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Potencialidades investigativas para a violência de gênero:

ARTIGO ARTICLE
utilização da análise de discurso

Discourse analysis: research potentialities to gender violence

Mariana Porto Ruwer de Azambuja 1


Conceição Nogueira 2

Abstract In the last few years we see the growing use Resumo Nos últimos anos, assistimos ao cresci-
of the terms “discourse” and “discourses analysis” in mento da utilização das expressões “discurso” e “aná-
academic and research contexts, frequently without lise de discurso” em diversos contextos acadêmicos e
a precise definition. This fact opens space for critics de pesquisa, muitas vezes sem uma definição precisa,
and mistakes. The aim of this paper is to show a brief abrindo precedentes para confusões e críticas. O ob-
contextualization of discursive studies, as well as tasks/ jetivo deste artigo é apresentar uma contextualiza-
steps to Discourse Analysis process by the Social Con- ção breve dos estudos discursivos, bem como as tare-
strucionism perspective. As examples we used frag- fas/passos do processo de análise de discurso sob a
ments of an interview with a Family Doctor about perspectiva do construcionismo social. Utilizamos
gender violence. In the results we detach the poten- como exemplo fragmentos de uma entrevista reali-
tial of Discourse Analysis to deconstruct the existing zada com uma médica de família sobre a violência de
discourses to subsequently (re)construction in the gênero. Dentre os resultados, destacamos 0 potencial
way to a more holistic view about gender violence da análise de discurso para a desconstrução dos dis-
problem. cursos existentes e posterior (re)construção em dire-
Key words Discourse analysis, Social construcion- ção a uma abordagem mais integradora para o pro-
ism, Gender violence blema da violência de gênero.
Palavras-chave Análise de discurso, Construcio-
nismo social, Violência de gênero

1
Programa RS
Socioeducativo - Eixo II
(Apoio e Acompanhamento
de Egressos), Centro de
Educação Profissional São
João Calábria. Rua Aracaju
650, Nonoai. 91740-320
Porto Alegre RS.
mariruwer@pop.com.br
2
Instituto de Educação e
Psicologia, Departamento
de Psicologia, Universidade
do Minho.
1722
Azambuja MPR, Nogueira C

Introdução lência de gênero” em lugar de “violência doméstica”


ou “violência contra a mulher”, seguindo o entendi-
Nos últimos anos, assistimos ao crescimento da mento dos movimentos feministas de que esta é
utilização da expressão “discurso” em diversos con- uma questão política, uma forma de exercício de
textos acadêmicos e de pesquisa. Nas palavras de poder. A importância de utilizá-la se fundamenta
Phillips e Jorgensen1, “discourse has been a fashio- no pressuposto de que a violência é, de alguma for-
nable term”, muitas vezes sendo utilizado indiscri- ma, influenciada por (ou influencia) relações de
minadamente e sem uma definição precisa. Do gênero, incluindo a violência doméstica entre pes-
mesmo modo, a “análise de discurso” tem sido soas hetero e/ou homossexuais (física, sexual, eco-
descrita e utilizada para as mais diversas investiga- nômica e psicológica); abuso sexual e estupro; tor-
ções, abrindo precedentes para confusões e críti- turas sexuais e estupros em situações de guerra ci-
cas. O objetivo deste artigo é apresentar uma con- vil, conflitos comunitários e étnicos, entre outras8.
textualização breve do campo dos estudos discur- Para dar conta da complexidade deste fenômeno,
sivos, bem como suas tarefas ou passos. Para isto, acreditamos que a análise de discurso seja uma im-
utilizamos como exemplo fragmentos de uma en- portante ferramenta potencializadora da inves-
trevista realizada no âmbito do doutoramento em tigação, pois permite desvelar as relações de saber-
psicologia social da primeira autora (com orienta- poder inerentes à problemática e seu estudo.
ção da segunda autora).
O estudo das situações de violência vividas por
mulheres se justifica pelo fato deste ser um fenô- O paradigma epistemológico
meno universal, que ocorre em todo o mundo, da análise crítica de discurso
com prejuízos consideráveis para as vítimas. Ape-
sar de ser uma reivindicação antiga do movimento Qualquer pessoa que inicie seu percurso na análise
feminista, somente a partir dos anos noventa é de discurso (e, mesmo, a mais experiente) fica con-
que houve uma transformação nas concepções de fusa com a multiplicidade de abordagens analíti-
governantes e instituições internacionais sobre a cas disponíveis nas ciências humanas e sociais
violência praticada contra as mulheres, passando como tal denominadas. Ainda que haja muitas se-
a ser reconhecida como uma questão de direitos melhanças, também existem muitas diferenças
humanos e de saúde pública. As pesquisas realiza- quanto ao modo de fazer a análise, suas influênci-
das em várias partes do mundo mostraram que é as e pressupostos básicos. Algumas são mais in-
um problema muito mais grave do que previa- fluenciadas pela etnometodologia e análise da con-
mente se acreditava, necessitando uma interven- versação, outras estão ligadas ao pós-estruturalis-
ção urgente2-4. Nestes casos, frequentemente, o sis- mo ou ao construcionismo social. Ou seja, não
tema de saúde é o primeiro (senão o único) ponto existe um posicionamento único sobre a análise de
de contato com uma mulher que sofre violência, discurso9. Trata-se mais de um conjunto de abor-
visto ser nos hospitais e centros de saúde que bus- dagens interdisciplinares que podem ser usadas
ca ajuda para suas feridas físicas e psicológicas5. para explorar diversos domínios sociais através de
Assim, estudar o modo como os(as) profissionais diferentes tipos de estudos. Desta forma, também
de saúde estão lidando com estas situações é de não existe consenso sobre o que é o discurso ou
grande importância. De modo particular, os(as) sobre o modo de analisá-lo. As diferentes perspec-
médicos(as) de família, inseridos no contexto dos tivas oferecem suas próprias sugestões e defini-
cuidados primários em saúde, são importantes ções, competindo na apropriação dos termos “dis-
atores de transformação, visto ser de sua respon- curso” e “análise de discurso”1.
sabilidade não só o tratamento, mas também prá- De acordo com Viviene Burr10, a tradição fran-
ticas de prevenção e promoção da saúde. cesa do estruturalismo e do pós-estruturalismo tem
Devido a sua complexidade, as diversas formas sido desenvolvida por autores interessados em ques-
de violência vividas pelas mulheres devem ser en- tões sobre identidade, personalidade, alterações
tendidas como um fenômeno social, possuidor de sociais e relações de poder, tais como Wendy Ho-
um caráter revelador das estruturas de dominação llway, Ian Parker, Chris Weedon e Valerie Walkerdi-
da sociedade. Faz-se necessário, portanto, estudar ne. Alguns destes(as) pesquisadores(as) também
todas as formas de violência, estejam elas naturali- utilizam conceitos psicanalíticos para explicar a per-
zadas pela cultura ou protegidas por ideologias e/ sonalidade e a subjetividade, o que tem sido campo
ou instituições sociais aparentemente respeitáveis, de intensos debates e conflitos dentro do construci-
tais como a família, a escola, a empresa e o Esta- onismo social. Por outro lado, existe quem se inte-
do6,7. Neste sentido, utilizamos a expressão “vio- resse pelo discurso de um modo diferente. As qua-
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lidades performativas do discurso – ou seja, o que prática política, analisando o modo como os pro-
as pessoas fazem com suas falas ou escritos, o que cessos sociais participam na manutenção das es-
tentam obter ao falar ou escrever – têm sido um truturas de opressão1,11.
campo muito produtivo. Para isto, se apóiam na Portanto, a análise de discurso é muito mais
teoria do ato da fala, na análise da conversação e na do que um método de análise de dados, implican-
etnometodologia. O foco das pesquisas e escritos, do uma mudança epistemológica radical na for-
nesta tradição, está no modo como os relatos são ma de desenvolver a pesquisa e de construir co-
construídos e nos efeitos produzidos nos falantes e nhecimentos. Phillips e Jorgensen1 afirmam que,
ouvintes, nos dispositivos retóricos usados pelas apesar de poder ser utilizada em todas as áreas de
pessoas e os modos como são empregados. Não investigação, não pode ser empregada com todos
há uma preocupação especial com a personalidade, os tipos de fundamentos teóricos. Especialmente,
a subjetividade ou o poder e, tampouco, utilização não pode ser usada como um simples método de
de conceitos psicanalíticos. Para a autora, estas duas análise de dados desvinculado de seus fundamen-
tradições, apesar de distintas, não são incompatí- tos teóricos e metodológicos. Sua utilização, nas
veis. Simplesmente refletem preocupações diferen- palavras das autoras, se fundamenta em um “pa-
tes de pessoas que trabalham sob o “guarda-chu- cote completo” que contém: (a) premissas filosófi-
va” do construcionismo social. cas (ontológicas e epistemológicas) com relação
A este respeito, Nogueira et al.11 apoiam-se em ao papel da linguagem na construção social do
Tomás Ibañez para afirmar que o construcionis- mundo; (b) modelos teóricos; (c) guias metodo-
mo social é a escola que melhor se adequa ao pen- lógicos para abordar um domínio de pesquisa e
samento pós-moderno na psicologia, podendo (d) técnicas específicas para a análise. Teoria e mé-
incluir perspectivas como a psicologia crítica, a todo estão de tal forma interrelacionados que o
psicologia discursiva, a análise do discurso ou o pesquisador deve aceitar suas premissas filosófi-
pós-estruturalismo. Como movimento intelectual, cas básicas a fim de utilizar a análise de discurso.
o pós-modernismo, tanto em suas versões mais Apesar de dever formar um conjunto integrado,
radicais quanto nas mais moderadas, representa cada pesquisador(a) pode criar seu próprio “pa-
um grande desafio para o conhecimento, questio- cote” através da combinação de elementos de pers-
nando e rejeitando os pressupostos fundamentais pectivas de análise de discurso diferentes e, até
do modernismo: a noção de verdade última, o es- mesmo, de perspectivas analíticas não-discursivas.
truturalismo (idéia de que o mundo como o ve- A abordagem multiperspectivada é positivamente
mos é resultado de estruturas escondidas) e as avaliada, pois oferece diferentes formas de conhe-
metanarrativas (ou as grandes teorias). Enfatiza a cimento sobre um fenômeno e, consequentemen-
coexistência de uma multiplicidade e de uma vari- te, uma compreensão mais abrangente. Contudo,
edade de formas de vida dependentes das situa- este ecletismo não significa que as diferentes abor-
ções, o pluralismo. dagens possam ser reunidas de modo disparata-
A análise de discurso, nas suas diversas varia- do. Deve haver uma coerência nesta integração,
ções, é apenas uma (a mais visível) das aborda- tomando-se cuidado com as diferenças e seme-
gens existentes no construcionismo social. Seu pon- lhanças filosóficas, teóricas e metodológicas de cada
to de partida é a premissa da filosofia linguística abordagem.
estruturalista e pós-estruturalista de que nosso Por fim, a análise crítica de discurso se distin-
acesso à realidade sempre se dá através da lingua- gue pelo seu foco crítico, seu amplo âmbito e pelo
gem, pois é através desta que criamos as represen- engajamento político. É uma pesquisa politicamen-
tações (que nunca são um simples reflexo de uma te envolvida com reivindicações emancipatórias que
realidade preexistente) que contribuem para a procura ter efeitos nas práticas e nas relações soci-
construção da realidade. A linguagem não é ape- ais. Seu objetivo principal é revelar as conexões entre
nas um canal através do qual a informação subja- linguagem, poder e ideologia, bem como descrever
cente a estados mentais, comportamentos ou fa- o modo como o poder e a dominação são produ-
tos do mundo é comunicada. Pelo contrário, é uma zidos e reproduzidos na prática social através de
“máquina geradora” que constitui o mundo soci- estruturas discursivas de interação9.
al, bem como as identidades e as relações sociais.
Isto significa afirmar que alterar um discurso é um
modo de transformar o mundo social. Ao pensar O processo da análise de discurso
o discurso como uma prática social, algo que cons-
trói o mundo em vez de apenas refletí-lo, a análise Para exemplificar as tarefas/passos do processo de
de discurso promove o desenvolvimento de uma análise de discurso, utilizamos fragmentos de uma
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entrevista piloto realizada no âmbito do doutora- Drª = fala da entrevistada


mento em psicologia social da primeira autora, […] = pequenas pausas
cujo objetivo é analisar o discurso de médicos(as) (“número” s.) = pausas maiores, com marca-
de família sobre a violência de gênero para identi- ção de tempo. Ex: (5 s.)
ficar os efeitos do discurso psicológico em suas XXX = palavra pouco clara
práticas. Como vemos, as marcas/pressupostos do (—) = palavra incompreensível
construcionismo social já se fazem presentes no Suspiros, risos e outras manifestações são co-
próprio delineamento do tema de pesquisa. No locadas entre parênteses. Ex: (tom irônico); (ri-
exemplo apresentado, ao invés de conceber a fala sos); (suspiro).
da entrevistada como representativa de suas opi- Com o material transcrito em mãos, a tarefa
niões ou pensamentos - ou seja, como seguinte é certificarmos de que constitui realmente
(re)apresentação de algo “interno” - busca-se iden- um (ou mais) discurso(s). De acordo com No-
tificar os efeitos discursivos e o modo como estes gueira e Fidalgo12, nem tudo é discurso, existindo
constróem práticas. dois critérios centrais para sua definição. Em pri-
Delimitado o tema da pesquisa, devemos defi- meiro lugar, um fragmento de conversação ou tex-
nir o material a ser analisado e os sujeitos de pes- to é relevante se os(as) seus(uas) participantes são
quisa. Na presente investigação, escolhemos como representativos do grupo/comunidade que o(a)
participantes médicos(as) de família que exercem investigador(a) tenha identificado como protago-
suas atividades no contexto dos cuidados primá- nista na relação social estudada. A representativi-
rios em saúde. Esta escolha justifica-se pelo fato dade, aqui, não está ligada à noção estatística, mas
dos serviços de saúde frequentemente serem o pri- ao fato de a pessoa entrevistada ter uma referência
meiro e, muitas vezes, o único ponto de contato grupal que lhe permita expressar, de forma típica,
com mulheres vítimas de violência conjugal5. Acre- o conjunto de vivências de seu grupo. Trabalha-se,
ditamos que os(as) médicos(as) de família, devi- portanto, com o conceito de “sujeito coletivo”13. O
do ao vínculo e à continuidade dos cuidados pres- segundo critério é a existência efeitos discursivos,
tados, estão em uma posição privilegiada para de- os quais não dizem respeito a efeitos psicológicos
tectar e intervir nas situações de violência conjugal individuais no(a) falante ou ouvinte. Os efeitos dis-
entre suas pacientes. Desta forma, realizou-se uma cursivos são aqueles que operam por cima do nível
entrevista semi-estruturada com tópicos que ver- individual […]. A tarefa do analista consiste em
savam sobre a formação e experiências profissio- percorrer os textos procurando todas as possíveis lei-
nais da entrevistada, seu contato com situações de turas e identificar aquelas que sejam mais adequa-
violência de gênero, compreensão sobre a proble- das para a relação social que está em consideração12
mática, estratégias utilizadas para lidar com o pro- [grifo das autoras].
blema, dificuldades e conhecimentos/cursos de for- No material em análise, podemos afirmar que
mação frequentados. a longa experiência profissional da entrevistada
A entrevista foi realizada na universidade onde (mais de vinte anos atuando em cuidados primá-
a entrevistada atua como professora, gravada e rios) a capacita para falar em nome da categoria
depois transcrita na íntegra, tendo duração apro- “médicos(as) de família” e a coloca numa posição
ximada de cinquenta minutos. A este respeito, mais representativa do seu grupo. Neste aspecto, sua
uma vez, existem concepções epistemológicas ca- fala pode ser considerada discurso. Quanto ao se-
racterísticas do construcionismo social. Stubbe et gundo critério, sua atuação tanto no sistema de
al.9 afirmam que a análise dos dados já se inicia saúde (centro de saúde) quanto no sistema educa-
com a transcrição, a transformação das falas em tivo (universidade) possui efeitos discursivos: ao
texto escrito, pois toda a transcrição é uma apro- tratar mulheres vítimas de violência, seu discurso
ximação, uma reedição parcial da gravação em que constitui práticas de cuidado/intervenção; ao mi-
se baseia; nunca é neutra ou recupera plenamente nistrar aulas e relatar suas experiências aos(às)
o texto falado. Uma vez que o processo de trans- futuros(as) médicos(as), suas práticas constitu-
crição é, inevitavelmente, seletivo, envolve uma certa em regras/prescrições. As práticas de cuidado/in-
dose de interpretação e análise. Desta forma, o tervenção e as regras/prescrições são o que cha-
material gravado foi transcrito o mais detalhada- mamos de “efeitos discursivos”.
mente possível, destacando pausas, alterações na O passo seguinte no processo de análise da en-
entonação vocal, suspiros, risos e outras manifes- trevista é a leitura repetida das transcrições. As gran-
tações, sendo o “sistema de transcrição” adotado des categorias que começam a emergir da recor-
bastante simples, onde: rência de temas são relacionadas à literatura e,
M = fala da entrevistadora numa leitura mais detalhada, refinadas em cate-
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gorias recorrentes menores, os “repertórios” ou de gênero, a promoção de uma cultura de não-
“discursos”14. Dito de outra forma, são elabora- violência na comunidade atendida pelo centro de
das conexões em torno das questões de pesquisa; saúde ou grupos de mulheres para o enfrentamento
detalhados e sinalizados os significados construí- da violência16. Lembrando que os cuidados pri-
dos no texto e o modo como estes objetos são mários também são responsáveis pela prevenção e
construídos15. promoção da saúde, uma ação poderia ser o ques-
O tema principal da entrevista foi o contato da tionamento do mito da inviolabilidade da privaci-
entrevistada com situações de violência praticada dade familiar, o que poderia ser obtido com a pro-
nas famílias que atende, não apenas contra mu- moção de uma maior visibilidade para o fenôme-
lheres, mas também jovens e crianças de ambos os no. Contudo, não é o que acontece. As situações de
sexos. Abrange o relato de diferentes situações, o violência relatadas permanecem restritas ao con-
modo e a intensidade com que aparecem na sua texto da consulta médica, conforme o fragmento
vivência profissional e suas explicações para o fe- abaixo demonstra:
nômeno. Dentre as diversas análises que a entre- Drª: muitas vezes nem os vizinhos sabem […]
vista pode suscitar, destacamos especialmente dois não sabem quem que fica dentro da casa. E […] e
temas, os quais chamamos de “discurso sociológi- […] e quando nos contam a nós, ah […] e aquilo
co” e “discurso psicológico”. é uma coisa muito restrita. Hã […] aquilo que
O discurso sociológico é identificado a partir […] que eu faço, normalmente, é […] é […] é
dos recursos discursivos utilizados pela médica de tentar que […] que elas […] porque, normalmen-
família para explicar o motivo de encontrar tantas te, estas pessoas tem uma auto-estima um bocadi-
mulheres e jovens vítimas de agressões entre suas to baixa.
pacientes, o qual remete ao campo sociológico. A M: Ahã […]
violência é vista como algo que faz parte da vida Drª: é tentar reforçar um bocadinho a auto-
destas pessoas, conforme aparece na utilização de estima, para as pessoas sentirem que […] quer
expressões como “o tradicional”, “muito frequen- dizer, não tem o direito de ser batidas […]
te”, “o hábito” ou “a parte cultural” presentes no M: Ahã […]
fragmento abaixo: Drª: […] muito menos pela pessoa com quem
[…] vivem […] diariamente, né?
Drª: É assim, o tradicional, aqui nesta zona, As soluções apontadas se dirigem ao nível in-
são os maridos baterem nas mulheres. dividual, como o encaminhamento para a psicote-
M: Ahã […] rapia e outras estratégias individualizantes, tais
Drªª: É […]é muito frequente. E […] os pais como o “reforço da auto-estima”, “a abordagem
castigarem extremamente os filhos! centrada na pessoa” ou o estabelecimento de “es-
M: Ahã. tratégias de evitamento da agressão”.
Drª: Ou porque há o hábito de bater na […] Drª: Estou a me lembrar de um caso, de uma
mulher, na mulher. senhora que é batida pelo marido, e agora apare-
M: Sim. Pelo fato de ser mulher […]? ceu-me a filha dela, que é batida pelo namorado! E
Drª: Batem. […] tentei trabalhar […] também assim com a
M: […] já batem […] quando é jovem […] e filha, e a filha […] acha muito bem, porque a mãe
depois quando for adulta, também. também leva!
Drª: […] batem […] M: Hum hum […]
Drª: Eu, eu acho que tem muito a ver com […] Drª: E eu fiquei um bocado […] (suspiro) as-
com a parte cultural […] sustada. Ah […] e pronto, e a filha, essa, encami-
M: Ahã […] nhei mesmo para […] para psicoterapia porque
—-
Drª: (—-
—-) tem muito a ver […] ah […] que já acho que é uma jovem ainda […]
nasceram, em casas, que […] que as mães eram M: Sim […]
batidas! E que elas também eram batidas, pelos Drª: […] novinha, que […] ainda poderá […]
pais! ter algum benefício nisso, não é?
M: Sim […] M: Hum hum […]
Drª: […] depois casam e continuam aquilo. Drª: […] a mãe já […] tem […] a idade que
A partir da construção da violência de gênero tem […] se calhar, já […] já não terá muito, mas
como algo que diz respeito à cultura, aos aspectos também não temos, assim, mãos da […] da psi-
históricos e sociais, seria esperado que as interven- coterapia como nós queremos, não é? Porque se
ções realizadas se inserissem neste âmbito, com, tivéssemos era diferente.
por exemplo, medidas de promoção da igualdade ———————
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Azambuja MPR, Nogueira C

Drª: Assim, eu utilizo muito o […] a aborda- A respeito da socialização, Nogueira19, apoian-
gem centrada na, na […] na pessoa que tenho na do-se nas idéias de Sandra Harding, afirma que se
minha frente […] trata de uma perspectiva essencialista que se insere
M: Ahã. no programa empirista da psicologia tradicional.
Drª: E […] e com algumas reformulações, com Abordagem dominante nos estudos de gênero na
[…] fazendo levar a pessoa a compreender aquela psicologia social da metade do século XX, surgiu
situação, e […] a tentar chegar lá primeiro […] como uma tentativa de mudar o foco de atenção
ver como é que pode […] separar isso, como é que do biológico para o social. Segundo esta concep-
pode conseguir lidar com as coisas de outra ma- ção, desde o nascimento, as crianças aprendem a
neira, e […] e […] até […] acabar às vezes por não internalizar prescrições apropriadas para o ser fe-
[…] não […] ter que levar tanto, porque começa a minino ou ser masculino segundo as normas soci-
perceber quando é que […] vem pancada […] ais. A partir de processos de modelagem e imitação,
M: Ahã. a personalidade é formada de modo definitivo, pas-
Drª: E a ter […] hã […] saber gerir um bocado sando a constituir uma característica individual,
isto, de modo a evitar apanhar, né. estável e inerente aos indivíduos. A distinção entre
M: Sim, sim […]Que ela possa perceber algu- inato e aprendido é meramente semântica, pois os
ma situação, algum indicador, digamos, que o padrões de socialização internalizados são concebi-
companheiro dê […] dos como específicos e persistentes ao longo da vida,
Drª: Exato, que dê […] que vai levar e que elas como uma “essência”. Ou seja, apesar de procurar
possam defender né […] acrescentar os fatores socioculturais, a teoria da
socialização permanece funcionando dentro de uma
Assim, percebemos que há uma aparente con- visão essencialista, em que um comportamento,
tradição entre as causas apontadas para a violên- após aprendido, se torna inalterável.
cia (socioculturais) e as medidas utilizadas para No contexto da entrevista em análise, percebe-
enfrentá-las (individuais), constatação que nos leva mos que os discursos identificados (sociológico e
ao tema seguinte. psicológico) atuam articuladamente na constru-
O discurso psicológico diz respeito às constru- ção da violência de gênero como um problema in-
ções discursivas da violência como um problema dividual - ou, no máximo, intrafamiliar. Ao invés
individual e de fundo psicológico - tal como a auto- de constituírem uma oposição, ambos os discur-
estima baixa - ou como um problema familiar. De sos estabelecem uma relação paradoxal: as expli-
modo particular, a questão da transgeracionalida- cações para as causas da violência utilizam recur-
de da violência tem sido muito discutida no campo sos discursivos do campo sociológico (a tradição,
da psicologia a partir de expressões como “famíli- a cultura), mas de uma forma essencialista; as in-
as disfuncionais”, “famílias caóticas”, “famílias de- tervenções realizadas se inserem no campo psico-
sorganizadas” ou “círculo da violência”. Conforme lógico, através de dispositivos individualizantes
já discutido em outro momento17, especialmente (psicoterapia, reforço à auto-estima, estratégias de
na psicologia, existe uma tendência de utilizar ex- evitação). Em síntese, ambos os discursos posicio-
plicações deterministas para o fenômeno da inter- nam as vítimas como responsáveis individualmen-
geracionalidade da violência. Enraizada nas mais te pelas vivências de violência conjugal, bem como
profundas crenças de estudiosos(as) e do senso pelo enfrentamento e superação desta situação.
comum, o determinismo da intergeracionalidade Consequentemente, o papel do(a) profissional se
foi, de certa forma, criado e legitimado pela pró- restringe a auxiliá-las a encontrar respostas para o
pria psicologia que, desde seus primórdios, tem problema, numa lógica de “cura por esbatimento
buscado estabelecer padrões de normalidade para dos sintomas”.
os comportamentos humanos. Assim, o jargão “o Retomando a proposta de apresentar o pro-
abusado de hoje será o abusador de amanhã” se cesso de análise de discurso, é importante lembrar
tornou quase que uma “lei”. As explicações mais as críticas apontadas por Antaki et al.19 para erros
psicologicistas normalmente utilizam análises da comuns em diversos tipos de estudos qualitativos,
personalidade do abusador, visto como “doente”, o que chamam de “pseudo-análises”. No exemplo
“perturbado emocionalmente” ou “perverso”, es- que trazemos, restringirmos a análise de discurso
tando entre as razões para esta “perturbação” fa- à simples constatação do paradoxo social versus
tores sociobiológicos (transmissão genética) ou psicológico seria uma “pseudo-análise por locali-
comportamentais, sendo estes últimos geralmente zação de elementos”, que consiste em apenas iden-
associados à noção de “comportamento aprendi- tificar e localizar elementos ou características dos
do” ou de “socialização”. dados sem apresentar nenhuma informação ou
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reflexão adicional; ou uma “pseudo análise circu- Segundo as autoras, apenas muito recentemente os
lar”, em que as citações empregadas são explicadas profissionais da saúde foram chamados para in-
a fim de sustentar a existência do repertório/dis- tervir em um problema que, até então, era visto
curso em termos desta mesma entidade. De modo como predominantemente social. Esta alteração na
semelhante, restringirmos a análise à “avaliação” construção da violência doméstica significa uma
das intervenções da entrevistada seria realizar uma redução de limites entre as disciplinas, com a inte-
“pseudo-análise baseada na tomada de posição ou gração de um complexo problema social nas obri-
juízo de valor”, fundamentada em aspectos como gações e responsabilidades dos(as) profissionais de
a moral, a posição política ou pessoal do(a) ana- saúde, o que traz vantagens, mas também alguns
lista a fim de censurar (ou fomentar) alguma fala. dilemas. A utilização do modelo médico, predomi-
Mais do que um julgamento da atitude individual nante no campo da saúde e fundamentado pelo
da profissional cujo discurso está sendo analisa- paradigma científico da modernidade, leva à indi-
do, devemos compreender sua fala como funda- vidualização dos problemas, os quais são reduzi-
mentada nos recursos socialmente disponíveis para dos a categorias de diagnóstico (de doença) e de
compreender o fenômeno da violência. E, para isso, tratamento. Assumindo a perspectiva individual, o
é necessário identificar as condições de possibili- discurso médico redefine e reduz a complexidade
dade deste(s) discurso(s). dos fatores sociais e de saúde envolvidos na violên-
cia doméstica em termos dos atributos individuais
da mulher agredida. Assim, podemos afirmar que
Condições de possibilidade o discurso sociológico anteriormente identificado
se aproxima ao discurso médico, hegemônico no
Chamamos de condições de possibilidade todos campo dos cuidados em saúde.
os aspectos (históricos, sociais, culturais, ideológi- De modo semelhante, o discurso psicológico
cos, econômicos, etc.) que, de forma articulada, dominante é oriundo do paradigma moderno,
engendram um determinado discurso. Para que a preocupando-se em estabelecer leis, prever aconte-
análise de discurso realmente se identifique como cimentos e determinar os padrões de normalidade
crítica, tais condições devem ser esmiuçadas, ques- e anormalidade. A ideologia do individualismo
tionadas e desconstruídas para que, alternativa- marcou a instauração da psicologia a partir da
mente, novos discursos e práticas se estabeleçam. noção de um indivíduo moralmente autônomo,
Seguindo alguns dos “passos” apresentados por senhor de si, livre dos vínculos e determinismos
Parker15, é preciso falar sobre as redes de relação universais definidos pela cultura. A psicologia ci-
que dão sentido ao texto, destacar os padrões exis- entífica do início do século XX, a criação de inúme-
tentes, nomear alguns discursos como compro- ros laboratórios experimentais e o desenvolvimen-
missos sociais que tornam possíveis os arranjos to da psicometria são exemplos da busca por um
sociais contraditórios e ressaltar os aspectos rela- método objetivo para o conhecimento do ser hu-
cionados à ideologia e ao poder. mano, medição de seu comportamento e ajuste à
No tema em questão, encontramos uma rede ordem social vigente19,20.
de relação entre discursos aparentemente contra- Seguindo a lógica positivista - em que as uni-
ditórios (explicações sociológicas versus interven- dades devem ser separadas para melhor serem es-
ções individuais) que constroem a violência de gê- tudadas - inicialmente, psicologia e medicina tra-
nero como um problema de foro íntimo, delicado balharam em domínios distintos: mente versus
e complexo, ainda que tenha raízes socioculturais. corpo, sendo que as grandes transformações ocor-
O social entra sob a lógica da socialização discuti- ridas no campo da saúde em meados do século XX
da acima18: a “cultura” destas famílias atua como representam o auge do paradigma mecanicista. É
uma “essência” que, depois de internalizada, tor- o caso, por exemplo, da descoberta dos antibióti-
na-se inalterável. Desta forma, filhas de mulheres cos e da crescente sofisticação tecnológica da me-
agredidas passam a considerar esta situação “nor- dicina a partir da Segunda Guerra Mundial. Tais
mal”, repetindo este padrão nas suas relações afe- transformações consolidaram o modelo científico
tivas devido a “processos de modelagem” ou “imi- mas, paradoxalmente, também foram as causas
tação”, os quais apenas poderão ser alterados pela de sua falência. Com o desenvolvimento das soci-
psicoterapia ou pelo reforço à auto-estima (estra- edades e a melhoria da qualidade de vida das po-
tégias individuais). pulações, novos problemas foram colocados para
As discussões de Lavis et al.20 sobre a integração o campo da saúde. O aumento das doenças crôni-
da violência doméstica no campo dos cuidados de co-degenerativas (diferentes tipos de câncer, doen-
saúde são úteis para entendermos este paradoxo. ças do coração, hipertensão arterial, doenças men-
1728
Azambuja MPR, Nogueira C

tais), que não se mostram tratáveis por interven- as na saúde. E, neste caso, a única intervenção con-
ções baseadas no modelo unicausal, representa siderada efetiva (cura) é o abandono da relação
uma crise na medicina ocidental moderna21. conjugal violenta.
Neste momento de transição no quadro de Retomando material analisado, percebemos
morbimortalidade (do predomínio das doenças que as diversas intervenções individualizantes se
infecciosas para o aumento das doenças crônicas), inserem nesta perspectiva. O reforço à auto-estima
a importância de aspectos psicológicos e sociais do é uma estratégia de “empoderamento” e o encami-
adoecer se tornou mais evidente, requisitando a nhamento para a psicoterapia se insere na lógica
intervenção de outras esferas do conhecimento, (redutora) da classificação diagnóstica. Logo, a in-
entre elas a psicologia. A subdisciplina psicologia trodução da violência de gênero como um proble-
da saúde surgiu neste período, buscando respon- ma de saúde não foi acompanhada por um novo
der à necessidade de pensar o processo saúde-do- modelo de trabalho, sendo vista como apenas mais
ença como um problema social. Contudo, devido um problema de saúde entre tantos outros. Na
às raízes históricas da própria psicologia, isto se falta de um modelo próprio, as questões relativas
deu a partir dos ideais do paradigma dominante, à violência doméstica são manejadas de acordo com
o positivista22. Desta forma, tanto a medicina com- os repertórios discursivos disponíveis – os discur-
portamental quanto a psicologia da saúde inspi- sos médico e psicológico – sendo a individualiza-
raram-se no behaviorismo, fazendo com que os ção e a medicamentalização da violência de gênero
discursos sobre a saúde ficassem marcados pela os principais (e mais perigosos) efeitos discursi-
noção de que os indivíduos são responsáveis pela vos. Constroem-se práticas de cuidado e interven-
sua condição de saúde devido às “escolhas” feitas ção a-políticas, descontextualizadas e redutoras
ou ditadas por seu “estilo de vida”. Prevalece o do- que responsabilizam as vítimas.
mínio individual em detrimento das questões so- Dando seguimento à proposta de “desconstruir”
cioculturais. Mesmo quando passou a adotar o os discursos hegemônicos, a análise de discurso
modelo biopsicossocial, a psicologia da saúde se também deve procurar identificar potencialidades,
deteve numa ênfase individualista, com a domi- “linhas de fuga” dentro do próprio discurso domi-
nância de modelos de estresse e estratégias de en- nante. No trecho seguinte, podemos identificar que
frentamento e modelos cognitivo-sociais para pro- o sentimento de despreparo e a posterior busca
cessos psicológicos associados à saúde e doença, por cursos de formação podem representar um
permanecendo como foco a condição de saúde dos momento de abertura para novas possibilidades,
indivíduos, seu estilo de vida e características psi- reflexões e questionamentos do saber construído.
cológicas associadas às doenças23,24.
A respeito da temática em análise, Lavis et al.20 M: E […] e a senhora se sente preparada pra
afirmam que a abordagem individualista posicio- lidar com essas situações?
na as mulheres que vivenciam violência doméstica Drª: Hã […] É assim […] tem algumas dificul-
como objetos de processos de psicopatologização, dades, não é?
suprimindo relatos alternativos de resistência e ig- M: Hum hum […]
norando o amplo contexto social e político que Drª: Hã […] já fiz algum […] alguma forma-
perpetua e sustenta a violência. Desta forma, se ção nessa área […]
estabelece uma relação hierárquica desigual, em que M: Sim […]
os(as) profissionais de saúde são posicionados Drª: Porque, de fato […] quer dizer, a pessoa,
como especialistas detentores de poder sobre suas sente dificuldade e procura formação nessas áreas
pacientes. A relação assimétrica de poder que se […]
estabelece serve para protegê-los(as) do envolvi- M: Hum hum […]
mento emocional que tais situações podem acar- Drª: […] e já fiz alguma.
retar, o que é condizente com o modelo positivista M: Hum hum […]
de ciência, pautado pela neutralidade. A violência Drª: E digamos […] que é sempre uma situa-
de gênero, ao ser reduzida a uma categoria diag- ção que […] mexe conosco, não é […] ?
nóstica, torna-se um problema controlável e ma- M: Hum hum […]
nipulável pelos recursos oferecidos pelo discurso Drª: Mesmo que a gente não queira, e na hora
médico. Adota-se um discurso semelhante ao uti- tenha que ser muito imparcial e tem que […] não
lizado para lidar com doenças crônicas, em que o se pode deixar afetar […]
papel do(a) profissional é “empoderar” o(a) paci- M: Hum hum […]
ente para introduzir mudanças em seu “estilo de Drª: Mas no fundo é uma coisa que nos afeta,
vida” ou situação social a fim de alcançar melhori- não é?
1729

Ciência & Saúde Coletiva, 14(5):1721-1730, 2009


Numa primeira análise, o sentimento de inca- de violência de gênero envolve a renegociação das
pacidade, de sentir dificuldades para lidar com es- posições subjetivas tradicionais na interação
tas situações pode ser entendido como uma “fra- médico(a)-paciente e a desconstrução das relações
queza” na formação profissional da entrevistada. de poder subjacentes.
Indo além da simples crítica, o construcionismo
social pretende realizar uma descrição mais positi-
va do potencial científico, sendo seu objetivo anali-
sar as interações e as práticas sociais daí resultan- Considerações finais
tes11. Logo, estes momentos de busca por forma-
ção/capacitação profissional podem servir como O objetivo principal deste artigo era mostrar os
espaços de construção de novos saberes. O contato pressupostos e fundamentos da análise de discur-
com referenciais da psicologia crítica pode servir so, bem como apresentar uma amostra de como
como um “chamamento para a ação”, tal como des- pode ser realizada. Mais do que simplesmente des-
crito por Murray e Campbell25. Segundo estes au- crever um “método”, pretendíamos dar visibilida-
tores, é necessário que os(as) profissionais da saú- de às potencialidades investigativas deste paradig-
de entrem no fórum político como ativistas ao in- ma para um campo particular de estudo, a violên-
vés de se limitarem a serem apenas cia de gênero. Acreditamos que as análises aqui
“trabalhadores(as)”, saindo da posição de apresentadas – ainda que incipientes – indicam de
observadores(as) para a de comprometidos(as) que forma os conhecimentos e saberes existentes –
socialmente, preocupando-se com o impacto po- as verdades – podem ser questionadas, descons-
tencial das pesquisas na melhoria da qualidade de truídas e, fundamentalmente, reconstruídas de
vida. O papel da ação e da crítica pode assumir modo mais positivo. A violência de gênero é um
diversas formas, indo desde a participação em tema que, cada vez mais, tem atraído a atenção de
movimentos sociais até a exposição teórica dos pres- governantes e estudiosos(as) e, apesar das diver-
supostos que sustentam as práticas psicológicas. sas pesquisas, legislações e intervenções realizadas
Através da apresentação dos referenciais da episte- em todo o mundo, os números tendem cada vez
mologia feminista e da psicologia crítica, as idéias mais a crescer2-5. Por um lado, isto representa uma
dominantes na disciplina podem ser alteradas, maior visibilidade do fenômeno e, portanto, uma
mostrando como elas individualizam e reduzem as vitória; por outro lado, o aumento do número de
noções de saúde e doença. casos registrados expõe a fragilidade destas inter-
Este é o caso, por exemplo, da utilização da venções que não conseguem, de fato, estancar o
terminologia “mulher vítima” ou “mulher sobre- problema. Neste sentido, torna-se importante re-
vivente” de violência. De acordo com Lavis et al.20, fletir sobre o tipo de cuidado que tem sido ofereci-
a representação das mulheres que vivenciam vio- do a estas mulheres. A análise aqui apresentada
lência doméstica como vítimas as posiciona como indica que as intervenções são microfocadas, dire-
fracas, passivas, dependentes dos outros e com cionadas para o âmbito individual e marcadas pelo
pouco controle sobre suas vidas. Tal construção é discurso médico do paradigma da modernidade
condizente com a posição subjetiva tradicional e que ainda domina na área da saúde, desconside-
com o modelo de resposta evidente no paradigma rando o amplo contexto social e político que sus-
médico de cuidado. Ignorar a capacidade de agên- tenta a violência de gênero. Acreditamos que a aná-
cia feminina serve para invalidar sua experiência lise de discurso representa uma importante ferra-
subjetiva e excluí-la de um papel ativo na interven- menta potencializadora para a investig(ação), uma
ção. Por outro lado, a utilização da palavra “so- vez que permite desconstruir os saberes existentes
brevivente” significa reconhecer suas estratégias de - para, em seguida, reconstruí-los de modo mais
resistência, ligando-se à noção de uma mulher ati- abrangente, com um foco nas relações sociais e
va, de força, que busca lidar ativamente com o nos jogos de força e poder, através dos suportes
problema. Portanto, fundamentalmente, a altera- oferecidos pela psicologia da saúde crítica, do cons-
ção no modo de cuidado oferecido para situações trucionismo social e do feminismo.
1730
Azambuja MPR, Nogueira C

Colaboradores Agradecimentos

M Azambuja realizou a pesquisa bibliográfica, a Com o apoio do Programa Alban, Programa de


coleta de dados e redigiu o artigo. C Nogueira orien- Bolsas de Alto Nível da Comunidade Européia
tou a pesquisa, revisou e aprovou a redação do para a América Latina, bolsa nº E05D053211BR.
artigo.

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