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O som e a diferença

Carole Gubernikoff
carole.gubernikoff@gmail.com
UNIRIO

No ano de 2004 defendi minha tese de titular. Nela abordei a questão da análise
musical empírica e escrevi que a análise musical tradicionalmente estudava apenas a
partitura escrita e que a análise de obras eletroacústicas dependeria apenas da escuta e
da nomeação, trazendo para a superfície uma questão que parecia recalcada: o próprio
som. Neste debate vou problematizar algumas questões abordadas naquele parágrafo:
1 - a pertinência da partitura, ou da música escrita; 2 - a questão do som na música
eletroacústica.
Quando Pierre Schaeffer publica o Tratado dos Objetos Musicais e em seguida,
principalmente o Solfejo Acusmático, funda uma nova arte, com uma nova
terminologia para classificar signos sonoros. A fundação desta nova arte não foi um
evento qualquer, historicamente determinado como poderiam ser o atonalismo, o
dodecafonismo e o serialismo. Nestas correntes, a questão da escrita, que prefiro
chamar de notação, continua presente na fenda da diferença entre a escuta e a escrita.
Esta diferença foi problematizada pelos linguistas, a partir de alguns conceitos
que Derrida, o autor que mais problematizou a escrita e a diferença, atribui a
Saussure. Derrida, em suas obras Gramatologia e A Escrita e a Diferença. Nestes
textos ele se ocupa se ocupa tanto da filosofia da linguagem como da literatura, do ato
de escrever ou, mais especificamente, de seu impulso. A questão se coloca entre a
palavra falada e a palavra escrita. Numa definição extremamente radical dos anos 60,
Roland Barthes, em um livro de Introdução à Semiologia define a linguagem como
tendo três níveis: a linguagem, a língua e a fala. O que a semiologia de base
linguística, fundada por Saussure, opera como linguagem separando a língua da fala
(Langue et Parole). Deste modo a linguagem estuda a língua escrita e não a fala. Este
texto, lido há muitos anos, me impressionou sobremaneira, pois separava a língua
falada de sua escrita e problematizava tanto a escrita quanto a palavra! Eu entendia a
fala como a atualização oral de uma língua, ou como diz Barthes, a realização da

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Análise de músicas que não usem partituras escritas: problemáticas, metodologia,
aproximações. A música eletroacústica
língua. Entretanto, o que me surpreendeu foi a dimensão em que há algo na fala que
excede a língua e se apresenta como diferença.
O que consideramos como atualização da escrita, a atualização da língua em
fala, nem sempre segue o padrão culto e pode haver uma fenda entre a língua e a fala
que nos levaria a diferentes conclusões e pelas quais não enveredarei. Mas, há
permanentemente a suspeita de que a língua escrita pode não ser o sistema de
referência da fala, mas que a fala poderia ser entendida em sua própria dinâmica e não
apenas uma segmentação fonética ou fonêmica da língua.
Por que eu estaria retomando um tema abandonado por mim há muitos anos e
que também já foi, de certa forma, superado historicamente? Tive minha fascinação
pela semiologia e pela linguística. Abandonei este caminho em favor de aprofundar
questões relativas à música, defendendo a hipótese de que a música tem uma
existência própria, que não depende de um léxico ou da dupla articulação da
linguagem verbal, ou seja, a primeira articulação é dotada de sentido e a segunda, não,
é apenas formada por fonemas!
No caso da linguagem, a fonética corresponde à construção de palavras dotadas
de sentido. A música dispensa esta relação e faz de sua própria gramática seu sentido.
Entretanto, o modo como a questão desta mesa foi formulada não pode deixar
de levantar esta problemática: o que são as práticas musicais não escritas e além de
existirem, como podem ser analisadas? O caso sugerido é o da Música Eletroacústica
Na época em que escrevi e publiquei o texto “Música Eletroacústica:
Permanência da Sensação e Situação de Escuta”, minha preocupação estava não
apenas com a metodologia de análise musical, mas com o entendimento de que a
música eletroacústica não apresentava uma notação de apoio para a análise musical.
Logo, usei a frase em que a análise musical vinha sendo realizada a partir da partitura
e que a música eletroacústica revelaria a escuta que estava recalcada. Ou seja, se
compararmos com a relação entre língua e fala, a escuta é o excedente da música. Esta
“situação de escuta” implicava que não apenas a ausência da notação, mas também os
modos de expressão. Na música eletroacústica são explorados timbres e
temporalidades nos quais a tradicional separação do contínuo sonoro em
descontinuidades fixas, que formam os modos, as escalas e os grupos de notas não
ordenados e ainda os tempos métricos e rítmicos, não se apresentam para a audição.

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Havia, neste caso, um rompimento mais profundo com as diferenças entre a escuta e a
notação, que também se encontra na música escrita. Quanto da execução de uma
partitura é efetivamente notado? Há na música instrumental e vocal ainda uma
diferença entre a realização e a leitura/interpretação de uma partitura. Logo, podemos
afirmar que a escuta da música excede a partitura e muitas das decisões de uma
análise musical são decididas pela execução, sendo ela mesma uma análise, ou na
intuição de quem ouve. A escuta excede a partitura como diferença e muitos fatores
não escritos são importantes para a análise musical. Uma das brincadeiras que gosto
de fazer quando apresento os níveis de uma análise schenkeriana, tanto o nível
chamado de fundamental, a Ursatz, quanto o nível mais de superfície, assim como a
Urlinie, não estão necessariamente escritos São projeções que se dirigem ao silêncio.
Na Ursatz, pela pregnância tonal e no nível da superfície não interpretada, na
execução ou na escuta. Nenhum destes níveis está rigorosamente “escrito”.
No caso da metodologia chamada de teoria dos conjuntos, o repertório abordado
é formado por obras que permanecem trabalhando com o sistema temperado, mas que
abandonaram as hierarquias modais e tonais. Neste caso, a relação da análise com a
escuta de elementos “não escritos” diminui. Ela se concentra numa redução da
notação para extrair desta redução seus significados. Entretanto, a própria redução à
oitava anula a percepção dos registros e das texturas. Minha inquietação em relação a
esta metodologia é que a diferença seja anulada.
Agora que demos uma volta em torno das questões de análise musical na tensão
do escrito e do não escrito, de uma gramática profunda e de um jogo de notas,
podemos voltar a pensar na análise da música eletroacústica.
A primeira questão que se apresenta é saber se a música eletroacústica é um
gênero da música, conforme seu nome sugere, ou se é um novo conceito, o das artes
sonoras, que incluiriam a música. A análise empírica da música eletroacústica
provocou uma criação de analogias e conceitos que se assemelhavam à produção de
conceitos do discurso descritivo, em que as adjetivações produzem uma infinidade de
significantes que têm de ser interrompidos para a busca de uma significação, de uma
interpretação. A nomeação empírica depende de um sistema classificatório que Pierre
Schaeffer logo intuiu como necessário. Após excluir a possibilidade de identificar a
origem do som, a escuta se concentra numa sonoridade ”pura”; a escuta acusmática.

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Schaeffer partiu da criação de categorias de análise, na tentativa de restringir a
infinidade nominativa. 1 – Massa/altura; 2 - Timbre harmônico; 3 - Grão; 4 – Allure
(halo ou “modo ondulado de ser”) 5 – Perfil dinâmico; 6 – Perfil melódico; 7 – Perfil
de Massa.
O Solfejo dos Objetos Sonoros gravado por Pierre Schaeffer parte destas duas
premissas. A este tipo de solfejo deu-se o nome de escuta acusmática. Um dos
compositores e teóricos que se dedicou a esta questão foi Dennis Smalley. Várias
metodologias foram importantes em seu exercício classificatório: a ligação com a
fonte e a inclusão do fator temporal na formação do espectro e na escuta dos sons. A
partir da forma do ataque e passando pelo desenvolvimento espaço temporal do som,
Dennis Smalley percorreu um amplo espectro de questões. Entretanto, a questão
básica continuava saber em que bases se fundava a classificação, se haveriam critérios
facilmente compreendidos e adotados por uma grupo de legitimação intelectual.
Houve um estágio intermediário de notação de obras eletroacústica com a
criação de símbolos gráficos associados à escuta de partituras e acompanhamento

temporal dos espectros representados temporalmente.  Lasse Thoresen desenvolveu


uma notação gráfica em que cada símbolo corresponde a um critério
espectromorfológico. A partir da tipo morfologia dos objetos sonoros, mais as
contribuições de Dennis Smalley com a espectromorfologia, Thoresen propôs uma
tabela de signos que podem ser combinados pela forma do ataque, tipologia espectral
e comportamento temporal. Estes signos gráficos foram transformados em uma fonte
de computador, chamada Sonova, e aplicada às composições analisadas.

Três tipos de gráficos para ataques-ressonâncias a partir de esprectogramas. (Holmes,


2009).

Bryan Holmes, que desenvolveu sua dissertação de mestrado sobre este tema,
aperfeiçoou as ferramentas simbólicas e as empregou em suas análises

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Voltamos, entretanto, ao problema original. Se esta ferramenta gráfica descreve
os eventos sonoros identificados em sonogramas, não podemos dizer que a
composição da obra foi decidida a partir desta escrita. Ela serviu de sistema de
classificação de tipos e espécies de comportamentos sonoros produzidos a partir da
composição pronta e fixada em suportes eletroacústicos.
Todos os esforços de encontrar uma metodologia empírica, entretanto, parecem
superados pelo que se convencionou chamar de escrita acusmática.
O grupo de pesquisadores do GRM, herdeiros dos laboratórios fundados por
Pierre Schaeffer na Radio France, atualmente Instituto Nacional de Audiovisual,
encontra-se desenvolvendo um trabalho que envolve a análise computacional de
espectros sonoros e técnicas composicionais. O nome utilizado mais recentemente é o
de Écriture Acousmatique, que significa simplesmente Escrita Acusmática.
A palavra escrita neste contexto ganha inúmeras significações que estão ligadas
às técnicas de gravação. Neste caso, a história desta escrita remonta aos primórdios
das gravações, quando se desenvolveram as técnicas de captação, reprodução e
transformação do som para a criação de discos, programas de radio ou trilhas sonoras
para o cinema. Todas estas práticas estão fortemente associadas às tecnologias
envolvidas, criando verdadeiras partituras temporais de controle de eventos. Há,
então, várias histórias e escutas que se entrecruzam e poderemos problematiza-las
através da discussão dos conceitos envolvidos.
Haveria na diferença entre língua e fala uma naturalidade que poderia ser
comparada com o cantarolar infantil e a composição musical que utiliza uma notação
que representa e ultrapassa o balbucio infantil e o não letramento. Podemos compara a
écriture acousmatique com a descrição do escrever de Derrida: “cria o sentido ao
grafá-lo, registrá-lo, fazenda uma gravura, um sulco, numa superfície que se deseja
transmissível ao infinito”1.
A Écriture Acousmatique devolve o problema para a diferença entre o som e a
composição, ou melhor entre o som e a música. Ela registra em tempo real o fluxo

1
C'est pourquoi l'écriture ne sera jamais la simple « peinture de la voix » (Voltaire). Elle crée le
sens en le consignant, en le confiant à une gravure, à un sillon, à un relief, à une surface que l'on veut
transmissible à l'infini (p. 24)

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sonoro e composicional, através do controle dos espectrogramas, possibilitando os
rascunhos, as tentativas e os erros, a correção pela escuta.
Entretanto, a composição e o sentido musical não se encontram nos sons. Eu
ousaria dizer que não podemos confundir as forças expressivas com as velocidades
métricas ou das batidas por segundo e a força com a intensidade em hertz. O que a
Écriture Acousmatique capta são os sulcos que foram as gravações em acetato.
Apenas que agora os sons se tornaram visíveis, vemos espectogramas como quadros,
pinturas, sulcos, traduzíveis em fundamentais e parciais. As páginas dos aplicativos
que se tornaram a gramática dos sons, abrem mil possibilidades de seleção de
caminhos, timbres, texturas e velocidades. Podemos brincar com os sons ou
transformar nosso vocabulário em números, em cálculos quantitativos. Considero esta
operação de matematização dos sons e da abertura de mais possibilidades de
entendimento e de controle de fundamental importância para o desenvolvimento desta
nova gramática musical. Há um batalhão de pesquisadores/compositores seguindo
esta trilha de maior compreensão do mundo do som e da composição e alguns
tutoriais estão disponíveis. Me refiro principalmente aos tutoriais de análise de
espectros sonoros e de composição musical que se encontram disponíveis através de
consultas aos sítios dos núcleos, centros e laboratórios de pesquisa com os sons, como
os do Ircam e do GRM. Estamos avançado no conhecimento da natureza do som e são
novas fronteiras que se abrem. Não caberia a este debate a apresentação das técnicas e
dos procedimentos. Minha questão é apenas com a problematização da escuta, da
composição.
A música se dará sempre em outro lugar. Se dará na diferença entre o som, a
gramática musical e a composição. Como pesquisadora e professora de análise
musical e composição vou persistir na busca dos sentidos musicais, na diferença entre
o som e a música.

Referências Bibliográfica

Barthes, R.1974 – Elementos de Semiologia, São Paulo, Cultrix, [1964]


Derrida, J. –1973 Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.[1967]
Holmes, B. 2009 “Análise espectromorfológica da obra eletroacústica
Desembocaduras”, In Revista Eletrônica de Musicologia, vol XII

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