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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Operário e livresco vencem a falta de mistério

Diogo Araujo da Silva

Disciplina: Alegorias
literárias e fantasmagorias da
cultura
Professor: Jair Fonseca
15/09/2017
Os livros baratos, frívolos, de estudos primários, os livros infantis, os de
traduções ruins em edições de bolso, os livros de gôndola de hipermercados, os livros
dos gêneros suspense, romance ou sexo e todos os demais pertencentes ao que se tende
a chamar, sem neutralidade taxionômica, de subcategorias da literatura, poderiam ser
definitivamente eleitos como a causa da vergonha e da ira social de um leitor
profissional de literatura quando, na verdade, estão invariavelmente presentes, como
objetos comuns, nas provas de fogo de todos os amantes das letras que pretendem a
maturidade e a liberdade.
Uma sensibilidade que se vê absolutamente dissociada, pelo tempo, do
primitivo, do caótico original, do verde do fruto e, da conquista, nas profundezas, do
esgoto, mostra-se, no mínimo, como uma sensibilidade em flagrante espera e preguiça –
e, portanto, em curta ação. Afinal, se tudo o que ela toca é apogeu identitário (nunca
pastiche), que deus (ou o Diabo) esteja com ela para a salvar no momento em que,
sozinha ou mal-acompanhada, tiver que se filtrar a si mesma, em que tiver que
descansar, ou tiver que, simplesmente, saber estar com a pele um mínimo corada a cada
dia. No fim, a resposta: se seus encontros não estavam acontecendo com os melhores,
era por isso que você estava a selecionar os piores.
O português Agostinho da Silva escreveu livros de introdução à biologia,
poemas de cunho sebastianista, trabalhos acadêmicos para se tornar doutor na
provavelmente fria e técnica linguística clássica, ensaios teóricos sobre literatura que
não lhe assegurariam uma única e retilínea carreira universitária dados os vários
descumprimentos do padrão acadêmico (como o de abrir o texto com elogios a “mestres
que em geral não sabiam escrever e que pouco falavam”1, ou seja, referências não
intelectuais, não escritas e de simplicidade extrema, como pescadores), e por aí afora.
Tudo de muito bom gosto, ao contrário da “baixa literatura”, e apesar da
diversidade e dos diferentíssimos, quase extremos, níveis pedagógicos; nada voltado ao
entretenedor ou empreendedor, ou ao sensorial e ao narcisístico, como na literatura
puramente popular. Trata-se aqui de um escritor a quem cabe, sem veleidade, o título de
filósofo, entre outros. E que, no entanto, volta às origens do chão.
As doenças do isolamento livresco ante a sujeira literária ou da absoluta
subsunção do produto literário à tarefa de gerar sublimação psicológica para a massa,
pareceram ter impulsionado Agostinho, sozinho, a criar uma bomba adequada ao

1
Reflexão à margem da literatura portuguesa. IN: SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre
cultura e literatura portuguesa e brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000, p.25.
2
tratamento radical desta antitética encruzilhada através de múltiplas frentes saneadoras.
É sob este viés que devemos ver a figura de Agostinho não só como intelectual, mas,
com igual força, também como homem de ação. Afinal, não é para qualquer um recusar-
se, em atitude à época inspiradora e que o tornou famoso entre seus compatriotas, a
obedecer o regime salazarista (ou “salazarento”2) e migrar para o Brasil para, nos anos
seguintes, ajudar a criar 4 de nossas universidades federais.
Podemos pensar a permanência do clássico em Agostinho (na sua saudável
indiferença ao pop, ao kitsch, ao dadá) que estaria ao lado da atitude de tentativa de
síntese entre o livresco e o operário, no entanto, como a atitude de encarnação radical da
figura do pedagogo. Na outra posição, mas mantendo essa síntese, apesar de prática
não-pedagógica, emerge a figura de James Joyce como símbolo: o escritor irlandês é
aquele que abandona o heroico para abraçar radicalmente o cotidiano, recusando-se a
aceitar a existência de qualquer sintoma de alienação ou falta de cultura na análise de
indivíduos3, absolutamente todos reconhecidos como autênticas subjetividades em si,
impossibilitadas de cumprir a expectativa pedagógica tradicional, a de percorrerem um
caminho do conhecimento para, só então, poderem ser considerados, e se considerar,
autênticos sujeitos.
Agostinho, mesmo com fortes doses de rebeldia em vários dos traços de sua
figura, traz, além de igual respeito ao próximo, e como uma das marcas principais de
sua biografia, o aceitamento do institucional. É dentro das instituições que ele age, entre
o servir4 e o enriquecer formas. O método sendo um raro desempenho de humanismo.
Conta-se que ele era capaz de doar boa parte do seu salário para funcionários pobres das
universidades onde trabalhou, e que morou, por vontade própria, sob condições de
autêntico franciscanismo.
Sua intervenção se recusa a apenas especializar-se e se desenvolver numa
mesma direção, encarnando ele próprio, pelo contrário, uma extraordinária disposição a
aparentemente começar do zero, para em seguida abrir seus ramos em regiões do saber e
da ação que, através de sua realização pessoal, já não parecem tão distantes, revelando
existir certo engodo na crença comum de que a hiperespecialização na civilização gera
expertises sumamente específicas para cada atividade laboral.

2
Do filme: Agostinho da Silva um pensamento vivo aos 7’23.
3
“Nunca encontrei um chato”diz Joyce. ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989 p.23
4
O servilismo é uma de suas mais belas características, figurando como um “verbete” no texto Quinze
princípios portugueses: “Servo dos servos é o maior título de glória.” SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre
cultura e literatura portuguesa e brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000 p.383.

3
Esta sua posição é macro e, nela, o homem agigantado por sua possibilidade de
ação ecoante e poder burocrático, torna a se apequenar, por sua atitude afetiva, diante do
Outro. E não é que Agostinho quisesse negar os componentes do entretenimento e do
conforto fundado na técnica, mas sim que seu pertencimento originário a Portugal, a
nação falida, que lhe oferece o sentido da proteção carinhosa e do servilismo em
oposição ao modo de vida vitorioso, narcisístico e universalizado que é o anglo-saxão,
transfigura, à sua maneira, mas também como o irlandês Joyce, o sentido de pertencer
ao baixo, ao fraco, ao não grande ou, aí com exclusividade, ao sentimental.
Na síntese do próprio Agostinho, “Platão”, o filósofo dos franciscanos, “e
Aristóteles”, filósofo da matéria e, portanto, da riqueza, “se reúnem sem contradição,
como complementares e indispensáveis um ao outro”5. É próprio da negação da visão de
mundo tecnicizada essa atitude de síntese dos contrários, que só pode dar também no
jogo da linguagem, quando ela parece se esconder na indefinição entre o contrário e a
repetição do mesmo: “A esse Deus sem culto, cultuaremos com todo o culto; em todo o
culto.”6 O eco de Pessoa aqui é claro: “Baste a quem basta o que lhe basta/ O bastante
de lhe bastar!”7.
Mas por que Mensagem, o livro de apologia aos reis, ainda que fracassados?
Por que misticismo em Agostinho? Por que seu otimismo, demonstrado na sua fome de
ação e recomeço? Ou, em outras palavras, por que a visão materialista e cética não
substitui esta escuta aguda ao supersticioso, ainda que criada em evidente empenho
racional? Estas são as perguntas ingênuas que, por estarem numa quase dominadora pré-
disponibilidade à língua e ao pensamento do sujeito contemporâneo, no entanto,
compõem sempre um limiar tocado pela leitura da obra deste português.
A teologia em Agostinho aparece na figura do próprio Agostinho: como se ele
fosse a criatura pequena e feia de Benjamin8 saindo do autômato, vindo à tona, para,
com o gozo da libertação, agigantar-se em consciência de si e obra.
A melhor alegoria da consequência dessa fatal presença da teologia no
contemporâneo moderno está na fala da velha, citada por Agostinho, quando esta se
deparou com uma das grandes revoluções operadas no seio da igreja católica: a missa

5
Op. Cit. p.376
6
Op. Cit. p.376
7
Versos do poema O das quinas IN: PESSOA, Fernando. Mensagem. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
p.16
8
No ensaio Sobre o conceito da história IN: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012 p.9.

4
deixando de ser rezada em latim arcaico, como era medida universal, para ter de ser
feita no vernáculo. Diante dessa quebra da tradição, do Deus que agora lhe falava com a
mesma música e idioma que a sua voz da consciência, a velha exclamou, em revolta:
“Tiraram-lhe a decença.”9 A decença de não aparecer.
De todo modo (e fazendo uma breve sátira da maneira de Agostinho construir
frases), assim como a descrença na religião tem seus excessos, fazendo-nos cair em
contradição, o excesso de arte também tem suas contradições, fazendo-nos cair em
descrença. A psicanalista Maria Rita Kehl em, Deslocamentos do feminino10, critica o
modelo de arte romântica que cultiva a expectativa do artista de explicar a falta de
valorização de sua posição através da suposição da existência de uma divergência entre
a formação necessária para a arte e a formação que acontece, com o empobrecimento da
experiência universal próprio da era industrial.
Nesse lugar-comum, está o mero equívoco do artista achar que o burguês
médio, maioria e não-artista, necessariamente não pode encontrar e não encontra em
outras formas de ser no mundo, que não na arte ou somente nela, a riqueza da
experiência. Este cidadão comum em geral usa a arte em suas formas mais
“superficiais” para gerar “compensações sublimatórias”11 de aspectos da sua forma de
existir, sem com isso necessariamente deixar de conhecer, se relacionar e dar respostas
densas e satisfatórias à existência. Essa arte superficial traz um reflexo mais
esquemático dos papéis sociais, mas ela não pode ser considerada por isso a priori
destituída de dilemas radicais, bem como não autorizada a servir à distração e ao humor.
Cabe nesse ponto outro paralelo com a arte para Joyce. Em um episódio
interessante de sua interessantíssima história pessoal, o escritor conta que foi
convencido por uma mulher de que devia pecar: “ela lhe ensinara que ‘ele devia pecar
se quisesse crescer e lhe permitira descobrir-se a si mesmo através do pecado’”12. Por
mais que a figura do pecado possa ser, em uma leitura livre por um lado e breve por
outro, como também uma mera técnica de sublimação (como baixar na internet a cópia
digital de um filme proibido, ou mergulhar na plateia furiosa de uma briga de galos, ou
roubar um produto insignificante em uma loja grande), podemos dizer que a amiga de
Joyce estava querendo dizer outra coisa.

9
SILVA, Agostinho da. Op. cit. p.376.
10
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo, 2016 p.77 e ss.
11
KEHL, Maria Rita. Op. cit. p.79.
12
Da introdução escrita por Bernardina da Silveira Pinheiro IN: JOYCE, James. Um retrato do artista
quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006 p.8.

5
Por suas próprias palavras, o pecar devia representar um descobrir a si mesmo.
Este objetivo, somado ao intelecto extraordinário de Joyce, pode nos levar a crer que o
estereótipo do artista como verdadeiro (mas não único) crítico da experiência não se
restringe ao modelo romântico, caracterizado pelo isolamento. Aqui, o artista, ao
mesmo tempo que critica a civilização (como o próprio Joyce sabia fazer), deleita-se
nela sem pudores, a ponto de, permitindo-se pecar, descobrir uma realidade horizontal e
sempre pulsante13.
Nada se perde, no entanto, com os apontamentos de Kehl e da psicanálise.
Justamente por eles, e não o contrário, a crítica à civilização pode existir, deixando
agora, com esta aceitação da alteridade, de querer ocupar um lugar premente, de
resolução de doença, para se misturar ao mundo positivado, onde neuroses não podem
portar nem justificativa, nem razão.
Essa virada para uma maneira de encarar a civilização onde a luta por fazer um
modelo ganhar sobre os demais, montando-se como hierarquicamente superior, já não
pode se construir como um saber, abre espaço para dois movimentos: por um lado o
cidadão ocupante de uma baixa posição social tem suas formas de identificação e
sublimação reconhecidas; por outro pode-se pensar outras formas de criação de sentido
macro, a nível do pensamento e da ideologia, sem que uma forma técnica e laica tenha
qualquer sentido de superioridade, ou maior conformidade com o civilizado, em relação
à tendências místicas e/ou sedentárias.
No início do ensaio Um Fernando Pessoa14 Agostinho aponta para a existência
de dois tipos básicos: aquele que pode optar pela vivência de uma chama a infundir-lhe
a intensidade das paixões, tornando-as celestes, mas precisando, para isso, arcar com o
fato de os deuses porem a venda, e bem caro, todos os seus dons, justo aquilo que, a
princípio ingenuamente, tinham como dados e inesgotáveis, ou aquele que tem uma
medianidade que o prende, com segurança e bem, à terra, ainda que, com isso, sua alma
não alce voos milagrosos.
Tal imagem é ricamente arquitetada na escrita de um parágrafo, com períodos
longos e intrincados. E é também clara: Portugal, em si, certamente seria uma das

13
É simbólica a história contada por Declan Kiberd, em texto introdutório a uma das edições brasileiras
do Ulysses: “Quando levado por seus discípulos a um encontro havia muito prometido com Marcel
Proust, ele [Joyce] ultrajou seus seguidores e deleitou Proust ao discursar não sobre a dor da
modernidade, mas sobre os méritos das trufas de chocolate amargo.” IN: JOYCE, James. Ulysses. São
Paulo: Penguin, 2012 p. 79.
14
IN: SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira I. Lisboa: Âncora,
2000 p.89.

6
nações mais aptas a encarnar o papel do ente trágico, apaixonado, que precisa perder,
perde e já perdeu tudo o que tem porque está entre os preferidos dos deuses e pode criar.
É este indivíduo que ama. O outro ente, não sendo difícil o tomarmos como a estirpe
anglo-saxã, possui um “véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de
lágrimas”15.
O aceite do institucional deste viés é o daquele que se recusa a se ver livre, por
culpa do recalque que o diz que isto é trair sua nação e os ensinamentos que o fizeram
gente, na estreita régua da sua formação. Obviamente não podemos condenar todo o
modelo anglo-saxão, escanteando-o artificiosa e falsamente como a fonte completa dos
escrúpulos ocidentais. Aqui, na justaposição destes dois modelos, há um jogo de
conceitos, um teatro de oposições. O que nos leva a perceber que o aceite institucional
de Agostinho, encarnando a figura, aqui metafórica, de sua pátria, nesse sentido, é bem
diferente.
Em seu estado de homem de ação continua brilhando o trágico e não o técnico,
o errante, o desertor e, ao mesmo tempo, não o hiperespecializado e sim o polivalente, o
sujeito que torna o institucional uma pátria a conquistar com toda paixão e coragem.
Aqui resulta a força da oposição entre os dois modelos de civilização: somente o
modelo de uma nação ainda fracassada, ainda sonhadora pode portar o trágico, o
pesado, o gesto diferente do empreendedor que, no presente, encontra a um só tempo o
sucesso e a medianidade e que portanto não precisa auto-superar-se, filosoficamente,
para sonhar. A vida que se aceita como meramente comum abre mão da obra da criação
da utopia do fracasso.
A recusa da especialização na ação de Agostinho é também uma recusa
filosófica da aceitação do princípio da não contradição em favor de uma visão mais
complexa de antinomias, conceitos fundamentais (como o do tempo), expertises,
filologias e, claro esteja, nisso não haverá nunca um acúmulo de prazeres e sim a
instauração de um vazio que demanda a criação constante.
“O gesto16 demonstra a significação e a aplicabilidade sociais da dialética”17.
Parece ser esse um conceito que explicasse inteiramente Agostinho da Silva. Ele é o

15
Idem, op. Ci p.90. Impossível não lembrar aqui dos versos da canção Time, presente no álbum Dark
side of the moon da banda inglesa Pink Floyd, para definir justo o espírito de seus compatriotas:
“Hanging on in quiet desperation is the English way”.
16
Grifo meu.
17
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2014 p.
94.

7
gesto ambulante. É aqui que ele promove o encontro entre operários e livrescos; aqueles
podem sonhar com aprender e estes com agir. A ponte entre ambos? O mistério, aquele
que faz a diferença entre as ações de quem quer agarrar a verdade de um lado, e aqueles
que a querem construir, inscientes do mais sagrado dela do outro: “ir sempre à frente de
tais sábios e lhes lançar segredo e lhes lançar mistério como só digno alimento; como só
digno alimento de homens, se tais o são.”18

18
Quinze princípios portugueses. IN: SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e
brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000 p.277

8
Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política.


Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2014
_______________. O anjo da história. Tradução: João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2012.
ELLMANN, Richard. James Joyce.Tradução: Lya Luft. São Paulo: Globo,
1989.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo, 2016.
JOYCE, James. Ulysses. Tradução: Caetano Galindo. São Paulo: Penguin,
2012 p. 79.
____________. Um retrato do artista quando jovem. Tradução: Bernardina da
Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006 p.8.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e
brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000.

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