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ARTIGO ARTICLE
utilização da análise de discurso
Abstract In the last few years we see the growing use Resumo Nos últimos anos, assistimos ao cresci-
of the terms “discourse” and “discourses analysis” in mento da utilização das expressões “discurso” e “aná-
academic and research contexts, frequently without lise de discurso” em diversos contextos acadêmicos e
a precise definition. This fact opens space for critics de pesquisa, muitas vezes sem uma definição precisa,
and mistakes. The aim of this paper is to show a brief abrindo precedentes para confusões e críticas. O ob-
contextualization of discursive studies, as well as tasks/ jetivo deste artigo é apresentar uma contextualiza-
steps to Discourse Analysis process by the Social Con- ção breve dos estudos discursivos, bem como as tare-
strucionism perspective. As examples we used frag- fas/passos do processo de análise de discurso sob a
ments of an interview with a Family Doctor about perspectiva do construcionismo social. Utilizamos
gender violence. In the results we detach the poten- como exemplo fragmentos de uma entrevista reali-
tial of Discourse Analysis to deconstruct the existing zada com uma médica de família sobre a violência de
discourses to subsequently (re)construction in the gênero. Dentre os resultados, destacamos 0 potencial
way to a more holistic view about gender violence da análise de discurso para a desconstrução dos dis-
problem. cursos existentes e posterior (re)construção em dire-
Key words Discourse analysis, Social construcion- ção a uma abordagem mais integradora para o pro-
ism, Gender violence blema da violência de gênero.
Palavras-chave Análise de discurso, Construcio-
nismo social, Violência de gênero
1
Programa RS
Socioeducativo - Eixo II
(Apoio e Acompanhamento
de Egressos), Centro de
Educação Profissional São
João Calábria. Rua Aracaju
650, Nonoai. 91740-320
Porto Alegre RS.
mariruwer@pop.com.br
2
Instituto de Educação e
Psicologia, Departamento
de Psicologia, Universidade
do Minho.
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Azambuja MPR, Nogueira C
Drª: Assim, eu utilizo muito o […] a aborda- A respeito da socialização, Nogueira19, apoian-
gem centrada na, na […] na pessoa que tenho na do-se nas idéias de Sandra Harding, afirma que se
minha frente […] trata de uma perspectiva essencialista que se insere
M: Ahã. no programa empirista da psicologia tradicional.
Drª: E […] e com algumas reformulações, com Abordagem dominante nos estudos de gênero na
[…] fazendo levar a pessoa a compreender aquela psicologia social da metade do século XX, surgiu
situação, e […] a tentar chegar lá primeiro […] como uma tentativa de mudar o foco de atenção
ver como é que pode […] separar isso, como é que do biológico para o social. Segundo esta concep-
pode conseguir lidar com as coisas de outra ma- ção, desde o nascimento, as crianças aprendem a
neira, e […] e […] até […] acabar às vezes por não internalizar prescrições apropriadas para o ser fe-
[…] não […] ter que levar tanto, porque começa a minino ou ser masculino segundo as normas soci-
perceber quando é que […] vem pancada […] ais. A partir de processos de modelagem e imitação,
M: Ahã. a personalidade é formada de modo definitivo, pas-
Drª: E a ter […] hã […] saber gerir um bocado sando a constituir uma característica individual,
isto, de modo a evitar apanhar, né. estável e inerente aos indivíduos. A distinção entre
M: Sim, sim […]Que ela possa perceber algu- inato e aprendido é meramente semântica, pois os
ma situação, algum indicador, digamos, que o padrões de socialização internalizados são concebi-
companheiro dê […] dos como específicos e persistentes ao longo da vida,
Drª: Exato, que dê […] que vai levar e que elas como uma “essência”. Ou seja, apesar de procurar
possam defender né […] acrescentar os fatores socioculturais, a teoria da
socialização permanece funcionando dentro de uma
Assim, percebemos que há uma aparente con- visão essencialista, em que um comportamento,
tradição entre as causas apontadas para a violên- após aprendido, se torna inalterável.
cia (socioculturais) e as medidas utilizadas para No contexto da entrevista em análise, percebe-
enfrentá-las (individuais), constatação que nos leva mos que os discursos identificados (sociológico e
ao tema seguinte. psicológico) atuam articuladamente na constru-
O discurso psicológico diz respeito às constru- ção da violência de gênero como um problema in-
ções discursivas da violência como um problema dividual - ou, no máximo, intrafamiliar. Ao invés
individual e de fundo psicológico - tal como a auto- de constituírem uma oposição, ambos os discur-
estima baixa - ou como um problema familiar. De sos estabelecem uma relação paradoxal: as expli-
modo particular, a questão da transgeracionalida- cações para as causas da violência utilizam recur-
de da violência tem sido muito discutida no campo sos discursivos do campo sociológico (a tradição,
da psicologia a partir de expressões como “famíli- a cultura), mas de uma forma essencialista; as in-
as disfuncionais”, “famílias caóticas”, “famílias de- tervenções realizadas se inserem no campo psico-
sorganizadas” ou “círculo da violência”. Conforme lógico, através de dispositivos individualizantes
já discutido em outro momento17, especialmente (psicoterapia, reforço à auto-estima, estratégias de
na psicologia, existe uma tendência de utilizar ex- evitação). Em síntese, ambos os discursos posicio-
plicações deterministas para o fenômeno da inter- nam as vítimas como responsáveis individualmen-
geracionalidade da violência. Enraizada nas mais te pelas vivências de violência conjugal, bem como
profundas crenças de estudiosos(as) e do senso pelo enfrentamento e superação desta situação.
comum, o determinismo da intergeracionalidade Consequentemente, o papel do(a) profissional se
foi, de certa forma, criado e legitimado pela pró- restringe a auxiliá-las a encontrar respostas para o
pria psicologia que, desde seus primórdios, tem problema, numa lógica de “cura por esbatimento
buscado estabelecer padrões de normalidade para dos sintomas”.
os comportamentos humanos. Assim, o jargão “o Retomando a proposta de apresentar o pro-
abusado de hoje será o abusador de amanhã” se cesso de análise de discurso, é importante lembrar
tornou quase que uma “lei”. As explicações mais as críticas apontadas por Antaki et al.19 para erros
psicologicistas normalmente utilizam análises da comuns em diversos tipos de estudos qualitativos,
personalidade do abusador, visto como “doente”, o que chamam de “pseudo-análises”. No exemplo
“perturbado emocionalmente” ou “perverso”, es- que trazemos, restringirmos a análise de discurso
tando entre as razões para esta “perturbação” fa- à simples constatação do paradoxo social versus
tores sociobiológicos (transmissão genética) ou psicológico seria uma “pseudo-análise por locali-
comportamentais, sendo estes últimos geralmente zação de elementos”, que consiste em apenas iden-
associados à noção de “comportamento aprendi- tificar e localizar elementos ou características dos
do” ou de “socialização”. dados sem apresentar nenhuma informação ou
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tais), que não se mostram tratáveis por interven- as na saúde. E, neste caso, a única intervenção con-
ções baseadas no modelo unicausal, representa siderada efetiva (cura) é o abandono da relação
uma crise na medicina ocidental moderna21. conjugal violenta.
Neste momento de transição no quadro de Retomando material analisado, percebemos
morbimortalidade (do predomínio das doenças que as diversas intervenções individualizantes se
infecciosas para o aumento das doenças crônicas), inserem nesta perspectiva. O reforço à auto-estima
a importância de aspectos psicológicos e sociais do é uma estratégia de “empoderamento” e o encami-
adoecer se tornou mais evidente, requisitando a nhamento para a psicoterapia se insere na lógica
intervenção de outras esferas do conhecimento, (redutora) da classificação diagnóstica. Logo, a in-
entre elas a psicologia. A subdisciplina psicologia trodução da violência de gênero como um proble-
da saúde surgiu neste período, buscando respon- ma de saúde não foi acompanhada por um novo
der à necessidade de pensar o processo saúde-do- modelo de trabalho, sendo vista como apenas mais
ença como um problema social. Contudo, devido um problema de saúde entre tantos outros. Na
às raízes históricas da própria psicologia, isto se falta de um modelo próprio, as questões relativas
deu a partir dos ideais do paradigma dominante, à violência doméstica são manejadas de acordo com
o positivista22. Desta forma, tanto a medicina com- os repertórios discursivos disponíveis – os discur-
portamental quanto a psicologia da saúde inspi- sos médico e psicológico – sendo a individualiza-
raram-se no behaviorismo, fazendo com que os ção e a medicamentalização da violência de gênero
discursos sobre a saúde ficassem marcados pela os principais (e mais perigosos) efeitos discursi-
noção de que os indivíduos são responsáveis pela vos. Constroem-se práticas de cuidado e interven-
sua condição de saúde devido às “escolhas” feitas ção a-políticas, descontextualizadas e redutoras
ou ditadas por seu “estilo de vida”. Prevalece o do- que responsabilizam as vítimas.
mínio individual em detrimento das questões so- Dando seguimento à proposta de “desconstruir”
cioculturais. Mesmo quando passou a adotar o os discursos hegemônicos, a análise de discurso
modelo biopsicossocial, a psicologia da saúde se também deve procurar identificar potencialidades,
deteve numa ênfase individualista, com a domi- “linhas de fuga” dentro do próprio discurso domi-
nância de modelos de estresse e estratégias de en- nante. No trecho seguinte, podemos identificar que
frentamento e modelos cognitivo-sociais para pro- o sentimento de despreparo e a posterior busca
cessos psicológicos associados à saúde e doença, por cursos de formação podem representar um
permanecendo como foco a condição de saúde dos momento de abertura para novas possibilidades,
indivíduos, seu estilo de vida e características psi- reflexões e questionamentos do saber construído.
cológicas associadas às doenças23,24.
A respeito da temática em análise, Lavis et al.20 M: E […] e a senhora se sente preparada pra
afirmam que a abordagem individualista posicio- lidar com essas situações?
na as mulheres que vivenciam violência doméstica Drª: Hã […] É assim […] tem algumas dificul-
como objetos de processos de psicopatologização, dades, não é?
suprimindo relatos alternativos de resistência e ig- M: Hum hum […]
norando o amplo contexto social e político que Drª: Hã […] já fiz algum […] alguma forma-
perpetua e sustenta a violência. Desta forma, se ção nessa área […]
estabelece uma relação hierárquica desigual, em que M: Sim […]
os(as) profissionais de saúde são posicionados Drª: Porque, de fato […] quer dizer, a pessoa,
como especialistas detentores de poder sobre suas sente dificuldade e procura formação nessas áreas
pacientes. A relação assimétrica de poder que se […]
estabelece serve para protegê-los(as) do envolvi- M: Hum hum […]
mento emocional que tais situações podem acar- Drª: […] e já fiz alguma.
retar, o que é condizente com o modelo positivista M: Hum hum […]
de ciência, pautado pela neutralidade. A violência Drª: E digamos […] que é sempre uma situa-
de gênero, ao ser reduzida a uma categoria diag- ção que […] mexe conosco, não é […] ?
nóstica, torna-se um problema controlável e ma- M: Hum hum […]
nipulável pelos recursos oferecidos pelo discurso Drª: Mesmo que a gente não queira, e na hora
médico. Adota-se um discurso semelhante ao uti- tenha que ser muito imparcial e tem que […] não
lizado para lidar com doenças crônicas, em que o se pode deixar afetar […]
papel do(a) profissional é “empoderar” o(a) paci- M: Hum hum […]
ente para introduzir mudanças em seu “estilo de Drª: Mas no fundo é uma coisa que nos afeta,
vida” ou situação social a fim de alcançar melhori- não é?
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Colaboradores Agradecimentos
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