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Patrícia T. R. Lucchese 1
Abstract In public debate on the health sec- Resumo O tema da eqüidade em saúde vem
tor, the subject of health equity has come to ganhando destaque no debate público setorial
prominence as a goal to be achieved in decen- como objetivo a se alcançar na gestão descen-
tralising the Unified Health System (SUS) in tralizada do Sistema Único de Saúde para a
order to improve health conditions throughout efetiva melhoria das condições de saúde do con-
Brazil for the population as a whole. The de- junto da população brasileira em todo o terri-
bate is already considerably complicated by the tório nacional. Este debate, já bastante difícil
need for a precise definition of the concept of pela necessidade de se precisar o conceito de
equity, evidencing the complexity of the envi- eqüidade, evidencia a complexidade do am-
ronment in which the public task of reducing biente em que se processam as tarefas públicas
inter-regional inequalities is to be performed para a redução de desigualdades inter-regio-
in a context of interaction and interdependence nais, no contexto de interação e interdependên-
among world and national economic, social and cia entre processos econômicos, sociais e cultu-
cultural processes, which pressure government rais, mundiais e nacionais, que pressionam as
agendas in these times of globalisation. On the agendas governamentais nestes tempos de glo-
basis of (1) a specific interpretation of the con- balização. Este artigo empreende um esforço de
cept of equity in decentralised management of sistematização de alguns dos desafios e inda-
the SUS; (2) a current reconsideration of cer- gações colocados para uma gestão pública da
tain proposals for social management that fea- saúde orientada à eqüidade na República Fe-
ture in international development debate; and derativa do Brasil, a partir de uma interpreta-
(3) a review of certain authors’ theoretical con- ção própria para o conceito de eqüidade na ges-
tributions with regard to State action in this tão descentralizada do SUS, da atualização de
heterogeneous and contradictory environment algumas proposições para a gestão social em dis-
undergoing extensive mutation, this article en- cussão no debate internacional sobre o desen-
deavours to systematise some of the challenges volvimento, e da revisão da contribuição teóri-
and questions posed in order for health to be ca de alguns autores sobre a ação do Estado
1 Departamento
de Ciências Sociais,
managed publicly with a view to equity in the neste ambiente heterogêneo e contraditório de
ENSP, Fiocruz. Federative Republic of Brazil. grandes mutações.
Av. Leopoldo Bulhões Key words Equity, Public management, De- Palavras-chave Eqüidade, Gestão pública,
1480, 9o andar
21041-210, Manguinhos
velopment, Decentralisation, Health policy Desenvolvimento, Descentralização, Política
Rio de Janeiro RJ. de saúde
lucchese@ensp.fiocruz.br
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cançar para a efetiva melhoria das condições de Whitehead (1992). Segundo o CHETRE, o con-
saúde do conjunto da população brasileira em ceito de eqüidade sugere que pessoas diferentes
todo o território nacional. deveriam ter acesso a recursos de saúde sufi-
Abordar a eqüidade nesse novo contexto da cientes para suas necessidades de saúde e que o
gestão da política de saúde e do Sistema Único nível de saúde observado entre pessoas diferen-
de Saúde não é tarefa fácil porque exige um es- tes não deve ser influenciado por fatores além
forço de reflexão que reconheça o “clima e o do seu controle. Como conseqüência, a iniqüi-
terreno” do novo ambiente de gestão descentra- dade ocorre quando diferentes grupos, defini-
lizada em que se processam as tarefas públicas. dos por suas características sociais e demográfi-
Este esforço requer uma revisão conceitual que cas como, por exemplo, renda, educação, ou et-
não somente aperfeiçoe o já avançado mapea- nia, têm acesso diferenciado a serviços de saúde
mento das desigualdades no país, como simul- ou diferenças nas condições de saúde (health
taneamente auxilie na identificação das tarefas status). Essas diferenças são consideradas iní-
de gestão necessárias para reduzi-las. quas se elas ocorrem porque as pessoas têm es-
Este artigo, em caráter exploratório, em- colhas limitadas, acesso a mais ou menos recur-
preende um primeiro esforço de reflexão nessa sos para saúde ou exposição a fatores que afe-
direção. Tomando como referência o trabalho tam a saúde, resultantes de diferenças que ex-
conceitual desenvolvido por Amartya Sen, no pressam desigualdades injustas (Chetre, 2000).
seu livro A desigualdade reexaminada (2001), Tal concepção se adapta perfeitamente ao
publicado originalmente em 1992, e consideran- campo de preocupações individuais e sociais re-
do a complexidade do ambiente em que se pro- lacionadas à saúde. Apresenta, no entanto, difi-
cessam as tarefas de gestão pública hoje no mun- culdades para sua operacionalização em tarefas
do, e em particular na América Latina, identifi- de gestão. Em primeiro lugar, ao conceito de ne-
cam-se algumas tarefas prioritárias para a redu- cessidade de saúde, bastante determinado cul-
ção das desigualdades em saúde no Brasil, para turalmente e variado quando relacionado às ati-
as quais a gestão do SUS deve se capacitar. vidades do cotidiano, à experiência da dor, à
morbidade, à longevidade, às possibilidades de
acesso ao cuidado, entre outros aspectos, cor-
O conceito de eqüidade na gestão respondem diferentes expectativas quanto aos
descentralizada do SUS recursos de saúde necessários para atendê-las e
sua suficiência. Acrescente-se a isso, a dificulda-
Encontrar a interpretação do conceito de eqüi- de de se discriminar o que é necessidade de saú-
dade mais adequada ao campo de atuação em de diante da pressão e do fascínio que o com-
saúde para então operacionalizá-lo em tarefas plexo médico industrial, cada vez mais diverso,
de gestão do sistema orientadas à redução de tecnologicamente sofisticado e dinâmico, exer-
desigualdades é um grande desafio. Como bem ce sobre o imaginário de potenciais usuários e
lembra Duarte (2000), as opções conceituais, dos profissionais de saúde.
inerentes aos desenhos de sistemas de saúde, Em segundo lugar, porque tal concepção
orientam a escolha dos critérios distributivos, a impõe qualificar e selecionar entre as diversas e
escolha de indicadores a utilizar para avaliar o extremas desigualdades sociais e econômicas,
grau de eqüidade e a interpretação dos resulta- que afetam direta ou indiretamente a saúde em
dos em relação à efetividade das intervenções. contextos como o brasileiro, aquelas diferenças
A literatura internacional vem adotando co- desnecessárias e injustas.
mo ponto de partida para novas definições do Para contornar essas dificuldades e tentar
conceito de eqüidade em saúde aquele desen- operacionalizar tarefas de gestão orientadas à
volvido por Whitehead (1992), segundo o qual eqüidade, um bom caminho a seguir parece ser
eqüidade implica que idealmente todos deve- a “perspectiva da capacidade” desenvolvida por
riam ter a justa oportunidade de obter seu ple- Sen (2001) em seu brilhante reexame das desi-
no potencial de saúde e ninguém deveria ficar gualdades e dos ordenamentos sociais em geral
em desvantagem de alcançar o seu potencial, se no início dos anos 90. Diante do reconhecimen-
isso puder ser evitado. to da heterogeneidade básica dos seres huma-
Em recente trabalho, o Center for Health nos e da multiplicidade de variáveis em cujos
Equity, Training, Research and Evaluation – termos a igualdade pode ser julgada – o que não
CHETRE (2000) apresenta uma boa síntese raro resulta em divergências relevantes de ava-
conceitual desenvolvida a partir da definição de liação – o autor propõe como ponto de partida
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conexões entre ambiente e saúde, espaço e desi- bilitação das pessoas para a adoção de estilos de
gualdades, política e democracia, recursos e tec- vida que preservem a sua saúde, de redefinição
nologias para a atualização das práticas de cui- do modelo de atenção, em particular no que se
dado à saúde apenas acrescentam mais desafios refere à atenção básica, demonstram a pertinên-
para uma gestão pública setorial orientada a cia de se consolidar o compromisso público,
melhorias permanentes na atuação dos siste- governamental e social, com a tarefa coletiva de
mas de saúde, com impacto sobre a eqüidade promover a saúde das populações.
sanitária. Nesse âmbito, de acordo com Gentile (2001)
Esta complexidade está bem retratada, por o estabelecimento de projetos ou estratégias na-
exemplo, no panorama apresentado no informe cionais têm demandado: 1) o aumento dos in-
produzido pelo secretário-geral da Organização vestimentos públicos para fomentar a saúde; 2)
Mundial de Saúde em 2001 para o comitê pre- o fortalecimento e expansão de parcerias; 3) o
paratório da Cúpula Mundial sobre Desenvol- aumento da capacidade comunitária para iden-
vimento Sustentável (Naciones Unidas, 2001): tificar e propor soluções para os seus proble-
Muchos de los principales factores que deter- mas; 4) a garantia de direitos aos indivíduos; e
minan los estados de salud y de enfermedad – así 5) infra-estrutura para o desenvolvimento de
como las soluciones correspondientes – no depen- inovações e atividades que promovam a saúde.
den directamente del sector de la salud sino que Em suma, o ambiente de gestão pública do
se relacionan con el medio ambiente, el abasteci- cuidado à saúde pode ser caracterizado hoje co-
miento de agua y el saneamiento, la agricultura, mo um vasto campo de reflexões, proposições e
la educación, el empleo, los medios de vida urba- mudanças que buscam informar ou organizar
nos y rurales, el comercio, el turismo, la energía y intervenções públicas com impacto positivo so-
la vivienda. Es indispensable abordar los factores bre a eqüidade.
implícitos que determinan la salud a fin de poder Nesse ambiente, traduzir os objetivos e ino-
mejorar los sistemas de salud a largo plazo de vações para uma efetiva redução de desigual-
forma perdurable y alcanzar un desarrollo ecoló- dades em saúde em tarefas concretas de gestão
gicamente sostenible. Se han registrado progresos que modifiquem para melhor as condições de
en cuanto a forjar vínculos más estrechos entre el vida daqueles em situação menos favorecida,
sector de la salud y otros sectores, en particular no mais curto prazo, permanece um grande
mediante planes nacionales y locales intersecto- desafio.
riales (salud y desarrollo) y el uso más intensivo Tais tarefas, considerando a intensa interde-
de instrumentos de planificación como los proce- pendência entre os processos econômicos, so-
dimientos de evaluación de las consecuencias pa- ciais e culturais de caráter mundial e aqueles de
ra la salud, los sistemas integrados de observa- caráter nacional ou regional na conformação
ción y vigilancia e indicadores y sistemas de in- das agendas governamentais, devem considerar
formación afinados. (Naciones Unidas, Consejo a diversidade de respostas necessárias e adequa-
Económico y Social, 2001). das a cada realidade, tanto no que diz respeito a
Consenso semelhante está na origem das modelos macroeconômicos quanto a inovações
formulações do movimento internacional pela institucionais no campo da intervenção estatal.
Promoção da Saúde, que desde a sua 1a Confe-
rência Internacional em 1986 vem disseminan-
do iniciativas de elaboração de políticas públi- A descentralização como
cas saudáveis, de criação de ambientes favorá- oportunidade para a maior eqüidade
veis à saúde, de reforço à ação comunitária, de em saúde na América Latina
desenvolvimento de habilidades pessoais e de
reorganização dos serviços sanitários, com im- Estudos recentes sobre as experiências latino-
pacto na proposição e aperfeiçoamento de es- americanas têm demonstrado que o alcance da
tratégias nacionais de aproximação interseto- eqüidade na gestão de serviços sociais na maio-
rial, de participação social e de reorganização ria dos países da região depende de três requi-
do modelo de atenção à saúde (Gentile, 2001). sitos conjugados: 1) um sistema de financia-
Especialmente nos espaços de gestão das ci- mento estável orientado à eqüidade inter-regio-
dades, várias experiências de articulação de nal; 2) um sistema de gestão flexível, com mar-
ações intersetoriais em prol da saúde, de mobi- gens suficientes de autonomia local na adminis-
lização e participação comunitárias para a de- tração dos recursos e da força de trabalho; e 3)
fesa e garantia de um ambiente saudável, de ha- a responsabilização das autoridades por seus re-
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sultados, a partir da efetiva delegação da gestão • o incremento das receitas fiscais e o aumen-
dos serviços aos governos subnacionais (Cepal, to da capacidade de arrecadação dos governos
2000). locais.
Segundo o documento Equidad, desarrollo De fato, esses desafios presentes na gestão
y ciudadania elaborado pela Comissão Econô- descentralizada dos serviços sociais na América
mica para a América Latina e o Caribe (Cepal, Latina, com a complexidade que assumem em
2000), das Nações Unidas, a descentralização da tempos de globalização, de mudanças no modo
gestão pública tem representado uma grande de regulação social e de redesenho institucional
oportunidade para a adequação dos programas do Estado, integram, desde o início dos anos 90,
governamentais às demandas e singularidades a agenda política setorial no Brasil. E é a partir
locais e para um aumento da eficiência do gas- desses desafios que se desdobram tarefas de
to público, da eficácia gerencial, da sustentabi- gestão para a redução de desigualdades em saú-
lidade e da eqüidade no que se refere aos resul- de no país.
tados da ação governamental, com potencial de
assegurar maior efetividade ao gasto social.
A partir da análise dos objetivos, de aspec- Os funcionamentos e capacidades ne-
tos fiscais e de organização institucional, e da cessários à gestão do SUS para
participação social nos processos de descentra- a redução de desigualdades em saúde
lização dos serviços sociais em oito países lati-
no-americanos, entre os quais o Brasil, a comis- Tomando como referência o debate internacio-
são identifica os seguintes desafios para uma nal, as contribuições de Kliksberg (1998) e San-
gestão pública orientada à eqüidade, com base tos (1998), e retomando a “perspectiva da capa-
nas lições aprendidas: cidade” desenvolvida por Sen (2001), conforme
• a clara definição das funções de coordena- as adaptações sugeridas neste artigo, pode-se
ção, gestão do financiamento, provisão das proceder a uma primeira aproximação aos “fun-
prestações sociais e desenho e aplicação de nor- cionamentos e capacidades” necessários à ges-
mas reguladoras, que considerem as capacida- tão descentralizada do SUS para que todas as
des presentes e potenciais das regiões; unidades político-administrativas da República
• a descentralização do modelo de financia- Federativa do Brasil tenham iguais condições e
mento e das decisões sobre recursos humanos; oportunidades de organizar respostas eficazes
• o fortalecimento da competência técnica aos problemas de saúde no território nacional.
dos órgãos subnacionais para que possam as- De imediato, alguns requisitos políticos,
sumir suas novas atribuições; institucionais e administrativos parecem ser de-
• a compatibilização entre as dimensões se- cisivos para dar sustentabilidade a processos de
torial e territorial na estrutura descentralizada; gestão orientados à eqüidade. Entre eles, desta-
• o fortalecimento da competência técnica da cam-se:
gestão administrativa e financeira; • o alargamento dos padrões de inclusão so-
• a superação da fragmentação das responsa- cial da política de saúde e a recusa à geração de
bilidades quanto ao financiamento e à superpo- novas exclusões, paralelamente ao desenvolvi-
sição de âmbitos de regulação e supervisão lo- mento de vínculos mais concretos entre os dife-
cal e nacional; rentes atores sociais nos espaços de gestão, para
• a superação da excessiva complexidade do a sua efetiva participação na formulação, acom-
financiamento, tanto no que diz respeito à di- panhamento, monitoramento e avaliação de de-
versidade das fontes de recursos, quanto à rigi- sempenho de políticas e projetos alternativos;
dez do destino e dos objetivos a elas fixados; • a democratização das tarefas de coordena-
• melhores escalas econômicas e técnicas para ção dos divergentes, e muitas vezes contraditó-
a prestação de serviços sociais não necessaria- rios, interesses presentes no processo decisório
mente coincidentes com as repartições admi- setorial, e o fortalecimento de processos orgâ-
nistrativas; nicos de negociação que explicitem os conflitos
• maior autonomia de gestão das unidades reais subjacentes entre os diferentes atores;
que prestam serviços; • a articulação intersetorial e a integração re-
• o estabelecimento de um adequado sistema gional das políticas públicas na definição de
de informação, que permita dar seguimento e uma agenda governamental que harmonize in-
avaliar as transferências intergovernamentais e tervenções econômicas, sociais e ambientais de
em geral, o avanço das metas fixadas; impacto sobre a eqüidade em saúde;
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