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120 A criança entre atualidade e realidade

Capítulo V

Experiências a serviço
da vida na terra
Paracelso, pioneiro da medicina hermética, na primeira
metade do século XVI, falando da arte alquímica, exortava
seus discípulos a não pedir explicações prontas sobre a
Obra, mas a pôr em prática no cadinho da experiência as
intuições que conseguiam ter. Na obra educacional, temos
todo interesse em aplicar esse método.

As crianças se familiarizarão com os múltiplos temas


do conhecimento, percorrendo-os com seus olhos ainda
novos. Nesse sentido, o mundo é “educador”, em virtude
do fato de que cada hora da existência humana, desde a
infância, convida a resolver problemas de toda espécie. As-
sim fazendo, as tensões inevitáveis, inerentes às reviravoltas
da vida, vão se apaziguando lentamente, enquanto novas
são criadas. Entretanto, convém evitar um desvio muito
perigoso: pensemos em todo aquele quinhão perdido de
juventude que erra nas ruas de nossos bairros e cidades.
Em caso extremo – e infelizmente isto está cada vez menos
raro –, alguns jovens estão totalmente entregues a si mes-
mos, tendo de achar sozinhos o mínimo necessário à sua
sobrevivência. É assim que a malandragem se propaga, com
todos os malefícios associados que conhecemos até demais.
Olhando mais de perto, o que acabamos de delinear não é
uma simples caricatura, e mesmo que essas condições de
Experiências a serviço da vida na terra 121

vida aleatórias ainda sejam marginais, é forçoso constatar


que a omissão dos adultos é a causa de muitos dos males
da juventude.

Dentro do mesmo conceito, lembremo-nos do que foi


dito das correntes educacionais que apareceram com alguns
pensadores, em determinadas épocas. Quando a atividade
pessoal da criança foi valorizada, para responder a uma
necessidade de abertura frente a uma educação autoritária
que era a lei, os pioneiros desse método humanista queriam
levar em conta o fato de que toda criança aprende melhor
sozinha, através de situações verdadeiras, complexas e va-
riadas. Todos os grandes pensadores que aderiram a essa
corrente concentravam a maior parte de seus esforços em
torno do respeito pela atividade própria da criança, como
já tivemos a oportunidade de apreciar. Para ilustrar isso,
uma passagem do livro “O Profeta”, de Khalil Gibran, parece
convir maravilhosa­mente bem: “O astrônomo pode vos falar
de sua visão das estrelas, mas não pode vos dar sua visão. O
músico pode vos cantar a cadência que exala de todo o espaço,
mas não pode vos dar o ouvido que apreende seu ritmo, nem
a voz que lhe faz eco. […] Pois a visão de um homem não
empresta suas asas à visão de um outro homem”.

Mas, nesse caso, o adulto não teria nenhum papel eficien-


te a desempenhar? Com um mínimo de bom senso, temos de
admitir que é certo que um perigo acompanha esse conceito,
se tomado ao pé da letra. Khalil Gibran parece dizer que é
inútil falar da nossa visão do céu ou dar nossa compreensão

122 A criança entre atualidade e realidade

das leis do universo, mas ele não explica como podemos


desempenhar um papel junto aos outros e, principalmente,
junto às crianças. Esse é todo o dilema criado pelo uso de
métodos educacionais mais ativos…

Apesar disso, não devemos negligenciar a grande rique-


za e a verdade que eles contêm. Se ainda for necessário
algo mais para termos certeza disso, estudos feitos por
pes­quisadores em psicologia do desenvolvimento nos
ajudarão neste sentido. Vários objetos são colocados ao
alcance de bebês de alguns meses; aos poucos, eles vão
pegando esses objetos, mas, quando novos objetos que eles
não conhecem são introduzidos, eles rapidamente largam
os que já conhecem, para pegar os que lhes são desconhe-
cidos. Uma curiosidade natural parece evidenciar-se por
meio desse artifício, e a conclusão que se impõe a nós faz
referência ao seu apetite por experiências novas. Devemos
então nos empenhar em apresentá-las a eles. Essa dinâmica
não é a própria vida? Com toda certeza, o que vale para os
bebês vale igualmente para as crianças maiores.

Lev Vygotsky, pedagogo russo do começo do sécu-


lo XX, que por muito tempo foi ignorado e que há alguns
anos vem suscitando o interesse de muitos educadores,
desenvolveu um conceito que levou o nome de “zona de
desenvolvimento proximal”. Sua ideia pode ser apresentada
numa figura que lembra as mandalas. Esses desenhos geo-
métricos, à base de círculos concêntricos, podem servir de
suporte para um enfoque da mente humana, e muitas vezes
são associados à prece. Sem chegar a esse ponto, ainda as-
Experiências a serviço da vida na terra 123

sim essa figura simbólica vai nos permitir estruturar nossa


compreensão da teoria de Vygotsky.

A teoria do desenvolvimento proximal

Se a experiência que propomos à criança é do tipo A, a


tarefa a ser realizada está totalmente ao seu alcance, mas é
pouco interessante, pois não apresenta nenhum problema
para ela. É por isso que um bebê que segura na mão esquerda
um objeto conhecido e, na direita, um objeto desconheci-
do, larga rapidamente aquele que ele já conhece, para logo
concentrar sua atenção em favor da descoberta daquele que
ele está segurando na mão direita.
Se a experiência em que colocamos a criança é do tipo

124 A criança entre atualidade e realidade

B, a tarefa que ela deve efetuar está fora de seu alcance, o


desestímulo se instala e o fracasso é inevitável. Esse fracasso
algumas vezes é doloroso e deixa traços emocionais negati-
vos na memória da criança, que posteriormente será tentada
a fugir dessa mesma experiência quando esta se apresentar.
Em alguns casos, essa situação pode também assumir um
caráter perigoso: não seria um crime deixar uma criancinha
atravessar sozinha uma rua movimentada, por exemplo? Da
mesma forma, o pequeno nadador que for colocado cedo
demais numa piscina muito funda e retirado in extremis por
um salva-vidas não vai guardar uma lembrança dolorosa e
inibidora, comprometendo por muito tempo suas chances
de progresso na natação?

Se a experiência vivida pela criança é do tipo C, tem todas


as chances de ser proveitosa, pois está situada na “zona de
desenvolvimento proximal”. Com efeito, interesse e suces-
so são oferecidos a ela, uma vez que a novidade é fonte de
motivação e o esforço de adaptação requerido está dentro
do que a criança é capaz de fazer. O traço emocional será
positivo e o desenvolvimento da autoconfiança será, então,
um objetivo atingido.

Para o Rosacruz, que considera que todo progresso na


vida é lento e constante, os trabalhos de Vygotsky, asse-
melhando-se à corrente “construtivista” representada por
Jean Piaget – e Comenius, numa outra época – não deixam
de lembrar o processo iniciático. As características desse
último são de dois tipos: uma está relacionada às noções
de progresso e perfectibilidade, a outra está ligada a uma
concepção “sistêmica” da experiência, isto é, global e vivida
sob vários ângulos possíveis. Mais uma vez, encontramos
Experiências a serviço da vida na terra 125

a questão do sentido. Pois como compreender de outro


modo que a necessidade do progresso a ser feito requer a
consciência de uma meta a ser atingida e que a experiência
verdadeira é forçosamente complexa? Podemos traçar um
paralelo, por exemplo, entre o processo iniciático da alqui-
mia e os resultados de alguns trabalhos contemporâneos
acerca da aprendizagem pela experiência, realizados por
pesquisadores em ciências da educação. Para esses últimos,
toda aprendizagem complexa decompõe-se em três fases que
podem ser entendidas através da seguinte curva:
EQUILÍBRIO 2

EQUILÍBRIO 1
O Resolução
ÇÃ
do proble-
ZA

Aparecimento
NI

do problema
ER

GA
RO

OR
RE

DIFICULDADE
A curva da aprendizagem

Frente a uma situação nova, a criança – como nós mes-


mos, aliás – age espontaneamente. Ela usa um método que
já experimentou, mas que não é mais adequado para as
condições dessa outra experiência. Ela enfrenta um pro-
blema que a desestabiliza num primeiro momento, quebra
momen­taneamente suas representações mentais e a faz
cometer erros. É o momento crítico para ela, pois vê-se na
obrigação de lançar mão de seus próprios recursos interio-

126 A criança entre atualidade e realidade

res, e é uma possível fonte de angústia. É impelida, então, a


fazer suas respostas evoluírem, reorganizando-se mental-
mente de maneira pessoal. Assim, um outro método, mais
adequado e, portanto, mais eficiente no caso em questão
será estruturado.

Na alquimia, o desenrolar das operações da Obra pode


ser representado sistematicamente em três grandes etapas:
a negra, a branca e a vermelha. No dicionário de Michel
Mirabail, a primeira etapa “corresponde ao enegrecimento,
à putrefação, à mortificação”. É a etapa da morte de um
estado químico, no caso da alquimia física. No âmbito da
alquimia mental e educacional, percebe-se claramente que
ela corresponde a toda a parte esquerda da curva; a situação
que apresenta um problema novo dissolve as certezas, ou
os conhecimentos já adquiridos. Ainda segundo Michel
Mirabail, a segunda etapa, ou obra em branco, começa “por
um processo de sublimação, e […] o ovo filosofal, o globo de
cristal hermeticamente fechado, é encerrado no atanor, o
forno que o alquimista usa para uma combustão lenta e con-
trolada”. Pode-se ver no ovo um símbolo de regeneração, de
ressurreição, de potencialidades liberadas… É a essa fase do
magistério que podemos associar a parte direita da curva;
esta fase termina com uma “cristalização” no que diz respeito
ao aspecto físico e químico, e com uma espécie de reestru-
turação ou reorganização, no caso da alquimia mental. A
terceira etapa, ou obra em vermelho, faz aparecer a Pedra
Filosofal, que transformará os metais vis em ouro, símbolo
de perfeição. Graças a toda a aprendizagem, a passagem de
um equilíbrio 1 preexistente para um equilíbrio 2 atingido
corresponde a essa transformação, também chamada de
transmutação.
Experiências a serviço da vida na terra 127

Entretanto, seria bem presunçoso achar que é possível


passar pelas três fases completas da Obra numa única si-
tuação que exige um esforço de adaptação. Não esqueçamos
que uma reflexão baseada no método da analogia ou da
correspondência segue a ideia segundo a qual “tudo está
contido em tudo”. Assim, porque as fases de aprendizagem
são, de modo geral, análogas às fases da alquimia, isto não
quer dizer que não seja necessário repetir todos os passos
a fim de fazer crescer aos poucos as chances de sucesso
na obtenção da Pedra. Em seu livro “O Tesouro dos Alqui-
mistas”, Jacques Sadoul deixa claro que o alquimista “vai
recomeçar essa operação milhares de vezes, durante vários
anos” e fala “da santa paciência, da lenta condensação do
espírito [ou mente] universal”. O mesmo é válido para a obra
educacional: não podemos esperar que a consciência da
criança aprenda numa única vez a lição de uma experiência
de vida, seja ela qual for. Isso é facilmente compreensível:
as circunstâncias de uma determinada experiência nunca
são realmente as mesmas. E é aí que está toda a dificulda-
de! Quando o adulto acha que inculcou um conhecimento
numa criança, ele imagina que, numa situação idêntica, ela
vai saber reaplicá-lo. Vemos todos os dias que essa hipótese
não se verifica… Serão necessárias numerosas experiências
se­melhantes para que, finalmente, a transferência desse
conhecimento possa realmente ser efetuada. E, um dia,
sem dúvida muito adiante no caminho da vida, a criança
tornada homem terá o poder de transmutar as limitações
que impediam a expressão de sua plena criatividade. Mas
toda essa caminhada não será linear. A noção de desenvol-
vimento proximal, que devemos a Lev Vygotsky, opõe-se
a isso, visto que esta ideia requer uma visão espacial dos
progressos sucessivos da criança. O progresso, longe de ser

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um fenômeno cumulativo, é essencialmente um processo


integrativo: ele corresponde à passagem de uma estrutura de
comportamento já existente para uma outra mais vasta, que
abarca – mais ou menos comple­tamente e por extensão – a
estrutura precedente e torna-se, por sua vez, a antecâmara
da etapa futura. A ideia de estágios, definida por Henri
Wallon e Jean Piaget, aproxima-se da dos graus, tão cara
aos adeptos da Iniciação.

O desenvolvimento da linguagem é uma perfeita ilustra-


ção dessa questão tão interessante: a criança não aprende
verdadeiramente a falar, mas organiza de formas diferentes
os sons que consegue produzir, em função do meio cultural a
que ela pertence, e esta organização refina-se continuamente
ao longo de toda sua vida. Permitamo-nos uma extrapola-
ção dessa ideia: e se esse processo fosse igualmente válido
para os comportamentos que aos poucos apresentassem um
estado virtuoso cada vez mais manifesto?

Como quer que seja, o desenvolvimento simbolizado


espa­cialmente pelos círculos concêntricos e definido linear-
mente pela curva da aprendizagem pode ser compre­endido
mais amplamente quando as duas representações são mes-
cladas. Obtém-se, então, uma espiral ascendente que costu-
ma ser empregada por pesquisadores de todos os horizontes,
científicos ou espiritualistas. Essa espiral mostra bem que
as repetidas passagens pelos mesmos tipos de experiência
são feitas com uma lucidez e um poder de compreensão
cada vez maiores. Não obstante isso, não é de todo inútil
voltarmos ao estudo da curva e, mais particu­larmente, à
sua fase de dificuldade. Quando a criança vê que seus co-
nhecimentos anteriores não conseguiram impedir que ela
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cometesse erros na resolução do novo problema que lhe foi


apresentado, é possível que surja uma reação de desânimo
e perda de autoconfiança. Nesse momento, será que ela vai
buscar um modelo mais eficiente junto a pessoas ditas mais
competentes – os adultos que a cercam, por exemplo – ou
vai tentar achar a intuição dentro dela mesma?

O filósofo Emmanuel Kant, em seu livro publicado em


1781, “Crítica da Razão Pura”, escreveu: “Crono­logicamente,
em nós nenhum conhecimento precede a experiência, e é com
ela que todos eles começam. Mas se todos os conhecimentos
começam com a experiência, isto não prova que eles derivem
inteiramente da experiência, pois pode muito bem ser que até
mesmo nosso conhecimento por experiência seja um composto
formado daquilo que recebemos das impressões sensoriais e
daquilo que nosso poder de conhecer produz de per si”. Com
certeza, poderíamos nos interrogar longamente sobre a
essência desse poder! Afinal, já não estabelecemos a exis-
tência da dupla vertente da busca alquímica? Que seria da
alquimia operativa, a do laboratório ou do mundo terreno,
sem a alquimia especulativa, a do oratório ou do mundo
espiritual?

Neste ponto da análise, eu ousaria uma explicação: a falta


de sentido nas atividades terrenas de nossos contemporâ-
neos – e, infelizmente, comunicada aos seus filhos – sem
dúvida advém do fato de que eles esqueceram de integrar a
elas a vertente especulativa, a única capaz de oferecer uma
direção à multidão de experiências que eles vivenciam. O
mundo é apenas um espelho, fonte de ilusões e aparências,
atrás do qual é preciso procurar a trama organizadora. O
caminho que leva até ela é um labirinto. A criança que en-

130 A criança entre atualidade e realidade

tra no percurso deve aceitar o fato de não encontrar logo a


meta e não deve fugir dos questionamentos que dão medo.
Quando cresce e aprende, ela realiza vários desenvolvimen-
tos paralelos. Esses desen­volvimentos estão ligados às suas
capacidades físicas, emocionais, mentais e espirituais, que
são inter­dependentes.

Para esclarecer esse ponto de vista, é indispensável definir


em que medida uma atividade física ou intelectual bem su-
cedida remete a capacidades de ordem emocional. A criança
que pratica o judô ou o alpinismo é levada a dominar suas
emoções para poder progredir nestes esportes, ao passo que
uma outra que não ousa enfrentar o risco fica confinada em
si mesma. Mesmo quando a atividade é do tipo intelectual,
é ainda a dificuldade que faz crescer o medo de não vencer.
Todos os medos, de qualquer natureza que seja, estão re-
lacionados ao funcionamento da parte límbica do cérebro
e interferem no trabalho das partes reptiliana e cortical. É
por isso que a dúvida e o medo perturbam o equilíbrio das
funções autônomas – ritmo cardíaco, ritmo respiratório etc.
–, geridas pelo cérebro reptiliano, e a clareza do pensamento
e da imaginação, geridos pelo córtex.

Uma analogia pode ser feita em prol do avanço de nossa


reflexão. A curva da aprendizagem comporta três fases e
o cérebro humano é formado de três níveis. Ao primeiro
nível, o qualificado de reptiliano, corresponde a fase de de-
sestabilização, pois é com ela que respostas “prontas” para
um dado problema são desintegradas. Ao segundo nível, o
do sistema límbico, corresponde a fase – emocionalmente
carregada – durante a qual uma possível intuição da respos-
ta é extraída da fonte da memória. Ao terceiro nível, o da
Experiências a serviço da vida na terra 131

parte cortical, corresponde a fase de reconstrução criativa


do pensamento. Se a primeira fase da aprendizagem pela
experiência é de natureza involutiva, pode-se facilmente
conceber que a terceira é típica de uma evolução. Quanto à
segunda fase, seríamos capazes de descobrir seu segredo?
Memória, intuição e criatividade são as palavras-chaves
desse mistério… Será que a criança conhece o poder delas?

Aprender nas experiências sucessivas é descobrir a


necessidade de ouvir o mundo e a si mesmo, imprimindo
nisto seu traço pessoal. A esse respeito, os escritos do Dr.
Roger Vittoz são um esclarecimento proveitoso: o controle
cerebral recorre a duas funções complementares do cére-
bro, a saber: a receptividade e a emissividade. No prefácio
de um livro intitulado “Angústia ou Controle”, ele define a
receptividade como sendo a “faculdade que permite que o
senso da vida relacional forneça impressões exatas”. Ainda
segundo ele, a emissividade é a “faculdade que permite dirigir
e ordenar o pensamento”. Convém não passar rápido demais
por cima da ideia de “impressões exatas”. Com efeito, o Dr.
Vittoz explica: “Para poder assimilar, em toda veracidade,
você deve ser receptivo, livrar-se da ideia que se interpõe na
sensação exata das coisas. Só então suas ideias serão suas,
porque não serão somente cerebrais, mas farão parte de
você”. Essa observação é fundamental para quem pretende
educar crianças para serem elas mesmas, para encontrarem
nas profundezas de sua personalidade a força proporcional
à dificuldade que encontram no caminho da vida. Para
nosso autor, a força psíquica necessária ao sucesso de toda
aprendizagem depende de um conceito, o de unidade, e ele
dá um conselho para todas as pessoas: “Ser um, a favor e
contra todos os acontecimentos”.

132 A criança entre atualidade e realidade

A ideia enunciada é muito agradável, devemos dizer!


Procurar sempre restaurar a unidade frente às influências
contrárias, eis algo que nos lembra uma outra coisa: não
seria isto a unificação de que Comenius falava, quatro sé-
culos antes?
Todavia, precisamos agora de um exemplo concreto, e
pro­ponho que o coloquemos numa disciplina altamente
simbólica, apreciada pela grande maioria das crianças,
apesar de relegada ao segundo plano das atividades lúdicas
e até mesmo menosprezada pelos adultos. Estou falando da
arte da geometria, a respeito da qual foi dito: “No começo,
Deus geometrizou”.

Nos exemplos que veremos a seguir, não se deve esperar


que regras geométricas complexas sejam dadas às crianças;
em vez disto, procuremos vê-las evoluindo em situações
que farão com que elas próprias se dotem destas regras,
tornando-as suas. E, mais que isso, que tal vermos que as
crianças são parecidas com essas regras, ou seja, que elas se
estruturam psiquicamente sobre o mesmo modelo?

A situação que pude pôr em prática com crianças de oito a


onze anos está relacionada a algo que chamamos de “os mosai-
cos”. Um motivo geométrico simples é inicialmente submetido
à sagacidade delas, não para lhes pedirmos gratuitamente que
façam uma análise do mesmo, mas, ao contrário, para propor
que elas continuem a compor o mosaico já existente.
Experiências a serviço da vida na terra 133

O motivo geométrico de partida

Por diversas vezes, tive a oportunidade de notar que as


crianças entram espontaneamente nessa atividade, com
curiosidade e prazer. Em pouco tempo, as primeiras difi-
culdades aparecem, como era de se prever. São as mesmas
dificuldades que o mosaicista profissional encontra quando
algumas fileiras de quadrados se desencontram ligeira-
mente, atrapalhando o encaixe dos quadrados seguintes.
A fase negativa, desestabilizadora, é iniciada e obriga cada
executante a repetir a análise do mosaico inicial. O que
nos interessa nesse dispositivo não é a mera reprodução
do modelo, e a imitação mantida por algumas crianças é
apenas um trampolim para a busca da estrutura oculta da
composição do mosaico.

134 A criança entre atualidade e realidade

Já vimos que a observação atenta dos comportamentos


infantis é rica de sentidos. Então, não vamos nos privar
disso nesse caso! As estratégias pessoais de resolução do
problema proposto são variadas e questionadas várias vezes,
de modo a que os progressos na realização sejam visíveis. É
fazendo entrar, ou melhor dizendo, deixando entrar neles a
harmonia das formas inicialmente impostas que as crianças
caminham para a felicidade do êxito, mesmo que este seja
ainda apenas parcial. Quatro criações diferentes podem ser
agora submetidas à sua visão crítica. Correspondendo ao
fruto do trabalho de quatro crianças diferentes, que dei-
xaram nele as marcas de suas realidades respectivas, essas
criações falarão ao seu senso incipiente.

Vejamos, então, como Jonathan tentou resolver o pro-


blema que lhe foi apresentado…

O mosaico de Jonathan
Experiências a serviço da vida na terra 135

Em sua criação, percebe-se nitidamente que ele focalizou


sua atenção nos triângulos pequenos – pretos e brancos –,
que são, na verdade, o motivo mais reduzido e mais parecido
com o mosaico do mosaicista. Entretanto, uma busca de
apoio num outro motivo parece ter sido tentada pelo me-
nino: num quadrado, dois triângulos ligados por um vértice
lembram uma ampulheta e, por duas vezes, eles aparecem
também nos traçados de Jonathan. O uso do quadrado e
de suas diagonais ainda não foi integrado no mosaico por
essa criança que vive numa família no mínimo conturba-
da. Deixo a vocês a tarefa de fazer as devidas hipóteses…
Entretanto, pode-se supor que uma trama estruturada foi
buscada pela criança, em sua vontade de progredir.

Continuemos nossa observação, através desta segunda


criação:

O segundo exemplo de mosaico



136 A criança entre atualidade e realidade

Aqui, a construção deixa entrever que essa outra


criança tomou como base um motivo que lembra as
pás de um moinho. Essas pás são formadas de quatro
triângulos, unidos por um vértice comum e contidos
num quadrado maior. Graças à escolha desse referencial,
o conjunto é menos caótico que o anterior, embora as
deformações ainda sejam visíveis: os quadrados e suas
diagonais – delineando as pás do moinho – estão tra-
çadas desajeitadamente. Em contrapartida, os motivos
em forma de ampulheta estão uniformemente unidos, a
partir de diagonais bem delineadas. Pode-se supor que
esse êxito é quase transferível para as pás do moinho, que,
neste caso, não se baseariam mais em quatro triângulos
dispostos precaria­mente em relação uns aos outros.

Além dos dois motivos mantidos por essas duas crian-


ças, na terceira criação o que parece estar presente é uma
outra preocupação de respeito à organização geral do
mosaico…

O terceiro exemplo de mosaico


Experiências a serviço da vida na terra 137

Os tateamentos feitos na hora dos traçados mostram, to-


davia, que os dois quadriculados que se interpenetram não
foram feitos com inteira maestria. Construído a partir dos
lados dos qua­drados menores, o quadriculado mais estreito
serve de trama organizadora ao quadriculado dos quadrados
com as ampu­lhetas. E se, inversamente, o segundo nível
de quadriculado contivesse o primeiro, o que aconteceria?

Na última criação, há um óbvio enquadramento do


motivo dado:

O quarto exemplo de mosaico

O quadrado grande, formado de nove quadrados pe-


quenos – e de suas diagonais – foi pura e simplesmente
reproduzido. No momento do enegrecimento de alguns
triângulos foi que a referência às pás do moinho e às am-
pulhetas começou a aparecer.

138 A criança entre atualidade e realidade

A primeira e a quarta criança tiveram dois andamentos


opos­tos. Para uma, a abordagem da figura foi feita através de
um detalhe, para depois destacar o elo entre dois detalhes,
isto é, a ideia de ampulheta. Para a outra, a figura foi abor-
dada primeiro no conjunto, para num segundo tempo ser
dividida até o detalhe. Cada uma das duas outras crianças
explorou uma via intermediária que deixa adivinhar uma
nítida vontade de materializar a trama oculta do mosaico.

Além disso, é interessante observar que o uso do detalhe


– o triângulo pequeno – está relacionado à dimensão física
e material da atividade, ou seja, ao objeto concreto que o
mosaico do mosaicista representa. A dimensão psíquica
e psicológica está claramente presente na busca de um
referencial, construído em torno da evocação subjetiva de
objetos como as pás do moinho e a ampulheta. A terceira
dimensão, também abstrata, está em luta com a tentativa
de elucidação de uma organização profunda. Do caos à or-
dem, eis o caminho seguido por todas as crianças. A ordem
está ali, bem diante delas, no mundo objetivo, mas elas só
a percebem de maneira imprecisa. A atividade de desenho
no plano da folha força o olhar e a consciência a se infiltrar
além das aparências, a abrir o caminho da busca do sentido.
“A vida é forma, e a forma é o modo da vida”, escreveu
Henri Focillon, num livro intitulado “Vida das Formas”. A
respeito das ornamentações dos monumentos religiosos,
ele acrescenta: “Tão logo surge, a forma é suscetível de ser
lida de diversos modos. […] É válido perguntar se o teólogo
que dita o projeto, o artista que o executa e o fiel que recebe
a lição acolhem a forma e a interpretam do mesmo modo”.
Experiências a serviço da vida na terra 139

Como quer que seja, é dentro dessa mesma perspectiva


que podem ser inseridas as atividades geométricas para as
crianças. Na continuidade das construções propriamente
ditas, é sempre muito proveitoso o diálogo sobre os proces-
sos usados por cada uma delas, culminando – por que não?
– numa discussão de ordem filosófica que vai entusiasmar
o grupo. Era exatamente assim que Pitágoras agia com seus
estudantes!
Próximo da geometria, um outro exemplo sintético para
ilustrar minhas proposições é o caleidoscópio. Quem é que
não teve na infância o prazer de brincar com esse pequeno
cilindro quase mágico? Quem é que nunca se maravilhou
com a contemplação de todas as formas e cores que surgem
misteriosamente e sempre de modo inusitado? A criança
de oito anos pode, com proveito, manusear livremente
esse objeto surpreendente que não se deixa dominar. Se
ela o girar com violência, não controlará nada, e os resul-
tados obtidos serão pouco interessantes. Mas se aprender
a se servir dele com suavidade e paciência, terá a alegria
de observar suas evoluções. A criança de mais idade vai
querer compreender seu funcionamento e será cativada
pelos segredos de sua fabricação, que ela tentará executar;
penetrará assim na estrutura harmoniosa que ela admirou
previamente em suas mani­festações e poderá entrever tanto
a parte fortuita quanto a outra, a parte estruturadora, a da
técnica dos espelhos…

Deixando as crianças fazerem experiências que estão ao


seu alcance e interferindo poucas vezes, evitaremos que o
interesse delas se esgote e, pelo contrário, daremos a elas
todas as chances de repetir a mesma experiência, de vivê-
-la de outro modo e de compreendê-la num outro nível.
Pos­sibilitaremos igualmente que elas mantenham uma
curiosidade viva por situações quase análogas. As tentativas
repetidas várias vezes é que permitem a evolução das res-
postas, e é nisto que podemos encontrar as características
de uma alquimia sutil. De fato, os “filósofos herméticos”,
pacientes, assíduos e perseverantes, repetiam um número
impressionante de vezes as mesmas operações delicadas.
Na conclusão de seu livro, Jacques Sadoul assinala que “as
descrições de cada fase do ministério podem ser compreen-
didas em vários níveis: primeiro, a prática; depois a mútua
reação entre a prática e o praticante; por último, o papel ge-
ral deste último na harmonia da Grande Obra”. É possível
transpor essas observações para a área da educação, tanto
em relação à criança quanto ao adulto que se encarrega
dela; na prática, ou seja, na experiência, cada qual realiza
uma alquimia mental ou espiritual dentro de si mesmo e
entra em harmonia com os impulsos ocultos de um plano
que o transcende. Não esqueçamos que, na vida cotidiana,
as situações difíceis continuam se apresentando para nós,
até que consigamos resolvê-las.

Hoje, o grande erro em matéria de educação seria con-


tinuar imaginando que tudo pode ser resolvido de uma
só vez, o que estaria em contradição com os trabalhos dos
defensores da teoria “construtivista”. Se o mundo e suas
experiências acabam endurecendo demais os homens, é
porque estes se fecham por tempo demais em erros repeti-
dos. As crianças de nossa época devem compreender que a
aceitação de suas fraquezas é uma condição indispensável
para um trabalho sobre si mesmas. Entretanto, a meu ver, as
crianças reagem muito espon­taneamente nesse sentido. Se
nem todas fazem isso, é de nosso maior interesse examinar o
estado de espírito dos diversos educadores que as rodeiam.
A teia das interações 141

Essa é uma questão essencial, que será tratada mais adiante.

De maneira análoga, infância e consciência simples


se identificam e ambas convidam a descobrir o mundo.
Adolescência e autoconsciência estão em ressonância har-
mônica: ambas levam ao autodescobrimento. Idade adulta
e consciência cósmica deveriam estar associadas: ambas
não são propícias à busca de um sentido, à necessidade
de encontrar aquilo que é a um só tempo oculto e comum
a tudo? Assim, no enca­deamento das situações vividas, a
criança é colocada numa dinâmica que requer a liberação
de suas forças criativas. Assim fazendo, ela tenta equilibrar
o senso semelhante à consciência cósmica e à individuação
que repousa na autoconsciência. Desse modo, ela fica apta
a pôr em correspondência a visão parcial com a posição
universal e a harmonizar a atualidade de suas atividades
com a sua realidade profunda. Para Comenius, “esta vida é
tão-somente a preparação para a vida eterna” e contém três
estágios; a educação da criança deve lhe possibilitar “conhe-
cer-se, governar-se e tender para Deus”. Podemos nos unir a
ele aqui, salientando mais uma vez que é no continuum das
experiências que se efetua a busca de si mesmo e esta leva a
encontrar o eixo orientado que é próprio de cada um. Uma
educação verdadeiramente útil não se furta a essa regra.
Os alquimistas sempre procuraram transmutar os metais
em ouro glorioso. A ambição da alquimia educativa não é
menor que essa e, em última análise, poderia ser definida
esque­maticamente da seguinte maneira:
142 A teia das interações

O filtro das experiências

Os pontos, representando as múltiplas experiências no


mundo terreno, formam uma espécie de filtro que concorre
para livrar o ser humano das escórias que o impedem de ser
ele mesmo. Como vimos antes, as situações de aprendizagem
são de vários tipos e se dirigem a níveis variados da perso-
nalidade da criança, que está em construção progressiva.
E, construindo-se, ela encontra situações que se repetem,
mas que para ela não são mais exatamente as mesmas. Uma
metamorfose do olhar acontece sequencialmente; como
exemplo disto, percebam como a casa de sua infância lhes
parece menor hoje…
A teia das interações 143

Essa modificação da consciência decorre da mútua reação


a que já aludimos. Pode-se dizer que as experiências trans-
formam a pessoa que as vive e que, ao mesmo tempo, ela
transforma as experiências. A ideia de mútua reação, tão
cara aos hermetistas, convida-nos a considerar do que são
feitos os diferentes elos que, em sua evolução, o ser humano
é levado a estabelecer.

Naturalmente, não devemos esquecer que a transforma-


ção do olhar que a criança pousa sobre o mundo deve ter
como objetivo o desabrochar de todas as componentes de
seu ser; ou seja, aprender pela experiência, além de uma vida
terrena plena de êxito, é também uma garantia de inscrição
numa forma de eternidade…

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