colônias e os tamentais. A sua compreensão atualizada, visando ao entendimento da
mecanismos atuantes nos confrontos coloniais e pós-coloniais, vindo a formação sociocultural brasileira, se impõe – não isoladamente, mas
constituir um contradiscurso em relação a interpretações culturais hie- estimulando visões comparatistas em relação a outras sociedades tam-
rarquizadas que tenham como parâmetro a civilização ocidental. bém atravessadas pelo saber-poder da colonialidade.

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Hoje, a crítica pós-colonial se volta com vigor para a questão da o imaginário literário e a questão das relações
exclusão racial resultante da colonialidade e suas sequelas. Volta-se inter-raciais: tensões brasileiras
igualmente com olhos novos para os cânones culturais estabelecidos, Garoa do meu São Paulo,
fixados e consagrados por um passado em que pouco, ou nada, escapava – Timbre triste de martírios –
do círculo etnocêntrico nas jovens nações americanas com um passado Um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,
colonial de códigos raciais mais ou menos estratificados, mas sempre Passa e torna a ficar branco.
determinantes de comportamentos de dominação e sujeição.
mário de andrade3
A cada dia aumentam as perspectivas críticas através das quais todo
esse imaginário plural, com as suas imposições e rebeldias, negociações
Discuto, a seguir, mostras discursivas de procedências diversas, em cujo
e conflitos, se oferece à investigação. Neste sentido, os Estudos Pós-
desenrolar se destaca a questão do imaginário racial conforme exposto
Coloniais, uma das vertentes mais politizadas dos modernos Estudos
com maior clareza ou opacidade, diretamente ou de viés, pela arte lite-
Culturais, constituem uma área de interesse crescente no mundo acadê-
rária. O traço que pretendo realçar é o das fricções internas as quais,
mico nacional e internacional.
sempre com grande densidade, atravessam a literatura em pauta.
A teoria pós-colonial, além de enfocar a produção cultural ideo-
Não enveredo pelas distinções entre as respectivas diferenças ideo-
logicamente comprometida com o aparato colonial e a elaboração de
lógicas da colonização latino-católica e anglo-saxã-protestante com os
contradiscursos, permite e solicita a sua própria e sucessiva reformula-
seus mecanismos históricos, éticos e comportamentais – o que tentei
ção. Constituindo ela própria um contradiscurso, como já se disse, esta fazer em outras ocasiões (Gomes, 2009). Busco, agora, sempre através
crítica tece um discurso que se propõe “perturbar a ordem dos símbolos de extratos literários, examinar especificidades no tratamento da ques-
culturais, traumatizar a tradição” (Bhabha, 2011, p. 35). E que pretende tão das relações inter-raciais e no imaginário que ali emerge, ocasional-
a “desestabilização das perspectivas binárias sobre a qual se construíra mente em contraste a mostras textuais norte-americanas. Esse imaginá-
a retórica colonialista”, lembra Eduardo Coutinho, “bem como toda rio, no corpus da literatura brasileira, é cruzado por tensões singulares a
aquela que porta em seu bojo uma relação de hierarquização ou subor- apontar no que se segue.
dinação entre os termos” (Coutinho, 2011, p. 8-9). Nos textos brasileiros despontam traços marcantes daquela socie-
Todas as disciplinas do cânone ocidental, da antropologia à carto- dade fermentada, como aliás todo o continente, no sistema imperial/
grafia, foram afetadas pelo paradigma colonial e, portanto, precisam ser colonial europeu. Em seu passado de colônias, este vasto “Novo Mundo”
descolonizadas (Groden, 2005, p.758). Para tanto, cumpre examinar a se organizou, em sua vultosa maior parte, como um conjunto de socie-
contribuição de autores não necessariamente nossos contemporâneos, dades de monocultura agrária, sustentadas pela mão de obra escrava.
não necessariamente investidos em investigações sobre a questão do Nossos modernistas se mostraram frequentemente explícitos sobre
colonialismo e seu “pós”, mas que a expressam, e cuja produção discur- a escravidão e a pluralidade racial. Em Martim Cererê, livro-poema
siva propicia leituras renovadas da sociedade no mundo afetadas pela de 1928, Cassiano Ricardo se refere àqueles que chegaram “no Navio
colonialidade. Nestas regiões se encetaram diferenciadas expressões do Negreiro./ Carvão destinado à oficina das raças” (Ricardo, 1974, p.
imaginário diante das relações inter-raciais que podem emergir, através 43). Seu contemporâneo Jorge de Lima, por sua vez, em “Serra da Bar-
das lentes dos estudos pós-coloniais, em combinações inéditas e articu- riga”, deixa patente o temor branco diante da potencial rebeldia escrava:
lações insuspeitadas.
3 Mário de Andrade, Lira Paulistana. In: MELLO e SOUZA, Gilda de (seleção). Mário de
Andrade – melhores poemas. São Paulo: Global Editora, 1988, p. 147.

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“Serra da Barriga!/ Te vejo da casa em que nasci./ Que medo danado de Como se sabe, a produção cultural afrodescendente foi desdenhada
negro fujão!”, ao passo que incorpora, no mesmo poema, um abundante em todo o mundo ocidental durante a maior parte da modernidade.
vocabulário afro-brasileiro (Lima, 1997, p. 13). Apenas na primeira metade do século XX despontaram a Harlem Renais-
Nenhum desses poetas, contudo, atingiu a dramaticidade de sance em Nova Iorque, na década de 20, e a Négritude afro-franco-cari-
Oswald de Andrade, em “Poemas da Colonização” – série poética que benha, a partir dos anos 30. Tanto o fenômeno cultural novaiorquino
traça, em fragmentos duros e estanques, um panorama abrangente da quanto a Négritude foram impulsos coletivos que despertaram o inte-
vida e das relações humanas na escravidão. No fragmento “a roça”, que resse da intelectualidade americana e europeia para as artes e culturas
se segue, lê-se: de origem africana e para a força de sua expressão. Nos Estados Uni-
dos da década de 1960, o vigoroso Black Power privilegiaria a assertivi-
Os cem negros da fazenda dade política contestatória numa cultura afro-americana pujante em seu
comiam feijão e angu
alcance nacional e já internacionalmente renomada.
Abóbora chicória e cambuquira
Pegavam uma roda de carro Cabe também citar, basicamente desde os anos 20 do século pas-
Nos braços (a roça) sado, o Movimento Negro de São Paulo, de impacto cultural decerto
limitado na ocasião: os poetas e romancistas assumidamente negros,
Compondo um painel da crueldade na colonização escravista, propondo-se elaborar uma literatura negra, foram em geral ignorados
Oswald destina um momento específico ao universo feminino: pelo florescente modernismo paulista. O Movimento foi cerceado e
A escrava pegou a filhinha nascida neutralizado em suas aspirações pelo Estado Novo de Getúlio Vargas
Nas costas (1937-1945).
E se atirou no Paraíba Observe-se ainda que, sobretudo nas décadas de 1930 e 1940, “par-
Para que a criança não fosse judiada (medo da senhora) cela significativa da intelligentzia brasileira abraça o eugenismo então
(Andrade, 1972, p. 32)
revigorado pelo discurso nazifascista, que sobrevive mesmo após o fim
A literatura brasileira falou, sim, do negro escravizado – porém da guerra e a ampla divulgação do holocausto” (Duarte, 2011, p. 20-21).
Para complicar ainda mais a conjuntura da época diante da questão
foi custoso abrir-se nela um espaço para o negro enquanto sujeito de
racial, mesmo no seio do próprio Movimento Negro houve divergências
seu próprio discurso, e não através de construções fora do círculo da
e resistências à ênfase no literário em particular, no cultural em geral,
exclusão. Isto nos leva a Solano Trindade (1908-74), um dos aguerridos
sob o alegado risco de despolitização das prementes reivindicações polí-
iniciadores do cânone literário afro-brasileiro, que assim se manifestou
ticas da população anteriormente escravizada.
a respeito:
Lino Guedes, por exemplo, situa-se entre aqueles intelectuais negros
Pode o negro falar? Expressar seu ser e existir negros em prosa ou verso? que, principalmente depois de 1924, se voltaram apaixonadamente para
Publicar? Nem sempre. Sobretudo no passado: falar de sua condição de a problemática da cidadania do negro e do mulato. Além de poeta,
escravizado, ou de homem livre na ordem escravocrata, levantar sua voz Guedes foi jornalista de prestígio e durante muitos anos trabalhou na
contra a barbárie do cativeiro; ou, já no século XX, enquanto sujeito dolo-
rosamente integrado ao regime do trabalho assalariado; ou excluído e sub-
imprensa negra, nos jornais Getulino e Maligno. A par disso, chefiou o
metido às amarras do preconceito, com suas mordaças. Apesar de tudo, Departamento de Revisão do Diário de São Paulo sendo ainda redator
muitos falaram, escreveram, publicaram. E não só no Brasil; não só nos da Agência Noticiosa Sul-Americana e membro da Sociedade Paulista
países que receberam corpos prisioneiros e mentes tomadas de razão e de Escritores, mais tarde União Brasileira de Escritores. Mas a sua parti-
sentimentos. (Trindade, 2011, p. 14) cipação no Movimento Negro foi descontínua e controvertida, gerando

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desavenças e levantando críticas internas. Ele se manteve ambivalente do negro ou discutir a mestiçagem cultural, vamos observar a tensão
diante da questão da identidade cultural negra, desde sempre marcante inerente a tais embates. Explícita ou não, essa tensão se dá a perceber
em outras formas culturais afro-brasileiras mas ainda pouco enfatizada nas malhas discursivas em que se tece o corpus literário brasileiro. E
na incipiente poesia negra de então, onde Guedes se destacou. que diz respeito ao jogo de forças em que se defrontaram saberes hege-
Os conflitos e contradições na carreira e nos poemas de Lino Gue- mônicos, subalternos e liminares, e manifestações culturais dos mais
des exibem a tensão que atravessou a sua escrita poética e que torna diversos extratos étnicos e sociais, desde o passado escravista colonial
possível problematizar a sua literatura além dos estereótipos que ele e monárquico a formas atuais de inclusão/exclusão socioeconômica.
próprio, por vezes, endossou. Entre anseios de justiça social, afirmação A tensão, sempre latente, gerou estratégias de exposição, negociação
apaixonada da dignidade ultrajada de todo um povo e uma ideologia ou ocultação que resultaram em formas próprias de positividade. Há,
racial ainda atada aos modelos e padrões propostos pela sociedade ainda, intrigantes e eloquentes silêncios igualmente “carregados”, que
abrangente, Guedes foi figura de transição entre o conservadorismo e cabe à leitura desvelar.
a modernidade. Carregou em si as marcas do passado de escravismo É importante frisar que aquilo que podemos chamar de estado ten-
ainda próximo, voltando-se, certas vezes com esperança, outras com sionado não é conjuntural, porém emerge a partir da própria configu-
desalento, para o futuro do novo século e para as possibilidades que os ração discursiva, tanto no cânone tradicional quanto nos alternativos.
tempos vindouros reservariam para a comunidade negra. Sua poesia se Sugiro que essa tensão permanente tem atravessado singularmente o
pretendia individual e coletiva, reminiscente do passado e analítica do texto literário brasileiro através dos tempos. E que ela talvez resulte do
presente, perscrutadora de formas literárias do cânone literário oficial; e reconhecimento a priori e inevitável, por parte dos autores nacionais,
também espontânea, marcada pela oralidade inerente à expressão cultu- da pluralidade racial e étnica que caracteriza, mistura, problematiza, a
ral herdada de África e transmitida pelo povo negro. É dessa confluência formação populacional brasileira e, consequentemente, torna extrema-
de objetivos, nem sempre harmônica, que brota a riqueza de sua con- mente complexas as definições identitárias.
tribuição poética. Na inevitável tensão que dali emerge reside, hoje, o Ao se tratar literariamente a questão racial brasileira, muitas vezes
interesse de sua leitura. se naturaliza (ou se idealiza) aquilo que a realidade social e histórica
A tensão apontada acima através de alguns exemplos extraídos desmente, em sua dura face de desigualdades e exclusões. O resultado,
do modernismo oficial (Cassiano Ricardo, Jorge de Lima, Oswald de na elaboração e produção literárias, é a tensão palpável que de fato cons-
Andrade) e do modernismo marginal afrodescendente, onde se situa titui, não um obstáculo à construção textual, mas justamente o alicerce
Lino Guedes, perpassa a literatura produzida no Brasil em todas as suas de seu funcionamento, a parte basilar de sua estrutura. E que inclui a
vertentes. Isto se dá porque nas Américas em geral, e especificamente no problemática “falar/calar” – por vezes no silêncio, ou na opção pelo
Brasil, até mesmo o pensamento assumidamente eurocêntrico se encon- mutismo, ou mesmo por não se escutar o que tem sido dito – o que
trou e encontra contaminado, e enriquecido, pelo legado da África. Este vem a reforçar a premência das questões sociais e raciais em toda a sua
legado, por sua vez, não é vivenciado em algum suposto estado puro, dramaticidade. Tal constatação desvela aspectos obscuros de nossa for-
porém conforme se processou e revitalizou, esfacelado e transmutado já mação sociocultural e muitos dos dilemas com os quais têm se deparado
desde a travessia do “Atlântico Negro” – para utilizarmos a expressão de autores e autoras brasileiros através dos tempos.
Paul Gilroy – na contracorrente de ideologias dominantes. À guisa de exemplo, o romance A menina morta de Cornélio Penna
Por este prisma, em lugar de nos atermos aqui a debates quanto (1954) que expõe, num discurso impregnado de tensão, o medo e a
a privilegiar ou não a herança europeia, a enfocar a produção cultural ameaça sempre presentes nas relações escravistas. Vejamos:

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As armadilhas sutis do nada, do ausente e do real perdiam-se na corrida (Andrade, 1988, p. 46). Mas o jogo inter-racial e cromático se encrespa
implacável do tempo, e a casa, na desordem estática de seus quartos nume- e adensa em “Improviso do mal da América”. O poema irrompe com o
rosos, [...] as senzalas silenciosas e indecifráveis, a floresta invasora e tenaz,
“Grito imperioso de brancura em mim...” (1988, p. 52); e, pouco adiante,
com seu horror sombrio, [...] tudo caminhava em atropelo, na cegueira de
sua marcha. (Penna, 1997, p. 470, grifo meu) a voz lírica admite:
Não acho nada, quase nada, e meus ouvidos vão escutar amorosos
Ao referir-se às “senzalas silenciosas e indecifráveis”, a voz narrativa Outras vozes de outras falas de outras raças, mais formação, mais forçura.
assinala o cabal desconhecimento, por parte da “casa grande”, do que Me sinto branco na curiosidade imperiosa de ser.
se passava entre os escravos. Não é à toa que, ali, “tudo caminhava em
atropelo, na cegueira de sua marcha” (grifo meu). E o texto mescla, à O poema prossegue em um torturado delírio de cores, assumidas
como roupa e carne do poeta e que, simbolicamente espraiando-se em
“ampulheta do silêncio” (PENNA, 1954, p. 470), a percepção de que, no
múltiplas direções, aponta e privilegia a questão histórica ao encerrar o
quase-silêncio da escravidão, se diz algo não captado pelos ouvidos de
seu fluxo com a sensação (sempre insistentemente em primeira pessoa)
fora. Assim, a realçar, a insólita combinação de “silenciosas e indecifrá-
da “alma crivada de raças”:
veis”, na metonímia que traz à cena narrativa “as senzalas”, não os seus
habitantes. Mas eu não posso me sentir negro nem vermelho!
A Menina morta toma e retoma abundantemente, em seu desenro- De certo que essas cores também tecem minha roupa arlequinal,
Mas eu não me sinto negro, mas eu não me sinto vermelho,
lar, a questão da voz e da não-voz como traço recorrente de sua elabora- Me sinto só branco, relumeando caridade e acolhimento,
ção romanesca, com a tensão discursiva daí resultante. Vejamos a passa- Purificado na revolta contra os brancos, as pátrias, as guerras, as posses, as
gem que se segue e que se refere diretamente aos moradores da senzala: preguiças e ignorâncias!
Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América!
Trabalhavam [os escravos] em silêncio, mas de vez em quando erguia-se Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças! (1988, p. 53)
uma voz em grito prolongado entre gemido e uivo, sem palavras, a cortar
o ar tal qual afiada faca, tão espessa e pesada estava a atmosfera, carregada Tal angústia, aqui escancarada porém tantas outras vezes apresen-
de perfumes dos arbustos maltratados por aquelas mãos que se levanta- tada de maneira oblíqua, é paradigmática do que procuro destacar no
vam e abaixavam em movimentos ritmados. De espaço a espaço, muito de
corpus literário brasileiro – no mínimo desde Gregório de Matos, pas-
longe, lenta canção portuguesa se ouvia em outra tonalidade inteiramente
diferente, e essa modulada com melancolia... eram os brancos que canta- sando por José de Alencar, notadamente em O Tronco do ipê (Gomes,
vam sua saudade da terra lá longe! (1954, p. 141-142) 1988), e alcançando em cheio o modernismo, tanto o sulista quanto o
nordestino.
Tanto no discurso ficcional quanto na poesia do século passado A consciência desse manancial híbrido, desde sempre pluralizado,
(para nos atermos apenas ao século XX), a questão das relações raciais tomado como base da nossa identidade nacional – mesmo que muitas
se reveste de sons, silêncios e cores entremeados à tensão sempre inva- vezes a contragosto – por intelectuais de diversas procedências étnico-ra-
siva, do que a obra-prima de Cornélio Penna fornece abundantes exem- ciais, ideologias, posicionamentos políticos, difere flagrantemente do que
plos. Assim também se exerce representativa parte da arte de Mário de ocorre na tradição literária norte-americana, por exemplo, tanto na ver-
Andrade. tente hegemônica anglo-saxã quanto nas demais. Vejamos brevemente,
Nos poemas de Mário dedicados ao carnaval carioca, “cumprem e em contraste, o imaginário racial conforme expresso pelo contempo-
suas promessas de gozar” [...] “Polacas de indiscutível índole nagô,/ râneo afro-americano de Mário, o poeta, ensaísta e ficcionista Langston
Yankees fantasiados de norteamericanos...”, em clima de bulício e festa Hughes (1902-67).

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Em “Cross”, o poema se encerra melancolicamente: “I wonder poema. A cor está presente na história oficial – “homens-deuses barba-
where I’m gonna die,/ Being neither white nor black?” (HUGHES, 1972, dos, brancos, loiros e ruivos/ e seus olhos coloridos de cobiça” (Minka,
p. 205-206) [“Híbrido”. “Quem dirá onde vou acabar os meus dias,/ Não Jamu, 1994, p. 30).
sendo branco nem preto” – trad. Oswaldino Marques]. Observe-se a Já a partir de seu notável título, o poema de Minka apropria,
sensação de vazio, de lacuna, de carência e perda no nada, neste poema deforma, reformula a narrativa histórica oficial, desconfiando de suas
assumidamente sem cores de Hughes. cores e fornecendo, por sua vez, uma leitura instigante da colonialidade
No poema de Mário citado acima observa-se, por sua vez, a impos- passada e da pós-colonialidade presente.
sibilidade de prosseguir alegremente no abarcamento cromático: ao se A voz lírica em “Cristóvão-Quilombos” não configura algum
dizer “só branco agora,” o eu poético se sente, simultaneamente, “sem “eu” torturado, como em “Improviso do mal da América” de Mário de
ar neste ar-livre da América!” Mas a sensação de agonia do excesso, de Andrade. Nem o “eu” queixoso de “Cross”, de Langston Hughes. Por
pletora, de sufocamento é resolvida poeticamente, na medida em que ali outro lado não há tampouco, como em “Color”, um tom didático, de
se tece a “roupa arlequinal”. advertência, de persuasão, se quisermos, na medida em que “Color” pro-
A saída poética (assim como a existencial) existe, para Langston paga (visando a um certo leitor) a premência do orgulho racial negro,
Hughes, porém bem diferente de escapadas em multicoloridos trajes gêmeo da dignidade e afim a um sentido positivo de identidade pessoal
carnavalescos: está, e em conformidade com a maior parte de seus pares e comunal.
da Harlem Renaissance e, mais tarde, do Black Power, na afirmação do Em “Cristóvão-Quilombos”, o tom lírico de início apresenta cono-
orgulho racial. Veja-se seu poema “Color”, que faz um trabalho meta- tações bíblicas – “Fez-se a ganância”. O poeta e seu destinatário se omi-
fórico similar ao do poema de Mário, pois ali também a cor é veste, ou tem: em lugar deles faz-se a denúncia, que mescla os acontecimentos
algo a usar e exibir a partir do próprio corpo. “Color” é transcrito, na históricos a conotações cósmicas:
íntegra, a seguir:
Espíritos e corpos armados nascem do imenso ventre das águas fantásticas
color o outro lado do mundo possível
Terrágua uma bola de vida no cosmo
Wear it
1492, Colombo!
Like a banner
For the proud –
As motivações econômicas e a exploração humana da coloniza-
Not like a shroud.
Wear it ção são sumariamente listados, num tom de monotonia em que a carga
Like a song sonora impera – “Ouro e prata, milho, batata/ cana e canga em cor-
Soaring high – pos de América e África”. Parece que voltamos, por um instante, aos
Not moan or cry (Hughes, 1992, p. 67)4 “Poemas da Colonização” que discutimos acima: os respectivos poemas
A atestação do orgulho racial estará, também, notadamente pre- de Oswald e de Minka constituem inventários, ou documentários, da
sente no corpus poético afro-brasileiro – sempre num tecido discursivo escravidão. Mas é o cósmico que se instaura no discurso de Minka (não
de alta tensão em que o recurso das cores se destaca. A realçar, o poema o “fantasmal”, como na série poética de Oswald), numa perspectiva que
de Jamu Minka (nascido em 1946) “Cristóvão-Quilombos”. Mas a estra- não é só do passado rememorado, mas que se perpetua nos “quilombos”
tégia de Minka é outra, sendo outra a manipulação cromática de seu a encerrarem o poema:
Pós impacto do primeiro engano
4 “Cor”. “Use-a/ Como a bandeira/ Dos briosos / Não como mortalha / Use-a / Como uma
canção / Pairando alta – Sem choro ou lamento” [tradução minha].
– a visita era conquista e seus horrores –

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deuses invadidos trovejam tambores namento, dialogando, negociando, entrando em conflito com outros
e cospem flechas de rebeldia discursos por vezes distantes do universo regional, nacional ou linguís-
Depois de Colombo e sua maldita herança tico que habitam. E onde a temporalidade e a espacialidade se cruzem,
– calombos e mutilações em milhões de corpos – dando a perceber formas culturais do imaginário em suas transforma-
Quilombos por toda parte. ções, estratégias e reinvenções.
Observe-se que o tempo verbal escolhido para o final do poema é o O tratamento da questão inter-racial, conforme configurada pelo
presente (trovejam, cospem) e que, na última estrofe, os próprios verbos imaginário literário (basicamente) brasileiro, com ênfase na produção
são dispensados. Há um “depois” na letra do texto, e o que se segue vem afrodescendente, convida à contribuição da crítica pós-colonial desen-
a se tornar atemporal. volvida de maneira bastante expressiva, nas últimas décadas, em nosso
Minka e tantos outros autores e autoras afro-brasileiros fornecem país. A junção daquela escolha temática e desta opção crítica é o que
um material precioso a explorar em que se defrontam tensões raciais, pretende efetuar o presente trabalho, parte de uma pesquisa mais ampla.
sociais, históricas, existenciais, propondo outras formas de discursi- Não cabe aqui discutir extensivamente a complexidade da escrita
vidade poética: quase em unanimidade, nos últimos cem anos, uma afrodescendente nos demais países americanos (ver, nesse sentido,
escrita impregnada de oralidade tem valorizado a matriz africana, mul- Gomes, 2009). Sugiro, de passagem, que nos Estados Unidos a ideia
tifacetada, sofrida e, no entanto, florescente no solo sociocultural. Sem de uma literatura negra autônoma e de certa forma antagônica (ou
esquecer que essa matriz, ao se transmutar, inevitavelmente se expõe infensa) a influências inter-raciais prevaleceu até meados do século XX,
aos escorregadios e tensionados “sentidos da diversidade” que Minka presidindo a Harlem Renaissance e o posterior Black Power. Aqueles
menciona em outro poema, o seu ambíguo “Muleta verbal”: que aventaram noções de amálgama racial e/ou cultural tenderam a se
debater com a incompreensão da intelectualidade, tanto negra quanto
Pretoexpressar-se é atitude
o reverso do afro sem texto branca. O exemplo clássico, e trágico, é Jean Toomer (1894-1967), autor
ousadia pura do livro que é em geral visto como a obra-prima da Harlem Renaissance,
e malvista Cane, de 1923. A polaridade do universo literário prevaleceu até recen-
nas redações tes décadas. W.E.B. Du Bois (1868-1963), notemos também de passagem,
na tradição (Minka, 2006, p. 140)
mostrara-se porém receptivo à interpenetração cultural entre brancos e
negros, que desejava harmônica.
à guisa de conclusão Para que seja proveitoso investir na leitura do material cultural
“Negro preto cor da noite”, afro-brasileiro à luz da crítica pós-colonial, insisto na necessidade de
nunca te esqueças do açoite se desenvolver, em nosso país, uma teorização própria nesse sentido.
que cruciou tua raça. Tal empenho crítico deve dar conta das particularidades da coloniza-
Lino Guedes5
ção luso-brasileira, atentando para as singularidades de nossa sociedade
Pode-se, portanto, elaborar uma cartografia da colonialidade e seu “pós” passada e atual. Percorre o trabalho, segundo espero, a consciência de
em que os diferentes discursos coexistam na hibridez de seu funcio- que isto só se torna possível ao serem ultrapassadas perspectivas nacio-
nalistas, hierárquicas e essencialistas que ainda inibem o conhecimento
5 Lino Guedes, “Novo Rumo!”. In: Negro preto cor da noite. São Paulo: Cruzeiro do Sul, acadêmico; e, em contrapartida, na busca de vias comparatistas e trans-
1936. (In: DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia
crítica, Vol. 1, Precursores. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. p. 358).
disciplinares que se nutram e informem reciprocamente, enfocando o

114 115
peculiar e, simultaneamente, abrindo-se para regiões e nações também BHABHA, Homi. O Local da cultura. Trad. Teresa Dias Carneiro, In: COUTINHO,
sujeitas ao saber-poder da colonialidade e seus sucedâneos. Eduardo F. (org. e Apresentação). O Bazar global e o clube dos cavalheiros
ingleses. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
Uma cerrada tensão, quer encoberta, quer assumida no próprio
CUTI – Cultura negra. In: SANTOS, Joel Rufino dos (org.). Negro brasileiro negro.
texto, é inerente ao tratamento discursivo das relações inter-raciais, e
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n. 25, IPHAN/Minis-
permeia de diversas formas e em curiosos desvios o material literário tério da Cultura, 1997.
em nosso país. Essa tensão é estrutural, não ocasional, e atua na cons- DEKENS, Olivier. (Analyse et présentation). Qu’est-ce que les lumières? de Fou-
trução de textos ficcionais, poéticos e ensaísticos de autores advindos cault. Paris: Gallimard, 2004.
de diversas procedências étnicas, camadas socioeconômicas e escolhas DUARTE, Eduardo de Assis. Entre Orfeu e Exu, a afrodescendência toma a pala-
ideológicas. vra. In: Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 1,
A tensão também se manifesta, com frequência, através da menção Precursores. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
GOMES, Heloisa Toller. O Tronco do ipê e o negro. In: O negro e o romantismo
a (ou uso de) silêncios pesados e subterfúgios que mal encobrem brechas
brasileiro. São Paulo: Atual, 1988.
discursivas das quais os próprios escritores não se dão conta ou que,
______. As marcas da escravidão: O Negro e o discurso oitocentista no Brasil e
por outro lado, desejam dar a perceber em gestos de exposição ou de nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
denúncia. A leitura de tais formulações estético-culturais, que apresen- GRODEN, Michael; KREISWIRTH, Martin; SZEMAN, Imre. The Johns Hopkins
tam desenhos intrigantes e insuspeitados, pode ser reveladora daquele guide to literary theory & criticism. (Eds.). Baltimore & London: The Johns
tecido sociocultural que nos revestiu e habitou no passado, assim como Hopkins University Press, 2005.
do que nos habita hoje. HUGHES, Langston. “Color”. In: The Panther and the lash. New York: Vintage
As vias interpretativas abertas pelos estudos pós-coloniais e pela Books, 1992; “Cross”. In: WILLIAMS, Oscar (ed.). The Pocket Anthology of
American Verse. New York: Pocket Books, 1972.
contribuição de pensadores afins iluminam perspectivas inéditas no tra-
LIMA, Jorge de. “Serra da Barriga”. In: Novos poemas. Rio de Janeiro: Lacerda/
tamento das relações inter-raciais e do imaginário que o tem concebido.
Nova Aguilar, 1997.
Poderemos talvez, se as seguirmos, ajudar a encontrar a “chave” evocada
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais: Colonialidade, saberes
pelo encantatório poema de Esmeralda Ribeiro, que indaga: “Mas com subalternos e pensamento liminar. Trad. Solange Ribeiro de Oliveira. Belo
quem está a chave?” (Duarte, 2011, p. 189). Horizonte: Editora UFMG, 2003.
Na procura e no empenho, no conhecimento advindo da riqueza MINKA, Jamu. “Cristóvão-Quilombos”. In: Cadernos negros 17. São Paulo: Orga-
das trocas, contribuiremos assim para que se ache essa chave e, com nização Quilombhoje, Quilombhoje/Anita, 1994, p. 30.
ela, abrirmos “a porta enferrujada de silêncio” que trava a voz e tolhe ______.“Muleta verbal”. In: Cadernos negros 29. São Paulo: Quilombhoje, 2006.
o entendimento, e da qual fala com eloquência o poeta Cuti (Cuti, PENNA, Cornélio. A Menina morta. Rio de Janeiro: Artium, 1997.
1997, p. 137). REVEL, Judith. Dictionnaire Foucault. Paris: Ellipses, 2008.
RIBEIRO, Esmeralda. In: DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e afrodescendên-
cia no Brasil (o poema de Esmeralda Ribeiro é epígrafe no texto de Aline
referências bibliográficas
Alves Arruda).
ANDRADE, Mário de. “Carnaval carioca”. In: MELLO E SOUZA, Gilda de. (seleção). RICARDO, Cassiano. “Noite na terra”. In: Martim Cererê. Rio de Janeiro: José
Mário de Andrade – melhores poemas. São Paulo: Global Editora, 1988. Olympio, 1974.
ANDRADE, Oswald de. Obras completas 7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/ SANTOS, Boaventura de Sousa e. “Entre Próspero e Caliban – colonialismo, pós-
INL, 1972. colonialismo e interidentidade”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).
Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

116 117
TRINDADE, Solano. Extrato. In: DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afrodes-
cendência no Brasil: Antologia crítica. Vol. 1, Precursores. Eduardo de Assis
A antropologia/antropofagia darcyniana e a
Duarte (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. consciência do colonialismo intelectual
WESSELING, Henri. Le Partage de l’Afrique 1880-1914. Paris: Denoël, 1991.
Adelia Miglievich-Ribeiro

apresentação
Marisa Peirano (1992), investigando em seis cientistas sociais brasilei-
ros de diferentes gerações e interesses acadêmicos o que caracterizava
a antropologia no Brasil (foram eles: Antonio Candido, Florestan Fer-
nandes, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Roberto DaMatta
e Otávio Guilherme Velho), notou a persistência de um argumento cen-
tral, o de que o desenvolvimento da disciplina ligava-se a ideias e valores
sobre a construção da nação.
O diálogo, confronto e tensão entre as ciências sociais e os projetos
nacionais têm funcionado desde seus começos como uma teia a formar
um forte campo intelectual dedicado a pensar o Brasil. Glaucia Villas
Bôas chama-nos, porém, a atenção para o fato de que não é tão comum
o interesse pela verificação da existência de um modo peculiar de imagi-
nação sociológica a caracterizar o pensamento social brasileiro. Os parâ-
metros ditados por modernidade monolítica pretensamente universal
tendem a desviar a atenção dos intérpretes brasileiros, contudo, acerca
da positividade e das potencialidades e de nossas próprias experiências
históricas. Em suas palavras:
se há tentativa para conhecer o perfil cognitivo da sociologia brasileira, tal
tentativa se limita a medi-lo exclusivamente por um conjunto de interpre-

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tações relacionadas às possibilidades de adequação do país a um modelo tude quando, nos Seminários ministrados por Herbert Baldus a quem
de modernidade construído ‘fora’ de seus limites territoriais, culturais e tem como seu mestre, na Escola de Sociologia e Política em São Paulo,
políticos. Em conseqüência do uso excessivo dessa medida, o tratamento
conta ter aprendido caber à antropologia “melhorar o discurso dos
da relação entre as tradições sociológicas de diferentes contextos nacio-
nais se limitou a apontar as idéias que estão dentro ou fora do lugar; ou homens sobre os homens” (RIBEIRO apud MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2009).
ainda as idéias que contribuíram para criar um país legal versus o país No livro, Darcy fala-nos de “um novo homem [...], já não adjetivável
real. [...] Em geral, os estudos realizados dessas perspectivas confirmam étnica, racial ou regionalmente. Essa será a civilização da humanidade”
de modo impecável os cânones interpretativos que consagraram a imagem (RIBEIRO, 1998, p. 253). Abraça, assim, a missão de reescrever o processo
de um país fora do lugar, inadequado, triste, atrasado. (Villas Bôas, 2006,
p. 11-12) civilizatório de modo a propor uma teoria alternativa da história para
nela incluir os povos novos.
Nada mais inaceitável aos estudos pós-coloniais. Estes, sem se cons- Se o pensamento anticolonial de Darcy Ribeiro conversa com o pen-
tituir numa matriz teórica única – ao contrário, tratam de uma varie- samento pós-colonial, sem se confundirem – haja vista a desconstrução
dade de orientações distintas reunidas na crítica ao eurocentrismo –, da ideia de nação que os pós-coloniais farão, empreendimento ainda
postulam um conhecimento marcado por sua autodeterminação polí- não plenamente antecipado pelos anticoloniais – isto se dá pela possibi-
tica, teórica e epistemológica, avançando na contestação das matrizes lidade de ampliação do universal, sendo este o ponto crucial em nossa
que identificavam sua sociedade mesma como o patamar de desenvolvi- análise. Há algo que une gerações e propostas suficientemente distintas:
mento ambicionado pelos povos em quaisquer partes do mundo. a atenção à violência da colonização e às suas sequelas que transpassam
as dimensões econômica e simbólica na vida social; e a promoção das
A abordagem pós-colonial constrói sobre a evidência de que toda comuni-
cação vem de algum lugar, sua crítica ao processo de produção do conhe-
populações, das culturas e dos saberes subalternizados no empenho de
cimento científico que, ao privilegiar modelos conteúdos próprios ao que se projetar futuros diferenciados daqueles anunciados pelo modelo de
se definiu como a cultura nacional nos países europeus, reproduziria, em colonização que moldou a modernidade monolítica, sem espaço para a
outros termos, a lógica da relação colonial. Tanto as experiências de mino- autonomia e criatividade dos povos novos; novas histórias vêm à luz por
rias sociais como os processos de transformação ocorridos nas sociedades vozes antes silenciadas mas que sempre existiram não como essências
não-ocidentais continuariam sendo tratados a partir de suas relações de
funcionalidade, semelhança ou divergência com o que se denominou cen- intocadas mas como partícipes da hibridez da modernidade. É o hibri-
tro. (Costa, 2006, p. 117) dismo, por sinal, a maior contribuição dos povos novos à civilização
humana. Assim diz, o pós-colonial Silviano Santiago:
Trazemos ao debate a contribuição de Darcy Ribeiro (1922-1997)
que a partir de O processo Civilizatório, publicado em 1968, “um livro A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da
destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza: estes dois
latino-americano nascido no Uruguai”, segundo o autor (RIBEIRO, 1968), conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso
inaugura a série de 6 (seis) livros chamados Estudos de Antropologia da esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho
Civilização.1 O antropólogo mantém-se leal à disposição de sua juven- de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais
eficaz. A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ociden-
1 Seus Estudos de Antropologia da Civilização, com ênfase às configurações socioculturais tal, graças ao movimento de desvio da norma, ativo, ativo e destruidor, que
dos povos latino-americanos, estão dispostos em 30 anos de produção intelectual expres-
sos exponencialmente em O processo civilizatório. Etapas da evolução sócio-cultural ( 1ª.
transfigura os elementos feitos e imutáveis que os europeus exportavam
Ed. 1968); 2) As Américas e a Civilização (1ª. ed. 1969); 3) Os índios e a civilização. A inte- para o Novo Mundo. (Santiago, 2000, p. 16)
gração das populações indígenas no Brasil moderno (1ª. ed. 1970); 5); O dilema da América
Latina (1ª. ed. 1971); 4) Os brasileiros – teoria do Brasil (1ª. ed. 1978); e, por fim, 6) O povo Neste ensaio, realizamos uma hermenêutica da obra darcy-
brasileiro. A formação e o sentido do Brasil (1ª. Ed. 1995). Cf. Miglievich Ribeiro et al.,
2009. niana no postulado seu entre-lugar (Santiago, 2000, p. 26) como

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intérprete do pensamento social brasileiro. Atentamos também e de clandestinidade e curiosamente, mais tarde, também na campanha
mais detidamente sobre O Povo Brasileiro: formação e sentido do de Caio Prado para deputado. Saiu do partido, contudo, e passa a se
Brasil (1985). O mais vital, porém, é descobrir as pontes invisíveis dedicar aos índios. A dissidência basta para não ter seus estudos com-
que unem o intelectual moderno aos desafios do pós-colonial. pilados sob a rubrica marxista mas, aos olhos de hoje, parece estranho
Assim, tencionamos contribuir para a compreensão de que a apar- a ainda invisibilidade de sua história materialista e dialética da huma-
tação entre o pensamento crítico latino-americano e a produção nidade no compêndio do pensamento social brasileiro.2 Emir Sader
contemporânea sob a rubrica do pós-colonial é mais empobre- (Sader, 2004, p. 9) diz, por exemplo, que não houve, depois de Caio
cedora do que salutar aos esforços de valorização da nossa rica Prado, nenhum estudo que propusesse uma grande narrativa histórica,
tradição cognoscitiva (Mignolo, 2003). ignorando, pois, O Processo Civilizatório de Darcy Ribeiro. O autor, con-
tudo, não seria pego de surpresa com o descaso. Sabia que, ao traçar seus
1) darcy ribeiro: marxista à sua maneira próprios caminhos, desagradou fortemente os ex-companheiros comu-
nistas. Insisto, porém, em sua ressalva:
Darcy Ribeiro filia-se ao materialismo histórico e dialético. Não se pre-
tende, contudo, um marxista e é fortemente criticado pelos intelectuais [...] ainda me lavo naquelas águas. Não sou comunista, nem marxista sou,
mas sou discípulo, herdeiro de Marx, que vejo espantado como denomi-
brasileiros que assim se denominam. A isto, responde ironicamente: nador comum de todas as ciências do homem, que é o que explica a atua-
lidade de Marx. (Ribeiro, 1997, p. 81)
Conforme se verifica, foi Marx quem me pediu que escrevesse ‘O Processo
Civilizatório’. Obviamente, ele esperava uma obra mais lúcida e alentada
do que minhas forças permitiam. Ainda assim, fico com o direito de crer Em depoimento a Luís Donisete Grupione e Maria Denise Gru-
que, apesar de tudo, o herdeiro de Marx sou eu. (Ribeiro, 1998, p. 31) pione (Ribeiro, 1997), Darcy dizia que ainda nos tempos de estudante
de Medicina, em 1942, conhecera a A origem da família, da propriedade
O princípio da unidade entre teoria e prática exigia do marxismo privada e do Estado de Engels, o qual, inspirado em Morgan, se consti-
clássico uma relação direta com o movimento revolucionário das mas- tuiria em obra fundamental à sua própria, O processo civilizatório. Fala,
sas. No Brasil, as formas de desenvolvimento industrial surgidas favo- também, de seu contato com os Grundrisse de Marx e de como a teoria
receram, num primeiro momento, a consolidação do chamado mar- sobre a formação da sociedade capitalista surpreendeu-o com a expli-
xismo bolchevique. Mas o primeiro e principal momento de cisão entre cação das formas sociais anteriores ao escravismo, tais como os gran-
o marxismo soviético e o brasileiro já se dera com Caio Prado Jr. que, des Estados como o Egito, a Mesopotâmia, o México, o Estado Incaico.
como historiador, pôde captar as particularidades do desenvolvimento Estes estudos, porém, alertavam-no para o fato de que faltara explicar
capitalista em nosso país marcado pela colonização e pela escravidão a a Península Ibérica, uma formação social historicamente distinta que,
requerer novas abordagens teóricas. Foi o suficiente para sofrer um pro- subsumida nas teorias totalizantes, era na verdade excluída da história
cesso de congelamento teórico dentro do PCB, na mesma época que este da humanidade.
iniciava seu processo de expansão (Sader, 2004, p. 9).
Darcy Ribeiro narra em Confissões (1997) que também se engajara
2 Em que pese o indiscutível estatuto do nome de Darcy Ribeiro nos círculos universitá-
no Partidão, na década de 1940. Revela ter sido tão somente pretista, rios latino-americanos (Vargas, 2003; López, 2006), no Brasil, ainda parece desafiador
como aliás diz que eram todos aqueles jovens diante da aura de herói de elegê-lo como fonte de interesse de investigação acadêmica. Segundo Helena Bomeny,
sua figura intelectual e pública ainda desperta impressões apaixonadas quer de seus fiéis
Luís Carlos Prestes, saído da prisão, tendo sobre si projetada a vitória da admiradores quer dos que sobre ele mantinham as maiores restrições, obstaculizando
então URSS na 2ª. Grande Guerra. Trabalhou para o Partido em tempos efetivamente as releituras de sua obra dentre os clássicos do pensamento social brasileiro.
Cf. Helena Bomeny, Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado, p. 2.

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Conceitos como escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo negligência ao conceito de evolução sociocultural a possibilitar a gene-
que ajudaram a explicar a história europeia não lhe pareciam úteis ana- ralização teórica. Está ciente das críticas que receberia, desta vez não dos
liticamente, exceto por uma mediação crítica, no exame de realidades marxistas mas dos boasistas. O depoimento abaixo esclarece também
diversas, a exemplo das populações egípcia, árabe, maia, inca. Indaga se os juízos de valor de Darcy acerca da antropologia que, desde Gilberto
seriam escravistas as sociedades coloniais, feudais, semifeudais ou capita- Freyre, animava a comunidade científica brasileira:
listas. Via que a teorização generalizante então feita expressava invariavel-
Boas [...] hebreu, imigrado, trabalhou em meio ao puritanismo daquela
mente uma violência epistêmica que resultava na produção de classifica- Nova York da virada do século, provavelmente amedrontado com o que
ções e hierarquias arbitrárias. Se teorizar implicava reduzir a experiência sucedera a Lewis Morgan. Era de seus dias a hedionda discriminação que
às prioridades e às categorias conceituais de um marco analítico, estava desencadeara sobre o melhor dos etnólogos norte-americanos [...]. Tudo
descontente com os modelos civilizatórios descritos nas teorias de seu isso porque ousara reconstituir em Ancient Society as etapas principais
da evolução das sociedades humanas [...] ou sobretudo porque tivera má
tempo. Mergulhou fundo, por isso, na tarefa de interrogá-los e expandi
sorte, seu livro foi cair exatamente nas mãos de Engels, que se entusiasmou
-los. Assumiu sua condição de intelectual brasileiro que almeja ser sujeito com aquele etnólogo do Novo Mundo que encontrara, por outras vias, as
do conhecimento e não mais unicamente objeto de estudo. mesmas comprovações do caráter transitório e evolutivo das instituições
sociais, que Marx estabelecera através do estudo da economia política [...].
Como classificar, uns em relação aos outros, os povos indígenas, que O efeito deste êxito foi ter recaído sobre Morgan todo o peso do precon-
variavam desde altas civilizações até hordas pré-agrícolas e que reagiram ceito e da odiosidade antievolucionista e antirrevolucionária do purita-
à conquista segundo o grau de desenvolvimento que haviam alcançado? nismo e do liberalismo norte-americano. (Ribeiro, 2011, p. 31)
Como situar, em relação aos povos indígenas e aos europeus, os africanos
desgarrados de grupos em distintos graus de desenvolvimento para serem Admite, porém, qualidades no culturalismo que permitiu a antro-
transladados à América como mão-de-obra escrava? Como classificar os
pólogos atentassem para as sociedades e culturas perseguidas buscando
europeus que regeram a conquista? Os ibéricos, que chegaram primeiro,
e os nórdicos, que vieram depois – sucedendo-os no domínio de extensas compreendê-las. Não abre mão, contudo, de seu intento de falar numa
áreas –, configuravam o mesmo tipo de formação sociocultural? Final- nova ordem civilizacional global em marcha (Ribeiro, 2011, p. 245) sem
mente, como classificar e relacionar as sociedades nacionais americanas reeditar uma história unilinear da humanidade mas expondo, em sua
por seu grau de incorporação aos modos de vida da civilização agrário- teoria geral, o processo de evolução multilinear que implica que a partir
mercantil e, já agora, da civilização industrial? (Ribeiro, 1998, p. 8-9)
do rompimento evolutivo da condição primitiva, as sociedades huma-
Em O Processo Civilizatório (1998), Darcy Ribeiro mantém a desig- nas assumem ao longo do tempo diversas feições (Ribeiro, 1998, p. 36).
nação de algumas formações sociais como civilizações em distinção a Assim, como Perry Anderson, sabia que:
outras culturas, mas para tal utiliza critérios materiais que não se con- Se a denominação adequada para o marxismo é materialismo histórico,
fundem com juízos morais. Chama de civilização aquela sociedade mais ele deve ser, acima de tudo uma teoria da história. História é, contudo,
dotada de meios de autoproteção e, com isso, também mais hábeis na predominantemente o passado. O presente e o futuro também são, evi-
dentemente, históricos, e é a eles que se referem os princípios tradicio-
dominação de outros povos. As civilizações mais fortes têm mais êxito
nais sobre o papel da prática no marxismo. Mas o passado não pode ser
em seus projetos de expansão territorial, dominação político-econô- alterado por qualquer prática do presente (mas) pode ser conhecido [...].
mica e influência cultural. Narra, assim, os últimos 10 mil anos da his- Nenhum marxismo responsável pode abdicar da tarefa de compreender o
tória humana (Ribeiro, 1998, p. 65) e, neste panorama, busca situar os imenso universo do passado ou de pretender estabelecer os parâmetros de
latino-americanos, sobretudo, como o polo frágil da dialética do senhor sua transformação material. Assim, a teoria marxista não deve, apesar de
todas as tentativas louváveis, ser equiparada a uma sociologia revolucio-
e do escravo. Contraria também o culturalismo de Franz Boas em sua nária. Ela não pode ser reduzida a uma “análise da conjuntura atual”, para

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usar uma expressão em voga, pois, por definição, o que é atual passa logo. expõe a violência da colonialidade sobre as populações nativas assim
(Anderson, 2004, p. 128) como o enfrentamento, pelos povos colonizados, do padrão mundial de
poder, um sistema de exploração, dominação e fonte de conflito que se
Marxista à sua maneira, Darcy Ribeiro recepciona antropofagica-
espraia por todas as formas da existência social em torno da hegemonia
mente o materialismo histórico e dialético para pensar realidades impen-
do capital (Quijano, 2000).
sadas por Marx e Engels e, com isso, cria suas próprias teses que, este é
Segundo Quijano ainda, a colonialidade do saber, a colonialidade do
nosso argumento central, aproxima-o da crítica pós-colonial, guardadas
poder e a colonialidade do ser subestimaram e confinaram conhecimen-
as diferenças de método. Fato é que se Darcy aceitara o marxismo, sem
tos e discursos que contestavam o modelo newtoniano de racionalidade
demasiados reparos, no mundo europeu e no anglo-saxão, viu-o empa-
científica. Tal modelo, ao classificar a diferença como subalternidade,
lidecer em seu potencial analítico na realidade íbero-latina. Não reco-
abarcou diversas dimensões da vida, tais quais trabalho, gênero, sexua-
nhece, por exemplo, na experiência de construção da nação brasileira,
lidade, autoridade, intersubjetividade, e elegeu, nas colônias, a ideia de
as burguesias progressistas em processos de disputa com as aristocracias
raça como especial elemento articulador da dominação e hierarquiza-
feudais, nem o proletariado ungido por irresistíveis propensões revolucio-
ção que privilegiou o branco-europeu em face do amplo contingente de
nárias (1995, p. 15). Admite a luta de classes e os blocos antagonistas mas índios, negros e mestiços.
informado pelo debate nacional-popular, contraria Marx que previra o Na América Latina dos tempos de exílio, Darcy Ribeiro descobria
fim dos nacionalismos. Passa a participar, sobretudo nos anos de exílio o entre-lugar de que nos fala Silviano Santiago (2000) para se referir
que experimentou por 12 (doze) anos em consequência do Golpe Mili- aos que olham o mundo a partir das fronteiras e dos deslocamentos.
tar no Brasil, em 1964 – quando então Chefe da Casa Civil no Governo Edward Said (2007) também já nos alertava para a condição do exílio
deposto de João Goulart –, do debate acerca do povo latino-americano intelectual como gerador, em que pese o inegável sofrimento, de uma
e da formulação dos inéditos rumos para as populações subalternizadas. inquietação produtiva a delinear perspectivas potencializadoras de um
Inusitadamente, tece laços com a hoje chamada crítica pós-colonial. olhar ampliado sobre o gênero humano, diferentes daquelas mais previ-
síveis nas trajetórias intelectuais quando rotineiras.
2) darcy ribeiro: elementos de uma crítica pós-colonial
O modelo do percurso do intelectual inconformado é bem mais exempli-
José Martí e José Carlos Mariátegui são influências visíveis no pensa- ficado na condição do exilado, no fato de nunca se encontrar plenamente
adaptado, sentindo-se sempre fora do mundo familiar e da ladainha dos
mento latino-americano que sonha com sua libertação da opressão
nativos, por assim dizer, predisposto a evitar, e até mesmo ver com maus
imperialista. A estes somam-se as reflexões de Salazar Bondy, Leopoldo olhos as armadilhas da acomodação e do bem-estar nacional. Para o inte-
Zea, Enrique Dussel. Darcy Ribeiro participa de uma confluência de lectual, o exílio neste sentido metafísico é o desassossego, o movimento,
horizontes do qual também se alimenta um movimento teórico de raízes a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação nos outros.
andinas que projeta hoje em nível mundial os nomes de Arturo Esco- (Said, 2007, p. 60)
bar, Fernando Coronil, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, dentre outros, Darcy Ribeiro podia mais especialmente perceber como as histórias
dedicado ao esforço de desconstrução do edifício moderno a explicitar dos povos são híbridas, marco da crítica pós-colonial. Ousamos dizer
sua outra face, menos nobre e verdadeiramente perversa, a colonialidade que ele teria descrito a história da humanidade como histórias partilha-
ocultada até então (Miglievich-Ribeiro et al., 2009). das, entrecruzadas e interdependentes, assimétricas, em rota de colisão
Aqui se traduzem, em nossa proposta, as primeiras conexões com não poucas vezes, numa modernidade entrelaçada. Os termos foram
a crítica pós-colonial na vertente da modernidade/colonialidade, que cunhados por Randeria (Costa, 2003), socióloga indiana, contrariando

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a metanarrativa da modernidade que insista em representar o mundo a pós-colonial não descrê nas energias utópicas exatamente – sabemos que
partir de noções dicotômicas como tradição versus modernidade, emo- na luta sul-africana contra o apartheid havia ideais humanistas presen-
ção versus razão, negro versus branco, mulher versus homem. Que as tes – ainda que as submeta à crítica.
culturas existem em trânsito e não podem ser explicadas no contraste de Decorre daí que o pós-colonial, em que pese suas múltiplas abor-
binômios simples, disto já sabia Darcy Ribeiro: dagens, distancia-se do chamado pós-modernismo celebratório. Talvez,
deva-se saber que a crítica pós-colonial não se confunde também como
A evolução sociocultural tal como conceituada até aqui é um processo
interno de transformação e auto-superação que se gera e se desenvolve o que se convencionou chamar de anti-humanismo estruturalista do pós-
dentro das culturas, condicionado pelos enquadramentos extraculturais modernismo. Segundo Said, o crítico pós-colonial é crítico do huma-
a que nos referimos. Na realidade, porém, as culturas são construídas e nismo, em nome do humanismo, mais realista:
mantidas por sociedades que não existem isoladamente, mas em perma-
nente interação umas com as outras. (Ribeiro, 1998, p. 46) Chega perto de ser escandaloso, por exemplo, que quase todo programa
de estudos medievais em nossa universidade omita rotineiramente um
Não existe a reivindicada identidade pura do colonizador e do colo- dos pontos altos da cultura medieval, a saber, a Andaluzia muçulmana
nizado, diz o pós-colonial. Um dos ícones do movimento, o martinicano antes de 1492, e que, como Martin Bernal mostrou para a antiga Grécia,
a mistura complexa das culturas européia, africana e semítica tenha sido
Frantz Fanon, formado em Psiquiatria, revolucionário da Frente Nacio-
purgada dessa heterogeneidade tão perturbadora para o humanismo cor-
nal de Libertação da Argélia, autor, dentre outros, de Pele Negra, Más- rente. (Said, 2007, p. 78)
caras Brancas, cuja primeira edição, em francês, data de 1952, e Os Con-
denados da Terra, publicado em 1961, nos quais produziu uma crítica Efetuar uma leitura desconstrutora de textos colonialistas, capaz de
radical da colonização pela análise minuciosa das estratégias de violên- identificar a produção de contradiscursos que expressam, ostensiva ou
cia, subordinação e desumanização que produziram/produzem o colo- camufladamente, projetos de resistência do colonizado na árdua luta
nizado, tornado espectador sobrecarregado de inessencialidade (Fanon, por sua autodeterminação é uma das sendas do pós-colonial.
1971, p. 26), sabe que as tradições culturais nativas não podem ser calci- Curiosamente, Renato Ortiz (apud Soares, 2008) traça um paralelo
ficadas. Reconhece, porém, a importância crucial para os povos subor- entre o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o pensamento
dinados de se recuperar suas histórias reprimidas, sem essencializá-las. pós-colonial de Frantz Fanon, sem pretender estabelecer qualquer filia-
Sabe como Bhabha dirá mais tarde que a identidade nacional é a “zona ção direta entre ambos os movimentos intelectuais, percebendo nitida-
de instabilidade oculta onde o povo reside”, um discurso que expõe a mente a independência entre essas duas linhas de orientação, mas sensí-
“cultura-como-luta-política” (2007, p. 35) e o povo como o princípio da vel às suas confluências presentes, por exemplo, no uso da metáfora do
reorganização dialética de sua herança colonial, então, ressignificada senhor e do escravo, que nos reporta a Hegel. Podemos também imagi-
“nos termos liberatórios de um povo livre e do futuro” (Fanon, 1971 p. nar as conexões entre o intento pós-colonial e a antropologia mameluca
68). Também para Fanon, o contradiscurso pós-colonial e a descoloniza- de Darcy Ribeiro, conforme observa Arruti:
ção podem, enfim, reinventar o sujeito na sua verdadeira humanidade,
homens novos, portanto. [...] ao pretender criar uma antropologia brasileira [...], Darcy Ribeiro
O universal que se almeja no pós-colonial é pós-moderno, a saber, pode ser visto partilhando de um mesmo campo de problemas trabalha-
dos pelos antropólogos-nativos da recente antropologia periférica, em
provisório, historicamente contingente, antiessencialista. O pós do pós- seu esforço por desvencilhar-se da reprodução dos discursos metropo-
colonial – como o pós do pós-moderno – constitui discursos inéditos a litanos e fundar uma visão própria. (Arruti, 1997, p. 312. Os parênteses
fazer frente às narrativas legitimadoras dominantes. Disto resulta que o são nossos)

128 129
Menos que fundar diferentes antropologias nacionais, Peirano 3) a consciência do colonialismo intelectual:
(apud Arruti, 1997, p. 312) nota que o mais importante é colocar a uni- o povo brasileiro em fazimento
versalidade fundadora da proposta antropológica em perspectiva, reco-
Darcy defende a noção de um povo novo nascido na América Latina
nhecendo naquela que se propõe universal também sua nacionalidade
resultado dos processos de desindianização do índio, de desafricaniza-
e contextualidade. O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro parece-nos um
ção do negro e de deseuropeização do europeu. Um país de mestiços,
bom exercício de antropologia mameluca, antropofágica, capaz de dige-
os quais não são iguais a seus ascendentes de uma ou outra etnia. Um
rir a antropologia metropolitana e recriar mediante a narrativa dramática
gênero humano novo, produto do “atroz processo de fazimento do nosso
da história da nação uma teoria que tem
povo, dos índios e dos africanos mortos, dos mamelucos, caboclos e
[...] o Brasil como objeto histórico e etnológico e que o toma como matriz mulatos que, sem identidade, plasmaram a identidade do brasileiro”
nacional de produção antropológica original, capaz de formular seus pró- (Ribeiro, 1995, p. 20).
prios conceitos, procedimentos e, o mais importante, uma consciência Mediante o conceito de transfiguração étnica, definido como o “pro-
de si mesma, autonomizando-se de uma antropologia que é, segundo ele cesso de formação e transformação das etnias, do isolamento à integra-
(Darcy Ribeiro), reprodução não discutida de um olhar colonial. (Arruti,
ção, com todas as suas consequências de mutação cultural e social e de
1997 p. 305. Os parênteses são nossos)
redefinição do ethos tribal” (Ribeiro, 1995 p. 28), Darcy explica o povo
Apesar do recurso às teorias gerais, desejando realizar “uma teoria brasileiro como etnia nacional, diferenciada de suas matrizes formado-
de base empírica das classes sociais, tais como elas se apresentam no ras, já fortemente mestiçadas, dinamizada por uma cultura sincrética e
nosso mundo brasileiro e latino-americano” (Ribeiro, 1995, p. 15), é o singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos.
Segundo Darcy Ribeiro, a instituição social que possibilitou a for-
próprio Darcy que, admitindo que a história é formada de eventos que
mação do povo brasileiro foi o cunhadismo, antiga prática indígena para
o povo recorda e a seu modo explica: “crenças coparticipadas, vontades
incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma
coletivas abruptamente eriçadas, nestas as coisas se dão” (Arruti, 1997,
moça índia como esposa. Assim que o homem estranho ao grupo a
p. 269), diz realizar, em O Povo Brasileiro, uma retomada dos estudos e
assumisse deixava de sê-lo e estabelecia-se, automaticamente, mil laços
reflexões dos tempos do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
que o aparentavam a toda a imensa tribo. Isso se alcançava graças ao
(CBPE), onde trabalhou nos anos 1950. Avalia assim seu propósito:
sistema de parentesco classificatório dos índios, que relaciona, uns com
que alcançamos aqui são algumas generalizações válidas que lançamos os outros, todos os membros de um povo.
aqui e ali, iluminando passagens. É, porém, irresistível, como aventura
Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos desses casa-
intelectual, a procura dessas generalizações. É também indispensável por-
mentos, a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recru-
que nenhum povo vive sem uma teoria sobre si mesmo. Se não tem uma
tamento de mão-de-obra para os trabalhos pesados [...]. A função do
antropologia que a proveja, improvisa-a e difunde-a no folclore. (Ribeiro,
cunhadismo na sua nova inserção civilizatória foi fazer surgir numerosa
1995, p. 269)
camada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil. [...] Sem a prá-
tica do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil. (Ribeiro, 1995,
O clamor do humanismo pós-colonial de Edward Said, descentrado p. 83)
e rebelde, encontra eco em Darcy Ribeiro em sua busca da compreensão
da sociedade brasileira, latina, ibérica, em seu desejo de intervir na ela- Darcy chama de não-ser um povo que nasce pela negação de suas
boração de uma teoria de nós mesmos. matrizes originais e rejeitado por suas etnias fundantes. Narra que o pri-
meiro mameluco desprezou a mãe índia que lhe deu a luz, e foi recu-

130 131
sado como filho pelo pai branco. Os brasilíndios chamados mamelucos a sugerir antagonismos. Nenhuma disputa era mais relevante do que a
pelos jesuítas espanhóis3 com sua ninguendade expandiram, contudo, complementaridade dos interesses nos empreendimentos lucrativos.
o domínio português na formação do Brasil, castigando as gentes de Nada mais moderno e mais atrasado do que o escravismo atrelado
sangue materno. Interrompia-se a linha evolutiva prévia das populações ao empreendimento mercantil, à produção para o mercado internacio-
indígenas brasileiras ao subjugá-las, recrutando seus remanescentes nal e para o sistema de acumulação capitalista. Nada mais atual (atua-
como mão de obra servil de uma nova sociedade integrada numa etapa lização histórica) do que este povo novo integrado, como mercadoria,
mais elevada – porque mais predadora – da evolução sociocultural. Mas, na lógica moderna das sociedades capitalistas. Um povo moderno na
dialeticamente, pela usurpação da identidade étnica, dava-se sua transfi- periferia do mundo, desenvolvendo uma forma singular de organiza-
guração e o nascimento de uma nova etnia, a nacional. ção socioeconômica a combinar o escravismo e a servidão à economia
Esta célula cultura neobrasileira, diferenciada e autônoma em seu capitalista internacional. Gerados como proletariado externo, provedor
processo de desenvolvimento pode ser notada a partir de meados do colonial de bens para o mercado mundial, um povo original formado
século 16, associada a um modo de produção – a plantação açucareira – por mamelucos, caboclos e mulatos submetidos a um projeto empre-
cujas características fundamentais são a extensão latifundiária; a mono- sarial moderno e capitalista que já surgia operativamente integrado ao
cultura intensiva; a grande concentração local de mão de obra; o alto nascente sistema econômico capitalista de âmbito mundial (Ribeiro,
custo relativo do investimento financeiro; a destinação externa da pro- 1995, p. 286).
dução; a dependência da importação da força de trabalho escravo que O trabalho de construção do Estado pelas elites brasileiras do
onerava 70% os resultados da exportação; o caráter racional e planejado século 19, iniciado com a vinda da burocracia administrativa metropo-
do empreendimento que exigia, além do preenchimento de condições litana de Lisboa para o Rio de Janeiro e consolidado através da concilia-
técnico-agrícolas e industriais de produção, uma administração comer- ção dos interesses entre elites provinciais e governo central não permi-
cial adequada às condições de comercialização, procedimentos financei-
tiria à nação existir nem como corpo de cidadãos nem como sentimento
ros e questões fiscais (Ribeiro, 1995, p. 285).
coletivo, o que implicava em sua atroz não existência. A nacionalidade
O poder do senhor de engenho que, de dentro do seu domínio se
entendida como sociedade politicamente constituída a partir de um
estendia à sociedade inteira, equivalia a uma posição de dominação que
patrimônio comum de lembranças e expectativas, como sentimento
sequer a própria nobreza jamais tivera na Europa. Diante dele se curva-
de pertencimento a um coletivo e adesão voluntária de cidadãos a uma
vam não apenas os braços da lavoura mas os submissos clero e a admi-
identidade comum, nunca houve no Brasil.
nistração do colonizador. Elites integradas num sistema único que regia
a ordem econômica, política, religiosa e moral, conformavam uma oli- Nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca de sua
garquia. Frente a esta, apenas se igualava a camada parasitária de arma- própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhado-
dores e comerciantes exportadores de açúcar e importadores de escra- res explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espan-
tosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de
vos, também financiadora dos senhores de engenho. Não havia vácuo prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da
ordem social vigente. (Ribeiro, 1995, p. 446)

Uma cúpula homogênea a congregar interesses internos e externos,


3 Designação surgida entre os jesuítas espanhóis. O termo originalmente se referia a uma
casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais para criar e adestrar em suas casas- um não povo bastante distinto dos povos transplantados da América
-criatórios, onde cresciam os mamelucos de modo que quando se revelassem talentosos anglo-saxã revelaria, contudo, uma singularidade ímpar – falamos de
no exercício do mando e da soberania islâmica sobre o povo do qual eram oriundos. Cf.
Darcy Ribeiro, 1995, p. 108.
processo material, histórico e dialético, sem qualquer conotação essen-

132 133
cialista. Disto se desdobra, portanto, a certeza de que nossa ninguendade se pode mais uma vez pensar a conexão entre Darcy Ribeiro e o pós-
se metamorfoseará num novo gênero humano, em que pese não se ter colonial que, não casualmente, recusa as fronteiras – não apenas geo-
a capacidade de previsão de quais caminhos percorreremos. Sabemos, gráficas, políticas e culturais, mas também aquelas que organizaram o
apenas, que “nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente conhecimento moderno em ciência e não ciência derivando em discipli-
não era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro nas estanques.
comum” (Ribeiro, 1985, p. 13). Darcy Ribeiro parte do marxismo, é fato, para realizar uma original
Darcy Ribeiro desenha o povo brasileiro a partir da pluralidade dos história crítica das tecnologias. Seu veio pós-colonial exige-lhe, entre-
modos de ser dos sertanejos nordestinos, dos caboclos da Amazônia, tanto, que crie inéditas categorias explicativas de nossa formação social,
dos crioulos do litoral, dos caipiras do sudeste e do centro do país, dos antropofagicamente, apropria-se de conceitos-chave como mercanti-
gaúchos das campanhas sulinas, dos ítalo-brasileiros, dos teuto-brasi- lismo e capitalismo, traz junto o genocídio, o escravismo, o coronelismo,
leiros. Sabe, porém, que as especificidades adaptativas regionais e da elabora o cunhadismo e a ninguendade, aponta para suas continuidades
miscigenação tendem a se misturar aos elementos uniformizadores da e possibilidades de transfiguração.
sociedade urbano-industrial e dos meios de comunicação de massa.
Nada capaz de anular as diferenças. Paradoxalmente, os efeitos de mul- considerações finais
tiplicação da diversidade tornam-se ainda mais fortes na modernidade
entrelaçada. Stuart Hall falava disso também ao tomar de empréstimo Participando, como intelectual público no sentido mannheimiano, do
o conceito de différance caro a Derrida (Hall, 2009). Darcy Ribeiro, na esforço de reinvenção da história das gentes do Brasil, Darcy Ribeiro
atenção às linguagens midiáticas – é uma sugestão aqui feita –, sabia declara no prefácio de O Povo Brasileiro: “Além de antropólogo, sou
que das diferenças geradas ininterruptamente nascia a (Dissemi)Nação homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões
brasileira, conceito de outro pós-colonial, Bhabha (2007) ao observar éticas e por um fundo patriotismo” (1995, p. 17). Propõe uma imersão
as dinâmicas das culturas e das subjetividades que criam as histórias na história de nossos antepassados e compõe uma trama marcada pela
partilhadas. opressão que, até o século 19, era ocultada pela força do discurso único
Em Darcy Ribeiro, o povo brasileiro é mestiço e isto não implica a do colonizador.
negação do conflito. Longe do relativismo, Darcy atenta para a violência Concordando com Boaventura Santos (2002) em sua acepção da
de nosso hibridismo, utilizando como metáfora, as dores do parto (1995, crítica pós-colonial “como um conjunto de práticas e discursos que des-
p. 441), mas também para sua vitalidade: a criança que nasce. constroem a narrativa colonial como foi escrita pelo colonizador, (que)
tenta substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do coloni-
Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova
zado”, podemos postular que, em O Povo Brasileiro, a opção de seu autor
civilização, mestiça e tropica, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, por-
que mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. por remitologizar mitos para contar a história do Brasil, rearticulando
Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as experiências, memórias, valores e objetivos num texto significativo
culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra. (Arruti, 1997, p. 312) é uma atitude pós-colonial.
(Ribeiro, 1995, p. 449)
O pós-colonial dos intelectuais originários das ex-colônias asiáticas
É justo dizer que Darcy Ribeiro conforma-se também como um e africanas, reapropriado pelos chamados pós-modernos, está curiosa-
híbrido, num mundo cindido em especialidades: acadêmico, antropó- mente presente num livro que remonta em seu estilo à forma ensaística
logo indígena, homem público, planejador educacional e literato. Aqui característica das primeiras produções sociológicas, quando sociologia

134 135
e antropologia apareciam mais como pontos de vista do que como fontes ______; NAVARRETE, Julio Mejia; SOARES, E. V.; GERMANO, José Willington;
de metódica e rigorosa pesquisa investigativa (Arruti, 1997, p. 303). COSTA, Diogo. Aspectos do pensamento social crítico latino-americano:
intelectuais e produção do conhecimento. In: MARTINS, Paulo Henrique &
Com a virada linguística, sabemos que a certeza científica, apanágio
MEDEIROS, Rogério (org.). América Latina e Brasil em perspectiva. Recife:
de gerações anteriores, conforme diz em nota prévia de uma coletânea de UFPE, v. 1, 2009, p. 205-241.
seus artigos, Silviano Santiago (2000, p. 7), está sacrificada. O escritor MIGNOLO, Walter. Histórias locais. Projetos globais. Colonialidade, saberes
sinaliza a seu público-leitor que busca se reinventar então como intér- subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
prete latino-americano da América Latina. Mas, podemos pensar que há PEIRANO, Mariza. Uma antropologia no plural: três experiências contemporâ-
ganhos em se fazer intérprete e abdicar das explicações definitivas. Há neas. Brasília: EDUNB, 1992.
uma generosidade neste ato em favor do leitor, posto que a ele é confe- QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina.
rida também a possibilidade de uma nova narrativa, na prática ininter- In: Lander, Edgardo (Comp.). Colonialidad del saber: eurocentrismo y
ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso/
rupta da orquestração das vozes e de sua escuta. Darcy Ribeiro cresce ao
Unesco, 2000, p. 201-246.
narrar a sua história da qual somos todos intérpretes.
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No contexto pós-colonial global atual, nosso modelo deve ser


o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político,
cujo veículo é a escritura de histórias legíveis, seja do discurso
dominante, seja das histórias alternativas.
Gayatri Chakravorty Spivak1

i
Pensar a razão pós-colonial no nosso contexto atual requer necessaria-
mente uma reflexão perspicaz sobre os instrumentos de poder e as pos-
sibilidades de agenciamento do sujeito subalterno. A citação que abre
este texto coloca em cena um dos principais eixos articuladores da crí-
tica pós-colonial, nomeadamente a ênfase em uma maneira alternativa
de pensar e ler os construtos históricos e culturais, assim como em um
questionamento dos protocolos de leitura e escrita e das construções
discursivas que moldaram obstinadamente o pensamento ocidental,
consolidando-se ao longo do tempo. Tal postura crítica torna-se cada
vez mais relevante neste momento histórico em que movimentos de

1 Citação retirada do artigo “Who Claims Alterity”, publicado inicialmente em 1989


(Spivak, 1994, p. 189).

138 139
migração e mobilidade globais, que perpassam os vários espaços geo- lhe indaga sobre o que escreve, ao vê-la absorta, concentrando-se em
políticos, podem ser vislumbrados como um significante efeito do pós- redigir algo em um caderno enquanto aguarda as roupas quararem ao
colonialismo.2 No entanto, cabe ressaltar que, a despeito de motivações sol. Ela diz: “Todas as lembranças que pratica o favelado, estes projetos
iniciais, predomina em nossos dias um contínuo processo de desloca- de gente humana” (2001, p. 20). Tal resposta remete indubitavelmente à
mento e recolocação da matriz colonial de poder, nos termos discutidos fala do sujeito subalterno ao mesmo tempo em que desvela a imbricação
por Walter Mignolo (2008). da posição de fala desse sujeito com um espaço de representação, de um
Se a crítica indiana Gayatri Chakravorty Spivak está correta ao afir- possível ato de falar pelo outro. Se, por um lado, não há dúvida de que a
mar que a pós-colonialidade, como a percebemos hoje, é, de fato, um escrita de Carolina Maria de Jesus instaura no tecido social e no campo
fracasso da descolonização, como acredito que esteja, esse movimento literário a voz pujante da mulher negra e subalterna que não apenas
crítico de releitura e desestabilização dos discursos e produções textuais tem uma aguçada percepção dos mecanismos de exploração a que está
que nos circundam deve ser uma constante em nossa prática de cons- submetida e seu papel de interlocutora e mediadora da “gente favelada”,
trução crítica e teórica. A esse posicionamento Mignolo se refere como mas também faz de seu impressionante relato testemunhal um objeto
um necessário exercício de uma “gramática da descolonialidade”, isto é, de denúncia e luta; por outro, pode-se perguntar o que de fato acontece
“uma luta pela descolonização epistêmica” que perscrute as consequên- quanto este, neste caso, esta subalterna fala. A que tipo de escuta é sub-
cias desse fazer descolonial no sentido ético, político e teórico (2010, p. metida? Em que espaços essa fala é articulada? Em nome de quem?
346). Daí a necessidade de adotarmos uma postura que se coadune com É refletindo sobre essas questões e evocando as especulações sobre
esta preocupação que é tanto uma posição ética quanto uma disposição a subalternidade, a alteridade, as possibilidades de agenciamento e as
política, por meio de uma atitude de vigília ininterrupta. Estar vigilante, inevitáveis articulações de poder, que proponho uma leitura da insti-
no sentido que Spivak dá ao termo, significa não apenas estar atento gante teorização que faz a crítica indiana, radicada nos Estados Unidos,
às forças da matriz colonial de poder, mas também às possíveis cons- Gayatri Chakravorty Spivak, em vários de seus escritos, mas principal-
truções ilusórias de engajamento político e ético e às cumplicidades de mente em seu mais renomado trabalho, “Pode o subalterno falar?” Meu
nossas posições como intelectuais pós-(e des-)coloniais. Significa ainda intento aqui é discutir principalmente o trabalho dessa crítica e sua teo-
abrir espaço para um aprendizado contínuo a partir do outro, daquele rização sobre a subalternidade e a pós-colonialidade e, assim, pensar
cujo discurso silenciado corre o risco de ser apropriado e, assim, tornar- no que acontece quando o subalterno ou a subalterna, como no caso de
se ainda mais emudecido, insistindo na postura crítica de “esquecer os Carolina, se dispõe a falar, como ela, de fato, o fez. Meu enfoque central
privilégios da elite pós-colonial num mundo neocolonial” (1994, p. 205). na leitura dos textos de Spivak se justifica também pela pouca circulação
Refletir sobre histórias legíveis e alternativas mantendo essa postura de suas relevantes teorizações entre nós. Muitas vezes o que nos chega
desestabilizadora e decisiva torna-se, então, um papel crucial da crítica são fragmentos de seus discursos descontextualizados – e mesmo equi-
contemporânea, como esta leitura se propõe a engendrar. Em Quarto vocadamente interpretados ou traduzidos – e sem a devida atenção ao
de despejo (1960), esse que se tornaria seu mais conhecido trabalho,3 complexo emaranhado teórico a que a autora alude para dar suporte à
Carolina Maria de Jesus nos relata o que responde quando um senhor contundente crítica pós-colonial, e notadamente cultural, que articula.
Um dos nomes mais relevantes da crítica cultural, pós-colonial e
2 Ver a discussão de Spivak sobre o pós-colonialismo e os movimentos globais em “Atten- feminista contemporânea, Spivak tem se debruçado a examinar ques-
tion: Postcolonialims” (1997-1998). tões prementes acerca da pós-colonialidade, da alteridade e da subalter-
3 Merecem destaque os números impressionantes relativos a Quarto de despejo: 8 edi-
nidade em vários de seus textos, demonstrando, através de uma prática
ções, 10 mil exemplares cada, traduzido para mais de 14 idiomas (Moura Castro; Mata
Machado, 2007, p. 11). desconstrutivista, as amarras e as contradições inerentes aos discursos

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contemporâneos. A dificuldade para se “traduzir” seu pensamento demonstra mesmo seus desafetos, como Terry Eagleton (2005) em uma
acerca do subalterno e as frequentes incorreções na interpretação de crítica mordaz sobre o trabalho da autora, as barreiras do academicismo
suas ideias se devem, por vezes, principalmente, a seu texto crítico e sua e nos falem de perto sobre questões de ideologia, poder e pós-colonia-
escrita, considerados densos, opacos e herméticos. Nesse sentido, o ato lidade e nosso papel como críticos, teóricos e intelectuais na e da con-
de refletir sobre o pensamento de Spivak ou as ideias propostas em um temporaneidade.
texto seu se torna também uma tarefa laboriosa e um desafio instigante
de tradução cultural – não por acaso um dos campos teóricos aos quais ii
ela se dedica e ao qual retornarei ao final. De fato, a dificuldade do texto
da autora e de sua escrita alusiva e enciclopédica reflete um pensamento Embora tenha se tornado conhecida primeiramente como a tradutora
complexo e avesso a formulações simplistas. Uma das preocupações do texto em inglês da Gramatologia de Derrida e por seu trabalho de
centrais da teórica é desafiar os discursos hegemônicos e também nossas desconstrução, hoje, Spivak transita por várias áreas do conhecimento.
próprias crenças como leitores e produtores de saber e conhecimento. Sua crítica, de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente des-
Assim, a complexidade da escrita de Spivak denota principalmente sua construcionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam
preocupação em produzir um discurso crítico que procura influenciar o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente,
e alterar a forma como lemos e apreendemos o mundo contemporâneo as teorias do multiculturalismo e da globalização. Spivak também editou
(Landry; Maclean, 1996).4 um dos volumes dedicados aos estudos subalternos indianos e tradu-
O posicionamento crítico da teórica nos leva, principalmente, a ziu para o inglês várias obras de ficção da escritora indiana Mahasweta
pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e Devi, que escreve originalmente em bengali, também como uma forma
contestadora. É assim também que me proponho, neste trabalho, a pen- de abordar a subalternidade através da prática tradutória.
sar a produção e a recepção do trabalho de Carolina Maria de Jesus, no O renomado e igualmente controverso artigo “Pode o subalterno
contexto dos mais de cinquenta anos de publicação de seu mais conhe- falar?”, publicado primeiramente em 1985, no periódico Wedge, com o
cido texto, Quarto de despejo: em diálogo com as pertinentes teorizações subtítulo “Especulações sobre o sacrifício das viúvas”, parte de uma crí-
propostas por Spivak, procurando fazer dessa leitura crítica um opera- tica aos intelectuais ocidentais, em particular Deleuze e Foucault, para
dor teórico para refletir sobre a crítica pós-colonial na contemporanei- refletir sobre a prática discursiva do intelectual pós-colonial. Delineia
dade e posição dos intelectuais contemporâneos. ainda um posicionamento autocrítico com relação ao grupo de estudos
A prática teórica que subjaz na leitura dos textos de Spivak se pro- subalternos indianos, ao qual se vincula, construindo um dos argumen-
põe justamente a instalar o desconforto e o incômodo que necessaria- tos mais incisivos dos estudos pós-coloniais e feministas contemporâ-
mente devem acompanhar uma postura crítica que rejeita a crença na neos. Apesar de se basear na adesão aos princípios do grupo de estudos
razão iluminista e na transparência da linguagem em prol de uma fra- subalternos, que, partindo da formulação do teórico italiano Antonio
tura epistemológica que insere uma mirada nova tanto no campo dis- Gramsci, propõe uma importante intervenção na historiografia con-
cursivo quanto na esfera de uma atividade política libertadora. É esse temporânea ao refletir sobre o papel das classes subalternas como uma
outro traço de Spivak que faz com seus trabalhos, mesmo com a com- categoria alijada do poder (principalmente no contexto do sul asiático),
plexidade e obscuridade que lhes são peculiares, ultrapassem, como Spivak mantém uma postura crítica que ela julga necessária ao trabalho
intelectual. Originou-se, assim, de um questionamento premente nos
estudos pós-coloniais, proposto ao grupo dos estudos subalternos, sua
4 Ver a contundente discussão de Donna Landry e Gerald MacLean (1996) sobre a comple-
xidade e dificuldade do estilo de escrita de Spivak.
famosa indagação: o sujeito subalterno como tal pode, de fato, falar?

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Essa reflexão, baseada em uma crítica à ênfase de Gramsci na autonomia possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido. Spivak alerta,
do sujeito subalterno como uma premissa essencialista, remete também portanto, para o perigo de se constituir o outro e o subalterno apenas
à preocupação de Spivak em teorizar sobre um sujeito subalterno que como objetos de conhecimento por parte de intelectuais que almejam
a) não tem conseguido ultrapassar as barreiras do poder instituído, meramente falar pelo outro (1990, p. 34) – um fenômeno que podemos
sendo invariavelmente silenciado, apesar de sua tentativa de se fazer identificar com o perigo de exotização e da fetichização da realidade
ouvir; e b) não pode ocupar uma categoria monolítica e indiferenciada, social do outro subalterno.
pois esse sujeito é irredutivelmente heterogêneo – assim, não se pode A partir do reconhecimento de sua própria cumplicidade nesse
falar por uma coletividade tão heterogênea e multifacetada. São essas as processo e, principalmente, a de intelectuais do Terceiro Mundo que,
críticas que ela faz tanto a Gramsci quanto ao grupo de estudos subal- como ela, escolhem teorizar a partir do Primeiro Mundo, Spivak faz
ternos, cujos princípios, ela endossa em termos gerais e a partir dos desse reconhecimento um espaço produtivo que lhe permite questionar
quais ela se baseia em sua teorização. Tal questionamento traz em seu o próprio lugar a partir do qual teoriza. Ao discutir o polêmico argu-
bojo uma insatisfação com um discurso possivelmente utópico, politica- mento sobre a possibilidade ou viabilidade de se “falar pelo outro” ou
mente apaziguador e pouco desestabilizador ou propositivo – um posi- de “representá-lo”, a autora lança mão do termo “representação”, dis-
cionamento que não adere aos seus princípios de resistência discursiva e tinguindo os dois sentidos da palavra, segundo seu significado em ale-
concreta que ela tanto preza em sua prática teórica e efetiva. mão – Vertretung e Darstellung. O primeiro termo se refere ao ato de
Construindo seu argumento sempre por meio de um viés problema- assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra (como uma
tizado pela desconstrução derridiana, pela psicanálise kleiniana e pelo representação política) e o segundo, a uma visão estética que prefigura
dialogismo bhakhtiniano, a autora problematiza o uso do termo subal- o ato de performance ou encenação (de falar por alguém, de se colocar
terno e o que percebe como sendo sua errônea apropriação. O vocábulo, no lugar de um outro). Isso posto, na análise de Spivak, há uma rela-
que não pode ser usado para se referir a todo e qualquer sujeito mar- ção intrínseca entre o “re-presentar” e o “falar por”, pois, em ambos os
ginalizado, deve ser resgatado, a partir do significado que Gramsci lhe casos, a representação é um ato de fala em que há a pressuposição de um
atribui ao se referir ao “proletariado”, ou seja, àquele cuja marginalização falante e de um ouvinte. O processo de fala se caracteriza por uma posi-
e desvalia é tragicamente tão profunda que o impede de articular uma ção discursiva, uma transação entre falante e ouvinte e, nesse sentido,
posição de agenciamento. Os subalternos seriam, Spivak argumenta, esse espaço dialógico (na acepção de Bakhtin) de interação não se con-
aqueles pertencentes às “camadas mais baixas da sociedade constituídas cretiza jamais para o sujeito subalterno (lembremo-nos de sua definição
pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação de subalterno) que, desinvestido de qualquer forma de agenciamento, é,
política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no portanto, silenciado e, de fato, não pode falar, pois “nenhuma fala é fala
estrato social dominante” (2000). se não é ouvida”. A autora observa ainda que “frequentemente confundi-
Seu influente posicionamento procura, ainda, questionar a posição mos isso com ajudar pessoas em dificuldade, ou com pressionar pessoas
do intelectual pós-colonial ao explicitar que nenhum ato de resistência para que aprovem boas leis, até mesmo para que insistam, em nome de
pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado outra, que a lei seja implementada” (2005, p. 58).
no discurso hegemônico. Dessa forma, Spivak desvela o lugar incômodo A conclusão de que o subalterno não pode falar – ou a subalterna,
e a cumplicidade do intelectual que julga poder falar pelo outro e, por como por vezes a autora prefere nomear esse sujeito inerentemente gen-
meio dele, construir um discurso de resistência em seu nome. Agir dessa drado – não deve ser interpretada em seu sentido literal, pois, eviden-
maneira seria reproduzir as estruturas de poder e opressão, mantendo o temente, esse sujeito subalterno é capaz de falar, no sentido estrito da
subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço no qual expressão. A teorização de Spivak, porém, tem como base toda uma arti-

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culação cujos pressupostos advêm da filosofia, da psicanálise (de base sequência, possa também ser ouvido. Essa seria, de fato, nossa “contri-
kleiniana), da desconstrução derridiana e do dialogismo bhakhtiniano buição para o projeto de refazer a história ou sustentar vozes sempre
que ressalta a ausência do caráter dialógico na fala do sujeito subalterno. mutantes sob uma perspectiva alternativa”. Em outras palavras, o cami-
Da mesma forma, o processo de autorrepresentação desse sujeito tam- nho crítico e articulador que precisa ser construído seria o de “fazer
bém não se efetua, pois o ato de ser ouvido não ocorre e sua fala é ine- com que as pessoas estejam prontas para ouvir” (Spivak, 1994a, p. 197),
vitavelmente intermediada pela fala de outrem que assume a autoridade insistindo em esquecer os privilégios que temos e em aprender com o
de falar por ele. Tal afirmação tem sido interpretada erroneamente e de outro(a) subalterno(a). Essa é a responsabilidade e também a obrigato-
forma simplista como se a teórica estivesse afirmando categoricamente riedade que Spivak reserva aos intelectuais contemporâneos, a respon-
que o sujeito subalterno – ou os grupos marginalizados, os oprimidos sabilidade para com o outro para que estejam sempre abertos a “res-
e os desvalidos – não pudesse falar ou que simplesmente tivesse que ponder ao outro”, a abrir espaço discursivo para que o outro fale como
recorrer ao discurso hegemônico para fazê-lo. Aqui percebe-se o imbri- um direito e uma dívida a ser quitada (no sentido derridiano, kleiniano
camento de toda uma teoria, pois tal postura se refere ao fato de essa fala e também bhakhtiniano), a reconhecer sua inerente cumplicidade e a
ser sempre intermediada pela voz de outrem que se coloca em posição necessidade de se responsabilizar, de responder, de reagir e de ser sensí-
de reivindicar algo em nome de um(a) outro(a), em especial um intelec- vel ao outro, abrindo espaço para um diálogo de mão dupla e uma inte-
tual do chamado Primeiro Mundo ou alguém que tem acesso aos dis- ração através do aprendizado da escuta qualificada. Seria esse um traba-
cursos hegemônicos, e que se coloca em posição de reivindicar algo em lho a partir das bases e não empreendido por uma suposta benevolência
nome desse(a) outro(a). Esse argumento destaca, acima de tudo, a) a ilu- de intelectuais que se propõem a falar pelo outro. Esse é o trabalho ético
são e a cumplicidade do intelectual que crê poder falar por esse(a) outro para o qual intelectuais e ativistas políticos devem atentar e do qual não
(a); b) a ausência de uma escuta qualificada “quando o sujeito subalterno podem se abster, pois “a responsabilidade deve unir o chamado da ética
falar” (em uma referência à responsabilidade da escuta psicanalítica teo- a uma resposta” (1994b, p. 57).
rizada por Freud e Melanie Klein); e c) o consequente silenciamento De fato, poder-se-ia argumentar que esse sujeito subalterno deve-
desse sujeito. ria ser capaz de produzir incessantemente uma interrupção epistemo-
Sendo assim, a tarefa do, ou melhor, da intelectual pós-colonial, em lógica e um contradiscurso no fluxo discursivo hegemônico, mas para
especial, deve ser a de criar espaços por meio dos quais o sujeito subal- tal empreendimento é necessário que estejamos dispostos a ouvir e
terno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa ser ouvido(a) aprender com o outro por quem não se deve ter a pretensão de falar. E
– essa é a questão dialógica propositiva para a autora. Não se pode ou somente poderemos fazê-lo – na posição de críticos e intelectuais – se
deve falar por esse sujeito, mas se deve trabalhar “contra” a subalter- começarmos a desaprender nosso privilégio de fala como uma perda
nidade. Esse argumento propositivo nos permite entrever a relevância irreparável (mas necessária), a resistir à posição cômoda e ao apelo fácil
da postura crítica do/a intelectual contemporâneo/a. A subalternidade, de falar pelo outro, e, principalmente, se nos dispusermos a aprender
como um operador crítico, não deve e não pode ser exotizada, roman- com esse outro. Só assim o(a) subalterno(a) poderá falar, ser ouvido(a)
tizada ou fetichizada, posto que não há nada positivo em se congelar o e deixar o espaço conflituoso, paralisante e alheável da subalternidade.
sujeito subalterno nesse espaço excludente e destituído de possibilidade Essa postura ética requer um trabalho contínuo de questionamento e
de poder e agenciamento ou entregar nas mãos de outrem o destino a intervenção teórica e prática em nossos discursos e práxis cotidianos.
ele reservado. Mas, perguntaríamos, como podemos trabalhar contra a Pode-se afirmar que o sujeito subalterno, por vezes, deixa a subal-
subalternidade? Uma das possibilidades seria por meio da criação de ternidade para se tornar o intelectual orgânico de Gramsci, ou seja, o
espaços nos quais o sujeito subalterno possa se articular e, como con- intelectual que se identifica com as lutas das classes populares e dos

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subalternos e que crê no ideal democrático e na sabedoria popular em tinham supostamente uma prática de não intervenção nos costumes
oposição ao intelectual elitizado. Podem ser considerados orgânicos os nativos, julgaram que esse ritual, pelo o que percebiam como a barba-
intelectuais que “elaboram uma concepção ético-política que os habilita ridade de sua proposta, deveria ser coibido em todo o país. Diante da
a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a proibição, o ritual que não era praticado universalmente nem se encon-
hegemonia social e o domínio estatal da classe que representam” (Seme- trava tanto em voga mais, voltou a ser praticado. A imediata força polí-
raro, 2006, p. 278). Assim, sua organicidade está diretamente ligada tica assumida pelo retorno da prática do ritual, após esse episódio, se
a sua inserção na cultura, história e política dessas classes subalternas. deu pela sugestão de que, como argumenta Spivak, homens brancos
Esse é, nas palavras de Giovanni Semeraro, o ideal de Gramsci. A con- estivessem se propondo a salvar as mulheres indianas de pele escura dos
cepção do intelectual orgânico de Gramsci, que inspira Spivak em sua homens indianos também de pele escura. O corpo feminino racializado
teorização, se baseia em uma crença na reflexão intelectual como sendo no contexto colonial assume, então, metonimicamente o lugar da nação
uma prerrogativa de toda coletividade e que se instaura na relação de colonizada e se torna o espaço de disputas coloniais, assumindo o fardo
aprendizado que estabelecem entre si. e a responsabilidade pelo momento histórico vivido pela nação e pelo
No entanto, se o subalterno é, dessa forma, silenciado e obliterado, exacerbamento do discurso nacionalista contestatório de repúdio às
a mulher subalterna encontra-se em uma posição ainda mais marginali- intervenções ocidentais nas tradições de países periféricos.
zada pelos problemas subjacentes às questões de gênero. Esse é um dos O ato de imolação das viúvas atravessa, então, as barreiras do pri-
enfoques centrais que permeia o trabalho da teórica, cujo argumento vado, seu lugar de surgimento, e se desloca para o espaço público das
fornece um relato de uma história que privilegia o sujeito subalterno contendas políticas, assumindo um significado outro como forma de
feminino e “o caminho da diferença sexual” como sendo duplamente transgressão aos códigos coloniais e, ao mesmo tempo, como uma ação
obliterado, pois se “no contexto da produção colonial, o sujeito subal- política possível através da qual um discurso nacionalista anticolonial é
terno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino construído. Essa construção discursiva torna-se, pois, marcada e perpe-
está ainda mais profundamente na obscuridade” (Spivak, 2010, p. trada no corpo das mulheres indianas silenciadas e destituídas de qual-
66-67). Ao refletir sobre a história das mulheres indianas e da imolação quer agenciamento. O sati se torna, assim, nas palavras de Spivak, “um
das viúvas, Spivak aborda o lugar problemático e inquietante ocupado significante com uma carga social inversa” (Spivak, 2010, p. 96), além
pelas mulheres no contexto pós-colonial. Ao relatar, assim, a história de de se materializar por meio de um termo cuja tradução cultural comete
uma jovem indiana que não pode se autorrepresentar e, logo, não pode uma violência epistêmica, pois sati em sânscrito quer dizer apenas “boa
“falar” fora do contexto patriarcal e pós-colonial, Spivak exemplifica seu esposa”. Como então a boa esposa se tornou aquela que se imola na pira
argumento de que o subalterno, nesse caso em especial, a mulher como funerária do marido? Justamente pela violação e violência epistêmica
subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios dessa tradução equivocada e ideológica, a serviço de uma heteronorma-
para se fazer ouvir. A teórica relata dois episódios nos quais esse sujeito tividade reprodutiva,5 que têm como consequência o cerceamento mais
subalterno feminino tenta falar, mas não é ouvido, sendo, portanto, abjeto e o silenciamento da mulher subalterna. De fato, como abordarei
silenciado ao lhe ser negado uma voz. a seguir, a questão da fala da mulher subalterna se encontra diretamente
O primeiro relato tem como pano de fundo a Índia colonial, sob ligada à omissão, à violência e ao fracasso de uma abertura a outros
a intervenção inglesa, na qual a simbologia adquirida pelo ritual sati – processos possíveis de tradução cultural (não apenas linguística), emba-
o tradicional e arcaico ritual de imolação das viúvas na pira funerária
de seus falecidos maridos – acaba por promover ainda mais o silencia- 5 Ver a discussão de Spivak sobre o contexto da manutenção política da heteronormativi-
mento e a repressão das mulheres e de seus corpos. Os ingleses, que dade reprodutiva dos discursos sobre os nacionalismos (2010, p. 63).

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sados na ética e na responsabilidade daqueles que se propõem a atuar se consolida quando falta a responsabilidade ética, quando a escuta não
como mediadores e tradutores culturais. é qualificada e quando a tradução cultural não é solidária.
Assim, é, principalmente, à mulher intelectual que o apelo final de
Spivak se dirige. A ela caberá a tarefa de criar espaços e condições de iii
autorrepresentação e também de questionar os limites representacio-
nais, bem como seu próprio lugar de enunciação e sua cumplicidade no Retomemos agora o espaço de fala de Carolina Maria de Jesus nos per-
trabalho intelectual. No entanto, cabe ressaltar a problemática questão guntando a que tipo de escuta essa mulher negra, favelada, destituída e
de se conceber o agenciamento como uma forma de ação validada ins- desvalida foi e tem sido submetida – essa escritora extraordinária que
escreveu e falou apesar de “tantos senões”. Cito para tanto alguns trechos
titucionalmente. Por outro lado, negar tal possibilidade insere uma fra-
da biografia de Carolina Maria de Jesus, Muito bem, Carolina!, escrita
tura discursiva originária de um paradoxo que se coloca ao percebermos
por Eliana de Moura Castro e Marília Novais de Mata Machado, que
a impossibilidade de se articular um discurso de resistência que esteja
muito me impressionaram:
fora dos discursos hegemônicos. A tarefa do/a intelectual contemporâ-
neo/a estaria, portanto, inerentemente vinculada ao reconhecimento Hoje, Carolina Maria de Jesus é bem conhecida no estrangeiro, especial-
desse paradoxo e ao impulso utópico de articulação de outras possíveis mente nos Estados Unidos, onde sempre teve seus livros reeditados. No
Brasil, poucos se lembram dela e quase ninguém sabe que ela escreveu
maneiras de produzir uma crítica descolonial.
muito mais que seu famoso diário de 1960. (2007, p. 11)
O segundo episódio no qual Spivak se detém igualmente exempli-
fica o silenciamento da mulher subalterna e seu apagamento dos discur- E ainda:
sos hegemônicos através do relato de vida de Bhubaneswari Bhaduri, a
Tudo também grita por socorro, por organização, publicação e divulgação
mulher indiana cujo ato de rebeldia é suprimido da história da nação mais ampla. (2007, p. 57)
por jamais ter sido reconhecido e aceito, razão pela qual ela não pode
ser ouvida e seu nome é apagado da memória familiar e dos arquivos Foi rapidamente esquecida e sua obra, que incomodou pelo conteúdo e
pela forma, permanece em grande parte inédita. A sociedade preferia não
históricos e culturais. Bhubaneswari Bhaduri fazia parte de um movi-
saber da miséria, do sofrimento e da injustiça. (2007, p. 77)
mento político de luta pela independência da Índia e a ela coube a tarefa
de cometer um assassinato que, a despeito de sua atuação política, não Se não há dúvida, como atestam as palavras das biógrafas, de que
conseguiu executar. Ao decidir se matar diante da frustração da missão Carolina Maria de Jesus e sua obra nos forçam, de maneira incômoda e
não cumprida, ela aguarda o período menstrual para que seu suicídio insistente, a efetuar uma fratura necessária no campo discursivo (através de
não pudesse ser visto como um caso de amor e de gravidez ilícitos – sua narrativa de testemunho e de sua produção literária) e prático (através
um discurso corrente na tradicional sociedade indiana da época. Não da inserção do discurso das margens e da periferia como forma de inter-
obstante, de nada lhe adiantou tentar marcar no corpo sua fala, posto venção política) e apontam para uma “guinada epistemológica na produ-
que sua história de luta política foi, de fato, completamente silenciada ção de conhecimento”, ressignificando a literatura contemporânea (Alós,
e seu suicídio lido apenas como mais um caso de amor ilícito na socie- 2009, p. 139-143); por outro, sua ainda marginalização frente ao cânone
dade indiana, marcada por rígidos códigos de conduta feminina e pelas literário, bem como o pouco conhecimento do conjunto de sua obra,
limitações de classe e casta. Mais uma vez, a impossibilidade de a fala nos leva a refletir sobre o porquê de uma escuta tão tímida e enviesada.
dessa mulher subalterna ser ouvida (ou mesmo traduzida) a manteve no Uma breve análise de seu renomado texto nos revela que Carolina
silêncio e na obscuridade. Ou seja, o silenciamento do sujeito subalterno conhece bem a “dupla desestabilização” (Alós, 2009, p. 143) que registra

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e o papel que deveria ser o seu. É o que ela afirma em várias partes de seu posto por Spivak de uma tradução cultural cuja base deve ser a ética e
incisivo diário, como, por exemplo, nas seguintes colocações: “Os poli- a responsabilidade) o pensamento de Carolina e construiu uma suposta
ticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando autorrepresentação da escritora. Assim, podemos perguntar, que fala é
vê o povo oprimido” (2001, p. 35); “Mas os poetas do lixo, os idealistas da essa que é “autor/izada” por outrem que se julga no direito e no dever
favela, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos de tornar seu texto mais palatável, de reduzir uma suposta “excessiva
representam em relação ao povo” (2001, p. 47); “Eu percebo que se este presença” de algo incômodo? Excessiva, incômoda para quem? A quem
Diário for publicado vai maguar muita gente” (2001, p. 69). Sua autorre- serve esse texto adulterado? Que autorrepresentação conseguimos abs-
ferencialidade denota a consciência do espaço e do lugar de enunciação trair desse relato mutilado? Quando essa mulher subalterna fala sobre
que ocupa nas bordas do tecido social como um sujeito marcadamente sua fome e sua luta pela sobrevivência, que é a de milhões de brasileiros,
racializado e gendrado – um sujeito invisível, em termos de poder, em como sua fala é ouvida? Que responsabilidade ética advém dessa escuta
sua franca visibilidade racial e de gênero. ou da falta dela?
Para uma mulher subalterna que se via não somente como uma Cito novamente Moura Castro e Mata Machado: “Vozes, como a
escritora e uma poetisa, como ela menciona várias vezes em seu diário, dela, excluídas da sociedade, com as quais instaura um diálogo, não de
mas também como uma intelectual orgânica no sentido de Gramsci, e surdos, mas de mudos, porque não são ouvidos pelo poder público nem
que, nas palavras de Moura Castro e Mata Machado, “era a porta-voz pela coletividade” (2007, p. 49) ou pelo próprio campo literário que,
da comunidade marginalizada e sem direito à voz (2007, p. 48), sua fala como observa Regina Dalcastagné, principalmente “se configura como
foi incessantemente silenciada e obliterada ao lhe ser negado o direito um espaço de exclusão” (2007, p. 18). Ainda hoje passados 50 anos da
à publicação na íntegra, à seleção de seus próprios textos e aos direitos incursão de Carolina Maria de Jesus nas letras brasileiras onde está sua
autorais que lhe eram devidos. Vale, é claro, reconhecer a importância produção literária? Por que não temos ainda acesso direto a suas outras
da mediação de Audálio Dantas, jornalista que publica seu diário, sem como ela as publicou?6 Dalcastagné acrescenta, fazendo coro a nosso
a qual possivelmente nem teríamos ouvido falar dessa escritora e poeta questionamento, “junto da discussão sobre o lugar da fala seria preciso
surgida das margens da sociedade. No entanto, é ele que nos informa, no incluir o problema do lugar de onde se ouve” (2007, p. 25). Ou melhor, é
prefácio da 8ª edição (e 9ª impressão) de Quarto de despejo, sua posição essencial pensarmos nas maneiras nas quais se dá a escuta da fala dessa
de articulador e mediador das palavras de Carolina Maria de Jesus: subalterna. Com qual sensibilidade, solidariedade e responsabilidade
ética tal escuta é processada? Com qual possibilidade de aprendizado
A repetição da rotina da favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva.
Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos.
ou de trabalho contra a subalternidade? Ou seria essa uma escuta de
[...] Carolina viu a cor da fome – a Amarela. No tratamento que dei ao cumplicidade dos intelectuais com os sistemas hegemônicos? Podemos,
original, muitas vezes, por excessiva presença, a Amarela saiu de cena, mas então, perguntar, seguindo o caminho teórico trilhado por Spivak, será
não de modo a diminuir a sua importância na tragédia favelada. (2001, p. 3) que a mulher subalterna pode, de fato, falar? Ou ainda, o que acon-
tece quando ela fala? Por quais caminhos da diferença sexual trilha sua
Como lembra Jean Franco esse tipo de mediação “corre o risco de
produção literária? Esses e outros questionamentos acerca do contexto
reproduzir relações de poder existentes entre o intelectual e os silencia-
de produção (e tradução cultural) do texto de Carolina Maria de Jesus
dos” (1992, p. 14), além de criar uma áurea de um discurso essenciali-
nos permitem pensar na lógica da crítica pós-colonial construída pelos
zante que congela o sujeito subalterno para sempre em um espaço exó-
tico e de suposta autenticidade fetichizada. Sem dúvida, o diário surge 6 Ver o exemplo de Diário de Bitita que, segundo Moura Castro e Mata Machado, foi publi-
filtrado pela perspectiva deste editor que “traduziu” (no sentido pro- cado primeiro em francês para, então, a partir do francês ser traduzido e publicado em
português.

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textos teóricos de Spivak. Alertam-nos igualmente para nossa postura SPIVAK, Gayatri Chakravorty.Can the Subaltern Speak? In: NELSON, Cary;
como intelectuais e produtores de saber e conhecimento e nossa ine- GROSSBERG, Larry (eds.). Marxism and the Interpretation of Culture.
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rente cumplicidade com os discursos que se erigem como críticos, mas
______. The Post-Colonial Critic: Interviews, Strategies, Dialogues. New York:
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No entanto, é justamente a contrapelo que uma crítica que se instala
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com base na responsabilidade ética e na solidariedade deve se construir LANDA, Heloisa Buarque de. Feminismo em tempos pós-modernos. Rio de
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154 155
parte ii
Fricções culturais: África, Américas, Brasil
As literaturas pós-coloniais da África lusófona
Bárbara dos Santos

As literaturas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São


Tomé e Príncipe são portadoras de uma profunda diversidade cultural
e representam a complexidade do debate pós-colonial. Ao estudá-las,
estamos confrontados com a dificuldade de estabelecer um balanço de
obras literárias cuja profusão de registros e de temáticas revela realidades
complexas e múltiplas. Essas obras têm a particularidade de nos ensinar
a lê-las e a compreendê-las. O leitor é frequentemente convocado na
aventura da escrita, chamado como testemunha, ou guiado no encami-
nhamento particular da cenografia pós-colonial. O trabalho da língua,
uma constante nesse tipo de escrita, é geralmente acompanhado por um
paratexto, sob a forma de notas ou de um léxico no final do livro. Como
o observou a maioria dos críticos pós-coloniais que estabeleceram uma
ligação entre nação e narração, as literaturas de África lusófona evoluí-
ram à medida que as nações se iam construindo, o que ocorreu por vezes
num contexto extremamente violento como no caso de Angola ou de
Moçambique, que sofreram guerras civis destruidoras depois de terem
acedido à independência. Contudo a formação de instituições culturais
permitiu a escritores criar um espaço literário nessas nações jovens e,
por conseguinte, afirmar-se ao impor vozes novas.
As obras de língua portuguesa são menos conhecidas do que as lite-
raturas francófonas e anglófonas na Europa e merecem, de facto, uma
atenção maior. O número reduzido de traduções explica a difusão rela-

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tivamente fraca que conhecem em França. Como nos países vizinhos, as tuto de civilizado. Segundo G. Freire o colonialismo português era sus-
produções literárias de África lusófona inserem-se num universo mul- tentado por uma ideologia que lhe era própria, orientada na edificação
ticultural e híbrido, onde a linguagem exprime os diferentes universos de uma civilização profundamente multirracial. Na realidade, o sistema
simbólicos postos em relação pela escrita pós-colonial. Os autores de educativo português em África visava principalmente a fornecer aos
África lusófona, da mesma forma que os escritores francófonos e angló- povos locais uma formação básica, principalmente apoiada no ensino
fonos, são verdadeiros “passadores de língua” (Moura, 1999, p. 78) e da língua e dos costumes portugueses, como o indicou Dalila Mateus,
procuram atingir, através da transcrição da tradição oral, uma forma de ao mostrar que, em 1964, o ensino tinha conservado uma perspectiva
autenticidade cultural. Essas obras participam do paradigma pós-colo- exclusivamente portuguesa, apesar de um esforço para a africanizar. A
nial que elas constroem e examinam a partir de cenografias que definem política educacional era, na verdade, uma estratégia do regime salaza-
o próprio contexto de enunciação. Nesse âmbito, o objeto da nossa aná- rista que tentava ter um maior controlo das populações, numa época em
lise consistirá em analisar a situação do escritor pós-colonial nessas lite- que as lutas de libertação se desenvolviam. O sistema educativo estava,
raturas para percebermos a evolução de um corpus em plena expansão. aliás, entre as mãos do ensino católico, o estado tendo percebido os peri-
gos do protestantismo nas colónias.
o escritor pós-colonial africano de língua portuguesa A maioria das escolas encontrava-se nas cidades onde viviam os
colonos, e eram pouco acessíveis às crianças africanas. Os poucos “assi-
No seu estudo Origens do nacionalismo africano, Mário Pinto de Andrade milados” que tinham acesso à escola primária frequentavam depois uma
(1997) faz uma descrição de carácter social e político do aumento do formação técnica ou profissional (muito raramente o ensino secundá-
nacionalismo em África e, mais precisamente, nos países africanos de rio). O acesso ao ensino universitário era ainda mais limitado (Mateus,
língua portuguesa. Portugal encontrava-se sob um regime ditatorial na 1999, p. 40). Contudo, embora houvesse um controlo e uma censura
época do nascimento dos movimentos de libertação, e o estado sala- exercida pelas autoridades do Estado Novo sobre os estudantes afri-
zarista aplicava nas suas colónias uma política assimilacionista que canos que estavam na metrópole, foi em Lisboa e em Coimbra que se
era utilizada para legitimar a ação em África. O objetivo da política formaram os principais grupos que levaram à libertação das colónias.
do Estado Novo era de conseguir a integração da África portuguesa à Segundo Mário Pinto de Andrade, um protonacionalismo desenvolveu-
metrópole, com o intuito de neutralizar as pressões internacionais da se, representado por dois principais movimentos, fundados em Lisboa:
política anticolonialista, liderada essencialmente pelos Estados Unidos A Liga Africana (1920) e o Partido Nacional Africano (1921). Apesar dos
após a Segunda Guerra Mundial. Entre as diferentes medidas adotadas conflitos ideológicos,1 esses partidos estavam à origem das primeiras
pelo Estado Novo nessa época, a questão da alfabetização dos povos manifestações de uma consciência nacional que reivindicava o direito a
africanos (pouco desenvolvida até então, visto que o ensino era prin- um reconhecimento da sua identidade racial e histórica.
cipalmente destinado aos colonos) foi reconsiderada devido ao atraso No entanto, foram sobretudo as elites urbanas e crioulas das coló-
do desenvolvimento industrial, verdadeiro obstáculo à política econó- nias, assim como os estudantes das Casas dos Estudantes do Império,
mica portuguesa (Mateus, 1999, p. 21). O Estado Novo, que assentava criadas em Lisboa e em Coimbra em 1944, que iniciaram o verdadeiro
a necessidade da presença portuguesa em África na doutrina do Luso-
tropicalismo elaborada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freire, procla-
1 Segundo Mário Pinto de Andrade, a diferença entre os dois partidos reside no facto de
mou um novo direito para os indígenas das províncias de Angola, Cabo que a Liga Africana, cujos objectivos se inspiram da Junta da Defesa dos Direitos da
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Esse novo Africa (1913), defende um ideal assimilacionaista liberal, enquanto que o Partido Nacio-
nal Africano reivindica a autonomia imediata. Mas esses dois movimentos opõem sobre-
direito devia facilitar o acesso ao estatuto de assimilado, ou seja, ao esta- tudo duas correntes: o pan-africanismo e o garveyismo (Andrade, 1997, p. 120).

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movimento nacionalista que levou às lutas de libertação. Essas elites, situação política e cultural dos países colonizados por Portugal. Assim,
que pertenciam a um nível social e intelectual mais elevado, inspiraram- José Luís Pires Laranjeira explica a virada nacionalista dessas literaturas
se das estruturas sociopolíticas africanas, embora alguns grupos fossem pela aparição de novas mentalidades, incrementadas pela introdução do
mais ocidentalizados do que outros. Várias associações nascidas nas ensino laico nas colónias e a ida de estudantes para a metrópole, influen-
colónias criaram revistas: a revista Cultura I (1945-1951) para a Socie- ciadas por ideologias como o socialismo anarquista, o republicanismo,
dade Cultural de Angola, a revista Mensagem (1951-1952) para a Asso- o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo (Laranjeira, 1992, p.
ciação dos Nativos de Angola (Anangola), na qual o MNI (Movimento 13). Os escritores da África lusófona adotaram então um discurso polí-
dos Novos Intelectuais de Angola), composto, entre outros, de persona- tico: descrevem os conflitos sociais dos seus países, analisando o estatuto
lidades como Agostinho Neto, Viriato Cruz, Mário Pinto de Andrade ou do homem colonizado e falam de guerras e de revoluções. As literaturas
António Jacinto, publicou poemas. Escritores moçambicanos também da África lusófona denunciam os danos do colonialismo, adotando o
colaboram na revista Mensagem como José Craveirinha ou Noémia de ponto de vista do colonizado (e do seu sofrimento). Entram no âmbito
Sousa. A revista Cultura II (1957-1960), editada em Angola, publicou, das literaturas africanas de emancipação, pelo carácter social e ideoló-
por sua parte, os textos de António Cardoso, de Henrique Abranches, gico que contêm, mas a complexidade da ditadura portuguesa limita
de Henrique Guerra, ou ainda de José Luandino Vieira. o campo de ação dos escritores que ainda estão mais limitados do que
Em Moçambique, o Grémio Africano (formado no início dos anos os confrades anglófonos e francófonos. A questão da originalidade das
20) tornou-se a Associação Africana. E, nos anos 30, o Centro Associa- literaturas africanas lusófonas é frequentemente evocada. No prolonga-
tivo dos Negros de Moçambique propôs actividades culturais e despor- mento das análises de Inocência Mata (2000), essa originalidade parece-
tivas. No entanto só foi a partir da publicação de O Jornal Africano, em nos residir na existência de uma intelligentsia, de uma elite intelectual
1908, ao qual sucedeu O Brado Africano em 1918, que a actividade lite- multirracial, constituída por personalidades à partida antagónicas.
rária conheceu uma verdadeira difusão (Andrade, 1997, p. 59). A efer-
Como no caso das outras literaturas eurófonas de África, as litera-
vescência intelectual criada por esses grupos contribuiu para a formação
turas lusófonas começaram por poesia, género que apareceu como uma
das elites africanas que viviam em Portugal. Associações como as Casas
das formas literárias mais aptas a expressar “o jorro espontâneo e quoti-
dos Estudantes do Império (que contaram com a participação de Agosti-
diano” (Chevrier, 2003, p. 58) da cultura tradicional africana. Se reflec-
nho Neto, Costa de Andrade, Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos,
tirmos a propósito das influências culturais encontradas pelos escrito-
Francisco José Tenreiro, Manuel Rui ou ainda Amílcar Cabral), o Centro
res, podemos constatar que uma parte da originalidade deles consiste
de Estudos Africanos (onde se organizavam colóquios aos domingos) ou
no facto de que os escritores lusófonos não acompanharam os grandes
ainda o Club Marítimo Africano (constituído por empregados e mari-
movimentos ideológicos europeus com a mesma intensidade que os afri-
nheiros africanos) participaram no movimento intelectual africano que
canos dos países vizinhos, como no caso do movimento da Negritude
visava a revalorizar o homem negro. Nas universidades portuguesas, as
que teve um impacto mais tardio (Laranjeira, 1995, p. 93-94). Como o
formações em história ou em sociologia também permitiam aos estu-
mostrou José Luís Pires Laranjeira, além de uma situação directamente
dantes africanos reflectir sobre a situação política e cultural dos seus
países. Influências políticas (o Partido Comunista Português, ou o movi- condicionada pela política educativa do colonialismo português, o isola-
mento anticolonialista) também participaram na formação dessas elites mento cultural que os africanos dos Palops (Países Africanos de Língua
que se tornaram os líderes das lutas de libertação. Oficial Portuguesa) conheceram numa metrópole sob ditadura também
O período do impulso nacionalista, o seu contexto político e social, foi um fator importante. As influências literárias vinham num primeiro
corresponde à emergência de uma literatura que se interroga sobre a momento do Brasil e também dos Estados Unidos, que, segundo as

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observações de Mário Pinto de Andrade recolhidas por Michel Laban, Parece-nos, de facto, que os escritores africanos lusófonos desen-
foram a fonte do protonacionalismo africano lusófono: volveram rapidamente uma consciência política e linguística, sobretudo
se tomarmos em consideração a natureza do regime português e o cho-
E, a propósito de América, é muito interessante ver como cada geração
teve a sua América. Neste momento leio jornais dos protonacionalistas
que cultural que tiveram ao chegar à metrópole.
das antigas colónias francesas – protonacionalistas que são já percursores Segundo J. L. Pires Laranjeira (1995, p. 95), embora se possa encon-
dos movimentos de independência –, e todos os jornais dos anos 20-30 trar em alguns poemas escritos nos anos quarenta “um sentimento de
são dominados pela questão dos negros de Scottsboro, no Alabama, que posse em relação à terra, à região, quase um sentimento e um conceito
foram linchados ou executados na cadeira eléctrica. Era um aconteci-
de patriotismo africano (sem pátria definida/edificada, mas imaginada
mento central. Porque a nossa América era de Mc Gee, ou outros, porque
a lei de Lynch era aplicada sem contemplações. Cada geração de africanos e ambicionada)”, a negritude de língua portuguesa manifestou-se prin-
teve sua América. A presença do negro americano é fundamental na nossa cipalmente a partir dos anos 50 e conheceu, no espaço de dez anos, um
tomada de consciência, era um elemento de referência. (Laban, 1997, p. 96, desenvolvimento que coincidiu com um “sociorrealismo”  (Laranjeira,
tradução minha) 2000, p. 13) africano, inspirado no neorrealismo português. De facto, o
movimento iniciado por Césaire, Damas e Senghor desenvolveu-se de
De facto, os escritores africanos manifestavam um grande interesse
forma tardia e quase clandestina nos países da África lusófona (Laran-
por tudo o que provinha das Américas, cuja produção cultural nutria a
jeira, 2000, p. 152-153), mas teve um papel fulcral durante as lutas de
experiência deles, enquanto estudantes negros da diáspora. O Brasil era
libertação. O primeiro escritor que manifestou um sentimento de per-
um exemplo de antiga colónia que tinha conseguido criar a sua própria
tença à negritude de língua portuguesa foi José Francisco Tenreiro,
literatura, representando realidades de um outro mundo e ilustrando,
escritor de São Tomé e Príncipe, então estudante em Lisboa.
graças ao género regionalista, a importância e a riqueza das culturas
locais. A forma como os autores brasileiros se apropriaram da língua
portuguesa para divulgar a sua própria cultura também foi um modelo especificidades do pós-colonialismo lusófono
essencial para eles. Se bem que a crítica pós-colonial lusófona se tenha inspirado em geral
Contudo, a situação dos escritores africanos tornou-se cada vez nos teóricos anglófonos, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos subli-
mais difícil, devido à ditadura salazarista que bloqueava a comunicação nha, no seu artigo “Entre o Prospero e Caliban: colonialismo, pós-colo-
e a circulação de ideias vindas do estrangeiro, ou até vindas do próprio nialismo e inter-identidades” (2001, p. 23-85), as especificidades de um
país, como era o caso do neorrealismo. Partilhamos por isso a análise de pós-colonialismo português. Tendo sido Portugal um país semiperifé-
Alain Ricard quando afirma: rico no sistema económico capitalista, quase uma colónia (dependendo
A apropriação africana do português foi paralela ao movimento de liberta- fortemente da Inglaterra), o colonialismo português apareceu de forma
ção nacional; o tema da mestiçagem encontra-se no centro desta história e secundária ou subalterna. Essa situação explica sem dúvida o facto de
desta literatura, na verdade com muitas ilusões. A plasticidade dialetal do Portugal ter desenvolvido uma política colonial sem tentativa de se
português, uma língua já partilhada entre um imenso Brasil e um pequeno
adaptar ao sistema capitalista, em plena ascensão nos outros países. Boa-
núcleo europeu, traduziu-se numa permeabilidade às línguas bantu, pelo
menos em termos lexicais. Consciência linguística e consciência política ventura de Sousa Santos completa a análise ao lembrar que o discurso
são indissociáveis nos Palops. Também é o caso de outros lugares de África, colonial português já era subalterno em si visto que a história do colo-
mas nesses países os militantes parecem ter tido uma clara consciência da nialismo era escrita desde o século XVII em inglês e não em português:
situação desde o início das lutas, ao contrário dos poetas da negritude por o colonizador português teve que enfrentar problemas de representação
exemplo. (Ricard, 1995, p. 247, tradução minha)
similares aos dos povos colonizados pelos britânicos.

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A partir dessa observação, o crítico põe em realce a complexidade à cultura africana. Como mostra ainda Manuel Ferreira no seu estudo
do estatuto do colonizador português que tinha, de facto, um estatuto (1989, p. 37), essas obras traduzem a capacidade de integração e de adap-
superior ao estatuto do colonizado, mas que se tornava um coloniza- tação dos autores, expressando um desejo de unidade nacional represen-
dor pouco eficiente (daí a descolonização caótica) e secundário (visto tativa da riqueza dessas culturas. Esse objetivo parece ter sido constante
que Portugal era quase uma colónia da Grã-Bretanha). Boaventura de no combate dos intelectuais africanos que demonstraram uma abertura
Sousa Santos observa que a relação entre o colonizador português e o cultural com o intuito de chegar à libertação das suas respetivas nações.
colonizado aparece de forma mais ambivalente, ou melhor, mais híbrida Da mesma forma que os escritores pós-coloniais francófonos,
do que o que acontecia no colonialismo inglês. Ao insistir na dupla rela- o escritor lusófono traz na sua mensagem poética um engajamento
ção que a identidade dominante mantinha com a identidade subalterna, político e uma consciência cultural e literária forte, embora cada lite-
Boaventura de Sousa Santos estabelece um “jogo de espelho“, que reen- ratura mantenha as suas especificidades. Segundo as análises de Luís
via para um processo interidentitário específico ao colonialismo portu- Kandjimbo, a individualidade do escritor “manifesta o seu sentimento
guês. O autor identifica, nesse jogo complexo, três aspectos que lhe pare- de pertença e participação do projecto de identidade nacional ao nível
cem ser específicos ao colonialismo português: primeiro, insiste no facto de um modo de produção social muito concreto: o modo literário de
de que Portugal se encontrou nos dois lados do espelho (colonizador e produção que se enquadra em uma instância própria da superestrutura”
colonizado); segundo, salienta a ideia de que o sujeito de desejo também (1985, p. 505). O escritor que pretende atingir uma dimensão colectiva
se tornou objeto de desejo durante a época colonial; e, finalmente, mos- só o consegue com a condição de apreender a realidade social na qual
tra que a identidade dominante nunca negou completamente o outro e existe enquanto indivíduo. Esse projeto aparece como a base da litera-
não soube, por conseguinte, confrontar-se politicamente a ele. A par- tura pós-colonial de língua portuguesa.
tir desse primeiro jogo de espelho, o crítico demonstra que o colonia- Atravessada pelo hibridismo, a obra pós-colonial privilegia um tra-
lismo português não adotou a mesma política colonizadora dos outros balho intertextual e intercultural que põe em destaque os novos para-
países europeus. Coloca-se num espaço-tempo que lhe é específico, digmas nos quais evoluiu a cultura. Concordamos com a análise de Ana
caracterizado por porosidade e hibridismo. Daí a importância do pro- Mafalda Leite que mostra, no seu estudo sobre o carácter híbrido da
cesso interidentitário presente no pós-colonialismo lusófono. O escri- linguagem, a importância da intertextualidade e da prática das misturas.
tor africano aparece como uma consciência cultural que se constrói Segundo a autora, grandes escritores como José Luandino Vieira, em
na emancipação de um sistema colonial instável e diferente das práticas Angola, ou ainda José Craveirinha, em Moçambique, são representati-
políticas e ideológicas da época. vos da singularidade com a qual as literaturas pós-coloniais dialogam
Por isso, não é surpreendente que Manuel Ferreira, pioneiro nos estu- com a tradição e constituem exemplos de “falas” possíveis para as litera-
dos literários sobre a África lusófona, tenha posto em destaque a impor- turas dos Palops (Leite, 2003, p. 21). Essas falas manifestam o carácter
tância da individualidade que continua a ser, a nosso ver, uma questão híbrido em diferentes níveis: o trabalho de apropriação da língua portu-
fundamental nessas literaturas. Ao estabelecer um paralelo entre o indi- guesa, a exploração de formas narrativas orais tradicionais (prática utili-
víduo e a libertação do sistema colonial, o crítico mostrou que os escri- zada no conjunto do continente) ou ainda a incorporação de diferentes
tores africanos lusófonos só puderam se libertar da dependência literária tradições culturais.
colonial em que se encontravam quando integraram as mudanças cultu- As literaturas da África lusófona constroem-se numa tensão mais
rais provocadas pelo colonialismo. De facto, os escritores africanos lusó- ou menos forte entre a reactivação da tradição cultural, a adaptação de
fonos perceberam rapidamente a necessidade de reconsiderar a herança uma herança literária e a invenção de escolhas estilísticas e poéticas de
cultural europeia com o objetivo de se apropriar dela e de adaptá-la natureza a representar a experiência e a realidade das novas nações pós-

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coloniais. O paratexto também tem um papel importante, pois orienta o fazer um balanço da experiência da guerra. Esse romance, cuja intriga
leitor numa rede intertextual significativa. A escolha dos títulos, a pre- se situa entre os anos sessenta e os anos noventa, conta a história de um
sença de dedicatórias ou de epígrafes que fazem referência a provérbios grupo de jovens estudantes africanos que foram estudar a Lisboa e que
africanos, a outros escritores africanos ou ainda a personagens fictícias se engajaram politicamente nas lutas de libertação, descrevendo assim
ou reais, a adjunção de glossários no final dos textos são procedimen- a participação deles durante o conflito. A narrativa acaba numa Angola
tos que revelam uma paratopia criadora, na qual o escritor pós-colonial contemporânea, onde as personagens fazem um balanço das ilusões e
assume a sua posição e dialoga com o leitor (Mainguneau, 2004, p. 72). desilusões do povo angolano. O romance As lágrimas e o vento (1975),
Assim, a cenografia pós-colonial insere a obra num verdadeiro dialo- do escritor angolano Manuel dos Santos Lima, também propõe um tes-
gismo cultural. As literaturas da África lusófona são escritas num espaço temunho sobre as lutas a partir de heróis oriundos do povo. O romance
de liminaridade, um “entre-dois”, onde se negociam as interações entre organiza-se em torno de diferentes pontos de vistas exprimidos pelas
a herança europeia e as culturas africanas. Conscientes de assumir uma forças presentes, tomando em conta os discursos “oficiais” e os discursos
função importante na criação de um campo literário em devir, os escri- “oficiosos” que existiam em cada campo. A dupla narração – a alternân-
tores africanos de língua portuguesa manifestam criatividade na com- cia do ponto de vista dos militares portugueses e do povo angolano – e a
plexidade da representação do carácter híbrido da cultura deles. A obra fragmentação da narrativa revelam uma descontinuidade representativa
do escritor angolano José Luandino Vieira continua a ser, nesse ponto, das diferentes percepções de um mesmo acontecimento histórico. Se As
uma referência incontornável das literaturas de África lusófona. lágrimas e o vento aparecem como um romance que tenta representar,
com uma certa fieldade histórica, os costumes da sociedade angolana
variedades das literaturas da áfrica lusófona durante as lutas de libertação, a estrutura do romance também indica a
depois da independência presença de uma reflexão histórica moderna que se interroga a respeito
da interpretação da História e da afirmação identitária.
Depois da independência, as literaturas da África lusófona seguiram
diferentes orientações, entre as quais dominam uma afirmação de eman- O romance A paz enfurecida (2003), do escritor moçambicano
cipação (mais importante ainda do que uma protestação nacionalista), Ascêncio de Freitas, inscreve-se na mesma linha. Nessa obra de uma
e uma vontade de reconsiderar o passado colonial para constituir uma aparente simplicidade devido à sua estructura linear, a narração é feita
nova era histórica. As mudanças sociais, económicas e culturais que por um narrador omnisciente que assume um papel de contador ao
conheceram essas novas nações vão transparecer na literatura que vai, relatar o percurso do herói, Nuno Sabino, um africano de pele branca
por sua vez, conhecer mudanças radicais. De facto, a História tem um que resolve lutar para a libertação do país. As aventuras dessa perso-
papel central na produção literária visto que os escritores vão examinar nagem inserem-se num universo realista, ligado aos usos e costumes
o passado para examinar a forma como o sentimento nacional se desen- dos moçambicanos. A originalidade do tratamento da História cabe nas
volveu. A História é revisitada, tanto para compreender os fundamentos diferentes marcas de oralidade presentes no texto e, por conseguinte,
da identidade nacional quanto para fazer uma leitura crítica da situação na divulgação de uma certa tradição africana. O texto é narrado num
em que se encontra o país depois da independência. tempo presente que inclui um passado recente, integrado doravante à
história do país. A experiência da guerra permite aos escritores fazer
romance e história uma crítica social onde avaliam a situação do país depois do combate
pela independência.
O romance A geração da utopia (1992) do escritor angolano Pepetela A prática do humor também aparece como uma outra forma de
mostra, precisamente, a necessidade que sentiram certos escritores de escrever História. O olhar cáustico que o escritor Manuel Rui tem sobre

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a sociedade angolana pós-independente nas obras Quem me dera ser Ngungunhane, a versão do colonizador assim como a versão dos revo-
onda (1982) ou Crónica de um mujimbo (1991) ilustra o nosso propó- lucionários das independências, para desconstruí-las, desmitificá-las.
sito. Através da encenação de situações grotescas, e dramáticas, o autor A escolha do conto, o carácter oral da escrita, e o imaginário mítico
denuncia a falta de experiência dos dirigentes políticos e da administra- presente no romance (o sobrenatural interliga-se com as crenças tra-
ção, e revela os danos que a guerra civil continuava a causar na época. dicionais) traduzem a vontade do autor de representar uma realidade
O humor tem aqui uma dimensão catártica, assumindo uma função de ambivalente, que tenta escapar a qualquer forma de representação, pela
crítica social e política. Outros escritores como Mia Couto ou Pepetela sua própria complexidade. A desconstrução do mito associada à figura
criam universos onde o humor permite desdramatizar o carácter trágico de Ngungunhane passa pela ambiguidade da personagem, sendo ao
de algumas situações históricas, a sátira social, ideológica e política ser- mesmo tempo uma figura prestigiada ao longo do tempo, e um ditador
vindo aqui ao progresso da nação. sanguinário. O romance Ualalapi contém uma profunda reflexão sobre a
ideologia anticolonial, oscilando entre o tom solene e o registro cómico,
romance e mito o sagrado e o profano, a História e a ficção. José Luis Pires Laranjeira
apresenta essa obra como um mosaico de discursos, onde o pitoresco
Outra tendência das literaturas pós-coloniais da África lusófona con- lendário, histórico e mágico se inscreve em episódios que parecem vir
siste num retorno ao mito, às origens da cultura ancestral, o que também dos infernos dantescos, dos monstros boshianos ou dos fantasmas sur-
leva a uma reflexão sobre a História e a identidade colectiva, por via de realistas, refletindo assim o peso do ideário anticolonial (Laranjeira,
um confronto entre tradição e modernidade. Em Lueji, o nascimento de 1995, p. 328). Esse romance de carácter híbrido e fragmentário descons-
um império (1990), Pepetela conta a história da rainha Lueji do Impé- trói um mito participando, ao mesmo tempo, à sua escrita. A recupera-
rio dos Lundas (século XVI), uma figura que se tornou mítica na His- ção da memória histórica transforma-se aqui numa crítica do poder, o
tória de Angola devido à sua concepção da política que era inovadora que faz dessa obra uma alegoria do presente.
para a época. Lueji, que representa o poder dominado pelas mulheres
na sociedade tradicional angolana, sempre privilegiou o diálogo com
interações culturais
as tradições durante o seu reino. Através da figura emblemática dessa
rainha, o romance não deixa de interrogar as relações entre tradição e Os escritores pós-coloniais lusófonos manifestaram em geral uma forte
modernidade para uma compreensão mais clara da sociedade angolana consciência cultural no sentido que lhe dá Jean-Marc Moura no seu
contemporânea. estudo (Moura, 1999, p. 43). As literaturas da Guinée-Bissau e de São
A questão do mito também ocupa um lugar central na obra Tomé e Príncipe, cujas produções são mais reduzidas do que as dos
Ualalapi (1987), do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, que outros Palops, ilustraram-se num primeiro momento em antologias
põe em cena uma personagem histórica, Ngungunhane, o último impe- poéticas. Essas literaturas também conheceram uma fase de reivindica-
rador do Império de Gaza no sul de Moçambique. Esse romance, des- ção nacional depois das independências, que se manifestou, entre outras
crito por Ana Mafalda Leite como um romance de tipo pós-moderno, coisas, pela publicação de poemas escritos em crioulo (Laranjeira,
propõe uma estructura original (Leite, 1995, p. 53-69). Apresenta-se 1995, p. 336-364).
como um conjunto de seis contos que parecem a priori independentes A literatura de Cabo Verde, por sua vez, conheceu uma evolução
uns dos outros, mas onde cada narrativa está acompanhada de epígrafes diferente no momento da independência. Entre o final dos anos ses-
que reenviam para uma reflexão sobre a escrita da História. De facto, senta e o início dos anos 1980, essa literatura já se encontrava numa fase
o romance propõe uma releitura das diferentes versões da História de mais madura, herdeira do grupo Claridade fundado em 1936, o primeiro

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movimento literário a ter reivindicado a emancipação cultural, social e da interação geral das culturas” para retomar os termos de Jean-Marc
política da sociedade cabo-verdiana. Esse grupo, que revelou influên- Moura (1999, p. 138).
cias do modernismo brasileiro e do neorrealismo português, tinha
como objectivo a revalorização da cultura popular, da língua crioula, conclusão
e o desenvolvimento do sentimento de posse da cabo-verdianidade.2
De facto, para Francisco Salinas Portugal (1999, p. 69), a existência de À luz de um artigo recentemente publicado por Pires Laranjeira (2009,
instituições culturais, a presença de um grupo de intelectuais ligados a p. 14), tentaremos pôr em destaque algumas pistas para caracterizar a
Portugal que não reivindicavam o carácter africano das ilhas, o uso do atual produção literária dos cinco países da África lusófona. Entre as
crioulo e a situação económica desastrosa em que se encontrava Cabo diferentes orientações consideradas pelo crítico, a presença das mulhe-
Verde constituem os factores que explicam o facto de que a literatura res na cena literária pós-colonial aparece como um ponto central. Assim,
cabo-verdiana tenha rapidamente exprimido interrogações de ordem vozes femininas cada vez mais numerosas impõem-se como as de Ana
identitária e social. Paula Tavares e Maria Alexandre Dáskolas, em Angola; Lina Magaia,
Embora escritores cabo-verdianos como Luís Romano e Teixeira Paulina Chiziana e Lília Momplé, em Moçambique; Conceição Lima em
de Sousa3 tenham continuado a escrever obras influenciadas pelo neor- São Tomé e Príncipe; Odete Semedo e Domingas Samy, na Guiné-Bis-
realismo europeu, seus textos abriram-se a interrogações de ordem uni- sau; Vera Duarte, Maria Margarida Mascarenhas e Fátima Bettencourt,
versal, através de uma linguagem poética cabo-verdiana que escapou ao em Cabo Verde. Na época colonial, a fala das mulheres era rara e dis-
constrangimento de um discurso puramente realista, como o mostram persa devido às desigualdades dos sexos, ao passo que, como nas outras
as análises de Elsa Rodrigues dos Santos (Laranjeira, 1995, p. 216-217). colónias europeias, as mulheres desempenharam um papel importante
É de notar, a esse respeito, a obra de Arménio Vieira, que se opõe a qual- nas lutas da acensão à independência. É por isso que as mulheres da era
quer doutrina para se concentrar numa escrita mais íntima e metafísica, pós-colonial se esforçam por impor a voz feminina no palco literário
uma obra “tão enraizada como intempestiva” segundo P. Rivas (1993, e contam sua história, tentando ultrapassar a condição de subalternas,
p. 43). Entre outras influências presentes na literatura de Cabo Verde, descrita por Gayatri Spivak (1993, p. 66-111). As vozes femininas das
também é de assinalar a presença da negritude, ilustrada pelos poemas novas nações da África lusófona participam activamente no debate do
de Aguinaldo Fonseca, que se tornaram símbolos de resistência. Quanto paradigma pós-colonial.
à literatura de língua crioula que continua a ser desenvolvida em Cabo Entre as múltiplas pistas que propõe o crítico Pires Laranjeira, é
Verde, ela aparece como uma literatura de resistência e de combate para de destacar a importância de temas como a oposição entre tradição
a afirmação da língua cabo-verdiana (Laranjeira, 1995, p. 247). e modernidade, a crítica do poder e as suas diversas formas, o erotismo e
Como as outras literaturas pós-coloniais, as literaturas lusófonas a sexualidade, os danos causados por doenças antigas e recentes, a apro-
continuam, para concluir, a participar numa reflexão de ordem indivi- priação de certas formas da cultura urbana como o hip hop, ou ainda
dual e colectiva, singular e universal, e abrem-se, sem dúvida, ao “mundo a relação entre literatura e outras formas de arte como a pintura, por
exemplo (Laranjeira, 2009, p. 18). Estas diversas orientações mostram
o dinamismo da produção literária dos Palops e revelam uma cons-
2 Baltazar Lopes, autor de Chiquinho (1947), um dos primeiros romances cabo-verdianos
vindos do movimento “Claridade” prefere o termo de “confluência” a “influência”. Para o
ciência aguda das dificuldades que atravessam esses países. Essas obras
autor essas literaturas foram exemplos sem influência directa (Moura, 1993, p. 24-25). abrem-se ao resto do mundo e à complexidade que representa a pós-
3 Escritores de grande notoriedade que participaram à revista Certeza (1944) fundada por modernidade.
um grupo de intelectuais em que fazia parte o escritor neorrealista português Manuel
Ferreira.

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Paulina Chiziane e a história da poligamia preensão comportamental, por desconhecimento dessas mesmas práticas
e tradições antigas. (2003, p. 69)

Jurema Oliveira O choque cultural presente em O sétimo juramento pode ser perce-
bido nesta passagem:
– Diz-me avó, pode o meu filho estar possesso, pode?
– Os espíritos fazem a vítima sofrer. Abrem caminhos, fecham caminhos,
transtornam. Dão cabo da cabeça, enlouquecem. [...] Estou a rever memó-
rias do tempo antigo. [...] As almas não morrem, Vera, encarnam-se. E este
filho nunca foi teu nunca te pertenceu. Começa por decifrar o mistério do
seu nome [...]. No nome está a raiz do problema. Os antepassados sempre
disseram A VITO I MPONDO! (Chiziane, 1999, p. 59)

Além da fragmentação conceitual acerca dos rituais do passado


– visíveis na fala da personagem que protagoniza a cena de possessão
do filho – constata-se no decorrer da leitura que ela se torna vítima da
Paulina Chiziane é autora de A balada de amor ao vento (1990), Ventos
ambição de um homem que faz uma “viagem iniciática ao mundo dos
do apocalipse (1995), O sétimo juramento (1999) e Niketche: uma história
mortos, não olhando os meios, sacrificando ritualmente a família para
da poligamia (2002). Estas duas últimas obras criticam os costumes e a
conseguir os seus almejados objetivos” (Leite, 2003, p. 70).
postura patriarcal da sociedade moçambicana, e também a prática de se
Neste cenário de poder masculino, a figura feminina encontra-se
obter o poder a qualquer preço. Estas obras distintas têm em comum a
duas vezes violentada pelos códigos sociais estabelecidos: pelo patriar-
denúncia dos tortuosos meios encontrados por um sistema social que
cado e pela ausência de conhecimento sobre as tradições religiosas da
silencia as vozes femininas em prol de uma valoração das ações e feitos
comunidade a que pertence, e que a ajudariam a compreender pelo
masculinos.
menos os efeitos das ações daquele homem nos membros da família,
Em O sétimo juramento, os valores animistas constituem o foco da
quando estabelece um pacto com os “mundos infernais” para obter rapi-
narrativa, que traz à tona uma prática recusada pelo sistema colonial,
damente o poder desejado.
mas subentendida no comportamento sociocultural vigente durante o
A crítica aos costumes patriarcais destoantes em O sétimo jura-
processo revolucionário moçambicano. No dizer de Leite:
mento também será feita pela via da ironia em Niketche: uma história
O mundo do feitiço e dos mitos esteve sempre ligado ao comportamento da poligamia. Segundo Leite, esta obra se inscreve numa linha narrativa
sociocultural da maior parte dos intervenientes activos na nova política feminina de crítica à poligamia, que se tornou recorrente no cenário lite-
social de Moçambique, embora de forma mais ou menos latente. O sétimo rário de mulheres africanas que buscam denunciar por meio da paródia
juramento, através de uma história de família, de que Vera, é uma das pro-
tagonistas, coloca-nos perante o dilema da confrontação com esse mundo
a “forma perversa como a poligamia foi adulterada na sociedade urbana,
mágico-espiritual, que questiona, entre outras coisas, a assimilação dos não se respeitando os direitos que as mulheres tinham na sociedade tra-
costumes, a cristalização, resultados ainda do tempo colonial. Questiona dicional” (Leite, 2003, p. 70).
ainda os primeiros anos do pós-independência em que foram proibidas as Niketche: uma história da poligamia conta a história de Tony, fun-
práticas feiticistas e religiosas. Este “apagamento” das tradições religiosas cionário da polícia e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Em um
animistas, e a ocidentalização dos costumes, levou, por um lado, ao seu
recrudescimento clandestino, por outro à incapacidade de defesa, e com- determinado momento, Rami descobre que seu marido é polígamo: tem

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outras quatro mulheres e vários filhos com cada uma. As esposas do a luz de todas as estrelas do firmamento e deixar o arco-íris mergulhar-me
Tony estão espalhadas pelo país: em Maputo, em Inhambane, na Zam- em toda a sua imensidão. (Chiziane, 2004, p. 18)
bézia, em Nampula e em Cabo Delgado.
Rami, a primeira esposa de Tony vive ao sul de Moçambique, região
O tratamento dado aos temas sobre a mulher por escritoras africa-
que de acordo com uma das amantes teria sofrido maior influência das
nas na pós-revolução constitui um ponto de vista diferenciado e crítico
práticas eurocêntricas:
que contribui para a construção de projetos descoloniais. Num cenário
complexo, Paulina Chiziane explicita fundamentos de um saber afri- – Não tens culpa – comenta a Saly. – Vocês do sul deixaram-se colonizar
cano pautado num: por essa gente da Europa e os seus padres que combatiam as nossas práti-
cas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de
conhecimento esotérico e oculto, da tradição religiosa e cultural: práti- nós? Depois trouxeram a pornografia, essa estupidez só para enganar os
cas de magia, feitiçaria, rituais de morte e de viuvez, rituais de iniciação incompetentes e entreter os tolos. (Chiziane, 2004, p. 181)
sexual, relato das normas e tabus existentes nas relações familiares e entre
homem e mulher. (Leite, 2003, p. 73) Diante do impasse da experiência de ser uma mulher marcada por
ausências e falta de experiências afetivas mais completas, Rami interroga
Na qualidade de primeira esposa, Rami sente-se desprezada, apesar a mãe acerca de sua aparência e das lições de amor que não recebeu:
de avaliar o tempo de casamento como uma conquista:
O que acha do meu peso, mãe? Devo emagrecer como essa Julieta? Isso
Vinte anos de casamento é um recorde nos tempos que correm. Modéstia à também é fácil, posso corrigir o corpo com massagens e ginástica aeró-
parte, sou a mulher mais perfeita do mundo. Fiz dele o homem que é. Dei- bica. Mas tenho medo de emagrecer. Os homens pretos gostam de mulhe-
lhe amor, dei-lhe filhos com que ele se afirmou nesta vida. Sacrifiquei os res rechonchudas, com almofadas para frente, almofadas para trás, assim
meus sonhos pelos sonhos dele. Dei-lhe a minha juventude, a minha vida. como eu. É verdade, mãe, essas mulheres todas prendem o Tony com
Por isso afirmo e reafirmo, mulher como eu, na sua vida, não há nenhuma! encantos mágicos que não tenho. Por que não me fizeste mais bonita do
Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde que ele subiu que elas, mãe? Por que não me deste lições de amor para viver sem dor,
de posto para comandante da polícia e o dinheiro começou a encher as minha mãe? (Chiziane, 2004, p. 99)
algibeiras, a infelicidade entrou nesta casa. (Chiziane, 2004, p. 14)
A personagem Rami representa uma parcela da mulher moçambi-
O descontentamento leva Rami a buscar explicações para a falta de cana sem os encantos das macuas que preparam a alma para dançar o
afeto e descobre que sua vida: niketche. Um ritmo tradicional do norte de Moçambique:
É um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo e aguardam que Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da
o destino traga a força do vento. No meu rio, os antepassados não dançam criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a
batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo
nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque
mortal. (Chiziane, 2004, p. 18) do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niket-
che. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se
As águas do rio de Rami precisam ser despertadas. Nesse sentido, perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encan-
ela pede a Deus a força que no passado – anterior à colonização – os tado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens des-
moçambicanos encontravam nos rituais animistas típicos da tradição: perta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha
de toda sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se entre
Meu Deus ajuda-me a descobrir a alma e a força do meu rio. Para fazer as os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom. (Chiziane,
águas correr, os moinhos girar, a natureza vibrar. Para trazer ao meu leito 2004, p. 160-161)

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A narrativa se desenvolve num cenário repleto de contrastes e nos outro lado o discurso descolonial se faz presente nas vozes de mulheres
leva a descobrir juntamente com Rami o desconhecido território do nortenhas que não querem ser propriedade e abominam a ideia de que
norte de Moçambique: “Quem investe cobra, porque é preciso que o investimento renda” (Chi-
ziane, 2004, p. 212).
– A nossa sociedade do norte é mais humana – explica a Mauá. – A mulher
tem direito à felicidade e à vida. Vivemos com um homem enquanto nos
Paulina Chiziane constrói uma narrativa marcada por várias vozes
faz feliz. Se estamos aqui, é porque a harmonia ainda existe. Se um dia o que sinaliza um desvelar a tradição, a colonialidade e a descolonialidade:
amor acabar, partimos à busca de outros mundos, com a mesma liber- De acordo com Macamo (2002), o conhecimento social em África pode
dade dos homens. [...] No sul a sociedade é habitada por mulheres nos- ser dividido em três momentos nomeadamente o saber tradicional, o
tálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu
saber colonial e o saber africano. Cabe ressaltar que o sentido de “saber”
próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é amor e vida. No
sul as mulheres são tristes, são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. proposto aqui está vinculado ao conceito de discurso disseminado pela
Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não cuidam do corpo, nem ciência da literatura.
fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais ale- Nesse sentido, o saber tradicional vincula-se basicamente às práti-
gres, lá no norte. Vestimos de cor, de fantasia. Pintamo-nos, cuidamo-nos, cas ritualísticas, como aquelas desenvolvidas pelas mulheres nortenhas
enfeitamo-nos. Pisamos o chão com segurança. Os homens nos oferecem
prendas, ai deles se não nos dão uma prenda. Na hora do casamento vem
que dançam niketche e frequentam uma escola de amor:
construir o lar na nossa casa materna e quando o amor acaba, é ele quem Trata-se de um saber que muitas vezes não é verbalizado e encontra
parte. No norte as mulheres são mais belas. (Chiziane, 2004, p. 175) expressão em situações rituais onde se produz e confirma a ordem social.
Os mitos fundadores de linhagens ou legitimidades de poder constituem
Niketche: uma história da poligamia coloca o leitor diante de uma momentos privilegiados deste tipo de saber. (Macamo, 2002, p. 11)
narrativa que cenariza mundos distintos por meio de um discurso que
pontua ora um universo sulista, ora um espaço nortenho. De um lado, Em Niketche: uma história da poligamia, as normas e os preceitos da
detectamos as experiências de personagens cuja memória do corpo está poligamia tradicional são relatadas no capítulo dezessete:
inserida nas práticas pregadas pela razão imperial/colonial como bem
O ciclo do lobolos começou com a Ju. Foi com dinheiro e não com gado.
define Mignolo em seu texto “Desobediência epistêmica: a opção desco- Lobolou-se a mãe, com muito dinheiro, num lobolo-casamento. As crian-
lonial e o significado de identidade em política” (2008). ças foram legalmente reconhecidas, mas não tinham sido apresentadas aos
Rami representa gerações de mulheres que aprenderam com suas espíritos da família. Era preciso trazê-las do tecto da mãe para a sombra
mães como deveriam se comportar para garantir um casamento, o lugar do patriarcal num acto de lobolo-perfilha, uma forma de legitimá-las uma
vez que nasceram fora das regras de jogo de uma família polígama. Depois
de esposa. Sendo assim, conectadas aos princípios eurocêntricos, as
fez-se o lobolo da Lu e dos filhos. As nortenhas espantaram-se. Essa histó-
mulheres do sul compõem um quadro social que remonta um patriarca- ria de lobolo era nova para elas. Queriam dizer não por ser contra os seus
lismo oriundo da “colonialidade e da reprodução da matriz colonial do costumes culturais. Mas envolve dinheiro e muito dinheiro. Dinheiro para
poder” (Mignolo, 2008, p. 313) que visa inculcar no sujeito colonizado os pais, dinheiro para elas, e para os filhos.
os valores universais abstratos como os preceitos judaico-cristãos: “No – O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte – diz a
minha sogra. – Ele é a estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado.
passado os homens deixaram-se vencer pelos invasores que impuseram
E tu, Rami, és a primeira. (Chiziane, 2004, p. 124-125 e 126)
culturas, religiões e sistemas a seu bel-prazer” (Chiziane, 2004, p. 93).
O descompasso constitui-se na mola mestra que impulsiona a A narradora, ao situar o leitor em relação a uma prática sulista
narrativa de Niketche: uma história da poligamia. Se, de um lado, o dis- tradicional, alimenta um presente repleto de valores típicos, mas adul-
curso colonialista está presente nas práticas das mulheres sulistas, por terados pelas ações de um projeto implementado pela razão imperial/

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colonial. E para ampliar nossas reflexões, recupera-se aqui um trecho do a tradição confere a Kuma, a palavra, não apenas poder criador, mas tam-
ritual kutchinga que ocorre oito dias depois da viuvez: bém a dupla função de conservar e destruir. Por isso, a palavra é por exce-
lência o grande agente ativo da magia africana. Mas para que a palavra
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os olhos dos meus cunha- produza todo o seu efeito, é preciso que seja acompanhada ritmicamente,
dos, candidatos ao sagrado acto, brilham como cristais. Cheira a erotismo porque o movimento tem necessidade de ritmo, pois ele próprio se baseia
no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá no segredo dos números. É necessário que a palavra reproduza o vaivém
herdar todas as esposas do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele que constitui a essência do ritmo. (1993, p. 17)
se encharca de suor e medo. Meu coração bate de surpresa infinda. Kut-
chinga! Eu serei tchingada por qualquer um. E todos aguçam os dentes O ritmo estabelecido pelos rituais tradicionais em certa medida foi
para me tchingar a mim. A parede é firme e fria. Ampara-me. O dorso do rompido no estágio de fixação do saber colonial em África. Ainda de
chão é duro, é seguro. Suporta-me É tão cruel e tão malvada esta gente... acordo com Macamo (2002, p. 11): “Este saber costuma ser conotado
Peço a qualquer Deus qualquer socorro. Ninguém me ajuda, nem Deus,
nem santos. Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurar a com a disciplina da antropologia. Nos anos setenta, com a crescente
viúva na nova vida, oito dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, influência da perspectiva marxista nas ciências sociais, estabeleceu-se
marca de propriedade. (Chiziane, 2004, p. 212) o hábito de criticar a antropologia pela sua proximidade com o sistema
colonial”.
Na construção do quadro de práticas tradicionais explicitadas em Essa critica fundamenta-se na prática, ou melhor, no método usado
Niketche, destaca-se aqui a história da moela na culinária moçambicana por alguns antropólogos que direta ou indiretamente serviram aos pro-
e de quem deve comer esse ingrediente sagrado: pósitos dos regimes coloniais, mas isso não é motivo para se atrelar a
– Aí é que está o grande mal – diz um velho. – Falas de moelas. Eu estou disciplina às práticas coloniais.
a falar de uma moela. É preciso começar a compreender a diferença entre O saber colonial consiste na invenção de valores para uma inter-
moelas e moela. venção direta nas práticas sociais, em especial na formação familiar
– Diferença?
exposta por Paulina Chiziane em Niketche: uma história da poligamia:
– Moelas de aviário são uma coisa. Moela, daquela galinha amorosamente
depenada e carinhosamente assada para o marido, é outra coisa. É dessa Poligamia é o destino de tantas mulheres neste mundo desde os tempos
moela que estamos a falar. Não foram educadas pelas vossas mães? A sem memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este
senhora – o velho dirige-se à minha mãe – não educou a sua filha. Como povo deixou as suas raízes e apogalimou-se por influência da religião. Isla-
primeira esposa é a principal responsável por essa anarquia. Tem que vol- mizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-
tar a ensinar que a moela é sagrada. A moela e não as moelas. se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e
A minha mãe chora em silêncio. O seu choro é um canto de ausência, dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do
de dor e saudade. Pela irmã que morreu na savana distante nas garras meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poli-
de um leopardo, por causa de uma moela de galinha. Pela humilhação gamia. Cristalizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com
que sofremos eu e ela, duas gerações distintas seguindo o mesmo trilho. muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder
Revolto-me. Estou disposta a abrir a boca, a soltar todos os sapos e lagar- e renunciou. A prática mostrou que com uma poligamia tipo ilegal, infor-
tos, a incendiar tudo e vingar a honra da minha mãe ultrajada sem sequer mal sem cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costu-
olharem para a sua idade. De repente li a mensagem de paz nos olhos da mes, sim ao cristianismo e à lei. No momento seguinte, dizem não onde
minha mãe. Ela não quer que eu deixe falar a voz do silêncio. disseram sim, ou sim onde disseram não. (Chiziane, 2004, p. 92)
– Esses matadouros são um atentado aos nossos costumes – vocifera uma
outra velha –, a civilização está contra a nossa cultura. (Chiziane, 2004, O saber colonial produziu uma sociedade:
p. 153 e 154)
africana fictícia, mas real, como artefacto do poder colonial. Portanto,
Na visão de Amadou Hampâté Bâ, o interesse português pelos usos e costumes tradicionais em Moçambi-

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que, consubstanciado em profusos estudos realizados principalmente por imperial/colonial” que neutralizou as experiências de povos fora do eixo
administradores coloniais foi, portanto, principalmente motivado pela eurocêntrico. O despertar desses grupos toma força à medida que novas
necessidade de inventar uma sociedade africana susceptível de interven-
estratégias de ruptura são valorizadas. Sendo assim, quando Ki-Zerbo
ção colonial. (Macamo, 2002, p. 14)
(2006) diz que “não podemos separar os dois pés da história – a his-
Em relação ao saber africano, podemos dizer que é uma projeção tória-necessidade e a história-invenção” (p. 17), porque no momento
para o futuro: preciso a primeira se impõe para que o sujeito invente novos caminhos
para romper com um projeto saturado e excludente como o imperial/
Este saber africano não se deve confundir com o saber tradicional. O que
colonial, aonde “as identidades construídas pelos discursos europeus
se tem em mente é um tipo de saber que consiste na projecção duma ideia
de África no futuro a partir da confrontação entre o indivíduo e as con- modernos eram raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais”
dições objectivas da sua existência no momento actual. (Macamo, 2002, (Mignolo, 2008, p. 290). Num segundo estágio do processo em que
p. 15) a história-invenção fixou-se, a projeção do futuro encontra respaldo
naquilo silenciado pelo discurso eurocêntrico, as práticas comunitaris-
A projeção de um saber africano nasce com as ideias dissemina- tas que podem e devem ser fortalecidas pela “identidade em política”
das por Senghor, Aimé Cesaire, Du bois, dentre outros pensadores de (Mignolo, 2008, p. 290).
movimentos como o pan-africanismo e a negritude, que, ao definirem
a África como uma comunidade de saberes e valores distintos daqueles
referências bibliográficas
pregados pelo Ocidente, idealizaram um futuro resultante das experiên-
cias cotidianas. ABDALA Junior, B. De vôos e ilhas: literatura e comunitarismos. São Paulo: Ateliê
No livro Para quando a África? (2006), Ki-Zerbo faz a seguinte Editorial, 2003.
reflexão: CHIZIANE, P. Niketche: uma história da poligamia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
A história anda sobre dois pés: o da liberdade e o da necessidade. Se consi- HAMPÂTÉ-BÁ, A. Palavra africana. O correio da Unesco, Paris/Rio de Janeiro,
derarmos a história na sua duração e na sua totalidade, compreenderemos Ano 21, n. 11, nov. 1993.
que há, simultaneamente, continuidade e ruptura. Há períodos em que as
KI–ZERBO, J. Para quando a África? Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
invenções se atropelam: são as fases da liberdade criativa. E há momen-
tos em que, porque as contradições não foram resolvidas, as rupturas se LEITE, A. M. Literaturas africanas e formações pós-coloniais. Maputo: Imprensa
impõem: são as fases da necessidade. Na minha compreensão da história, Universitária, 2003.
os dois aspectos estão ligados. A liberdade representa a capacidade do ser MACAMO, E. A constituição de uma sociologia das sociedades africanas, 2002.
humano para inventar, para se projetar para diante rumo a novas opções, Estudos Moçambicanos, n. 19, p. 5-26. Disponível em: <http://www.casa-
adições, descobertas. E a necessidade representa as estruturas sociais, dasafricas.org.br/site/img/upload/468250.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2011.
econômicas e culturais que, pouco a pouco, vão se instalando, por vezes MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado
de forma subterrânea, até se imporem, desembocando à luz do dia numa de identidade em política. Cadernos de Letras, Niterói, n. 34, p. 287-325,
configuração nova. De uma certa maneira, a parte da necessidade da his- 2008.
tória escapa-nos, mas pode-se dizer que, mais cedo ou mais tarde, ela há
de se impor por si própria. (2006, p. 17)

A ideia de a história caminhar sobre dois pés fortalece significa-


tivamente os preceitos dos sistemas comunitários de ruptura com um
conhecimento construído a partir do “conhecimento ocidental e razão

184 185
Questões de poder e representação: saltar uma experiência viajante pouco enfocada em estudos dedicados a
essa vertente narrativa: a da mulher-escritora negra, duplamente discri-
conexões diaspóricas nas Américas1 minada, e com frequência excluída, por seu gênero e sua raça.
Longe de implicar igualdade de percepção e julgamento, todavia, as
Stelamaris Coser posições semelhantes em gênero e/ou raça por parte de viajantes/emis-
sores, por um lado, e das pessoas/comunidades observadas e possíveis
receptores, por outro, convidam à problematização de modelos e pro-
postas. “O interesse na confluência” e “na discussão de proximidades
e paralelismos”, como aponto em outro local (Coser, 2011, p. 152), “não
deve obliterar as especificidades de tempos, espaços e obras, e as dife-
rentes ideias de nação, região, cultura e história vinculadas” em diversos
discursos. Questões levantadas pela antropóloga Claudia de Lima Costa
sobre o “tráfego transnacional de teorias e conceitos”, a relação entre
local e global, e o papel da tradução cultural nesse processo, entre outras
referências da crítica cultural, feminista e pós-colonial, podem iluminar
Sou neta de africana. os desafios e dilemas presentes nos deslocamentos e interações em foco
Esta é a minha terra. (Costa, 2003).
Pego óleo de palmeira e esfrego no cabelo e corpo. Escritoras negras provenientes dos Estados Unidos têm cruzado as
Este é o meu lugar, minha parte do mundo.
bordas de seu país na direção sul por razões variadas, que às vezes se
Gayl Jones, Song for Anninho.2
interligam: migração temporária, pesquisa acadêmica, laços familiares,
turismo, participação em associações ou encontros políticos e/ou pro-
As reflexões neste trabalho giram em torno de construções das ideias de fissionais e, de modo especial, o interesse pela herança cultural africana
pertencimento e identidade associadas ao contexto da viagem e ao diá- dispersa ao longo do continente americano. Seus depoimentos e obser-
logo transnacional, tendo como ponto de partida depoimentos e impres- vações refletem e estimulam a crescente conexão de caráter feminista e
sões de viagem registradas por escritoras negras dos Estados Unidos, na diaspórico que se observa nas últimas décadas entre diversas partes das
segunda metade do século XX. Subjacente aos laços de afinidade e soli- Américas. Sem idealizar “as margens” (palavra tomada tanto no sentido
dariedade estimulados pela diáspora africana nas Américas, a interação espacial quanto sociocultural), como espaço inocente, nem obliterar o
com outras culturas, particularmente com o Brasil, faz-se também rele- contexto neocolonial onde ocorrem tais contatos, desejo considerar aqui
vante em relação à colonialidade e hegemonia no histórico das relações a possibilidade de “intervenções criativas” (termos de Lionnet e Shih,
interamericanas, à tradição imperial dos Estados Unidos e à qualidade 2005, p. 7) e de laços significativos como resultado desses cruzamentos.
assimétrica do intercâmbio norte-sul. No presente quadro, deseja-se res- Publicado originalmente nos Estados Unidos em 1929, o romance
Passing, de Nella Larsen (1891-1964), pode ser considerado precursor
1 Versão anterior deste trabalho foi publicada com o título “Representation and Power:
African American women writers embrace diasporic connections in the Americas” na de obras literárias contemporâneas que abordam ficcionalmente tais
revista Op. Cit., Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos, Lisboa, n. 9, p. sonhos e travessias. Inspira-se em fato empírico não muito propalado,
37-45, 2007/2010.
2 Em todo o ensaio, a tradução livre de textos originalmente publicados em inglês é de
um projeto de emigração desenvolvido pelo jornalista Robert Abbott
responsabilidade da autora deste trabalho. no início do século XX, tendo como objetivo trazer profissionais negros

186 187
dos Estados Unidos para o Brasil, atraídos pela representação deste país 1992), Alice Walker (1944-), Gayl Jones (1949-), Toni Morrison (1931-),
como paraíso racial. No enredo imaginado por Larsen, o personagem Ntozake Shange (1948-) e Paule Marshall (1929-).
Brian, desgostoso com a rigidez das classificações raciais e a segregação O local de enunciação surge como o primeiro fator a considerar: é
institucionalizada em seu país, sonha em mudar-se para o Brasil, onde a partir das posições ambíguas, problemáticas e múltiplas ocupadas por
as misturas raciais supostamente ocorreriam com maior liberdade, flui- mulheres negras nos Estados Unidos que seus olhares buscam o sul e
dez e harmonia. Compartilha do projeto de Abbott, mas seus planos cruzam fronteiras. O caráter instável e deslizante desses locais encontra
nunca se materializam (Nunes, 2002). Em décadas mais recentes, o inte- um complicador adicional no influxo constante de imigrantes naquele
resse manifestado por coisas do Brasil faz parte da tentativa de recupe- país: o cruzamento das diásporas de ontem e de hoje interfere tanto nas
rar fragmentos, reconstruir a história, afirmar e fortalecer a identidade relações sociais quanto nas representações discursivas. O lugar diferente
negra. Por ocasião do Primeiro Instituto para Estudos da Diáspora Afri- e fluído a partir do qual falam as mulheres (aqui referidas de um modo
cana em 1979, a comparação entre os dois maiores países do continente geral) é abordado por Claudia de Lima Costa (2003), que sublinha a
americano indicava que “o sentido de africanidade a nível cultural con- heterogeneidade e complexidade do campo, e a demanda de uma con-
tinua muito mais forte no Brasil do que na América do Norte”, segundo textualização política e histórica:
o sociólogo St Clair Drake (1982, p. 390).
Há um traço de simpatia e um olhar voltado para o Caribe e o Sempre situadas diferentemente nos sistemas de dominação, de privilégio
e de exclusão, narramos (e publicamos) a partir de um lugar (tanto em
hemisfério sul no estilo, linguagem e temática de boa parte da literatura
seu sentido literal quanto metafórico, quero dizer, como imaginado, polí-
feminina negra lançada nos Estados Unidos no período compreendido tico, mental, etc.). Procurar entender esse lugar em todas suas dimensões
entre 1965 e 1983, quando ocorre um “desenvolvimento relativamente nos leva à necessidade de historicizá-lo e de politizá-lo, permitindo, então,
sem precedentes” da ficção publicada por escritoras negras, evidenciado uma avaliação mais crítica da construção e institucionalização das dife-
pelo número de obras e o prestígio alcançado pelas autoras (Spillers, renças (e das práticas políticas que as articulam).
1985, p. 257). Assim como na historiografia desenvolvida pós-anos 60,
Diretamente relacionadas ao local de onde se fala estão as moti-
uma tendência que se torna clara na literatura negra daquele país de um
vações e roteiros de viagem. A necessidade de reconstruir a memória,
modo geral é o interesse manifesto por questões de raça e memórias da
recuperar fragmentos da história e integrar uma rede de solidariedade
escravidão aliado à consciência de espaços que ultrapassam e diferem do
direciona a atenção das escritoras dos Estados Unidos para além do
contexto nacional. Resulta daí o crescimento de estudos e escritos não
espaço nacional e, principalmente, para dentro da extensa faixa costeira
só sobre a África em processo de descolonização, mas também sobre os
ao longo do Atlântico caracterizada pela exploração colonial europeia
deslocamentos, a dispersão de povos, as semelhanças em experiências e
com mão de obra africana escrava – área denominada “the extended
identidades que vieram a formar-se nos muitos lugares que integram “o
Caribbean” [Caribe estendido ou expandido] por Wallerstein (1980, p.
que começava a ser chamado de diáspora africana” (Curtin, 1979, p. 2).
103) e “Afro-America” por Wagley (1968, p. 14). A tradução de legados
Conexões interamericanas literariamente imaginadas em obras
africanos, mesmo hibridizados, pode ser lida como estratégia de fortale-
de escritoras negras norte-americanas têm sido objeto de pesquisa e já
deram margem a diversas publicações (entre outras, Coser, 1995). Em cimento e poder através da consolidação de parcerias hemisféricas con-
vez de examinar as pontes criadas na poesia ou ficção, o recorte pro- tra pressões hegemônicas. Nesse sentido, as viagens podem contribuir
posto no presente trabalho privilegia as impressões de viagens a pon- para o remapeamento de comunidades culturais e o desenvolvimento de
tos específicos nas Américas publicadas em uma variedade de ensaios, relações com potencial de afetar ou desestabilizar afiliações nacionais.
relatos autobiográficos e entrevistas pelas escritoras Audre Lorde (1934- Segundo Lívio Sansone (2004, p. 28), “a demarcação de culturas ‘negras’

188 189
tem criado os contornos de uma área cultural transnacional, multilín- cionalidade que sugere a intercessão de ‘(des)ordens espaço-temporais
gue e multirreligiosa”, permitindo contatos e trocas intensificadas em múltiplas’ (Sassen, 211)”.3
tempos de globalização acelerada. Em face da longa tendência na sociedade e nas leis norte-america-
As narrativas hegemônicas produzidas nos Estados Unidos nos nas de polarizar entre negros e brancos, a exposição de viajantes a tradi-
séculos dezenove e vinte, de pronunciamentos oficiais a filmes de Holly- ções de hibridismo e sincretismo pode provocar respostas de surpresa,
wood, tendem a mostrar a América Latina como lugar da diferença não estranhamento, choque ou, ainda, o prazer da descoberta. Quando
branca a ser controlada e civilizada. Bem ao contrário, redes diaspóri- a poeta e memorialista Audre Lorde visitou a Cidade do México, por
cas criadas na literatura feminina negra cruzam fronteiras em busca de exemplo, a ansiedade cultural anteriormente relacionada à identidade se
similaridade e do fortalecimento da consciência negra. Principalmente transformou. Ao compartilhar um mundo de pessoas de cor semelhante
a partir do meio do século XX, a classe média negra dos Estados Unidos à sua, sentiu-se livre, visível e igual:
alcança maior exposição a viagens internacionais e a diferentes relações Onde quer que eu fosse havia rostos em todos os tons de marrom encon-
de raça e cor. Como tende a ocorrer com qualquer viajante, de modo trando o meu; e ver minha própria cor refletida nesse número tão grande
geral, suas observações de viagem se fazem “em casa”, isto é, são tra- de pessoas nas ruas foi motivo de afirmação totalmente nova e excitante
duzidas e construídas através de experiências e conceitos prévios. Ao para mim. Nunca tinha me sentido visível antes, nem percebido essa falta.
(Lorde, 1982, p. 154-156)
comentar sua própria história de deslocamentos e contatos acadêmi-
cos, a professora de Estudos Americanos Doris Friedensohn (1996, p. Tendo seus pais imigrantes chegado a Nova York vindo da ilha
2, 4) observa que “o visitante tem inevitavelmente uma visão estreita e de Granada, no Caribe, nos anos 1920, Audre Lorde cresceu pobre
autocentrada”, já que pessoas, paisagens e cenas são filtradas através das mas ouvindo histórias felizes sobre a vida caribenha e a celebrações de
memórias e expectativas de quem viaja e narra. união das mulheres negras. Lorde associa prazer e alegria a esses dois
O lugar a partir de onde se fala é também um aspecto determi- mundos híbridos, o México e a ilha; em sua percepção, estão livres das
nante na publicação e circulação de ideias e avaliações sobre locais visi- linhas demarcatórias rígidas de seu próprio país. Contrastam com o
tados. Ainda que parciais, os relatos de viajantes dos Estados Unidos sofrimento encontrado “neste áspero país chamado america”,4 onde sua
sobre as regiões e povos latino-americanos têm maior possibilidade de mãe precisou redefinir-se como “Spanish”5 para conseguir um emprego
circular e serem estabelecidos como verdade do que o inverso; na geo- na cidade nos anos difíceis da Depressão. “O racismo americano foi a
grafia de poder, o hemisfério sul ocupa uma posição de relativa infe- nova e esmagadora realidade que meus pais tiveram que enfrentar todos
rioridade mesmo em relação aos “fluxos globais de símbolos e objetos os dias da vida desde que vieram morar neste país”, conta a escritora
negros” (Sansone, 2004, p. 133). Se, como argumenta Sansone (p. 131), (Lorde, 1982, p. 11, 69).
a cultura dos Estados Unidos é também hegemônica na construção e
circulação de uma cultura negra global, objetos e práticas de grupos
negros estrangeiros só “viajam” se forem tornados devidamente “inteli- 3 Lionnet e Shih fazem referência ao artigo de Saskia Sassen, “Spacialities and temporalities
gíveis pelas lentes da cultura negra norte-americana”. Resta lembrar, no of the global: elements for a theorization”, publicado em Public Culture, v 12, n. 1, 2000, p.
215-232.
entanto, que o local e o nacional não são locais puros e incontaminados
4 A letra minúscula é aqui mantida na forma sarcasticamente usada por Lorde em seu livro
em clara oposição ao global. Como argumentam Lionnet e Shih (2005, de memórias.
p. 6), “o nacional não é mais o local de tempo homogêneo e espaço 5 “Espanhol/a”, em tradução literal. O termo era comumente aplicado a imigrantes latinos
mestiços e ocorre também no romance Corregidora, de Gayl Jones, indicando um status
territorializado, mas, sim, cada vez mais modulado por uma transna- social intermediário entre o negro e o branco.

190 191
A alegria de Lorde espelhando-se nas faces mexicanas pode ser Diferentemente dos negros americanos, que nunca se sentiram à vontade
relacionada ao sentimento de Alice Walker em relação ao mesmo país, sendo americanos, os negros cubanos que cresceram no período da Revo-
lução não manifestavam qualquer orgulho especial pelo fato de serem
para onde rumou em busca de paz e liberdade. Cruzando a fronteira,
negros. Eles sentem um grande orgulho em serem cubanos. [...] Quanto
como tantos índios e negros dos Estados Unidos já haviam feito, Walker mais insistíamos em nos definirmos como negros e falar da cultura negra,
acabou decidindo possuir também uma casa no México, já na década mais distantes e confusos eles ficavam. (Walker, 1983, p. 210-11)
de 1990, alimentando assim uma combinação de interesses pela língua,
o povo, a cultura, a mistura de indígena e negro, a espiritualidade e a Aos poucos compreende que, ao esperar que conceitos e classifica-
ecologia (WALKER, 1999). ções fossem universalmente verdadeiros, estava reproduzindo a arro-
Por outro lado, a primeira visita feita por Alice Walker à ilha de Cuba gância etnocêntrica que sempre a incomodara em seu próprio país. A
foi inicialmente marcada pelo estranhamento. Em relato autobiográfico descoberta de que as categorias são contextuais e históricas permite-lhe
escrito em 1977 e inserido na coletânea In search of our mothers’ gardens, admirar “a síntese de heranças africanas e espanholas” que percebe na
Walker lembra de si mesma aos 18 anos, no ano de 1962 (portanto um cultura dominante em Cuba e, por fim, aceitar o fato de que “os jovens
ano depois do episódio Baía dos Porcos). Jovem universitária pacifista cubanos não viam a si mesmos da mesma maneira” como ela os perce-
e politicamente ignorante, ela foi contagiada pela música, a dança e a bia. “Assim como sua música, estavam bem inseridos na cultura e não
empolgação política de estudantes cubanos que, como ela, participavam precisavam propor linhas divisórias com base na cor, nem apresentar
do VIII Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em Helsinque, qualquer definição de si mesmos”, conclui Walker (1983, p. 212).
Finlândia, cujo tema era “Pela Paz e Amizade”. Imediatamente absor- Em relação a gênero e opção sexual, entretanto, foi um choque para
vida por um livro sobre Fidel Castro que ganhou de presente, sua rea- a escritora constatar o tratamento injusto e discriminatório dado pelo
ção emocionada foi transportar mentalmente aqueles revolucionários governo aos homossexuais, sob a alegação de proteger as famílias. Para
para seu ambiente familiar, associando-os a líderes como Luther King que não influenciassem os jovens, por exemplo, eles eram impedidos de
e Malcolm X, entre tantos outros que, nos Estados Unidos, também se exercer profissões como o ensino e a medicina. Na aparência das mulhe-
rebelavam contra a opressão. res, Walker censura o excesso de maquiagem nas faces e a constante tin-
Nascida no sul dos Estados Unidos e testemunha de intensa segre- tura loura nos cabelos, e gostaria de maior interferência por parte dos
gação e discriminação, Walker vislumbrou em Cuba uma esperança líderes revolucionários no sentido de coibir a popularidade de imagens
real para os pobres, analfabetos, negros, os socialmente marginalizados. femininas eurocêntricas. Em ambos os casos, porém, Walker aceita a
A oportunidade de conhecer o país acontece afinal em 1977, quando explicação oficial de que a revolução se desenvolvia como um processo
é escolhida para integrar um grupo de artistas, escritores e músicos dinâmico; confia em mudanças futuras, inclusive com a ajuda de “traba-
negros dos Estados Unidos para uma visita de duas semanas (WALKER, lhadores culturais” dos Estados Unidos como ela própria (Walker, 1983,
1999).6 Chegando à ilha, porém, ressente-se com (o que considerou ser) p. 209, 218-219).
a falta de orgulho negro, e surpreende-se ao constatar que as línguas Ao registrar mais adiante essas impressões sobre Cuba, reconhece
inglesa e espanhola pareciam adotar significados diferentes para um que o relato é composto de meros “fragmentos” de sua experiência de
mesmo termo. Sobre as experiências contrastantes em relação à identi- viagem e que sua “visão de Cuba não é nem definitiva nem completa”
dade nacional e racial, ela descreve: (1983, p. 203). Ela retornaria diversas vezes e sua admiração por Fidel se
mostraria duradoura: “se soubesse dançar”, disse brincando numa entre-
6 Como Walker explica na mesma fonte citada, a seleção do grupo visitante foi feita em vista em 1999, ele seria o homem perfeito (Walker, 1999). Em 2008,
conjunto por editores da revista Black Scholar e o Instituto Cubano de Amizade entre os
Povos – ICAP.
ano de eleições presidenciais nos Estados Unidos tendo Barack Obama

192 193
como candidato democrata, Walker defende que o futuro presidente “uma espécie de arqueologia literária” que, embora ficcional, preencha
mostre humanidade e amor por seu povo, da maneira como Fidel ama o lacunas e conte histórias ainda não registradas. Inseriu ilhas e perso-
povo cubano (Walker, 2008). nagens caribenhas no romance Tar Baby, 1981, traduzido como Pérola
Por sua vez, a escritora Gayl Jones, também sulista do estado de Negra, mas em geral direciona sua ficção para a trágica experiência
Kentucky, situa seu interesse pelo Brasil num contexto “afro-americano” negra em seu país. Para tanto, concilia a imaginação com as próprias
bem mais amplo do que os limites geográficos de seu país. Preocupada memórias, a história oral, os fatos históricos conhecidos e as inspira-
em canalizar para a literatura fatos e personagens da história feminina e doras “narrativas autobiográficas dos escravos” de seu país (Morrison,
negra do continente, seu desejo seria escrever sobre “todo o continente 1987a, p. 116-120). Chegou a fazer pesquisas sobre a escravidão no Brasil
americano” e “os negros em todo e qualquer lugar”. Não viajou fisica- quando buscava informações históricas e objetos materiais relaciona-
mente até o Brasil, mas dedicou-se a estudar sobre o país em seu curso das ao passado escravo para compor seu romance Beloved (1987), desde
de mestrado e, desde então, a criar textos literários em prosa e verso instrumentos de prisão e tortura até peças produzidas e utilizadas pelos
com base em fatos reais da história brasileira. Jones reinventou as dores escravos na vida diária. Frustrada com a carência de dados em museus
e glórias de nosso passado colonial, inclusive Palmares, no romance dos Estados Unidos, Morrison ficou bem impressionada com o que
Corregidora (1975) e no poema narrativo Song for Anninho (1981), entre encontrou aqui: “No Brasil [...] tudo foi preservado. Tive uma grande
outras obras. Como ela mesma declara, a experiência com “a história e ajuda por lá” (apud Clemons, 1987; destaque original).
a paisagem brasileiras,” ainda que “puramente literária e imaginativa,” Em 1990 esteve no país para lançar seu romance Pérola Negra na
alimentou sua imaginação e seu trabalho, dando-lhe novas perspecti- Bienal do Livro de São Paulo, quando, segundo a Veja (Lirismo..., p.
vas sobre a história de seu próprio país (Jones, 1982, p. 40-41). Não se 103), renovou contatos com a amiga escritora Nélida Piñon, que conhe-
tratava de rotular um ou outro sistema escravista como mais ameno ou cera na década de 1970 através da editora Random House, onde Mor-
menos cruel: em entrevista a Roseann Bell (1979b), na comparação entre rison tinha um cargo influente e Piñon começava a publicar em inglês.
as histórias dos escravos nos Estados Unidos e Brasil, Jones conclui ser Também visitou Salvador, acompanhada por Iara Rodrigues, editora da
impossível determinar qual teria sido a mais opressora. Best Seller, e se encantou com a cidade, segundo a reportagem. Morri-
Toni Morrison, uma das escritoras mais reconhecidas e premiadas son em geral evita atrair atenção da mídia sobre si ou dar declarações
de seu país – inclusive com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993 –, pessoais à imprensa, mas teria declarado privadamente, segundo Piñon:
nasceu em comunidade racialmente segregada no estado de Ohio, para “Se eu tivesse de escolher uma segunda pátria, não escolheria nenhum
onde vieram seus avós maternos por volta de 1910, em busca de trabalho país europeu. Eu escolheria o Brasil. Como negra, aqui me sentiria em
e segurança, fugindo da situação muito mais opressiva no estado sulista casa. Como americana, teria também amplos espaços geográficos para
do Alabama.7 Ouviu deles relatos sobre os horrores da escravidão e me expandir.” Em 2006 participou como convidada especial da IV FLIP
aprendeu a respeitar suas raízes familiares culturais e admirar a resistên- (Festa Literária Internacional de Paraty), quando comentou sobre o
cia das mulheres negras. sentimento de nacionalidade e, no seu caso pessoal, a interferência das
Focalizando locais e períodos diversos, mas interessada nas marcas viagens. Admitiu que não se sentia americana em sua juventude pelo
da escravidão e nos legados do sistema colonial, Morrison tenta criar fato de não ter os direitos de uma verdadeira cidadã; a descoberta da
nacionalidade deu-se justamente com o afastamento geográfico e cul-
7 Em face da pobreza, ao crescimento da Ku Klux Klan e à continuada ausência de direi- tural. “Mais tarde, quando viajei para outros países, é que percebi como
tos civis, iniciava-se a Grande Migração que levou aproximadamente seis milhões de
negros da área rural do sul dos Estados Unidos para as regiões urbanas do meio-oeste
eu era americana, e muito. E é por me sentir americana que a frustra-
americano. ção, a raiva e, preciso dizer, a vergonha é tão absoluta com o comporta-

194 195
mento recente da liderança do meu país no mundo,” declarou a escritora inspiram a Shange os ensaios, conversas e receitas culinárias reunidas
(Morrison, 2006). na coletânea If I Can Cook/You Know God Can, publicada em 1998. A
A princípio, a dançarina, produtora cultural e escritora Ntozake escritora manifesta agora sentimentos contraditórios em suas impres-
Shange percebeu o Brasil em estado de quase encantamento. A dança e sões sobre o Brasil, após contatos repetidos com os hábitos e mazelas do
a música foram os fatores primordiais que a atraíram ao país e acabaram país. Relata, por exemplo, como ficou impressionada e triste pelo fato
influenciando seu trabalho, como ela mesma declara: “Deve-se enten- de pessoas que lhe pareciam “colored” não serem em geral considera-
der que, quando faço teatro, o Haiti está em minha cabeça, mas o Brasil das afro-descendentes ou africanas; manifesta sua revolta contra o tra-
está em meus quadris” (apud King Jr., 2003). Apresentada à Capoeira tamento arbitrário dado pela polícia a favelados pobres, na maioria de
durante o festival “Black Dance America” em Brooklyn, Nova York, 1983, cor negra; e, também, narra sua própria indignação quanto à preferência
Shange interpretou os movimentos que combinam dança e luta como de estudantes baianos em se identificarem com os orixás do candomblé
“um produto direto da importação, assim como nós fomos, do litoral de afro-brasileiro.
Angola”. Uma série de visitas ao Brasil a aproximaram mais da música, A experiência de ensino na cidade de Salvador, capital da Bahia,
das paisagens, da história, da comida e da língua deste país, além de estado brasileiro com a proporção mais alta de afrodescendentes na
lhe proporcionarem uma sensação de proximidade com a África. Ela população, mostrou a Ntozake Shange formas de lidar com a herança
justifica a grande presença de africanismos pelo fato do país contar com africana que contrariaram suas expectativas. Segundo a escritora, os
“a concentração mais alta de pessoas de descendência africana fora do estereótipos e o folclore apenas contribuem para manter os negros em
continente da África” (Shange, 1998, p. 38, 37). posição de alteridade. No livro (finalizado em 1997 e publicado no ano
A descoberta dos ritmos brasileiros teve importância direta para a seguinte), ela conta um episódio ilustrativo ocorrido vinte anos antes
criação artística e a experiência profissional de Shange nos palcos. O tea- (portanto 1976-1977, aproximadamente):
tro negro dos Estados Unidos, segundo ela, havia se tornado artificial,
Pedi a uma turma de alunos meus da universidade na Bahia para escolher
insípido e europeizado, e sua intenção era injetar poesia e dança, em um tema e apresentar em sala a parte inicial de uma performance ou uma
novas formas de performance dramática, de modo a afirmar a cultura e peça curta em um ato, baseando-se em suas vidas e no mundo como eles
refletir as vidas da maioria das pessoas negras que, como a dela, eram o compreendiam. Absolutamente todas as apresentações se basearam em
marcadas por “música & movimento”. Dança e música enriqueceriam um mito; mito africano verdadeiro, sim, mas de qualquer forma um mito.
[...]. Isso era alarmante! Meus estudantes passavam para si mesmos ates-
o teatro tanto por expressar prazer e sensualidade quanto por afirmar
tados de “outro”, quando eles não eram o outro. (Shange, 1998, p. 31-32)
e fortalecer a diáspora africana no continente americano. Nas palavras
de Shange: “Nossos caminhos se cruzaram no oceano.[...] Há sempre Tomada pela decepção, e julgando estereotípicas e erradas as esco-
um caráter de continuidade em nossos movimentos, sutil, erótico, ali- lhas feitas pelos alunos ao se identificarem com figuras da tradição
mentado pela história conhecida e desconhecida” (Shange, 1984, p. 19, religiosa, Shange tentou trazê-los para o mundo real (familiar a ela e a
48-50). A importância brasileira no mapa da diáspora leva a escritora a seu país em tempos de Guerra Fria). Recomendou que pensassem na
afirmar que “os africanos e africanos-americanos que visitam o Brasil ameaça atômica e se dedicassem aos conflitos internacionais de poten-
saem dali com um apego quase místico” (1998, p. 39). cial bélico, como narra a seguir:
Além da música, as heranças africanas na alimentação em diversas
partes do “Atlântico Negro”,8 já traduzidas e transformadas pela diáspora, Contive minha frustração o máximo de tempo que consegui, até que final-
mente pedi que parassem um minuto. Então perguntei, com toda a calma
que consegui aparentar, “O que aconteceria a todos nós em Salvador se
8 Uso o termo de Gilroy, porém geográfica e culturalmente expandido.

196 197
explodisse uma bomba atômica?” [...] Fez-se um silêncio terrível na sala. É num espectro transnacional. Em momentos diversos, Paul Gilroy, Wal-
mais fácil esconder-se dentro de um mito. (Shange, 1998, p. 32) ter Mignolo e Livio Sansone já enfatizaram que a identidade não é um
conceito transcultural construído de modo idêntico deste e do outro
Junto a outras instâncias de entusiasmo ou de desilusão registradas
lado da fronteira. A tensão criada entre Shange e seus alunos na Bahia
nas diversas interações interamericanas em foco neste trabalho, o silên-
parece indicar que essa identidade se faz num processo dinâmico, como
cio da cena final denota a complexidade da tradução cultural. Desde os
“um constructo social de caráter contingente e que difere de um con-
anos 1970, Shange tem oferecido a leitores e plateias trabalhos híbridos
texto para outro”, com marcadores étnicos e fronteiras deslocando-se no
que combinam ideias políticas radicais com movimentos de dança sen-
tempo e no espaço (Sansone, p. 12). A pergunta levantada por Édouard
sual e hedonista que remetem à herança africana, ao estado da Bahia e,
Glissant faz-se relevante nesse contexto:
às vezes, ao Brasil como um todo. Reafirma a associação entre o corpo
e a identidade negra, o que pode ser visto por alguns como estereótipo, Ora, no atual panorama do mundo uma questão importante se apresenta:
mas não aceita a ambiguidade brasileira nas classificações raciais, nem como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem
o caráter religioso da cultura baiana.9 Por ironia, foi principalmente perder-se a si mesmo? Essa é uma questão que as culturas compósitas no
mundo das Américas propõem e ilustram. (Glissant, 2005, p. 28)
devido à influência do Candomblé disseminada na vida social e cultural
da Bahia que o estado recebeu uma colocação tão destacada na escala de Como lembra Costa sobre a complexidade das posições, “qualquer
africanismos de Herskovits (1941, apud Sansone), e continua atraindo lugar ou local se encontra pontilhado e fraturado por diferenças e ten-
tantos visitantes afro-americanos. Ao lado da capoeira, da música e sões, por circuitos e fronteiras que não podem ser representadas por,
das danças, o sistema religioso que já fascinou antropólogos e sociólo- nem contidas em, nenhum modelo binário das relações de poder”. Os
gos tem sido tradicionalmente associado à africanidade e à identidade contextos de recepção, por sua vez, também são “marcados por relações
baiana. Mesmo para os que não acreditam em espíritos e divindades, o de poder e marginalidade”, que “viabilizam a circulação de certos textos
Candomblé da Bahia pode ser orgulhosamente usado como “um sím- e a invisibilidade de outros”, podendo tanto promover quanto negati-
bolo da negritude”, afirma Sansone (2004, p. 108-109, 147), e é frequente- var imagens e questões “nos diálogos Norte-Sul” ou, “em nível nacional,
mente percebido ou vivenciado pela população local e/ou por observa- ao longo do contínuo centro-periferia” (Costa, 2003). Os marcadores
dores como uma conexão significativa e sólida. Nesse quadro, pode-se também mudam de posição e valor entre nativos e/ou segmentos diver-
indagar se esses símbolos já se encontrariam esvaziados pelo consumo e sos do mesmo local ou país, de modo que estratégias potencialmente
a propaganda oficial. Por outro lado, seriam os orixás realmente impor- positivas para o fortalecimento de grupos oprimidos ou minoritários
tantes nas vidas de todos aqueles universitários, alunos de Shange, ou, (como, digamos, os cultos e orixás de origem africana) podem ser des-
talvez, alguns pensaram em atender ou agradar à professora, optando cartados tanto por ativistas politicamente radicais, por exemplo, quanto
por apresentar algo considerado marcadamente “negro”? por membros de denominações religiosas mais rígidas. Por outro lado,
A iconicidade africana tem sido continuamente reinventada no dada sua popularidade entre artistas famosos e formadores de opinião,
Brasil e em outros pontos das Américas, amalgamando especificidades nos últimos tempos, símbolos e rituais podem ser incentivados pelo
regionais e influências internacionalizantes. Ao viajar entre culturas, os poder constituído e recomendados para consumo turístico, renovando-
símbolos e significados são constantemente reinterpretados e manipula- se assim a ideologia de união nacional em bases populares e compro-
dos, de modo que a “cultura negra” não se cristaliza, homogeneamente, vando uma suposta abertura democrática.
Outras escritoras negras dos Estados Unidos, como Paule Marshall,
9 Opiniões que não são exclusivas dela, é claro, mas já manifestadas por pessoas dos dois
países.
voltam-se para questões políticas e conflitos contemporâneos, mas tam-

198 199
bém valorizam a recuperação de histórias orais e rituais religiosos da (apud Lester, 1995, p. 278). Gayl Jones também revela sua aproximação
diáspora africana, estratégia cultural que pode iluminar a política e a literária a Márquez e Fuentes, escritores que influenciaram diretamente
história. Nesse sentido, a viagem de retorno a locais de memória mos- suas “noções de ficção” com a mistura de história, mito, narrativas orais
tra-se uma manobra de resistência contra as forças do capitalismo e do e responsabilidade moral e social. Jones deseja engajar-se com eles nessa
eurocentrismo, o que ela elabora em diversos textos ficcionais, em espe- nova e abrangente narrativa do continente, que deverá expressar uma
cial no romance Praisesong for the widow, de 1983. Na opinião de Mar- vasta “herança americana” que seja também “ameríndia e africana”
shall (1984, p. 199, 205), o fator mais alienante na sociedade dos Estados (Jones, 1979a, p. 365-67). Morrison é igualmente admiradora das his-
Unidos é a “absorção quase cega de coisas materiais”, o que provoca uma tórias mágicas e sobrenaturais, da diversidade cultural, das referências
“diminuição de vida e de sentimento”. Além disso, a despeito de alguns históricas e do compromisso social que percebe na literatura da América
pontos interculturais convergentes, ela considera que “o povo negro na Latina, sobretudo nas obras de García Márquez, como já declarou em
verdade constitui uma nação à parte” em seu país. diversas entrevistas (e.g. 1981b).10 Os depoimentos comprovam a popu-
Marshall (1991) afirma ter encontrado a força necessária para sobre- laridade da tradução dos principais escritores do “Boom” latino-ameri-
viver às pressões sociais na associação com a diáspora africana e suas cano nos Estados Unidos e sua importância, não só para a nova ficção
histórias de fé e resistência. Seu interesse em registrar “a história dos feminina negra que se firmava nos anos 1970-80, como também para a
negros no hemisfério” é particularmente ligado ao desejo de expres- aproximação entre os hemisférios e suas literaturas.
sar e conectar “as duas culturas que a criaram”, ou seja, a comunidade Estas e outras escritoras negras dos Estados Unidos dedicam-se
negra dos Estados Unidos e a do Caribe inglês, já que ela nasceu no a “narrar a nação”, inclusive em seus relatos de viagem, rearticulando
Brooklyn, Nova York, mas é filha de pais imigrantes da pequena ilha noções de identidade e cultura. Em face de um passado traumático e de
de Barbados (Marshall, 1992, p. 5, 15). De forma crítica e politizada, um presente caracterizado pela fragmentação, buscam sinais de solida-
a escritora busca a reconstrução da história como “antídoto contra a riedade e parceria em outros pontos da diáspora negra nas Américas.
mentira”, a distorção, ou o silêncio oficial, particularmente a história das Tentam encontrar, assim, fragmentos perdidos, articular fatos, sons e
mulheres negras, e explica: “Interessa-me descobrir e desenterrar o que imagens que ajudem na escrita da história e na compreensão da cultura.
foi positivo em nossa experiência hemisférica: a luta pela sobrevivência As armadilhas das idealizações cristalizadas e dos binarismos estão sem-
e superação.” Sempre focalizando partes do “Caribe estendido” em suas pre presentes, é claro, parecendo oferecer escudos mais seguros contra
obras de ficção, Marshall dedica um dos contos da coletânea Soul clap o esquecimento e/ou a subalternidade. O Brasil, como outros pontos da
hands and sing (1961) ao “Brazil”, costurando no texto observações que diáspora, pode ainda ser procurado como “o refúgio certo e a solução
pode ter feito do país durante visitas como correspondente da revista de para os problemas individuais” de negros norte-americanos inteligentes
cultura negra Our World, na década de 1950. e bem-sucedidos, como prometia o jornalista Robert Abbott em 1923
Além das impressões de viagem, as escritoras Ntozake Shange, Gayl (apud Nunes, 2002, p. 50).
Jones e Toni Morrison também manifestam simpatia e admiração por As posições das escritoras citadas podem mostrar ambivalência
escritores da América Latina e do Caribe que reinventam na ficção o em relação à cultura dominante: ainda que às vezes se posicionem de
hibridismo cultural e os dilemas sociais, econômicos e políticos de suas forma defensiva e antagônica, elas negociam um lugar pessoal e coletivo,
regiões. Shange encontrou em muitos desses autores “uma referência procuram abrir fendas e possibilidades de intervenção, e trabalham efe-
hemisférica ocidental que [a] salva do que é traiçoeiro e pérfido nas
literaturas norte-americana & européia”, como ela registra, enaltecendo 10 Morrison também já teve seu trabalho comparado por diversos críticos a García Marquez
“a habilidade técnica e a caracterização brilhante” de García Marquez e a outros escritores latino-americanos (Coser, 1995, p. 81-106, 193-194).

200 201
tivamente para a transformação de seu país. Dentro duma abordagem policial e à censura popular em seu país, Alice Walker visita e cria vín-
pós-colonial de seus escritos, é importante observar a diferença entre culos com o país de Fidel em meio à guerra verbal e sérias ameaças entre
sua situação e a de outras escritoras em situação de exílio ou imigração Estados Unidos e Cuba, que até hoje se refletem no bloqueio econômico
recente, por exemplo. As trajetórias pessoais e familiares envolvem per- oficial e nos medos de grande parte da população. Há línguas diferentes
das, migrações e deslocamentos que demandam atenção por suas espe- envolvidas, intérpretes de níveis diversos, pressões sociais ou políticas e
cificidades em relação ao tempo histórico e ao contexto local, nacional custo pessoal bem variado nas viagens e interações focalizadas. Por fim,
e internacional. Uma estratégia importante em sua experiência tem sido como aponta Mignolo (2003, p. 315), os deslocamentos transnacionais
a construção de redes interamericanas e laterais. Segundo a análise de nos levam a considerar as bordas e suas inevitáveis contaminações de
Françoise Lionnet e Shu-Mei Shih (2005, p. 2), as redes rizomáticas são valores entre as nações, mas também os diferentes percursos em relação
favorecidas por processos peculiares à globalização e podem oferecer à modernidade e “a assimetria entre as línguas” dentro da “colonialidade
alternativas localizadas ou diaspóricas às estruturas de poder centrali- do poder e do conhecimento no sistema mundial moderno”.
zado. Assim, as relações com espaços e grupos externos – mas próximos, James Clifford (1997) argumenta que “viagem” é um termo de tradu-
de várias e importantes maneiras –, atuam como rede de apoio, infor- ção, aplicado de forma contingente e estratégica, dando margem a inter-
mação e poder para escritoras negras dos Estados Unidos que tentam pretações e representações necessariamente provisórias e incompletas.
remapear o mundo “afro-americano” (em sentido nacional e continen- Sempre vulnerável e dependente da tradução, o diálogo transnacional é
tal) através da associação com parceiros na diáspora africana impulsio- constantemente exposto à simplificação e/ou à idealização. Além da ine-
nada há séculos pelo colonialismo. vitabilidade de significados escorregadios e ambíguos, é preciso conside-
Além de relevantes na trajetória individual das respectivas escri- rar as hierarquias desiguais de poder e as tendências gerais no mercado
toras, as experiências de viagem apontam a aproximação de pessoas, comercial e cultural. Por isso, Cláudia Lima Costa (2003) defende que a
culturas e histórias de pontos diversos do continente americano e são tradução transcultural de conceitos e teorias é “necessariamente infiel”,
parte do processo de crescimento e fortalecimento da consciência dias- sempre situada no tempo e espaço e caracterizada por nunca viajar sozi-
pórica. Tanto as dificuldades, estranhamentos e decepções, quanto o nha. Adotando uma metáfora que parece bastante apropriada para o
entusiasmo e a empolgação podem iluminar não só características indi- tema aqui desenvolvido, Costa afirma que os textos e ideias, assim como
viduais de classe, raça, gênero e nacionalidade que, entre outras, interfe- as pessoas, cruzam fronteiras carregando passaporte e visto e acompa-
rem nas expectativas e interesses de quem viaja, mas também as especi- nham as trilhas e tendências já abertas pela circulação de outros textos,
ficidades do lugar e aspectos do momento político e econômico que as movimentos, e representantes da elite acadêmica. Sobre as viagens, Mig-
recebe. Apesar de seus textos terem sido igualmente escritos e publica- nolo (2003, p. 256) sustenta de forma semelhante que “assim como as
dos originalmente em inglês e no país onde residem, os Estados Unidos, teorias, os estudiosos e intelectuais também viajam. E relacionam-se de
a demarcação do “lugar de onde se fala” envolve uma complexidade de modo diferente com os temas à mão”. Em outras palavras, “a produção
fatores que desestabiliza qualquer expectativa de classificações e genera- do conhecimento é inseparável do local geo-histórico e os locais histó-
lizações monolíticas. Há níveis diversos de vulnerabilidade social, des- ricos, no mundo colonial/moderno, foram moldados pela colonialidade
locamento e postura crítica em relação a seu país de nascimento, e dife- do poder”. Por consequência, as teorias e os acadêmicos que viajam “não
rentes graus de flexibilidade e aceitação de espaços outros. As escritoras podem evitar as marcas inscritas em seu corpo pela colonialidade do
Marshall e Lorde, por exemplo, têm uma dupla exposição à diáspora, poder que, em última análise, orientam sua reflexão”.
como negras norte-americanas e como caribenhas, e o deslocamento Assim como nos tópicos e cenários escolhidos por escritoras negras
agrega novas percepções sobre identidade e lugar. Expondo-se ao olhar contemporâneas, foco deste trabalho, a “transnacionalização progres-

202 203
siva da comunidade acadêmica” (Costa, 2003) tem provocado efeitos COSTA, Cláudia de Lima. As publicações feministas e a política transnacional da
na teorização e no conteúdo das disciplinas. Este estudo tenta, de certa tradução: reflexões do campo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.
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interamericano, atentando para a necessária incompletude, variabili-
CURTIN, Philip D. The African diaspora. Historical Reflections, v. 6, n. 1, p. 1017,
dade e renovação que de imediato se instala. Como alerta, poeticamente,
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206 207
Na cartografia do romance afro-brasileiro, encontra-se em fase de conclusão uma antologia crítica com estudos
dos autores selecionados, trazendo ao final depoimentos de escritores e
Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves1 de estudiosos voltados para o resgate dessa escrita, bem como de artigos
abordando sua especificidade e o lugar por ela ocupado em nossa pro-
Eduardo de Assis Duarte dução letrada.
Num pequeno retrospecto histórico, pode-se afirmar que, a partir
de fins dos anos 1970, a produção de escritores que assumem seu per-
tencimento étnico cresce em volume e começa a ocupar espaço na cena
cultural, ao mesmo tempo em que as demandas do movimento negro
ampliam sua visibilidade. Desde então, cresce da mesma forma, mas não
na mesma intensidade, a reflexão acadêmica voltada para esses escritos,
que, ao longo do século XX, fora privilégio quase exclusivo de pesquisa-
dores estrangeiros como Bastide, Sayers, Rabassa e Brookshaw.
Para tanto, contribuiu enormemente o trabalho seminal de poetas e
prosadores em organizações como o Quilombhoje, de São Paulo, a que se
A história é uma seleção natural. Versões mutantes do passado somaram grupos de escritores de Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre
lutam pelo domínio; surgem novas espécies de fato, e as verda- e outras capitais. E, passadas três décadas de intensa busca pela amplia-
des antigas, antediluvianas, ficam contra a parede, com os olhos ção de seu horizonte recepcional, a literatura afro-brasileira adquire
vendados, fumando o último cigarro. Só sobrevivem as muta-
ções dos fortes. Os fracos, os anônimos, os derrotados deixam legitimidade crescente, tanto nos cursos de graduação e pós-graduação
poucas marcas. (...) A história só ama aqueles que a dominam: é e nas listas dos vestibulares de universidades públicas e privadas quanto
uma relação de escravidão mútua. no meio editorial. A série Cadernos Negros completou em 2008 trinta e
Salman Rushdie um anos de publicação ininterrupta, e um romance voltado para a his-
tória não oficial dos afrodescendentes como Um defeito de cor, de Ana
As reflexões que se seguem têm como ponto de partida o projeto inte- Maria Gonçalves, objeto dessas reflexões, foi acolhido por uma editora
grado Afrodescendências: raça/etnia na cultura brasileira, que empreen- de grande porte.
deu o mapeamento da produção de duzentos e cinquenta escritores Não há dúvida de que, por um lado, a ampliação da chamada “classe
afro-brasileiros. Os resultados iniciais do levantamento estão num média negra”, com um número crescente de profissionais com forma-
banco de dados disponível para consulta no NEIA – Núcleo de Estudos ção superior buscando lugar no mercado de trabalho e no universo do
Interdisciplinares da Alteridade, da FALE-UFMG. Desse conjunto, foram consumo e, por outro, a instituição de mecanismos como a Lei 10.639
escolhidos cerca de cento e vinte escritores com obra individual publi- ou as Ações Afirmativas, vem contribuindo para a construção de um
cada, cujos perfis – notícia biográfica, bibliografia, fontes de consulta, ambiente favorável a uma presença mais significativa das artes marcadas
inclusive digitais, estudo crítico e seleta de textos –, estão sendo dispo- pelo pertencimento étnico. Tais constatações escapam aos propósitos de
nibilizados para consulta no literafro – Portal da Literatura Afro-bra- uma crítica literária stricto sensu e, também, aos objetivos desse texto.
sileira, através do endereço www.letras.ufmg.br/literafro. Além disso, Funcionam, todavia, como pano de fundo para lembrar que, ampliados
1 Publicado anteriormente em Tornquist, C. S. et al. (orgs.). Leituras da resistência: corpo,
o público e a demanda por estudos abordando tais escritos, ampliam-
violência e poder. Florianópolis: Editora Mulheres, (2009, p. 325-348). se igualmente as responsabilidades dos agentes que atuam nos espaços

208 209
voltados para a pesquisa e a historiografia literárias, em especial nas Ins- Por outro lado, se retrocedermos nossas observações à primeira
tituições de Ensino Superior. metade do século XX, não poderemos descartar a tradição do negrismo
modernista, na qual se destacam, entre outros, Jorge de Lima e Raul
a questão conceitual Bopp ou os escritores do grupo mineiro “Leite Criôlo”. E, nesse caso, não
teremos como compará-los à literatura de Luís Silva (Cuti), Oswaldo de
O momento é, pois, propício à construção de operadores teóricos com Camargo ou Eustáquio José Rodrigues: o que existiria de semelhante,
eficácia suficiente para ampliar a reflexão crítica e dotá-la de instru- sob qualquer ângulo de abordagem, entre a Ponciá Vicêncio, de Con-
mentos mais precisos de atuação. Nesse sentido, cabe avaliar o “estado ceição Evaristo e a Nega Fulô, de Jorge de Lima? O ponto de vista que
da arte” de dois desses instrumentos, a saber, os conceitos de literatura conduz a perspectiva dos Poemas negros, deste último, é bem outro,
negra e de literatura afro-brasileira. externo e folclórico, na linha do que Oswald de Andrade cognominou
A publicação dos Cadernos contribuiu significativamente para a de “macumba para turistas”. E, por mais que Urucungo, de Raul Bopp se
consolidação de um conceito de literatura negra empenhada, a partir de aproprie de ritmos e entonações oriundas de uma oralidade de raiz afri-
um perfil editorial marcado predominantemente pelo protesto contra cana, não há como negar que a literatura negra desses autores é outra.
o racismo, tanto na prosa quanto na poesia, na linha da tradição mili- Na esteira do legado modernista, críticos como Benedita Gouveia
tante vinculada ao movimento negro, como demonstra Florentina da Damasceno (1988) e Domício Proença Filho (1988) também conferem
Silva Souza (2005; 2006). Para Zilá Bernd (1987), tais textos destacam ao conceito um sentido distinto daquele assumido pelos escritores vin-
a presença de um “eu enunciador” que se quer e se proclama descen- culados ao espírito do Quilombhoje, caracterizado nitidamente pelo
dente de africanos. Ao posicionamento da voz autoral, acrescenta-se o reducionismo temático, que não leva em conta o pertencimento étnico
tema do negro, enquanto individualidade e coletividade, inserção social e a perspectiva autoral. Assim, por tais peculiaridades, já se podem vis-
e memória cultural. E, também, a busca de um público afrodescendente, lumbrar as limitações operacionais do conceito. Há ainda outra vertente,
a partir da formalização de uma linguagem que denuncia o estereótipo de natureza mercadológica, que diz respeito ao texto “negro” como sinô-
como agente discursivo da discriminação. A propósito, Ironides Rodri- nimo de narrativa de terror, violência e suspense, no estilo do romance
gues, um dos mais destacados intelectuais da geração anterior ao Qui- e do filme noir da indústria cultural. Portanto, da militância e celebração
lombhoje declara em depoimento a Luiza Lobo: identitária ao negrismo folclorizador, passando por escritos distantes
A literatura negra é aquela desenvolvida por autor negro ou mulato que tanto de um extremo como de outro, vemos que a “literatura negra” são
escreva sobre sua raça dentro do significado do que é ser negro, da cor muitas, o que, no mínimo, enfraquece e limita sua eficácia enquanto
negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concernem: reli- operador teórico, a par do inegável simbolismo político.
gião, sociedade, racismo. Ele tem que se assumir como negro. (2007, p. 266) Já o termo afro-brasileiro, por sua própria configuração semântica,
remete ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde
Ao longo das três últimas décadas, os Cadernos pouco se distan-
a chegada dos primeiros escravos. Processo de hibridação étnica e lin-
ciam desta postura incisiva – que se transformou em marca registrada
guística, religiosa e cultural. Poder-se-ia dizer, com Antonio Candido,
–, e que termina por afastá-los de posicionamentos menos empenhados
que, afro-brasileiros são também todos os que provêm ou pertencem a
em termos de militância, como, por exemplo, o do poeta Edimilson de
famílias mais antigas, cuja genealogia remonta ao período anterior aos
Almeida Pereira, dos ficcionistas Muniz Sodré, Nei Lopes, Joel Rufino
grandes fluxos migratórios do século XIX. E, como este, outros reparos
dos Santos ou, no campo da escrita infanto-juvenil, Júlio Emílio Braz e
poderiam ser arrolados, dado o caráter não essencialista do termo. Para
Heloisa Pires, para citarmos apenas alguns contemporâneos.
Luís Silva (Cuti), ele funciona como elemento atenuador que diluiria o

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sentido político contido na palavra “negro”. É certo que, por abraçarem há um sujeito de enunciação que se quer e se assume negro, como o
toda a gama de variações fenotípicas inerentes à mestiçagem, termos “Orfeu de Carapinha” Luís Gama. Daí a dificuldade de enquadrar “Pai
como afro-brasileiro ou afrodescendente trazem em si o risco de assu- contra mãe” ou Úrsula como “literatura negra”, e não apenas devido à
mirem sentido análogo ao do signo “pardo”, tão presente nas estatísticas sobrecarga de sentidos folclorizantes ou políticos agregados ao conceito.
do IBGE quanto execrado pelos fundamentalistas do orgulho racial tra- Nesse contexto, vemos o conceito de “literatura afro-brasileira”
duzido no slogan “100% negro”. como uma formulação mais elástica e mais produtiva. Ele abarca tanto a
Deixando de lado polêmicas de fundo sociológico, antropológico e assunção explícita de um sujeito étnico – que se faz presente numa série
político, também é certo que não há, sobretudo no Brasil, uma literatura que vai de Luís Gama a Cuti, passando pelo “negro ou mulato, como
100% negra, tomada aqui a palavra como sinônimo de africana. Nem a queiram”, de Lima Barreto –, quanto abarca o dissimulado lugar de
África é uma só, como nos demonstra Apiah (1997), nem o romance, o enunciação que abriga Machado, Firmina, Cruz e Sousa, além de Patro-
conto ou o poema afro-brasileiros são construções provindas integral e cínio, Paula Brito, Gonçalves Crespo e tantos mais. Acreditamos, pois,
unicamente do Atlântico Negro (Gilroy, 2001). Num universo cultural na maior pertinência do conceito de “literatura afro-brasileira”, presente
como o nosso, onde verdadeiras constelações discursivas – localizadas em nossos estudos literários desde o livro pioneiro de Roger Bastide
tanto regionalmente quanto no que Nora denomina “lugares de memó- (1943), com os equívocos, é certo, que aquele momento histórico não
ria” – se dispõem ao constante reprocessamento, insistir num viés essen- permitia a ele superar, em especial no tocante a Cruz e Sousa. E também
cialista pode gerar mais polêmicas do que ferramentas teóricas e críticas presente nas reflexões de Maria Nazareth Fonseca (2000; 2002; 2006),
eficientes para o trabalho pedagógico de formar leitores. Moema Augel (2007) e, mais enfaticamente, de Luiza Lobo (2007). Ado-
A afro-brasilidade, uma vez aplicada à configuração da literatura tado, enfim, por praticamente todos os que lidam com a questão nos
que se deseja pertencente à etnicidade afrodescendente, configura-se, dias de hoje. E, também, encampado pelos próprios autores do Quilom-
por outro lado, como perturbador suplemento de sentido ao conceito bhoje, seja nos subtítulos dos Cadernos Negros, seja no próprio volume
de literatura brasileira, sobretudo àquele que a coloca como “ramo” da teórico-crítico lançado pelo grupo, em 1985, com o título de Reflexões
portuguesa. Além disso, inscreve-se como um operador capacitado a sobre a literatura afro-brasileira.
abarcar melhor, por sua amplitude necessariamente compósita, as várias Mas, juntamente com a configuração terminológica, que elemen-
tendências existentes na demarcação discursiva desse campo identitário tos distinguiriam tal produção? Apesar do caráter polêmico inerente a
em sua expressão literária. qualquer inscrição identitária ou política nos estudos literários, e de ser
Um bom exemplo pode estar na produção de autores do século ainda um conceito em construção, algumas marcas discursivas podem
XIX remanescentes de africanos, submetidos à hegemonia do branquea- ser destacadas: temas afro-brasileiros; construções linguísticas marca-
mento como passaporte para a aceitação social. E, ainda, submetidos a das por uma afro-brasilidade de tom, de ritmo, sintaxe ou sentido; uma
um pensamento científico que praticamente os proibia de se considera- voz autoral afro-brasileira, explícita ou não no discurso; um projeto de
rem negros ou mulatos, a exemplo de Maria Firmina dos Reis, Machado transitividade discursiva, explícito ou não, com vistas ao universo recep-
de Assis e tantos outros. Autores impelidos a uma negrícia ou negrura cional; mas, sobretudo, um lugar de enunciação que conforma um ponto
abafadas, e tendo na literatura uma forma consciente ou inconsciente de vista política e culturalmente identificado à afro-descendência, como
de expressão de uma espécie de retorno do recalcado.2 Em ambos, não fim e começo.3

2 Sobre a poética da dissimulação na obra de Machado de Assis, ver Duarte (2007b). 3 Ver a propósito Duarte 2007a.

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o romance afro-brasileiro fazem a partir de um importante ponto de vista interno, que expressa um
lugar de enunciação distinto daquele consagrado majoritariamente pelo
Assim, ao longo da pesquisa vem se confirmando a existência de um cânone. Tais textos, postos em diálogo com a produção mais recente,
veio afro em nossas letras, a partir de dois marcos referenciais, ambos como A noite dos cristais (1996), de Luiz Carlos de Santana, Ponciá
datados da década de 1850, momento em que a literatura do novo país Vicêncio (2003) ou Becos da memória (2006), de Conceição Evaristo, e
dava seus primeiros passos: as publicações das Trovas burlescas, de Luís Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, compõem um insti-
Gama, e do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Luís Gama, gante painel social e humano do negro no Brasil e propiciam a releitura
homem de letras abolicionista, baiano nascido livre e vendido como da trajetória do romance brasileiro a partir de um viés étnico e cultural.
escravo pelo próprio pai, fez história no auge do período escravista ao Através dela é possível a tessitura de um fio condutor, com seus pontos
posicionar seus escritos “nas abas do Parnaso”, declarando-se “Orfeu de de confluência e de descontinuidade, que leva ao desvelamento – e, ao
Carapinha”, sempre em busca da musa negra, sua “musa de azeviche”. Já mesmo tempo, à construção, de uma linhagem ainda não de todo esta-
Firmina, ao colocar o escravo Túlio como referência moral da narrativa, belecida em nossas letras – a do romance afro-brasileiro.
inverte em seu romance a ordem axiológica que rebaixava o negro e a É nesse contexto que situamos Um defeito de cor, de Ana Maria
mulher. E, pela voz da preta Suzana, faz a África surgir pela primeira vez Gonçalves. Publicado em 2006 e vencedor do “Prémio Casa de las Amé-
em nossas letras como lugar de liberdade. Já o tráfico, tem suas entra- ricas”, o romance de 950 páginas se destaca nessa vertente visualizada
nhas expostas nas inéditas cenas em que se narra em detalhes o porão até agora. E isto, não apenas por inscrever o cotidiano de horrores da
do navio negreiro, cenas que, quase um século e meio depois, vão estar escravidão (tantas vezes recalcado) a partir de uma perspectiva femi-
também na narrativa de Ana Maria Gonçalves. nina e afrodescendente. Só esse fato já seria suficiente para lê-lo com
A partir desses dois marcos iniciais, vai sendo cartografada uma redobrada atenção. O romance brasileiro ostenta, via de regra, uma con-
vertente afro na literatura brasileira. No entanto, desde as últimas déca- siderável hegemonia masculina, tanto na autoria, quanto no protago-
das do século XIX e, ao longo de todo o século XX, é visível a predo- nismo ou no universo representado. A tônica tem sido o predomínio
minância da poesia na literatura dos autores pesquisados. De Luís de narrativas exemplares de homens de relevo, sempre que se trata de
Gama a Cuti, passando por Lino Guedes, Solano Trindade, Oswaldo de representar o passado e de construir uma imagem gloriosa de nação a
Camargo, Adão Ventura, ou Oliveira Silveira, o poema torna-se o modo partir dos feitos dos heróis fundadores.
de expressão preferido. Já a prosa de ficção tem no conto sua forma mais Vinculado à descrença pós-moderna que interpreta o discurso da
expressiva e volumosa, abarcando o trabalho de inúmeros autores, entre História como narrativa, (White, 1992, LaCapra, 1985) o texto de Ana
eles, os citados Cuti e Oswaldo de Camargo, mas também Miriam Alves, Maria Gonçalves se faz metaficção historiográfica (Hutcheon, 1991)
Henrique Cunha Jr., Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa, Geni Guima- para abrigar outros relatos, inclusive aqueles não reconhecidos como
rães, Conceição Evaristo, Nei Lopes, Muniz Sodré, entre outros. fontes científicas, origem de uma possível verdade dos fatos. Nesse dia-
Ao lado do conto, porém, narrativas como a já citada Úrsula, logismo, emergem as vozes de uma memória afro-brasileira colocada
que, diga-se de passagem, amargou longas décadas no esquecimento, nos antípodas da história oficial, que tensiona o discurso do romance
ou Mota Coqueiro, que José do Patrocínio traz à luz em 1877, além do rumo ao acoplamento e coabitação de versões díspares.
Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto ou os praticamente desconhe- Um defeito de cor tem início com um prólogo da autora, em que esta
cidos Água funda (1946), de Ruth Guimarães e A maldição de Canaã situa historicamente a narrativa ao falar do projeto de escrever sobre o
(1951), de Romeu Cruzoé, assumem a forma do romance para inscrever levante dos Malês, ocorrido em Salvador em 1835, e do encontro casual
os múltiplos aspectos da condição afro-descendente em nosso país. E o de um manuscrito em português arcaico guardado por muitos anos na

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“Igreja do Sacramento, na vila de Itaparica [...] em um cantinho dos fun- projeto de fazer romance histórico, tal como referendado na tradição
dos da casa paroquial” (2006, p. 15). O suposto manuscrito nada mais é literária ocidental, pois, entre Um defeito de cor e a Revolta dos Malês
do que Um defeito de cor e, ao final do prólogo, Ana Maria Gonçalves e, mesmo, a biografia da escrava interpõe-se o manuscrito, construto
se despede, não sem antes desejar “boa leitura” e explicar que “apenas discursivo que expressa um determinado olhar sobre os acontecimentos
alguns trechos” são ficção e foram escritos para cobrir partes perdidas e funciona como instância mediadora entre presente e passado, entre o
do original. O prefácio cumpre a função de paratexto metaficcional e que o leitor vai ler e o que de fato pode ter acontecido. Esse descompro-
com isto passa a integrar o enredo, recobrindo-o com o velho artifício misso com a verdade dos fatos própria ao discurso da história é refor-
de emoldurar a criação com a aura do discurso testemunhal. A autora/ çado pela “confissão” de que, ao passar o texto a limpo, a escritora “com-
prefaciadora se esconde atrás de sua personagem e ainda provoca o lei- pleta” o relato com trechos de sua autoria.4
tor: “Torço para que seja verdade, para que seja ela própria a pessoa que A referência maior do universo representado é a lendária figura
viveu e relatou quase tudo o que você vai ler nesse livro.” (2006, p. 17, de Luísa Mahin, sempre invocada como personagem do levante e sím-
grifos nossos). bolo da resistência à escravidão. O ponto de partida da ação é, como
Já de início se evidencia, pois, o caráter metaficcional do romance, vimos, o encontro do manuscrito: texto pretensamente autobiográfico,
em que figuras da memória histórica e cultural afro-brasileira são apro- misto de diário, relato histórico e epístola ao filho, e assumido, desde
priadas pela narrativa e ganham a forma de seres de papel submetidos a primeira linha, por Kehinde – avatar ficcional de Mahin. Nomes e
à vontade autoral, que devassa seus recônditos mais íntimos para res- vidas de mulheres negras se imbricam em definitivo quando o leitor,
saltar uma humanidade às vezes heroica, às vezes miúda e prosaica. O ainda no prólogo, descobre que o “destinatário” do texto que ele vai
prólogo, ao mesmo tempo em que põe em relevo o perfil propriamente ler em primeira pessoa é ninguém menos do que o poeta Luís Gama,
romanesco do material a ser fruído pelo leitor – visível já na própria tido como filho de Mahin, e também feito personagem por Ana Maria
narrativa do achamento do “manuscrito” e presente nos inúmeros aca- Gonçalves. Já de início, monta-se, pois, uma tríplice textura narrativa
sos e peripécias vividas ao longo do entrecho –, aponta igualmente para ou tripé textual, com a ficção se postando interessada às margens das
a história dos africanos e seus descendentes no Brasil, em especial, para histórias de vida da mãe e do filho. Mais adiante, o romance sacramenta
o processo de resistência à dominação escravista. E mais: destaca, como o vínculo ao fazer a personagem, já de volta à África, assumir também
num lead jornalístico, a referência à Revolta dos Malês, celebrada como o nome lusitano de Luísa. Mahin, Kehinde; Luís, Luísa. Entre a lenda e
um dos momentos maiores de insubordinação contra o sistema que a história, a ficção.
reduzia os negros a peças da engrenagem de produção fundada no tra- Em carta autobiográfica enviada ao amigo Lúcio de Mendonça e
balho escravo. publicada no Almanaque literário de São Paulo para o ano de 1881, Luís
Além disso, o artifício do manuscrito cumpre a função não menos Gama, então já no fim da vida e reconhecido por sua militância aboli-
importante de destacar que a romancista não detém em seu arquivo a cionista, afirma:
verdade dos fatos que compõem a história de sua heroína. Antes de pas-
sar a palavra à personagem, a autora faz questão de inscrever a existên-
cia – e a incorporação – de um texto outro, vindo de um outro tempo e 4 A propósito dessa mediação, afirma Linda Hutcheon: “A metaficção historiográfica [...]
ressalta a natureza discursiva de todas as referências – literárias e historiográficas. O refe-
de um outro sujeito, como elo entre a sua voz e a da personagem. Desde rente é sempre já inserido nos discursos de nossa cultura. Isso não é motivo de desespero;
o início, desincumbe-se, portanto, da função de guardiã de uma pos- é o principal vínculo do texto com o “mundo”, um vínculo que reconhece sua identidade
como construto, e não o simulacro de um exterior ‘real’. Mais uma vez, isso não nega que
sível veracidade do narrado, numa atitude típica da pós-modernidade, o passado ‘real’ tenha existido; apenas condiciona nossa forma de conhecer esse passado.
presente em diversos escritos contemporâneos. Descarta desta forma o Só podemos conhecê-lo por meio de seus vestígios, de suas relíquias.” (1991, p. 158).

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Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa da Mina (Nagô nagôs
de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a “é aminhã, Luisa Mahin falô”
doutrina cristã. (Alves, 1998, p. 104)
Minha mãe era de baixa estatura, magra, bonita, a cor era de um preto
retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito Tal qual celebração ritualística, o poema difunde e faz jus ao esta-
altiva, geniosa, insofrida e vingativa. tuto heroico com que o discurso da memória social afrodescendente
Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma entroniza a personagem. Para além da historiografia, o nome de Mahin
vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insur-
é transformado em símbolo de luta e resistência e tem lugar garantido
reições de escravos, que não tiveram efeito. (apud Lisboa, 1982, p. 50)
na memória da diáspora africana no Brasil: mulher que supera o avil-
O poeta fala do desaparecimento da mãe, das tentativas de encontrá-la tamento inerente à escravidão, participa de uma revolta importante,
e, em seguida, do drama de sua escravização em 1840, aos dez anos, pelas e ainda lega a seu povo um filho ilustre, que sobrevive ao tumbeiro, à
mãos do pai, a fim de que este saldasse uma dívida de jogo. A carta é de senzala e, o mais importante, à traição do próprio pai, para se tornar,
domínio público, está disponível no portal literafro e em outros sítios da também ele, ícone de libertação. Ouçamos o texto no momento em que
Internet. Sua autenticidade é referendada pelos biógrafos de Gama, em a mãe revela detalhes da vida do filho que ela própria não teve a chance
especial, Sud Mennucci (1938) e Elciene Azevedo (1999). E talvez seja de acompanhar e que toma conhecimento através do relato de terceiros:
documento único a indicar a filiação do poeta à heroína presente no
Na segunda carta, ele dava muitos detalhes de você, contando tudo sobre
imaginário da comunidade afro-brasileira.5 a sua vida, que você era amanuense e que também advogava em favor dos
Ao longo do século XX, o movimento negro, em seus diversos escravos, conseguindo libertar muitos deles. Que você estava casado, tinha
momentos, venera e resguarda a memória de Luísa Mahin. Nome feito filhos e era maçom, que escrevia poesias e era muito respeitado por publi-
lenda, inclusive pela escassez de dados historiográficos a seu respeito, car artigos belíssimos e cheios de inteligência nos jornais mais importan-
tes da cidade, e dava inclusive a sua morada. (Gonçalves, 2006, p. 946)
a imagem da revolucionária inscreve-se na literatura afro-brasileira,
como nos belos versos de Miriam Alves em “Mahin Amanhã”: O perfil de homem público ostentado pelo filho só se mostra ao
Ouve-se nos cantos a conspiração leitor nos instantes finais da narrativa, momento em que a mãe, velha
vozes baixas sussurram frases precisas e cega, navega pela última vez rumo à terra de seu cativeiro e liberta-
escorre nos becos a lâmina das adagas ção, para mais um encontro frustrado. Ao longo do texto, Luís Gama,
multidão tropeça nas pedras
na condição de receptor mudo do que se lê, é presença obrigatória,
[...]
“é amanhã, é amanhã” mas algo misteriosa para quem desconhece sua biografia que, de resto,
sussurram guarda passagens dignas de qualquer romance. Mas é uma onipresença
Malês esquiva, corporificada no “você” remissivo construído pelas referên-
bantus cias da personagem. Quanto a Kehinde/Luísa, afastada do filho ainda
geges
criança, o que sabe (e revela) sobre ele, vem do depoimento de terceiros,
5 Há suspeitas de que Luís Gama tenha criado para si essa mãe heroica a fim de utilizar sua
e mais uma vez o romance endossa a teoria contemporânea a respeito do
imagem na propagação do ideal abolicionista. A própria Ana Maria Gonçalves levanta estatuto discursivo das referências.
a questão ainda no prólogo: “Especula-se que ela [Luisa Mahin] pode ser apenas uma Ao conferir ao texto o formato de correspondência materna para o
lenda, inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis ou, no
caso, em heroínas, que apareciam para salvá-los da condição desumana em que viviam. filho ausente, a autora “feminiza” a narrativa e faz da saga de Luísa Mahin
Ou então uma lenda inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os um “relato de mãe” com tudo o que isto implica: abre espaço para o tri-
sete anos, idade em que pais e mães são grandes heróis para os filhos.” (2006, p. 16)

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vial cotidiano em meio ao movimento maior dos fatos, mescla história conquista da liberdade à longa procura do rebento vendido e de suas
social com história familiar, e dramas individuais com coletivos. Nessa raízes, são contínuos os trânsitos. No entanto, a superação do cativeiro
linha, dialoga com Úrsula, de Maria Firmina dos Reis e com os textos de em seus diversos aspectos marca o sujeito diaspórico cujos vínculos
Carolina Maria de Jesus, entre outros escritos de autoria afro-brasileira familiares e afetivos se desfazem nas ondas do Atlântico Negro para
e feminina, ao demarcar o ponto de vista da mulher sobre a diáspora serem refeitos a seguir.
africana no Brasil. E mais: centra o enredo nas iniciativas da protago- Centrado na trajetória da heroína, o romance encena no feminino
nista, o que relega aos homens um papel eminentemente secundário e a saga africana no Brasil. Afasta-se, talvez por isto mesmo, do monolo-
menor frente às ações da protagonista. E mesmo a figura do líder Alufá gismo próprio à epicidade encomiástica e do maniqueísmo pelo qual
Licutã, “o mais culto dos malês”, conforme indicado no prólogo, desapa- todo branco é explorador e todo negro é vítima. As marcas da violên-
rece diante das peripécias vividas por Kehinde e seus companheiros nos cia patriarcal e escravista estão também em África, cenário primeiro e
momentos conturbados em que se prepara e se dá curso à insurreição. último da trama. A infância de Kehinde em Savalu, no Daomé, é mar-
Além disso, a forma epistolar constrói um destinatário ficcional cada pela visão do estupro seguido de assassinato da mãe e do sacrifício
para seu escrito e este é ninguém menos que um dos ícones da campa- do irmão mais velho pelas mãos dos guerreiros do rei Adandozan. Em
nha abolicionista e da história do negro no Brasil, transformado agora seu manuscrito, a africana narra a viagem com a irmã e a avó até Uidá,
em leitor implícito do romance que se quer relato biográfico. A operação sua permanência nesse entreposto de comércio e tráfico; o aprisiona-
é engenhosa e eleva o pretenso destinatário à figuração metafórica do lei- mento pelos negreiros; a longa viagem ao Brasil, marcada pela morte da
tor ideal elaborado textualmente: o público afrodescendente instruído, avó e da irmã; e a chegada ao litoral baiano.
quiçá engajado e militante como Luís Gama, ainda carente de uma saga Nesse momento, as trajetórias de Kehinde e Mahin se aproximam.
heroica dos antepassados. Essa inclinação para o delineamento de um Despojada de todos os laços afetivos no mundo terreno – o Aiê da cos-
horizonte recepcional específico é típica da literatura afro-brasileira feita mogonia iorubá –, mas acompanhada pelos ancestrais no mundo invisí-
a partir do século XX e se deixa ver na própria escolha dos títulos. vel do Orum, a personagem, ainda no navio, recusa o batismo e se joga
A expressão Um defeito de cor traz à baila a prática discriminató- no mar. Gesto extremo de busca e afirmação identitária, a cena remete a
ria vigente no período colonial de vedar aos descendentes de africanos, vários significados. No limiar de vida e morte, tem-se um outro batismo:
mesmo livres, o acesso a cargos públicos ou eclesiásticos, a não ser que a passagem do tempo pretérito de liberdade ao presente de escravidão;
renegassem sua identidade de origem – o “defeito de cor” – e se decla- e o deslocamento do lugar de origem para o do desterro. E, como signo
rassem brancos. Por outro lado, o título funciona como precioso índice mediador desse trânsito, o oceano – elo entre o lá e o cá, o antes e o
temático que conforma um determinado horizonte de expectativas, e agora. O gesto sacrificial não redunda em morte, Kehinde “renasce” ao
dialoga, entre outros, com o Negro preto cor da noite, de Lino Guedes sair do porão – a tumba do tumbeiro –, e tomar contato com as águas.
(1932), com os Poemas negros, de Solano Trindade (1936), com o Sortilé- Seu mergulho indica a recusa à aculturação e a defesa dos valores que
gio – mistério negro, de Abdias do Nascimento (1957), com A cor da pele, traz dentro de si. Chega, pois, fortalecida ao novo continente, terra em
de Adão Ventura (1980) e também com os citados Cadernos Negros. que terá de fazer muitas concessões para sobreviver, comprar a liber-
Um defeito de cor promove, pois, a inscrição metaficcional de um dade, ganhar e perder de tudo um pouco, até voltar ao torrão natal.
duplo relato de vida, com a inversão, todavia, da ênfase e do próprio O romance toma a forma do testemunho para incursionar pela
foco narrativo, que passa à mãe, tornada epicentro da trama. Órfã até crônica da escravidão a partir de um olhar interno à afro-brasilidade,
do filho, Kehinde volta aos primeiros anos para desfiar ao leitor a expe- oposto ao branco, mas que não idealiza a África, nem o negro. Os
riência da transitoriedade: da infância nômade à escravização; e da horrores da viagem no porão e do cativeiro na plantação no interior

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baiano surgem em registro realista de tal ordem, que chega ao estupro construtora de palacetes e introdutora da arquitetura luso-brasileira no
de um escravo pelo senhor. As faces da violência escravista convivem, Golfo do Benin. O romance se afasta da univocidade e do monologismo
no entanto, com bons relacionamentos. A narrativa remete à história de que marcam a saga tradicional. Como inúmeros negros e negras livres
homens e mulheres submetidos à escravidão tanto rural quanto urbana presentes na memória da escravidão, também ela convive com a compra
e destaca a cidade como locus privilegiado para a conquista paulatina de seres humanos. Tantas identificações em processo apontam para o
de uma vida mais livre e sem os rigores das fazendas, onde a vontade trânsito diaspórico a abalar o império da essência e do uno identitários.
dos senhores era lei. Na cidade, negros e negras vão para o “ganho” nas Kehinde se desdobra em Luísa para estar em ambas as faces da violência
ruas, integram irmandades e muitos conquistam a alforria, passando de escravista, objeto e sujeito da história.
simples vendedores a comerciantes, vez por outra bem-sucedidos, como O texto descarta a existência de uma verdade única, primeira ou
no exemplo de Kehinde. eterna e isto se aplica tanto ao perfil da protagonista, marcada pela
Noutra vertente, o texto dialoga com a nova historiografia e incor- identidade rizomática6 própria ao trânsito diaspórico, quanto às diver-
pora a denúncia de que os ingleses, formalmente contrários ao tráfico e sas formações culturais com as quais seu relato dialoga, em especial, no
responsáveis por persegui-lo, forneciam as armas e a pólvora com que que toca ao discurso religioso, presente em diferentes manifestações.
os reis africanos capturavam mais e mais escravos. Nessa linha, também Nesse aspecto, o descentramento marca igualmente o ponto de vista
aponta a presença de brasileiros, mais especificamente, baianos, como afro-brasileiro que engendra os valores da narrativa, marcados pela
agentes do tráfico, a exemplo de Francisco Félix de Souza, o “Chachá”, recusa do etnocentrismo e por um olhar relativista e plural que não
espécie de Vice-rei de Uidá, líder de um “enclave” brasileiro no Golfo do aceita a intolerância:
Benim, e fundador de uma oligarquia que vigora após sua morte man-
Ele [o padre] não gostou nem um pouco do meu comentário sugerindo
tendo os mesmos métodos: que todas as religiões eram irmãs, ou pelo menos primas, e disse que talvez
sim, bem no início, quando as pessoas ainda não conheciam o verdadeiro
O Julião [Félix de Souza] foi o Chachá de que mais gostei, e não apenas
Deus, mas que na nossa época já estava mais do que certo que a Igreja
porque era um dos melhores amigos do João, mas também por ser homem
Católica era a única aprovada e comandada por Deus, o único e o ver-
de grandes idéias, muito trabalhador e justo, embora tivesse quase recu-
dadeiro. Fiquei com raiva de mim porque tinha muitas coisas para falar
perado a fortuna do pai, o primeiro Chachá, fazendo o que ele fazia e eu
sobre isso, discordando dele, mas não consegui. (Gonçalves, 2006, p. 838)
reprovava, o tráfico de escravos. (Gonçalves, 2006, p. 926)

A passagem evidencia o novo perfil assumido pela personagem Na sequência, a voz narrativa acrescenta que “ninguém poderia
que, mesmo mantendo seus princípios, flexibiliza-os a fim de con- dizer qual fé era mais forte ou mais verdadeira, pois Deus escutava a
viver e negociar com as elites locais. Deste modo, a faceta crítica do todos, desde que fosse do fundo do coração e em nome do bem.” (Gon-
çalves, 2006, 839). Mais adiante, a personagem volta à questão e fala da
texto engloba também a protagonista, mostrada nos avessos da intimi-
dade próprios ao testemunho. Kehinde é “heroína”, mas tem seu lado vigilância que exercia sobre Salif, um muçurumim encarregado de dar
de “empreendedora”: a órfã escravizada que busca o oceano-útero de aulas a João e Maria Clara, seus ibêjis nascidos em África. Isto porque o
Iemanjá para não ter nome português, cede lugar à adulta retornada muçulmano não perdia a oportunidade de entronizar Alá como “Deus
que admite mesclar o catolicismo à sua crença de origem e adota o verdadeiro” e de ler para as crianças trechos do Alcorão em português.
nome ocidental. Vence o pragmatismo, Kehinde enriquece e passa a A recusa da personagem em endossar uma crença única, que acarrete
ser também a “Dona Luísa” que todos respeitam e até a “Sinhá Luísa”, 6 Para o conceito de rizoma, ver Deleuze e Guattari (1997); e, ainda a reflexão de Édouard
comerciante astuta e bem-sucedida que ascende à burguesia local como Glissant (2005) sobre as identidades rizomáticas no âmbito da diáspora africana nas
Américas.

222 223
o rebaixamento das demais, estende-se ao romance como um todo. O com banhos, orações e objetos mágicos protetores, sem, contudo, lograr
ecumenismo da protagonista expressa a axiologia do texto, que recusa êxito, pois não conta com o apoio da filha, cristã educada na Europa.
os fundamentalismos e manifesta sua distância quanto ao centramento A crença ancestral povoa o discurso e as ações da personagem tanto
religioso e cultural. quanto seus hábitos capitalistas e ocidentais. Embora caracterize certos
Deste modo, a narrativa expressa uma sensibilidade especifica- grupos nativos de “selvagens”, a voz narrativa e o romance como um todo
mente contemporânea frente à complexidade inerente às relações étnicas ressaltam constantemente a humanidade que, na diferença, os caracte-
e culturais. E situa no passado de sua protagonista o olhar descentrado riza. Costumes como a poligamia, adotada por seu filho João, incensado
com que são encaradas no presente as tensões próprias ao encontro nem no texto como um dos primeiros africanos formados em engenharia na
sempre amistoso das civilizações. Se, em sua tessitura linguística, mes- França, são aceitos e justificados como parte do ethos local. Deste modo,
cla termos iorubá ao português do Brasil, e não apenas para dar mais o texto celebra a convivência multicultural e o respeito à diferença, ao
verossimilhança à fala da personagem, Um defeito de cor endossa em sua mesmo tempo em que descarta o etnocentrismo:
visão de mundo a perspectiva do sujeito diaspórico que guarda consigo
[...] fiquei muito espantada com o que ouvi logo depois, que em uma época
as marcas da cultura e da religiosidade trazidas das várias Áfricas aqui não muito distante da nossa, os religiosos europeus se perguntavam se os
chegadas. Marcas que se assentam em contato com a diferença, num selvagens da África e os indígenas do Brasil poderiam ser considerados
enraizamento rizomático que as transforma sem apagar certos funda- gente. Ou seja, eles tinham dúvida se nós éramos humanos e se podíamos
mentos, traços sobreviventes ao processo transculturador. Dentre estes, ser admitidos como católicos, se conseguiríamos pensar o suficiente para
entender o que significava tal privilégio. Eu achava que era só no Brasil que
ganha destaque o lugar ocupado na narrativa pelo discurso religioso.
os pretos tinham que pedir licença do defeito de cor para serem padres,
Como se sabe, a cristianização forçada dos africanos e descendentes foi mas vi que não, que na África também era assim. Aliás, em África, defei-
um dos instrumentos fundamentais para a construção de identidades tuosos deviam ser os brancos, já que aquela era a nossa terra e éramos
submetidas. Juntamente com a perda do nome e da língua de origem, em maior número. O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me
o sequestro dos deuses, o apagamento da crença. Daí o forte sentido de sentia muito mais gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre.
Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande
resistência ao etnocídio exercido pelos cultos afro-brasileiros desde os qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar
tempos da colônia. do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado
No romance, eguns e orixás fazem-se presentes na fala de Kehinde com tanto êxito. (Gonçalves, 2006, p. 893)
como forças vitais que a conduzem, evidenciando a permanência de suas
convicções e crenças de origem. A voz narrativa menciona em detalhe Ao retomar no final um de seus temas centrais, o romance nova-
entidades, cerimônias e obrigações, e as integra ao enredo, junto com mente refuta o pensamento ocidental que, ao longo dos séculos, excluiu
mães e pais de santo encarregados dos cultos. Já os abikus – crianças a África e os africanos da civilização. Enquanto estratégia de aculturação
que, de acordo com a religiosidade afro-brasileira, portam espíritos que e submetimento, o “defeito de cor” rendeu frutos perversos ao longo
não se adaptam ao mundo terreno e buscam retornar logo ao Orum –, do empreendimento colonial já por demais conhecidos e ainda hoje
povoam a trajetória de Kehinde desde o início: na infância, um irmão; presentes. Dentre eles, o mais grave talvez tenha sido o silenciamento
na juventude, um filho; na velhice, um neto. Os dois últimos morrem da história e o rebaixamento de tais povos enquanto sujeitos culturais.
prematuramente, apesar dos esforços para salvá-los pela via dos rituais Ao fazer o resgate de um passado verossímil o bastante para evidenciar
e obrigações às entidades protetoras. Em sua casa africana, a antiga a resistência dos escravos e o êxito dos retornados, uma vez livres das
escrava constrói um Peji num dos espaços mais recônditos da morada. correntes e pelourinhos, o romance de Ana Maria Gonçalves se insere
E é nesse lugar de culto que crê poder salvar o neto do destino trágico, na vertente afro da prosa de ficção brasileira. E isto não apenas em fun-

224 225
ção da matéria trabalhada, ou da linguagem sempre voltada a recusar os ______. Literatura negra, literatura afro-brasileira: como responder à polê-
signos do preconceito. Um defeito de cor ultrapassa a condição de texto mica? In: SOUZA, Florentina, LIMA, Maria Nazareth. Literatura afro-brasi-
leira (orgs.). Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Funda-
única e simplesmente brasileiro também por se dirigir ao leitor afro-
ção Cultural Palmares, 2006.
descendente dos dias de hoje, trazendo a seus olhos e ouvidos uma his-
GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Edi-
tória de superação vinda dos antepassados, a partir de uma perspectiva tora UFJF, 2005.
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226 227
Identidade e modernização como modelos de discursivo-representacionais sobre o “bloco geopolítico” configurado
como América Latina. Não trata o latino-americanismo unicamente de
ações culturais no “entre-mundos” uma relação social entre centro e periferia, mas de uma relação social
em si:
Paulo Marcondes Ferreira Soares
Uma relação que, como intelectuais implicados numa conformação espe-
cífica de poder/conhecimento, constituímos, mas também uma relação
que nos constitui. O latino-americanismo é a soma de representações com-
prometidas que organiza o aparato discursivo através do qual, e somente
através dele, “América Latina” é um objeto de sentido para nós – sejamos
ou não somos americanos. Se nada de natureza representacional preexiste
à representação, poderíamos afirmar, de maneira radical, que América
Latina somente existe enquanto objeto do latino-americanismo. Outra
formulação, mais ascética, mas não menos extrema: América Latina,
enquanto parte do real, é essa coisa que o latino-americanismo deseja, mas
que não alcança. (MOREIRAS, 1995, p. 49, tradução minha)

Evidentemente, uma tipologia com tal grau de abrangência tem


introdução contra si seu alto nível de generalização, podendo decorrer daí a tendên-
cia a reduzir drasticamente experiências múltiplas e complexas quanto
Num pequeno ensaio de 1995, intitulado “Epistemología tenue (sobre
à criação cultural, sobretudo, no sentido de como foram vivenciadas e
El Latinoamericanismo)”, Alberto Moreiras lança o olhar sobre duas
experimentadas pelos agentes em suas circunstâncias históricas especí-
tendências específicas na formação do pensamento latino-americano:
ficas (Teixeira et al., 2007, p. 69).
os paradigmas da “modernidade” e da “identidade” – que seriam dois
As posições em torno da questão da identidade versus moderni-
grandes eixos articuladores de uma construção epistemológica a partir
zação dizem respeito ao modo como, predominantemente, debates se
da qual refletiríamos a base de nossas formações identitárias no con-
polarizaram em torno ora da afirmação de uma realidade autóctone,
texto regional da América Latina, embora o autor reconheça mudanças
capaz de revelar o caráter singular de um povo ou nação, ora como
recentes nesse processo. Diz o autor:
projeto atualizador que logre integrar realidades periféricas ao modelo
Modernidade e Identidade são historicamente como dois gêmeos ou hegemônico ocidental de desenvolvimento, como estratégia para se sair
metas complementares de reflexão latino-americanista, mesmo quando do atraso crônico em que se encontram, de modo a escapar da condição
tal pensamento se orientava ou acreditava estar orientado em direção ao de subdesenvolvimento.
desmoronamento dos paradigmas da modernidade e da identidade. (1995,
Numa política cultural das artes, tal como se manifestam em con-
p. 54, tradução minha)
cepções estéticas no próprio mundo da arte, o paralelo àquelas expres-
No mesmo parágrafo, Moreiras observa que atualmente esse binô- sões paradigmáticas se faz em termos de realismo versus esteticismo.
mio parece não representar mais o que ele representou, provocado tal- Correspondendo isso a dizer que, no primeiro caso, o conteúdo diz a
vez por uma “fissura” no “tecido” do que o autor denomina “latino-ame- forma; ao passo que, no segundo, a forma diz o conteúdo. Há, contudo,
ricanismo” ou na própria construção epistemológica que lhe dá apoio uma terceira orientação, em que conteúdo e forma se processam numa
(1995, p. 54). Por latino-americanismo entenda-se o conjunto de saberes dimensão tensa, em que a dinâmica ético-estética aí configurada torna

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impossível a separação entre fatores internalistas e externalistas à arte, É, então, uma questão de escutar, de ouvir, o que separa o boom do
mas sem abrir mão do reconhecimento de que arte se define como lin- pós-boom: o pós é aqui a figura de uma membrana, de um tímpano, quer
dizer, exatamente o que não se deve romper caso vá cumprir sua função.
guagem específica, socialmente legitimada. No Brasil, a antropofagia
(1995, p. 50, tradução minha)
cultural oswaldiana e experiências como as de Glauber Rocha (1939-
1981), de Hélio Oiticica (1937-1980) e do tropicalismo na música, refe- Da perspectiva da geração boom, o objeto de escritura se apresenta
rendadas como uma neoantropofagia, se dão na esfera dessa orientação. por um “aparato ideológico” calcado em construções de identidade,
Feita essa ressalva, gostaria de frisar que a referência ao modelo de hipóstases e alegorias do nacional, correspondentes, na visão do autor,
Moreiras serve tanto para situar possíveis tendências mais expressivas ao modelo econômico-social de desenvolvimentismo e dependência em
no tocante ao debate em torno dos conceitos de cultura e de identidade face do capitalismo hegemônico. Em suas palavras, agora com referên-
quanto, como substrato disso, construir parâmetros que nos forneçam cia ao objeto ur (“la cosa producida por sugestión, el objeto educido por
elementos de comparação com estudos complementares no tocante a la esperanza”) do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges (1984, p.
desdobramentos de projetos de anticolonialismo e de configurações 440), diz-nos Moreiras:
mais atuais em vista do pós-colonial.
No fundo este seria o tipo de escritura que corresponde ao modelo econô-
mico-social de desenvolvimento/dependência capitalista: a apresentação
sentidos de uma epistemologia tênue do inapresentável, onde a apresentação apresenta um objeto induzido pela
esperança, mas que constantemente escapa de captura. (1995, p. 50, tradu-
Em termos metacríticos, e com foco no que caracteriza como o inapre- ção minha)
sentável na literatura latino-americana, marcada pelo boom do realismo
mágico nos anos de 1960 e pela reação do que ficou conhecido como Em face do pós-boom, nos termos de Moreiras, nele pode-se ver a
o pós-boom, aqui particularmente exemplificado em Borges e Sarduy, insistência na inapresentabilidade da escritura, por perceber através dos
Moreiras nos indica duas modalidades analíticas de crítica ou, como ele interstícios, das fissuras e das brechas o desvanecimento das “construc-
prefere, de quase-conceitos, apresentados como “útiles al nível de refle- ciones ontológicas, formaciones de identidad y alegorias nacionales”
xión metacrítica sobre el trabajo latinoamericanista”: são eles, o objeto (1995, p. 50). Há, aí, no seu modo de ver, uma escritura que parece due-
eficiente e o objeto tenue (1995, p. 49). Para o autor, não se trata de criar, lar pelo fracasso “de la concretización estética del modelo capitalista de
com esses quase-conceitos, uma tipificação de distintos objetos, mas de desarrollo periférico”, cujo alcance parece não ir além da mera “fetichi-
demarcar duas maneiras de apresentar a coisa em si, no caso, o objeto da zación estética del campo cultural” através da reificação da realidade nos
escritura: “Lo eficiente en el objeto organiza una ontologia, mientras que contextos da nação e do continente (1994, p. 50). Para ele, o pós-boom se
lo tenue la desorganiza o la deconstruye” (1995, p. 50). define como o “momento sublime” do boom, por ser
Para Moreiras, naquilo que se poderia chamar de hermenêutica do
no momento em que o boom deve confrontar a sua incapacidade para rea-
tênue e do eficiente, não se deve ter no boom e no pós-boom uma sequên- lizar uma apresentação adequada do objecto que vinha sendo prometido;
cia temporal, mas uma maneira de interpretar a forma de se apresentar logo, uma antiestética extremamente paradoxal, no sentido de que opera
do objeto de escritura. Ao indicar que o que separa o boom do pós-boom uma antiestética da, e ao final da, modernidade. (1995, p. 50, tradução
é, pois, mais um processo de desconstrução que de estruturação, o autor minha)
se vale de uma referência a Sarduy que, ao falar da influência de Lezama, Mas, adverte Moreiras, o objeto tênue não sobrevive do colapso do
se vê praticando uma “escuta inédita”, não uma imitação (1995, p. 50). objeto eficiente, a quem escuta e traduz; a quem desconstrói. De igual
Corroborando com essa imagem, diz Moreiras:

230 231
modo, onde há o objeto eficiente, a presença do objeto tênue se faz sentir: ter como o fundamento o próprio “terror”, pensa se não é o caso de se pôr
“y así vamos de la presentación de lo impresentáble a la irrepresentabili- o terror latino-americanista a serviço da própria reflexão latino-america-
dad de lo presentado” (1995, p. 52). O autor pondera que o esgotamento nista (1995, p. 54). E conclui pela assertiva de que só pela escuta atenta do
do modelo desenvolvimentista, de caráter etnocêntrico, cujo princípio próprio terror é que poderemos chegar à escuta do que não nos pertence,
de modernidade se fundamentou numa lógica de capitalismo tardio, que se não é o fim do terror, é o seu outro lado. Assim, a
não representa, por sua vez, o fim de um ideário de uma modernização
epistemologia tênue é uma epistemologia do terror, uma epistemologia
(objeto eficiente, nos seus termos) guiado pelo modelo eurocêntrico de que deve se exercitar no desmoronamento sistemático de tudo o que é
desenvolvimento capitalista, cuja hegemonia remonta desde a Europa cômodo e acolhedor no sistema latino-americanista de poder/conheci-
aos anos de Guerra Fria. mento. (1995, p. 54, tradução minha)

Acreditava-se e afirmava-se que, sob certas condições, os países depen-


dentes da periferia latino-americana venceriam sua dependência ao bus- contextos periféricos da produção artístico-cultural
car se autoconstituírem como réplica fiel das sociedades desenvolvidas no
sentido do capitalismo tardio: a modernização funcionou assim, se é que Neste ponto, procedo pela tipificação de algumas características que
ainda não funciona, como paradigma ontológico, como formação iden- parecem incidir no perfil de artistas e cineastas em contexto periférico,
titária, e, inclusive, como alegoria nacional. (1995, p. 53, tradução minha) e que diz respeito ao fato de as manifestações artísticas por eles produzi-
das terem como fundamento específico a indissociabilidade entre teoria
Nesse ponto, Moreiras se pergunta sobre as condições de possibili- e prática.
dade de se questionar a prática cultural do latino-americanismo como Dentre essas características, pode-se identificar a procura por
posição comprometida unicamente com o objeto eficiente para uma uma nova estética e um modelo produtivo alternativo levado a efeito
posição comprometida com o objeto tênue, capaz de reformular o lati- por artistas quando da teorização de seus próprios trabalhos. A criação
no-americanismo na perspectiva de uma epistemologia tênue. Como de novos circuitos e novos meios de produção leva à criação de novas
desafio a esse processo, lembra-nos o autor que o próprio sentido de reflexões críticas fora dos meios tradicionais. Nesse sentido, criam sua
unidade para a América Latina, em termos acadêmicos e institucionais, teoria-prática na dialética entre fatores artísticos, no campo específico
já implica em situá-la numa posição comprometida com o objeto efi- da linguagem, e fatores extra-artísticos, no campo mais amplo da iden-
ciente. Cabe aqui atentarmos para um ponto crucial de sua reflexão: tidade, violência, miséria material e sociopolítica (Núñez, 2006, p. 61).
Nosso desejo político está sempre projetado no campo epistemológico de Pode-se afirmar que a natureza específica e contra-tendente da
maneira que um objeto nasce como princípio da razão, como uma razão matéria teórica e prática da obra artística levada adiante por artistas
de razão, como o fundamento do pensar. Tal objeto, como objeto epis- com esse perfil resulta num processo de desmapeamento ou descen-
temológico, funciona como objeto eficiente, isto é, como objeto causal,
tramento do próprio campo artístico, no sentido que lhe dá Bourdieu
de modo que se supõe, então, que esse objeto mesmo move nosso pensa-
mento, origina nosso pensamento, o orienta e o produz. Há certa inevita- (1992). Claro, isso pode ser historicamente localizado nos experimentos
bilidade nisso e é desnecessário pensar que podemos nos controlar sem das vanguardas artísticas, como é fácil de perceber, mas, aqui, nos ter-
ele. (1995, p. 53, tradução minha) mos que nos interessa investigar, ele tem suas próprias configurações.
Algo em comum, contudo, deve ser reconhecido: num e noutro, o cará-
Frente a esse quadro, Moreiras afirma ser a função do intelectual lati-
ter de novidade e de reescritura, de ruptura com matizes tradicionais,
no-americanista o que está na ordem do debate (1995, p. 53). Após definir
leva à necessidade de se produzir não só artisticamente, mas, inclusive,
o tempo atual pelo “terror” de não ter “fundamento epistemológico” e de
teoricamente.

232 233
Com referência ao cinema, por exemplo, muito das manifestações nômico-social (em que procedimentos homológicos são reconhecidos
de um dado movimento se encontra na tendência a se discutir as condi- como válidos, mas problemáticos). Neste caso, dá-se ênfase aqui à ques-
ções de um cinema pós-colonial, bem como, no debate de um cinema de tão da análise dos procedimentos específicos à fatura fílmica: é o que se
configuração anticolonial. O desafio está em reconhecer as distinções, pode extrair da filmografia de Glauber Rocha.
sem desconsiderar o caráter político das tendências: o pós-colonial e o Com relação ao cinema africano, Bamba (2008) traça um rápido
lugar da produção como lugar da fala. panorama de três gerações de cineastas desde os anos 60 aos dias atuais.
Cabe, pois, elaborar questões que indiquem pontos de distinções A categoria dos “independentes”, entre as décadas de 60 e 80, e que se
e de convergência entre um pensamento anticolonial e o pós-colonial compõe de cineastas que viveram o processo de transição do colonia-
no debate sobre o cinema periférico e sobre uma agenda capaz de, nele, lismo para a independência, cuja narrativa fílmica assumia forte cono-
sinalizar o propósito de matizes configuradores de um projeto de cinema tação nacionalista. A dos cineastas do desencantamento pós-indepen-
(teoria e prática) que estabeleça o lugar da fala como expressão da ação dência, em que frustrações com os desdobramentos pós-transição os
política de uma unidade de produção e criação de linguagens fílmicas levaram a abordagens mais intimistas e autorais. A geração de cineastas
próprias àquelas regiões periféricas (considerando-se, evidentemente, da diáspora, que vive “o duplo paradoxo de residir na Europa e preten-
as especificidades ou diversidade dessas produções/criações). der fazer um cinema africano” (BAMBA, 2008, p. 221-3). Para ele, são
Há que se perceber que, nesse debate, sobretudo no que toca aos cineastas que não têm sentimento de culpa quanto a afirmar uma dupla
Estudos Culturais e à questão do pós-colonial, a referência a intelectuais identidade, além de aspirarem a uma forma de caráter universal.
anticolonialistas e nacionalistas se configura ainda hoje como implica- Em seu diagnóstico, Bamba indica que algumas das questões cen-
ções do que se encontra caracterizado em torno do debate sobre a iden- trais ao cinema africano são a ausência de políticas culturais cinema-
tidade, embora essa construção nem sempre se faça pela prefiguração de tográficas e de uma crítica cinematográfica. Esses fatores, por certo,
um modelo absoluto ou de uma origem imaginariamente singular ou contribuem para a persistência do público como “‘colonizados’ e cativos
pura. A questão central aqui gira em torno da ideia da descolonização dos filmes estrangeiros” (2008, p. 216). Para ele, a realidade do cinema
econômica, política e da mente. A título de ilustração, cabe a referência africano ainda se deve a individualidades, existentes no plural. Uma plu-
à releitura de Fanon (1925-1961) por Bhabha (1949). ralidade temática e estético-estilística, particularmente pela emergência
No âmbito do cinema, há um particular interesse neste estudo no de novas gerações de cineastas. Assim, a reescritura histórica do cinema
sentido de investigar algumas instâncias e circunstâncias envolvidas no africano exige que se considere duas lógicas antagônicas do contexto
modo como cineastas ou grupos de cineastas traçam uma dada orien- cultural mundial: defesa da soberania cultural e da exceção cultural pela
tação estética e política para seus filmes. Tem-se, claro, um quadro bas- França e pela União Europeia e a liberação do comércio mundial.
tante amplo de situações, para o qual gostaria de apenas indicar algumas Os problemas de estruturas de produção e, em certos casos, de
características mais expressivas. Os modelos apontam ora para uma ausência de políticas culturais levam, entre outros fatores, ao fenômeno
perspectiva direta, de um realismo radical, que parece não encontrar das coproduções, como necessidade vital, e um forte desafio à produção
problema algum em estabelecer homologias claras entre a estrutura de filmes com um propósito ético-estético novo, a fim de não resvalar
fílmica e a estrutura social: uma espécie de cinema sociológico como para o mero jogo do mercado. O lado substantivo desse esquema de pro-
na experiência de Fernando Solanas. Ora a opção se dá por formas de dução, oriundo do processo de globalização, traduz-se na possibilidade
mediações alegóricas, transversais e transitórias, que levam a identifi- da ampliar as condições efetivas de produção de filmes, sobretudo em
car procedimentos específicos da narração fílmica, suas ambivalências, se tratando do cinema periférico. Por outro lado, a ausência de políti-
seus elementos de natureza distinta do expressivamente político e eco- cas públicas de cultura voltadas para a produção cinematográfica nessas

234 235
regiões tem levado ao duro diagnóstico que muitos cineastas têm feito No caso do Japão, por não ter vivido “o tipo de relacionamento
a propósito da situação vivida em seus países de origem. Num e noutro exterior que define o subdesenvolvimento”, a produção cinematográ-
caso, das coproduções e do incremento de políticas públicas, há que se fica parece se dar em outras bases. Apesar de, ao contrário da Índia,
reconhecer que o caráter autônomo dos filmes dependerão da efetiva o cinema estrangeiro ter conquistado imediatamente audiência em
liberdade, econômica e política, para que o cineasta possa experimentar. grandes proporções, ponto fundamental para a formação do mercado
A referência aos novos modos do dizer o não dito, de assumir o lugar da cinematográfico japonês, isso não se deu sem o processo de japonização
fala pós-colonial depende disso. Vencer o dirigismo econômico empre- desses filmes. Como acentua Gomes:
sarial ou, por outro lado, gozar de autonomia quando da produção fíl-
Essa produção de fora era, no entanto, por assim, dizer, japonizada pelo
mica baseada no fomento estatal tornar-se um grande desafio para o “benshis” – os artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes
cinema periférico em contexto global. mudos – que logo se transformaram no principal atrativo do espetáculo
cinematográfico. Na verdade, o público japonês também nunca aceitou
o produto cultural estrangeiro tal qual, isto é, os filmes mudos apenas
cinema à margem
com os letreiros traduzidos. A produção nacional, ao se desenvolver, não
Num conhecido ensaio sobre as condições de subdesenvolvimento no encontrou dificuldades em predominar, principalmente depois da che-
gada do cinema falado que dispensou a atuação dos “benshis”. (1980, p. 86)
cinema, Gomes (1916-1977) atesta que, sob esse aspecto, tal situação
não pode ser identificada apenas como “uma etapa, um estágio, mas Ao fim e ao cabo, o elemento diferencial, no modo de ver de
um estado” (1980, p. 85). Essa assertiva, evidentemente, nos remete de Gomes, deve-se ao fato de o cinema japonês ter sua produção vincu-
imediato a uma reflexão a propósito da própria natureza da produção lada a “capitais nacionais”, além de ter sua narrativa inspirada “na tradi-
cinematográfica. Para o crítico, há uma clara diferença na produção ção, popularizada mas direta, do teatro e da literatura do país” (1980, p.
dos cinemas norte-americano, europeu e japonês vis-à-vis os cinemas 86). Pode-se notar que, ao argumentar em favor das tradições teatrais e
hindu, árabe ou brasileiro, por exemplo. literárias, o autor escapa à mera explicação economicista. Tanto que, ao
Em sua argumentação, há um claro paralelo entre o desenvolvi- falar da Índia, ele afirma sua opção por discutir o significado cultural
mento e o subdesenvolvimento regional e sua configuração no cinema. do cinema aí produzido, abstraindo-se da análise “do papel do capital
Veja-se, nesse sentido, a comparação que o autor estabelece entre os metropolitano inglês na florescência do cinema hindu” (1980, p. 85).
cinemas hindu e japonês. Para ele, no que pese o fato de a Índia ter uma Aqui, o elemento central de sua argumentação é que embora o filme
das maiores produções cinematográficas do mundo ou de as nações hindu se mantenha fiel às suas “tradições artísticas”, seus fundamentos
hindus possuírem o que ele caracteriza como “culturas próprias”, ainda estão constituídos “por idéias, imagens e estilo já fabricados pelos ocu-
assim, sua realidade é a de um estado de subdesenvolvimento. Mesmo pantes para o consumo dos ocupados” (1980, p. 86).
que se considere o fato de o cinema estrangeiro ter apresentado alguma Gomes nos dá ainda a indicação das condições de subdesenvolvi-
dificuldade na atração do público hindu, o que significou um impor- mento vividas pelo cinema árabe, particularmente nos países do norte
tante estímulo à produção local, que “não cessou de aumentar e em fun- da África e do “Oriente Próximo”, regidas pelo Corão. Para ele, a “tradi-
ção da qual teceu-se a rede comercial da exibição”, diz o autor: ção anti-icônica” dessas culturas foi o principal obstáculo à penetração
Tudo isso ocorria, porém, num país subdesenvolvido, colonizado, e essa cinematográfica ocidental na região, que só passou a ter a experiência
atividade cultural aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e de cinema a partir do cinema falado – dado que seria o som “o eixo do
aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento. (GOMES, 1980, p. 85) espetáculo corânico” (1980, p. 86-7). E nos diz:

236 237
O pouco interesse pelo filme ocidental não foi acompanhado no mundo também é nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua expul-
árabe pelo florescimento da produção local. A penetração imperial ten- são como os franceses foram expulsos da Argélia. Nossos acontecimentos
deu naturalmente a fornecer ao habitante dessas regiões uma idéia de si históricos [...] são querelas de ocupantes nas quais o ocupado não tem vez.
próprio adequada aos interesses do ocupante [...]. A indústria cultural do (GOMES, 1980, p. 87-8)
Ocidente encontrou escassa imagem original para servir de matéria-prima
na produção de ersats destinados aos próprios árabes. A fabricação de Ponto central nessa discussão, as categorias de ocupado e ocupante,
imagem árabe foi intensa, mas destinada ao consumo ocidental: o modelo tal como apresentadas por Gomes, nos levam a reconhecer uma dada
nunca se reconheceu [...] matriz de pensamento a partir da qual ele reflete. Trata-se, no fundo,
[E] como suas matrizes não são as oleogravuras exóticas de fabricação
européia, mas a técnica fotográfica do Ocidente – através da qual os ára- do debate nacional-popular sobre a identidade cultural, provavelmente
bes acabaram por aceitar a imagem como componente de sua autovisão influenciado pelas ideias anticolonialistas tal como travadas a partir
– os filmes egípcios e dos outros países árabes tomaram diretamente como dos anos 50, sobretudo na França, e notadamente a partir das lutas de
modelo a produção ocidental. (GOMES, 1980, p. 87) libertação nacional na África. O dualismo incutido nessas categorias faz
nítido paralelo com as de colonizador/colonizado, bem como, com o
Comparado ao cinema hindu, o árabe aparentemente seria mais
debate sobre a alienação: de inspiração hegeliana, com base na metáfora
subdesenvolvido, porém, de economia mais independente. Em todo
do senhor e do escravo. No Brasil, esse modelo teve sua versão mais sis-
caso, o autor afirma uma natureza comum no vínculo desses cinemas
temática no pensamento do ISEB (Ortiz, 1985, p. 49).
com o espectador, que tanto estaria regido por ambiguidades e “impreg-
Em seu estudo, Ortiz (1947) traça um paralelo entre o ISEB e Frantz
nação imperial”, quanto asseguraria “a fidelidade do público por refleti-
Fanon, embora deixe claro que não pretende estabelecer uma “filiação
rem, mesmo palidamente, a sua cultural original” (1980, p. 87).
direta entre o pensamento de Fanon e dos intelectuais do ISEB” (1985, p.
Toda essa discussão sobre o subdesenvolvimento no cinema de
50). Na verdade, o autor afirma existir uma independência entre essas
várias regiões serve para que Gomes introduza uma reflexão sobre a
duas linhas de orientação. Característica esta que o motiva, justamente,
nossa situação cinematográfica. Basicamente, seu estudo sobre o cinema
a discutir o paralelo e, mesmo, percebê-lo como modo influente sobre o
brasileiro nesse ensaio tem como alvo principal a produção do Cinema
conjunto de intelectuais e artistas da época. Tanto que, para ele, na área
Novo no Brasil. A rigor, o autor traz à baila uma reflexão sobre ques-
do cinema, os documentos “Uma Situação Colonial”, de Paulo Emílio
tões de identidade cultural e de condições de produção local dos fil-
Salles Gomes, e “Uma Estética da Fome”, de Glauber Rocha, são ambos
mes. Assim, teríamos uma realidade com pontos em comum e aspectos
exemplares dessa marca isebiana (1985, p. 49).
distintos em relação às demais referências de subdesenvolvimento por
Ortiz aponta a vertente especificamente francesa da leitura hege-
ele estudadas. Se, supostamente compartilhamos a condição de “sub”,
liana e marxista tanto nas ideias de Fanon quanto nas do pensamento
nos distinguiríamos por não termos um “terreno de cultura diverso do
do ISEB. Para ele,
ocidental”, ao contrário do que ocorre em países árabes e nações hindus:
O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do ISEB é que ambos se
Somos um prolongamento do Ocidente, não há entre ele e nós a barreira
estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e
natural de uma personalidade hindu ou árabe que precise ser constante-
o de situação colonial. As fontes originárias são também, nos dois casos,
mente sufocada, contornada e violada. Nunca fomos propriamente ocu-
idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier. A categoria de aliena-
pados. Quando o ocupante chegou o ocupado existente não lhe pareceu
ção, de origem hegeliana, se reveste nos textos de uma acentuada inter-
adequado e foi necessário criar outro [...]. A peculiaridade do processo, o
pretação francesa do idealismo alemão [...]. A dialética do senhor e do
fato de o ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e
escravo torna-se assim clássica nas discussões sobre a dominação social,
semelhança, fez deste último, até certo ponto, o seu semelhante. Psicologi-
econômica e cultural. Paralelamente, é neste período que é traduzido para
camente, ocupado e ocupante não se sentem como tais: de fato, o segundo

238 239
o francês Manuscritos de 44, onde Marx retoma o pensamento hegeliano rente, da maioria absoluta do povo brasileiro disseminada nas reservas e
sobre a alienação para aplicá-lo à compreensão da luta de classes. Sua aná- quilombos, e por outro lado ignorou a fronteira entre o ocupado dos trinta
lise profundamente humanista irá reforçar a interpretação de Hegel pro- e dos setenta por cento. Tomado em conjunto o Cinema Novo monta um
posta pelos exegetas franceses. (ORTIZ, 1986, p. 50) universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do
interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol. Esse universo tendia a se
Por outro lado, esse dualismo de argumentação está longe de se expandir, a se complementar, a se organizar em modelo para a realidade,
assumir por uma modalidade puramente mecânica. Ao contrário, o mas o processo foi interrompido em 1964. O Cinema Novo não morreu
logo e em sua última fase – que se prolongou até o golpe de estado que
modelo dialético aí incutido indica tanto o processo pelo qual o ocupado
ocorreu no bojo do pronunciamento militar – voltou-se para si próprio,
apreende o mundo pelas lentes do ocupante como, também, é capaz de isto é, para seus realizadores e seu público, como que procurando entender
se reinventar, inclusive, pela impossibilidade de assumir a natureza pró- a raiz de uma debilidade subitamente revelada, reflexão perplexa sobre o
pria do ocupante. O ponto alto dessa imagem se encontra na seguinte malogro acompanhada de fantasias guerrilheiras e anotações sobre o ter-
passagem em Gomes: ror da tortura. Nunca alcançou a identificação desejada com o organismo
social brasileiro, mas foi até o fim o termômetro fiel da juventude que aspi-
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cul- rava ser a intérprete do ocupado. (GOMES, 1980, p. 95-6)
tura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção
de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o De fato, muito da discussão em torno cinema periférico aponta
ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de para a influência de questões de identidade nacional-popular, alienação
nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no cultural e colonialismo (Galvão e Bernardet, 1983; Bernardet, 1985;
Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional. (1980, p. 88)
Prysthon, 2002; Núñez, 2006; Shohat e Stam, 2006). Essa foi uma

Após discutir o panorama da formação do cinema no Brasil, o autor tendência presente em experiências cinematográficas manifestas em
foca o debate sobre ocupado e ocupante no grupo de cineastas em torno movimentos independentes ou por cineastas que tomaram a si a missão
do Cinema Novo. Para ele, o caráter político desse cinema tem sua con- de produzirem um modelo alternativo e anticolonialista de filmes.
figuração na posição assumida por esses cineastas: a de serem ocupantes Num debate recente, a propósito do cinema terceiro-mundista em
que tomam a posição do ocupado. Diz ele: contexto global, Shohat e Stam (2006) indicam que sob o influxo do
chamado pós-modernismo, se a Europa esgotou seu “repertório estra-
Os quadros de realização e, em boa parte, de absorção do Cinema Novo tégico de histórias”, a população terceiro-mundista apenas começou a
foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua ori- “contá-las e a desconstruí-las”. Dizem os autores:
gem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia cha-
mada. A aspiração dessa juventude foi a de ser ao Mesmo tempo alavanca Para o Terceiro Mundo, esta ‘contranarração’ cinematográfica basicamente
de deslocamento e um dos novos eixos em torno do qual passaria a girar começou com o colapso dos impérios europeus no pós-guerra e a emer-
a nossa história. Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e gência dos Estados nacionais independentes do Terceiro Mundo. (2006,
encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na rea- p. 355)
lidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente
ela própria, falando e agindo para si mesma. Essa delimitação ficou bem Para eles, a tessitura desse processo se dá a partir de alguns acon-
marcada no fenômeno do Cinema Novo. A homogeneidade social entre
os responsáveis pelos filmes e o seu público nunca foi quebrada. O espec-
tecimentos importantes no pós-guerra. Os autores dão destaque especi-
tador da antiga chanchada ou o do cangaço quase não foram atingidos e ficamente à vitória dos vietnamitas sobre a França, o advento da Revo-
nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir. Ape- lução Cubana e a independência argelina. Tais acontecimentos foram
sar de ter escada tão pouco ao seu círculo, a significação do Cinema Novo fundamentais para “a ideologia do cinema terceiro-mundista”, manifesta
foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora, contínua e coe-
em “ensaios militantes” escritos por cineastas latino-americanos. Muito

240 241
dessa novidade do cinema terceiro-mundista tinha uma influência BHABHA, Homi K. O Local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

importante do cinema vanguardista europeu do início dos anos 60. Em BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Brasiliense,
todo caso, como acentuam Shohat e Stam, os fundamentos da tendên- 1985.
cia terceiro-mundista assumiam uma conotação muito mais esquerdista BORGES, Jorge Luis. Obras Completas 1923-1972. 14 ed. Buenos Aires: Emecé Edi-
tores, 1984.
politicamente do que o caso europeu.
BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário. Lis-
A importância desse debate se dá em termos justamente da possi-
boa: Editorial Presença, 1992.
bilidade de que esse cinema terceiro-mundista seja capaz de elaborar
GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema: repercussões em caixa
verdades e narrativas anticolonialistas como contraposição ao discurso de eco ideológica (as idéias de “nacional” e “popular” no pensamento cine-
dominante europeu. Em referência a uma passagem de Condenados da matográfico brasileiro). São Paulo: Brasiliense, 1983. (Caps. “Os irmãos
Terra, de Fanon, sobre o colonialismo, Shohat e Stam afirmam que: inimigos. A década de 50” e “Nacional-popular. Nacional-popular? A
década de 60”).
Diante do historicismo eurocêntrico, os diretores do Terceiro Mundo e GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. 2 ed.
das minorias reescreveram suas próprias histórias, tomando o controle das Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
próprias imagens e falando com suas próprias vozes. Não que tais filmes
HOLLANDA, Heloísa B. (org.). Pós-Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco,
substituam as ‘mentiras’ européias com uma verdade pura e inquestioná-
vel, mas propões ‘contraverdades’ e ‘contranarrativas’ informadas por uma 1991.
perspectiva anticolonialista, recuperando e reforçando os eventos do pas- ______. “Políticas da produção de conhecimento em tempos globalizados”. In:
sado em um amplo projeto de remapeamento e renomeação. (2006, p. 358) MIRANDA, Wander M. (org.) Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte,
Autêntica, 1999.
E fica-nos o desafio lançado por Moreiras quando investiga as pos- HUYSSEN, A. “Mapeando o pós-moderno”. In: HOLLANDA, Heloísa B. (org.). Pós-
sibilidades de os intelectuais assumirem uma posição de comprometi- Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
mento com uma epistemologia tênue, frente aos compromissos histó- ______. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
ricos com o objeto eficiente. E embora Moreiras tenha seu foco voltado MIRANDA, Wander M. (org.) Narrativas da Modernidade. Belo Horizonte:
para a posição do intelectual latino-americanista ou para o campo lite- Autêntica, 1999.
rário, creio ser possível ampliarmos o leque dessa perspectiva para uma MOREIRAS, Alberto. Epistemología tênue (sobre El latinoamericanismo).

epistemologia menos circunscrita, que possa abranger outras modalida- Revista de Crítica Cultural, Chile, n. 10, p. 48-54, 1995.
des de intelectuais e de campos artísticos, um espaço complexo em sua NÚÑEZ, Fabián (2006). O pensamento de Frantz Fanon no cinema latino-ame-
ricano. In: Estudos de Cinema – Socine, VII. São Paulo: Annablume, 2006.
diversidade (uma Epistemologia do Sul? Ver Santos e Meneses, 2010),
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense,
capaz de se repensar não apenas em relação ao Norte, mas, sobretudo,
1985.
a partir de si mesma, pelo processo de desconstrução da epistemologia
PRYSTHON, Angela. A Terra em Transe: o cosmopolitismo às avessas do cinema
eficiente, com todos os terrores e para além deles, à escuta do que não novo. Galáxia, n. 4, p. 159-175, 2002.
lhe pertence, como anteriormente referido. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do
Sul. São Paulo: Cortez, 2012.
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In: Baptista, Mauro; Mascarello, Fernando (orgs.). Cinema Mundial
ção de massa. Estudos de Sociologia. Vol. 4, n. 1, jan./jun. 1998. Revista do
Contemporâneo. Campinas, Papirus, 2008.
Programa de Pós-Graduação em sociologia, UFPE.

242 243
TEIXEIRA et al. Classificações Culturais e Identidade: itinerários de debates inte-
lectuais e artísticos em Recife (1950-70). Saeculum – Revista de História.
João Pessoa, Departamento de História/Programa de Pós-Graduação em
História/UFPB, ano 13, n. 16, jan./jun, 2007.
YÚDICE, George.O multiculturalismo e novos critérios de valorização cultural.
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vol. IX, nos 1/2, jan-dez. 1994.
______. “Pós-modernidade e valores”. In: MIRANDA, Wander M. (org.) Narrati-
vas da Modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. parte iii
Descolonizações epistemológicas

244
O pós-colonial ante portas:
algumas notas de rodapé 1
Elísio Macamo

Escrevo este texto em 2012. Nada de especial nisso, senão o facto de que
em 2012 a nova Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira, a UNILAB, em Redenção,2 abriu vagas para recrutamento
de docentes para as áreas das Humanidades e Letras. Dentre as várias
vagas anunciadas constam cadeiras incontornáveis das humanidades e
letras, cinco das quais ganham um significado profundo quando vistas
em relação umas com as outras.3 São elas a Antropologia,4 a História,5
1 Literalmente, como, aliás, o leitor verá.
2 Na obra que anuncia o pós-modernismo nas ciências humanas Jean-François Lyotard
(1978) dá destaque à ideia de metanarrativa, cuja rejeição constitui o momento fundador
da crítica pós-moderna. A instalação da UNILAB numa cidade com o nome de Redenção
ganha um sentido especial não só pelo facto de fazer uma vénia ao sofrimento do Outro
na relação lusófona. Ganha-o também por inserir a criação da universidade numa nar-
rativa celebratória do triunfo da Razão que se manifestou na decisão de dar a liberdade
aos escravos em 1883. O nome, com toda a sua simbologia cristã, afirma a autoridade da
Razão e silencia as lutas de resistência que tal água mole que em pedra dura bate condu-
ziram ao fim dessa vergonha da humanidade.
3 Metodologicamente o olhar crítico que se lança nesta contribuição ao anúncio de vagas
da UNILAB é enformado pela análise crítica do discurso (Fairclough, 1995) e sua convic-
ção segundo a qual o discurso seria uma prática social que encerra dentro de si relações
de poder. Mais fundamental do que isto, contudo, é a ideia da intertextualidade que con-
siste no reparo metodológico de acordo com o qual textos falam não só pelo que dizem,
mas também pelo que deixam subentendido no contexto discursivo que conferem inteli-
gibilidade aos seus enunciados. Nesta ordem de ideias, olho para o que não está explicita-
mente dito no edital da UNILAB para não só problematizar uma certa construção de África

247
a Sociologia,654 a Estética e a História de Arte7 e, finalmente, a Filosofia.8 É dade primitiva” (1988) pelo antropólogo Adam Kuper.11 2012 é décadas
necessário um toque de maldade pós-colonial para ver neste anúncio de após debates realizados em África em torno das condições de possibi-
vagas algo revelador do que torna a perspectiva pós-colonial necessária lidade do continente;12 é 24 anos depois de Valentin Y. Mudimbe e seu
ao mesmo tempo que lhe dá substância.9
nua-se aqui com muita força, pois há um certo sentido em que a “área da antropologia” é
2012 é 34 anos depois da publicação do livro “Orientalismo” (1978) colocada ao serviço da representação de África e das comunidades negras brasileiras.
por Edward Said;10 é 24 anos após a publicação de “A invenção da socie- 11 Neste ponto importa de facto fazer referência à obra “A Invenção da Sociedade Primitiva”
(Kuper, 1988). Trata-se duma excelente análise da evolução do pensamento antropoló-
e de comunidades afro-americanas, mas também para destacar o que a abordagem pós- gico assente na transformação constante da ideia de sociedade primitiva. Kuper coloca
colonial pode ser neste momento crucial de reflexão sobre a natureza do conhecimento a ênfase da sua análise num reparo que se articula muito bem com a análise de Said.
que as ciências sociais produzem. Esse reparo consiste na ideia de que a noção de sociedade primitiva exerceu forte atrac-
ção sobre os autores clássicos da antropologia (James Frazer, Henry Stanley Morgan,
4 Ver a ementa do sector de Antropologia no Anexo I. Henry Maine, Johannes Bachoffen, etc.) porque aplicada às sociedades não europeias
5 Ver a ementa do sector de História no Anexo III. não só lhes sugeria a ideia de algo oposto à sua própria sociedade, mas também de algo
6 Ver a ementa do sector de Sociologia no Anexo IV. situado no extremo mais baixo da escala evolucionária, confirmando dessa maneira a
superioridade das formas ocidentais de organização social. O programa de antropologia
7 Ver a ementa deste sector no Anexo II.
reafirma implicitamente esta ideia de sociedade primitiva ao sugerir que o estudo das
8 Ver ementa da Filosofia no Anexo V. sociedades africanas se esgote na problematização da “mudança social”, das expressões
9 Se calhar o presente texto é a prova da proverbial expressão idiomática “tanto alarido religiosas, das questões identitárias, do lugar da etnia, etc. A questão aqui não é se estes
por nada”. Afinal, o edital da UNILAB não passa duma simples reafirmação do currículo temas estão ou não presentes nas sociedades e comunidades negras afro-americanas e se
normal de humanidades e letras. O olhar pós-colonial, todavia, parte do princípio de que o seu estudo não seria fecundo. A questão é que elas sejam vistas como algo específico
nenhum enunciado é inocente, muito menos quando ele se refere à relação desigual que ao estudo dessas sociedades e completamente irrelevantes para o estudo da sociedade
a História impôs ao mundo. Neste sentido, a maldade pós-colonial aqui consiste em rejei- moderna brasileira. Neste sentido, parece legítimo questionar se com este programa de
tar a inocência do edital e de procurar identificar nele os elementos constitutivos duma estudo e sua representação implícita de África não estaremos perante um processo de
crítica à economia política do conhecimento. invenção das formas sociais africanas como sendo primordiais. Esta questão é tanto mais
10 Esta obra do autor palestino, Edward Said, inspirada na reflexão foucaltiana sobre o premente quanto as outras áreas de estudo inspiram ainda menos confiança. Com efeito,
poder do discurso foi pioneira na problematização da forma como o conhecimento se a África está completamente ausente da “Estética e História de Arte”, fazendo jus a uma
constituía em exercício de poder na relação entre o Ocidente e o Resto (do mundo). Par- crítica já formulada na antropologia contra a ideia de que “sociedades primitivas” não
tindo da ideia de representação, Said definiu o “Orientalismo” como uma maneira oci- têm nenhuma noção de estética (Alfred Gell, 1998) bem como do sector de “Filosofia”.
dental de representar o Outro tornando-o, por via dessa representação, mais ameno à sua Na área de “História” a África é apresentada apenas como vítima (ou receptora) de inter-
intervenção. Nesta ordem de ideias, Said sugeriu que o estudo do Oriente por cientistas venção externa. A este propósito Achilles Mbembe, dos Camarões, destacou na sua obra
ocidentais não fosse visto apenas como um empreendimento científico inocente. A refle- sobre a “Pós-Colónia” (2000) – uma obra baseada numa abordagem psicanalítica – a
xão crítica sobre os conceitos empregados nesse estudo do Oriente revelaria, segundo tendência não menos nociva de usar simbologia masculina de dominação para repre-
Said, os termos através dos quais o Oriente se constituía no discurso ocidental como sentar o encontro entre a Europa e a África. Assim, embora o programa não se refira a
sendo não só diferente, mas também em busca duma intervenção correctora por parte este encontro como “penetração” europeia, ele é marcado por uma abordagem de África
do Ocidente. O Orientalismo, portanto, era uma forma de dominação, reestruturação e que destaca os aspectos referentes à presença europeia como se o continente não fosse
apropriação do mundo árabe pelo Ocidente. A noção de representação que está na base detentor duma história suficientemente intelegível por dentro. A área de “Sociologia” não
da reflexão crítica sobre o Orientalismo afigura-se-me extremamente pertinente para um difere muito da área de “História” no destaque que dá ao papel constitutivo do encontro
posicionamento crítico em relação ao edital da UNILAB. A disciplina de antropologia, por com a Europa nas condições de possibilidade de África. Estudar o social africano é estu-
exemplo, é implicitamente definida como a área de estudo mais adequada à produção dar a forma como ele foi transformado pelo Ocidente, mas o mesmo já não se aplica ao
de conhecimento sobre a África e sobre os negros no Brasil. Nos anos setenta do século Brasil a não ser como reconsideração sobre a “democracia racial”.
passado houve muitas críticas que foram feitas à antropologia e seu presumido conluio 12 Em 1999 publiquei um estudo na área da sociologia do conhecimento (Macamo, 1999) no
com o projecto colonial (ver a propósito Asad, 1995 e Leclerc, 1972). Essa crítica, que foi qual analisava um debate no seio de intelectuais africanos sobre se existiria uma filosofia
essencialmente política, destacava o facto de se ter usado o conhecimento antropológico africana ou não. O debate opunha intelectuais africanos que defendiam a existência duma
para produzir conhecimento que permitisse melhor intervenção colonial em meios afri- filosofia africana no sentido de maneira de apreensão do mundo completamente dife-
canos. Embora essa crítica precise, nos dias de hoje, de forte revisão, não deixa de causar rente do disposto nos quadros de referência da filosofia praticada na academia e aque-
espanto que volvidos tantas décadas um projecto tão inovador como o da UNILAB parta les que defendiam uma visão pragmática conceitual consubstanciada na ideia de que só
do princípio de que a compreensão das sociedades africanas e das comunidades negras existiria uma maneira de abordar o mundo filosoficamente sobre a qual não pesariam
brasileiras passe pelo emprego de abordagens teóricas e pressupostos conceituais diferen- nenhuns direitos de autor. O importante nesse debate, porém, é que ele documentava o
tes dos que seriam necessários para estudar a sociedade “moderna”. A tese de Said insi- papel dos intelectuais africanos na construção de África como projecto moderno e cuja

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“A invenção de África” (1988).13 Isto é, em 2012 a UNILAB convida-nos e um livro reaccionário se torna num best-seller,17 a ausência da audácia
a colocar, e a responder, a uma pergunta que, 20 anos atrás, Kwame do conhecimento, esse apelo kantiano, consubstanciado na elaboração
Anthony Appiah, um filósofo do Gana, havia já tentado colocar... e res- de currículos que reflectem um diálogo crítico com a história pós-colo-
ponder.14 Não há maldade da parte da UNILAB. Num país onde se aprova nial18 não pode ser interpretada como sinal de maldade.19 É um convite
a Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003,15 149 anos após Joaquim Nabuco16 ao pensamento pós-colonial. A perspectiva pós-colonial, livre de exces-
sos,20 está precisamente para isso.21
inteligibilidade não se resumia apenas ao primordial sugerido pelo programa de estudos
do sector de “Antropologia”. 17 Nomeadamente, de Leandro Narloch (2009), “Guia politicamente incorreto da História
13 Nesta obra (1988), Mudimbe, apoiando-se em Michel Foucault e Edward Said, discute a do Brasil”. Este livro critica o espantalho duma visão “preto e branco” da História que
ordem do conhecimento que constitui a África como objecto do interesse científico, mas reduz a trajectória histórica brasileira a uma narrativa em que os brancos (portugueses)
também como artefacto da intervenção externa. A obra de Mudimbe é, na verdade, remi- são sistematicamente maus e os índios e negros sistematicamente, e por natureza, bons.
niscente de Said numa análise que é fortemente recuperada por Walter Mignolo (2005) Sob este pano de fundo o autor pode, então, identificar “mitos” – como por exemplo a
no seu estudo sobre a “Idea da America Latina”. ideia de que os negros foram apenas escravos de brancos ou que os índios foram decima-
14 Nessa obra Appiah (1992) perguntava, entre outras coisas, se o “pós” do pós-moderno era dos por brancos – e tratar de os desmascarar triunfalmente, e com grande efeito público
o mesmo que o “pós” do pós-colonial. A resposta que ele dá é pertinente não só para uma a julgar pelas vendas, no seu “guia”. O que ele deixa de fora, porém, é que um verdadeiro
problematização do programa de estudos da UNILAB como também para uma problema- Guia da História do Brasil não se contenta apenas em identificar mitos. Ele deve ir para
tização do discurso pós-colonial ele próprio. No entendimento de Appiah o pós-moder- além disso e identificar os princípios éticos na base da ordem social brasileira que foram
nismo é apenas uma variação do discurso do modernismo e reflecte uma propriedade da violados no processo de constituição da nação brasileira. Do ponto de vista da lógica, o
modernidade cultural que consiste em criar espaço para si próprio através da invenção da argumento de Narloch viola o princípio segundo o qual dois males não fazem um acerto.
diferença. Este entendimento do pós-moderno permite a Appiah de o identificar com o Não é por negros baianos terem também gozado da propriedade de escravos, nem por
pós-colonial que ele vê como a condição social duma intelectualidade “compradora” que índios terem morto mais índios do que os portugueses que a posse de escravos, ou a
se produz e reproduz na invenção das suas sociedades originais para consumo externo. morte de outros seres humanos, na constituição do Brasil seja um mal menor. Aliás, na
Ele resume esta tese de forma gráfica com a citação duma passagem dum texto dum medida em que a justificação de todo o sistema escravocrata e de colonização se legiti-
autor africano, Yambo Ouologuem, em que uma mulher escreve ao esposo “civilizado” o mava com recurso à superioridade moral da cultura ocidental representada pelos portu-
seguinte: “Tu t’appellais Bimbircokak / Et tu étais bien ainsi / Tu est devenu Victor-Emile- gueses no Brasil um “guia” politicamente incorreto da História do Brasil deveria, como
-Louis-Joseph / Ce qui / Autant qu’il m’en souvienne / Ne rapelle point ta parenté / Avec questão de princípio, interrogar-se sobre o lugar e papel dessa aparente contradição na
Roquefellère [O teu nome era Bimbircokak / e estava tudo bem assim / agora viraste Vic- constituição do Brasil como nação moderna. Mas Leandro Narloch não é pós-colonial...
tor-Emile-Louis-Joseph / o que / tanto quanto eu saiba / não convoca o teu parentesco / 18 Por exemplo, por que não amalgamar a antropologia, sociologia e história numa única
com o Roquefelar] (tradução EM). A questão que Appiah levanta é de que as forças sociais disciplina que incute nos estudantes o sentido crítico no estudo do que faz o mundo
que agem sobre o quotidiano africano – sejam elas o colonialismo, a modernidade, etc. social no passado, presente e futuro? Por que não pensar a história de arte e a filosofia
– não produzem no africano comum a sensação de alienação que por vezes dá coerência como introduções à metodologia das ciências sociais e humanas que colocam o estudante
à crítica intelectual das condições de produção de África como objecto científico. O afri- das ciências humanas e letras na senda daquilo cuja alma, para parafrasear Georg Simmel
cano comum não se vê como nenhum Outro. Ele é e nessa afirmação soberana de identi- (1896), se recusa a ser apreendida duma só vez?
dade ele apropria-se de tudo quanto vem em sua direcção. Neste sentido, a sua constante 19 Maldade não pode ser porque ninguém é intencionalmente maldoso. Afinal, o projecto
referência a um mundo primordial sobre o qual agem forças externas – como é sugerido colonial não se legitimou com recurso à ideia de que era necessário fazer mal aos afri-
pelo programa das Humanidades e Letras da UNILAB – não convoca nenhum parentesco canos e índios. Antes, pelo contrário, ele constituiu-se no dorso das boas intenções, tipo
nem com tradição, nem com modernidade, pois o quotidiano africano é inteligível a missão civilizadora, ordem, progresso e outros mitos. Juan Ginés de Sepúlveda e Barto-
partir do que o africano comum dele faz. lomé de las Casas foram, no fundo, duas faces da mesma moeda.
15 Mais vale tarde do que nunca, embora não seja ainda motivo suficiente para Martinho da 20 Porque o pós-colonialismo pode ter excessos, alguns dos quais são severamente critica-
Vila cantar em Tom Maior. Afinal, como veremos na nota de rodapé número 17, há ainda dos por Appiah (1992). Dois merecem referência especial, nomeadamente o relativismo e
quem se sinta incomodado pela ideia dum Brasil onde ninguém é de ninguém. a idealização do Outro. O relativismo intervém no discurso pós-colonial quando a crítica
16 O Abolicionismo (2000 [1863]) de Joaquim Nabuco, ainda que revelando forte influên- aos excessos coloniais se transforma numa rejeição cínica do ideal de objectividade que
cia do pensamento liberal, é, para mim – e afirmo isto com trepidação consciente do deve, apesar de tudo, orientar a análise científica. Esta rejeição desemboca necessaria-
desconforto que vou causar – o texto fundador, se bem que com certa reluctância, duma mente na convicção segundo a qual a verdade seria função do local de enunciação, o que
visão pós-colonial brasileira. A análise sociológica que sustenta o apelo de Nabuco para a colocaria as afirmações feitas pelos índios, negros, brancos europeus, etc. como verdades
abolição da escravatura assenta numa apreciação profunda da constituição da sociedade que existem lado a lado sem nenhuma possibilidade interpelação de fora. Kwame Appiah
brasileira como resultado do encontro fatídico entre uma vontade de poder enformada critica esta posição quando se revela consternado pela posição pós-moderna segundo a
pela projecção de imagens instrumentais do Outro e a recusa do papel formador desse qual ninguém teria o direito de julgar o outro. Conforme ele bem argumenta, esta posi-
cruzamento de trajectórias com o outro na constituição do Brasil. ção, transferida para o contexto pós-colonial, transforma o intelectual pós-colonial no

250 251
referências bibliográficas21 anexo i – setor de estudos: antropologia
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anexo iii – setor de estudo: história
intérprete privilegiado do “subalterno” que não pode falar (spivak, 1988; ver também
Coronil, 1994). Curiosamente, a idealização do Outro acontece nos interstícios desta 1. O mundo que o europeu encontrou: o ordenamento das sociedades afri-
tensão entre a crítica à objectividade e a legitimação duma posição privilegiada de enun- canas e americanas antes do século XVI. A gênese dos Estados Africanos:
ciação detida pelo intelectual que busca no Outro a revelação duma verdade a-histórica e
transcedental. comércio internacional e escravidão.
21 Mas exige reflexão. É por isso que releguei tudo para as notas de rodapé, para ser lido 2. Intercâmbios econômicos e culturais no contexto colonial – o tráfico de
apenas por aquele que está disposto a fazer este exercício. escravos.

252 253
3. As relações entre os Estados africanos e as formações sociopolíticas: linha- 5. Questões de metafísica.
gens, clãs, aldeias. 6. Questões de ética.
4. O Sistema de Acumulação Colonial, A Crise do Sistema de Acumulação 7. Questões de estética.
Colonial. O latifúndio exportador e a economia escravista. 8. Questões de epistemologia.
5. Índios e negros na construção da nação brasileira. 9. Questões de política.
6. Escravidão, movimentos abolicionista e de resistência: Negociação e 10. Filosofia, epistemologia e ciência: fundamentos.
Conflito.
7. A ocupação efetiva da África. Viajantes, Conferência de Berlim e a Parti-
anexo vi – setor de estudo: literatura em língua
lha da África, estabelecimento de empresas coloniais e disciplinarização do
trabalho.
portuguesa
8. Do pan-africanismo às lutas de libertação: literatura como resistência e afir- 1. A cronística medieval portuguesa, a épica e a lírica de Camões.
mação da identidade negra. 2. A ficção portuguesa do século XIX: marcas centrais.
9. Pós-independência nos Espaços Lusófonos: conflitos sociais e reordena- 3. Poesia portuguesa: Fernando Pessoa, José Régio e poetas contemporâneos.
mento político-cultural. 4. A prosa contemporânea em Portugal: Carlos de Oliveira, José Cardoso
10. Considerações sobre a diáspora africana e suas resultantes. Pires, José Saramago e Lobo Antunes.
5. Cronística colonial no Brasil dos séculos XVI e XVII.
anexo iv – setor de estudo: sociologia 6. Lírica e épica no século XVIII no Brasil: Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio
Manuel da Costa, santa Rita Durão e Basílio da Gama.
1. África e a sociedade linhageira: adaptação e permanência. 7. O século XIX e as matrizes da prosa de ficção brasileira: José de Alencar e
2. Processo colonial: práticas culturais, trocas e conflitos decorrentes do Machado de Assis.
contato. 8. O modernismo de 22: impasses, conquistas e desdobramentos.
3. As diferentes interações da escravidão com as formações sociais e as trans- 9. O romance brasileiro pós-30: Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Gui-
formações decorrentes da entrada dos europeus no comércio de escravos. marães Rosa.
4. Escravidão e Movimentos Abolicionista e de Resistência: Negociação e 10. Literatura e assimilacionismo nos espaços lusófonos: acepções e problemas.
Conflito. 11. Literaturas em Língua Portuguesa, pan-africanismo, autenticidade africana
5. Considerações sobre a diáspora africana e suas resultantes. e negritude.
6. O Olhar do Império: Administração colonial e a fabricação das sociedades 12. A ficção cabo-verdiana no século XX: marcas essenciais.
primitivas 13. A poesia e o processo de descolonização nos espaços lusófonos: Agostinho
7. Movimentos de resistência e lutas de libertação nos espaços colonizados. Neto, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Ovídio Martins.
8. Cientificismo, raça e o impacto na formação da nação. 14. A ficção angolana contemporânea: Luandino Vieira, Pepetela, Uanhenga
9. A sociedade brasileira e a “democracia racial”. Xitu.
10. O retrato colonizado ou o africano visto pelo colonizador branco. 15. A ficção moçambicana: Luís Bernardo Honwana, Mia Couto e Paulina
Chiziane.
anexo v – setor de estudo: filosofia
anexo vii – setor de estudo: teoria da literatura
1. Os pensadores pré-socráticos.
2. A filosofia platônica. 1. A Poética Clássica.
3. A filosofia aristotélica. 2. Teoria da Lírica
4. Platão e Aristóteles e a abordagem de problemas filosóficos como o ser, o 3. Teorias da Narrativa
valor, o conhecimento, a linguagem, a justiça. 4. Composição dramática: o texto teatral e seus componentes literários.

254 255
5. A Lírica Moderna e a crítica: problemas. (Re)Encontrando-se nas redes? As ciências
6. Gêneros literários: tradição, ruptura e hibridismos.
7. Aspectos do romance moderno: função, representatividade social e criação humanas e a nova geopolítica do conhecimento1
literária.
8. A problemática e métodos da Teoria da Literatura contemporânea. Sérgio Costa
9. Tendências e métodos da Teoria da Literatura contemporânea.
10. Limites e debates: disciplinas afins e concorrentes da Teoria da Literatura.

anexo viii – setor de estudo: linguística


1. Pressupostos, objetivos e metodologia da descrição e da análise linguística
estruturalista.
2. Organização, funcionamento e desenvolvimentos recentes da gramática
gerativa.
3. Pressupostos, objetivos e metodologia da descrição e da análise linguística
funcionalista.
4. Aspectos biológicos e cognitivos da linguagem verbal
5. Descrição e análise fonética e fonológica. Esta contribuição contém uma limitação fundamental que deve ser
6. Descrição e análise morfológica e morfossintática. explicada de antemão. Eu não sou um teórico da ciência nem um soció-
7. Descrição e análise das propriedades sintáticas das línguas naturais. logo vinculado à subdisciplina sociologia da ciência, mas antes, se assim
8. Linguagem e sociedade: norma, uso, variação e mudança linguística.
se quiser, um praticante da ciência. Concretamente, isso significa que
9. Processos de organização, compreensão e produção do texto e do discurso
as ciências humanas não constituem meu objeto primeiro de estudo.
10. Linguística Aplicada e aplicação de teorias linguísticas ao campo do ensino
e da aprendizagem de línguas (materna e estrangeiras) e das práticas de lin- Por essa razão, as reflexões apresentadas a seguir não são resultados de
guagem (estudos do discurso, dos gêneros, do letramento, das patologias da pesquisas em sentido estrito, senão observações decorrentes da dedi-
linguagem, das novas tecnologias). cação aos meus objetos mesmos de análise, quais sejam, processos de
11. Teorias de aquisição e ensino de primeira e segunda língua/ Psicolinguís- modernização, antirracismo, estudos sobre a democratização, teorias
tica: aquisição e desenvolvimento da linguagem. da democracia e diferenças culturais. Não menos importante é ressal-
12. Estudo do significado nas línguas naturais e dos princípios reguladores da tar que, no presente artigo, não se fará distinção entre ciências sociais e
atividade verbal: aspectos semântico e pragmático na análise linguística. ciências humanas, pois sob a última rubrica se entende aqui a totalidade
das humanidades.
O propósito deste ensaio pode ser descrito em 3,5 passos. No pri-
meiro, abordo alguns desenvolvimentos institucionais ocorridos, recen-
temente, no campo das ciências humanas e as diferentes reações que
provocaram. No segundo, me ocupo da desconstrução das ciências

1 Versões anteriores desse artigo foram publicadas na revista Estudos de Sociologia, 2/2010,
e na coletânea Sociologia crítica no Brasil, organizada por Josué Pereira da Siva, São Paulo,
Editora Annablume, 2012.

256 257
humanas levada a cabo pelos estudos pós-coloniais e, em seguida, no conhecimento nessa área. Ainda conforme esta linha de crítica, também
terceiro, das propostas de reconstrução das ciências humanas apresen- a política teria se tornado insensível à importância das ciências humanas,
tadas no âmbito dos estudos pós-coloniais. O último passo, na verdade na medida em que o projeto de formar cidadãos instruídos e esclarecidos
um meio passo, corresponde à tentativa de vincular o diagnóstico ins- já não interessaria a mais ninguém. Conforme ironizou o escritor e jor-
titucional realizado na primeira parte com a análise de natureza episte- nalista teuto-polonês Adam Soboczynski (2006): “Hoje, se um político
mológica desenvolvida no segundo e no terceiro passos. A cautelosa e dedicado à educação tem visão, ele se interessa pelas linhas que definem
prudente referência a um último meio passo deve já indicar que a liga- as células-tronco e não mais pela parábola do anel de Lessing.”
ção entre as dimensões institucional e epistemológica não será desdo- Igualmente compreensível é a insatisfação daqueles que denun-
brada em seus detalhes. ciam o “fetichismo da avaliação”, se revoltando contra a crença cega na
superstição tecnocrática de que bastam questionários adequados para
entre humboldt e bolonha:2 um balanço inicial que a qualidade e o potencial de inovação de determinada linha de pes-
quisa possam ser apreendidos. Também fácil de entender é a insatis-
Alguém que tenha levado devidamente a sério os bordões libertários
fação com o poder excessivo dos editais de fomento. Aquilo que será
que dominaram as ciências humanas europeias na geração do pós-68
pesquisado e a maneira como será conduzida a investigação já não são
seguramente observa com estupefação o estado atual das coisas. A infle-
mais definidos pelo interesse dos cientistas mas pela oferta de fundos
xão salta à vista. Em vez do ideal da comunicação livre de dominação,
para a pesquisa. Tem razão o colega sociólogo Clemens Albrecht (2007),
da crítica à unidimensionalidade da experiência humana e à razão ins-
quando mostra que esse tipo de orientação leva a que, em vez de áreas e
trumental, assiste-se, hoje, no âmbito das ciências humanas europeias,
temas de pesquisa aos quais nos dedicamos com afinco e continuidade,
à emergência de um novo regime linguístico, no qual criações semân-
tenhamos agora uma agenda de investigação móvel e maleável, que vai
ticas como excellence cluster, modularização, credenciamento, “esboço
se adaptando indefinidamente às modalidades de financiamento dispo-
de requerimento para concepções de futuro” já não são mais proble-
níveis. Nesse contexto, os pesquisadores passam a meros executivos que
matizadas ou discutidas criticamente. Ao contrário: são naturalizadas e
administram atividades de pesquisa e os professores que, antes, desen-
normalizadas, passando a integrar o cotidiano dos acadêmicos europeus
volviam seus próprios programas de docência, são agora meros respon-
como o iogurte de baixa caloria no café da manhã ou o restaurante de
sáveis pela execução de ementas em módulos de ensino previamente
cava e tapas no happy hour.
estruturados e definidos.
Uns poucos colegas, entretanto, não se resignam. Com razão, denun-
A partir desse diagnóstico surgiram diferentes propostas sobre a
ciam a gestão alheia e externa das ciências humanas que passam a ser jul-
maneira adequada de reagir aos novos desafios. Gostaria de elencar, sem
gadas cada vez mais por critérios de eficiência usados na administração
a pretensão de ser sistemático ou exaustivo, algumas destas reações:
de empresas, sem levar em conta as formas específicas de produção do
1 – A primeira resposta é, por assim dizer, ultrarrealista. Ela reconhece a hege-
2 A referência a Bolonha remete ao processo de reforma das universidades europeias ini- monia das ciências naturais e parte do princípio de que as humanidades
ciado em 1999 a partir de um encontro de 29 ministros da educação europeus na cidade só poderão sobreviver se se tornarem também “ciências duras”, isto é, caso
italiana de Bolonha. O principal objetivo da reforma foi unificar, até 2010, o sistema uni-
versitário europeu em torno de um sistema de créditos comum e uma estrutura similar,
adaptem seus métodos e perspectivas teóricas aos critérios de validação
a qual comporta, agora, em todos os países, graduação (Bachelor) e pós-graduação em próprios das ciências naturais. Em alguns domínios das ciências sociais
dois níveis: mestrado (Master) e doutorado. Os críticos da reforma entendem que esta e políticas já reina uma variante deste ultrarrealismo, a ponto de, nestes
escolarizou excessivamente os estudos universitários, limitando as escolhas e a autono- campos, abordagens baseadas em métodos qualitativos ou em análise de
mia intelectual dos estudantes e professores, além de ser uma reforma não democrática, discurso terem perdido completamente sua legitimidade científica. Vive-se
na medida em que foi imposta de cima para baixo sem a participação das universidades.

258 259
aqui a ilusão de que as ciências humanas lidam com fatos puros e duros que na medida em que não apenas as experiências de minorias mas também
têm (ou deveriam ter) uma existência independente das representações. os processos de transformação social nas sociedades “não-ocidentais”
2 – Uma segunda maneira de reagir às mudanças no ambiente institucional é
são analisados, recorrentemente, nos termos de suas relações funcionais
frequentemente apregoada na Alemanha. Ela se intitula: o retorno a Hum-
boldt. Aqui se defende um retorno ao bom e velho tempo da Universitas, ou de semelhança e diferença com aquilo que se definiu como centro da
no qual um idealizado cientista por vocação busca a verdade, desapegado sociedade moderna. Nesse sentido, o “pós” do pós-colonial não repre-
de qualquer interesse particular e alheio às disputas de poder. O problema senta simplesmente um depois no sentido cronológico linear; trata-se
é que este modelo universalista de ciência humana nunca existiu. Como de uma reconfiguração do campo discursivo, no qual as relações hie-
abordagens críticas e desconstrutivistas já demonstraram à exaustão, o
rárquicas são significadas. O colonial, por sua vez, vai além do colonia-
conceito de universalismo do Iluminismo que é assimilado pelas ciências
humanas modernas carrega em si, de forma inerente, dimensões obscuras lismo e alude a situações de opressão diversas, sejam elas definidas a
como a subordinação implícita ou explícita de mulheres e não europeus partir de fronteiras de gênero, étnicas ou raciais.
(Haraway, 1988; McCarthy, 2001; Steffen, 2006). O livro clássico Orientalism (1978), do crítico literário palestino
3 – Por essa razão acredito ser promissora uma terceira forma de crítica que é Edward Said, falecido em 2003, é considerado o “manifesto de fundação”
de natureza epistemológica. Segundo essa perspectiva, as ciências moder-
do pós-colonialismo (Conrad; Randeria, 2002, p. 22). O orientalismo
nas encerram um “regime de verdade” que reproduz sempre e inapela-
velmente as relações de poder existentes. Conforme essa crítica, presente, de que fala Said caracteriza uma maneira particular de percepção da
entre outros, em muitos estudos feministas e antirracistas, as categorias história moderna e que tem como ponto de partida o estabelecimento a
e os sistemas de classificação científicos não são, do ponto de vista das priori de uma distinção binária entre Ocidente e Oriente, entendendo-se
estruturas de poder étnicas, raciais e de gênero, neutros. Ao contrário: eles que cabe àquela parte que se autorrepresenta como Ocidente a tarefa de
refletem e legitimam a posição de superioridade do “homem branco oci-
definir o que se entende por Oriente. O orientalismo constitui, assim,
dental”. Particularmente importante aqui é a crítica de cientistas sociais
oriundos da África, Ásia e América Latina, de acordo com a qual noções uma maneira de apreender o mundo, ao mesmo tempo em que se con-
coloniais teriam impregnado as ciências humanas de maneira tão profunda solida, historicamente, a partir da produção de conhecimentos pautados
que mesmo hoje exerceriam ainda um importante papel na produção do por aquela distinção binária original. O orientalismo caracteriza, pois,
conhecimento científico. Esta corrente crítica, conhecida como pós-colo- um modo estabelecido e institucionalizado de produção de representa-
nial, será o fio condutor das reflexões que a apresento a seguir, pelo fato
ções sobre uma determinada região do mundo, o qual se alimenta, se
de, por um lado, questionar categorias centrais das ciências humanas e,
por outro, oferecer estímulos úteis para uma reconceitualização crítica das confirma e se atualiza por meio das próprias imagens e conhecimentos
ciências humanas. que (re)cria. O oriente do orientalismo, ainda que remeta, vagamente, a
um lugar geográfico, expressa mais propriamente uma fronteira cultu-
desconstruções pós-coloniais3 ral e definidora de sentido entre um nós e um eles, no interior de uma
relação que produz e reproduz o outro como inferior, ao mesmo tempo
O ponto de partida dos estudos pós-coloniais é a constatação de que toda em que permite definir o nós, o si mesmo, em oposição a este outro,
enunciação tem um lugar de origem. Com efeito, é sobre essa observa- ora representado como caricatura, ora como estereótipo, e sempre como
ção, hoje já trivial, que os estudos pós-coloniais alicerçam sua crítica uma síntese aglutinadora de tudo aquilo que o nós não é e nem quer ser.
ao processo de produção do conhecimento científico. Segundo a pers- O sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall busca generalizar o
pectiva pós-colonial, as formas estabelecidas de produção do conheci- caso do orientalismo mostrando que a polaridade entre o ocidente e o
mento contribuem para a reprodução da lógica interna do colonialismo resto do mundo (the West/ the rest) encontra-se na base de constituição
3 Aqui são retomados argumentos apresentados detalhadamente em Costa (2006) e Costa
das ciências sociais. Alimentando-se de discursos como os encontrados
(2009). nas mitologias (o Eldorado, as lendas sexuais, etc.) ou nos relatos de

260 261
viajantes, constituem-se, segundo Hall, as polaridades entre o ocidente Com isso não se quer afirmar que unidades culturais imaginadas
– civilizado, adiantado, desenvolvido, bom, e o resto do mundo – sel- como “os alemães”, “os turcos”, “a mulher muçulmana” ou “pessoas com
vagem, atrasado, subdesenvolvido, ruim. Uma vez constituídos, esses histórico de migração” sejam irrelevantes para o processo de construção
binarismos se tornam ferramentas para pensar e analisar a realidade. de identidade. Essas unidades culturais não atuam, entretanto, como
Essa polaridade tem papel determinante não apenas nos primei- um programa de computador, estabelecendo com precisão o modo
ros trabalhos modernos no campo das ciências humanas – de Kant a como cada pessoa concreta há de reagir numa determinada situação;
Weber. Tornam-se, também, um dos fundamentos da própria ciência elas funcionam como estruturas discursivas, diante das quais o indi-
moderna, a qual toma as normas sociais, estruturas e valores encontra- víduo precisa continuamente se posicionar. Isto significa que, indife-
dos nas sociedades qualificadas de ocidentais como parâmetro universal rente ao fato de as portarmos ou não, nos serão atribuídas determi-
que define o que são sociedades modernas. nadas características como migrantes, brasileiros ou nordestinos, etc.,
A invenção de um mundo dividido em duas metades, o ocidente e o com as quais teremos de lidar. O processo concreto de construção de
oriente, acaba por se transformar, ao longo da história, em método cien- identidade se constitui, porém, antes interativamente e no bojo de uma
tífico. Nesse contexto, tudo o que é diverso no “resto do mundo” passa a dinâmica negociação, no qual adscrições, discriminações e estratégias
ser decodificado como um ainda não existente, uma falta a ser compen- de imposição dos próprios interesses atuam combinadamente. Nesse
sada por meio da intervenção social cabível em cada contexto e em cada contexto, já não faz mais sentido falar de identidade cultural, mas de
época histórica, ora dominação colonial, ora ajuda ao desenvolvimento, identificações temporárias e variáveis:
ora intervenção humanitária. Com isso não se pretende, naturalmente,
Identidade é mais bem pensada como identificação. Identidade é facilmente
atribuir a responsabilidade pelos colonialismos e imperialismos às ciên- vista como fixa e estática; pensar identidade como identificação traz à tona
cias sociais modernas. Fica demonstrado, contudo, como as disciplinas a organização na formação de identidade e é mais perspicaz. A ideia de
desse campo reproduzem a perspectiva colonial ao alimentar e legiti- identidade não como dada, mas como adquirida remonta até o Renasci-
mar o modelo dominante de representação das relações entre Europa e mento. Identificação está em curso e é relacional [...] (Pieterse, 2007, p. 32,
ênfase no original; tradução nossa)4
o resto do mundo (ver Costa, 2006; Tucker, 1999).
Essa sorte de construção mental que apresenta o mundo dividido A desconstrução do conceito de cultura das ciências humanas
entre o ocidente e o “resto” aparece refletida no conceito de cultura que implica sérias consequências para o campo de investigação sobre a cha-
domina as ciências humanas modernas, em cujo núcleo encontra-se a mada interculturalidade. Afinal, até agora, no que diz respeito à cul-
distinção entre a cultura ocidental e a não ocidental. Ao mesmo tempo, tura, as ciências humanas tomaram como tarefa principal a análise das
culturas nacionais e regionais são tomadas como conjuntos de estrutu- supostas características culturais próprias às unidades no mais das vezes
ras de significação e repertórios culturais a partir dos quais são deriva- circunscritas territorialmente. Se, porém, culturas não estão armazena-
dos comportamentos individuais, valores e processos de constituição de das em unidades territoriais pré-estruturadas e estáveis, mas são, antes,
identidades. Conforme a crítica pós-colonial, essa concepção de cultura produto dos intercâmbios dinâmicos para além das próprias fronteiras
não é capaz de explicar o caráter dinâmico dos intercâmbios culturais na culturais, as ciências humanas se veem diante da necessidade de deslo-
sociedade mundial. Em lugar de um conceito rígido e geograficamente car completamente seu foco, isto é, escapar às totalidades imaginadas,
definido de cultura, os estudos pós-coloniais propõem um conceito
fluido, no qual unidades culturais imaginadas não figuram em primeiro 4 “Identity is best thought as identification. Identity is too easily viewed as fixed and static;
thinking of identity as identification brings out the agency in identity formation and is
plano, mas sim diferenças, que se articulam ad doc nas lacunas de sen- more insightful. The idea of identity not as given but as achieved goes back as far as the
tido entre as fronteiras culturais. Renaissance. Identification is ongoing and relational” (Pieterse, 2007, p. 32).

262 263
sejam elas nacionais regionais ou locais, e dirigir-se aos “entre-espaços”, Essa postura crítica enfática é, seguramente, fonte de inspiração
nos quais os processos culturais concretos se realizam (ver Pieterse; importante para movimentos sociais feministas ou de minorias. Con-
Parekh, 1995; Febel, 2006). tudo, sua contribuição para a reconceituação das ciências humanas é, a
meu ver, bastante limitada visto que recusam a ciência como tal e não
reconstruções pós-coloniais em uma forma determinada. Assim, excluem a si mesmos do debate em
torno da reforma das ciências humanas.
Através do conceito combativo “geopolítica do conhecimento”, autores A vertente intermediária apresenta uma genealogia das ciências
vinculados aos estudos pós-coloniais procuram denunciar e modificar sociais modernas através da qual demonstram com nitidez os entrecru-
as posições assimétricas atribuídas às diferentes regiões do mundo no zamentos entre gênese e desenvolvimento das disciplinas científicas e o
que concerne à produção do conhecimento. Seguindo essa assimetria colonialismo europeu. Como representante emblemático dessa posição
predefinida pelas relações de poder vigentes, determinadas formas de pode-se mencionar o grupo Modernidad/Colonialidad, formado por
conhecimento são previamente desautorizadas, pelo simples fato de não pensadores oriundos dos Estados Unidos e da América Latina e cujos
poderem ser avaliadas através do aparato conceitual das ciências moder- principais representantes são Walter Mignolo (2000, 2007), Anibal Qui-
nas. Assim, conhecimentos produzidos, por exemplo, por povos indí- jano (2007), Enrique Dussel (2000), Catherine Walsh (2007) e Arturo
genas são completamente desprezados por operarem uma lógica e um Escobar (2005), entre outros.5 Na visão destes autores, a diferenciação
método cognitivo distintos daqueles que vigoram nas ciências. em vigor entre disciplinas como história, ciência política e sociologia,
Como expressões do esforço pós-colonial de libertar as ciências presumivelmente especializadas nas sociedades modernas, por um lado,
sociais modernas de seus rasgos coloniais, gostaria de apresentar três e a etnologia e a antropologia, que se preocuparia com as culturas “pré-
programas de investigação distintos, os quais classifico, de acordo com modernas”, por outro, só pode ser entendida se não perdemos de vista
seu grau de radicalidade, em enfático, intermediário e moderado. a funcionalidade desta distinção no contexto da dominação colonial,
Representantes da vertente crítica radical sublinham a ligação entre posto que tal distinção é, do ponto de vista heurístico, um contrassenso.
discurso e poder e encaram a ciência como mero mecanismo de legiti- Através dessa divisão de tarefas, as “sociedades ocidentais” foram prede-
mação de estruturas de dominação. Assim, critérios de excelência, rigor terminadas como sujeitos do saber, enquanto, “por definição, as outras
metodológico e a propalada pretensão de objetividade da ciência não culturas são objetos de estudo” (Quijano, 2007, p. 173, tradução nossa).6
passariam de rituais e encenações que cumprem o papel de esconder Existe, portanto, para os estudos pós-coloniais agrupados na cor-
estratégias pessoais e institucionais de poder. O campo científico cons- rente intermediária, uma interdependência estrutural entre colonia-
titui, para essa vertente, um espaço inteiramente minado pelas disputas lismo e ciências humanas modernas: por um lado, a dominação colonial
de poder de tal sorte que toda pretensão de validade pronunciada no constitui a plataforma sobre o qual a ciência seria reconhecida como
interior desse campo estaria de saída contaminada e só viria a contribuir
para legitimar os processos de exclusão e opressão reinantes. Por essa
5 Mignolo e alguns dos autores mais próximos a ele preferem ser identificados como
razão, os autores reunidos sob esta rubrica criticam a ciência como tal parte de um movimento decolonial e não pós-colonial. Preferem, também, o conceito
e perseguem um saber “beyond theory” (Bhabha, 1994, p. 19). Trata-se “pós-ocidentalismo” a “pós-colonialismo” já que o primeiro conceito permitiria abarcar,
de maneira mais satisfatória, a crítica ao eurocentrismo a partir de diferentes perspecti-
de questionar a forma científica de sistematização do saber, posto que o vas geográficas e epistemológicas. Essas finas distinções parecem, contudo, espelhar mais
discurso científico, ao transformar os dinâmicos processos sociais e cul- as disputas institucionais no interior do campo pós-colonial/decolonial que diferenças
turais em objetos estáticos, se faz incapaz de compreendê-los (McLen- substantivas e não são, por isso, enfatizadas no presente ensaio (para um mapeamento
desse campo ver: Boatcă; Costa; Gutiérrez Rodríguez, 2010).
nan, 2000, p. 70). 6 “[...] by definition, the other cultures are the ‘object’ of study” (Quijano, 2007, p. 173).

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única forma válida de saber. Mignolo constata esse fato quando, fazendo Diferentemente da variante enfática, a variante intermediária dos
referência a Quijano, escreve: estudos pós-coloniais não pretende renegar a ciência. Reconhece, entre-
tanto, a necessidade de oferecer às chamadas formas subalternas de
[...] Tornou-se impensável aceitar a ideia de que um sujeito cognoscente
foi possível além do sujeito do conhecimento postulado pelo próprio con-
saber possibilidades de desenvolvimento comparáveis àquelas garanti-
ceito da racionalidade posto em prática na epistemologia moderna [...] das à ciência. Em conformidade com essa interpretação estão, por exem-
(Mignolo, 2000, p. 60, tradução nossa)7 plo, projetos de universidades interculturais indígenas na região andina
ou a tentativa de revivificar formas de conhecimento da população afro-
Por outro lado, a ciência produziu os conhecimentos que legitima- colombiana na costa do pacífico (escobar, 2008). Ao fornecer a esses
ram, politicamente, o projeto colonizador e, ao mesmo tempo, fornece- saberes subalternos novos instrumentos de poder como, por exemplo, a
ram a tecnologia social sobre a qual se fundava a administração colo- autorização para conceder diplomas universitários, espera-se produzir
nial. Refere-se aqui ao papel que coube à ciência da segunda metade uma “rearticulação de destinos globais e histórias locais”, de sorte que
do século XIX de comprovar a pretensa superioridade europeia e, por “saberes subalternos e hegemônicos sejam combinados sob a égide dos
conseguinte, a inferioridade intelectual de sociedades e indivíduos não primeiros” (Escobar, 2005, p. 74).
europeus. Somente assim puderam coexistir colonialismo, escravidão A ideia de valorizar formas não científicas de conhecimento, espe-
moderna e extermínio dos povos indígenas nas Américas com as aspira- cialmente em regiões que outrora foram colônias, é seguramente lou-
ções por direitos humanos e pretensões igualitárias no lado europeu do vável. A expectativa de que isso possa provocar mudanças substanciais
Atlântico, mas também no próprio continente americano.8 O exemplo no campo da ciência me parece, contudo, exagerada.10 Pelo menos desde
da expansão do racismo científico nos Estados Unidos permite ilustrar a publicação do ensaio clássico de Spivak (1988), sabemos que há uma
esse fenômeno de forma paradigmática: heterogeneidade de subalternos, os quais não são possuidores de uma
O dogma racial é quase a única saída para um povo tão moralissima- consciência autêntica pré ou pós-colonial, trata-se antes de “subjetivi-
mente igualitário, se este não está preparado para viver de acordo com dades precárias” construídas no marco da “violência epistêmica” colo-
sua fé. Uma nação menos fervorosamente comprometida com a demo- nial. Nesse sentido, a dominação colonial pode ser entendida como o
cracia poderia, provavelmente, viver feliz em um sistema de castas com cerceamento da resistência através da imposição de uma episteme que
uma crença um pouco menos intensa na inferioridade biológica do grupo
subordinado. A necessidade de um preconceito racial é, deste ponto de vista, torna a fala do subalterno, de antemão, desqualificada e, assim, a silen-
a necessidade de defesa por parte dos americanos contra seu próprio credo cia. Desse modo, me parece ilusório pensar que o saber subalterno
nacional, contra seus ideais mais estimados. E o preconceito racial é, neste possa agora, depois de séculos da colonização nas Américas, revitalizar
sentido, uma função de igualitarismo. O anterior é uma perversão do subse- as ciências humanas (ver Domingues, 2009).
quente. (Myrdall, 2000, p. 91, ênfase no original; tradução nossa)9

7 “[...] it became unthinkable to accept the idea that a knowing subject was possible beyond biological inferiority of the subordinate group. The need for race prejudice is, from this
the subject of knowledge postulated by the very concept of rationality put in place in point of view, a need for defense on the part of the Americans against their own national
modern epistemology [...]” (Mignolo, 2000, p. 60). creed, against their own most cherished ideals. And race prejudice is, in this sense a function
8 A escravidão moderna surge seguramente muito antes do racismo científico. Com o of equalitarianism. The former is a perversion of the later” (Myrdall, 2000, p. 91).
avanço dos ideais de direitos humanos, porém, ela começa a carecer de justificação. A 10 O próprio Quijano observa que não apenas o elogio aos saberes subalternos, senão uma
superioridade branca asseverada pelo racismo científico serve, a partir de então, de base descolonização da epistemologia científica, é necessária para que se conceba uma verda-
de legitimação da escravidão (ver Hofbauer, 2006) deira comunicação intercultural: “epistemic decolonization is necessary to make possible
9 “The race dogma is nearly the only way out for a people so moralistically equalitarian, if and move toward a truly intercultural communication; to an exchange of experiences and
it is not prepared to live up to its faith. A nation less fervently committed to democracy significations as the foundation of an-other rationality” (Quijano, apud Mignolo 2007,
could, probably, live happily in a caste system with a somewhat less intensive belief in the p. 499).

266 267
Por fim, resta-nos abordar a vertente moderada dos estudos pós- das sociedades contemporâneas dentro e fora da Europa, de maneira
coloniais. Trata-se de uma crítica que não rejeita a ciência nem procura que fenômenos como colonialismo e escravidão já não podem mais ser
novas formas de conhecimento para substituí-la, senão que procura tratados como externos ao processo de modernização europeia. Ao con-
realizar uma transformação/reformulação da ciência a partir de den- trário: passam a ser apresentados como elementos centrais da história
tro. Isso implica desconstruir a história hegemônica da modernidade, global da modernidade (Randeria, 2000, 2005; ver também contribui-
evidenciando as relações materiais e simbólicas entre Ocidente e “resto ções em: Gutiérrez Rodríguez; Boatcă; Costa, 2010).
do mundo”, de sorte a mostrar que esses termos compõem construções O balanço que se extrai do sumário panorama dos esforços pós-
mentais sem correspondência empírica imediata. Esse é o projeto per- coloniais de reconstrução das ciências humanas apresentado até aqui
seguido pelo historiador indiano da Universidade de Chicago, Dipesh é inequívoco. A vertente enfática questiona as ciências humanas como
Chakrabarty (2005). Sob a divisa “provincializar a Europa”, o autor forma legítima de conhecimento pelo fato destas reproduzirem – atra-
busca radicalizar e transcender o universalismo liberal, mostrando que vés de seus sistemas, classificações e categorias – os padrões coloniais,
o racionalismo e a ciência, antes de serem marcas culturais europeias, além de tentar encapsular em unidades geográficas herméticas proces-
são parte de uma história global no interior da qual o monopólio “oci- sos culturais que somente podem ser decodificados se encarados como
dental”, na definição do moderno, foi construído tanto com o auxílio do fluxos de informação que circulam entre as fronteiras culturais. A posi-
imperialismo europeu quanto com a participação direta do mundo “não ção intermediária tenciona provocar modificações nas ciências huma-
ocidental”. Por conseguinte, as histórias nacionais de países não euro- nas através da valorização de formas alternativas de conhecimento. Por
peus se apresentam como narrativas de construção de instituições como último, a corrente moderada, ao evidenciar insuficiências metodológi-
cidadania, a sociedade civil, etc., que só encerram sentido se projetadas cas e os pontos cegos das ciências humanas, procura, a partir de den-
no espelho de uma “Europa hiper-real”. Assim, “através das histórias tro, transformar o regime de verdade da ciência. Diferentemente do que
contadas não apenas pelo imperialismo mas também pelo nacionalismo ocorreria se o que estivesse em jogo aqui fosse uma decisão de ordem
dos colonizados”, construiu-se a epopeia europeia da modernização política ou estética, situações em que as escolhas mais radicais são, em
(Chakrabarty, 2002, p. 302). Provincializar a Europa significa, para geral, mais promissoras, parece-me que, no caso presente, a variante
Chakrabarty, reconhecer duas evidências: primeiro que a reivindicação moderada apresenta-se como a melhor opção.
de monopólio do atributo “moderno” por parte da Europa é um capítulo É preciso considerar que, não obstante sua radicalidade retórica,
da história moderna do qual o imperialismo europeu é parte constitu- as abordagens pós-coloniais concorrem, dentro das ciências humanas,
tiva; segundo, que a colaboração de nacionalistas de países do Terceiro com outras correntes por recursos e reputação. Isso significa que tam-
Mundo desempenha um papel fundamental no triunfo da ideologia bém os estudos pós-coloniais estão submetidos aos critérios de valida-
modernista, na qual a própria Europa viria a figurar como representação ção próprios de cada área do conhecimento acadêmico e, na medida em
acabada da modernidade. que pretendem obter ressonância nesse meio, não devem continuar se
Shalini Randeria, antrópologa de origem indiana do The Graduate esquivando ao diálogo com outras correntes interpretativas. Para isso,
Institute, de Genebra, amplia algumas das teses de Chakrabarty ao entretanto, se faz necessário abandonar a postura anti-establishment,
cunhar os conceitos de “história compartilhada” e “modernidade entre- pois, ao contrário do que eventualmente pode ocorrer na topografia
laçada”. A tentativa aqui é de fundamentar a ideia de que histórias, a social e política, não há, na ciência, um “entre-espaço”. Assim, quem não
despeito de serem narradas como nacionais, apresentam interpenetra- estiver de acordo com os critérios de excelência e de validade que impe-
ções e se determinam mutuamente. Com isso a autora busca expressar ram na ciência, só tem chances de modificar tais critérios, na medida
a interdependência e a simultaneidade dos processos de constituição em que não se curve às disputas e contendas internas por sua definição.

268 269
observações finais encaradas como inocentes, mas antes como instrumento e produto da
dominação colonial, da hegemonia masculina e da supremacia política
Os novos desenvolvimentos no campo das ciências humanas são ambi- e econômica. Ao mesmo tempo, todavia, procura-se superar essas insti-
valentes. Por um lado, é evidente que certas formas de trabalho e crité- tuições, disciplinas e categorias.
rios de avaliação aos quais as ciências humanas estão sendo submetidas Transposta para o âmbito pessoal, tal postura implica em pensar
são, no mais das vezes, inadequados. Ninguém acreditaria, por exemplo, e agir de maneira disciplinar e transdisciplinar, na medida em que,
que obras fundamentais das ciências humanas contemporâneas, como a por exemplo, partindo dos métodos da própria disciplina, procure-
teoria da justiça, de John Rawls, ou a filosofia pós-estruturalista, de Jac- mos produzir artigos que, na medida do possível, sejam publicados nos
ques Derrida, seriam mais contundentes e influentes caso esses autores periódicos de maior prestígio na área. Concomitantemente, cabe pro-
houvessem trabalhado num excellence cluster ou tivessem sido capazes de mover fóruns de discussão ou trabalhar em projetos que coloquem a
angariar alguns milhões de dólares mais de fundos para suas pesquisas. nu a cegueira decorrente da não superação das fronteiras disciplinares.
Por outro lado, emergem novas chances – seguramente limitadas Isso significa também se articular no âmbito nacional e internacional.
e modestas – para transformar as estruturas coloniais de produção do Participamos do congresso anual da associação dos pesquisadores da
conhecimento. Em algumas redes internacionais, cientistas do “oci- disciplina a que pertencemos, mesmo sabendo que os debates verdadei-
dente” e do “resto do mundo” já trabalham conjuntamente e em condi- ramente estimulantes se realizam com colegas de regiões e disciplinas
ções de igualdade. Também a incorporação da perspectiva de minorias distintas, em eventos, via de regra, auto-organizados.
se alça gradativamente à posição de modelo na concepção das pesqui- Na prática, não é fácil levar a efeito a dupla estratégia preconizada
sas científicas. Diante das artimanhas da nova constelação, ajuda pouco aqui. É preciso, por um lado, aceitar as referências canônicas de cada
evocar, nostalgicamente, a volta idealizada ao modelo humboldtiano de campo do conhecimento, mas encará-las com olhos críticos, posto que
universidade. Por isso, minha tentativa aqui foi explicitar como, par- elas não raro legitimam velhas estruturas de dominação e novas ambi-
tindo da crítica pós-colonial, podem ser extraídas lições inspiradoras ções de poder. Isto nos coloca a todos, pesquisadores do campo das
para encarar as novas dificuldades. Particularmente frutífera é, a meu ciências humanas, na posição de filósofos da ciência e de sociólogo das
ver, a estratégia dupla implícita na interpretação de Chakrabarty, na microestruturas. O filósofo em nós vigia, permanentemente, em que
medida em que faz um elogio das instituições da modernidade e, ao medida as categorias empregadas exprimem relações de dominação; o
mesmo tempo e no mesmo movimento, põe em dúvida sua origem oci- sociólogo cartografa, em seu campo institucional, estratégias e os atores
dental. Nesse sentido, é mister familiarizar-se com a provincialidade das que no âmbito de interações concretas negociam seus interesses, prefe-
ciências humanas, para poder então transformá-las a partir de dentro. rências e perspectivas. Disso depende a consecução de objetivos maio-
Realizar tal programa pressupõe duas perspectivas de ação e de reflexão. res, como o alargamento dos espaços de reflexão crítica e a promoção da
A primeira perspectiva se refere às oportunidades passíveis de serem uma perspectiva humanística no campo das ciências sociais.
alcançadas dentro do contexto político-institucional vigente; a segunda
abrange uma dimensão algo utópica, já que tem como objetivo transfor- Tradução do original em alemão:
mar a gramática institucional ora existente. Traduzidas para a condição Fernando dos Santos Baldraia
presente das ciências humanas, esta estratégia dupla significa adaptar-se,
sem para ou por isso ser conformista, e reformar sem perder de vista a
possibilidade de transcender o atual estado de coisas. Tenta-se, assim,
tirar o melhor de instituições, disciplinas e categorias que não são mais

270 271
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culturais, linguísticos, políticos e econômicos em marcha na construção
social da realidade, e explicam suas especificidades. Cada contato entre
europeus e não europeus suscitou tipos de trocas e de reconhecimento
particulares que podem ser comparados em um certo grau de análise,

1 Segundo o sociólogo português B. S. Santos, a teoria pós-colonial não pode definir de


forma restritiva a noção de zona de contato, limitando-a aos encontros entre totalidades
culturais, como o fazem diversos autores. É preciso também, explica, levar em conside-
ração as diferenças culturais particulares e compreender que estas, em um certo espaço-
tempo, podem entrar em competição, o que orienta as ações em um determinado sentido
(Santos, 2008, p. 130).

274 275
mas não podem ser assimilados uns pelos outros. Em certos casos, ças sincréticas encontradas principalmente nas artes, nas manifestações
como por exemplo na Argentina, no Chile ou ainda no Brasil, o impacto religiosas e nas festas. Por esta razão, certos sociólogos estimam, a partir
colonizador teve por consequência eliminar, através da violência física do caso da América Latina, que é importante evidenciar a existência
ou cultural, populações inteiras de indígenas. Em outras áreas, especial- de várias modernidades engajadas e partilhando de um mesmo movi-
mente nos Andes peruanos, equatorianos ou bolivianos, as populações mento criador (Dussel, 2005; Quijano, 2005; Wallerstein, 2006).
originais conseguiram – apesar da violência colonizadora – preservar Parece então essencial se libertar das interpretações reducionistas
uma parte das suas tradições e de sua memória, o que constitui, ainda para melhor compreender a complexidade da relação, no empreendi-
hoje, um fator importante de mobilização política e cultural. mento colonial, entre capitalismo e colonização, entre lógica mercantil
Nossa hipótese é que não se pode compreender o caráter sócio e lógica simbólico-religiosa. Ao observar, à maneira de Sahlins e Todo-
-histórico determinante do contato cultural2 fundador da experiência rov, mas também de teóricos do pós-colonialismo acima citados, os
colonial sem ultrapassar as teses reducionistas, especialmente aquela gestos mútuos de amizade nas primeiras zonas de contato, rapidamente
que retrata o momento colonizador como aquele de um enfrentamento seguidos de rejeições recíprocas, percebe-se que o modelo de domina-
entre uma civilização economicamente avançada e um conjunto de ção introduzido pelos conquistadores não se inseria a priori em uma
sociedades “selvagens” inferiores. Este tipo de representação, que está lógica mercadológica, mas que evoluiu de acordo com as tensões entre
na origem de todas as teses eurocentristas atuais, leva a uma conclusão dom, religião e mercado. A não aceitação pelos europeus da organiza-
problemática: ela descreve a modernidade como sendo sempre europeia ção holística dos ameríndios e da presença de um imaginário sacrificial
e a formação das sociedades coloniais como sendo o resultado direto da suscitou entre as populações humilhadas reações e resistências políti-
força civilizadora dos conquistadores. Ora, uma tal análise não resiste cas e culturais que ainda são perceptíveis em nossa época, como reve-
nem por um instante a uma confrontação com a realidade empírica, lam recentes pesquisas em socioantropologia. Pensemos à imagem dos
quer se trate de Sahlins (2003), descrevendo o contato entre os ingleses quilombos afro-brasileiros, instalados em florestas ou regiões de difícil
(sob o comando do capitão Cook) e os havaianos, ou de Todorov (1988), acesso, ou ainda à sobrevivência de economias não monetárias, basea-
analisando o confronto entre os espanhóis e as populações ameríndias. das na reciprocidade e na dívida, que existiam antes da chegada dos
Os dois antropólogos demonstraram amplamente, ao contrário, que a conquistadores e continuam a existir ainda hoje, como o mostra Emilia
colonização teve um impacto importante de cada lado, e isto desde o Ferraro a partir do caso equatoriano (2004).
momento do primeiro contato. Na América Latina, a força militar dos Ora, a reação persistente desses grupos humilhados nos incita a
conquistadores certamente contribuiu para fragmentar os sistemas provar mais compreensão a respeito da situação social das populações
sociais locais, inclusive aqueles de civilizações mais avançadas, como os minoritárias e a rediscutir nossas grades de leitura. Também, o “dom”
astecas no México ou os incas no Peru. Não obstante, esta fragmentação nos parece central nesta revisão teórica, na medida em que permite
não fez desaparecerem totalmente os sistemas sociais, culturais e religio- recolocar a troca mercantil em um quadro de uma troca “total” mais
sos preexistentes: estes sobreviveram de diversas maneiras ao impacto ampla, baseada em uma pluralidade de motivos que ultrapassam larga-
exógeno, por exemplo, resistindo no plano político ou operando mudan- mente a lógica econômica.

2 Não poderíamos nos esquecer de Roger Bastide na exploração dessas zonas de contato. o paradigma do dom e a crítica teórica descolonizadora
Suas pesquisas consagradas às relações interétnicas e aos fenômenos religiosos afro-bra-
sileiros foram decisivas para problematizar uma etnologia que praticava “a superstição do O paradigma (maussiano) do dom (Godbout e Caillé, 1992; Caillé,
primitivo”. Ver a este propósito os textos do colóquio sobre Roger Bastide acontecido em
Cerisy-la-Salle, em 1992 (Laburthe-Tolra, 1994).
2000, 2005 e 2009; Godbout, 2000 e 2007) é determinante, ao mesmo

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tempo, para uma desconstrução teórica do pacto colonial e para fazer premissas do pacto colonial nascido do reencontro frontal entre dois ima-
avançar a descolonização3 em um plano prático. O estudo do dom che- ginários, o eurocentrista, do conquistador, e o cosmocêntrico, das popula-
ções autóctones, pacto que continua a determinar o imaginário pós-colo-
gou, de fato, a uma teoria antiutilitarista da ação que convida a enxergar,
nial atual.
na empreitada colonial, outra coisa além das consequências de um sim- 2- O segundo objeto desta abordagem pelo dom, precisamente porque ajuda
ples interesse mercadológico. Esta teoria, segundo afirma Alain Caillé, a trazer à luz a diversidade de motivos do comportamento humano, sua
“sem negar a força dos interesses, deve mostrar que esta redução sis- dimensão simbólica e a pluralidade das racionalidades presentes no ima-
temática ao interesse é insustentável e deixa escapar definitivamente o ginário colonialista, é sustentar a crítica pós-colonialista. Associada às
essencial daquilo que importa aos humanos. [...] é porque eles aspiram teorias pós-coloniais atuais (Martins, 2010), ela se abre, de fato, a uma
compreensão teórica mais ampla do processo colonizador, na medida em
mais a ser reconhecidos que a acumular que o homem não é redutí-
que se veem desmascarados tanto o mito da superioridade cultural da
vel à figura utilitarista do Homo œconomicus” (Caillé, 2009, p. 5). Por- Europa (alvo da crítica pós-colonial) quanto o da anterioridade absoluta
que estabelece que a ação humana é regida por diversas determinações das determinações econômicas na colonização (alvo da crítica antiutilita-
paradoxais – interesse/desinteresse e obrigação/liberdade –, a teoria rista), revelando a verdadeira complexidade geopolítica e cultural da cena
do dom traz nova luz à aventura colonial, que podemos desde então mundial. Isto é, a nova interpretação dos fatores econômicos, com variá-
definir como um campo ampliado de construções discursivas onde se veis mais amplas que levam em consideração sua dimensão igualmente
simbólica, moral, cultural e religiosa, nos ajuda a trazer um novo e dife-
misturam fatores culturais e religiosos. Na América Latina, o dom foi o rente olhar sobre os sistemas de dominação coloniais e pós-coloniais.
momento instituinte do contato cultural entre europeus e ameríndios.
As trocas iniciais de presentes facilitaram de uma parte a instauração de Isto implica, evidentemente, em se operar uma nova leitura dos
um diálogo, e de outra parte, a tomada de interesse econômico ligada à próprios acontecimentos e em se questionar, principalmente, como se
empreitada colonial. Por outro lado, os rituais sacrificiais pagãos forne- passou do primeiro momento, simétrico, de boa vontade entre as duas
ceram os motivos para a repressão militar e religiosa dos conquistadores partes, a um segundo momento, assimétrico, marcado pela multiplica-
sobre as populações locais. ção das guerras, os extermínios e as políticas de submissão. Se a lógica
Assim, inspirada no dom, reforçada pela compreensão da realidade mercadológica subentendia a ambição materialista dos europeus, ela
como topos de onde partem e se emaranham múltiplas relações causais, não explica nem a intensidade da guerra nem a crueldade da dominação
a teoria antiutilitarista da ação se encontra na fonte de um trabalho de escravocrata que se materializou em um momento posterior. A mercan-
modelização jamais alcançado (Kalberg, 2010): tilização do “novo” mundo não traz, por exemplo, nenhum esclareci-
1- A primeira tarefa neste quadro consiste em restituir a complexidade das mento sobre as extremas desigualdades sociais atuais, cuja origem é ape-
trocas de bens simbólicos e materiais entre conquistadores e populações nas parcialmente econômica. A colonização só se deixa vislumbrar em
locais e em mostrar como essas trocas evoluíram, em seguida, em duas toda sua complexidade se forem consideradas, além da lógica mercantil,
direções, que se definiram assim: de uma parte, a inibição do dom comu- as políticas étnicas e a valorização do “embranquecimento” das popu-
nitário – o dom como “espírito” das sociedades pagãs dos ameríndios; de
lações locais, as quais revelam ao mesmo tempo seu caráter homicida.
outra parte, a emancipação do dom patrimonial – que permitiu fundar
o Estado colonial e pós-colonial. Ela consiste igualmente em retornar às 3- Enfim, a associação entre religião e dom é central, pois permite atualizar
os dispositivos de reconhecimento mútuo inicialmente estabelecidos, em
3 O vocábulo pós-colonial é muito impreciso para descrever certos contextos particulares ambos os lados, através das trocas de presentes. Esta abordagem teórica
relativos às reações das nações subalternas em face da colonização. Também, em um con- pelo dom e pela religião mostra, igualmente, como a sociabilidade inicial
texto específico de crítica anticolonial e desconstrucionista, é mais pertinente empregar deu origem a uma reação violenta da parte dos europeus. Por diversas
o termo descolonial(ista) para exprimir este esforço de crítica teórica e de desconstrução
do capitalismo, visto como dispositivo de colonização a partir do dom.
razões, o Outro pagão, através da existência do dom sacrificial humano,

278 279
em geral, e do canibalismo, em particular, tornou-se ao olhar dos euro- Pode-se então sugerir que os contornos do pacto colonial se dese-
peus uma impossibilidade religiosa e política. A recusa radical do Outro nharam em dois tempos. Em um primeiro momento, os conquistadores
pagão, do indígena e do negro, foi precisamente a condição para que sur-
e os autóctones fizeram circular presentes de forma recíproca. Em um
gisse aquilo que Anibal Quijano chamou a “colonialidade de poder”, ou
seja, a violência epistêmica necessária à instauração de uma dominação segundo momento, os conquistadores reprimiram e rejeitaram a cultura
ao mesmo tempo econômica e religiosa. Por esta dominação, a moder- e a sociedade locais.
nidade instituiu uma diferença entre europeus, negros, índios e mesti-
ços (Quijano, 2005, p. 228), distinguindo os eleitos dos subalternos, os
não escravos dos escravos. Assim, longe de ser resultado unicamente da primeiro momento do pacto
modernização europeia, como tendem a apresentar os modelos abstratos
dos economistas e dos sociólogos da modernização, a aventura colonial
No primeiro momento, a metafísica distinta dos imaginários amerín-
aparece também – graças a uma análise apurada e uma compreensão dio e europeu foi minimizada pela fascinação da novidade e pela neces-
da relação entre dom, mercado e religião – como tendo sido submetida sidade de estabelecer as bases de novas fronteiras. Porém, esta fascina-
à incerteza dos acontecimentos e marcada pelo selo da lógica criadora e ção era, ela própria, o resultado de um primeiro choque cultural, que
fundadora do imaginário ameríndio.
se seguiu de diversos outros. Os conquistadores acreditavam estar (re)
descobrindo o paraíso cristão perdido, enquanto os indígenas se ima-
o retrato da conquista: da troca “espontânea” ginavam vivendo um retorno ao mito original.5 Os primeiros contatos
à negação do dom agonístico e sacrificial entre os viajantes e os indígenas eram, sobretudos, tomados pela per-
plexidade. As narrativas relativas à chegada dos portugueses ao Brasil
Aprofundemo-nos, então, sobre o momento da conquista e, mais par-
confirmam a admiração desses últimos pela atmosfera “paradisíaca” na
ticularmente, sobre as expectativas e os sentimentos dos protagonistas
qual viviam os autóctones: ao espírito militar e à ambição capitalista,
nas zonas de contato, quando do pacto fundador da colonização. Os
se juntava um sentimento religioso,6 escatológico. Assim, a guerra ini-
relatos deixados pelos contemporâneos provam que a ambição mer-
ciada pelos estrangeiros contra os autóctones se fez pelas armas, mas
cadológica, se não mercantil, dos europeus era legitimada por cren-
também pela cruz, por estratégias de conversão à cristandade que eram
ças. Assim, o termo Novas Índias: a abertura de novas rotas marítimas
baseadas em uma representação etnocêntrica e hierárquica do mundo
através do Oeste parecia determinante para encurtar o caminho rumo
assim como sobre a recusa do mundo “holístico” ameríndio.7 A vio-
à Índia e seu imaginário de especiarias associado. Nesta perspectiva, a
palavra Brasil condensa uma forte expectativa mítica entre os grandes
ter um clima agradável com ventos frios e temperados como aqueles de Entre-Douro e
navegadores da época,4 expectativa que os impulsionou a partir rumo a Minho” (Castro, 2009, p. 115).
regiões desconhecidas. 5 Por diversas vezes o imperador asteca Montezuma enviou seus representantes aos espa-
nhóis de Cortéz para lhes oferecer presentes e também para questionar se os estrangei-
ros eram a encarnação de Quetzalcóatl, cujo retorno era esperado desde tempos míticos
(Mahn-Lot, 1990, p. 34).
4 Por trás da palavra Brasil se esconde um mito, muito difundido à época da pré-colo-
nização, evocando a existência de um mundo bem-aventurado. As tradições fenícias e 6 Pero Vaz de Caminha conta que aquelas pessoas eram “tão inocentes e desprovidas de
irlandesas tinham consagrado a existência das Ilhas da Bem-Aventurança, supostamente crenças” que poderiam ser rapidamente convertidas ao cristianismo se aprendêssemos
localizadas ao oeste do mundo conhecido. Os fenícios as chamavam Braaz e os monges sua língua (Castro, 2009, p. 111).
irlandeses Hy Brazil (Chauí, 2000). Entre 1325 e 1483, as cartas registravam a Insulla de 7 Acerca da hierarquia moral surgida nesse instante fundador, Marilena Chauí explica que
Brazil a oeste dos Açores. A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, quando esta se justifica segundo uma teoria do direito natural que considera o mundo como
da chegada da frota comandada por Pedro Álvares Cabral em 1500, reflete este clima de sendo criação de um deus legislador e supremo, conforme ao estabelecimento de uma
admiração naturalista associada à ambição mercantilista dos conquistadores: “Vista do hierarquia dos seres de acordo com seu grau de perfeição e poder. Consequentemente, a
mar, esta terra nos parece muito grande e coberta de mata. Sobre esta terra não podemos escravidão dos negros e dos índios foi o resultado “natural” da separação entre Deus e os
saber ainda se há ouro, prata ou qualquer outra coisa de metal ou ferro. Mas a terra parece diabos na ordem colonial do mundo (Chauí, 2000, p. 63-66).

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lência da ação militar, desde este momento inaugural, não é mais que aceita esta primazia do ato simbólico sobre o ato físico, fica evidente que,
o reflexo da negação da vida pagã pelos europeus cristãos, cuja ação por trás do ritual sacrificial, existe uma celebração do poder do vence-
visava de toda forma reintroduzir a narrativa mítica de um deus cristão dor, dos guerreiros mais valentes. Mas o que a lógica colonizadora fez
na criação do mundo. foi mudar o sentido e, logo, a significação profunda do dom agonístico.
A partir de testemunhos da época, pode-se concluir que a situação Oposta ao ritual limitado e sazonal do sacrifício humano ameríndio,
deste primeiro momento do processo de reconhecimento mútuo, mate- substituiu-o por um ritual de terror e de vingança ilimitado. Também,
rializado por gestos de simpatia e de presentes que dissimulavam apreen- a recusa da diferença e do dom agonístico sacrificial foi o que abriu o
sões, mas também obrigações (religiosas) e interesses (mercantis), não caminho à instauração de uma cultura autoritária – que persiste ainda
estava despida de ambiguidade. As trocas mútuas de presentes não eram hoje (Chauí, 2000) –, reduzindo o Outro a um ser inferior e subalterno,
totalmente desinteressadas, obedecendo também a imperativos religio- cuja própria existência serviu como justificativa principal para a destrui-
sos em face do surgimento do desconhecido em zonas de contato incer- ção das culturas autóctones. Assim, a história da colonização é, por toda
tas. É por isso que as duas partes desejaram encontrar traduções culturais parte, uma história de massacres, de torturas e de humilhações perpe-
daquilo que viam a fim de canalizar o choque, estabelecer um diálogo e tradas em nome do Deus cristão e de um “Deus” capitalista.
travar conhecimento. Tratava-se de preparar alianças possíveis – ainda Tudo isto advoga em favor do interesse que há em se compreender
que precárias – entre universos culturais profundamente diferentes. estes dois momentos, aquele da reciprocidade positiva, alimentado por
presentes, e o segundo, que é aquele da transformação em uma situação
segundo momento do pacto de destruição, de redução à escravatura dos autóctones e de repressão
de seus sistemas simbólicos e culturais. O sentimento de benevolência
O segundo momento da instituição do pacto colonizador é aquele da inicial se transforma em rejeição – de seres pagãos, porém angelicais, os
intransigência dos cristãos em face do paganismo. Para estes, o sacrifício autóctones se transformam em seguida, aos olhos dos conquistadores, em
humano, onipresente entre os autóctones, representava o limite intrans- seres diabólicos –, a lógica militar e mercantilista vem redefinir o papel
ponível da humanidade. A constatação dessas práticas provocou entre da cristandade na aventura colonial e a Igreja, para preservar seu espaço
eles reações emocionais e punitivas que os levaram a remover os ame- de poder, teve de se adaptar durante séculos à lógica da colonização.
ríndios de sua posição como seres humanos. Seu horror ao sacrifício Por sua vez, os indígenas reagiram em face dos conquistadores,
pagão se explica certamente por motivos arcaicos, mas é incontestável dentro dos limites de sua potência tecnológica e militar. Passou-se de
que os europeus cristãos, moralmente perturbados pela descoberta do paz à guerra, e a empresa colonial entrou em uma fase de repressão da
ritual sacrificial – que fazia parte, entretanto, de uma lógica agonística cultura das sociedades locais. Ora, a rejeição europeia ao sistema cos-
do dom –, consideraram a partir deste momento que os seres com os mogônico e ao dom agonístico ameríndio, que eram o cimento da vida
quais estavam negociando não possuíam alma. Os conquistadores esta- comunitária local, foi vivenciado como uma traição8 e uma perda da
vam horrorizados pelo fato de que um ser humano pudesse ser sacrifi-
cado ao curso de uma competição agonística onde o que se levantava
8 Entre as populações ameríndias encontradas, a circulação de bens, o comércio, não pode-
como troféu era a canibalização do inimigo. ria ser derivada da significação mágica da troca. Era-lhes impossível, então, conceber que
No entanto, o ato do canibalismo só é um problema se não for com- os europeus jogavam um jogo duplo: por um lado, aceitavam participar da troca de pre-
sentes; por outro lado, instrumentalizavam essas trocas para fazer comércio e manipular
preendido o sentido do sacrifício que, segundo Alain Caillé, é a pos- os autóctones. Vem daí o termo aqui utilizado, de traição. O europeu se colocava na posi-
sibilidade de apresentar “uma causalidade propriamente simbólica que ção de donatário para adquirir o valor-confiança do outro (transmitido pelo dom) para,
em seguida, partindo desta confiança inicial e dada, se apropriar do corpo do doador e
afirma seu primaz sobre a causalidade física” (Caillé, 2000, p. 138). Se do conjunto do sistema de circulação de dons.

282 283
confiança mútua9 que se instalou num primeiro tempo. Permanece o que fez com que os soldados de Pizarro matassem toda a sua guarda e o
incompreendida a insistência dos conquistadores a submeter as popula- fizessem prisioneiro (Mahn-Lot, 1990, p. 40 e 53). Por fim, no Brasil, os
ções ameríndias ao deus cristão (obrigando-os a adorá-lo) e a destroçar portugueses e os franceses jogaram a lógica do canibalismo, encorajando
no mesmo movimento seus ritos e suas crenças. Este segundo momento os indígenas a sacrificar os prisioneiros do campo adversário. Brincava-
foi então marcado por um choque cultural de grande amplitude que, ao se de traição a fim de se apropriar mais facilmente das riquezas naturais e
longo dos séculos, fragilizou o próprio processo da colonização. explorar a mão de obra indígena (Hans Staden, 2007).
Ora, esta forma de traição, que marca a recusa do dom tradicio-
a confiança traída ou o jogo da submissão nal, tornou possível uma outra forma de dom, cristã e aristocrática,
do dom à lógica colonial hierárquica e exclusiva. A confiança traída era apenas o começo. A ela
se seguiu a instauração de mecanismos de humilhação e de destruição
Historicamente, esta vontade de submissão do dom à forma mercado- de monumentos, de tradições e de crenças coletivas. O pacto colonial e
lógica ocidental pode ser ilustrada por três exemplos, três episódios a expansão territorial da dominação mercantil foram assim instalados,
que se encerraram com uma traição: o do soberano asteca Montezuma após a realização de uma espécie de dom desigual ou perverso pelo qual
(México), traído pelo espanhol Cortéz; a do soberano inca Atahualpa os traidores se tornaram os verdadeiros doadores e os traídos os donatá-
(Peru), traído pelo espanhol Pizarro; ou ainda, o das comunidades tupi- rios. Traindo a confiança e destruindo o dom comunitário, os europeus
nambá e tupiniquim (Brasil), traídas pelos portugueses e pelos franceses. se apropriaram de terras e trataram os que as possuíam como escravos,
Em Tenóchtitlan (atual México), os espanhóis foram hóspedes do muito antes que eles pudessem se tornar trabalhadores livres.
imperador: porém, em seguida, Cortéz fez de Montezuma seu prisio- Seguindo uma lógica de submissão das populações das colônias,10
neiro, obrigando-o a jurar fidelidade ao rei Charles V e a lhe entregar os colonizadores se tornaram progressivamente colonialistas. Na Amé-
todos os tesouros imperiais. Em Cajamarca, Pizarro convidou Atahualpa rica Latina, foi desta forma que se deu a constituição das elites crioulas e
para um encontro, mas logo após sua chegada o fez prisioneiro, obrigan- mestiças, responsáveis pela instalação de sistemas de dominação autori-
do-o ao mesmo tempo a enviar emissários a todo o império para recolher tários. Também, atualizar a confiança traída é o que permite compreen-
ouro e prata. Tanto num caso como no outro a covardia do conquistador der, de uma parte a natureza das ações repressivas dos colonizadores ao
era mascarada por sua própria indignação moral: o aprisionamento de longo dos séculos e, de outra parte, a intensidade das forças sociais que
Montezuma foi justificado pela indignação de Cortéz diante da presença buscam incansavelmente se liberar deste momento de destruição cultu-
de “instrumentos do Diabo” no templo sagrado. Atahualpa, coagido pelo ral, simbólica e política.
dominicano Valverde a adotar a fé cristã no exato momento de seu encon-
tro com Pizarro, foi acusado de sacrilégio por ter atirado no chão a Bíblia, referências bibliográficas
CAILLÉ, A.Anthropologie du don: le tiers paradigme. Paris: Desclée de Brouwer,
9 O sujeito da traição, em meio ao dom, nos permite compreender o fenômeno da explo- 2000.
ração e da dominação em fontes mais profundas que aquelas sugeridas pela leitura eco-
nômica marxista da colonização e da modernização ocidental. Isso significa dizer que a ______. Dé-penser l’économique: Contre le fatalisme. Paris: La Découverte/
fonte da exploração colonial é, primeiramente, a violência militar, que cassou o ciclo de MAUSS, 2005.
circulação do dom comunitário não cristão pela lógica mercadológica, associando-se às
instituições cristãs para alcançar um novo sistema de dominação simbólico-político. Esta
______. Théorie anti-utilitariste de l’action: fragments d’une sociologie générale.
violência tem duas razões de ser: de um lado, o interesse mercantilista; de outro lado, o Paris: La Découverte, 2009.
conflito simbólico entre a abordagem cristã do sacrifício, que identifica o corpo como
um objeto impuro, e a não cristã, indígena, que representa o corpo e a natureza como 10 Sobre a transformação do colonizador em colonialista que reproduz de maneira ambígua
símbolos sagrados e puros. a dominação colonial, ver A. Memmi (1985).

284 285
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Rumo a uma sociologia não exemplar:
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nialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoa-
por terra na África do Sul e no Brasil
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MAHN-LOT, M. A conquista da América Espanhola. Campinas: Papirus, 1990.
Edição francesa original: La conquête de l’Amérique Espagnole. Paris: PUF,
1974. O objetivo deste texto é contribuir para o debate sobre os limites das
MARTINS, P. H. Poscolonialidad y Anti-utilitarismo: Desafíos de la Teoría Socio- narrativas teóricas que a sociologia tem adotado para descrever proces-
lógica más allá de las Fronteras Sur-Norte. Revista Colombiana de Sociolo-
sos sociais em países do chamado “sul”. Mais especificamente, gostaria
gia, v. 33, p. 15-43, 2010.
de demonstrar, por meio de um estudo comparado entre movimentos
MAUSS, M. Sociologie et anthropologie, 8e édition. Paris: PUF, 1999.
de sem-terras do Brasil e da África do Sul, que os modelos teóricos do
MEMMI A. Portrait du colonisé, précédé de portrait du colonisateur, et d’une pré-
face de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1985. norte (por suas características provincianas, como afirma Chakrabarty,
QUIJANO A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: Lander, 2000) tendem a excluir da sociologia alguns processos sociais que não
E. (dir.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciencias sociais. Perspec- se encaixam nas narrativas da modernidade. Usando a questão das lutas
tivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. por terra como exemplo, defenderei a ideia de que a constituição de uma
SAHLINS, M. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. possível sociologia do sul passa pela transformação da forma tradicional
SAID, E. Orientalism. New York: Columbia University, 1979. de se construir os próprios objetos de nossa disciplina nestes países.
SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São Em vez de buscar apenas processos que tenham lugar nas narrativas
Paulo: Cortez, 2008.
teóricas mestras, parece salutar que passemos a nos preocupar também
TODOROV, T. A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins
com questões que não possam ser reconhecidas por essas teorias. Para
Fontes, 1993.
isso, sustento a ideia de que a sociologia sul seja uma sociologia dos
WALLERSTEIN, I. European Universalism: The Rhetoric of Power. New York: New
Press, 2006. processos sociais não exemplares, ou seja, uma sociologia que lide com
questões que não são contempladas pelo estilo e pelas questões (euro-
peias) que ditam nossos cursos de teoria sociológica ao redor do globo.

286 287
a modernidade como sociologia ou Para Mignolo, por outro lado, promover as práticas democráticas
um lugar para a coetaneidade (coevalness) como uma linguagem sociológica é impor uma organização epistemo-
lógica que não necessariamente reflete o sentido próprio dos proces-
Uma parte do debate que inspira estas reflexões pode ser resumida pelas sos sociais do sul. Mais especificamente para este autor, as linguagens
posições de dois autores latino-americanos em números recentes da impostas pelas ciências sociais estariam orientadas por uma mentali-
revista Theory, Culture and Society. Em um destes números o brasileiro dade colonial. Segundo este autor, promover um conhecimento a partir
José Mauricio Domingues propõe um diálogo crítico com o argentino das experiências latino-americanas seria promover um border-thinking,
Walter Mignolo em torno do papel da sociologia na América Latina. ou seja, um modo de pensar que esteja para além das fronteiras impos-
Para Domingues: tas pela modernidade e pelas ciências humanas eurocêntricas.
Teorizar da periferia ou da semiperiferia deve levar a mudanças nos con- Modernidade e seu lado invisível a colonialidade contam a história de qui-
ceitos e a uma perspectiva diferente sobre a modernidade, de acordo com a nhentos anos: a uma triunfante e desejada modernidade que deve deixar
mesma dinâmica social que essas sociedades vivem, e aquela mentalidade para trás tudo que é não moderno. (Mignolo, 2010, p. 441)
colonial precisara ser evitada politica e teoricamente pelo pesquisador.
Talvez haja muito a se aprender dos modos indígenas de pensamentos,
porém, a contribuição das ciências para o conhecimento deste processo
Nas obras de Mignolo, a ciência social latino-americana deveria
não pode ser abandonada. (Domingues, 2009, p. 129) recuperar justamente o que foi deixado para traz pelas ciências sociais
que nos foram impostas ao longo de nossa colonização intelectual.
Resumidamente, para este último autor, a sociologia na América
Entretanto, as opções decoloniais e desocidentalização divergem em um
Latina tem que lidar com o problema da modernidade e de como ela,
ponto crucial e indisputável: enquanto o último não questiona a ‘civiliza-
ao mesmo tempo em que foi uma narrativa de dominação, permitiu a ção da morte’ escondida sob a retórica da modernização e prosperidade,
emergência de uma certa imaginação política própria desses espaços. do melhoramento das instituições modernas (e.g. democracia liberal e
Inspirado claramente na chamada dualidade da estrutura proposta uma economia baseada no princípio do crescimento e da prosperidade),
a opção decolonial começa pelo princípio de que a regeneração da vida
por Anthony Giddens (no qual a estrutura ao mesmo templo que limita, deve prevalecer sobre o primado da produção e da reprodução de bens as
acaba por permitir as ações sociais), Domingues ataca a perspectiva, custas de vidas (vida em geral e assim como a humanitas e anthropos!).
a seu ver unilateral, de Mignolo que classifica a modernidade como (Mignolo, 2009, p. 161)
forma de conhecimento colonial e racista. Para Domingues a noção de
modernidade é constitutiva do saber sociológico e também é elemento De forma sintética temos de um lado um sociólogo latino-ameri-
central para a formação de nossos ideais de boa sociedade. Para ele as cano, no sentido mais tradicional do termo, que identifica sua disciplina
noções de modernidade, quando bem usadas através do engajamento com uma forma específica de narrativa teórica: a modernidade. Neste
sentido, a contribuição da sociologia latino-americana seria de reve-
crítico, podem levar à constituição de uma sociedade e de uma socio-
lar as implicações locais de fenômenos reconhecidamente trabalhados
logia mais democráticas.
pelas teorias do norte ou universalistas. De outro, temos um crítico lite-
Privar tais movimentos sociais de uma ligação originária com a moder- rário e antropólogo que não mostra maior comprometimento com as
nidade acaba por, apesar das boas intenções, perfazendo um movimento fronteiras do conhecimento acadêmico e que, talvez por isso, proponha
similar àquele que desde o período colonial e especialmente após a inde- que as ciências sociais latino-americanas tenham que lidar com as for-
pendência tenta desqualificá-los por sua participação na polis moderna. A
verdadeira democratização, originária de um movimento modernizador mas de conhecimento do norte desde fora de seu campo tradicional.
específico, somente é possível em alguns desses países se este tipo partici- Para Mignolo parece haver outras províncias para serem visitadas além
pação ocorrer. (Domingues, 2009, p. 124) daqueles marcadas pela narrativa da modernidade.

288 289
Falando do ponto de vista de quem tem lidado com temas e regiões rianos não é mero acaso. O fato que nos interessa aqui é que quando
que estão em segundo plano nas narrativas sociológicas (terra, Amé- levadas para fora da Europa elas se transformam na única condição de
rica latina e África), a via defendida por Domingues (2009) seria a mais existência para a sociologia. Se por um lado ela dá origem a formas ins-
tradicional. Este tipo de sociologia nos permitiria manter as ligações de titucionalizadas de pensamento crítico, ela também limita estas formas
filiação e equivalência com o norte por meio da manutenção de objetos ao conteúdo narrativo da vida social do norte. A existência social passa
de pesquisa consagrados. Já a proposta de Mignolo seria mais complexa, necessariamente por “critérios” universalizantes que se estendem desde
pois exigiria a reconstrução de problemas que não necessariamente nos métodos até conceitos que ganham vida e validade própria no universo
comunicam com teorias ou sociedades que foram base para a sociologia. dos sociólogos e, logo a seguir, no mundo social mais amplo. Ao fim e
Neste texto defendo, contra a perspectiva de Domingues, que uma ao cabo, boa parte da sociologia vai se estruturar ou como a constata-
sociologia da América Latina ou do sul, somente faria sentido se trou- ção de nosso desvio (de nossa não exemplaridade) ou então de nossa
xesse à tona questões que não sejam apenas derivadas da sociologia capacidade de, de forma não convencional, lidar com esses processos.
original. De uma maneira ou outra, narrativas sociais do “sul” sempre se apre-
sentam como contraexemplos da teoria que ensinamos em salas de aula.
sobre o não exemplar Quando, em circunstâncias muito limitadas, somos convidados a pensar
teoricamente, invariavelmente chegamos à brilhante conclusão de que
Forjei esta noção para chamar a atenção para as formas pelas quais aqui a modernidade tem a nossa cara seja pela nossa criatividade (como
temos feito e ensinado teoria sociológica em países como Brasil e África apontam Domingues, 2009 e Maia, 2008) ou pela nossa incapacidade.
do Sul. Nesses locais (e onde quer que se faça sociologia) as formas pelas O problema é que lá pelas tantas esquecemos que comparamos
quais concebemos nossos objetos de pesquisa estão fortemente associa- empiria daqui com teoria de lá (as teorias do norte com a vida social do
das ao modo pelo qual narramos nossa vida social em termos socioló- sul). A democracia, a secularização ou a modernidade não são proces-
gicos. A entrada tardia desses debates em nossas formas de pensamento sos sociais puros no norte. Eles são formas teóricas, narrativas teóricas
social acadêmico, nos dois países, parece ter contribuído para que a provenientes de questões empíricas, mas que já não são ensinadas assim.
única alternativa para se pensar sociologicamente tenha sido por meio São trazidos ao ensino e à prática sociológica como o mapa do geógrafo e
da comparação. Uma comparação entre as narrativas que sustentaram telescópio do astrônomo. Deles mudamos as lentes (ou escalas) quando
a teoria sociológica clássica no velho continente e aquelas que vivemos precisamos ou ainda acrescentamos traços que nos permitam viajar pelo
empiricamente. Até aí nada demais. A sociologia seria uma das formas mundo sociológico de forma segura. Mas há uma questão fundamental
de contar as transformações de uma parte do mundo social europeu que que quase nunca é tocada: as escalas que cada um desses instrumentos
teria que ser confrontada justamente com os limites espaço-temporais nos traz. Quando começamos um estudo, seja da América latina ou da
deste mesmo mundo. Porém, se pensarmos brevemente sobre o que vie- África, já temos o mapa, a escala, a modernidade (sobre a colonização
mos a conhecer como pensamento sociológico nesses lugares, a questão do espaço e suas implicações epistemológicas, ver Mignolo, 2003). O
que se coloca, na melhor das hipóteses, como aponta Maia (2008, p. 10) problema epistemológico aqui é que esquecemos que ao aceitar a escala,
é como aqui se poderiam inventar outras formas de modernidade. Ou não temos mais a oportunidade de construir nosso objeto, já não temos
seja, de como aqui se poderia criar mais do mesmo. Onde o limite da mais autonomia intelectual para lidar com o incomensurável.
invenção é a própria narrativa da modernidade. Chamo a este arquétipo de “sociologia exemplar”, pois vive de seguir
Estas narrativas tomam como centro a ideia de modernidade e suas os exemplos da sociologia originária, onde encontra a tranquilidade de
variações mais desenvolvidas – a semelhança com os tipos ideais webe- receber uma estrutura que de antemão já tem seus instrumentos e obje-

290 291
tos e que, portanto, já sabe seus limites. Os textos desta tradição são, em países do sul ou periféricos. Segundo Moyo e Yeros, os movimentos de
geral, mais bem comportados metodologicamente, pois apresentam (in) lutas por terra representariam aqueles que teriam sido postos para fora
variáveis claras que são sempre capazes de promover a classificação de do mundo capitalista nas últimas décadas.
seus objetos em uma determinada ordem de grandezas. Para aqueles Tomo a sugestão destes autores para chamar a atenção para o fato
que estão acostumados com o chamado pensamento social brasileiro, de os pequenos produtores, moradores de zonas rurais e a própria ques-
este tipo de sociologia gira em torno da pergunta: “qual o nosso lugar tão da terra, terem sido não apenas postos de lado pelo capitalismo, mas
nesse processo (na modernidade)?”. também postos de lado pelas narrativas da Teoria Sociológica. Fato que
Por outro lado, a “sociologia não exemplar”, seguindo os passos de talvez tenha estreita relação com o desaparecimento de qualquer reivin-
Latour (2005), tem que construir seus instrumentos ao mesmo tempo dicação por terra nos países do norte que produzem teoria sociológica, e
que faz seus objetos, ou como veremos mais adiante, ao mesmo tempo com a consequente concentração de pesquisas na vida urbana.
que estabelece suas províncias. Essa última forma de fazer sociológico Esse desaparecimento teórico, se tomado a partir do debate de
não tem um frame, não tem cercas e por isso pode brincar com o mundo Moyo e Yeros, não tem sido proporcional ao lugar que as reivindicações
incompleto e confuso sem ter que dar uma resposta a qualquer custo. por terra têm tido em continentes como África, Ásia ou América Latina.
As perguntas deste tipo de sociologia seriam: “que relações se estabele- Nesses lugares a terra tem ocupado lugar central nas narrativas políticas
cem em meus universos empíricos?”; “como se constroem as grandezas que povoam os espaços públicos. Para se dizer o mínimo, ela tem con-
envolvidas nessas relações?”. Este tipo de sociologia lidaria com os con- tribuído para a reinvenção das próprias mobilizações sociais em lugares
textos incomensuráveis nos quais as sociologias exemplares agem como como África do Sul, Brasil e Zimbábue, por exemplo.
barreiras epistemológicas e para as quais as vidas sociais não brancas e No entanto, mesmo que ocupem até os dias de hoje papel concreto
europeias seriam desvios ou aberrações. em mudanças sociais em diversos países, as mobilizações por terra ainda
têm sido lidas sob a luz dos topói da modernização e da transição rural
Para demonstrar as origens desta perspectiva sobre o fazer socioló-
urbana (criticada de forma inspiradora por Sitas, 2000).
gico, trarei a seguir o caso que me inspirou a pensar nestes termos.
Exemplo claro disso aparece na justificativa para apresentar um dos
poucos estudos publicados que compara os movimentos de sem-terras
a terra como narrativa não exemplar do Brasil e da África do Sul:
Em julho de 2005 viajei para a África do Sul para acompanhar uma Mesmo quando pequeno produtores decaem em importância como um
visita de militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terras (MST) setor da economia global e ao mesmo tempo em que as pessoas crescente-
do Brasil ao Landless People’s Movement (LPM) da África do Sul. A visita mente se deslocam das zonas rurais para centros urbanos, trabalhadores
era movida por poucas questões em torno da internacionalização de sem-terra em pequenos produtores se uniram para demandar acesso à terra
movimentos sociais. Nesse caso, interessava particularmente a ideia de e novas políticas de desenvolvimento econômico que priorizam comuni-
dades locais sustentáveis e a segurança alimentar. (Balleti, 2008, p. 290)
que em ambos os países havia grupos sociais de sem-terra que reivindi-
cavam certos direitos ao Estado. Segui naquele momento os passos de Tomando ideias de uma sociologia do global, que em termos teóri-
Moyo and Yeros (2005), que, em seu livro Reclaiming the Land, aponta- cos sempre tratou as questões da terra subordinadas ao tema do desen-
vam para a ressurgência nos países do sul de movimentos organizados volvimento econômico ou político, estas autoras medem e enquadram
que tinham como centro de suas reivindicações o acesso à terra. Para os movimentos de sem-terra dos dois países a partir da sua significação
estes autores, este tipo de reivindicação era fundamental para a confron- para as políticas econômicas ou para sua reprodução alimentar. O que
tação do ideário neoliberal de Estado que se desenvolvia nos chamados gostaria de chamar a atenção com esta citação é o fato de que os movi-

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mentos já estão classificados de antemão. No texto citado e em pratica- do Brasil no final da década de 1970. Por outro lado, o LPM havia sido
mente todos os demais que lidam com o MST e o LPM, os movimentos formado em sua totalidade por pessoas negras que no pós-apartheid rei-
são somente vistos como exemplo de processos mais amplos. Eles não vindicavam a posse formal das terras em que viviam ou em que viveram
têm sido úteis para renovar a teoria sociológica que faz nesses ou sobre antes de serem removidas pelo governo racista. Estes fatos no entanto
esses países porque abrem mão de tomar as lutas por terra como fontes não cabiam nas formas teóricas que eu mesmo dispunha para lidar com
epistemológicas. a categoria sem-terra. Sem-terra na narrativa sociológica clássica são
A terra como fonte epistemológica tem sido uma das descobertas todos aqueles que perderam suas terras no desenvolvimento das cida-
centrais de meu trabalho de pesquisa comparado entre Brasil e África des ou das formas capitalistas de agricultura. Nós não nos referimos, na
do Sul que partiu do acompanhamento do encontro entre ativistas do maioria dos casos, à sua cor.
LPM e do MST. Acostumado ao estudo do movimento brasileiro e ao Deixando de lado os modelos exemplares de sociologia que tratam
universo tradicional dos estudos rurais, cheguei ao país da copa do da terra apenas como meio de produção e reprodução econômica, não
mundo armado de todo o arcabouço cognitivo clássico da sociologia demoraria muito para compreendermos que a questão não era simples
branca ou do norte. e que estava diretamente ligada aos fundamentos da ação de ambos os
movimentos. A cor do sem-terra passaria a se impor como um apoio
fundamental para entendermos não apenas as bases de sua ação cole-
quando os movimentos se encontram
tiva, mas principalmente, o que se entende como luta por terra em
mas não se reconhecem
ambos os lugares. Ser negro, no caso do LPM, é lidar com a terra de um
Como informado anteriormente, em 2005 eu acompanhei por um mês modo diferente. Na África do Sul ser negro é ser indígena daquela terra
a visita de um grupo de militantes do MST do Brasil ao Landless Peo- e esta noção ultrapassa temporalidades e espacialidades da sociologia da
ple’s Movement da África do Sul. Abaixo farei referência a três contextos modernidade. Para os negros sul-africanos a terra pertence a mortos e
nos quais as formas sociológicas que eram usadas para compreender o vivos, aos que lutam no presente por seus ancestrais.
movimento brasileiro esbarravam nos termos que a sociologia exem-
Segundo
plar, que eu mesmo fazia, tinha para lidar com esta situação:
Juntamente com a cor do sem-terra, chegamos a outro ponto impor-
Primeiro tante que distingue estes movimentos em seus discursos e documentos:
Durante um dos encontros iniciais promovidos com pessoas ligadas ao o slogan de sua luta. No Brasil todos os documentos do MST e discursos
movimento na província de Kwazulu-Natal, a primeira pergunta feita coletados durante a pesquisa se referem a uma luta por reforma agrária.
ao representante do MST foi a seguinte: por que há brancos (como o Já na África do Sul, encontramos usando os mesmos procedimentos de
próprio militante que discursava) no MST? O questionamento abalou pesquisa a referência à land reform. Ou seja, um movimento se estrutura
não apenas o militante como o pesquisador que o acompanhava. Até a partir da terra como espaço produtivo para a agricultura, e o outro usa
aquele momento, para este pesquisador e para o militante, a associa- o termo terra em um sentido mais amplo – e por isto mesmo indefinido
para o desespero dos analistas como Walker (2008) e James (2007).
ção entre sem-terra e sujeitos brancos era absolutamente normal. Afi-
nal, conhecendo a história do MST eu já sabia que o movimento havia Terceiro
nascido entre os colonos brancos (descendentes de imigrantes alemães,
italianos, poloneses, entre outros, que chegaram ao Brasil entre o século Uma terceira dimensão estaria ligada a uma epistemologia do espaço.
XIX e o século XX), que organizaram ocupações de terras públicas no sul Enquanto que no caso dos sem-terra do Brasil a luta se organiza em

294 295
torno da reivindicação de fazendas com limites precisos reconhecidos sul-africanos a racionalidade que o MST supunha que marcava as ações
pelas formas modernas do Estado, na África do Sul as áreas reivindi- tomadas no Brasil. Não se viam acampamentos, ocupações de terra e,
cadas não necessariamente cabem nos limites atuais das propriedades pior, não se viam planos produtivos para as terras a serem distribuídas.
rurais. A imaginação social e sociológica do movimento brasileiro, que O dilema entre os dois movimentos era justamente o da falta de
é formado por agricultores, não se choca com a ideia moderna de espaço equivalências. A ausência de ações e categorias que pudessem mediar a
plano (Mignolo), já no caso sul-africano, no qual a terra não é ape- relação entre os dois grupos é para este artigo uma metáfora das formas
nas uma unidade produtiva, as terras reivindicadas chegam, no dizer pelas quais a os sociólogos exemplares lidam com situações de pesquisa
de alguns sociólogos, às raias do absurdo pelas extensões e pela falta de nas quais suas categorias não se encaixam. Como não encontramos
critérios precisos para balizar as demandas. O choque epistemológico equivalências e em geral não temos – nos países do sul – legitimidade
constrói problemas interessantes tanto para a sociologia quanto para o para construí-las, acabamos por desclassificar possíveis objetos que
Estado – dois agentes tradicionais da modernidade. poderiam transformar nossa própria existência.
Ao anunciar que o sem-terra é Negro, que luta por uma reforma
da terra e que suas reivindicações não cabem na estrutura produtiva e Conclusão
política que organiza as áreas rurais de seu país, o LPM perde seu lugar
Neste texto que é resultado de seis anos de pesquisa com movimentos
em uma narrativa sociológica exemplar. Como afirma James (2007),
de sem-terra no Brasil e na África do Sul, procurei tratar justamente
suas demandas e suas ações são irrealistas para o Estado, e eu diria que
do encontro entre perspectivas sociais incomensuráveis sobre o objeto
também para a sociologia. E é exatamente isso que interessa para uma
terra. Ao trabalhar a forma pela qual os movimentos se aproximaram e
sociologia não exemplar. Há várias narrativas no mundo social que são
as maneiras pelas quais eles se apartaram, procurei demonstrar que um
irrealistas, mas que orientam ações e relações sociais. Nesses casos, a
deles representa, por questões históricas, a província da modernidade
definição do irreal diz respeito aos limites cognitivos dessas narrativas
para a qual temos (e somos obrigados a ter) conceitos e escalas socioló-
diante dos quadros explicativos da modernidade, como por exemplo,
gicas prontas. Do lado do LPM, suas relações com o MST, com as ONG´s e
diante da necessidade de racionalização das políticas públicas de resti-
com o próprio estado sul-africano representariam uma província instá-
tuição de terras.
Aqui não há tempo para uma explicação mais detalhada das dife- vel dentro da qual nossas perspectivas sociológicas se esvanecem.
renças cruciais entre as ideias de terra e sem-terra que estiveram em Não por acaso, o movimento brasileiro representa, para todos os
jogo quando esses movimentos se encontraram. Gostaria apenas de que se aventuram na comparação entre os casos, como os de Balleti et al.
marcar que o MST levou para a África do Sul escalas com as quais a (2008) e Rosa (2007), o sucesso, e o LPM o fracasso do engajamento nas
sociologia tem muita facilidade para lidar. Esse movimento, assim como questões globais que envolvem o tema da terra.
vários outros, organiza sua experiência também a partir de questões Cidadania, identidade, meio de produção estes são os termos que
como modernidade e modernização típica dos achados da sociolo- correntemente usamos par falar de lutas por terra. Essa linguagem é o
gia exemplar. Porém, ao tomar contato com o LPM sem estar aberto a limite da sociologia e da política que conseguimos vislumbrar a partir
uma experiência social inédita, o MST desprezou tudo que não cabia na das narrativas sociológicas exemplares. Somente enxergamos os sem-
sua escala e condenou o movimento a uma posição política secundá- terras do Brasil e da África do Sul por suas demandas ao Estado nação e
ria e até mesmo ingênua. Poucos anos depois deste primeiro encontro por sua interação positiva com o moderno. Quase nunca olhamos com
o MST simplesmente desistiu de ajudar o LPM porque não via naquele seriedade para estes sujeitos quando suas demandas são incomensurá-
grupo um verdadeiro movimento social. Não via nos seus homônimos veis. A estupefação dos sociólogos sul-africanos com os caminhos do

296 297
LPM e da reforma agrária naquele país é um ótimo índice deste processo que apontar para a busca de uma unidade (entre os pobres ou entre os
(a conformidade e o regozijo dos brasileiros com o MST também). Eles não exemplares), as pesquisas realizadas ao sul do mundo deveriam ser
formam pista da incomensurabilidade de certas narrativas sobre a terra capazes de introduzir novos problemas que coloquem em jogo as escalas
com a própria noção de terra que a sociologia da modernidade traz. teórico-metodológicas de que dispomos para construir nossos proble-
É claro que precisamos entender os efeitos estatais da luta por terra mas de pesquisa.
e suas transformações do moderno em países como Brasil e África do Ao trazer os casos do fortuito encontro entre o MST do Brasil e o
Sul. Isso, no entanto, é apenas uma das províncias onde essa questão LPM da África do Sul, procurei demonstrar que não havia entre eles uma
ecoa. Há muitas outras que não exploramos, por limites epistemológicos experiência comum nem em relação ao legado colonial, nem no que
que são tacanhos e por medo de perdermos contato com a teoria socio- tange ao próprio objeto de suas lutas que é noção de terra. No entanto, o
lógica geral (ou da província geral). Se concebermos que a sociologia fato de não haver uma experiência comum é sociologicamente relevante
pode ser formada por várias províncias, talvez tenhamos chances de ter para pensar que não podemos aplicar nesses casos as formas sociológi-
um imaginário sociológico mais rico e uma narrativa covalente, como cas exemplares. Para tratar com um tema como a terra, é preciso cons-
afirma Mignolo. truir um método e um objeto que ampliem as escalas e os problemas
É nesse ponto que reside nossa proposta. Ao analisar comparati- teóricos que desafiam a sociologia contemporânea. Para terminar, creio
vamente dois casos nos quais lutas por terra organizam vidas políticas, que se a noção de sul tem alguma colaboração para a sociologia, ela
veremos como nem tudo que as anima vem de seu desejo pela moderni- parece ser a da confrontação com o incomensurável.
dade ou de sua resposta a ela.
A terra, nessa pesquisa, se construiu como uma questão que per- referências bibliográficas
mitiu construir outras províncias sociais e teóricas. A terra ou qualquer
BALLETI. B. et al. ‘Late Mobilization’: Transnational Peasant Networks and Gras-
outro objeto de pesquisa ajudará a multiprovincializar a sociologia
sroots Organizing in Brazil and South Africa. Journal of Agrarian Change,
toda vez que revelar contextos incomensuráveis para nossas narrativas. v. 8, n. 2-3, p. 290-314, 2008.
Enquanto as formas construir e descrever conseguirem dialogar tran-
CHAKRABARTY, D. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical dif-
quilamente com a modernidade (principalmente por meio da lingua- ference. Princeton: Princeton University Press, 2000.
gem dos exemplos), ela não terá nada de específico. Nesse sentido, pro- DOMINGUES, J. M. Global modernization, coloniality and a critical sociology for
vincializar é colocar a modernidade em sua própria província (limite) e Latin America. Theory, Culture & Society, v. 26, p. 112-133, 2009.
trazer para o debate sociológico outras províncias que normalmente não JAMES, D. Gaining Ground: “rights” and “property” in South African Land reform.
cabem em nossos debates. A melhor imagem da sociologia nesse sen- Londres: Routledge-Cavendish, 2007.
tido seria a de uma constelação de províncias que precisam, ao modo de LATOUR, B. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory.
Latour, ser constantemente construídas e refeitas. Coisa que a ansiedade Oxford: Oxford University Press, 2005.
moderna e modernizadora da sociologia do sul não nos tem permitido. MAIA, J. M.Space, social theory and peripheral imagination: Brazilian intellec-
A questão não é repudiar e negar a possibilidade de conexão norte tual history and de-colonial debates. International Sociology, v. 26, p. 392-
e sul ou a comparação como método. O objetivo deste texto foi apontar 407, 2010.
para uma nova possibilidade e para um caminho aparentemente viá- MIGNOLO, W. The Darker Side of the Renaissance. Ann Arbor: University of
vel para se pensar uma sociologia do sul. Não me parece satisfatório o Michigan Press, 2003.
fato de que reconheçamos formas de conhecimento diferentes no sul ______. Epistemic Disobedience, Independent Thought and De-Colonial Free-
por meio de uma experiência cultural comum a estas regiões. Mais do dom. Theory, Culture, and Society, v. 26(7-8), p. 1-23, 2009.

298 299
MOYO, S.; Yeros, P. Reclaiming the land. London: Zed Books, 2005.
Os massificados da terra
ROSA, M. Oligarquias agrárias, o Estado e o espírito do neoliberalismo no Bra-
sil. In: Grimson, Alejandro. (org.). Cultura y neoliberalismo. Buenos Aires:
Clacso, 2007, p. 111-125. Luís Eustáquio Soares
Sitas, A. Voices That Reason: theoretical parables. Pretoria: University of South
Africa Press, 2004.
Walker, S. Landmarked: Land Claims and Restitution in South Africa. Univer-
sity of Ohio Press, 2008.

Começo este artigo com quatro argumentos óbvios. O primeiro é: pen-


samento ou paradigma algum é neutro ou está fora das relações de
poder como se pudesse valer por ele mesmo, sem responder a interesses
econômicos, simbólicos desse ou daquele grupo social. O segundo é:
mesmo não sendo neutro, mesmo estando vinculado a interesses diver-
sos, de grupos sociais, logo, de grupos de poder, existem pensamentos
que são potencialmente mais emancipadores que outros.
O terceiro é: porque vivemos numa civilização em que, tal como
as precedentes, um grupo restrito de humanos se apropria da riqueza
comum, pensamentos conservadores, independente da época, são aque-
les que, de uma forma ou de outra, não apenas não questionam o status
quo de sua época, mas, mais que isso, foram produzidos, de forma cons-
ciente ou não, para justificar os privilégios de classe dos grupos social-
mente opressores. Por sua vez, pensamentos potencialmente revolucio-
nários, igualmente independente da época, são aqueles que não apenas
questionam – ou podem ser usados para questionar – o status quo de sua
época, mas também têm relação direita com os grupos dominados, que
os produzem – ou deles se apropriam – a fim de procurar, com inteligên-
cia e ação coletivas, construir uma sociedade mais justa.

300 301
“nada existe de permanente, a não ser a mudança” qualquer verdade preestabelecida, pois tudo muda e deve mudar, o que
não é possível numa situação de privilégio hierárquico, de uma classe
O quarto é: um pensamento ou paradigma revolucionário, produzido
em detrimento de outras, porque o privilégio pressupõe a sua conserva-
numa dada época, pode ser retomado numa outra, num contexto de
ção fora do movimento.
relações desfavoráveis para as forças sociais emancipadoras, tal que
Heráclito pode ser recepcionado como um pensador revolucioná-
passa a ser usado de forma absolutamente reacionária, embora nos seja
rio porque seu pensamento, quando destaca a mudança e a imperma-
apresentado como emancipador. Um pensamento ou paradigma reacio-
nência de tudo, pode ser perfeitamente apropriado por grupos sociais
nário produzido numa dada época pode ser reescrito numa outra época
oprimidos de tal sorte a se conscientizarem de que a situação deles,
de forma singularmente revolucionária e original.
como oprimidos, também não é fixa, uma vez que nada o é. O oprimido,
Consideremos, a propósito, o filósofo pré-socrático Parmênides.
movimentando-se contra a sua fixidez social de oprimido, pode deso-
Nitidamente, seu pensamento é reacionário, pela simples razão de ter
primir-se, desde que entenda com clareza que não pode fixar privilégio
produzido um conjunto de premissas baseadas no argumento – ou
exclusivo algum, pois, se assim o fizer, constituirá inevitavelmente um
premissa-mor – de que o movimento não existe. Ao preconizar que o novo horizonte reacionário, através do qual tenderá a defender a perma-
movimento é uma ilusão, Parmênides demonstrou-se reacionário por- nência de seus privilégios, negando novos movimentos revolucionários,
que procurava fixar, para os seus contemporâneos, a sensação ou a visão o que me remete a um quinto argumento.
de que a ordem hierárquica de seu entorno social era natural, inamo- Se uma mesma água não banha duas vezes o mesmo rio, de vez que
vível, como é possível deduzir de sua mais conhecida sentença: “O ser sempre é outra, ao fluir, como defendia Heráclito, é porque o movimento
é; o não-ser, não é”, frase que perfeitamente pode ser traduzida como: engendra a novidade de tudo em tudo, de tal sorte que tudo que era já
“Quem impõe seu próprio ser, pelo privilégio de classe – e pela força – não é mais, de vez que sofreu mudanças provocadas por movimentos
sobre os demais seres é o ser por excelência. Por outro lado, aquele que é diversos, do tempo sobre os corpos, motivo pelo qual o movimento cria
explorado, para garantir o privilégio do ser, de antemão continuará não o tempo, que cria a morte, no movimento da consciência humana.
sendo, pois o movimento não existe, de modo que é absolutamente inú- É aí precisamente que entra o capitalismo, pois constitui um sis-
til fazer qualquer coisa para perturbar o ser imutável, com seu ser que é, tema social que produziu um teatro do movimento, como a sugerir, com
em detrimento do não-ser.” esse teatro paradoxal, que ele mesmo, o capitalismo, é movimento e,
Contrapondo-se a Parmênides, consideremos, por sua vez, outro portanto, não se constitui como um sistema de privilégios hierárquicos
filósofo pré-socrático: Heráclito. Diferentemente de Parmênides, o pen- de classe, mas de oportunidades conquistadas precisamente pelo movi-
samento de Heráclito tende a ser revolucionário, pois defende que o mento em busca do lucro. O capitalismo pôs o movimento a serviço
movimento não apenas está em tudo como também faz com que tudo de privilégios, do fixo, da permanência escandalosa da concentração de
esteja em ininterrupta transformação, razão pela qual, para Heráclito, renda para alguns poucos, enquanto a maioria dos seres é condenada a
“nada existe de permanente, a não ser a mudança”. não-ser; a movimentar-se para produzir o privilégio de poucos, de sorte
que o conjunto de seus movimentos é ao mesmo tempo o conjunto de
a serviço de privilégios sua permanência como classe social oprimida.

Como se vê, embora assentado numa concepção de mundo tão logo-


esclarecimento que teatraliza o movimento
cêntrica como a de Parmênides, o pensamento de Heráclito detém um
potencial revolucionário fabuloso porque, através dele, é possível dedu- É precisamente no momento em que o capitalismo doma e toma para
zir que privilégio de classe algum é fixo ou se justifica tendo em vista si o movimento que surge a indústria cultural. Esta, assim, constitui a

302 303
tecnologia por excelência de dominação capitalista do movimento, pon- imitação do movimento. A indústria cultural, com seus filmes, músicas,
do-a a serviço do lucro, que necessita, sem cessar, de movimento, isto é, teatros, novelas, jornais, livros, internet, imita o movimento da vida e o
de trabalho dominado e de capital dominante, para fixar privilégios no faz congelando a vida num sistema imutável: o capitalismo, como se este
colo de poucos. contivesse em si todos os movimentos ou fosse a consequência lógica,
Em diálogo com Dialética do Esclarecimento (1947), livro escrito natural, inevitável, de todos os movimentos do mundo, inclusive aqueles
conjuntamente por Adorno e Horkheimer, esclarecimento é o nome da que supostamente questionam o capitalismo, de vez que também eles
presença dominante do homem na Terra. O argumento dos dois men- podem se tornar movimento codificado, teatralizado.
cionados filósofos da conhecida Escola de Frankfurt é o seguinte: escla- Heráclito, com a indústria cultural, poderia ser assim parodiado:
recimento é saber utilizado para dominar, quando usado para a manu- “A permanência é a mudança”, a do sistema capitalista. É isso que faz a
tenção de privilégios ou da permanência de interesses de alguns a partir indústria cultural, teatralizar o movimento da vida, através, por exem-
da desgraça de muitos. plo, de notícias sobre acontecimentos diversos, tal que o capitalismo
Estar esclarecido, para Adorno e Horkheimer, significa estar de sempre permanece imutável, de vez que o movimento da edição das
posse de conhecimentos – tecnológicos, filosóficos, simbólicos, estéti- notícias mantém a imutabilidade do sistema capitalista, como a verdade,
cos, científicos, mitológicos, narrativos – que servem antes de tudo para seja negando tudo que procura pôr em causa o sistema capitalista, seja
dominar e submeter, tal que o esclarecido, valendo a redundância, escla- editando o sem fim de notícias que teatralize o movimento da perma-
rece-se, obtém conhecimentos, para, antes de tudo, dominar. O esclare- nência do capitalismo.
cido é o ser que se esclarece para eleger, via esclarecimento, o lugar do Diante dessa nova forma de esclarecimento, como o da indústria
ser e do não-ser: a condenação ao movimento, sob a forma de trabalho cultural, que teatraliza o movimento da permanência da dominação
explorado, para fixar o domínio eterno do ser. capitalista, singular é o pensamento do filósofo lituano Emmanuel Lévi-
A indústria cultural, no capitalismo contemporâneo, é o lugar por nas (1906-1995), por ter transformado o rosto humano no exemplo cabal
excelência do esclarecimento e sua diferença, em relação a outras formas de que o movimento não existe. Num certo sentido, Lévinas retoma o
de esclarecimento, está relacionada com a constatação de que ela consti- pensamento de Parmênides, reescrevendo-o de forma revolucionária,
tui uma tecnologia de dominação sobre o tempo – logo sobre a mudança, pois, para ele, o rosto precede a tudo, às leis, ao lucro, à propriedade
sobre movimento. É precisamente, portanto, através da indústria cultu- privada, à guerra, à ditadura, à democracia, à religião; ao movimento da
ral que o pensamento de Heráclito deixa de potenciar usos revolucio- exploração, que é antes de tudo o da morte do rosto.
nários para estar a serviço de objetivos absolutamente reacionários. E Para Lévinas, o rosto de quem está em situação de vulnerabilidade
a razão disso é muito simples: a indústria cultural é um esclarecimento precede, em importância, o rosto de quem está protegido, seja pelo
que teatraliza o movimento, domesticando-o e descodificando-o, posto poder econômico, simbólico, epistemológico, bélico; seja pelo poder
que, através dela, o movimento deixa de estar implicado com a mudança que for: o rosto do não poder precede o rosto do poder. Como é possível
e passa a pactuar inevitavelmente com a permanência. notar, Lévinas retoma a importância de um pensamento de base hierár-
quica, a fim de argumentar, por exemplo, que o rosto da mulher precede
o rosto do poder hierarquicamente ao do homem; o da infância precede ao do adulto; o
do negro precede ao do branco e, antes de tudo, o rosto de quem corre o
Mas como a indústria cultural pode domar o movimento da vida, risco de morrer, o rosto ameaçado de morte, precede a todos os outros
fazendo permanecer, sobre a Terra, a morte? Através do efeito de teatro rostos, hierarquicamente, motivo pelo qual o rosto do oprimido precede
que ela produz. Efeito teatro é o nome que dou à imitação da vida, logo à o rosto do opressor.

304 305
as nossas urgências Ter clareza, assim, significa entender que estamos numa situa-
ção planetária em que o próprio movimento, inclusive o libertário, foi
O filósofo lituano Emanuel Lévinas fez, assim, do rosto o emblema de apreendido e domado pela indústria cultural, assim como a anarquia.
seu singular pensamento porque entendia que o rosto – dos seres não Ter clareza, assim, é compreender que mais do que nunca é preciso que
humanos também – contém em si o clamor do movimento do tempo os movimentos sociais do mundo incorporem a hierarquia e a perma-
sobre a vida. O rosto indicia que morremos, que somos seres mortais. nência, para continuarem sendo revolucionários e antes de tudo para
É por isso que o rosto deve preceder a tudo, a toda razão de Estado, de continuarem sendo força viva de transformação social, de construção
dinheiro; a toda jurisprudência, porque a defesa de sua permanência, da de justiça.
vida no rosto, nada mais é que a defesa igual de toda vida, sobretudo se Certamente, o pensamento de Lévinas tem muito a nos ensinar,
esse rosto for o do pobre, do vulnerável, do humilhado porque a morte sob o ponto de vista de que hierarquia e de que permanência estamos
destes é igualmente a morte de todos nós. Cada rosto que matamos ou falando: a da vida sobre a morte, a do rosto do outro sobre o meu rosto,
deixamos morrer, em nome seja lá do que for, constitui a abertura sem a do distante sobre o próximo; do estranho sobre o conhecido.
fim do movimento do tempo da morte sobre o tempo da vida. Não resta dúvida de que, nessa situação, o rosto que tem precedên-
Como teatro global do movimento da vida, a indústria cultural fez cia sobre todos os outros é o rosto de quem está morrendo pela arma do
do movimento desta, da vida, um movimento, na verdade, da e para ser capitalista ou pela arma do ser imperialista. Eis por que todo nosso
a morte, através de dois dispositivos: 1) a sujeição do rosto do outro, movimento libertário deve direcionar-se para proteger o rosto do ira-
do rosto da vida, ao rosto abstrato do dinheiro, do lucro. Na indústria quiano, do palestino, do líbio, do afegão, da fome.
cultural, só merece viver o rosto que dá lucro, os demais são considera-
dos inferiores, ultrapassados; 2) o segundo dispositivo é o de congelar o desmassificar a humanidade é descolonizá-la
movimento do tempo, condenando-nos a um eterno presente em movi-
Colocar a urgência desses rostos na frente de nossas urgências é a única
mento circular em torno de si mesmo, de tal sorte que tudo se torna
saída, hoje, para salvar a vida na Terra, descolonizando-nos de nós
tempo do lucro, isto é, do capitalismo.
mesmos, colonizados que estamos todos, em maior e menor medida,
Esse segundo dispositivo é o principal estratagema do esclareci-
por todo um sistema integral de colonização, a que podemos chamar,
mento da indústria cultural, pois, através dele, o movimento é valori-
em diálogo com Félix Guattari, de Capitalismo Mundial Integrado
zado desde que seja o do ser capitalista, como o único movimento cre-
(Guattari, 2005, p. 31), no qual e através do qual o esclarecimento, nos
dível, possível, existente. Com isso, a indústria cultural doma e toma
termos de Adorno e Horkheimer, constitui-se igualmente de forma inte-
para si o pensamento ou paradigma de Heráclito, tudo muda, para pô-lo
gral, colonizando permanentemente as formas precedentes de descolo-
a serviço de um pensamento ou paradigma de tipo Parmênides: tudo
nização através de n estratégias, no plano econômico, político, social,
muda para permanecer o mesmo; tudo muda para concentrar capital.
bélico, epistemológico, midiático e cultural.
As forças vivas do mundo contemporâneo, cujo movimento não O plano midiático-cultural, como estratégico esclarecimento do
aceita ser tomado pelo esclarecimento da indústria cultural – e por mundo contemporâneo, constitui, e vale a redundância, o monopólio
esclarecimento algum – precisam, mais do que nunca, ter clareza sobre de referência do atual imperialismo coletivo (Amin, 20012) que domina
a situação atual da humanidade, principalmente porque, desde sempre, – ou se esforça para – todo o planeta, porque é através dele que o Capi-
fomos preparados, em nossos movimentos libertários, a lutar contra talismo Mundial Integrado cimenta ou inter-relaciona os demais mono-
toda forma de hierarquia e de permanência. pólios, os econômicos, os bélicos, os epistemológicos, tornando-se lite-

306 307
ralmente integral ao tomar para si o que outrora chamávamos – não sem 2- Ser uma máquina tecnológica mundial de apagamento do que foi ou é viva
equívocos – alta cultura e cultura popular, argumento que me permite criação revolucionária, expressando-se como máquina de esquecimento
ou apagamento de tudo que a cultura como (A) e como (B) produziu e
conectar Samir Amin com Félix Guattari.
produz, em cooperação, de realmente emancipador, como, enfim, enge-
E é assim que, num piparote, ponho em diálogo Samir Amir e Félix nhos e artes a favor de uma quarta forma de cultura: a cultura comum,
Guattari, pois, em Micropolítica: cartografias do desejo (2004), o autor do comum e para o comum, esta que não separa nada de nada, de vez
– juntamente com Gilles Deleuze, Mil Platôs: capitalismo e esquizofre- que é ao mesmo tempo criação singular e singular produção política de
nia – defendeu a existência inter-relacionada de três formas integradas uma sociedade cuja diversidade não está a serviço de hierarquias do tipo
valor/não valor, civilidade/incivilidade, aristocrático/popular, alto clero/
de cultura, a saber: A) cultura como alta cultura ou cultura como valor, baixo clero, meritocracia/não meritocracia, posto que, para dialogar com
que corresponde a uma visão e prática elitistas da e sobre a cultura, esta- Antonio Negri e Michael Hardt, produz o comum no comum.
belecendo o lugar do inculto e do culto, do civilizado e do bárbaro, do 3- Ser uma máquina tecnológica, a cultura de massa, apta, para, sem cessar,
invulgar e do vulgar, do gênio e do medíocre, do criador e do criado; B) promover, com pães e circos, o retorno misturado de tudo de pior que
a besta humana produziu e produz: racismos, superioridades fascistas e
cultura como alma de um povo, vista e vivida como universal, porque
nazistas; guerras, propriedade privada como extorsão do comum; roubo,
tudo, na alma do povo, é culturalizável, como a cultura indígena, nor- pilhagem, destruição de ecossistemas, egoísmos, idiotismos, elitismos,
destina, popular, quilombola; C) e por fim a cultura de massa como a indiferenças; o inferno, enfim, que é o mundo para o comum dos seres.
principal arma tecnológica da qual o Capitalismo Mundial Integrado se
É por isso, novamente em diálogo com Félix Guattari, que é possível
vale a fim de codificar, esquadrinhar, mapear e manietar, em nome do
dizer que tanto a cultura como (A) e como (B) são dimensões absoluta-
sagrado lucro oligárquico, tanto a cultura como alta cultura (A) como a
mente reacionárias de cultura, razão pela qual são tomadas e retomadas
que diz respeito à alma do povo (B).
pela cultura como (C) a fim de evitar a todo custo a emergência coletiva
A cultura de massa (C), a serviço do Capitalismo Mundial Inte-
da cultura como (D): a viva cultura insubmissa na qual e através da qual
grado, tem vocação imperialista, colonizadora e se articula através de
a produção cultural é tanto mais singular quanto mais comum; tanto
três estratégias básicas:
mais individual quanto mais coletiva; tanto mais minha quanto mais de
1- A apropriação dos fluxos, dos delírios, dos racismos, dos idiotismos, das ninguém – picos ininterruptos de criação comum, no comum, através
potencialidades emancipadoras existentes tanto na cultura como (A) como do comum.
na cultura como (B), transformando-os em dispositivos domáveis e des- Não é verdade, pois, a crença, muito presente na cultura como (A),
dobráveis com o objetivo de dividir, hierarquizar e contrapor a diferentes
a da alta cultura, de que esta não pertence à cultura de massa e que,
grupos sociais, os quais passam a viver a si mesmos como se fossem supe-
riores ou inferiores entre si; ou simplesmente como diferentes, na supo- por consequência, não se constitui como subproduto do Capitalismo
sição de que fazem parte da cultura como (B), como se tudo fosse alma Mundial Integrado. O elitismo da cultura como (A) jamais admitiria ou
do povo, seja o elitismo predominante na cultura acadêmica, formadora admitirá sua inserção subjugada, como cultura reacionária, na cultura
de bestas seres que se acham cultural e intelectualmente melhores que os de massa, pois, sua existência, ou o delírio racista de sua exclusiva exis-
outros; seja o popularismo demagógico da cultura das populações margi- tência, está intimamente implicado com sua diferenciação hierárquica
nalizadas – popularismo demagógico que serve para produzir e reprodu-
em relação à cultura como (B), como alma do povo.
zir socialmente a marginalidade infinita dos povos, mesmo quando é posi-
tivada, isto é, é-nos apresentada como bela, sensual, criativa, espontânea, O que o Capitalismo Mundial Integrado faz é jogar com unidades
de vez que sempre a despolitiza, condenando-as à pobreza eterna, como discursivas, como a unidade discursiva da cultura como (A) e a unidade
se a pobreza também fosse uma questão de cultura, no sentido (B) acima discursiva da cultura como (B), produzindo-as, distribuindo-as e con-
apresentado, criativa alma do miserável, abandonado e inferiorizado povo. sumindo-as como se realmente fossem unidades discursivas diferentes,

308 309
pois o que elas não podem ser é a cultura como (D), revolucionária cria- não ser estrategicamente, mas sempre como processo, razão pela qual,
ção do comum, no comum. com Fanon, a descolonização “é um programa de desordem absoluta”
Reside aí, portanto, a importância, para as oligarquias belicosas, da apta a ser realizada pela cultura como (D) e em clara contraposição à
cultura de massa, na atualidade monopólica do imperialismo coletivo: cultura como (A), como (B) e como (C).
produzir o delírio racista das unidades discursivas através do sequestro Como as duas primeiras formas reacionárias de cultura, (A) e (B),
genocida do comum. foram produzidas no passado recente e remoto da humanidade, parece-
Como bem registrou Michel Foucault, em A arqueologia do saber me de extrema importância realizar um movimento de desordem abso-
(1969), as unidades discursivas, todas elas, são construções históricas luta em relação ao passado como unidade discursiva, seja de alta cul-
e como tais, mais que não terem fundamento, inscrevem o mundo tura (A), seja de cultura popular, alma do povo (B), mas também ou
todo como a unidade discursiva do colonizador, a partir da estratégia desde que, simultaneamente, realizemos uma igual desmontagem das
da diversidade em relação ao uno ou do uno como unidade discursiva unidades discursivas de nosso atual presente histórico, principalmente
colonial, tecido e entretecido, dinamicamente, através de múltiplas uni- tendo em vista as unidades discursivas que são produzidas no interior
dades discursivas: colonizador, colonizado, alfabetizado; analfabeta, da cultura de massa ou da cultura como (C), a serviço do Capitalismo
heterossexual, homossexual; primeiro mundo, terceiro mundo; homem, Mundial Integrado.
mulher; racional, irracional; produtivo, improdutivo; moderno, pré- Descolonizar-nos midiaticamente, das mídias do Capitalismo
moderno; contemporâneo e anacrônico. Mundial Integrado, é, portanto, inseparável de um movimento eman-
Uma cultura do comum, descolonizadora, não se fundamenta em cipador de descolonização tanto da cultura como (A) como da cultura
unidade discursiva, qualquer que seja, razão pela qual é transdiscipli- como (B), as quais, através da cultura de massa, constituem-se como
nar, insubmissa e descolonizadora, o que me permite dialogar com o as duas unidades discursivas, no plano da cultura, mais eficientes para
seguinte fragmento de Os condenados da terra (1961), singular livro do produção do colonialismo contemporâneo.
e para o comum, escrito pelo martiniquense Frantz Fanon (1925-1961), A unidade discursiva colonial é a mais cruel das formas de vio-
que é o seguinte: lência; é o nome próprio da Violência, pois oprime, cala, ocupa, apaga,
reescreve a história como estratégica arma de guerra ou simbólica
A descolonização, que propõe transformar a ordem do mundo, é, como
se vê, um programa de desordem absoluta, mas não pode ser o resultado
ordem batalha do colonizador. Ainda em diálogo com Fanon, a cul-
de uma operação mágica de um sacudimento natural ou de um entendi- tura de massa constitui, hoje, a “força que segrega e alimenta a situação
mento amigável. A descolonização, como se sabe, é um processo histó- colonial”, motivo suficiente, portanto, para denunciá-la como violenta,
rico: isto é, que não pode ser compreendido, que não resulta intelegível, a própria imprópria Violência que se expressa como presente eterno do
translúcido a si mesmo, a não ser na medida exata em que se discerne o
Capitalismo Mundial Integrado – e eterno não porque o passado seja
movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descoloniza-
ção é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem apagável, através dela, mas porque, pelo contrário, realiza-se apagando
precisamente sua originalidade dessa espécie de substância que segrega e e massificando não todos os passados, mas precisamente aqueles que se
alimenta a situação colonial. (Fanon, 1963, p. 17) tornaram ou experiências críticas, ou criativas, ou revolucionárias, em
suas respectivas épocas ou vivos presentes históricos de uma cultura do
Em diálogo ao mesmo tempo com Foucault e Fanon, a descoloniza-
comum, para o comum e pelo o comum.
ção é tanto mais um processo histórico ou tanto mais se descoloniza no
A cultura de massa, pois, como presente eterno, eliminando ou
processo histórico que assim o é, um processo real, na medida em que
reescrevendo, sob o seu colonizador ponto de vista, os passados de luta
não admite ou não parta da premissa de unidade discursiva alguma, a
e de emancipação descolonizara dos povos, retoma e valoriza, por opo-

310 311
sição, todos os passados de violência sofridos pelos colonizados prece- em importância e urgência, a todos nós; e precedem não porque são
dentes, como se fossem a única encarnada memória possível. mais importantes, mas porque estão literalmente sendo dizimados.
Eis aí, pois, o principal motivo da violência de classe, de gênero, Concretamente falando, são os iraquianos, os colombianos, os mexica-
étnica, epistemológica – e muito mais – que faz da vida na Terra o nos, os líbios, os sírios, os iranianos, os haitianos, os angolanos, palesti-
inferno que tem sido para o comum dos seres. nos, os congoleses; são eles e elas os condenados da terra da atualidade,
Eis por que, descolonizar, hoje, constitui-se como processo ininter- razão pela qual a descolonização, deles e delas, é a nossa.
rupto de desmassificação da cultura de massa; forma de descolonização Essa é, pois, a principal tarefa da cultura como (D), do e para o
que, de maneira alguma, ocorrerá através da reificação do atual presente comum: evidenciar as urgências a partir dos perfis humanos que estão
do colonizado, na suposição de que todo o passado é imprestável, por- realmente sendo massacrados pela máquina de matar do Capitalismo
que europeu, porque americano, porque colonial. Mundial Integrado.
Se, com Walter Benjamin, na tradição do oprimido, a história toda Para realizar tal imenso desafio, é preciso um esforço descomunal
da humanidade constitui-se como um acúmulo sem fim de despojos, e incessante de descolonização de tudo que seja ou queira ser cultura
de lixos, é porque não apenas o nosso atual presente é parte dessa his- como (A), como (B) e como (C). Eis a senha, pois: a descolonização de
tória de despojos, mas também porque toda essa história de lixos colo- nós mesmos, desmassificando-nos!
nizadores deve ser desmassificada de sua unidade discursiva colonial,
opressora, o que se consegue, insisto, selecionando experiências críticas referências bibliográficas
e criativas emancipatórias no lixão imenso que produzimos no decorrer
AMIR, S. El mundo visto desde el sur. Disponível em: <http://rebelion.org/noticia.
dos tempos, conscientes de que, mesmo que sejam despojos da histó-
php?id=147259>. Acesso em: 02 abr. 2012.
ria, como tudo o mais, podem ser eventualmente valorizados, tendo em
HORKEHEIMER, M; ADORNO, T. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
vista o argumento de que não são unidades discursivas e que, portanto, Jorge Zahar, 1985.
não precisam ser eliminados em bloco como se fossem o monolítico FANON, F. Los condenados de la tierra. Trad. Julieta Campos. México: Fondo de
ponto de vista do colonizador. Cultura Económica, 1963.
Tal não se faz, sob o ponto de vista da cultura como (D), simples- GUATTARI, F; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografia do Desejo. Petrópolis: Vozes,
mente eliminando o ontem, mas, pelo contrário, emendando-o, como 1986.
uma colcha de retalhos, através das muitas linhas de fuga que produzi- HARDT, M. & NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
mos no decorrer da trans-história da tradição do oprimido, como con- LÉVINAS, E. Ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petró-
tribuições inestimáveis para um projeto libertário de desmassificação polis: Vozes, 1997.
da humanidade, o que significa dizer que, se a estratégia da cultura de
massa na atualidade é a de fazer-nos esquecer dos muitos passados de
resistência e de alternativa que produzimos em relação à tradição do
oprimido, penso que a cultura como (D) contribuirá realmente para a
emergência de um mundo do e para o comum se for capaz de identificar
urgências, medidas pelo risco de morte.
Sob esse ponto de vista, não tenhamos dúvidas: os povos que estão
sob a ameaça de guerra ou vivendo o inferno de guerras imperialistas,
nos termos do Capitalismo Mundial Integrado, são eles que precedem,

312 313
parte iv
Movimentos sociais e trânsitos de diferenças
O espaço da negritude e o reverso da africanidade:
crítica sobre as relações raciais contemporâneas
Carlos A. Gadea

[...] la diferenciación e individualización


aflojan el lazo social que nos une
a los que están más inmediatos,
pero en cambio crean un vínculo nuevo
– real o ideal – con los más alejados.
Georg Simmel

i
Os estudos culturais e sociais recentes têm sido protagonistas de uma
série de interessantes discussões em torno de temas como o racismo e
o antirracismo, as identidades coletivas e as diferenças culturais. Seus
repertórios analíticos e implicações teóricas manifestaram inegáveis
conexões com problemas políticos e culturais concretos, relacionados,
frequentemente, com as chamadas políticas de reconhecimento, o mul-
ticulturalismo e a democracia. No geral, têm sido as formas de inter-
pretação do racismo em sociedades particulares o centro das atenções,
assim como a análise e a descrição de diferentes estratégias político-
culturais que têm sido impulsionadas para poder “superar-se” práticas
sociais discriminatórias. A transcendência destas discussões se mostrou
indiscutível; não obstante, parece não ter-se contemplado com clareza
diagnósticos que permitissem considerar uma diversidade de transfor-

317
mações socioculturais na atualidade. Tudo pareceria ter-se limitado a Isso tem suas vinculações, em grande medida, com a constatação
gestos que, simplesmente, evidenciaram uma série de batalhas discursi- de que aquele período de uma “política negra” associada à “política
vas em demasia abstratas. da luta comunitária” parece ter ingressado em uma profunda recessão
Talvez seja a ausência de uma espécie de impressionismo sociológico (Hall, 2003), sem que isso se traduza na falsa ideia de uma suposta
uma dessas principais limitações, um olhar sobre a realidade atento ao deflação militante das ações coletivas motivada por esses processos de
que de fato está sendo vivido. Por isso, o interesse por reavaliar a pre- individualização e diferenciação social. Trata-se de contemplar a pos-
sumível problemática do racismo e do antirracismo revela um objetivo sibilidade de que certas dinâmicas sociais atuais possam sugerir algu-
mais desafiador: compreender a forma em que se está reelaborando o mas mudanças significativas nas próprias dinâmicas discriminatórias e
espaço da negritude ou a experiência negra entre os afrodescendentes racistas, no antirracismo e, fundamentalmente, no espaço da negritude.
na atualidade. Ao tentar compreender em que medida o cenário das Pense-se, por exemplo, e com referência ao Brasil, nas interações sociais
desigualdades, dos preconceitos e das discriminações raciais, enraiza- surgidas (e as consequentes) do contato com as novas políticas sociais
das historicamente na vida social, têm efetivamente adquirido novos que estão sendo implementadas com relação à redução da pobreza e ao
contornos, pergunta-se em que sentido se faz possível considerar que se combate ao racismo, assim como nas discussões que se originam como
assiste a uma redefinição das formas e relações raciais contemporâneas, consequência dos conflitos sociais suscitados por ter-se levado adiante
ao sugerir-se certa “superação” do uso de categorias sociológicas vincu- políticas de affirmatives action ou programas de inclusão social em uni-
ladas a noções próprias de uma “sociedade racializada”. versidades públicas. Pense-se, também, nas interações cotidianas que
Isso em absoluto significa negar ou relativizar a existência de “sen- pressupõem a existência de regras sociais e um marco jurídico de crimi-
timentos de superioridade” baseados em relações sociais de dominação, nalização de práticas discriminatórias e, inclusive, naquelas que se tra-
assim como da existência de “estratégias de inferiorização” ligadas à afir- duzem na visibilidade comunicacional dos afrodescendentes nos meios.
mação de desigualdades sociais. Fora isso, o que de certa forma está em Também, obviamente, nos renovados desafios na elaboração de estra-
debate é uma reconsideração das noções de racismo e de antirracismo tégias de sobrevivência material e simbólica que, na atualidade, muitos
como construções culturalmente surgidas de situações de conflito que afrodescendentes empreendem em situações de contínua segregação
cada vez se apresentam mais diversificadas. Por isso, são insuficientes, socioespacial. É com referência a isto que, justamente, torna-se possível
ou simplesmente parciais, aquelas explicações centradas no privilégio da visualizar que muitos afrodescendentes parecem estar expandindo os
variável econômica ou racial para compreender as múltiplas lógicas de cenários de interações e as redes de comunicação sociais, dando lugar a
discriminação social. Se alguns dos debates clássicos destacam a eventual certas modificações no contexto que realizam as suas escolhas, elaboram
formalização de relações sociais sob o signo da “raça” e a consequente os seus projetos e constroem suas identificações sociais. Desta maneira,
institucionalização do racismo como prática social, o que atualmente afirma-se, seguindo uma linha de pensamento simmeliano, que o indi-
parece estar em jogo é um processo de individualização e diferenciação víduo afrodescendente “sairia reforçado” desse contato com a diversi-
social (Simmel, 1977 [1908]) que estaria contribuindo à desestabilização dade e a multiplicidade de interações sociais e, longe de considerar que
de um espaço da negritude elaborado a partir de uma estratégia política uma eventual fragmentação das experiências conduza a uma perdida ou
(e pedagógica) associada a uma já clássica noção de africanidade.1
e de “técnica de subjetivação” que estabelece o resgate de uma origem africana comum
1 Compreende-se por africanidade um espaço de elaboração discursiva e política que entre a população negra, chave para o reconhecimento intragrupal e valorização cultural
pretende sintetizar a pertença coletiva de um grupo humano a uma comunidade presu- particular. Politicamente, trata-se de um projeto de contraidentidade ou de identidade
mivelmente fundamentada em determinadas especificidades históricas e culturais refe- de resistência, consequente com o projeto histórico da modernidade, que questiona a
renciadas no continente africano. Trata-se, ao mesmo tempo, de um gesto pedagógico aparente superioridade moral do modelo eurocêntrico de uma história universal.

318 319
dissolução de seus supostos “grupos de pertença” e de sua própria indi- tífico”, muito presente e divulgado como doutrina ou ideologia em fins
vidualidade, esta multiplicação das experiências e de afiliações a gru- do século XIX e começos do XX, segundo o qual existiriam raças cujas
pos reforça, paradoxalmente, o caráter propriamente individual da sua características biológicas ou físicas corresponderiam a capacidades psi-
vivência como afrodescendente. Pareceria que tal determinação indi- cológicas e intelectuais, simultaneamente coletivas e válidas para cada
vidual conduz a visões plurais do mundo social vivido, ao ser a cons- indivíduo (Wieviorka, 2006, p. 67). Assim, pode-se afirmar, como
trução individual sempre um olhar particular sobre o mundo (Simmel, primeira constatação, que esses primeiros “movimentos antirracistas”
1977; 1908). Assim, o afrodescendente parece ter ingressado num novo iniciados nos anos 50, assim como o denominado “racismo científico”,
“sistema de coordenadas”, de forma tal que toda nova interação social e enquadravam-se em situações de conflito surgidas de lógicas de discri-
suas correlativas relações de poder, toda nova afiliação social e “grupo de minação sociais baseadas numa série de preceitos ideológicos herdeiros
pertença” o determina suficientemente como para que se reconsiderem do positivismo filosófico e do evolucionismo social, baluartes do projeto
os espaços do racismo e do antirracismo, assim como, de forma funda- da modernidade brasileira. De todas as maneiras, as primeiras mobili-
mental, o espaço da negritude. zações também pareciam criticar a série de mecanismos institucionais
que permitiriam manter os afro-brasileiros em situação de inferioridade
ii social, sem que se tornasse necessário que os preconceitos racistas se
manifestassem, e sem ser necessária uma ideologia racista para legiti-
No Brasil, por exemplo, a problemática apresentada pelo afrodescen- mar a exclusão e a discriminação.
dente se tem consolidado a partir da constatação de que a denominada Posteriormente, no contexto dos movimentos pela democratização
“democracia racial” deu sustento ideológico e político à inexistência de política surge, em fins dos anos 1970, o Movimento Negro Unificado.
“barreiras de cor” e de segregações raciais na configuração da moderna Este movimento procuraria dar uma nova perspectiva ao tratamento
nação brasileira. Como já havia observado Florestan Fernandes (1972), das desigualdades raciais no Brasil, muitas vezes amparado em estu-
os setores favorecidos economicamente pela dinamização do desenvol- dos que demonstravam o caráter racista da desigualdade social. Para o
vimento capitalista iam dar as costas ao drama humano dos descenden- Movimento Negro Unificado, a constatação do “caráter negro da desi-
tes dos ex-escravos e ignorariam as implicações negativas da falta de gualdade” no Brasil converter-se-ia em fundamento político válido para
integração da sociedade nacional ao nível das relações raciais. Sendo levar adiante uma luta social que associava demandas culturais com a
assim, tanto a tonalidade da pele quanto outras formas figuradas da lin- luta por uma igualdade de oportunidades. De fato, o que nos anos 80 e
guagem “naturalizaram” grandes desigualdades sociais e legitimaram 90 desenhava-se no horizonte das lutas antirracistas no Brasil era uma
práticas discriminatórias que, aos poucos, foram comprometendo a constatação política de grande peso: que não unicamente os que ocu-
autoimagem brasileira de democracia racial (Guimarães, 2005, p. 40). pam os estratos sociais inferiores são fundamentalmente afro-brasilei-
Não obstante, a partir dos anos 50, e no âmbito da Frente Negro ros, senão que a desigualdade aludida é persistente. Ao compararem-
Brasileira, foi possível, por exemplo, uma articulação mobilizatória se diferentes gerações de brancos e de negros, um branco teria maiores
que colocava o racismo como problemática iniludível na discussão possibilidades de ascensão social que um negro, inclusive quando pais
sobre a cultura nacional. A suposta “discriminação racial” nos diferen- de ambos apresentam níveis socioeconômicos parecidos (Costa, 2002).
tes espaços de sociabilidade provocou estratégias que veiculariam uma Esta constatação, dentre outras, seria a que, fundamentalmente, derru-
“valorização do legado afro-brasileiro” e uma ênfase na importância baria qualquer pretensão por considerar a “democracia racial” o modelo
desse grupo populacional na formação econômica e cultural do país. funcional na configuração da moderna nação brasileira. Se o caráter
Sem dúvida, este gesto pareceria contestar o chamado “racismo cien- individualista da “ascensão social” era coerente com o projeto da “demo-

320 321
cracia racial”, pode-se observar que as condições de existência da popu- constantes, explicando-se como simples “espaço narrativo” usado ins-
lação afro-brasileira não comportaram a “lógica igualitária” pretendida trumentalmente por certos grupos sociais ou indivíduos em função
pelo projeto de nação. Enquanto para alguns as condições materiais de de uma suposta posição numa determinada ordem de “relações raciais
existência poderiam ser melhoradas num esquema emanado desse pro- preexistentes”. Por isso, não é possível, por exemplo, considerar que os
jeto de “democracia racial”, podendo-se, dessa forma, anular eventuais “sentimentos de superioridade” racial se produziram durante o regime
desigualdades herdadas, pode-se perceber que a negação de uma iden- escravocrata, senão que se deve compreender que este regime só gerou
tidade particular e a desigualdade aludida estão relacionadas a fatores uma forma particular de racismo.2
mais subjetivos, próprios da questão racial: o preconceito, o estigma e a Não obstante, o uso sociológico da categoria “raça” se fundiu com
impossibilidade de uma construção discursiva própria. as estratégias políticas (e pedagógicas) antirracistas dos movimentos
A partir desse diagnóstico, e como bem menciona Guimarães sociais de afro-brasileiros, assim como das diversas organizações sociais
(2005, p. 51), qualquer análise sobre o racismo no Brasil não poderia e comunitárias que compartilhavam o diagnóstico da existência das
negligenciar as particularidades de três grandes processos históricos: desigualdades sociais como causadas, em grande medida, pelas adscri-
primeiramente, as que fazem referência ao processo de formação da ções raciais (Costa, 2006, p. 205-210). Esta política da negritude parece-
nação; em segundo lugar, as que resultam do “intercruzamento” ideoló- ria sustentar-se, de forma geral, na ideia de que se os próprios “negros
gico e discursivo da ideia de “raça” com outros conceitos de hierarquia consideram que as raças não existem (acabariam), também por achar
social (classe, status, gênero) e, por último, as que acompanharam as que eles não existem integralmente como pessoas, posto que é assim
transformações econômicas, sociais e regionais. Em tese, estes processos que são, em parte, percebidos e classificados por outros” (Guimarães,
históricos estariam confirmando “a diferenciação entre tipos de racismo 2005, p. 67). Quer dizer, que o combate ao racismo passou a ser efeti-
(que) só pode ser estabelecida através da análise de sua formação his- vado racializando a sociedade, já que a ideia de “raça” é a que continua a
tórica particular” (Guimarães, 2005, p. 37). Neste sentido, se a ideia de diferenciar e privilegiar as oportunidades de vida das pessoas.
racismo só existe a partir de uma realidade histórica específica e, desta Para os chamados estudos das desigualdades raciais, ou os “estudos
maneira, com relação a outras formas sociais existentes, interessa saber raciais” (Costa, 2006), em que desigualdades socioeconômicas podem
quais seriam as “condições concretas” que tornam a esta forma de dife- ser explicadas por variáveis como cor ou “raça”, este gesto analítico teve
renciação social algo socialmente pertinente na atualidade. como objetivo, por um lado, pautar politicamente uma luta contra as
O importante a ser destacado é que o racismo, se bem pode conser- segregações e discriminações raciais e, por outro lado, uma luta pela recu-
var certas características gerais, adquire significação numa determinada peração da autoestima negra, algo que o movimento negro passa a assu-
prática social histórica e espacialmente contextualizada (Hall, 2003). mir a partir de um “discurso racialista”3. Ressuscita-se a ideia de “raça”
Isso não quer dizer que preconceitos e atitudes racistas não pareçam como estratégia de luta ao mito da “democracia racial”, numa atitude
depender, de forma direita, da existência prévia de uma ideologia ou que ao supor racializar a sociedade acredita-se na visibilidade delibe-
doutrina racista, já que um indivíduo “só pode ter cor e ser classificado
num grupo de cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas 2 Apreciação análoga ao que Hall (2003, p. 335) afirma: “[...] que tipo de momento é este
tenha algum significado” (Guimarães, 2005, p. 47). Não obstante, para se colocar a questão da cultura popular negra? Esses momentos são sempre conjun-
turais. Eles têm sua especificidade histórica; e embora sempre exibam semelhanças e con-
presume-se que esta “ideologia” sofre uma mutação e deslocamento tinuidades com outros momentos, eles nunca são o mesmo momento. E a combinação do
considerável ao inserir-se na especificidade histórica dos (e nos) con- que é semelhante com o que é diferente define não somente a especificidade do momento,
mas também a especificidade da questão [...]”.
textos e entornos em que entra em cena. O “local do racismo” estaria 3 “Racialista” no sentido de evocar o carisma da raça negra e de visar à formação de uma
determinado por situações de conflito e manifestações de instabilidade identidade racial negra (Guimarães, 2005, p. 227).

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rada de situações de conflito construídas em torno das desigualdades e cursos totalizadores dentro da experiência da diáspora africana”, admi-
discriminações raciais. tindo que uma suposta “esperança em torno de uma afinidade universal
e absoluta para e entre povos da diáspora africana tem sido tão ilusória
(parêntese em torno da noção de africanidade) quanto a formação de um proletariado internacional”. Por isso, no tra-
balho de Ferreira (2002), torna-se evidente um “discurso racialista” que
Neste “uso político” da categoria “raça”, num gesto narrativo que parece se desenhou a partir de “uma identidade” que se supõe “consciente de
redefinir a dinâmica cultural e histórica de pertença identitária, argu- si mesma” e, assim, projetada no jogo da politização da diferença racial.
menta-se que: Num sentido, “a identidade” pareceria preceder qualquer experiência
Aos poucos, a pessoa pode passar a ter atitudes mais abertas e menos social. Em outro, “a identidade” seria a consequência de uma ação mili-
defensivas, voltadas para a valorização das matrizes africanas. O grupo tante em torno das questões próprias do racismo e do antirracismo. Ana-
negro torna-se o principal grupo de referência, sendo seu vínculo deter- logamente, Sérgio Costa (2006, p. 208) argumentará que “o problema
minado por qualidades do próprio grupo e, não mais, exclusivamente, mais óbvio que se manifesta na estratégia racializante dos estudos raciais
por fatores externos a ele. [...] A referência raça e a cultura africana, antes
vistas como de pouca importância, tornam-se fundamentais para a vida é naturalmente o sentido instrumental atribuído à identidade, que faz
diária. O afrodescendente passa a sentir-se aceito, com propósito de vida, da cultura uma variável dependente da política antirracista e da esté-
sentindo-se profundamente enraizado na cultura negra, sem deixar de tica um mero instrumento da política”, a partir de considerar que “as
perceber as condições às quais está submetido num mundo que o vê com referências à ‘cultura negra’ no Brasil, desde os anos 70, encerram uma
preconceito. As matrizes africanas passam a ser efetivamente afirmadas.
(Ferreira, 2002, p. 80, grifo nosso) farta variedade de sentidos e interpretações, não cabendo reduzir esse
universo heterogêneo e plural ao momento de construção racial e um
Estas apreciações são sintomáticas de uma narrativa que se constrói sujeito antirracista”. A preocupação para uma análise inspirada nos estu-
com base num exercício de “contato” com uma “África imaginada” tra- dos pós-estruturalistas se manifesta na natureza “essencializante” de um
zida como “memória”, convertendo-se esta em instrumento de interpre- “discurso racialista” que pareceria construir, arbitrariamente, uma iden-
tação e em recurso hermenêutico. É também o resultado de um gesto por tidade cultural sob o destino de uma identidade política que a precederia.
“controlar politicamente” um “passado fragmentado”, reinterpretando Mas em que consiste esta “estratégia” específica de racialização
“voluntariamente” supostas “lembranças” que adquirem organicidade da sociedade? Sem dúvida, a percepção racializada de si mesmo e do
ou ordem numa “memória coletiva”. Mas, qual o sentido dado a “tornar- outro passou pela “reconstrução da negritude a partir da rica herança
se negro” a partir das chamadas “matrizes africanas”? E quais seriam africana – a cultura afro-brasileira do candomblé, da capoeira, dos afo-
os elementos concretos que definiriam “a cultura africana”? Como xés, etc. –, mas também da apropriação do legado cultural e político do
compreender esse exercício de identificação social em que o espaço da ‘Atlântico Negro’” (Guimarães; 2005, p. 61). Um “discurso racialista de
negritude é o aparente resultado de um “corpo político” enraizado numa autodefesa” desta característica era o único possível de poder recupe-
ideia de africanidade? Enquanto se ensaiam respostas, compreenda-se, rar um sentimento de dignidade abalado e, desta forma, exercitar um
de início, que a memória pode ser um campo de imprecisões, de pertur- “ressurgimento étnico” amparado na ideia de “uma terra” a ser recupe-
bações, de “esquecimentos voluntários”, um campo de elaboração dis- rada através da memória (Guimarães; 2005, p. 61). Assim, a noção de
cursiva de “recursos da cultura”, com o simples propósito de outorgar africanidade se define por um potencial político de dupla direção: por
um sentido ao mundo e á experiência social (Montesperelli, 2004). um lado, como narrativa geradora de um “grupo de pertença” e, pelo
Não obstante, e de acordo com John French (2002, p. 111) ao se refe- outro, como discursividade demarcadora de uma ação política e estraté-
rir ao trabalho de Michel Hanchard, existem limitações claras nos “dis- gica a ser empreendida. Os afrodescendentes, desta forma, estariam em

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condições práticas de desenvolver estratégias antirracistas, de mapear nais e de solidariedade típicos do “ideal comunitário” (Tönnies, 2002,
cenários de conflito social e estabelecer pautas políticas de acordo ao seu [1887]). Não obstante, ele foi adquirindo, com o passar das gerações,
autorreconhecimento como herdeiros de uma “descendência comum”. significados e sentidos muito diferentes. Aquela evidente “âncora de
Esse “pertencimento” tornar-se-ia chave para atuar com referência a negritude” geradora de um específico espaço da negritude, e paradigmá-
outros grupos socialmente existentes. tica da experiência negra norte-americana, pareceu ir tomando novas
formas. Por exemplo, o “gueto”4 passa a adquirir um caráter estigmati-
iii zador com relação aos seus integrantes, tratando-se de um fenômeno
que conjuga os aspectos espaciais e raciais. Assim, os afrodescendentes
Outra maneira de compreender este processo de racialização da socie- norte-americanos “acumulam o capital simbólico negativo atribuído à
dade provém da suposta existência de um eventual vínculo entre “a cor e à consignação a um território específico, reservado e interior, ele
comunidade” e a “pertença racial”; sugerindo-se que a categoria “raça” próprio desvalorizado por ser o repositório dos elementos da classe mais
não poderia existir sem ter-se consciência dela e, assim, que a própria baixa da sociedade e por ser uma reserva racial” (Wacquant, 2005, p.
“pertença comunitária” seria traduzível, de certa forma, em alguns fenô- 148). O que se pretende afirmar é que um espaço de contenção de valo-
menos históricos que resultaram em processos sociais de “guetização”. O res sociais concretos como pode ser o “gueto” não comporta as novas
“gueto”, termo derivado dos estudos da denominada Escola de Chicago dinâmicas individuais e coletivas de aceso a bens tanto materiais quanto
(Coulon, 1995), parece ter um significado histórico e um alcance socio- simbólicos. Por um lado, apresenta-se uma plausível intolerância subje-
lógico que, justamente, permitiria compreender alguns dos processos tiva à própria noção de pertença a um espaço socioespacial considerado
de exclusão social. Loïc Wacquant (2005; 2004; 1996) assim o conside- “inferior” e denotativo de imobilidade social institucionalizada. Pelo
rou, ao definir o processo de “guetização” da população afrodescendente outro, e de forma fundamental, o pertencimento a uma determinada
como um processo histórico de exclusão pelo critério da raça: o “gueto” classe social e adscrição racial já não parecem funcionar como projeto
é uma formação socioespacial uniforme delimitada por critérios raciais de realização pessoal ou coletiva, continuamente renovado e reconfir-
ou culturais e baseado no afastamento forçado de uma população nega- mado na vida diária. Se o “coletivismo” foi “a primeira opção de estra-
tivamente tipificada. O “gueto” seria “uma formação étnico-racial que tégia para aqueles situados na ponta receptora da individualização, mas
reúne as quatro principais ‘formas elementares’ de dominação racial – incapazes de se autoafirmar enquanto indivíduos se limitados a seus
o preconceito, a discriminação, a segregação e a violência excludente” próprios recursos individuais” (Bauman, 2001, p. 42), todo indica que
(Wacquant, 1996, p. 148). Como é notório, tem sido a herança da os integrantes daqueles espaços sociais estigmatizados tendem cada vez
sociologia de Chicago o que permitiu a Wacquant sugerir a associação mais a adotar estratégias altamente individualizadas, voltadas para reali-
entre um processo de “exclusão social forçado” e o estabelecimento de zações individuais. Desta maneira, pode-se dizer que, por exemplo, para
princípios de organização social que respondem a estratégias singulares muitos dos jovens negros dos centros urbanos atuais, o que os distingue
de sobrevivência material e simbólica. Quer dizer que a uma profunda é precisamente um processo de individualização5 e diferenciação social
segregação socioespacial correspondem princípios ordenadores de uma
realidade sociocultural que os próprios afrodescendentes elaboram den- 4 Para os argumentos a seguir, interessa defini-lo como sendo não simplesmente “uma
entidade espacial, nem mesmo um mero conjunto de famílias pobres, preso na estru-
tro dos seus enclaves territoriais. tura inferior da estrutura de classes: é sua qualidade singular de formação racial que dá
Se o “gueto” é uma forma organizacional elaborada sob o critério origem a uma teia de associações materiais e simbólicas entre cor, lugar e uma série de
racial e uma resposta a uma “segregação estrutural”, o afrodescendente outras características cujo valor social é negativo” (Wacquant, 2005, p. 147).
5 Faz-se referência à “formação da individualidade” segundo Simmel (1977 [1908]), em que
se apresenta salvaguardado por uma série de dispositivos institucio- a individualidade cresce na medida em que se amplia o círculo social em torno ao indi-

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que parece contradizer os espaços típicos de afirmação pessoal e coletiva no qual parecem estimular-se práticas de distanciamento com aquele
pré-constituídos. espaço socioespacial de procedência.
Talvez, de fato, a experiência do afrodescendente nos Estados Uni-
(parêntese acerca de jovens negros dos ou desses jovens dos subúrbios parisienses tenha suficientes dife-
no parque da redenção6) renças como para tornar inviável basear-se nela para descrever alguns
fenômenos sociais e raciais no Brasil. Não obstante, é possível realizar
É um dia de domingo ensolarado. O Parque da Redenção novamente algumas analogias com um simples interesse analítico.7 Pretende-se con-
está lotado e sugere, cada vez mais, que se observe uma cena social por siderar, desta forma, que se na experiência norte-americana o “gueto”
demais significativa. É que além de possuir as qualidades típicas de um derivou em “hipergueto” (Wacquant, 1996) por força da quebra dos
espaço coletivo frequentado por um heterogêneo público, inclusive em laços de sociabilidade e dos referenciais institucionais sob a matriz racial,
torno a uma “feira de artesanato”, não se pode definir mais como um no caso do Brasil (ou melhor, de algumas experiências sociais no hete-
espaço de sociabilidades onde certos jovens procuram expressar per- rogêneo Brasil) aqueles espaços da negritude construídos em torno “da
tencimentos “neotribais” e estéticos. “Skateros”, “neo-punkys” e “emos” comunidade” ou da africanidade também parecem estar sendo modifi-
não fazem parte, sozinhos, da sua geografia espacial e social. Também cados a partir de um processo social muito semelhante. Refere-se aqui a
o estão “ocupando” uma grande quantidade de jovens dos bairros mais um processo de individualização e diferenciação social que estes jovens
populares da cidade, e em cuja expressividade encontra-se um significa- protagonizam na tarefa de “insurgirem-se” contra a situação coletiva em
tivo componente racial. Nos fins de semana é inquestionável assistir ao que se encontram e, de alguma maneira, poderem desenvolver estraté-
contínuo trânsito de jovens que recordam o movimento que Wacquant gias de distanciamento e de “saída”. Ante isto, Wacquant afirmaria que
descreve sobre aqueles adolescentes das “Banlieues” pobres da cidade de este tipo de atitude estaria convalidando as “percepções negativas” que
Paris: “vão sempre ‘passear’ nos distritos mais conceituados da cidade se tem arbitrariamente elaborado sobre eles, tratando-se, desta maneira,
para fugir de seus bairros e para curtir a badalação. Ao atravessar espa- de um gesto que se apresenta próprio de ter internalizado os dispositi-
ços que não apenas simbolizam como também abrigam as classes altas, vos de segregação e estigma existentes. Não obstante, pode-se realizar
os suburbanos podem viver por algumas horas uma fantasia de inclusão uma interpretação um tanto diferente: que o aparente significado dessa
social e participar, embora desempenhando o papel do outro, da socie- experiência de “dualidade de contextos” em muitos jovens negros é o
dade mais abrangente” (Wacquant, 2005, p. 147). Por isso, para muitos de um jogo de reversão das identificações sociais atribuídas como dados
desses jovens vindos dos bairros populares de Porto Alegre, e em parti- inegáveis da realidade. Trata-se de uma atitude que procura, justamente,
cular para aqueles jovens negros, “passear” no Parque da Redenção não desconstruir essas identificações e transformá-las em um projeto de res-
é uma simples forma de lazer, mas sim da experiência de certa “duali- ponsabilidade e autodeterminação, experiência social ancorada, para-
dade de contextos”, de “troca de consciência” (Wacquant, 2005, p. 147), doxalmente, na eventual instabilidade dos marcos de referência indi-
viduais. Parafraseando Bauman (2001, p. 42), pode-se dizer que para
esses jovens, “não são fornecidos ‘lugares’ para a ‘reacomodação’, e os
víduo (p. 742) e, ao aumentar a individualização (e assim, a repulsão dos elementos do lugares que podem ser postulados e perseguidos mostram-se frágeis”.
grupo) surgirá uma tendência centrífuga que servirá de ponte para outro grupo (p. 743).
6 Também conhecido como Parque Farroupilha. Trata-se de um espaço público historica-
Por tal motivo, à noção um tanto pessimista de Wacquant perante este
mente importante da cidade de Porto Alegre, capital do estado de Rio Grande do Sul. É
um conhecido ponto de encontro os fins de semana, ao existir uma fera de artesanato, em 7 Faço próprias as palavras de Simmel (1977; 1908, p. 747) e a sua lição metodológica suge-
ocasiões festivais culturais e uma espontânea infinidade de expressões artísticas. É um rida: “No se entienda, sin embargo, esto en el sentido de una ‘ley natural’ sociológica,
espaço de sociabilidade frequentemente escolhido pelos mais jovens. sino, por decirlo así, como una mera fórmula fenomenológica [...].”

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processo de individualização e diferenciação social, opõe-se uma pers- iv
pectiva sociológica que simplesmente procura compreender o sentido
dessas atitudes que levam muitos jovens negros, neste caso, a elaborar e Uma resposta interessante que se pode oferecer às estratégias de racia-
participar de “lógicas situacionais” que repercutem na própria percep- lização da sociedade e às narrativas políticas (e pedagógicas) enraizadas
ção sobre uma pertença racial e social que precederia a suas próprias na noção de africanidade provém do viés pós-estruturalista de Stuart
experiências sociais. Hall (2003), para quem o eixo da polêmica parece estar na maneira
Por outro lado, e de maneira semelhante, alguns estudos recentes como se deveriam considerar as identidades culturais na atualidade.
sobre as próprias dinâmicas sociais discriminatórias advertem que o Numa linha de argumentação próxima a Foucault, Hall lembra que o
racismo contemporâneo não parece seguir explorando o simples “dis- sujeito é sempre o resultado de “técnicas de produção”, significação e
tanciamento” ou “estranhamento” entre as pessoas, e sim a “proximi- dominação que se instituem como discursos e verdades, formas de rela-
dade” e o temor dos indivíduos de tornarem-se, presumivelmente, cada ções sociais e instituições, evidenciando-se a impossibilidade de pensar
vez “mais iguais”. Assim o constata Michel Wieviorka (2006), ao afirmar o sujeito como algo dado a priori. Por isto, o sujeito é sempre produção
que o suposto “novo racismo” parece constituir-se com base em proces- e incessante ressignificação, sugerindo-se pensar noções como “raça” e
sos de “diferenciação social”, sugerindo que é o próprio temor pela dife- racismo como “práticas contextuais”, como o resultado de variáveis ine-
rença cultural o que trás por consequência estratégias de segregação, rentes às lógicas de poder8 e condições sociais concretas. Daqui que,
de estigma e de marginalização. Desta maneira, a discriminação e o por exemplo, Hall observe com desconfiança algumas tentativas discur-
racismo contemporâneos se materializam na suspeita de que os indiví- sivas em torno de noções como “raça”, ao considerar que o “momento
duos ou grupos culturais se apresentam cada vez “mais iguais”: iguais essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza a diferença,
em direitos, em oportunidades concretas, em circulação e visibilidade, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural, biológico e
em capacidades discursivas e pressão política. Isto em absoluto supõe o genético. No momento em que o significante ‘negro’ é arrancado de seu
esquecimento eventual de estratégias ainda vigentes de estigmatização encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial
e de segregação, da própria presença do racismo na atualidade. Do que biologicamente construída, valorizamos, pela inversão, a própria base
se trata é de um racismo que opera com base em específicos contextos do racismo que estamos tentando desconstruir” (HALL, 2003, p. 345).
e situações sociais, que atua a partir de novas ideologias individualistas Isto parece desenvolver estratégias políticas contraditórias e conflitos
e competitivas na sociedade. Um exemplo pode estar no que Andrews intersubjetivos por demais interessantes, como de certa maneira assi-
(1998) destaca ao estudar as mudanças no mundo do trabalho da popu- nala Costa (2006, p. 213), ao afirmar que
lação afrodescendente da cidade de São Paulo. Menciona, por exemplo, se a reificação ideológica da cultura nacional inclusiva funcionou histori-
que a situação de “mais liberdade” gerada pelas mudanças modernizado- camente no Brasil como instrumento de opressão das diferenças e bálsamo
ras na economia a partir dos anos 50 e 60 levou a uma competição aberta político para a manutenção da ordem social iníqua, o elogio da consciên-
cia (racial) pode meramente inverter os termos de uma equação com-
entre a população branca e os afrodescendentes, uma competição de
plexa, de sorte a prescrever a todos “não brancos” uma identidade ideal e
grande intensidade, ao perceber, os primeiros, que àqueles espaços por um ideário político determinado, como se coubesse à política anti-racista
eles definidos a priori como próprios na escala social e laboral estariam
agora em visível risco. Em linhas gerais, a ascensão social estaria delimi- 8 Não estaria de mais lembrar que para Foucault o poder não se materializa, necessaria-
tando novas estratégias racistas e novas reações antirracistas, conside- mente, numa instituição ou estrutura socioeconômica, ou se define, simplesmente, como
uma “força” com a que estão investidas determinadas pessoas: o poder seria o nome dado
rando-se, desta forma, que é a percepção de vulnerabilidade e os riscos a uma complexa relação estratégica em uma sociedade dada; significa relações, uma rede
próprios dos espaços sociais atuais uma das fontes do “novo racismo”. mais ou menos organizada, hierarquizada, coordenada (Foucault, 1992).

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restabelecer o suposto elo (sócio)lógico entre corpo negro, a cultura negra não podem evitar a necessidade por relativizar a ideia de que a pertença
e o ativismo político. a determinado grupo social de por si estaria proporcionando a armação
de referência significativa nos indivíduos; ou seja, que o grupo tomado
Tudo pareceria indicar que tem sido uma estratégia de politização
como ponto de referência é invariavelmente o grupo do qual o indivíduo
da diferença racial o que estaria delimitando os conteúdos propriamente
é membro. Este suposto equívoco conceitual não permitiu visualizar
“raciais” e culturais nos afrodescendentes, “fazendo com que aqueles que
que, por exemplo, o “grupo dos afrodescendentes” não necessariamente
não constroem suas identidades com base na polarização entre bran-
se tornaria o principal “grupo de referência” para os indivíduos negros,
cos e negros sejam tratados como portadores de uma consciência racial
tal qual interpretações como as realizadas por Ferreira (2002) e citadas
pouco desenvolvida” (COSTA, 2006, p. 216). Mas, oportuno resulta con-
aqui anteriormente. Atualmente, devido a mudanças socioculturais e
siderar que estes elementos discursivos e políticos têm pouco para apor-
políticas diversas, devem-se considerar as novas condições sob as quais
tar a uma sociologia atenta a mudanças sociais gerais e às formas que
os grupos dos que “não pertencem” também possam constituir uma sig-
as relações sociais e raciais estão passando a adquirir. Sem, obviamente,
nificativa fonte de referência para os indivíduos. As “lógicas situacio-
reduzir o central protagonismo dessas ações em prol da igualdade de
nais” que se apresentam aos afrodescendentes enquanto pertencentes a
condições sociais e o combate ao preconceito e à discriminação, torna-
determinada classe social, a determinada experiência sexual, idade, grau
se imprescindível contemplar outras variáveis nos conflitos próprios do
de escolaridade, formação acadêmica, lugar de residência, dentre outras,
racismo e do antirracismo. Como questão de fundo, e tal qual mani-
outorgam graus de significados diversos sobre a própria experiência
festa Hall (2003), o que se apresenta com clareza é o estabelecimento de
individual e o espaço da negritude. Principalmente os mais jovens, aos
relações sociais que evidenciam a insuficiência do significante “negro”
que se lhes apresentam tensões cada vez mais diversificadas e eviden-
já que, não necessariamente, um indivíduo pode “esgotar” a sua iden-
tes, têm multiplicado as suas afiliações a grupos, ocasionando, de forma
tidade com base nesta única adscrição. Isto parece dever-se a que não
fundamental, uma decorrente multiplicação de grupos de referência.
sempre os indivíduos estão fazendo parte de relações que interpelam
Esta presunção e diagnóstico se apresentam de grande importância, na
esse caráter de identificação cultural específico, pois a dinâmica de sele-
medida em que se sugere observar diferenças na redefinição das formas
ção de “grupos de referência” entre os diversos grupos a que pertence o
e relações sociais nas que estão envolvidos indivíduos afrodescendentes
indivíduo se encontra cada vez mais assumindo grande relevância. Por
atualmente. Em certa medida, trata-se de levar em consideração que as
isso, o espaço da negritude não parece reduzir-se, simplesmente, a um
principais mudanças sociais advindas do amplo repertório de políticas
“pertencimento racial” (com seus atributos culturais e políticos), senão
sociais, assim como da própria presença negra em crescentes âmbitos
que se projeta no diverso jogo de relações sociais e formações de grupos
de sociabilidade trazem, de forma implícita, variações significativas na
de forma constante.9
própria experiência negra.
Pergunta-se, então, qual é a importância relativa da categoria “raça”
e dos subgrupos dos quais indivíduos afrodescendentes fazem parte?
Quais as circunstâncias que predispõem aos afrodescendentes na atua-
lidade escolher como “ponto de referência significativo” indivíduos que (parêntese sobre a pertença e
não se encontram na “mesma situação” ou “grupo racial”? As respostas a referência a grupos sociais)
Mas esta presunção e diagnóstico merecem especial atenção. Apela-
9 Nesse sentido, o recado de Hall (2003, p. 356) parece ser: “Mas é para a diversidade e não se, assim, à tradição sociológica que se intersecta com certa psicologia
para a homogeneidade da experiência negra que devemos dirigir integralmente a nossa
social. Lembre-se que Newcomb (s/d [1975]), por exemplo, tinha argu-
atenção criativa agora.”

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mentado que os “grupos de pertença” servem, quase inevitavelmente, Não se podem negligenciar diversas mudanças políticas, econômi-
e em graus diversos, como “grupos de referência” para seus membros. cas, sociais e culturais surgidas nos últimos tempos com relação à efetiva
Décadas antes o próprio Mead (1982 [1934]) já havia sustentado algo participação e visibilidade social dos afrodescendentes nas sociedades
muito semelhante, ao apresentar a hipótese de que são os grupos aos contemporâneas. No caso do Brasil, todos os debates e discussões em
quais pertence o indivíduo, como membro, que proporcionam os ele- torno da “questão negra” têm sido por demais significativos. Assim, a
mentos de referência significativos. Nesta linha argumentativa, estar- experiência negra e o espaço da negritude apresentam novas tensões e
se-ia em condições de afirmar que, para os afrodescendentes, o “grupo contradições. Quiçá isto seja causado por uma simples “mudança de
negro torna-se o principal grupo de referência, sendo seu vínculo deter- gerações”, na medida em que para os mais jovens não é estranho ver
minado por qualidades do próprio grupo e, não mais, exclusivamente, e considerar legítimo que indivíduos afrodescendentes ocupem posi-
por fatores externos a ele”, tal qual Ferreira (2002) tinha considerado. ções de destaque em diferentes âmbitos da vida social. Existe um cená-
Não obstante, Newcomb (s/d [1975]) vai manifestar que a capacidade rio político e sociocultural enriquecido em elementos que estariam
de que um “grupo de pertença” sirva, também, como “grupo de referên- levando a reelaborações identitárias mais complexas e dinâmicas para
cia” dependerá do grau em que a participação nele outorgue satisfação estes afrodescendentes. Quando, por exemplo, circulam notícias em que
ou insatisfação para o indivíduo. Os membros de algum grupo diferem se acusa a constante segregação socioespacial e econômica da popula-
como indivíduos em destreza e capacidades, em necessidades pessoais ção negra, assim como nas situações de violência física e simbólica em
e na própria formação da individualidade, e eles encontrarão diferentes que se envolvem jovens negros como estratégia para o acesso à visibili-
graus de satisfação em serem membros de grupos. Assim, insatisfações dade social e ao reconhecimento intersubjetivo, o espaço da negritude
irão crescendo na medida em que o grupo é comparado desfavoravel- não se apresenta como sinônimo de um simples “corpo político” que
mente com outros grupos aos quais o indivíduo considere que têm a pos- utiliza como recurso discursivo o apelo a uma memória histórica fun-
damentada numa origem africana comum. A experiência negra parece
sibilidade de diferentes privilégios e oportunidades. Pense-se em jovens
estar além da própria ideia de africanidade. O espaço da negritude torna-
negros que, tal qual se havia mencionado anteriormente, desenvolvem
se o resultado de uma experiência social vivenciada na “precariedade
estratégias e experiências de “distanciamento” de um espaço da negri-
das situações”, na inconstância dos contextos de referência. Por isso,
tude que, de maneira hierárquica, estabeleceu uma ordem específica de
enquanto jovens negros, muitos indivíduos compartilham marcos de
uma experiência negra sob os destinos de uma suposta africanidade ou
referência que não são, necessariamente, surgidos de supostas adscri-
“pertença comunitária”. A experiência de “dualidade de contextos” alu-
ções raciais, senão que emergem de uma experiência individual e social
dida entra em cena para, justamente, manifestar que já não há mais uma
que se interpreta como semelhante ou própria de uma “lógica situacio-
necessária correspondência entre o “grupo de pertença” e o “grupo de
nal” específica, como talvez possa ser a que interpela um mesmo status
referência”, ou seja, entre o espaço da negritude e a referência à africani-
social e econômico, uma escolha na prática sexual ou o fato de morar
dade como sua narrativa constitutiva.10
em uma determinada região da cidade. Por isso, e como bem afirma
10 De forma análoga, e para uma melhor compreensão, cita-se ao próprio Newcomb (s/d. Newcomb, a conduta de uma pessoa está mais influenciada pela moti-
[1975], p. 4): “Los grupos de pertenencia real a menudo sirven a la misma persona tanto
como grupo de referencia positivo y negativo a la vez, de distintas maneras. Un adoles-
cente americano, por ejemplo, puede compartir muchas de las actitudes comunes de su grupo de referencia negativo, si su conducta está de hecho influenciada por su motivación
familia, y su familia puede querer tratarlo como a quien pertenece y comparte sus normas. a oponérseles. Algunas veces esto ocurre por medio de una aguda rebelión, entonces el
En tales aspectos, la familia le sirve como grupo positivo de referencia. Pero el puede repu- adolescente busca emanciparse de sus padres. Más comúnmente, sin embargo, tal rebelión
diar algunas de sus actitudes comunes, por ejemplo participación del culto o la actitud del adolescente es influenciada por grupos de referencia positivos, su pandilla por ejem-
respecto al uso del tabaco. Con respecto a estos objetivos comunes, su familia le sirve de plo, tanto como por grupos de referencia negativos, tal como su familia”.

334 335
vação que leva a relacionar-se com determinado grupo do que pela sua os contornos e os alcances das próprias práticas discriminatórias e racis-
participação real nele.11 tas, assim como do próprio espaço da negritude atual.
Por isto, os processos sociais que estariam determinando estas even-
v tuais transformações se referem a uma experiência negra marcada por
uma clara dualidade: por um lado, o que se pode entender como uma
Não é possível considerar que estas evidentes ações realizadas por mui- aproximação crescente a múltiplos contextos sociais e culturais de refe-
tos jovens negros reiteram a conhecida fórmula que associa, por exem- rência e, pelo outro, a uma diferenciação social geradora de uma expe-
plo, a “mobilidade social” e a “ascensão social” com um processo de riência da individualidade e da negritude muito particular. Se bem os
simples “branqueamento” individual e sociocultural. Contrariamente, dispositivos de exclusão por critérios raciais podem persistir no jogo da
trata-se de levar em consideração que, atualmente, o suposto espaço vida social, as dinâmicas que envolvem esses dispositivos historicamente
da negritude também parece nutrir-se de marcos de referência que se existentes têm se tornado mais complexas e diversas, na medida em que
apresentam externos a ele. Ao mesmo tempo, trata-se de considerar que o espaço da negritude tem se aproximado de espaços sociais antes muito
estas ações não podem ser compreendidas sem assumir o diagnóstico distantes. As barreiras políticas, sociais e econômicas podem persistir
de que mundos de vida diferentes determinam formas diferentes nas numa sociedade ainda “racializada”, mas também é interessante consi-
experiências individuais em torno da negritude. Parece óbvio afirmar derar que essas barreiras cada vez menos conseguem legitimar e repro-
que um jovem negro morador de uma favela terá uma experiência duzir uma realidade social “dicotomizada” por privilégios sociais que se
individual qualitativamente diferente à de um jovem negro de classe correspondem aos critérios raciais. Assim o demonstra a aproximação
média, por exemplo. Da mesma forma que uma mulher jovem negra do espaço da negritude a “círculos sociais” (Simmel, 1977 [1908]) antes
sem emprego fixo apresentará uma experiência de vida individual muito distantes. Jovens negros no mercado de trabalho (e ocupando espaços
diferente daquela que se encontra num curso de ensino superior. Tudo de crescente autonomia profissional), mulheres negras nas universida-
parece indicar que se trata de “formas de socialização”12 que transfor- des, reivindicações que enfatizam as desigualdades sociais e econômicas
mam as próprias definições previamente elaboradas sobre o sentido e o da população negra amplamente internalizadas pela grande maioria da
significado da experiência negra na atualidade e, desta maneira, de um população, assim como o inevitável reconhecimento de que a pobreza
processo de individualização e diferenciação social que supõe rediscutir e a exclusão social se correspondem, em muitos casos, com estruturas
culturais que têm discriminado por critérios raciais, levam a considerar
que o que antes se mantinha reservado a simples “guetos” e “espaços
11 Por exemplo, numa certa oportunidade, um jovem negro estudante universitário mani- da comunidade” atualmente parece se ter ampliado quantitativamente.
festou que quando “vai à balada”, a determinadas festas em que a maioria dos assistentes
são jovens e negros como ele, a forma de vestir e as marcas das roupas usadas desen- Por isso, se para um jovem negro a sua “primeira pertença” a um grupo
volvem um papel muito importante para os contatos sociais posteriores. Manifestou social estava supostamente delimitada pela sua “condição racial”, as
que como a sua vestimenta não indica a pertença a nenhuma “moda black” concreta e,
inclusive, como “não é de marca”, em ocasiões desenvolve solidariedade de grupo além
relações e vinculações crescentes com “produções culturais” diversas
da própria adscrição racial. Assim, sente-se mais motivado a juntar-se muito mais por (gênero, idade, situação laboral, estudante, moda, valores, morador de
critérios de arbitrária pertença a um status social e econômico que a “sua condição” de determinado local, etc.) estão sugerindo que as “pertenças a grupos”
jovem negro: o fato de “ser negro” se tornaria uma segunda pele. A pergunta que surge
pareceria análoga à realizada por Stuart Hall em certa oportunidade: que “situação” é essa estão se diversificando e ampliando e, assim, que a sua experiência indi-
experimentada por esse jovem para se colocar a questão da negritude? vidual também se está transformando.
12 Segundo Simmel (1977 [1908]), a socialização é a configuração na que vários indivíduos
entram em ação recíproca, e esta ação recíproca provém da encenação das pulsões, ou da
Pode-se compreender, então, que esta aproximação a novos círcu-
intenção de conseguir certos objetivos práticos. los sociais estaria conduzindo a uma indiferenciação social crescente,

336 337
a uma espécie de anulação das qualidades identitárias elaboradas em status e modelo de sociabilidade), e a sua experiência negra correspon-
torno da negritude? Nada parece indicar que assim esteja acontecendo. derá às combinações particulares e cada vez mais únicas que realiza.
Ao contrário, trata-se de um processo de diferenciação social que, como Desta forma, a crescente participação de grupos diversos e a “supera-
bem afirma Simmel (1977 [1908], p. 742), supõe formas de interação e ção” da referencialidade significativa na adscrição racial se apresentam
socialização em que as “diferencias, originariamente mínimas, que exis- susceptíveis de enriquecer a cultura no seu conjunto, na medida em que
ten entre los individuos, por virtud de sus disposiciones externas e inter- a apropriação realizada em cada grupo particular retorna aos outros por
nas y de su actuación, acentúanse por la necesidad de adquirir, merced a via do indivíduo: assim como o afrodescendente e as suas formas sociais
medios diversos, lo necesario para el sustento. La competencia crea, en e tensões que materializa determinam os demais grupos aos quais per-
la medida numérica de los que participan en ella, la especialización del tence enquanto “cultura objetiva”, ele também é objeto de determinação.
individuo”. Quer dizer, que na medida em que se amplia o círculo social Neste sentido, o pós-estruturalismo de Stuart Hall (2003) parece
em torno a um indivíduo, a “individualidade do ser” cresce e, ao aumen- adquirir dimensões práticas precisas nesta perspectiva sociológica sim-
tar a individualização, surgirá uma tendência que servirá de ponte para meliana. Ao enfatizar que categorias como “raça” e “racismo” devem ser
o contato com outro grupo. Por isso, a individualização e diferenciação observadas tal qual específicas “práticas contextuais”, a ideia de relacio-
social, segundo Simmel, tende a “afrouxar” o laço que une um indiví- nalidade é a que assume centralidade analítica. O postulado de que a
duo aos que se encontram mais imediatos, criando, ao mesmo tempo, relação precede os termos da própria relação resulta fundamental. Por
um vínculo novo com os que estão mais distantes. Desta maneira, ao isso, uma prática social não é nada em si mesma; só adquire significado
ampliar-se o círculo social em que um jovem negro participa, e no qual unicamente no interior de uma série de relações. No intercruzamento
se concentram seus interesses, este terá mais espaço para desenvolver a de múltiplas pertenças a grupos sociais o indivíduo afrodescendente
sua individualidade. ocupa posições relativamente diferentes, acrescentando, assim, a sua
Se nas diversas definições que se podem elaborar na atualidade individualização e diferenciação social, tanto mais na medida em que os
sobre o espaço da negritude considera-se aquela que a entende como grupos aos quais este indivíduo pertence cada vez menos influenciam de
“grupo primário” de pertença para muitos jovens negros, deve-se com- forma determinante a sua personalidade (Simmel, 1977 [1908]). Como
preender que esse processo de individualização e diferenciação social consequência, este indivíduo se sentirá “mais livre”, com maiores pos-
aludido coincidirá com a diminuição da individualidade do grupo. Em sibilidades na elaboração da sua própria individualidade, assim como
outras palavras, que a um processo de diferenciação lhe corresponde mais dependente dos seus próprios recursos, apesar de que também,
um concomitante processo de indistinção do espaço da negritude tal de forma paradoxal, menos protegido por uma solidariedade de gru-
qual tinha sido definido previamente. Assim, este perde a capacidade de po.13 Quando aqueles jovens negros frequentam o Parque da Redenção
referência significativa nas ações dos indivíduos afrodescendentes, não e experimentam o “distanciamento” de um marco referencial que os
conseguindo mais assegurar a eventual inserção dos seus membros em identifica como pertencentes a uma “raça” e a um espaço urbano con-
outros grupos sociais a partir daquela “primeira pertença”. São, conse- creto, estão realizando uma verdadeira aventura sociocultural: ao mul-
quentemente, a multiplicação dos grupos formalmente abertos por esses tiplicar as suas experiências e as suas afiliações a diferentes grupos, e ao
indivíduos e o lugar que lhes oferecem enquanto tais os indicadores de assumir marcos de referência também diversos, reforçam-se estratégias
uma transformação das formas da atual experiência negra. A individua- propriamente individuais. Assim, o processo de diferenciação social con-
lidade de um jovem negro está, desta maneira, num espaço de intercru-
zamento de diversos “fios sociais”, em que cada pertença particular o
13 Ver em Simmel (1977 [1908]) o capítulo intitulado: “La ampliación de los grupos y la
vincula ao passado desses grupos (e as suas tensões e carga discursiva, formación de la individualidad”.

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duz à elaboração de novos códigos particulares para esses novos grupos Esta aparente nova situação apela para observar os possíveis des-
sociais, códigos que cada vez menos irão tendo vínculos com anteriores dobramentos atuais sobre as persistentes práticas discriminatórias e o
pertenças grupais e com um espaço da negritude que antecipava uma próprio racismo. Ao procurar revelar-se a forma que está assumindo
específica solidariedade de grupo determinada por uma posição social o espaço da negritude é possível ressituar-se os próprios conteúdos do
definida, a priori, em termos de subordinação. racismo e do antirracismo no contexto contemporâneo. Neste sentido,
não parece convincente supor que os indivíduos afrodescendentes con-
vi tinuem apelando (se é que em algum momento o tem feito plenamente,
a não ser como estratégia política e pedagógica por parte de ativistas
Estas transformações sociais atuais não unicamente se vinculam com o sociais negros) a um “recurso cultural” como o materializado no exer-
impacto político que tem protagonizado as mobilizações sociais de afro- cício de eventual contato com uma “África imaginária” para a inter-
descendentes pelo reconhecimento das suas demandas por igualdade pretação e posterior construção de identificações sociais e culturais.
de condições econômicas e sociais. As principais mudanças podem ser Obviamente, não se trata de questionar o concreto “êxito político” desta
encontradas na própria forma que tem adquirido a experiência negra e tarefa, na medida em que o recurso da africanidade e a estratégia de
os novos contornos do espaço da negritude. Enquanto cada indivíduo racialização da sociedade foram elementos constitutivos daquelas pos-
afrodescendente estava ligado, unicamente, a uma experiência negra teriores transformações socioculturais que redesenharam, justamente,
delimitada à “pertença racial” e à “comunidade”, ou a um “corpo polí- o denominado espaço da negritude. A constatação de que a noção de
tico” enraizado numa ideia de africanidade, existia um “conceito cole- africanidade não parece contribuir de forma significativa nos destinos
tivo de negro”, algo que, consequentemente, não dava lugar para socia- discursivos que elaboram identificações sociais em indivíduos negros
lizações particulares, já que cada indivíduo negro era “reenviado” a não reside, simplesmente, na sua suposta inviabilidade discursiva, na sua
sua negritude, era recolocado num “sistema de coordenadas” que não incapacidade pedagógica ou na sua ineficiência política. Em determi-
lhe permitia sacudir-se da lógica binária passível de lembra-lhe da sua nados contextos e situações pode continuar sendo legítima. O que não
situação de subordinação. Assim, aqueles jovens negros, ao introduzir parece possível iludir é sua aparente fragilidade em pretender outorgar
um “distanciamento” com o (suposto) “grupo primário” de pertença, um sentido e significado social sólido e estável, devido, fundamental-
ao ingressar em múltiplas atividades e fazer parte de novos “círculos mente, a sua escassa receptividade valorativa.
sociais”, desenvolvem uma experiência negra que se percebe situada no Ao pensar nos jovens negros que frequentam o Parque da Reden-
“ponto de interseção” dos grupos que, por um lado, os vinculam com ção parece evidente que o espaço da negritude que passam a redesenhar
outras pessoas e mundos de vida e, pelo outro, de forma fundamen- tem como ponto de referência uma espécie de jogo de reversibilidade
tal, com os outros jovens negros. Todo este processo social, todo este da noção de africanidade, um movimento em certo sentido irônico, ao
diagnóstico sobre as novas formas que adquirem a experiência negra na devolver a imagem de uma negritude que não tem significação alguma
atualidade, sugerem compreender que a individualização e diferenciação se não é situada numa concreta relação social e forma de “relação de
social, pelos intercruzamentos de sociabilidade que permite, é uma con- poder”. À medida que a autoconfiança e as capacidades de “passar à
dição para o desenvolvimento de novas afiliações a grupos e, de maneira ofensiva” aumentaram consideravelmente, incorporando nesse gesto o
fundamental, para a própria expansão do espaço da negritude. Assim, os elemento “raça” de forma mais explícita nas suas relações sociais coti-
afrodescendentes se apresentam, crescentemente, com a possibilidade dianas, a “pertença comunitária” que delimitava um específico espaço
de aportar à cultura prestações das que são incapazes os que não partici- da negritude resultou crescentemente desvalorizada para estes jovens.
pam da sua específica experiência social. Assim, o processo de individualização e diferenciação social tem con-

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duzido à insatisfação com uma narrativa de identificação cultural que ______. Racismo e Anti-racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2005.
pretendia favorecer a “concentração” e uma estratégia de autodefesa e de Hall, S. “Quem precisa da identidade?”. In: Silva, Tomás Tadeu da. Identidade e
solidariedade de grupo. Em cada uma dessas ações, esses jovens negros Diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.
parecem sugerir que o seu espaço da negritude não tem mais “uma resi- ______. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed.
dência”: espécie de antirracismo radical, em que o crescimento quantita- UFMG, 2003.

tivo da sua presença e visibilidade, poder e autoestima, responsabilidade James, W. (1907) Pragmatismo. Buenos Aires: Ed. Aguilar, 1961.

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As margens nos meios: sar como a ocupação nos espaços da sociedade e da mídia pelo Rap,
e especificamente pelos Racionais, propiciou discussões importantes
Rap, “Literatura Marginal”, mídias que revelam a potencialidade de enfrentamento de ideias, de debates
que a aparição de manifestações que não se enquadram como similares
Jorge Nascimento daquilo que se acostumou a pensar como cultura pop podem produzir.
Estamos tratando de cultura popular, de relação com meios de comu-
nicação de massa e, fundamentalmente, no surgimento de “outro tipo
de massa” (como está dito na epígrafe), mais atuante e plena da energia
vital daqueles que pretendem conquistar, também por meios estéticos
e políticos, suas fatias no bolo do mundo globalizado. Tal processo é
percebido por Stuart Hall quando discute as questões relativas à pró-
pria definição de cultura popular. Em outra ocasião,2 já nos referimos
tangencialmente a tal questão, partindo da premissa básica da chamada
volkstheorie aplicada à literatura popular, como sendo aquela que é pro-
duzida pelo povo e que tem como receptor o próprio povo e que possui
Gosto muito de rap. O tipo de música que uma vez foi como característica principal a subversão de modelos a partir da inver-
feita, por mim e por outros, com uma temática social, são de papéis cristalizados pelas elites. Porém, agora vamos nos deter em
eles fazem isso melhor, porque vêm de lá. Eles falam para algumas observações tecidas por Stuart Hall no texto Cultura popular
sua gente, vêm das favelas e são ouvidos por todos os
tipos de pessoas. Eles têm algo a dizer, muito sério. e identidade (2003), visando a ampliar a visão sobre o tema. Segundo
chico buarque o estudioso, “o essencial em uma definição de cultura popular são as
relações que colocam a ‘cultura popular’ em uma tensão contínua de
O rap é um estilo de canção que explora “a presença da fala”.
luiz tatit relacionamento, influência e antagonismo com a cultura dominante”
(Hall, 2003, p. 241). Assim, a partir da dialética cultural podem ser pen-
Creio que o que está acontecendo já é a produção de um outro
tipo de massa, sobretudo na cidade. Por aí a coisa vai. Conta- sadas as relações de força mutáveis e irregulares que definem o campo da
tar essa busca de sentido das massas é o caminho. Quem não
e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o Prêmio de Melhor
for um bom rapper ou algo assim vai ficar na rabeira.
Grupo de Rap do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio
A população quer novos intérpretes para essa questão. do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na FEBEM e deram
milton santos palestras para alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações,
com o projeto Música Negra em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”.
Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular Brasileira, o “Prêmio Sharp”, e Mano
i – os muros Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na Estrada”. No final
de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”,
Esse trabalho se faz a partir de considerações e pesquisas anteriores que vendeu mais de 500 mil cópias, sem contar os CDs piratas. No ano de 1998, lançaram
dois videoclipes “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano
vinculadas ao estudo do Rap dos Racionais MC’s,1 pretendemos pen- foram os vencedores do Vídeo Music Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios
“Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em 2003 lançaram o CD “Nada como
1 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais um dia depois de outro dia”. (Fonte: http://www.capao.com.br)
MC’s destacou-se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe 2 Cf. NASCIMENTO, Jorge. Exclusão & globalização, racismo & cultura: do RAP e outras poe-
Records, com os sucessos: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram sias. In: PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poe-
seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu cerca de 50 mil cópias. Nos anos 1990 sia e demandas sociais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.

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cultura. Tratando-se de um país periférico como o Brasil, em que desi- Desde quando – é a pergunta que me faço – a literatura serviu para melho-
gualdades sociais criam disparidades em formas de viver que atestam a rar a vida e/ou tirar alguém da marginalidade? Se serviu ou serve não é
literatura. Pode ser capoeira, RAP ou qualquer meleca do gênero que trate
diferenciação de vivências correspondentes à diversidade da população
de bumbos, cama elástica, axés e afoxés e, no final das contas, sirva como
do país, tais irregularidades definidoras dos campos culturais estão num pretexto para distrair o miserável da realidade em que vive. O nome disso
processo de adaptação dos novos modelos de veiculação de cultura e pode ser má-fé ou, para os inocentes e voluntários, assistência social, nada
informação. Assim, nossa luta cultural radicaliza os processos de incor- a ver com literatura. Outra coisa. Quem disse pro Mano Brown que ele faz
poração, distorção, resistência, negociação e recuperação. Sem nos aden- música? Será que não basta aguentar a cara feia desses sujeitos, andar de
ônibus com eles e ser assaltado na esquina da Faria Lima com a Rebouças?
trarmos nas discussões gerais, parece-nos totalmente pertinente afirmar Além disso tudo, ainda tenho que ouvir Rap e chamar de música?
que os critérios e procedimentos de absorção das culturas populares no
Brasil são violentos e agilíssimos. Sendo o próprio Rap uma manifes- O autor trata primeiramente da questão da chamada Literatura
tação cultural híbrida transnacional e que, além disso, faz parte de um marginal, mais especificamente de declarações e posturas do escritor
contexto maior, que é o movimento Hip hop, notamos que as formas e Ferréz (autor de Capão Pecado e Manual prático do ódio), que assina
fórmulas de englobar massiva e indistintamente suas formulações locais o Manifesto de Abertura da Revista Caros Amigos em seu primeiro
tentam diluir os essencialismos, por exemplo, nos clipes da MTV. Porém, número especial dedicado à Literatura Marginal, onde pode ser lido:
os Racionais e outros grupos e rappers teimam em manter uma distân- “Mas estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço
cia prudente dos processos de standartização a que formas artísticas para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eter-
populares são submetidas pela mídia em geral e pela televisiva em par- nizados. Neste primeiro ato, mostramos as várias faces da caneta que
ticular, ainda mais sabendo-se do poder desta última como formadora se manifesta na favela”. O seu primeiro romance foi também a primeira
de gostos e opiniões. publicação de uma pequena editora que resolveu investir nesse tipo de
Então, traremos argumentações distintas e a própria palavra do Rap, produção literária e houve a surpresa do livro ter feito relativo sucesso,
fundamentalmente através da análise de trechos de algumas “letras”. considerando-se o mercado editorial brasileiro.4 Notamos que os argu-
As citações serão utilizadas na tentativa de colocar o leitor a par dos mentos apresentados reiteram a distinção clássica entre alta e baixa lite-
caminhos que o aparecimento e crescimento do movimento Hip hop ratura que, no momento, não nos interessa aprofundar. Porém, podemos
engendraram nas análises e estudos de diversas ordens. Vamos iniciar acrescentar que o valor “literário” dado ou negado a tais obras é fruto da
estabelecendo alguns fatos veiculados pela mídia eletrônica e, a partir visão ilustrada, condicionada pelas leis que impõem barreiras qualitati-
deles, pretende-se intervir criticamente no processo. Para alcançarmos vas baseadas em conceitos crítico-academicistas eurocêntricos que per-
esse objetivo, tentar-se-á um diálogo intertextual que produza elemen- duram como divisores entre boa e má literatura. O que temos exemplifi-
tos que vinculem as observações à constatação da importância do tema cada é a argumentação baseada na típica doutrina de não interferência,
para análise de fenômenos estéticos, políticos e midiáticos concernentes preservando o estatuto da obra de arte, alicerçada no muro que julga as
à pluralidade significativa de discursos da contemporaneidade brasi- formas artísticas em geral, e literárias em particular, como advindas de
leira, embora sabendo das redes que vinculam o atual mundo globa-
lizado. Iniciamos com um fragmento do texto de Marcelo Mirisola,3 4 O editor João Eduardo Pedroso Oliveira, que trabalhou durante um ano como professor
em um presídio feminino de São Paulo, leu certo dia uma reportagem sobre um mora-
intitulado Churrasco do Bactéria: dor do Capão Redondo que contava sua história nesse violento bairro da capital, mas
não encontrava quem a publicasse. Decidiu: “Vou editar esse livro”. Foi assim que Capão
Pecado, de Ferréz, foi parar nas livrarias. Foi a primeira obra publicada pela Labortexto,
fundada em 2002, que já lançou dez títulos sobre temas ligados à carceragem e à opressão
3 Disponível em: http://noticias.aol.com.br/colunistas/marcelo_mirisola/2003/0012.adp. social. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u547.html.

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um conhecimento formal, temático, de forma de abordagem que não a esterilização das suas características críticas e da sua capacidade de ação
contemplam a escrita rústica que se quer voz de pessoas que não teriam política em favor de formas manipuladoras (publicitárias e propagandís-
ticas) de comunicação, como reação ao caráter potencialmente explosivo
condições de dizer-se. Sobre a questão do distanciamento contemporâ-
que vinha adquirindo a partir do momento da transformação do Estado
neo entre escritores e sociedade, diz-nos, José Saramago, concluindo um liberal em Estado democrático de massa, eliminando as restrições que o
artigo sintomaticamente intitulado “Os escritores perante o racismo” primeiro impunha à participação das camadas não proprietárias e não ins-
(1996, p. 81): truídas. Do meu ponto de vista, o que vivemos hoje é uma nova reestrutu-
ração da esfera pública, que retoma o caráter excludente e crítico da esfera
Não se pede que retomemos (se para tal não encontramos no nosso foro pública burguesa clássica, mantendo e aprofundando, para a maioria da
íntimo motivos nem razões) os caminhos de natureza sociológica, ideoló- população mundial, o paradigma da cultura de massa e do Estado nacio-
gica ou política que, com resultados estéticos variáveis, levaram ao que se nal. A Internet é o exemplo mais importante dessa tendência. Brindada
chamou literatura comprometida – mas que tenhamos a honestidade de inicialmente como uma estrutura revolucionária, não hierarquizada, de
reconhecer que os escritores, em sua grande maioria, deixaram eles pró- comunicação entre indivíduos livres e iguais, mostra-se claramente hoje
prios de comprometer-se, e que algumas das hábeis teorizações com que como um espaço formado por uma teia complexa e extremamente assi-
hoje nos envolvemos acabaram por constituir-se como escapatórias inte- métrica de atores, onde a capacidade de comunicação e de acesso à infor-
lectuais, modos mais ou menos brilhantes de disfarçar a má-consciência, mação relevante depende justamente daqueles elementos que no passado
o mal-estar de um grupo de pessoas – os escritores, precisamente – que, garantiam o acesso à esfera pública liberal: poder econômico (proprie-
depois de se terem proclamado a si mesmas como o farol do mundo, estão dade), político e conhecimento, nessa ordem de importância.
acrescentando agora, à escuridão do ato criador, as trevas da renúncia e da
abdicação cívicas. Se o Estado não globaliza oportunidades, a penetração dessas vozes
nas mídias tem a prerrogativa básica de criar linhas de comunicação
Mas retomando o texto de Mirisola, o problema que percebemos que, a princípio, lhes são negadas, e tal invasão cria embates que são
pode ser detectado através do cruzamento de duas frentes nas malhas reflexos de visões totalizadoras, conservadoras e exclusivistas. Se o Rap é
pós-modernas da contemporaneidade imediata da rede digital. De um distração para miseráveis, como está dito, é porque esses miseráveis não
lado temos um literato, do outro, uma incógnita, algo desconhecido que têm direito à distração nos moldes civilizados oitocentistas requeridos
penetra nos “ônibus” das cidades e das informações e se dá o direito de pelos que se arvoram a ser donos de verdades imutáveis. A ironia intran-
escrever e dialogar no espaço reservado da escrita e das ideias. sigente do fragmento, e inclusive as discussões provindas da circulação
Sem ilusões, movendo-se fluidamente no espaço da mídia, a “por- desse e outros textos pró e contra, por si só definem a invasão de que o
ta-voz do sistema” que é criticado, o Rap traz indagações que repercu- Rap nos fala. A existência dessa reação à possibilidade de inserção de
tem em críticas, mais ou menos sérias ou aprofundadas, que revelam o vozes díspares e desgabaritadas a participar da discussão, ainda que em
incômodo que as mensagens e atitudes desses “iletrados” podem trazer. condições altamente adversas, e a própria reação a estudos que tendem
Confirma-se aqui a desigualdade da correlação e legitimidade do jogo a pensar os fenômenos populares com um aprofundamento que os valo-
de forças dentro de um espaço “democrático” como a Internet, fato que rize, é prova de que essas vozes não poderiam mais estar silenciosas ou
se define como a configuração histórica da discriminação que atinge silenciadas. As palavras, como as ditas no romance Cidade de Deus,5 ou
os invasores do espaço tido como propriedade das classes dominan- seja, a palavra-bala, que assusta quase tanto quanto a presença dessas
tes e seus beneficiários. Tal processo é bem descrito por César Ricardo pessoas nos ônibus, é uma arma, vá lá que não seja literatura ou música,
Siqueira Bolaño (1999):
5 “A palavra nasce do pensamento, desprende-se dos lábios adquirindo alma nos ouvidos,
O surgimento da Indústria Cultural, na virada do século XIX, está ligado ao e às vezes essa magia sonora não salta à boca porque é engolida a seco. Massacrada com
que Habermas chama de “mudança estrutural da esfera pública”, ou seja, arroz e feijão a quase palavra é defecada em vez de falada. Falha a fala. Fala a bala” (LINS,
1997, p. 23).

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como as pensa o articulista. Mas nessa pós-modernidade de num mundo na mídia digital, também estão sendo invadidos. O que está em jogo é
já saturado de tantas turas, como diria Julio Cortázar, enquanto se per- estar num estado de igualdade, ainda que virtual, com vozes que não
petuam diferenciações categóricas entre seres humanos incompatíveis, estão preparadas para interagir num nível tido como aceitável ou produ-
há fios cruzados nas malhas das informações e do saber. cente, já que, em visões conservadoras, o conhecimento tem gradações
Saltando os muros, visíveis ou não, que separaram historicamente impermeáveis que não permitem que entes heterogêneos possam travar
pessoas em categorias de necessidades e que isolaram populações e um diálogo que venha a ser possibilitador de enriquecimento mútuo. O
mantiveram suas vozes abafadas, agora essas falas surgem. É claro que o que se está discutindo é o direito a ambientar-se num sistema de trocas
tom e o som de suas palavras não são agradáveis melodias e harmonias que não obedece à lógica da hierarquia de saberes e heranças culturais,
perfeitas do mundo idealizado por aqueles que se sentem incomodados. ou seja, uma lógica territorial discriminatória. Trazemos à discussão
Ou seja, concluímos que, mesmo no espaço da grande rede, há ainda a as observações de Milton Santos (O espaço do cidadão), que nos reve-
tentativa de que territórios específicos sejam ocupados por aqueles que lam como a proximidade de diferenças num mesmo lugar – na acepção
historicamente ocuparam os melhores lugares, nas melhores escolas, e ampla do termo – trazem à tona preconceitos latentes e discriminação
que agora se sentem vilipendiados em seu direito adquirido ao conheci- mais ou menos camuflada nos discursos e práticas sociais:
mento e às opiniões e à manutenção do status de formadores de opinião.
A semelhança sugere proximidade de territórios e de corpos, daí implicar-
Sabe-se o quanto as formas de segregação e/ou separação qualitativa das se sempre o racismo uma desterritorialização – do Mesmo ou do Outro.
“culturas” são, também, práticas de discriminação, mas aqui haverá uma Abandonando o seu lugar predeterminado, o Outro (o migrante, o dife-
força de reação que vai se expandir e criar elos interessantes dentro da rente, o negro) é conotado como o intruso que ameaça dividir o lugar do
própria dinâmica dos meios de comunicação digitais. O fragmento a Mesmo hegemônico. O Outro é aquele que supostamente “não conhece
o seu lugar” – assim se expressa o senso comum discriminatório –, isto é,
seguir pode justificar o processo do qual falamos:
aproxima-se demais, rompendo com a separação dos lugares em todas as
Na construção de um imaginário social coletivo, a partir de um código configurações possíveis (ego, corpo, vizinhança, etc.) e deste modo cons-
excludente, definiu-se o Brasil como portador de uma cultura superior ou purcando a pureza pressuposta de uma hierarquia territorial. (Santos,
“correta” de raízes aristocráticas, calcada em exemplos de países europeus. 1993, p. 262)
As demais são chamadas, com “naturalidade”, de cultura de massas, e são
colocadas simplesmente em oposição à “cultura superior”. São culturas Continuando a explanação, buscamos outro texto que se enquadra
definidas como vulgares, inferiores, popularescas, acientíficas etc., e que no campo dos discursos detratores do Rap. Esse texto, intitulado “Racis-
constituem a própria realização de 80% da população brasileira, a partir tas, irracionais e inconsequentes”, escrito por Álvaro R. Veloso de Car-
de uma outra ordem grupal, e que, mesmo sem consentimento, interferem
valho,6 circulou pela rede em 1999, como resposta a um outro texto de
no cotidiano da cultura de elite. (Leite, 1992, p. 102)
Hermano Vianna (1999), intitulado “Rappers brasileiros fazem crítica
O que temos explicitado nesse embate, entre outras formas de con- da desigualdade e redefinem as relações raciais”, publicado no jornal
servadorismo e exclusão, é a marcação de território, forma de discrimi- Folha de S. Paulo e que tinha como dado fundamental de sua argumen-
nação causada pela presença de outros que, participando de um lugar tação a experiência de assistir a um show dos Racionais. Vamos ao tre-
próximo, se tornam semelhantes. É a reação ao fato de se ter de aturar cho do texto de Carvalho que nos interessa:
a proximidade e a igualdade transitória desse outro com o qual se tem Hermano é estudioso daquilo que ele chama de “movimentos de perife-
que conviver. A imagem do ônibus que tem de ser compartilhado é sin- ria”: coisas como funk, Rap, etc. Ele, claro, nunca julga seus objetos: se há
tomática, e o que subjaz a essa imagem é o seguinte: já sou obrigado a
dividir espaços públicos, agora os espaços “privados”, áreas demarcadas, 6 Disponível em: <http://oindividuo.com/avelloso/idiotas/vianna.htm>.

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uma violência irracional nos bailes funk, não importa; para o antropólogo, interesses outros e que “fazem” a cabeça desses jovens pobres que, por
tudo são apenas manifestações culturais. Se os autores dos Raps pregam não possuírem opiniões próprias, são utilizados como parte integrante
a violência, também não importa: eles estão se manifestando. Em suma:
de um corpus que integra os meios pelos quais esses intelectuais formam
para ele e para seus colegas de profissão, não importa propriamente o que
você diz. Ele está proibido de julgar. Ele cortou a própria razão, cortou o seu discurso:
próprio senso moral – tudo isso para se tornar um antropólogo e aparecer
na Folha de S. Paulo. Que não pensem que estou culpando os Racionais: eles nada fazem a não
ser repetir os estereótipos que os intelectuais de esquerda lhes ensinaram.
Eles nada são além de massa de manobra, nas mãos de gananciosos líderes
Não se pretende aprofundar no conteúdo do texto de Vianna, nem
políticos. Alguns desses líderes políticos e intelectuais estão sinceramente
da “resposta” do colunista, o importante são os argumentos utilizados. convictos de que vão restaurar a cultura africana (coisa que não existe,
E se nos alongamos no espaço dado às afirmações contidas no artigo é porque a África nunca teve unidade cultural) etc., e às vezes são até críticos
para, a partir delas e da confrontação com argumentos de Muniz Sodré, da globalização. O que significa que estamos diante de mais um caso de
somarmos a poesia dos Racionais para promover uma análise do peso cegos guiando cegos, como diz o Evangelho. Tudo isso é um espetáculo de
inconsciência difícil de acreditar, eu sei, mas é o panorama exato dos inte-
das referências e a contraposição de ideias que revelam a abrangência lectuais anti-racistas. Eles não estão trabalhando a favor dos negros – estão
da discussão a partir das próprias sagas épicas descritas pelos poetas trabalhando contra o Brasil. (CARVALHO, 1999)
periféricos. Continuamos:
No texto de Carvalho, os argumentos antirracistas e nacionalistas
(...) Só que o negro brasileiro não tem a mesma história do negro ame- são postos como a tônica da desvalorização da admiração “inconse-
ricano. Aqui, depois da abolição da escravidão, nunca houve leis racis-
tas, nunca houve Ku Klux Klan, nunca houve perseguição sistemática de quente” de um antropólogo por mensagens provindas de “movimen-
negros. Houve segregação? Sim, houve, mas o critério não foi racial: os tos de periferia” que trazem em seu interior discursos e pregação de
pobres foram segregados e marginalizados – e, mais uma vez, não por práticas racistas de base norte-americana. Segundo o texto, tal apoio
escolha deliberada de ninguém, mas por fatores econômicos. Nunca a esses discursos e práticas tem por finalidade última a instituição de
houve uma “conspiração racista” em nosso país. E nós não somos um país
uma agenda globalizada de reivindicações, daí a perda de característi-
de maioria negra, como dizem esses imbecis que se intitulam Racionais.
Somos um país de maioria mestiça. Mestiço quer dizer fruto da mistura cas nacionais, tanto pela importação do movimento Hip hop quanto
sexual de brancos e negros – isto é, fruto da falta de racismo, porque ninguém pelo acolhimento, por parte do discurso do Rap, de formas de apro-
mantém relações sexuais com aquele a quem odeia. Dizer, a essa altura do priação do enfrentamento racial típico dos EUA. Mas, por outro lado,
campeonato, que os mestiços são negros equivale a importar as categorias o discurso também se desmascara, já que, não apresentando alterna-
racistas que os americanos usam para segmentar e dividir a sua sociedade:
lá, quem quer que tenha um pingo de sangue negro é automaticamente tivas e ignorando as diversas bases que produziram tal movimento, o
considerado negro – e a mestiçagem é extremamente rara. Foi precisa- vê apenas como um panfleto de incitação à guerra racial. O velho dis-
mente porque aqui houve mestiçagem, porque a maioria de nós é mestiço curso da democracia racial brasileira é uma resposta anacrônica a essas
e, portanto, de raça indefinível, que os conceitos de “branco” e “negro” vozes não cordiais que ganhavam grande projeção nacional na virada
deixaram de se aplicar com propriedade ao Brasil. Falo por mim: nos EUA,
do milênio. Mais uma vez, o que se comprova é a falta de conhecimento
eu certamente seria considerado “latino” ou “negro”; aqui, ninguém nunca
quis saber minha cor. (...) (CARVALHO, 1999, grifo nosso) de um fenômeno que é muito mais complexo do que sua primeira ima-
gem de bandeiras antirracistas construídas através da confrontação e
Muito interessante, também, é a parte do texto que “exime de culpa” do separatismo.
os Racionais, que são interpretados como típicos exemplares de “ino- O argumento do articulista serve-nos fundamentalmente como
centes úteis”, massa de manobra nas mãos de intelectuais que possuem exemplo da internalização das práticas autoritárias do racismo

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anti-ideológico brasileiro do qual nos fala Roberto DaMatta.7 Sobre o tempo ruge – Eu sou uma fera, sou leão, sou demais pro seu quintal,
esse tipo de discurso, tido como uma verdade irrefutável na construção avisa um Rap. Apropriando-se de meios de produção de bens culturais
da “raça brasileira”, sabemos ser historicamente manipulado com fins de diversos, esses atores sociais periféricos invadem a cena e tentam dar
manutenção de lugares específicos na base da pirâmide social. E sobre respostas a perguntas que podem ser concentradas nesta, do geógrafo
a supervalorização do dado pseudoafetivo das relações inter-raciais que Milton Santos (2000):
perpetuam, pelo ocultamento e escamoteação, as raízes dos processos
Por enquanto, para o ministro da Educação, basta que continuem a fre-
de discriminação e racismo brasileiros, esclarece-nos o professor Muniz qüentar as piores escolas e, para o ministro da Justiça, é suficiente manter
Sodré (Sodré, 2000, p. 262): reservas negras como se criam reservas indígenas. A questão não é tratada
eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório retórico e
É pela presença de impulsos de proximidade entre claros e escuros que o os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política conseqüente. Ou os
Brasil tornou-se conhecido no exterior como uma espécie de “laborató- negros deverão esperar mais outro século para obter o direito a uma par-
rio de mistura racial”. Grande parte do interesse despertado pela obra de ticipação plena na vida nacional?
Gilberto Freyre reside no fato de ter ele percebido e especulado sobre a
dimensão afetiva (amores e torturas) que regia as relações entre senhores
E não se pode esperar que as reivindicações venham como pedidos
e escravos. Mas é preciso ressalvar que a aproximação sexual – em geral
supervalorizada a partir de estereótipos de potência viril, de sensuali- lamentosos de negro fujão, o que ocorre é a exigência dos espaços em
dade “natural” ou de viscosas fantasias eróticas – é apenas um aspecto da todas as esferas da sociedade: do social ao cultural, do político ao retó-
dimensão afetiva. rico, do ético ao artístico. As palavras do Rap e da chamada Literatura
Marginal vêm acompanhadas da performática cara feia e a expressão
Hoje, quando a aproximação entre atores da vida social brasileira fechada de uma voz já desprovida da cultura da servidão. Logicamente,
se faz presente e irrefutável a partir da ocupação de espaços reservados não podemos cair no engodo do purismo que pensa os movimen-
por vozes e personalidades que foram historicamente designadas a per- tos populares como manifestações isentas de males ou vícios. Embora
manecerem em lugares sociais e simbólicos predeterminados, surge a excluídos, os portadores dessas mensagens e práticas reivindicatórias
reação. Envolvendo argumentações distintas, que passam comumente são seres do seu tempo, é dizer, do nosso tempo, tempo das redes multi-
pela crítica à negatividade da pregação feroz de questões raciais não nacionais de comunicação e do vitorioso discurso da mídia e do consu-
solucionadas pela sociedade brasileira, a herança elitista discriminató- mismo desenfreado.
ria ressurge como aparato de contenção, demarcando espaços. Só que Sobre a argumentação da mestiçagem como prova da ausência de
7 “Como observa Roberto DaMatta, o racismo brasileiro vem de fontes eruditas que, por racismo no Brasil, e de que o pecado fundamental dos Racionais é a
sua vez, provinham das teorias evolucionistas de s. XVII, e toma forma acabada no s. XIX cópia de modelos americanizados do tratamento da situação, é lógico
como instrumento do imperialismo e como uma justificativa ‘natural’ para a supremacia
dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo [...] Gobineau colocava a tese que tal influência existiu e perdura no movimento, como também esta-
de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mes- mos americanizados em tantas outras formas, que, não por acaso, não
tiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, negros e índios. As teorias
raciais e racistas sempre buscaram apoio nos discursos e práticas legais, religiosas e cien-
incomodam os porta-vozes desse tipo de avaliação. Sobre tais argumen-
tíficas. Porém, no Brasil, diferentemente dos EUA, a hierarquização legalista ibérica, à qual tos é taxativo Milton Santos (2000):
nos referimos, funciona como no esquema discutido por Foucault, em que há exclusão
dentro do próprio sistema social. A particularidade do racismo brasileiro – que se nega Pode-se dizer, como fazem os que se deliciam com jogos de palavras, que
internamente, anti-ideológico – nos traz a figura simbólica da mulatização, que se desfaz aqui não há racismo (à moda sul-africana ou americana) ou preconceito
na exclusão. A ideologia social do racismo brasileiro se renova na crise contemporânea, ou discriminação, mas não se pode esconder que há diferenças sociais e
clímax e acúmulo de mais uma: a impossibilidade de modernização neoliberal em con-
fronto com representações sociais tênues, característica de uma sociedade heterogênea e
econômicas estruturais e seculares, para as quais não se buscam remédios.
centralizadora de riqueza” (NASCIMENTO, 2010). A naturalidade com que os responsáveis encaram tais situações é inde-

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cente, mas raramente é adjetivada dessa maneira. Trata-se, na realidade, E aqui utilizamos o termo alienação no sentido dado por Àgnes Hel-
de uma forma do apartheid à brasileira, contra a qual é urgente reagir se ler,9 quando discute tal processo em conformação com a cotidianidade
realmente desejamos integrar a sociedade brasileira de modo que, num
urbana, porém o fazemos pensando na realidade desprovida de direitos
futuro próximo, ser negro no Brasil seja, também, ser plenamente brasi-
leiro no Brasil. básicos que impõe uma cotidianidade de guerra no espaço que deveria
ser o lugar de cidadãos, já que seu território é marcado por diversos
tipos de processos alienantes e que, além das formas conhecidas da alie-
ii – os lugares
nação urbana, é marcado por formas específicas da marginalização e
No Rap dos Racionais MC’s, a valorização e o processo de dar visibili- guetização do espaço e das relações comunitárias e interpessoais.
dade e caráter à periferia são um processo ambíguo e, às vezes, anta- Fora do mercado enquanto consumidor, discriminado enquanto
gônico. Várias são as marcas que vão definir o Mano, opondo-o ao ser humano, marginalizado como cidadão. O que restaria aos pobres e
playboy, ao gambé,8 ao ganso, etc. A própria linguagem cifrada, repleta pretos retratados na épica dos Racionais? Recorremos a um Rap Vida
de gírias, com incorreções gramaticais, um dialeto, como está dito na Loka – parte II. No videoclipe, que excede à própria letra do Rap, temos
canção Negro drama – No meio de vocês ele é o mais esperto/ Ginga e fala o exemplo do tênis como ícone máximo da ideia do objeto fetichizado
gíria / Gíria, não, dialeto –, será uma forma afirmativa da cultura des- como símbolo de um poder. Ora, se quando se compra uma roupa de
ses territórios excluídos dos mapas do lado bom das cidades As gírias grife, compra-se uma ilusão de um modo de vida, de ser, de aparecer
autoprotetoras revestem-se de outras possibilidades, já que são parte de para o outro, algo que poderia parecer irrelevante num outro grupo
uma formação discursivo-poética que define categorias aparentemente social aparece como objeto do desejo de seres tão carentes de bens
invisíveis ou imperceptíveis aos olhos e ouvidos da classe média acuada materiais. Os excluídos vão se utilizar de várias formas para possuí-los,
em carros fechados, em condomínios blindados ante a ameaça que vem os adolescentes pobres aparecem, dessa forma, como estigmatizados
das ruas e guetos. ladrões em potencial, sendo os tênis um dos produtos mais cobiçados. O
Trabalhar com uma realidade, por definição, alienada e alienante, que repercute na cisão e na impossibilidade de relação entre esses jovens
repleta de sonhos frustrados de consumo, desagregação familiar, cri- que, muitas vezes, são obrigados a ocupar espaços territoriais comuns.
minalidade infantil, violências potencializadas de todas as formas, Tal situação conflituosa contribui, em muito, para os preconceitos por
poder do tráfico de drogas, corrupção policial, promessas vãs de polí- parte dos organismos de repressão e de proteção patrimonial. Dessa
ticos profissionais etc. é uma forma de busca de compreensão, análise forma, o jovem pobre é malvisto por comerciantes, por outros jovens de
e procura de rotas de fuga dos existenciais becos sem saídas que são a classe média e pelos sistemas de proteção das cidades (policiais, adultos,
vida de muitos jovens que habitam esses territórios minados. E se nos seguranças de centros comerciais etc). Porém, em Vida Loka ocorre a
referimos especificamente aos jovens, é porque eles são os principais reversão desse quadro operada pelo direito ao consumo obtido pelos
decodificadores das palavras cantadas pelos rappers: cronistas sem isen- rappers bem-sucedidos, mas que ainda sofrem consequências do pro-
ção das frustrantes sagas épicas desprovidas de grandiosidade que são cesso de estigmatização. No clipe da música há uma cena, ambientada
as curtas carreiras dos jovens que ocupam grotescamente as primeiras em 1983, em que meninos são inferiorizados por adolescentes que pos-
páginas dos Notícias Populares espalhados pelo Brasil. Assim, esse dis-
9 “A vida cotidiana, de todas as esferas da realidade, é aquela que mais se presta à alienação.
curso busca a desalienação, já que a alienação é marca fundamental a [...] Na cotidianidade, parece ‘natural’ a desagregação, a separação de ser e essência. Na
que os moradores de periferias e favelas estão intimamente submetidos. coexistência e sucessão heterogêneas das atividades cotidianas não há por que revelar-
se nenhuma individualidade unitária; o homem devorado por e em seus ‘papéis’ pode
orientar-se na cotidianidade através do simples cumprimento adequado desses ‘papéis’”
8 Aqui, referindo-se a policiais e informantes da polícia. (HELLER, 1989).

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suem uma certa marca de tênis. Depois, num salto temporal, o clipe vai um Rap também dividido em duas partes, nos sete primeiros versos,
para 2004, no mesmo bairro. Agora, os meninos pobres, que andavam há a constatação da realidade, no primeiro já uma alusão à promessa
sujos e não possuíam o tal tênis, que foram expulsos da loja só por que- da vinda de Jesus, o messianismo não é dado como solução, já que a
rerem chegar perto do produto, são artistas, profissionais liberais que presença do mal, personalizada pelo diabo, está evidenciada. O discurso
possuem condições de adquirir bens de consumo. Então, acontece um colonial é desmentido pela realidade que impera no Brasil em geral e na
certo deslumbramento com o poder do dinheiro, que é compreensivel- periferia em particular:
mente visto como uma atitude, se não desejável, legítima:
Jesus está por vir mas o diabo já está aqui...
Miséria traz tristeza e vice-versa 500 anos o Brasil é uma vergonha
Inconscientemente, vem na minha mente Polícia fuma pedra, moleque fuma maconha
Inteira, uma loja de tênis, o olhar do parceiro Dona cegonha entrega mais uma princesa
Feliz de poder comprar o azul, o vermelho Mais uma boca com certeza que vem à mesa
O balcão, o espelho, o estoque, a modelo Onde cabe um... dois... cabe 3
A dificuldade entra em cena outra vez
Porém, adiante, há a crítica deixada no complemento da mensa-
gem, já que o dinheiro, segundo a letra, é uma puta que abre as portas / A partir do aparecimento da princesa, de uma criança que nasce,
dos castelos de areia que quiser. O que se nota, então, é a consciência de iniciam-se as dificuldades. Assim como em Expresso da meia-noite, em
que as tais portas abertas pelo dinheiro dão acesso a “castelos de areia”, que há referência aos problemas relativos às condições de sobrevivência
ou seja, construções efêmeras de uma satisfação pessoal que não resolve (quinze anos de idade e já fez aborto), evidenciam-se problemas de pais
um problema que, por ser coletivo e, fundamentalmente, afetar a uma jovens que têm de atingir formas de conseguir o sustento, agora não só
categoria específica – os manos – não contribui em nada para o cresci- para si, mas para um outro dependente. Nos versos seguintes, o Rap
mento coletivo. começa a fazer comparações entre esse mundo e o “outro lado”, lá, onde
esse jovem tem de buscar tudo o que lhe foi negado. Adiante poderemos
notar o caráter hiperbólico dos objetos desejados, o que nos dá uma
iii – pulando os muros
mostra da idealização de modelos de consumo que não correspondem
Entramos numa outra temática, consequência e complementação da à realidade da grande maioria da população brasileira. O importante,
anterior, a da apropriação indébita de bens alheios. Agora falamos do nesse Rap, é que, embora o tema seja recorrente, há uma visão histó-
ladrão sem eufemismo, estamos falando do que irá se apoderar do alheio rica que mostra as causas de tal estado de inviabilidade de convivência
como tentativa frustrada de assunção de uma vida que lhe foi negada social entre os dois lados. Assim, é mostrado o “outro”, o playboy, que é
real, simbólica e historicamente. Vamos falar de um Rap relativamente a vítima atual de ações passadas, uma lei de cobrança histórica politica-
pequeno se comparado aos demais, trata-se de Otus 500, que em seu
título já brinca com a referência “erudita” – o pseudolatim, para falar nos parece, sem resultado satisfatório. Um registro de Câmara Cascudo parece esclarecer
melhor a história desses outros quinhentos: “A partir do séc. XIII os fidalgos de linhagem
dos quinhentos anos do processo de exclusão social no Brasil, além de na Península Ibérica podiam requerer satisfação de qualquer injúria, sendo condenado o
ser a apropriação da expressão popular outros quinhentos.10 Aqui temos agressor em 500 soldos. Quem não pertencesse a essa hierarquia alcançava apenas 300.
Compreende-se que outra qualquer vilta, vitupério sem razão, posterior à multa cobrada,
não seria incluída na primeira. Matéria para novo julgamento. Outra culpa. Outro dever.
10 São Outros Quinhentos! Frei Domingos Vieira, em seu Tesouro da Língua Portuguesa, Seriam, evidentemente, outros quinhentos soldos”. A frase é antiga em português e
edição de 1874, esclarece que “Isto são outros quinhentos! Quer dizer que alguém pro- encontrada com frequência desde Camões. Em castelhano, desde Cervantes até os nossos
nunciou novo disparate afora os que havia soltado.” Magalhães Jr. tenta relacioná-la à dias tem uso frequente também. (Disponível em: www.filologia.org.br/pereira/ textos/
frase inglesa that is another story e com a francesa c’est un autre paire de manches, ao que aorigemdasfrases2.htm.)

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mente incorretíssima. Assim, as imagens remanescentes de uma ordem Na sala de estar assistindo a um dvd
senhorial são substituídas pelo confronto social contemporâneo, já que Com sua esposa de refém esperando você
as relações estão sendo desfeitas a partir do encontro violento entre os
E quais seriam os projetos desse invasor? Movido por quais desejos
dois mundos, as duas cidades. A explicitação do passado, através do
ele quer adentrar-se em uma realidade que, historicamente, pertence à
vocábulo senzala, remete a uma vingança de erros cometidos por ances-
minoria das pessoas desse país? É o desejo pontual de posse, não há pro-
trais, ou seja, o estado atual de violência e insegurança, também para os
jeto a longo prazo, a ideia é a utópica apropriação de um estilo de vida
poderosos, é o reverso da moeda:
impossível, quer a mudança de vida, não apenas ter o que o outro tem,
Enquanto isso playboy forgado anda assustado mas ser o outro que não se é:
Deve tá pagando algum erro do passado
Assalto .. sequestro é só o começo Quer sair do compensado e ir pra uma mansão
A senzala avisou, Mauricinho hoje paga o preço Com piscina digna de um patrão
Sem adereço, desconto ou perdão Com vários cão de guarda... rottweiler
Quem tem vida decente não precisa usar oitão E dama socialite de favela estilo galle
Quer jantar com cristal e talheres de prata
Então vem o aviso para o doutor, a partir da referência do filme Comprar 20 pares de sapato e gravata
Titanic, instaura-se a metáfora que indica a falência da formulação Possuir igual você tem um Foker 100
social discriminatória imperante na sociedade brasileira, é o naufrágio Ter também na garagem 2 Mercedes-benz
de qualquer possibilidade de reparação por meios legais ou políticos, Voar de helicóptero à beira mar
Armani e Hugo Boss no guarda-roupa pra variar
é a subversão da cidadania por aqueles que nunca foram considerados Presentear a mulher com brilhantes
como cidadãos. A partir da posse dos instrumentos violentos de subver- Dar gargantilha 18 pra amante
são da ordem “natural”, há a inversão de papéis, a caça se torna o preda- Como agravante a ostentação
dor que busca por meios ilegais, tudo que lhe foi negado historicamente: O que ele sonha até então tá na sua mão

É doutor, seu Titanic afundou Aquele que ostenta tanta riqueza, agravante para o olhar faminto de
Quem ontem era a caça quem nada possui, é a vítima potencial da tentativa de apropriação exis-
Hoje, pá, é o predador
Que cansou de ser ingênuo, humilde e pacato tencial. Então, ironicamente, o Rap termina com a mutação, os termos
Empapuçou, virou bandido e não deixa barato utilizados nos últimos versos demonstram a ironia presente na letra:

O aviso para as classes altas é dado. Cuidado: suas propriedades De desempregado a homem de negócio
Pulou o muro já era
podem, violentamente, estar passando para as mãos dos herdeiros do
Agora é o novo sócio...
infortúnio. Sair da periferia e ir buscar quer dizer sair para retirar tudo
que se pode, através de sequestros e assaltos. Ao recobrir o crime comum Ou seja, a única maneira de entrar em sociedade com um rico seria
de uma áurea de justiça histórica, o discurso dos Racionais é o da radi- a troca efetuada através de assaltos, roubos e sequestros: a mudança de
calidade que brota pela tentativa de ver através do outro lado, através do status – de desempregado a homem de negócios – se dá através da invasão
foco do olhar daqueles que sempre estiveram do lado de fora dos muros do espaço do outro, como um cobrador que não sabe de quem são as
das terras das benesses do consumo: contas a serem pagas, só reconhece que elas são muitas. A imagem é
Se atacou e foi pra rua buscar simples, como se assim fosse, é só pular o muro. Quais os muros que
Confere se não tá abrindo o seu frigobar devem ser pulados para a aquisição de tantos bens? Muros históricos

360 361
que, cada vez mais seguros e protegidos, separam os que têm dos que Carvalho, A.R.V. Racistas, irracionais e inconseqüentes. Disponível em: http://
não têm. É interessante reparar, nesse e em outros Raps, as inúmeras oindividuo.com/avelloso/idiotas/vianna.htm.
referências a produtos, à marca de produtos, a esses indicadores aparen- CHIAPPINI, L. Multiculturalismo e identidade nacional. Revista Cult, n. 46, jun.
2001.
tes de status e condição social. E, mais assustador, é que esses invasores,
FRY, P. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África
hoje já não se contentam apenas com tênis Nike, querem muito, querem
Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
além, como diz uma letra: eu quero até sua alma... Ou num outro Rap,
GILROY, P. O atlântico negro. São Paulo: Ed. 34 / Rio de Janeiro: Universidade
onde se diz que não deseja mais só um tênis Nike, mas um apartamento Cândido Mendes – Centro de Estudos Asiáticos, 2001.
triplex pra mãe.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG /
Se por um lado temos as tentativas de políticas de reparação, as Brasília: Representação da UNESCO, 2003.
políticas compensatórias oficiais, o discurso dos Racionais vem nos falar ______. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
das tentativas frustrantes de práticas de expropriação dos bens acumula- HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. Trad. Car-
dos e guardados do outro lado dos muros que separam gentes e mundos; los N. Coutinho e Leandro Konder.
casas e bairros; cidades e cidadãos. JANOTTI JR, J. À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical
Por outro lado, a mensagem positiva e pedagógica do Rap é uma para a análise da música popular massiva. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro,
mensagem que busca alertar os Manos e as Minas da tentação do Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação/
UFRJ, vol. 6, n. 2, 2003.
dinheiro fácil; que prega a autovalorização individual e racial dos pretos/
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pobres; que critica, através de crônicas poéticas, os ideais consumistas
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implantados pelo tal “sistema”. Assim sendo, híbrido por contingên-
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cias históricas e sociais, o discurso dessas vozes periféricas penetra no
apresentado durante o evento Debatepapo. Vitória: UFES, 2005.
mundo da informação e da cultura, superando barreiras e redefinindo
LEITE, L.C.O. Desviolado. In: ECO: Publicação da Pós-graduação em Comunica-
formas de exteriorização estética de vozes que não soam “cordiais” aos ção da UFRJ, n. 4. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
ouvidos anestesiados pelos meios de comunicação de massa, vozes que LINS, P. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
sobrevivem margeando as bordas das linguagens e da arte, ou seja, osci- NASCIMENTO, J. Globalizações, localidades e periferias: notas sobre o pop pobre
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Diversos movimentos sociais renovados têm considerado e reivindicam


o papel dos índios como fator de transformação, exigindo a reformu-
lação plena de todos os aspectos da vida nacional, como a legislação,
a educação e os meios de comunicação. Nesse processo de desenvolvi-
mento das ideias pluralistas, a partir dos anos de 1970, houve, também,
o florescimento de um pensamento indígena independente.
Desde a crise do indigenismo, diversos movimentos têm surgido
reivindicando o pluralismo, ou seja, a pluralidade de culturas. Podemos
constatar isso, por exemplo, na Declaração de Barbados, feita em 1971,
durante um simpósio que discutiu a fricção interétnica na América do
Sul não andina. Em 1978 é elaborada a Segunda Declaração de Barbados
que enfatizava o papel dos movimentos de liberação indígena na Amé-
rica Latina. A ideia de pluralidade se desenvolve neste contexto. No caso
do México, a noção de pluralidade está associada à ideia de reconheci-
mento e aceitação do fato de que o Estado mexicano é um país “mais
índio que mestiço” e ao reconhecimento de que as políticas nacionalis-
tas anteriores tinham “negado a existência dos povos e culturas mesoa-

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mericanas”. No México, a partir das políticas educacionais associadas à categorias de análise, ao substituir conceitos como socialismo, luta de
política indigenista, houve o surgimento do intelectual índio. Surgiram, classes e ditadura do proletariado por democracia, justiça e liberdade
também, no decorrer das últimas quatro décadas, diversas organizações (Le Bot, 1997, p. 47-52). O zapatismo alicerça as suas reivindicações num
indígenas. É neste contexto que surge o zapatismo. eixo triplo: o movimento faz exigências políticas, geralmente referidas
O zapatismo se desenvolveu em setores da população indígena que à questão da democracia; exigências éticas, geralmente relacionadas à
tinham rompido com a tradição e tentavam construir novos laços, prin- justiça e reivindica a afirmação de um novo sujeito, relacionando-o às
cipalmente as jovens gerações. A região de Chiapas já passava por um questões da liberdade, da autonomia e da dignidade.
processo contínuo de politização. Há também uma história secular de O modelo insurrecional zapatista teve uma forte influência comu-
insurreições e levantes em Chiapas. A resistência se expressou de diver- nitária indígena que prevaleceu sobre o vanguardismo leninista ou gue-
sas maneiras. Nos anos de 1970, por exemplo, houve a realização em San varista. O movimento adquiriu sua especificidade porque conseguiu
Cristóbal do Primeiro Congresso dos Povos Indígenas. Nele se reuni- romper com o discurso etnocêntrico bastante comum quando se tra-
ram as diversas etnias que vivem em Chiapas, destacadamente os choles, tava da luta armada e da vanguarda revolucionária. Um dos seus mais
tojolabales, tzotziles e tzeltales. Não podemos esquecer também o papel importantes líderes, o subcomandante Marcos1 usa uma metáfora bas-
do trabalho pastoral da Igreja Católica e das Associações Rurais inde- tante reveladora. Marcos pede para se tirar o estanho dos espelhos, ou
pendentes. No final dos anos de 1960, a teologia da libertação modificou pede para se quebrar o vidro para passar para o outro lado. Ora, se o
profundamente a ação pastoral na região. Houve uma grande indianiza- discurso colonizador é etnocêntrico e especular, Marcos, como repre-
ção da Igreja Católica e os catequistas passam a escutar mais as comuni- sentante de um grupo que foi para a selva no intuito de construir uma
dades e reconhecer a importância das práticas comunitárias, assumindo guerrilha revolucionária, mais do que um dos seus chefes militares, seria
um papel muito importante como líderes sociais e políticos. O governo o intérprete ou o porta-voz dos índios revoltados. Marcos atravessou o
mexicano se preocupava com a atuação do clero progressista na região, espelho e descobriu o “Outro” (Le Bot, 1997, p. 14-15). Marcos resolveu
em especial do bispo de San Cristóbal de las Casas, dom Samuel Ruiz, ouvir o que os índios diziam e também o que não diziam, ou seja, o seu
defensor dos índios em Chiapas. Dentre as consequências do restabe- silêncio. Ele não quis se transformar em um índio, ele se tornou uma
lecimento de relações com o Vaticano no governo de Salinas estava o janela, uma ponte entre dois mundos.
apoio do Vaticano para afastar este clero progressista. Em troca, houve Se fizermos uma análise das tentativas revolucionárias que ocor-
a devolução parcial dos bens da Igreja confiscados na revolução de 1910 reram na América Latina, podemos talvez afirmar que, com exceção
e o fim das restrições ao ensino religioso e às manifestações públicas de da Revolução Cubana em seus momentos iniciais, as vanguardas tra-
fé. Não podemos esquecer que durante o governo de Salinas João Paulo dicionais de esquerda não conseguiram avançar na luta de resistên-
II visitou duas vezes o México (Fuser, 1997, p. 35). cia porque ao postularem que a “massa” estava alienada, deixaram
O Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) se definiu de escutá-la. Neste sentido, certamente, a política zapatista tem sido
enquanto guerrilha revolucionária, todavia elaborou novos objetivos extremamente inovadora, uma vez que as iniciativas práticas tomadas
estratégicos. Podemos dizer que o EZLN articulou uma metamorfose da
luta armada. O zapatismo reconheceu o seu parentesco com os movi-
mentos de libertação anteriores como os de Cuba e Nicarágua, mas 1 O governo de Ernesto Zedillo afirmou ter descoberto a identidade do subcomandante
possui um forte componente de originalidade. Se utiliza, por um lado, Marcos. Ele seria Rafael Sebastián Guillén Vicente e teria, naquela ocasião, 37 anos. Nasceu
em Tampico, no estado de Tamaulipas em 19 de junho de 1957, filho de dono de uma loja
símbolos de movimentos revolucionários latino-americanos como as de móveis, de uma família de classe média e formado em filosofia na UNAM. Teria morado
cores vermelho e negro, por outro, o movimento operacionaliza outras alguns anos na Nicarágua, onde trabalhou com os sandinistas (FUSER, 1995, p. 181).

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nos municípios autônomos demonstram que os indígenas têm voz e regiões autônomas não é o único e nem pode ser generalizado a todas
protagonizam o movimento. as realidades. Por isso afirmam que querem um mundo onde caibam
John Holloway criticou em um de seus últimos livros “Tomar o muitos mundos.
mundo, sem tomar o poder” o discurso revolucionário sessentista que Suas reivindicações e exigências éticas demonstram que o zapa-
colocou no partido, o sujeito guia, o organizador da mudança. Segundo tismo rechaça uma visão do político que considera o espaço da política
ele, alguns pontos críticos desta visão seriam a vontade de pretender como um lugar especial dentro do Estado, onde o que é bom é aquilo
transformar a sociedade através do Estado e colocar no partido a solu- que resulta eficaz para a manutenção do poder, custe o que custar. Nesta
ção do problema da revolução. Ou seja, Holloway aponta o que para ele visão, já anunciada por Maquiavel e sistematizada por Max Weber, a
seriam as inconsistências de um discurso socialista que foi dominante ação política careceria de sentido moral. O zapatismo critica esta visão
no pensamento da esquerda do século XX. Para ele não se pode preten- da política como uma esfera especial, monopolizada por um grupo de
der transformar a sociedade através do Estado, por ser esta estrutura profissionais, fora do controle social e alheia aos anseios da sociedade
uma forma política própria da sociedade capitalista que se quer trans- civil, somente se voltando para ela nos momentos eleitorais, num qua-
formar. O autor faz então diversas perguntas: Seria possível mudar o dro de participação restrita da democracia representativa (Hernández
mundo sem tomar o poder? Como os zapatistas têm construído este Navarro, 1998, p. 24-25). Neste sentido, a experiência das Juntas de Bom
projeto alternativo? Governo nos municípios autônomos demonstra a negação zapatista a
Para os zapatistas a criação de um mundo novo requer a abolição este tipo de enfoque e visão política. A democracia que o zapatismo pro-
das relações de poder e não a tomada do poder. Como afirmou Hol- põe e tenta construir não é um regime em que o povo somente tenha
loway, os zapatistas não querem construir uma nova relação de poder o poder para depositá-lo nas mãos de outros. Os zapatistas procuram
entre os homens, mas sim desarticular cotidianamente o poder do capi- estabelecer uma sociedade diferente em que o ato de governar recaia na
tal. Ou melhor, construir novas formas de relacionamento humano que comunidade como um todo (Ceceña, 2001, p. 192). A luta zapatista tem
permitam recuperar o controle sobre suas próprias vidas, rompendo sido uma luta pela soberania, uma luta em que o que importa é definir
com a alienação. Para os zapatistas não adianta estabelecer como obje- quem decide as regras que ordenam a vida de todos.
tivo a tomada do poder sem antes construir novas relações sociais que Neste ponto precisamos discutir um ponto fundamental para os
não impeçam as verdadeiras transformações e frustrem o processo, zapatistas que é a questão da autonomia. Segundo Gutiérrez Chong há
como ocorreu em outros movimentos revolucionários. duas possibilidades de autonomia: a livre determinação e a autodetermi-
Ao se afastarem do objetivo da conquista do poder através da nação. Na livre determinação, uma comunidade ou etnia, por exemplo,
luta armada, os zapatistas privilegiam a construção de uma verdadeira tem o direito de decidir suas próprias formas de governo assim como a
democracia que possa dar conta das exigências éticas e as afirmações sua organização interna, ou seja, tem o direito de governar-se diferen-
de identidade e que também leve em conta a construção de um poder temente dentro de um mesmo Estado. Já a autodeterminação está rela-
comunitário condizente com a trajetória de história e vida das comuni- cionada com a afirmação de nações e Estados independentes (Gutiér-
dades indígenas. Eles procuram as vias de invenção de uma democracia rez Chong, 2001, p. 254). A partir do fracasso das negociações com o
aberta aos atores sociais. A luta contra o capital é uma luta pela constru- governo, os zapatistas têm lutado pelo seu direito à livre determinação,
ção de uma nova forma de relacionamento social e pela recuperação da pelo direito à autonomia. Um dos obstáculos mais fortes a esta aspira-
condição humana. ção é a tendência a conceituar os indígenas como um bloco único não
Ao reforçar os elementos comunitários, os zapatistas reconhe- diferenciado. Os diversos grupos indígenas (nahuas, maias, purépechas,
cem que o modelo de democracia que tentam implementar em suas etc.) lutam pelo direito a tomar suas próprias decisões. Se os maias,

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nahuas e outros grupos constroem seus próprios meios e adquirem a Os zapatistas tentam construir uma humanidade e um sujeito
capacidade de negociarem por si mesmos, os “índios” deixarão de exis- emancipado e libertário, um poder popular profundamente democrá-
tir como uma construção que perdura desde a conquista (GUTIÉRREZ tico e participativo, sem vanguardas, em que a capacidade de decidir
CHONG, 2001, p. 255). teria como único eixo a dignidade do ser humano em comunidade.
A relação entre governantes e governados nos municípios autôno- Com uma linguagem profundamente metafórica, os zapatistas tentam
mos zapatistas é regida por um alto grau de transparência no exercício do romper com a atomização social e a mediação mercantil das relações
governo, porque os que assumem rotativamente a representação cidadã humanas para começar a construir a possibilidade de novas formas de
têm a obrigação de exercer o seu mandato com a consulta permanente entender e expressar a soberania popular.
de seus representados. Eles devem “mandar obedecendo”, ou seja, suas A história política mexicana tem sido marcada por uma estrutura
ações devem ser guiadas pela decisão de todos que, reunidos em assem- autoritária e persecutória dos movimentos sociais. Desde a revolução
bleias, definem os caminhos da administração e da política. Os que não mexicana em 1910, o governo mexicano se estrutura com o apoio de
seguirem estes procedimentos deixam de ter o poder. A comunidade um partido que hegemonizou a vida política até a eleição de Vicente
deixa de obedecer-lhes. Estabelece-se, então, uma nova relação onde há Fox no ano de 2000. Além disso, a conjuntura mundial é extremamente
a possibilidade de revogação do mandato. Essas propostas políticas dos favorável aos interesses dos grandes conglomerados econômicos e ao
zapatistas estão vigorosamente carregadas de um hibridismo político e grande capital. O Estado mexicano, como qualquer outro Estado, uti-
cultural. O imaginário político zapatista é profundamente marcado por liza de mediações para encobrir a coerção. Percebemos que nos tempos
uma forte visão de mundo indígena, e suas propostas políticas, como o atuais, o uso da força tem se tornado um recurso de gestão cotidiana.
“mandar obedecendo”, ultrapassam os limites da Selva Lacandona e per- No México, por exemplo, vemos um processo de consolidação de uma
mitem a discussão do sistema representativo, da autonomia, da demo- guerra de baixa intensidade. Paulina Fernández Christlieb aponta que a
cracia e da participação política na sociedade latino-americana atual. negativa do Estado Mexicano em garantir constitucionalmente os direi-
Yvon Le Bot ressalta que os zapatistas tentam fazer a articulação tos dos povos indígenas está ligada aos interesses das corporações trans-
de dois princípios indígenas: a prática do consenso (acuerdo) e o man- nacionais. Além disso, constata que o governo federal mantém, apesar
dar obedecendo. Este autor ressalta que o movimento zapatista não de negar, uma guerra de baixa intensidade contra as forças zapatistas e
provém da comunidade tradicional, mesmo que lhe aconteça idealizar as comunidades que as apoiam (Christlieb, 2003, p. 213).
“os costumes” ou manter uma certa indefinição a seu respeito. Porém, Paulina Fernández demonstra o estreito vínculo que há entre mili-
a prática do consenso nas novas comunidades pode demonstrar-se tão tarização e paramilitarização nas regiões que se tornam ou são poten-
asfixiante como o modelo autoritário tradicional. Le Bot afirma que o cialmente estratégicas para a expansão do livre fluxo de capitais. Ela des-
próprio zapatismo manifestou dificuldades em gerir e até aceitar pontos creve o processo de assentamento e distribuição dos postos militares,
de vista diferentes ou opostos aos seus. Para afastar esta tendência, Mar- policiais e paramilitares em diversas regiões de Chiapas (Christlieb,
cos defende e justifica a extensão do voto, a participação das mulheres 2003, p. 215). Isto demonstra que a realização do capital hoje passa
e a consideração das opiniões minoritárias, ou seja, o ideal zapatista de por um processo de valorização de territórios, que requer a “tomada
uma democracia plural pressupõe a convergência de dois movimentos: da terra”, a ocupação de territórios, o despojo dos recursos naturais e a
a democratização das comunidades e a democratização da sociedade ordenação política do espaço. Podemos constatar no México o aumento
nacional, com uma reforma profunda do sistema político e o reconhe- da máquina repressiva e da violência. Este ambiente violento demonstra
cimento das formas comunitárias de eleição e de representação (Le Bot, que uma guerra está em curso. Uma guerra com características muito
1997, p. 57). específicas que podemos definir como uma guerra contra a insurgên-

370 371
cia. Esta modalidade de guerra foi bastante aprimorada pelas forças membros de Las Abejas, entrevistado pela antropóloga Christine Kovic,
militares norte-americanas a partir da derrota no Vietnã. Em vez de explica que a proposta da comunidade tem sido a mesma do EZLN, mas
privilegiar uma intervenção militar direta norte-americana, seus asses- com caminhos diferentes. Ele afirma que os zapatistas são seus irmãos e
sores passaram a treinar as forças repressivas dos diversos Estados lati- a resistência não violenta de Las Abejas é um dos pés da sociedade que
no-americanos para adotar “medidas militares, paramilitares, políticas, não nega a validade do caminho do EZLN, sugerindo que a sociedade
econômicas, psicológicas e cívicas para derrotar a insurgência” (Chris- precisa de ambos os caminhos assim como se precisa de dois pés para
tlieb, 2003, p. 220). caminhar. Diz também que o principal inimigo é o governo e as autori-
A estratégia contra a insurgência pode ser vista em Chiapas a partir dades que organizam os paramilitares (Kovic, 2003, p. 68).
da instauração de diversos corpos militares destinados a combater as Governo e paramilitares certamente consideraram a sociedade
forças do EZLN e, principalmente, vigiar as regiões com recursos natu- de Las Abejas uma ameaça, não só porque os viam como aliados dos
rais estratégicos e da formação de diversos grupos paramilitares que têm zapatistas, mas porque, como ressalta Christine Kovic, o caminho ado-
como um de seus principais objetivos a destruição das comunidades de tado pela sociedade oferecia uma opção diferenciada que confronta a
apoio ao EZLN. Estes grupos paramilitares, como demonstra Paulina crescente militarização e polarização na região, além de enfraquecer a
Fernández, são estimulados pelos governos federal e estaduais, uma posição do governo. É muito difícil para o governo negar as demandas
vez que evitam que as forças armadas façam o trabalho sujo. O exército de um grupo que prega a não violência, e ainda é mais difícil justificar
federal organizou, forneceu armas e treinou diversos grupos paramilita- o uso da repressão e da violência contra um movimento desta natureza
res na região de Chiapas. (Kovic, 2003, p. 70).
Uma das consequências mais evidentes do curso desta guerra é Há ainda outro fator em jogo: a questão da autonomia. Acteal era
a enorme quantidade de pessoas, grupos e comunidades expulsas de uma das comunidades que faziam parte de um dos municípios autôno-
suas terras em Chiapas. A ação dos grupos militares e, principalmente, mos criados pelos zapatistas. Acteal estava a vinte cinco minutos a pé
paramilitares foi responsável pelo deslocamento forçado de inúmeros da sede do Conselho Autônomo de Polhó (Christlieb, 2003, p. 230) e
apoiadores dos zapatistas existentes na população civil da região. Estas este atentado mostra que a experiência de autonomia não seria aceita
ações visam desestruturar sua relação com a terra, elemento vital para a facilmente pelos grupos poderosos locais e instituições governamentais.
cultura indígena e minar o apoio ao EZLN. O número de expulsões de camponeses indígenas tem aumentado desde
O massacre de Acteal em 1997 foi emblemático. No dia 22 de então. Paulina Fernández cita a pesquisa de Hidalgo e Castro que estima
dezembro de 1997, um grupo paramilitar invadiu Acteal e iniciou uma que entre 1995 e 1998 havia um número aproximado de 21.159 indígenas
matança contra os membros da Sociedade Civil Las Abejas. Quarenta e expulsos de suas terras em Chiapas (Christlieb, 2003, p. 233).
cinco membros desta sociedade foram mortos barbaramente enquanto A reforma constitucional aprovada em abril de 2001, rechaçada
rezavam numa igreja, mulheres e crianças em sua maioria. Christine pelo EZLN,2 fez com que o movimento zapatista optasse, depois de um
Kovic relata que a Sociedade Civil Las Abejas era uma associação criada período de silêncio e organização, pela criação de seus próprios cami-
desde 1992 e lutava por justiça através da pregação da não violência. Las nhos, independente das instituições oficiais, radicalizando a proposta de
Abejas é uma sociedade católica que luta pela paz pregando a libera- autonomia. As juntas de bom governo criadas em meados de 2003 têm
ção através da erradicação da opressão e dominação e a reconciliação como alguns de seus objetivos cuidar do desenvolvimento equânime
através da restauração da dignidade rejeitando, porém, a violência, a
2 O EZLN lançou um comunicado em que afirma que dita reforma é uma traição visto que
vingança e o ódio (Kovic, 2003, p. 58). Ora, se Las Abejas não estava não garante, dentre outras coisas, a autonomia e a livre determinação e uso e desfrute dos
ligada aos zapatistas, por que houve o massacre? Vicente Ruiz, um dos recursos naturais (CHRISTLIEB, 2003, p. 247).

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dos municípios autônomos e comunidades, intermediar os conflitos que estática a etnicidade é vista como um conjunto imutável de “traços
possam surgir, e supervisionar o cumprimento das leis que, de comum culturais” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua,
acordo com as comunidades, estejam em vigor nos municípios zapatis- práticas de vestuário ou culinárias, etc.) transmitidos de geração para
tas (Christlieb, 2003, p. 253). geração no grupo, a perspectiva iniciada por Fredrik Barth, nos anos de
A reforma constitucional mexicana demonstrou que os setores 1960, trabalha com uma concepção dinâmica, onde a identidade étnica
dominantes do México não aceitaram diminuir o poder e o controle (ou qualquer identidade coletiva) é construída, e transformada, na inte-
que têm exercido sobre os indígenas e trabalhadores. A aceitação cons- ração de grupos sociais, através de processos de exclusão e inclusão que
titucional da autonomia indígena defendida pelos zapatistas significa- estabelecem limites ou fronteiras entre tais grupos, definindo os seus
ria romper com as políticas clientelistas e paternalistas governamentais, integrantes (Poutignat, 1998, p. 11).
além de impor mecanismos que permitiriam um controle popular e Ernest Gellner, ao interpretar a questão nacional como uma cons-
democrático das riquezas e recursos naturais do México, o que cer- trução da modernidade, dá importância capital à educação estatal, que
tamente não agrada ao governo mexicano, às elites econômicas e ao tem o poder de ultrapassar os limites locais. Numa sociedade marcada
governo norte-americano (Christlieb, 2003, p. 257-258). pela industrialização e o progresso, os componentes que se relacionam
O exercício da autonomia, como preconizado pelos zapatistas, per- com a vida rural, como as tradições e o folclore, não seriam importantes
mite romper com os esquemas de coerção impostos historicamente e para o nacionalismo. Também nega todo o tipo de explicações primor-
fortalece a resistência contra a violência imposta através de seus diversos diais. Ou seja, as nações são produto das condições modernas e o legado
mecanismos como a ação da imprensa controlada, dos militares e para- étnico passa para um segundo plano (Gutiérrez Chong, 2001, p. 37).
militares e dos grupos políticos governistas nas regiões indígenas. Gellner concebe a etnicidade de forma instrumental, uma vez que as
Em relação à operacionalização do sentimento de identidade heranças tomadas das culturas preexistentes podem ser utilizadas num
nacional, a região da Selva Lacandona é povoada por diversas etnias momento em que as desigualdades surgidas no ritmo da industrializa-
indígenas, a maioria de origem maia. Desde sua criação, no início do ção criam disparidades, ou diferenças culturais. Gellner deixa claro que
século XIX, a noção de etnia se encontrou mesclada com as noções de estas disparidades criam conflitos de identificação dentro do processo
povo, raça e nação, apresentando uma grande imprecisão conceitual. de homogeneização nacional.
Se no século XIX, os teóricos usavam o conceito de raça como um fator Já para Anthony Smith, as nações modernas se são “fabricadas”, não
explicativo do social, hoje o termo pode ainda ser usado, não como surgem do nada e, portanto, estão inscritas numa história de longa dura-
definidor de uma hereditariedade somática, mas para o reconheci- ção. Ele afirma que o Estado supõe a existência de uma série de iden-
mento de diferenças a partir do fenótipo que têm incidência sobre os tificações que podem ser, por exemplo, geográficas, históricas ou lin-
indivíduos e grupos e suas relações sociais. Este uso da noção de raça guísticas. Portanto, a fabricação dos mitos de origem pressupõe também
carrega até hoje profunda carga negativa, pois tende a descartar que um sentimento de continuidade histórica, ou seja, a expressão de uma
estas mesmas diferenças são uma construção social e histórica. Muitos identidade preexistente. Se Gellner trabalha numa perspectiva dicotô-
usam o termo etnia como substituto de “raça” e, neste sentido, trans- mica, Smith propõe uma continuidade a partir da concepção de etnia.
ferem a ele a mesma conotação pejorativa. Contudo, cada vez mais o A nação surge na modernidade, porém tem fundamentos firmes em sua
uso do termo etnia/ étnico adquire maior importância nos movimentos etnicidade, ou seja, as nações modernas são o resultado da transforma-
sociais contemporâneos. ção de certas etnias. Para Smith, etnia e nação são duas noções distintas,
Os conceitos de etnicidade, grupo étnico e identidade étnica tive- mas possuem um elemento comum, a capacidade de sustentar o senso
ram uma trajetória de grandes transformações. Se numa perspectiva de uma história e de uma cultura comuns. Ou seja, “as nações não o

374 375
são sem precedente, porque as etnias desenvolveram antes delas o senso nos e como marcam as suas diferenças a partir das relações interétnicas
de uma herança cultural e o de um destino histórico compartilhado” (Navarrete, 2004, p. 29).
(Poutignat, 1998, p. 52). Apesar de valorizarem os aspectos de suas etnias indígenas, ao
Alinhando-nos numa perspectiva dinâmica, como a definida por contrário de diversos movimentos nacionalistas europeus e asiáticos, o
Barth, consideramos que as identidades étnicas são construídas a partir movimento zapatista no México nunca apregoou um separatismo maia,
das relações entre os grupos sociais com a delimitação de suas frontei- ou seja, a formação de uma nação que se assentasse numa base étnica. Os
ras ou limites. Os conceitos propostos por Barth são bastante gerais e índios raramente apelam à sua qualidade de Maias. Os zapatistas querem-
podem ser aplicados a qualquer tipo de identidade coletiva e, portanto, se resolutamente mexicanos, indígenas mexicanos. A questão indígena é
precisamos nos perguntar o que caracteriza o étnico na delimitação dos para eles uma questão nacional central, concebida numa perspectiva de
limites ou fronteiras entre os diversos grupos sociais. Barth afirma que integração que não seja a assimilação. O movimento se destaca por pro-
há “traços culturais diferenciadores”, pouco importando quais, uma curar combinar o comunitário e o nacional, o indígena e o mexicano.
vez que podem variar no decorrer do tempo, dependendo também das O movimento reivindica um pluralismo étnico que se daria a partir da
formas de interação entre os grupos. Estes “traços culturais diferencia- afirmação do caráter multicultural da nação (Le Bot, 1997, p. 62).
dores” se formam no “curso de uma história comum que a memória Sua luta é também contra o modelo de identidade imposto com a
coletiva do grupo nunca deixou de transmitir de modo seletivo e de construção do Estado Mexicano. Segundo Natividad Gutiérrez Chong,
interpretar, transformando determinados fatos e determinados perso- o elemento indígena faz da nação mexicana, uma nação com caracte-
nagens lendários, por meio de um trabalho do imaginário social, em rísticas muito peculiares. Os rebeldes querem que seja reconhecido, na
símbolos significativos da identidade étnica” (Poutignat, 1998, p. 13). prática, o caráter multicultural da nação. Ao querer ser reconhecidos
Ou seja, o que diferencia, em última instância, a identidade étnica de em sua identidade e sua subjetividade não querem ser integrados numa
outras formas de identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para
democracia formal. Almejam construir uma democracia plural em que
o passado, não o da ciência histórica, mas aquele em que se representa
possam conciliar democracia e práticas comunitárias, democracia direta
a memória coletiva, uma história mítica. A etnicidade está ligada, por-
e eleição de representantes, participação e representação, igualdade e
tanto, à fixação dos símbolos identitários que fundam a crença em uma
identidade (Le Bot, 1997, p. 64). O movimento carrega em si, portanto,
origem comum.
uma forte contestação à democracia ocidental na forma como hoje ela é
Nos estudos atuais, o termo “grupo étnico” deve ser aplicado a todas
exercida, questão cuja atualidade e projeção são mais do que evidentes.
as formas contemporâneas de agrupamentos relacionados ao quadro
Numa época em que os movimentos de afirmação das identidades
nacional. O grupo étnico deixa de ser um grupo per se, para se tornar
nacionais e étnicas se exprimem muitas vezes nos “recuos de identi-
uma entidade que emerge da diferenciação cultural entre grupos que
dade” ou melhor dizendo, na fragmentação política e social, o zapatismo
interagem num contexto dado de relações interétnicas (Poutignat,
aparece como uma das tentativas mais significativas e mais fortes para
1998, p. 82). Ou seja, a análise se desloca do conteúdo cultural do grupo
combinar identidades junto com a democracia. Segundo Yvon Le Bot,
étnico para a análise das categorias que se constroem nas relações entre
os grupos. Esta percepção renovada deixa de ver os grupos étnicos ao tentar conciliar radicalidade e as reivindicações de afirmação de um
como entidades objetivamente definíveis através de aspectos culturais ideal de democracia comunitária, de abertura do sistema político e de
para ver os processos de construção das diferenças étnicas através das apelo à reorganização da nação, os zapatistas adotam muitas vezes posi-
interações sociais. Como afirma Navarrete, não há identidades “autên- ções hesitantes e controversas, mas precisamente desta tensão resulta a
ticas” e é preciso então compreender a interação entre os grupos huma- sua originalidade e capacidade inventiva (Le Bot, 1997, p. 54).

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Diversos grupos étnicos mexicanos mantêm, atualmente, formas parte dos indígenas em posições de liderança política e intelectual. Isto
renovadas de identidade étnica rechaçando a ideia de nação imposta demonstra o amadurecimento do pensamento indígena independente
pelas elites mexicanas através das políticas indigenistas. Contestam os que, cada vez mais, vem rechaçando o indigenismo. O reconhecimento
mecanismos de modernização que impõem a adoção de uma cultura das demandas índias de multietnicidade pelo Estado, contudo, tem sido
plenamente ocidental e adotam formas alternativas de modernidade em variável e gradual.
que valorizam a manutenção ou a criação de identidades étnicas cen- Muitos grupos étnicos indígenas têm construído uma visão pró-
tradas nos valores éticos de solidariedade, de autonomia e vida comu- pria a respeito de sua situação. Tomemos, como exemplo, o depoimento
nal. Temos hoje um novo discurso étnico elaborado a partir dos anos de Thaayrohyady Ndongu S. Bermúdez de la Cruz, representante do
de 1990. Podemos dizer que há uma “reinvenção da questão indígena “Consejo de la Nacionalidad Otomí de Temoaya”. Ao falar da chegada
por parte dos próprios dirigentes indígenas. Estamos falando hoje, não dos espanhóis, ele é bem incisivo. Os povos originários surgem como
mais de comunidades isoladas que a antropologia tradicional estudava resultado da invasão europeia, no caso, espanhola e tiveram, durante o
há décadas atrás, senão de uma realidade complexa de relações urba- período colonial, uma autonomia limitada. O representante da nacio-
nas e rurais em que há uma permanente confrontação entre tradição e nalidade otomí ressalta o papel de resistência cultural dos pueblos indí-
modernidade. genas que, segundo ele, seriam coletividades coesas, com um território
A discussão da democracia pelos movimentos sociais latino-a- definido, que possuem uma língua comum, uma cultura compartilhada,
mericanos contemporâneos passa exatamente pela discussão da tradi- e uma história que está incluída na institucionalidade de outra socie-
ção nacional francesa que fundamenta a democracia na ligação direta, dade dominante (Saladino García, 1995, p. 83-106).
não mediatizada por grupos, entre o cidadão e o Estado (Poutignat, Thaayrohyady Ndongu afirma também que o número de indígenas
1998, p. 17). O exercício do poder nas comunidades autônomas zapa- em relação ao total da população mexicana é bem maior que as estatís-
tistas demonstra exatamente que estas comunidades que preservam os ticas oficiais mexicanas. Se durante a independência havia cinquenta e
valores comunitários querem negociar a forma como serão aceitas na seis nações índias que representavam 60% da população, hoje, se forem
comunidade nacional. Os grupos indígenas ao se modernizar querem levados em consideração fatores, tais como, a cultura e o sentimento de
ter direito de escolher as formas de interação que sejam menos preju- pertencimento, a proporção pode chegar a 33% dos mexicanos. Os gru-
diciais à manutenção de seus traços culturais diferenciadores, seus sím- pos étnicos e as organizações indígenas, ao reivindicarem outros fatores
bolos significativos de identidade étnica e seus valores comunitários. de reconhecimento, contestam as estatísticas oficiais que tomam como
Ao propor uma sociedade multiétnica e multicultural, os indígenas não critério principal de mestiçagem a fala em espanhol. A partir deste cri-
somente questionaram sua própria situação de pobreza e marginalidade, tério, as estatísticas oficiais informam que haveria, no México hoje, uma
como também as relações de dominação da sociedade latino-americana, proporção aproximada de 10% de indígenas.
a discriminação racial, a intolerância étnica. Os indígenas questionam Na luta pelo reconhecimento das demandas índias de multietni-
as bases do Estado Republicano Latino-americano, construído sobre a cidade, os pueblos índios e movimentos organizados reivindicam uma
ideia de um só povo, uma só nação, um só Estado nova relação com o Estado, no caso de nosso estudo, o Estado mexicano.
Os novos movimentos indígenas fazem também uma severa crí- Um dos eixos de reivindicação dos representantes indígenas, como o
tica ao indigenismo. Do ponto de vista índio, o indigenismo era uma representante da nacionalidade otomí, é a refundação do Estado mexi-
política incompetente que não podia oferecer opções viáveis para o cano, através de uma nova constituinte e a elaboração de uma nova
progresso das culturas índias. A partir dos anos de 1990 se solidifica constituição que reconheça os pueblos indígenas apagando toda visão
uma aberta busca pela participação política ativa, principalmente por integracionista. Ou seja, os movimentos indígenas reivindicam a livre

378 379
determinação, contudo, esbarram, a todo momento, com a resistência les. México: División de Estudios de Posgrado de la Facultad de Ciencias
dos grupos sociais dominantes e a inércia e imobilismo do sistema jurí- Politicas y Sociales de la UNAM, ano XLVI, n. 188-189, maio-dez. 2003.
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SALADINO GARCÍA, A. (coord.). El problema indígena. Homenaje a José Car- embora muitas vezes não sejamos capazes de identificá-las como as mes-
los Mariátegui. México: Universidad Autonoma del Estado de Mexico – mas atividades adotadas por tradutores. Para tanto, entenderemos que a
UAEM, 1995. transposição não acontece somente entre línguas distintas, mas também
SMITH, A. ¿Gastronomía o geología? El rol del nacionalismo en la reconstruc- dentro da própria língua, quando tentamos reformular ou parafrasear
ción de las naciones. In: FERNÁNDEZ BRAVO, A. (comp.). La invención de la aquilo que já afirmamos, ou quando formulamos o conteúdo de uma
nación. Lecturas de la identidad de Herder a Homi Bhabha. Buenos Aires:
obra de arte visual, por exemplo, em palavras ou quando adaptamos um
Manantial, 2000.
conto em filme. Diferentes procedimentos da tradução, portanto, são
______. O nacionalismo e os historiadores. In: BALAKRISHNAN, G. (org.). Um
mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. inerentes ao ser humano, conforme argumenta Octavio Paz no célebre
TELLO DÍAZ, C. Chiapas. La rebelión de las Cañadas. Madrid: Acento Editorial,
“Literatura e literalidade” (1991), e traduzir é atividade abundantemente
1995. praticada, apesar de ser pouco abordada pelos teóricos da educação, da
WELLER, W. H. Conflict in Chiapas: Understanding the modern mayan world. sala de aula, do local no qual rica atividade tradutória ocorre.
North Manchester, Indiana: DeWitt Books, 2000.
1 O presente artigo foi apresentado e publicado, em 2008, na coletânea de textos do VIII
WOMACK Jr., J. (compilação, tradução e material introdutório). Rebellion in Congresso de Estudos Literários: literatura, linguagens & Mídias, do Programa de Pós-
Chiapas. An Historical Reader. New York: The New Press, 1999. Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Apresenta resultados,
ainda em progresso, das atividades desenvolvidas pelo Programa Quintahabilidade.

382 383
Assim, parto da pressuposição de que pensar ocorre indepen- temas como bilinguismo, estudos da tradução e, muito especialmente,
dente do pensar em língua verbal. As realizações do pensar de modo questionaram as abordagens usadas no ensino de línguas. Decidiu-se,
extralinguístico promovem articulações nem sempre possíveis de se como resultado de discussões que abraçam o ponto de vista de teóricos
realizar verbalmente, daí a importância dos trabalhos nas artes plásti- como Rajagapolan (2003), retomar as narrativas indígenas como impor-
cas e visuais, nas cênicas, nas instrumentais e nas corporais. Cognição, tante fonte na elaboração de materiais didáticos bilíngues. Contudo,
expressão, arte. Acredito, portanto, que pensar em língua é como pen- qual metodologia adotar para preparar as narrativas? Como definir nos-
sar com um pincel, ou pensar calçando sapatilhas de dedo, ou o pensar sas fontes? Como registrar as diferentes apresentações das narrativas?
escalando uma montanha íngreme: o corpo inteiro mobiliza-se em ação. Como organizar nossa abordagem para melhor compreender a comple-
Ainda nesta analogia, pensar em sapatilha promove diferentes pensares xidade da proposta dos educadores e fazer com que ela se realize?
dependendo da sapatilha: certamente as de ponta de dedo, das bailari- Buscar respostas nos dirigiu o olhar para o estudo do contexto atual
nas clássicas, são promovedoras de pensares diferentes das sapatilhas dos grupos indígenas no Espírito Santo, no Brasil, nas Américas. Con-
para sapateado, para o tap dancing. siderar o movimento que orienta os diferentes grupos, em pontos geo-
Daí que a hipótese Sapir-Whorf, de que a língua modela nossa per- gráficos distintos, ao estudo de suas línguas e literaturas como forma
cepção da realidade, será ainda revisitada, agora acoplada à noção de de resistência, e acompanhar os trabalhos realizados pela antropologia,
que para comunicar-se com o outro (e até com nós mesmos) é necessá- que tão estreitamente dialogam com a tradução, são movimentos que
rio “traduzir” a nossa mente, fazendo com que nossas ideias se realizem por sua vez promovem uma atitude, instigada pela prática da tradução,
no mundo exterior. Essa realização poderá ser em língua verbal ou em transdisciplinar e uma estética bilíngue, que desafia fronteiras enquanto
expressões não verbais, contudo ela deverá ser uma aparição material, devolve elasticidade aos limites determinados pelas línguas.
em som ou luz, em carne, em osso, voz e movimento. Não nutriremos, No livro Bilingual Aesthetics: A Sentimental Education, Doris Som-
no entanto, a expectativa de estar conhecendo, o “original”, exatamente mers (2004) argumenta, considerando a dinâmica do mundo global,
o que se passa na nossa cabeça, mas tão somente uma representação de que monolinguismo é uma doença que pertence às sociedades adoles-
um pensar que, ao se realizar, um “original” se torna. centes e que é preciso reconhecer a multiplicidade de línguas, verbais
Com esse embasamento filosófico permeando nossa fala, damos e não verbais, como uma possível solução aos males estabelecidos por
continuidade às investigações delineadas no Programa 5ª Habilidade, no uma condição monolítica, monolíngue. Em suas palavras:
Projeto Tradutores em Diálogo com Educadores Indígenas,2 ao mesmo Nos ajustes feitos hoje às dinâmicas globais, mono é uma doença de socie-
tempo em que problematizamos questões sobre tradução junto ao movi- dades adolescentes. O mundo superou a relação de equivalências entre
mento de resistência que acompanha o empenho em assegurar sobera- uma língua e um povo. Pessoas individualmente vêm acrescentando uma
nia às línguas indígenas. identidade a outra em formas que questionam o próprio conceito de iden-
tidade. Dores de crescimento não podem ser evitadas durante o processo
Durante o período de 2005 e 2006, em encontros nunca frequentes de maturidade por tolerância em tempos complicados. Como evitar a dor
o suficiente para responder às questões que surgem em área tão pouco quando povos e línguas se esfregam e se irritam mutuamente? Certamente
visitada, educadores indígenas, estudantes e professores refletiram sobre existem maneiras de mitigar o perigo das irritações e até passar a sentir pra-
zer a partir da fricção. Reconhecer a multiplicidade como remédio contra
a condição monolítica, no lugar de descartar o multilinguismo como algo
2 O Programa 5ª Habilidade (UFES/CCHN/DLL/TEI) é pesquisa que visa examinar a tradução confuso e depois ficar a questionar como perdemos a habilidade de ouvir a
como procedimento transdisciplinar inerente às práticas interpessoais, inerente ao ser razão. A questão não é “desidentificar”, como alguns teóricos prescrevem,
humano. O Programa promove palestras sobre o tema tradução e ensino, enquanto esti-
mula a prática e a teorização de uma estética bilíngue, uma prática que observe o aspecto
para mitigar políticas de identidade e a violência. Mas, ao contrário, suprir
singular de cada objeto repetido. uma identidade com mais outra. (Sommers, 2004, p. XV, tradução minha)

384 385
A prática e o pensar em tradução possibilita o trânsito por um Context, Niranjana (1992) situa a franca necessidade de teóricos da tra-
mundo de probabilidades, mundo que será de difícil alcance aos que só dução, enquanto realizam estudos abordando o diálogo entre as línguas,
praticam uma maneira de ver a realidade, de dizê-la. Pois, não é dema- investigarem as relações de poder que dirigem os empreendimentos em
siado repetir, as traduções não ocorrem apenas entre uma língua dis- tradução, como também avaliarem a historicidade dos textos traduzi-
tinta a outra, mas principalmente entre diferentes formas de expressão dos, para assim melhor compreenderem a força do discurso colonial e,
verbais e também não verbais. assim, melhor subvertê-lo. Niranjana considera a questão da tradução
A estética bilíngue compartilha do trabalho dos artistas, por exem- como uma problemática, toda ela, que não se limita ao aspecto inter-
plo, que falam pelos muitos feitos realizados e produzidos em formas lingual. A proposta da autora é a de “explorar a posição das obsessões e
de expressão não necessariamente verbais. Daí os Estudos da Tradução dos desejos de modo a descrever as economias com as quais o signo da
exercerem pertinência quando se pretende examinar grupos que recor- tradução circula” (Niranjana, 1992, p. 9).
rem aos diferentes meios formais para realizar determinado conteúdo, Nesta busca por perspectivas mais abrangentes, na tentativa de
selecionado para o apreço do outro. A língua será o meio mais frequen- explorar essa problemática que a tradução nos apresenta, importa com-
temente eleito para apresentação do conteúdo. Discute-se a importância preender o trabalho sendo realizado por educadores indígenas, com
de se estabelecer, em conquistas territoriais, a língua do mais forte como encaminhamentos pela criação de escolas bilíngues, de escolas que
sendo a língua de sobrevivência. Ainda hoje povos indígenas estabeleci- pretendem assegurar às populações indígenas o direito de manterem a
dos nos diferentes pontos da América Latina demonstram que, quando sua alteridade cultural, enquanto ganham maior competência na língua
não dominam a língua oficial do seu país, ficam subordinados à cate- portuguesa. A experiência em desenvolvimento nos quatro pontos do
goria de indivíduos de segunda ou nenhuma importância, que ainda Brasil representa o contato com uma realidade e com uma parte do Bra-
não estão preparados para exercerem funções sociais de maior relevân- sil tradicionalmente suprimida por uma lógica europeia, por uma lógica
cia. Para participar dos direitos compartilhados pelos outros, como os
linguística distinta da nativa que, por exemplo, não dará necessaria-
outros se deverá falar. Mas como fazê-lo se a valorização de sua língua-
mente a mesma importância às expressões para quantificar os objetos,
mãe não acontece, e se o acesso à língua oficial é deficiente? É pertinente
de modo a refletir sobre o valor das produções, do mesmo modo que as
ter atenção aos procedimentos que acompanham a prática da tradução
línguas indo-europeias dão maior ênfase, realce, às maneiras precisas e
para elaborarmos estratégias de comunicação que valorizem as realiza-
estudadas de se enumerar e descrever uma produção de objetos.
ções em versões que apontam para a pluralidade, mais atentas assim às
Isso não é afirmar a supremacia entre uma língua e outra, pois uma
probabilidades que o contexto oferece.
refletirá aspectos que a outra não considerará. Indica, por outro lado,
O processo de pós-colonização que se desenvolveu desde o final
uma possibilidade de interagir com a realidade sob diferentes prismas.
do último século anuncia um movimento em direção às reconquistas
Considerar, pelo ponto de vista de alguém que fala uma língua indo-eu-
do “mundo novo”, com o intuito de retomar tradições nativas que se
ropeia, que determinada comunidade linguística não tem palavras para
viram enfraquecidas, quando não eliminadas, pelo feroz processo “civi-
contar além do número três e que não usa pronomes possessivos surge
lizatório” promovido durante os últimos quinhentos e tantos anos. Pós-
colonialistas não estarão alheios ao fato de que, no contexto colonial, como oportunidade, aos olhos e às cabeças vendo e entendendo em lín-
os empreendimentos de tradução dificilmente aconteciam de modo a gua portuguesa, por exemplo, de se abrirem para outras características e
permitir que as trocas fossem nas duas direções, mas ao contrário, a tra- expressões contidas e compartilhadas por comunidades que ainda falam
dução duplica as relações assimétricas entre as nações e línguas em con- línguas indígenas. Falar mais de uma língua, e quanto mais distante uma
tato. Em Siting Translation: History, Post-Structuralism, and the Colonial língua for da outra, maior será a guinada praticada pelos nossos neurô-

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nios ao ocupar-nos de novas regiões e estações cerebrais, ao jogarmos E é justo no ensino que observamos que constantemente estamos tradu-
novos jogos de linguagem e vida. zindo, isto é, transpondo determinado conteúdo de uma forma a outra.
No capítulo “The Neurolinguistic Substrate” do livro Alien Tongues, É na escola que garantimos a passagem de uma tradição às novas gera-
Beaujour (1989) descreve uma maior flexibilidade cognitiva comparti- ções, e é neste local que se espera ver realizadas as inovações e recriações.
lhada por bilíngues e das vantagens que estes têm por mais facilmente Faz sentido, portanto, investigar, e é esse o objeto principal do Programa
conseguirem desassociar o pensamento das palavras. A partir dessa fle- 5ª. Habilidade, os pronunciamentos que a tradução faz na sala de aula e
xibilidade cognitiva, percebe-se melhor a problemática que a tradução com maior consciência lidar com o processo de seleção e combinação
apresenta. Ao mesmo tempo também representa momento no qual a que todo ato de tradução envolve.3
busca por uma estética bilíngue nos permite ouvir e compreender os des- B. Spolsky (1976), em artigo intitulado “Bilingualism”, participa de
dobramentos das línguas como pertencendo a uma sinfonia. Pela com- coletânea organizada com o intuito, como já indica o título (A Survey of
binação e seleção, seguindo a analogia da sinfonia, temos uma constela- Applied Linguistics), de apresentar textos introdutórios sobre as impor-
ção de melodias possíveis e variáveis que serão tocadas e/ou apreciadas tantes questões da linguística aplicada. Assim, no capítulo em questão,
em arranjos sonoros de fronteiras indefinidas. Também fica mais fácil, além de apresentar definições claras para os diferentes tipos de bilin-
a partir desta perspectiva, compreender a posição de Price & Lugones guismo, Spolsky apresenta, recorrendo às pesquisas de teóricos da área
(2003) em argumentar que o Ocidente melhor garante domínio apre- em questão, modelos de escolas que evidenciam a prática bilíngue de
sentando as línguas como se elas fossem distintas e separadas umas das duas maneiras distintas. No primeiro modelo, a escola bilíngue é de pri-
outras, e guardassem fronteiras bem firmadas e delimitadas. Sob certo meira ordem e pretende formar um aluno pronto para interagir com o
aspecto, afirmam os autores de “Problems of Translation in Postcolonial mundo. Assim, escolas bilíngues selecionam, além da língua oficial do
Thinking”, toda língua é híbrida, mas é quando ela se afirma ainda mais país, uma segunda que garantirá uma melhor participação do estudante
notadamente híbrida que ela se apresentará como movimento de resis- nas dinâmicas internacionais. Seguindo esse modelo, no nosso atual
tência, que poderá recontar as histórias de colonização e avaliar como contexto, a língua franca será o inglês e, desse modo, escolas bilíngues
a “modernidade” foi construída e empurrada às nações das Américas. inglês/português são criadas nas principais cidades brasileiras e vão aco-
Levar em conta novos critérios para descrever o fato de que os ter- lher o grupo social que representa uma elite mínima, mas suprema no
ritórios políticos contêm, não raras vezes, várias nações e situações de controle de uma maior parte da renda do país. Uma escola bilíngue para
bilinguismo, torna-se, por sua frequência de caso, entre outras razões, aqueles que vão efetivamente viver e trabalhar dentro e fora do Brasil.
imperativo. Situação de bilinguismo é situação vivenciada, em maior A escola fina flor. Neste ambiente escolar tentar-se-á alcançar o desem-
ou menor grau, pela grande maioria dos seres, se não por todos, caso penho de bilíngues coordenados, fluentes e que manuseiam as duas lín-
consideramos a diglossia e o bidialectalismo, pois então constatamos guas como se cada uma fosse sua primeira.
que diferentes grupos sociais interagem em situações de bilinguismos O segundo modelo apresentado por Spolsky será ocupado por gru-
no cotidiano, nas atividades corriqueiras entre a escola, o mercado e o pos marginalizados, grupos que utilizam língua distinta daquela consi-
cinema. No entanto, poucas ocasiões se oferecem para considerarmos o derada oficial e de comum uso nas esferas oficiais. Aqui a escola bilíngue
papel da tradução nas nossas vidas, o empenho que fazemos para nos terá como função maior oferecer o estudo da língua oficial, enquanto
comunicar com pessoas de diferentes famílias, bairros, nações. Na ver-
dade, recorremos constantemente aos procedimentos da tradução sem 3 Ver artigo: “Uma Pedagogia da Tradução” (In: Tradução e Comunicação, São Paulo, n.
14, p. 57- 65, setembro 2005), no qual faço considerações sobre a atuação da tradução no
sabê-lo, sem nos dar conta dos mecanismos de grand tradutor que cada ensino de língua estrangeira como prática que aproxima o estudante da língua sob estudo,
ser possui, mesmo que nem todos sejamos um Chaucer, ou um Borges. enquanto reforça e realça o conhecimento que o estudante tem de sua própria língua.

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gradualmente faz ausentar-se a língua que o estudante herdou do seu circular. Aos alunos, resta a obrigação de registrar em papel/memória,
meio social. O bilinguismo aqui não é nenhuma fina flor, mas talvez no branco ou vazio, a pena do professor, em cópia estéril e sem movi-
uma erva daninha que precisa ser ratificada. A função da escola bilín- mento. A ausência de uma certa consciência a respeito do outro é o
gue, neste segundo modelo, é a de amenizar a situação de bilinguismo, silêncio que não deixa mover pedras, o que dirá montanhas, pois faltou-
que é considerada prejudicial. nos meio de efetuar uma tradução. Mover impérios e sentidos é ação
Este modelo reproduz argumento nitidamente colonial, que incen- que a problemática da tradução investiga. Neste sentido, a sala de aula, o
tiva o estudante a abandonar sua língua-mãe, que é julgada inferior, de ambiente escolar, é palco de grandes empreendimentos tradutórios que
menor importância, e assim se justifica a sua suplantação pela língua urge nos assistir e melhor compreender.
oficial. A língua indígena, por exemplo, quando considerada de segunda
importância, define a relação que o falante terá com a língua, o engaja- referências bibliográficas
mento que fará para melhor usufruir de sua língua-mãe. Desconside-
BEAUJOUR, E. K. Alien Tongues: Bilingual Russian Writers of the “First” Imigra-
rar o dialeto de um grupo social, tratando-o como inferior e de menor
tion. Ithaca and London: Cornell University Press, 1989.
importância, reflete na maneira com a qual aquele ser lidará com sua
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
própria identidade.
NIRANJANA, T. Siting translation. Berkeley: University of California Press, 1992.
Por conta da estreita relação de intimidade que o falante tem com
PAZ, O. “Literatura e Literalidade” In: Convergências: ensaios sobre arte e litera-
sua primeira língua, desconsiderar o dialeto de um grupo é desconside- tura. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
rar aquele grupo e ao mesmo tempo, como Rajagapolan (2003) pontua,
PRICE, J. M. & Lugones, M. C. “Problems of Translation in Post Colonial-
é ferir a autoestima no ponto mais delicado. Esse é o caso dos falantes de Thinking.” Anthropology News, april 2003.
línguas indígenas, de Libras (Língua de Sinais Brasileira) e de estudan- RAJAGOPALAN, K. Por uma lingüística crítica: linguagem, identidade, e a questão
tes das escolas “normais”, que, por exemplo, sofrem com a negligência ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
ao fato de que crianças frequentemente trazem às escolas um registro ROSE, M. G. Translation and Literary Criticism. Manchester: St. Jerome Publish-
linguístico distinto do português oficial exigido pelos professores. Em ing, 1997.
outras palavras, mesmo em escolas que pretendem usar apenas uma SOMMER, D. Bilingual Aesthetics: A New Sentimental Education. Durham: Duke
língua, a tradução se faz bastante presente, pois os usuários usam varia- University Press, 2004.
ções distintas da mesma língua e terão, invariavelmente, que recorrer às SPOLSKY, B. “Bilingualism” In: A Survey of Applied Linguistics. Wardhaugh, R. &
Brown, H. D. (eds.). Ann Arbor: University of Michigan Press, 1976.
estratégias da tradução.
Em situação mais séria e que contribui para nossa análise do quão
importante é a busca por uma estética bilíngue, está o grupo representa-
tivo de surdos que temos frequentando escolas “normais”, em geral sem
a atuação de professores com conhecimento de Libras.
Ter a habilidade para recorrer ao mesmo sistema ou código de
comunicação do outro é uma consideração de primeira ordem por
parte de educadores que pretendem estar em diálogo com seus alunos,
desenvolvendo o dialogismo do tradutor conforme sugere Paulo Freire.
A outra opção, certamente, é a postura ditatorial do professor que pensa
saber os conteúdos e de ter controle sobre como esses conteúdos devem

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Sobre os autores

Adelia Miglievich-Ribeiro
Doutora em Sociologia pela UFRJ (2000), é Professora Adjunta da Universi-
dade Federal do Espírito Santo (UFES), atuando na graduação e pós-graduação
em Ciências Sociais e na pós-graduação em Letras (mestrado e doutorado).
Organizou a coletânea A modernidade como desafio teórico. Ensaios sobre o
pensamento social alemão (Ed. Pucrs). Participou com capítulos de coletâneas
como O Brasil em evidência: a utopia do desenvolvimento (FGV/Puc-RJ) e Amé-
rica Latina e Brasil em Perspectiva (Alas/UFPE). Compôs com artigos, dentre
outros, os dossiês “Gênero e Ciência” (Revista Manguinhos/Coc/Fiocruz) e
“Pensamento Social no Brasil e na América Latina” (Sociedade & Estado/UnB).
Também organizou edições especiais em revistas a exemplo de “Identidades e
Fluxos Migratórios” (Dimensões. Revista de História/UFES), um dos frutos do
convênio UFES e Universidade de Veneza que congrega pesquisadores em Amé-
rica Latina. Seus estudos sobre Darcy Ribeiro agraciaram-na com a Cátedra
Ipea/Capes nos anos de 2010 a 2012 e se desdobram hoje em pesquisas acerca
da universidade no continente. Compõe atualmente a diretoria da Abecs (Asso-
ciação Brasileira de Ensino de Sociologia), responsável pela Revista e publica-
ções. Dedica-se aos estudos em teoria social, epistemologia das ciências sociais
e sociologia dos intelectuais.

Antonio Carlos Amador Gil


Doutor e pós-doutor em História pela USP, graduado e mestre na UFRJ, é Pro-
fessor Associado de História da América na Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), atuando na graduação e na pós-graduação em História (mestrado

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e doutorado). Atualmente, coordena na UFES o Laboratório de Estudos de His- para o Instituto Camões na Universidade de Rennes 2 onde ensina atualmente
tória Política e das Ideias – LEHPI. Compõe a Diretoria da ANPHLAC (Associação a literatura portuguesa contemporânea e as literaturas e civilização africanas. O
Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas). Suas pes- trabalho de pesquisa que tem desenvolvido trata essencialmente da literatura
quisas têm se concentrado nos domínios da história política, história cultural e portuguesa contemporânea, e das literaturas africanas de língua portuguesa.
história das ideias, atuando nos seguintes temas: identidade nacional; culturas Participou em vários colóquios e é autora de artigos publicados em revistas
políticas; identidades étnicas; história indígena; democracia e autonomia; inte- científicas em França, no Brasil e nos Estados Unidos.
lectuais e movimentos sociais de contestação e resistência; imprensa; e relação
entre história e literatura. E-mail: tomgil@tomgil.pro.br. Carlos A. Gadea
Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães com Pós-Doutorado no Center for Latin-american Studies da University of
Professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo Miami. Realizou estudos e pesquisas doutorais no Ibero-Amerikanischen Ins-
e da Catédra Sérgio Buarque de Holanda da Maison des Sciences de l’Homme, titutes Berlin – IAI e na Facultad de Ciencias Políticas y Sociales da Universidad
França. Mestre em Ciências Sociais pela UFBa, 1982; PhD em Sociologia, pela Nacional Autónoma de México – UNAM. Recebeu o Prêmio SOBER (Sociedade
University of Wisconsin, Madison, 1988, e Livre-docente em Sociologia Política Brasileira de Economia e Sociologia Rural) como melhor dissertação de mes-
pela Universidade de São Paulo, 1997. Foi professor da Universidade Federal da trado em Sociologia (Rio de Janeiro, 2000) e o Prêmio TEMAS de Ensayo 2001
Bahia entre 1980 e 1996, e professor vitante da Princeton University entre 2007- (Havana, Cuba). Atualmente é Professor Titular do Programa de Pós-gradua-
2008. Foi também pesquisador visitante em diversas universidades estrangei- ção em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
ras, entre elas: Oxford University (Centre for Brazilian Studies); Brown Uni- e Editor da Revista Ciências Sociais Unisinos. Pesquisador do CNPq. Atua prin-
versity (Program of Afro-American Studies); University of California at Los cipalmente nos temas: Teoria Social Contemporânea, Estudos Latino-ameri-
Angeles (Department of Sociology), Institut de Recherche et Devellopment; canos, Ações coletivas e Movimentos Sociais, Juventude e Cultura, Violência e
École de Hautes Études em Sciences Sociales (Centre de Recherche sur le Brésil Conflitos Urbanos e Estudos Étnico-Raciais.
Contemporain e Centre d’Études Africaines). Presidiu a Sociedade Brasileira de
Sociologia entre 1996 e 1998 e dirigiu o Centro de Recursos Humanos da UFBa Eduardo de Assis Duarte
entre 1990 e 1992. Seus principais livros: Imagens e identidades do trabaho, São Doutor em Letras pela USP, é professor aposentado da Faculdade de Letras da
Paulo, Hucitec, 1995; Um sonho de classe – trabalhadores e formação de classe UFMG. Integra o Programa de Pós-graduação em Letras – Estudos Literários
na Bahia dos anos 80, São Paulo, Hucitec/Pós-Graduação de Sociologia da USP, e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – NEIA. Autor de Jorge
1998; Preconceito e discriminação – queixas de ofensas e tratamento desigual dos Amado: romance em tempo de utopia (1996), Literatura, política, identidades
negros no Brasil, Salvador, Novos Toques, 1998; Racismo e anti-racismo no Bra- (2005), e organizador de Machado de Assis afrodescendente (2007). Pesquisador
sil, São Paulo, Editora 34, 1999; Tirando a Máscara. Ensaios sobre o racismo no Nível 1 do CNPq, coordenou o projeto integrado de pesquisa afrodescendências:
Brasil, São Paulo, Paz e Terra, 2000; Beyond Racism. Race and Inequality in Bra- raça/etnia na cultura brasileira, com a participação de pesquisadores de diver-
zil, South Africa, and the United States. Boulder and London, 2001, p. 157-186; sas Universidades do Brasil e do exterior. Dentre os produtos do projeto des-
Classes, raças e democracia, São Paulo, Editora 34, 2002. tacam-se a coleção Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica (4
vol., Ed. UFMG, 2011) e o literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira – com
Bárbara dos Santos informações biobibliográficas, críticas e excertos de 120 autores –, disponível no
Doutora em literaturas portuguesa e da África lusófona, obtido num regime de endereço: www.letras.ufmg.br/literafro
cotutela entre a Universidade de Rennes 2, na França, e a Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, em Portugal. Este trabalho concentra-se na ques- Elísio Macamo

tão da voz autoral e da reescrita da história das guerras de independência nas Nasceu em Moçambique e estudou no Instituto Médio de Línguas em Maputo,
literaturas angolana, moçambicana e portuguesa. Assumiu o cargo de Leitora completando sua formação em Tradução e Interpretação na Inglaterra, onde

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também fez seu Mestrado em Sociologia na Universidade de Suffolk. Possu volve, também, pesquisas nas áreas de mídia, “literatura marginal”, funk e Rap.
iDoutorado em Sociologia e Antropologia pela Universidade de Bayreuth na Em 2008/2009 desenvolveu pesquisa de Pós-doutorado intitulada “A ginga e
Alemanha, onde trabalhou como docente e pesquisador na área de Sociolo- a gíria, a fala e a bala: o Rap dos Racionais MC’s”, no Programa Avançado de
gia do Desenvolvimento. Atualmente é professor da Universidade de Basiléia, Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ).
Suíça, e diretor do Centro de Estudos Africanos, responsável pelo Programa
Interdisciplinar de Doutoramento em Estudos Africanos. Faz parte do conselho José Jorge de Carvalho
científico das revistas “AfrikaSpektrum” e “Indilinga – African Journal of Indi- Possui PhD em Antropologia Social por The Queen’s University Of Belfast
genous Knowledge Systems” e é membro da direção da Associação Alemã de (1984); pós-doutorado pela Rice University (1995) e pós-doutorado pela Uni-
Estudos Africanos bem como do comitê científico do CODESRIA- Conselho para versity of Florida (1996). Foi Catedrático Tinker Professor na University of Wis-
o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais da África. Seu interesse em consin – Madison (1999). Atualmente é Professor Associado da Universidade
pesquisas situa-se nas áreas de sociologia da religião, conhecimento, tecnologia de Brasília, Pesquisador 1-A do CNPq e Coordenador do INCT – Instituto Nacio-
e política, atentando ainda para os temas da epistemologia e da metodologia nal de Ciência e Tecnologia e Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, do
nos estudos sobre África. Ministério de Ciência e Tecnologia e do CNPq. Seu trabalho como antropólogo
se desenvolve principalmente nas seguintes áreas: Etnomusicologia, Estudos
Heloisa Toller Gomes Afro-brasileiros, Estudo da Arte, Religiões Comparadas, Mística e Espiritua-
Licenciou-se em Letras Anglo-Germânicas e fez mestrado em Literatura Bra- lidade, Culturas Populares, e Ações Afirmativas para os Negros e Indígenas.
sileira e doutorado em Letras na Puc-RJ. Obteve bolsa de estudos FULBRIGHT Alguns livros publicados: Shango Cult in Recife, Brazil (1992); Cantos Sagrados
e Fellowship FULBRIGHT/LASPAU (Howard University e Yale University, res- do Xangô do Recife (1993); Mutus Liber. O Livro Mudo da Alquimia (1995); O
pectivamente), na área African-American Studies. Após aposentar-se na Uni- Quilombo do Rio das Rãs (1996); Rumi – Poemas Místicos (1996); Os Melhores
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ingressou no Programa Avan- Poemas de Amor da Sabedoria Religiosa de Todos os Tempos (2001); Las Culturas
çado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro Afroamericanas en Iberoamerica (2005); Inclusão Étnica e Racial no Brasil (2005).
(PACC-UFRJ) com o projeto de pós-doutoramento “Pós-Colonialismo, Etnici-
dade, Formações Culturais Contemporâneas” (2005). Atualmente realiza no Júlia Almeida
PACC-UFRJ o seu segundo pós-doutoramento com o projeto “Uma Cartografia Graduada em Comunicação Social pela UFF (1989), possui mestrado e douto-
da (Pós)Colonialidade: O Caso Afrobrasileiro em Perspectiva” e coordena a rado em Linguística pela Unicamp (1993 e 1998), este último com bolsa-san-
linha de pesquisa “Cultura e Desenvolvimento”. Tem publicações no Brasil e duíche na Universidade de Paris VIII (1995-1996). Realizou pós-doutorado na
no exterior, atuando principalmente nos estudos literários e culturais compa- Duke University (EUA) sob supervisão de Michael Hardt (2007). É professora
rativos e abordando questões de alteridade, pós-colonialismo, exclusão socioe- associada da Universidade Federal do Espírito Santo, onde atua desde 2003
conômica e etnias. É tradutora e membro do GT-ANPOLL “Relações literárias nas áreas de Linguística e Estudos Literários. É autora dos livros Estudos deleu-
interamericanas”. zeanos da linguagem, publicado pela Editora da Unicamp (2003), e Textuali-
dades contemporâneas – Texto, Imagem, Cultura (Edufes, 2012) e de diversos
Jorge Luiz do Nascimento artigos publicados em revistas de letras, comunicação e cultura. Desenvolve
Possui graduação em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de atualmente pesquisas em questões de discurso e imagem, pós-colonialismo e
Janeiro (1988), mestrado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do subalternidade.
Rio de Janeiro (1993) e doutorado em Letras Neolatinas pela Universidade
Jurema Oliveira
Federal do Rio de Janeiro (2001). Atualmente é professor titular da Universi-
dade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase Pós-doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2008).
Doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2005). Mestre
em literaturas espanhola, brasileira e hispano-americana, atuando principal-
em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
mente nos seguintes temas: literatura argentina, crítica, Julio Cortázar; desen-
(1998), Possui Licenciatura Plena pela Faculdade de Educação da Universidade

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Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1992), Especialização em Literatura Portu- quisas recentes têm se concentrado na relação entre teoria sociológica, reivindi-
guesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1991), Bacharelado cações por terras, biografias e o Estado no Brasil e na África do Sul. É autor do
em Letras Português/Literaturas pela Faculdade de Letras da Universidade livro Engenho dos Movimentos Sociais (Editora Garamond, 2011) e de diversas
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1990). Professora da Universidade Federal coletâneas sobre movimentos sociais no Brasil, África e América Latina.
do Espírito Santo (UFES). Atua no ensino Superior nas áreas de Teoria da Lite-
ratura e Literaturas de Língua Portuguesa. Autora de Violência e Violação: Paulo Henrique Martins
Uma Leitura Triangular do Autoritarismo em Três Narrativas Contemporâneas Graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1971-1975);
Luso-afro-brasileiras (2007); O Espaço do Oprimido nas Literaturas de Língua tem Mestrado em Sociologia pela Universidade de Paris I, Pantheon-Sorbonne
Portuguesa do Século XX: Graciliano Ramos, Alves Redol e Castro Soromenho (1977-1979), Doutorado em Sociologia pela Universidade de Paris I, Pantheon-
(2008); Entre a Memória e a História: A poesia (2009); Literatura Portuguesa: Sorbonne (1977-1981) e Pós-doutoramento na Universidade de Nanterre, Paris X
Moderna e Contemporânea, esgotado (2010); Entre a Memória e a História: A (2000-2001), tendo ainda sido Pesquisador Visitante do London School of
poesia (2011), edição brasileira. Pesquisadora das Literaturas Brasileira, Portu- Politics and Economics Science (1995). É Professor Titular do Departamento
guesa e Africana de Língua Portuguesa. E-mail: juremajoliveira@hotmail.com. de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Docen-
te-Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFPE.
Lillian DePaula Bolsista pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Amazonas (1986), Tecnológico (CNPq) 1C; Coordenador do Núcleo de Cidadania e Processos de
mestrado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de Mudança (NUCEM) da UFPE que é cadastrado no CNPq; atual Vice-Presidente
São Paulo (1996) e doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Associação MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales)
pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente é professora associada da e colaborador da Revue du MAUSS (França). Presidente da ALAS (Asociación
Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Letras, com LatinoAmericana de Sociologia) para o período 2011-2013. Em sua atividade
ênfase em Estudos da Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: intelectual busca articular de forma interdisciplinar os estudos sobre a dádiva
tradução, ensino, metodologia, literatura, linguística e interdisciplinaridade. e a poscolonialidade, buscando diálogo permanente com a antropologia, com
a política e com a psicologia. Seus estudos em Teoria Social, Sociologia da
Luís Eustáquio Soares Saúde e Sociologia do Poder revelam frequentemente os seguintes indicadores:
Pós-Doutorado em Literatura Comparada (UFMG), atualmente é professor dádiva, cidadania, democracia, solidariedade, políticas públicas, redes sociais,
Associado de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa na Uni- saúde e cultura. E-mail: pahem@terra.com.br.
versidade Federal do Espírito Santo; poeta, escritor e ensaísta. Publicou os livros
Paradoxias (romance, 1999), Cor Vadia (poesia, 2002), Silvo de Luis Caixeiro Paulo Marcondes Ferreira Soares
(romance, 2003), José Lezama Lima: anacronia, barroco e utopia (teoria, 2008), Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Per-
El evangelio según satanás (romance, Editorial El perro y La rana, Venezuela, nambuco (1983), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Per-
2009), O evangelho Segundo Satanás (romance, 2011), América Latina, Litera- nambuco (1994) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de
tura e Política: abordagens transdisciplinares (teoria, 2012). Pernambuco (2003). Atualmente é professor adjunto do Departamento de
Ciências Sociais, Tutor do PET de Ciências Sociais e membro do Programa de
Marcelo C. Rosa Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Tem
Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, na qual experiência na área de Sociologia, com ênfase em sociologia da arte, cultura e
coordena o Laboratório de Sociologia Não-exemplar. É Bolsista de Produti- comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: arte e política; arte
vidade em Pesquisa do CNPq e foi pesquisador visitante no Departamento de contemporânea; música; cultura global e a mídia; cinema e política e cinema
Sociologia e no Centro para Estudos Africanos da University of Cape Town, em contextos periféricos.
África do Sul. Foi fundador e atualmente é membro do corpo editorial do Agra-
rian South: Journal of Political Economy, publicado pela Sage Índia. Suas pes-

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Sandra Regina Goulart Almeida da alteridade” com ênfase em literatura contemporânea dos Estados Unidos,
Professora Titular de Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Caribe e Canadá. Seu trabalho e suas publicações se voltam principalmente
Gerais. É Mestre e Doutora pela Universidade da Carolina do Norte, Estados para a diáspora africana nas Américas, literatura feminina e relações intera-
Unidos, com Pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade mericanas, além de interessar-se por tradução literária e pelas relações entre a
Columbia. É pesquisadora do CNPq e da FAPEMIG e desenvolve pesquisa na área literatura e outros campos de saber, como arte, sociologia, história, filosofia e
de crítica literária feminista, estudos de gênero, estudos pós-coloniais e da diás- psicanálise.
pora, literaturas contemporâneas e literatura comparada. É autora de Carto-
grafias contemporâneas: espaço, corpo, escrita (a ser publicado pela Editora da
UFMG, 2013). Editou o número especial da Ilha do Desterro: Gender Studies and
Feminist Perspectives (2002) e também On Foreign Land: Ideologies and Travel
Discourse. Editou ainda Interseções: Diálogos com a Literatura e a Lingüística no
Canadá (2001). Coeditou Gênero e representação em literaturas de língua inglesa
(2002), The Art of Elizabeth Bishop (2002), Universidade, Cooperação Interna-
cional e Diversidade (2006), Brasil-Canadá: Olhares Diversos (2006), Mobili-
dades culturais: atentes e processos (2009), Migrações teóricas, interlocuções
culturais: estudos comparados (Brasil/Canadá) (2009), Sentimentos do mundo
(2009). Tem vários artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras.

Sérgio Costa
Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1985), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1991), doutorado (1996) e livre-docência em sociologia pela Universi-
dade Livre de Berlim, Alemanha. É professor titular de sociologia da Univer-
sidade Livre de Berlim e pesquisador do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento, São Paulo). Foi professor adjunto da Universidade Federal de
Santa Catarina (1997-1999), professor assistente da Universidade Livre de Ber-
lim (2000-2005) e professor visitante da Universidade de Flensburg, Alema-
nha (2006-2007). Suas áreas de pesquisa, publicação e atuação profissional são
sociologia política, sociologia comparativa e teoria social contemporânea. Seus
temas de especialização são democracia e diferenças culturais, racismo e antir-
racismo, movimentos sociais e politica transnacional.

Stelamaris Coser
Membro do GT-ANPOLL “Relações literárias interamericanas”, com formação
acadêmica interdisciplinar incluindo dois cursos de graduação (em Artes e
Letras Português/Inglês) e especialização em “Filosofia e suas fronteiras”, na
UFES; mestrado em Literatura Norte-Americana na UFRJ; e doutorado em Estu-
dos Americanos na Universidade de Minnesota, Estados Unidos. Atua como
professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFES,
trabalhando principalmente na linha de pesquisa “Literatura e expressões

400 401
este livro foi impresso na gráfica
da editora vozes para
viveiros de castro editora
em maio de 2013.

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