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O Sistema Único de Saúde como proposta de revolução social-econômica: uma

resistência ao processo de mais-repressão capitalista

Waldir Périco
Psicólogo pela UNESP – Campus de Assis.
Especialização em “Saúde Mental e Saúde Pública” –
Departamento Regional de Saúde de Marília (DRS-IX).
Mestrando em “Psicologia e Sociedade” na UNESP –
Campus de Assis.

Resumo
Palavras-chaves
É razoável uma ordem governativa que empurra as pessoas para a periferia
das cidades, nega-lhes condições mínimas de habitação, de emprego, de
saneamento, de educação, de transporte, e procura resolver suas “doenças”
por meio de serviços médicos? (MENDES, 1999, p. 254)

Introdução
Na historia da humanidade, desde onde pudemos ter conhecimento, sempre
houve uma preocupação pela busca por um saber que pudesse dar conta dos males que
nos assolam. Como refere Freud (1930), somente no último século foi possível ao
homem chegar à fundamental conclusão de que a maioria das suas doenças é causada
por outros seres vivos. Constatações científicas como esta são responsáveis por um
acréscimo nas possibilidades de produção de saúde e bem-estar, bem como,
consequentemente, pelo aumento da longevitude da espécie humana. Para ficarmos em
um único – no entanto eloquente – exemplo, citemos a descoberta da penicilina na
década de 1940. Pensemos os saberes sanitários, ideologicamente, como saberes que se
proporiam permitir ao homem uma vivência mais longa e tranquila sob o sol. No
entanto, deparamo-nos com o fato de que, sob o mesmo sol, os homens acabam
sofrendo menos pela falta de possibilidades de construção de tais saberes e mais pela
forma desigual com que estes são ofertados e acessados1.
Ao pensamos na atual situação da Saúde Pública no Brasil não tem como não
lembrarmos que estamos falando de uma das grandes potências industriais
contemporâneas, que ocupa o 13º lugar no ranking do Produto Interno Bruto (PIB) do
mundo ao passo que, vergonhosa ou descaradamente, encontra-se na 63° posição na
lista do ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Este quadro de
desigualdades sociais é resultado de um Brasil historicamente colonizado, bem como,
sobretudo, do processo de concentração de renda nas mãos de minorias sociais, em
detrimento da imensa classe trabalhadora às voltas com arrochos salariais sucessivos,
especialmente durante os anos dos governos da ditadura militar (Yasui, 2010; Costa-
Rosa, 1987). É no contexto de movimentos sociais pró-democracia da década de 80,
iniciado e protagonizado nas periferias das cidades, em parceria com personagens e
instâncias acadêmicas e políticas, que surge o movimento pela Reforma Sanitária no
Brasil (MENDES, 2006; PAIM, 2008; YASUI, 2010), movimento que se torna política
pública com a promulgação da constituição de 1988 e, principalmente, com a “Lei
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Já dizia o Eclesiastes da bíblia cristã: “Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e eis: tudo vaidade”.
Orgânica de Saúde” (Brasil, 1990). A partir de então, ao processo saúde/adoecimento é
dado a complexidade que lhe cabe, considerando suas determinações políticas,
biológicas, psíquicas, sociais e culturais (Yasui, 2010), o que nos permite afirmar que
“os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país”
(Brasil, 1990, Art. 3º). Desta feita, melhorar as possibilidades de produção de saúde, de
um melhor-estar no mundo, implica principalmente transformar a sociedade que produz
o adoecimento como processo social complexo. A principal revolução sanitária se
expressa na constatação de que as enfermidades possuem causas mais amplas, além do
que é enunciado pelo saber da medicina (biológica) clássica. À concepção estática de
saúde, compreendida basicamente como silêncio dos órgãos, respaldada pelo discurso
da ciência positivista-biológica, contrapõe-se a percepção da saúde entendida como um
processo saúde/adoecimento, onde se busca entender a complexidade de tal processo
(Costa-Rosa, 2000; MENDES, 2006; PAIM, 2008; YASUI, 2010).
Tal ampliação dos determinantes do processo saúde/adoecimento nos coloca
diante de avanços significativos quanto às formas de tratamento na Saúde Pública. O
modelo de Atenção à saúde no Brasil, portanto, passa por uma gradativa mudança, ainda
em curso, a saber, do modelo clínico-assistencialista para o modelo da Saúde Coletiva.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido considerada uma das maiores
revoluções da área social, sem precedentes, cultivada no novo regime democrático,
sendo que carrega como mais fundamental e inovador o seu caráter de assistência
universal e igualitária. Historicamente, o SUS é o primeiro sistema público de saúde que
visa dar assistência a todo cidadão, sobretudo, àqueles marginalizados do mercado de
trabalho e do consumo, ou seja, exatamente os sujeitos que se deparam com os mais
violentos impasses subjetivos, principalmente os de ordem material2.
Desde Marx é sabido que, no Modo Capitalista de Produção, a sociedade vê
sofrer a imensa parte de seus integrantes, principalmente pelo resultado da extração da
mais-valia na exploração no trabalho e no consumismo (BRAVERMAN, 1977). No que
cerne à história da Saúde Pública no Brasil é notório que enquanto a economia do país

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Mesmo Freud (1919/1988) pronunciou-se de forma pessimista quanto às possibilidades de tratamento
psíquico de sujeitos à margem das condições materiais mínimas à subsistência: “provavelmente
descobriremos que os pobres estão ainda menos prontos para partilhar as suas neuroses, do que os ricos,
porque a vida dura que os espera após a recuperação não lhes oferece atrativos [...]. Muitas vezes, talvez,
só poderemos conseguir alguma coisa combinando a assistência mental com certo apoio material” (p.
181).
era predominantemente agroexportadora as ações de saúde por parte do Estado visavam
tão somente o saneamento dos lugares de escoamento da produção, principalmente os
portos. Evidentemente que, diferentemente do que reza o discurso ideológico capitalista,
não há nenhum interesse por parte do capital de que o Estado, através de suas políticas
públicas, promova a saúde do trabalhador, a não ser nos casos em que o adoecimento
deste interfere no processo de produção e acumulação do capital 3. Desta forma,
propomos analisar tal produção social do sofrimento como se apresentando em dois
momentos, senão interligados: 1) como resultado das paupérrimas condições de vida e
de trabalho às quais a grande maioria da população brasileira é obrigada a se submeter;
e 2) como resultado – em decorrência dos baixos salários – do limitado acesso aos bens
de consumo essenciais para subsistência, inclusive os relativos à promoção de saúde.
Diante do fato de que a ampliação dos determinantes da saúde nos demanda pensar a
condição econômico-social da população como fundamental para o entendimento e a
melhoria das condições da saúde pública, temos por objetivo principal neste artigo
refletir o novo modelo de Atenção à saúde pública, o Sistema Único de Saúde, como
uma proposta de revolução social-econômica e como dispositivo de redistribuição de
riquezas às classes sociais à mercê do (constante) processo de exploração no Modo
Capitalista de Produção, na medida em que tem como norte os princípios da Equidade,
Universalidade e Integralidade das ações de saúde. Como arcabouço teórico de análise,
utilizaremos os referencias da Psicanálise e do Freudo-marxismo, sendo é a partir deste
último que lançaremos mão do conceito de mais-repressão, introduzido por Herbert
Marcuse (1972), como nossa principal ferramenta de análise.

Freud e o conflito indivíduo-civilização


Durante todo o desenvolvimento de sua obra, Freud atribuiu grande importância
ao conflito expresso entre os interesses do indivíduo e os interesses do projeto da
civilização. É, sobretudo, na consagrada obra “O mal-estar na civilização” (1930) que
Freud explora o assunto com mais eloquência e profundidade. Mas quais propósitos têm
ambas as partes do conflito indivíduo/civilização? Vamos a eles.

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Segundo Merhi (1987), “a prática médica [...] constitui o conjunto das práticas sociais, no interior das
sociedades capitalistas, que visam a produção e reprodução das relações de exploração econômica de
classe e de dominação política-ideológica particular, do capital sobre o trabalho – da burguesia sobre o
proletariado” (p. 11). Vale lembrar que a “medicina” que cabe aos princípios do SUS visa superar tal
prática social.
Segundo James Strachey, em sua nota de tradução de O mal-estar na
civilização (Freud, 1930/1988f), o conflito indivíduo/civilização é muito antiga na obra
de Freud. “Assim, em 31 de maio de 1897, [Freud] escreveu a Fliess que ‘o incesto é
anti-social e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele’” (Freud,
1930/1988f, p. 76). No capitulo II, Freud se pergunta o que o homem busca realizar ao
longo de sua vida, para logo em seguida responder que, sem sombra de dúvidas, os
homens “esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer”
(Freud, 1930/1988f, p. 94). Trata-se, aqui, do que Freud nomeou de “Princípio de
Prazer” que consiste na realização, se possível de forma abrupta e ininterrupta, de todos
os desejos e anseios. E é bom que seja dito que é um princípio que almeja o impossível.
No entanto, desde que é inserido numa comunidade de fal(t)antes, o ser humano é
obrigado, pela educação imposta pela cultura, Outro social, a renunciar às satisfações
pulsionais mais prementes. Como refere Freud (1930/1988f), “uma satisfação irrestrita
de todas as necessidades apresenta-se como o método tentador de conduzir nossas vidas;
isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio
castigo” (p. 96). Desta forma, no processo de constituição psíquica o Princípio de Prazer
vai aos poucos sendo substituído pelo Princípio de Realidade.
Segundo Marcuse (2001), é por meio da transformação psíquica operada pelo
Princípio de Realidade que a civilização expropria a energia necessária aos seus
propósitos, já que é por meio do Principio de Realidade repressivo que é liberada a
energia libidinal e agressiva para o trabalho. Trabalho que aprendeu a renunciar às
pulsões e tornou-se socialmente produtivo.
Para Freud, o progresso da civilização é diretamente proporcional ao aumento da
repressão da sexualidade. Cada vez mais o progresso cultural exige do indivíduo a
repressão de suas pulsões. Não somente as pulsões libinais, bem como também as
agressivas são reprimidas pela civilização. Segundo Marcuse (2001), a agressividade
recalcada passa a ter dois destinos possíveis, sempre em favor do processo civilizatório:
(1) é deflagrada para fora como energia agressiva socialmente produtiva, ou seja através
da transformação da natureza pelo trabalho; (2) é redirecionada para dentro, ao permitir
que o superego se aposse da tal agressividade para utilizá-la contra o próprio ego, como
consciência moral: “sua agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade,
enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio
ego” (Freud, 1930/1988f, p. 146). Eis o duplo golpe aos propósitos de bem-estar dos
sujeitos no seio da civilização.
Nesse ponto resta-nos perguntar por que Freud (1930) conclui que o progresso
da civilização (Progresso Cultural) é o principal motivo de nossa, crescente, desgraça?
Acrescentaríamos, com o materialismo dialético de Marx (BRAVERMAN, 1977), por
que a civilização – que em seu ideal visa proporcionar ao homem mais conforto e
felicidade – é responsável pelo infortúnio da grande maioria de seus integrantes, a
despeito do fato que são os mesmos a força motora (trabalhadora) de tal progresso?4.

Marcuse e a mais-repressão
“Em Eros e Civilização Marcuse utiliza a obra de Freud como base para uma
série de propostas. Segundo ele, o Princípio da Realidade freudiano e a ordem
repressiva não são absolutos, mas sim características específicas do sistema sócio-
cultural moderno. Assim, é possível supor a existência de uma ordem não-repressiva,
que permita a superação do mal-estar na civilização (para Marcuse, mal-estar no
capitalismo)”

Segundo a “Lei Orgânica de Saúde” (Brasil, 1990), a saúde passa a ter como fatores
determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento
básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso
aos bens e serviços essenciais,

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Marcuse (2001) propõe duas definições de progresso cultural: 1) O Progresso Técnico, quantitativo, que
faz referência ao aumento dos conhecimentos e capacidades humanas para a dominação do meio humano
e natural, resultando na riqueza econômica e social (que no capitalismo tardio não é apropriado pelos que
produzem); 2) o Progresso humano, qualitativo, que diz da capacidade de produção da liberdade entre os
homens, do aperfeiçoamento humano, que se opõe à opressão do homem pelo homem. Como objetivo do
presente artigo, versaremos como a proposta de Reforma Sanitário do SUS se inclui na segunda definição
de progresso.
Relação entre produção de saúde e produção de mais-valia = clínico-
assistencialista (gera mais-valia) / modelo da Saúde Coletiva (gera menos mais-valia e,
por conseguinte, “mais-saúde”)
O Estado atende apenas aquelas reivindicações que são aceitáveis para o capital e para
o grupo dirigente
Saúde e lógica de mercado

A esse respeito, Périco & Justo (2010) discorrem sobre como o Discurso Médico busca
preservar seu papel de controle social através do dispositivo de “culpabilização da
vítima”. Discutem sobre como as organizações de trabalho, no Modo Capitalista de
Produção, usando de entendimentos reducionistas, tendo o apoio discursivo e prático do
saber médico-psiquiátrico, tendem a desconsiderar sua parcela de responsabilização na
“produção” das enfermidades nos trabalhadores, principalmente as que se referem ao
psíquico. Mostram como a culpa pelo adoecimento é atribuída somente ao trabalhador,
não sendo nunca questionadas, entre outras, as condições biológicas, psíquicas e sociais
de trabalho.

Objetivos objetivo principal:


Pensar o mecanismo de mais-repressão como fundamental no que tange às discussões
sobre o processo saúde-adoecimento, sobretudo na população que se depara com os
maiores impasses subjetivos, principalmente os de ordem material.

Específico:
1)

Bibliografia:
BRASIL. Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde. Brasília, 19
set. 1990.
BRAVERMAN, H. Trabalho e Capital Monopolista. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1977.
Costa-Rosa, A. Saúde Mental comunitária. Análise dialética das práticas
alternativas. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, 1987.
______. O Modo Psicossocial: Um Paradigma das Práticas Substitutivas ao Modo
Asilar. In: AMARANTE, P. (org.) Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. p. 141-168.
Freud, S. Linhas de progresso da terapia psicanalítica (1919 [1918]). In: Edição
Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol.
XVII. Tr. Jayme Salomão. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
PAIM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica.
Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008.
Périco, W. & Justo J. S. O mal-estar no trabalho: a culpa como mal-estar e a culpa do
mal-estar. Revista Mal-estar e Subjetividade. 2011
Marcuse, H. (1972). Eros e civilização (5a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Mendes, E.V. Uma Agenda para a Saúde. São Paulo: Hucitec. 2006
Merhy E. E. O capitalismo e a saúde pública ( Editora Papirus, São Paulo, 1987)
Yasui, S. Rupturas e Encontros: Desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Rio
de Janeiro: Fiocruz, 2010.

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