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Copyright © Niklas Natt och Dag, 2017

Publicado mediante acordo com Salomonsson Agency.

TÍTULO ORIGINAL
1793

Traduzido da edição inglesa The Wolf and the Watchman

PREPARAÇÃO
Marina Góes

REVISÃO
Luiz Felipe Fonseca
Juliana Pitanga

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Túlio Cerquize

DESIGN ORIGINAL
© FAVORITBUERO, Munique

PINTURA DE CAPA
© Johan Sevenbom (1768) “Vista dos casebres na avenida Röda Bodarna com a Prefeitura
(Palácio Bonde), a Casa da Nobreza Sueca e a Ilhota do Cavaleiro ao fundo” / ©
Shutterstock.com

MAPA
© David Atkinson / handmademaps.com

REVISÃO DE E-BOOK
Carolina Rodrigues

GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti

E-ISBN
978-85-510-0633-7

Edição digital: 2020

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Engodo gera engodo, violência gera violência.
Thomas Thorild, 1793
SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]

Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Epígrafe
Mapa

PARTE UM: O fantasma da Indebetou


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16

PARTE DOIS: O sangue e o vinho


Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28

PARTE TRÊS: A mariposa e a chama


Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42

PARTE QUATRO: O melhor de todos os lobos


Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63

Sobre o autor
Leia também
PARTE UM
O fantasma da Indebetou

Outono de 1793
Uma grande calamidade se abateu sobre nós. Mil rumores circulam, um
absurdo maior que o outro. Obter qualquer informação confiável é
impossível, pois mesmo os viajantes apresentam relatos díspares, e todos me
parecem um tanto poéticos em seus relatos. A atrocidade do crime,
conforme descrito, é demasiado grande, tanto que não sei o que pensar a
respeito.
Carl Gustaf af Leopold, 1793
MICKEL CARDELL ESTÁ boiando na água fria. Com a mão direita, segura Johan
Hjelm pela gola: Hjelm flutua ao seu lado, imóvel, com uma espuma vermelha
nos lábios. Sangue e água salobra deixam o uniforme de Hjelm escorregadio, e
Cardell quer gritar quando uma onda lhe arranca dos dedos o último pedaço
de pano, mas nada além de um ganido lhe escapa da boca. Hjelm afunda
depressa. Cardell mergulha a cabeça e por alguns instantes acompanha a
viagem do cadáver rumo às profundezas. Trêmulo de frio e de emoção, pensa
ter visto outra coisa lá embaixo, bem no limiar daquilo que seus sentidos são
capazes de perceber. Corpos mutilados de marinheiros submergem devagar, aos
milhares, rumo aos portões do inferno. O Anjo da Morte, sobre cuja cabeça
repousa uma coroa feita com o crânio de um morto, fecha suas asas sobre eles.
Na voragem da correnteza, sua mandíbula se move para cima e para baixo
numa risada de escárnio.
1

— MICKEL! SENTINELA MICKEL! Acorde, por favor!


Enquanto alguém sacode Cardell com vigor para que desperte, ele sente
uma dor passageira no braço esquerdo, que não mais possui. Uma mão talhada
em madeira assumiu o lugar do membro perdido. O coto repousa num espaço
oco dentro da peça de faia presa ao cotovelo por correias de couro. As tiras
cortam sua carne. Ele sabe que deveria ter tomado o cuidado de afrouxá-las
antes de adormecer.
Relutante, abre os olhos e depara com a vasta planície da mesa suja.
Quando tenta erguer a cabeça, vê que a bochecha está grudada no tampo de
madeira e sem querer arranca a própria peruca ao se levantar. Praguejando, usa-
a para enxugar a testa antes de guardá-la no casaco. Seu chapéu rola e cai no
chão, com a copa amassada. Ele o recupera e coloca na cabeça. Sua memória
começa a voltar. Ele está no Hamburgo, e deve ter bebido até perder a
consciência. Uma olhadela por cima do ombro revela outros homens em
condição semelhante. Os poucos bêbados que o dono considerou afluentes o
bastante para não jogar na sarjeta ficarão esparramados pelos bancos e mesas
até a manhã, quando voltarão cambaleando para receber em casa as
reprimendas de quem os aguarda. Cardell não. Veterano de guerra aleijado, ele
mora sozinho, e seu tempo não diz respeito a mais ninguém.
— Mickel, você precisa vir! Tem um cadáver na Ucharia!
As duas crianças que o acordaram são moleques de rua. Os rostos são
familiares, mas ele não consegue recordar seus nomes. Atrás deles está parado o
Carneiro, o cevado gerente que trabalha para a viúva Norström, dona da adega.
Grogue de sono e com o rosto vermelho, o Carneiro se posicionou entre as
crianças e uma coleção de vidros entalhados: o orgulho do estabelecimento,
guardado a sete chaves dentro de um armário azul.
Os condenados param ali no Hamburgo a caminho do Portão do Fortim e
do cadafalso mais adiante. Em frente à adega lhes é servida uma última bebida,
e o copo em seguida é cuidadosamente recolhido, gravado com o nome e a
data, e acrescentado à coleção. Os clientes só podem beber desses copos sob
supervisão e após pagarem uma tarifa baseada no grau de infâmia do
condenado. Dizem que dá sorte. Cardell nunca entendeu esse raciocínio.
Ele esfrega os olhos e se dá conta de que ainda está bêbado. Quando tenta
falar, a voz sai enrolada.
— Que diabo está acontecendo?
Quem responde é a mais velha das crianças, uma menina. O menino tem
lábio leporino e, a julgar pelos traços, é irmão dela. O hálito de Cardell faz o
moleque torcer o nariz e se abrigar atrás da irmã.
— Tem um corpo dentro da água, bem na margem.
O tom de voz dela é um misto de terror e empolgação. As veias da testa de
Cardell parecem prestes a estourar. As batidas de seu coração ameaçam afogar
até o mais débil pensamento que tente produzir.
— E por que isso é problema meu?
— Mickel, por favor, não tem mais ninguém, e nós sabíamos que você
estava aqui.
Ele esfrega as têmporas na esperança vã de aliviar a dor latejante.

Acima da Ilha Sul, o céu ainda não começou a clarear. Cardell sai cambaleando
pela porta do Hamburgo, desce os degraus de entrada e acompanha as crianças
pela rua deserta enquanto escuta sem prestar muita atenção o relato sobre a
vaca que estava com sede, mas que saiu correndo apavorada na direção de
Danto.
— O focinho dela tocou no corpo e o fez girar.
No chão, as pedras cedem lugar à lama à medida que se aproximam do lago.
Há tempos o dever de Cardell não lhe permite ir além das margens da Ucharia,
mas ele vê que nada mudou. Os velhos planos de limpar a margem e construir
um cais com píeres não deram em nada, embora isso não seja nem um pouco
estranho numa época em que tanto a cidade quanto o país se equilibram à
beira da ruína. Já faz tempo que as belas casas ao redor do lago viraram sede de
manufaturas. As oficinas jogam seus dejetos diretamente na água, e dejetos
humanos, restritos ao trecho cercado, transbordam sem que ninguém dê
atenção. Cardell deixa escapar uma expressão obscena quando o calcanhar da
bota abre um sulco na lama e ele é obrigado a agitar o braço sadio para manter
o equilíbrio.
— Parece que nossa vaca encontrou uma prima podre e ficou assustada. Os
açougueiros jogam as carcaças no lago. Vocês me acordaram à toa.
— Nós vimos um rosto na água. Um rosto de gente.
As ondas que batem de leve na margem formam uma espuma amarelo-clara.
Alguma coisa podre, um calombo escuro, flutua a poucos metros mais para
dentro. A primeira coisa que Cardell pensa é que aquilo não tem como ser uma
pessoa. É pequeno demais.
— Como eu disse, são restos do açougue. Uma carcaça de animal.
A menina insiste que não está errada. O menino concorda agitando a
cabeça. Cardell se rende com um muxoxo.
— Eu estou bêbado, ouviram bem? Embriagado. Bebum. Não se esqueçam
disso quando alguém perguntar sobre aquela vez em que vocês convenceram o
sentinela a dar um mergulhinho na Ucharia, dando a maior surra do universo
em vocês depois de sair da água, encharcado e cheio de raiva.
Ele tira o casaco do jeito canhestro dos manetas. A peruca de lã esquecida
cai dentro na lama. Pouco importa. Aquela porcaria não custou quase nada e
além disso está saindo de moda. Ele só a usa porque uma aparência mais digna
melhora as chances de alguém oferecer um trago ou dois a um veterano de
guerra. Ergue os olhos para o céu. Lá em cima, um apanhado de estrelas
distantes reluz sobre a Baía de Årsta. Ele fecha os olhos para gravar dentro de si
a beleza e entra no lago, perna direita primeiro.
A margem lamacenta não aguenta seu peso. Ele afunda até o joelho e sente a
água do lago invadir o cano da bota, que permanece presa na lama quando o
tombo involuntário puxa a perna para a frente. Com algo a meio caminho
entre engatinhar e nadar cachorrinho, ele começa a adentrar mais no lago. A
água entre seus dedos é espessa, cheia de coisas que nem os moradores da Ilha
Sul consideram que vale a pena guardar.
A embriaguez embotou seu discernimento. Ele sente uma pontada de
pânico quando o fundo do lago desaparece sob seus pés. O lago é mais
profundo do que imaginava, e ele se vê de volta a Svensksund três anos antes,
morrendo de medo, arremessado pelas ondas, a frente sueca batendo em
retirada.
Quando seus chutes o impelem até perto o suficiente, agarra o corpo que
flutua no lago. A primeira coisa que pensa é que ele tinha razão. É impossível
É
que aquilo seja uma pessoa. É uma carcaça descartada, jogada ali pelos
ajudantes de açougueiro, transformada em boia quando os gases da
decomposição lhe expandiram as entranhas. O calombo então rola de frente e
lhe expõe a face.
O rosto não está nem um pouco decomposto, mas mesmo assim o que o
encara de volta são órbitas vazias. Por trás dos lábios rasgados não há dentes.
Apenas os cabelos ainda conservam o brilho — a noite e o lago se esforçaram
ao máximo para roubar-lhe a cor, mas aquilo é sem dúvida uma cabeleira
louro-clara. O arquejo súbito de Cardell enche sua boca d’água, e ele engasga.
Uma vez superado o acesso de tosse, ele flutua imóvel ao lado do cadáver
enquanto examina seus traços devastados. Na margem, as crianças não fazem
barulho algum. Ambas aguardam em silêncio o seu retorno. Ele segura o
cadáver, dá meia-volta na água e começa a chutar com o pé descalço para
retornar à terra firme.
O esforço aumenta quando ele chega à margem lamacenta e a água para de
sustentar seu peso. Cardell se vira de costas e, chutando com as duas pernas, iça
o corpo enquanto segura seu fardo pelo tecido esfarrapado que o envolve. As
crianças não o ajudam. O que fazem é recuar tapando os narizes. Cardell
pigarreia para tirar a água imunda da garganta e solta uma cusparada na lama.
— Vão correndo até a Eclusa e avisem aos Cadáveres.
As duas crianças não esboçam movimento algum para obedecer, tão ansiosas
por manter distância quanto para dar uma olhada na pescaria. Só obedecem
quando ele as acerta com um punhado de lama.
— Vão correndo até o posto de vigia noturno e chamem um maldito casaco
azul, seus desgraçados!
Quando não ouve mais os pequenos pés das crianças, Cardell se inclina de
lado e vomita. Um silêncio se abate, e nesse isolamento ele sente um abraço
frio espremendo o ar para fora de seus pulmões, tornando impossível respirar.
Seu coração bate cada vez mais rápido, o sangue lateja as veias do pescoço, e ele
é invadido por um medo paralisante. Sabe muito bem o que vai acontecer
agora. Sente o braço que não mais existe se materializar na escuridão até cada
parte do seu ser lhe dizer que o membro está outra vez onde um dia esteve, e
junto com ele uma dor lancinante o suficiente para anular o próprio mundo,
feito uma boca com dentes de ferro a triturar carne, osso e cartilagem.
Em pânico, ele arranca as correias de couro e deixa o braço de madeira cair
na lama. Segura o coto com a mão direita e massageia a carne marcada por
cicatrizes para forçar os sentidos a aceitarem que o braço não existe mais e que
a ferida já cicatrizou faz tempo.
A crise não dura mais de um minuto. A respiração então retorna, primeiro
em arquejos curtos, depois em inspirações mais calmas e lentas. O terror
diminui e o mundo readquire seus contornos conhecidos. Esses súbitos ataques
de pânico o vêm atormentando nos últimos três anos, desde que ele voltou da
guerra com um braço e um amigo a menos. Mas isso tudo já faz muito tempo.
Cardell pensava ter encontrado um jeito de evitar os pesadelos: bebidas fortes e
brigas de bar. Ele olha em volta, como à procura de uma visão tranquilizadora,
mas ali estão apenas ele e o cadáver. Segurando firme o coto do braço, ele fica
se balançando de um lado para o outro.
2

NA MESA À sua frente há um pedaço de papel no qual foi traçado um


quadriculado de linhas precisas. Cecil Winge pousa diante de si o relógio de
bolso, libera-o da corrente e puxa mais para perto a vela de cera, que estala.
Suas chaves de fenda estão enfileiradas junto às pinças e alicates. Ele estende as
mãos em frente à chama da vela. Nenhum tremor perceptível.
Começa a trabalhar com um cuidado minucioso. Abre o relógio, solta o
parafuso que prende os ponteiros, retira-os do mostrador e dispõe cada item
sobre o papel dentro do respectivo quadrado. Remove o mostrador do relógio,
expondo assim o mecanismo interno, que agora pode ser extraído sem
resistência. Bem lentamente, vai despindo o mecanismo, roda por roda, e
colocando cada peça dentro de seus limites de tinta. Libertada de suas amarras,
a mola comprimida e finíssima se estica até formar uma espiral longilínea. Por
baixo fica a rodagem, depois a tinge. Ferramentas pouco maiores do que
agulhas de costura removem dos encaixes os minúsculos parafusos.
Sem o próprio relógio, Winge não tem como mensurar a passagem do
tempo, a não ser pelo som dos sinos da igreja. Para lá da Campina, dobram os
grandes sinos da igreja de Edviges Leonor. Do mar vem o eco menos nítido do
campanário da Igreja de Catarina, encarapitada no alto do morro. As horas
passam depressa.
Uma vez desmontado completamente o mecanismo, Cecil repete cada passo
na ordem inversa. O relógio vai aos poucos recobrando o ato à medida que
cada peça volta ao seu lugar. Uma cãibra nos dedos faz com que precise de
várias pausas para que músculos e tendões se recuperem. Ele abre e fecha as
mãos, esfregando-as uma na outra e massageando as articulações com o apoio
dos joelhos. A posição desconfortável de trabalho começa a cobrar seu preço, e
a dor no quadril, que ele vem sentindo com cada vez mais frequência, começa a
subir pela base das costas, forçando-o a mudar constantemente de posição na
cadeira.
Uma vez posicionados os ponteiros, ele insere a pequena chave no orifício,
gira e sente a resistência da mola lá dentro. Assim que solta a chave, ouve o
tique-taque e, pela centésima vez desde o verão, tem o mesmo pensamento: o
mundo deveria funcionar assim; racional, compreensível, com cada peça em
seu devido lugar, passível de uma determinação precisa dos efeitos da sua
trajetória.
A sensação de bem-estar e conforto é passageira. É algo que se esvai tão logo
a distração acaba e o mundo no qual o tempo se imobilizou por alguns
instantes retoma forma ao seu redor. Sua mente começa a divagar. Ele encosta
um dos dedos no pulso e conta as batidas do próprio coração enquanto o
ponteiro menor vai marcando os segundos no mostrador que exibe o nome do
fabricante: Beurling, Estocolmo. Conta cento e quarenta batidas por minuto.
Recoloca as ferramentas em ordem e se prepara para recomeçar outra vez todo
o processo, mas sente cheiro de comida. A criada bate à porta e uma voz o
chama para comer.

Uma sopeira de motivo azul é colocada à sua frente. Seu senhorio, o cordoeiro
Olof Roselius, inclina a cabeça em uma breve oração antes de estender a mão e
destampá-la. Engole um palavrão e sacode os dedos após se queimar na alça da
tampa.
Do seu lugar à direita do anfitrião, Cecil Winge finge se concentrar no grão
da madeira da mesa, entremeado pelas sombras das velas de cera, enquanto a
criada acorre com um pano de prato para acudir o patrão. Um cheiro de nabo
e carne cozida desfaz as rugas do cenho franzido do cordoeiro. Setenta anos de
vida roubaram toda a cor de seus cabelos e da barba, e o deixaram corcunda.
Roselius é conhecido como um homem de bem, que dedicou anos à
administração da casa dos pobres em Edviges Leonor, além de ter
compartilhado generosamente a fortuna outrora grande o bastante para
adquirir a chácara do conde Spen, ali nos arredores da Campina. Sobre seus
anos de velhice recaiu a sombra de investimentos infelizes num moinho mais
ao norte, feitos em conjunto com o vizinho Ekman, funcionário de alta
patente na Câmara de Finanças. Winge tem a impressão de que Roselius se
sente maltratado e mal recompensado por décadas de trabalho caritativo. Sua
amargura agora cobre a propriedade como uma redoma.
Na posição de inquilino, Winge não consegue evitar a sensação de que é
testemunha de uma época desafortunada. Nessa noite Roselius parece ainda
mais lúgubre do que de costume, e cada mordida que dá vem acompanhada de
um suspiro. Quando seu pigarro rompe o silêncio, restam apenas algumas
colheradas no fundo da tigela.
— Aconselhar os jovens é uma tarefa difícil, já que em geral tudo que se
recebe de volta são insultos. Mas eu desejo o melhor para você, Cecil. Por
favor, tenha a bondade de me ouvir. — Roselius inspira fundo antes de
continuar a dizer o que precisa ser dito. — O que você está fazendo é
antinatural. Um marido precisa ficar ao lado da esposa. Você não jurou
permanecer com ela na alegria e na tristeza? Volte para ela.
O sangue sobe às faces de Winge, e a rapidez da reação o surpreende. Mas
permitir que a raiva assuma o controle e embote seu discernimento não condiz
com um homem racional. Ele inspira fundo, sente nos ouvidos as batidas do
coração, e se concentra em dominar as emoções. Enquanto isso, nenhum dos
dois diz nada. Winge sabe que os anos não prejudicaram a argúcia que valeu a
Roselius proeminência entre seus pares. Quase pode ouvir os pensamentos
dentro da cabeça do senhorio. A tensão entre os dois cresce e então diminui
sob o silêncio que se prolonga. Roselius dá um suspiro, recosta-se na cadeira e
estende a mão num gesto de reconciliação.
— Já compartilhamos tantas refeições, você e eu. Você é culto, tem o
raciocínio rápido. Sei que não é nem vilão, nem canalha. Muito pelo contrário.
Entretanto, as novas ideias o deixam cego, Cecil. Você acha que tudo pode ser
resolvido pela força da mente, da sua em especial. Mas está enganado. As
emoções não se deixam acorrentar dessa forma. Volte para sua mulher, para o
bem de vocês dois, e, se tiver feito algo para magoá-la, implore o seu perdão.
— O que eu fiz foi para o próprio bem dela. Foi cuidadosamente pensado.
— Cecil, seja lá qual fosse seu objetivo, o resultado foi outro.
Winge não consegue impedir o tremor das mãos e solta a colher para
esconder o nervosismo. Para sua frustração, ouve a própria voz sair como
pouco mais do que um sussurro rouco.
— Deveria ter funcionado.
Mesmo aos seus próprios ouvidos, a resposta soa como a desculpa de uma
criança teimosa. Quando Roselius torna a falar, sua voz está mais branda.
— Eu a vi hoje, Cecil. A sua mulher. Na peixaria, ao lado da Baía dos
Gatos. Ela está esperando um filho. Uma gravidez avançada o bastante para ser
indisfarçável.
Winge se sobressalta na cadeira, e pela primeira vez encara Roselius nos
olhos.
— Ela estava sozinha?
Roselius faz que sim e estende a mão para tocar o braço de Winge, que se
esquiva depressa. A reação instintiva espanta até ele mesmo.
Winge fecha os olhos para recuperar o autocontrole e se vê brevemente
transportado para a biblioteca que carrega dentro de si, com suas fileiras de
livros ordenadamente arrumadas e submetidas a um reinado de silêncio
absoluto. Ele escolhe um volume de Ovídio e lê algumas palavras aleatórias:
“Omnia mutantur, nihil inherit.”
Tudo muda, mas nada nunca se perde de fato. Ali ele encontra o consolo
que procura.
Quando torna a abrir os olhos, estes não demonstram qualquer espécie de
emoção. Com algum esforço, ele retoma o controle das mãos trêmulas e, com
todo cuidado, devolve a colher ao lugar, empurra a cadeira para trás e se retira
da mesa.
— Agradeço tanto pela sopa quanto pela preocupação, mas acho que a
partir de hoje jantarei no meu quarto.
A voz de Roselius o acompanha enquanto ele se retira.
— Se a sua mente está dizendo uma coisa e a realidade outra, quem deve
estar errado é o pensamento. Como é possível isso não estar óbvio para você,
com toda a educação clássica que teve?
Winge não tem resposta para isso, mas a distância cada vez maior entre os
dois lhe permite fingir que não escutou.

As pernas bambas de Cecil Winge o conduzem cambaleando pelo corredor, e o


homem sobe a escada até o quarto que vem alugando do cordoeiro desde o
verão. Logo está ofegante, e precisa parar para se equilibrar no batente da
porta.
Para além da janela do quarto, o jardim está imóvel. O sol já baixou. As
encostas que descem até a água são cobertas por um vasto pomar. Por trás das
árvores, Winge vê as luzes do estaleiro em sua ilha, onde os marinheiros se
apressam para concluir tarefas na esperança de ter paredes e um teto que os
separe da noite. Ao longe se vê a torre da Igreja de Catarina. A brisa noturna
sopra.
Todos os dias, é como se a cidade respirasse, inspirando o ar marinho a cada
manhã e tornando a soltá-lo à noite em direção à orla com uma força que faz
todas as birutas girarem. Ali perto, o velho moinho de vento geme, protestando
contra as cordas que prendem suas pás. Mais para o interior, um de seus irmãos
responde na mesma língua.
Winge vê o próprio reflexo no vidro da janela. Ainda não tem trinta anos.
Seus cabelos escuros estão presos na altura da nuca por uma fita, e a cor
contrasta fortemente com a palidez do rosto. As dobras apertadas de um pano
branco lhe cobre o pescoço. Já não consegue mais distinguir onde termina o
horizonte e onde começa o céu. Só mais acima as estrelas que começam a surgir
traem a presença do firmamento. E assim é o próprio mundo: tanta escuridão,
tão pouca luz. Sua visão periférica capta uma estrela cadente no canto superior
da janela, um fio de luz que risca o céu, durante um piscar de olhos.

Mais lá embaixo, perto dos pés de tília do jardim, ele vê um lampião, embora
não esteja esperando nenhuma visita. Ouve chamarem seu nome. Veste o
casaco e, ao chegar mais perto, vê que duas pessoas o aguardam. Quem segura
o lampião é a criada de Roselius, e ao seu lado está alguém de baixa estatura,
vergado na cintura, com as mãos sobre os joelhos, ofegando e com um filete de
baba pendendo da boca. Quando Winge se aproxima, a criada lhe entrega o
lampião.
— A visita é para o senhor. Eu é que não vou deixar esse daí passar pela
minha porta na condição em que está.
Ela gira nos calcanhares e marcha resoluta de volta até a casa principal,
balançando a cabeça diante da insanidade do mundo. O menino é novo. Ainda
tem a voz fina, e por baixo da sujeira suas faces são imberbes.
— Pois não?
— O senhor é Winge, do Inbeto?
— Para ser exato, a Câmara de Polícia fica na Casa Indebetou. Mas eu sou
Cecil Winge, sim.
O menino o espia por baixo de cabelos castanho-claros, desconfiando de sua
palavra até obter uma prova.
— No Morro do Castelo disseram que quem conseguisse chegar aqui
primeiro ganharia uma recompensa.
— Ah, é?
O menino masca uma mecha de cabelos que lhe escapou do chapéu.
— Eu corri mais rápido do que todo mundo. Agora estou com uma cãibra
nos quartos, com gosto de sangue na boca, e vou ser obrigado a dormir ao
relento com as roupas molhadas. Bem que eu gostaria de uma moeda para
compensar meu esforço.
O menino prende a respiração, como se o próprio atrevimento tivesse lhe
dado uma gravata. Winge o encara com um olhar incisivo.
— Você já disse que tem outras pessoas vindo para cá com o mesmo
objetivo. Bem, basta eu esperar um pouco, e podemos começar os lances.
Winge escuta o menino ranger os dentes e dizer um palavrão ao perceber o
próprio erro. Ele abre a bolsa e pega a moeda solicitada, que segura entre o
polegar e o indicador.
— Você está com sorte hoje. A paciência não é uma das minhas virtudes.
O menino abre um sorriso débil. A ausência de dentes da frente deixa uma
brecha pela qual a língua lambe o muco que escorre do nariz.
— Quem está à procura do senhor é o chefe de polícia. E ele quer vê-lo
agora mesmo, no Beco do Ferreiro.
Winge aquiesce e estende a mão com a moeda. O menino avança alguns
passos e pega sua recompensa. Então dá meia-volta abruptamente, sai correndo
e dá um salto por cima do muro baixo, que por pouco não o faz perder o
equilíbrio. Winge lhe grita:
— Use para comprar pão, não bebida.
O menino para um instante e, como resposta, abaixa a calça, mostra a
Winge o traseiro branco, e dá em cada nádega um tapa estalado enquanto
responde por cima do ombro.
— Mais alguns recados como este e vou ficar rico o suficiente para não
precisar escolher.
Então dá uma gargalhada triunfante e desaparece Campina afora, onde é
rapidamente engolido pelas sombras.
Há meses uma residência funcional é prometida ao chefe de polícia Johan
Gustav Norlin, mas a promessa nunca é cumprida. Ele ainda mora com a
família no mesmo quarteirão residencial a três ruas do Mercado. Já é tarde
quando Winge recupera o fôlego após uma subida penosa até o terceiro andar.
Pode ouvir que um visitante anterior conseguiu acordar não apenas o Norlin,
mas sua família também. Em algum lugar dentro da morada, uma mulher
acalma uma criança assustada. O chefe de polícia está à sua espera no vestíbulo,
sem peruca e com um canto do camisolão aparecendo entre o casaco e a calça
do uniforme.
— Cecil, obrigado por vir tão rápido.
Winge assente e obedece ao gesto de boas-vindas que lhe indica para se
sentar numa cadeira posicionada por Norlin junto ao aquecedor de alvenaria
para essa ocasião.
— Catarina está fazendo um café. Já, já, vai trazer para nós.
Pouco à vontade, Norlin se senta em frente a ele e pigarreia, como se isso
pudesse ajudá-lo a enunciar o motivo da convocação.
— Um cadáver foi encontrado na madrugada de hoje, Cecil, no Lago da
Ucharia na Ilha Sul. Parece que algumas crianças conseguiram convencer um
sentinela bêbado a tirá-lo da água. A condição dele é... O sujeito que me disse
isso é policial há dez anos, e certamente teve oportunidade de testemunhar
todo tipo de dano que um homem é capaz de infligir a outro. Mesmo assim,
quando descreveu o estado do cadáver, o pobre ficou parado na soleira da
porta, curvado para a frente e engasgando para não colocar o jantar para fora.
— Conhecendo o tipo dele, poderia perfeitamente ter sido por causa da
bebida.
Nenhum dos dois sorri, e Winge esfrega os olhos cansados.
— Johan Gustav, ficou combinado na tarefa anterior que seria a última vez
que eu prestaria auxílio. Passei muitos anos ajudando a Câmara de Polícia, mas,
como você sabe, chegou a hora de cuidar dos meus assuntos.
— Ninguém poderia ser mais grato por tudo que você fez do que eu, Cecil.
Não consigo pensar em uma única vez em que você não tenha superado as
minhas expectativas. Tendo em vista o quanto melhorou o histórico do
departamento desde o inverno passado, qualquer um consegue enxergar o
grande favor que você me fez. Mas me corrija se eu estiver errado, Cecil: o que
eu fiz por você também não foi um favor?
Por cima da borda da xícara, o olhar de Norlin procura em vão o de Winge.
O chefe de polícia suspira e pousa o café que Catarina serviu.
— Cecil, nós já fomos jovens um dia. Recém-formados em direito, ansiosos
para fazer com que nossos nomes fossem conhecidos nos tribunais. Você
sempre foi o idealista, aquele que defendia as próprias convicções com mais
veemência. Independentemente de qual fosse o preço, você estava disposto a
pagar. No seu caso pouca coisa mudou; já eu, permiti que o mundo aparasse
minhas arestas. Foi essa disposição para as concessões que me valeu o cargo que
tenho. Desta vez parece que estamos em papéis opostos, e hoje sou eu quem
pergunta: quantas vezes estivemos diante de um crime cuja magnitude
realmente fazia valer a pena corrigi-lo, e um crime que também tivéssemos o
poder de corrigir? Poucas das questões às quais você se dedicou eram realmente
dignas da sua atenção. Ladrões analfabetos, maridos assassinos que sequer se
dão ao trabalho de limpar o sangue do martelo, todo tipo de violência
cometida por bandidos, criminosos levados a acessos de fúria alcoólica e seus
efeitos. Mas isso aqui é outra coisa, de um tipo que nem eu nem você já vimos.
Se houvesse outra pessoa a quem pudesse confiar esse assunto, eu não hesitaria.
Mas não há, e em algum lugar por aí existe um monstro disfarçado de gente. O
cadáver foi levado para o cemitério de Santa Maria. Faça-me esse favor, e eu
nunca mais vou lhe pedir nada.
Winge ergue o olhar, e dessa vez quem não consegue encará-lo é o chefe de
polícia.
3

CARDELL DESCE O Morro do Moleiro e cospe na sarjeta um escarro marrom de


tabaco. Ele se limpou o tanto quanto foi possível no poço de um amigo e
vestiu uma camisa emprestada. Para além dos prédios caiados que se
equilibram nas encostas que levam à Baía Dourada, vê os contornos da cidade
em sua ilha, um colosso negro erguendo-se da água, perfurado por pontinhos
de luz ocasionais.
Mal sai do bairro e já avista um homem andando em direção à Eclusa de
Polhem, o rosto marcado de varíola e um distintivo de prata da polícia
pendurado no pescoço por uma corrente.
— Com licença. O senhor por acaso sabe o que aconteceu com o cadáver
encontrado na Ucharia? Meu nome é Cardell. Fui eu quem tirou o corpo da
água mais ou menos uma hora atrás.
— Ouvi falar. O senhor é sentinela, não é isso? O corpo por enquanto está
no salão mortuário da Igreja de Maria. Uma coisa horrível... nunca vi nada
pior. Dada a natureza do encontro, imaginei que o senhor já tivesse encerrado
seu interesse nisso, mas agora já disse o que sei. Agora com licença. Preciso
voltar para a Casa Indebetou e fazer meu relatório antes que o dia amanheça.
Eles se separam, e Cardell começa a descer o morro em meio à imundície
úmida de orvalho da Paróquia de Maria. Ao pé do morro, logo se depara com
o muro da igreja. Maria é uma aleijada, assim como Cardell. No ano exato em
que ele nasceu, uma faísca produzida na casa de um padeiro provocou um
incêndio que devastou toda a encosta do morro. A torre de Tessin desabou
através do teto abobadado de gesso, e até então, três décadas depois, o
campanário ainda não tinha sido substituído.
O cemitério o aguarda do outro lado de um portão. Os túmulos parecem
observá-lo em silêncio, mas um ruído desagradável perturba a paz do lugar, e,
na penumbra, Cardell leva alguns segundos para entender o som e que sua
origem é humana. Parece um cão latindo debaixo da terra, mas ele então
percebe uma sombra e, no pátio de cascalho diante da estrebaria da igreja e do
alojamento do coveiro, vê uma solitária figura tossindo num lenço.
Cardell não sabe o que fazer. O desconhecido encerra seu acesso de tosse,
cospe no chão e se vira. Das construções atrás dele, uma luz vaza por uma
janela entreaberta, e embora prive Cardell de sua visão noturna, dá ao outro a
chance de notar sua presença. Este rompe o silêncio com uma voz que é pouco
mais de que um sussurro rouco, mas que ganha força a cada palavra.
— Foi o senhor quem encontrou o morto. Cardell.
Cardell aquiesce.
— O policial não sabia, mas é claro que Cardell não é seu nome completo.
Cardell tira da cabeça o chapéu úmido e faz uma mesura breve e séria.
— Quem me dera. Jean Michael Cardell. Quando meu pai viu seu
primogênito, foi tomado por certa dose de pretensão. As aspirações não se
realizaram, como o senhor pode ver. As pessoas me chamam de Mickel.
— A modéstia também é uma virtude. Se o seu pai não entendia isso, pior
para ele.
A figura sai das sombras para a luz.
— Meu nome é Cecil Winge.
Cardell examina o homem e percebe que ele é mais jovem do que a voz
rouca sugeriu. Usa roupas muito decentes, embora antiquadas: casaco preto
justo na cintura, com as abas arrematadas por crina de cavalo e um colarinho
alto. Nota-se por baixo um colete discretamente bordado. Calça de veludo
preta com fivelas nos joelhos. Um lenço branco de várias voltas ao redor do
pescoço. Os cabelos são compridos, negros como tinta e estão presos à altura
da nuca por uma fita vermelha. A pele é quase incandescente de tão branca.
Winge é esguio, anormalmente magro até. Não poderia ser mais diferente
de Cardell, um tipo de homem que se vê por toda parte pelas ruas de
Estocolmo, a juventude roubada pela fome e pela guerra, exaurido antes do
tempo. Os ombros de Cardell devem ter o dobro de largura, as costas
avantajadas de um soldado que esticam o casaco e formam linhas nada
graciosas, as pernas grossas como toras, o punho direito grande como um
presunto inteiro. As orelhas de abano já apanharam o bastante para terem as
bordas cheias de cicatrizes grosseiras.
Cardell pigarreia encabulado sob o olhar do outro, que dá a impressão de
inspecioná-lo de cima a baixo sem nunca desviar a atenção das marcas de
varíola em seu rosto. Por instinto, Cardell se vira para a esquerda para tentar
esconder a deficiência. O silêncio constrangedor que Winge parece abraçar sem
desconforto empurra as palavras para fora de sua boca.
— Encontrei o policial na encosta do morro. O senhor também é da
Câmara de Polícia na Casa Indebetou?
— Sim e não. Eu poderia ser chamado de mão de obra extra, talvez. O
chefe de polícia mandou me chamar. E você, Jean Michael? O que veio fazer na
casa mortuária de Maria no meio da noite? Por acaso já não prestou serviço
suficiente ao morto?
Ao se dar conta de que não tem uma resposta razoável, Cardell cospe no
chão uma pelota inexistente de tabaco a fim de ganhar tempo.
— Perdi meu porta-moedas. Talvez tenha caído no cadáver quando o levei
até a margem. Não tinha muito dinheiro, confesso, mas o suficiente para
justificar uma caminhada noturna.
Winge demora alguns segundos para responder.
— Já eu vim aqui examinar o cadáver. Na última hora devem tê-lo limpado.
Estava justamente indo falar com o coveiro. Venha comigo, Jean Michael,
vamos ver se conseguimos encontrar algum porta-moedas.

O coveiro atende à batida em sua porta, que fica na construção contígua ao


muro. É velho, baixinho, e tem as pernas tortas, as costas corcundas e um
calombo num dos ombros. Tem um quê de sotaque alemão.
— Sr. Winge?
— Sim.
— Meu nome é Dieter Schwalbe. O senhor veio buscar o corpo? Tem o
restante da noite à sua disposição. O padre vai encomendá-lo antes da missa da
manhã.
— Queira nos mostrar o caminho, por gentileza.
— Só um instante.
Schwalbe acende dois lampiões com um fósforo comprido que sacode no ar
para apagar. Numa mesa próxima, um gato gordo limpa o focinho com uma
pata recém-lambida. Schwalbe entrega um dos lampiões a Cardell, fecha a
porta de casa e segue andando na frente deles com seu saltitar manco. Do
outro lado do pátio há uma construção baixa de pedra.
Schwalbe leva a mão à boca e produz um ruído alto antes de destrancar a
porta.
— Os ratos — explica. — Prefiro assustá-los do que o contrário.
Há objetos empilhados em todos os cantos. Picaretas e pás, materiais de
caixão velhos e novos, pedaços de lápides rachadas pelo gelo do inverno. O
cadáver, coberto por sua mortalha, está estirado num banco baixo. Faz frio ali,
mas o cheiro de morte é inconfundível.
O coveiro indica um gancho na parede, e Cardell pendura ali seu lampião.
Schwalbe baixa a cabeça e une as mãos como numa prece, passando o peso de
uma perna para a outra, claramente pouco à vontade. Winge se vira para ele.
— Mais alguma coisa? Porque temos muito a fazer, e o tempo urge.
Schwalbe crava os olhos no chão.
— Ninguém que cava sepulturas há tanto tempo quanto eu deixa de ver
coisas que os outros não viram. Os mortos podem não ter mais voz, mas falam
de outras formas. Esse aí está com raiva. Nunca senti nada assim. É como se o
revestimento das paredes de pedra à nossa volta estivesse se esfarelando,
tamanho o ódio que ele emana.
Cardell não consegue evitar o incômodo dessa superstição. Ele começa a
fazer o sinal da cruz, mas para ao ver o olhar cético com o qual Winge encara
Schwalbe.
— O que define um morto é a ausência de vida. Toda consciência deixa o
corpo, e onde ela reside no pós-morte eu não sei dizer. Vamos torcer para que
seja num lugar melhor do que aquele que abandonou. Mas o que sobra não é
capaz de sentir nem chuva nem sol, e nada do que possamos fazer vai perturbar
esse homem agora.
O cenho franzido de Schwalbe deixa suas objeções evidentes. Ele une as
sobrancelhas grossas e não faz menção alguma de se retirar.
— Ele não deveria ir para a cova sem nome. Plantar um corpo sem
identificação é semear uma alma penada. Até descobrirem o verdadeiro nome
dele, não poderiam chamá-lo por outro?
Winge passa um tempo refletindo sobre isso, e Cardell calcula que a
resposta será o resultado do cálculo para encontrar o modo mais rápido de se
livrar do coveiro.
— Talvez nós também possamos nos beneficiar de ter um nome pelo qual
chamá-lo. Alguma sugestão, Jean Michael?
Despreparado para a pergunta, Cardell hesita. Schwalbe emite um pigarro
audível.
— Por costume, os não batizados recebem o nome do rei, não é?
Cardell estremece e cospe o nome como se tivesse um gosto ruim.
— Gustav? Essa pobre alma já não sofreu o bastante?
Schwalbe parece intrigado.
— Um de seus Karls, então? Há doze entre os quais escolher. O nome
significa “homem” na sua língua, se não me engano, e portanto talvez seja
condizente neste caso.
Winge se vira para Cardell.
— Karl?
Diante da morte, velhas lembranças vêm à tona.
— Sim, Karl. Karl Johan.
Schwalbe sorri para ambos e revela uma fileira de protuberâncias marrons.
— Ótimo! Bem, agora dou a vocês boa noite, embora não acredite que seja
possível. Sr. Winge, Sr...?
— Cardell.
Schwalbe para ao cruzar a soleira da porta e acrescenta por cima do ombro:
— E Sr. Karl Johan.

Winge e Cardell ficam a sós sob a luz do lampião. Winge levanta um dos
cantos da mortalha e revela uma das pernas, um coto serrado a dois palmos do
alto da coxa. Após algum tempo, vira-se de volta para Cardell.
— Chegue mais perto e me diga o que vê.
Cardell considera a visão daquela perna pior do que a lembrança do cadáver
inteiro. Aquele coto anônimo não se parece em nada com qualquer forma
humana.
— Uma perna decepada? Não há muito a dizer sobre isso.
Winge aquiesce, pensativo. O silêncio faz Cardell se sentir bobo e, logo a
seguir, irritado. A noite parece que irá durar para sempre, sem qualquer fim à
vista. Sem desviar o olhar sobre o rosto de Cardell, Winge faz um gesto em
direção ao lado esquerdo de seu corpo.
— Não pude evitar reparar que a você também falta um braço.
Cardell sabe que tem talento para esconder sua deficiência. Passou mais
horas treinando do que seria capaz de contabilizar. De longe, é fácil confundir
com pele a madeira clara da faia, e ele aprendeu a manter o braço um pouco
escondido atrás do quadril. A menos que movimente o coto, poucos reparam
no membro faltante antes de conhecê-lo melhor. Principalmente à noite. Mas
ele não vê outra opção além de confirmar a observação e inclina a cabeça.
— Meus sentimentos.
Cardell dá um muxoxo.
— A julgar por seu desagrado com o nome de nosso finado rei Gustav,
suponho que seu ferimento seja de guerra?
Cardell assente, e Winge segue falando.
— Só estou tocando neste assunto porque o seu conhecimento sobre
amputação supera em muito o meu. Poderia fazer o favor de examinar o coto
outra vez?
Dessa vez Cardell se permite analisar a área apesar da camada de sujeira que
resistiu à água e ao sabão. Quando a resposta lhe vem à mente, é tão evidente
que ele percebe que deveria ter visto aquilo logo de primeira.
— Não é uma ferida recente. Está completamente cicatrizada.
— Sim — confirma Winge. — Geralmente quem encontra um cadáver nas
mesmas condições considera os ferimentos como a causa da morte em si, ou
então a tentativa do assassino de se livrar das provas. Neste caso, nenhuma das
duas coisas se aplica. Eu não ficaria surpreso se descobríssemos que os quatro
cotos estão na mesma condição.
Após uma ordem de Winge, eles se posicionam em lados opostos do banco,
erguem a mortalha e a dobram, canto com canto. O cadáver exala um fedor
agridoce e terroso que faz Winge pressionar seu lenço contra o nariz enquanto
Cardell recorre apenas à manga do casaco.
Karl Johan não tem nem os braços, nem as pernas, todos os quatro
amputados tão rente ao corpo quanto permitido pelo trabalho de faca e serra.
O rosto tampouco tem olhos: os globos oculares foram removidos das órbitas.
O que resta está subnutrido. As costelas se sobressaem. A barriga está inchada
por gases que empurraram o umbigo para fora, mas de ambos os lados o osso
pélvico é claramente visível por baixo da pele. O peito é magro, ainda estreito
de tão jovem e sem a largura plena de um homem adulto. As bochechas estão
encovadas. Do rapaz que um dia existiu, o que conserva as melhores condições
são os cabelos. A massa de fios louro-claros foi lavada e penteada por sobre as
tábuas do banco pelos humildes paroquianos.
Winge retira o lampião do gancho para inspecionar melhor e circula
lentamente o corpo que jaz.
— Você deve ter visto muitos cadáveres encharcados na guerra, não?
Cardell assente. Mesmo assim, não está acostumado com cenas como aquela
— o exame analítico e nada passional de um morto — e o nervosismo lhe solta
a língua.
— Muitos dos homens que perdemos no Golfo da Finlândia só
reapareceram no outono. Encontramos os corpos sob as muralhas do Forte de
Sveaborg, debaixo das baterias de canhões. Quem tinha sobrevivido à febre foi
despachado para tirá-los do mar, depois de bacalhaus e caranguejos terem
comido o possível. Muitas vezes esses cadáveres começavam a se mexer, e essa
era a pior parte. Emitiam ruídos, arrotos, gemidos. Muitos estavam cheios de
enguias que tinham engordado lá dentro de tanto comer. Os bichos saíam
relutantes das entranhas, se contorcendo pela areia quando interrompíamos o
banquete.
— E como nosso Karl Johan lhe parece, em comparação?
— Nenhuma semelhança. Ele se parece mais com os cadáveres que
recuperávamos logo após uma briga fatal, no mesmo dia em que tinham caído
no mar. Pálidos, um pouco bagunçados e cheios d’água. A meu ver, Karl Johan
não passou muito tempo no lago. Eu diria que ele não ficou mais do que
algumas horas na água. Deve ter sido posto lá logo depois do anoitecer.
— Quanto tempo seu braço levou para cicatrizar? — pergunta Winge,
pensativo.
Cardell o encara de volta antes de chegar a uma conclusão.
— Vamos tentar entender isso direito, assim teremos mais ou menos a
mesma base.
Winge ajuda a arregaçar a manga do braço esquerdo esticado de Cardell até
que o tecido esteja acima das correias que prendem o membro de madeira ao
cotovelo. Cardell solta as correias com uma desenvoltura advinda do hábito e
libera o coto, erguendo-o em direção à luz.
— Já viu a carne de um homem sendo cortada?
— De um homem vivo, nunca. Uma vez assisti a uma dissecção pública na
escola de anatomia, quando os cirurgiões estavam trabalhando num cadáver
feminino.
— A minha operação não chegou a ser um caso de estudo para os manuais
de medicina. Foi feita pela desajeitada adaga de um marinheiro, logo abaixo do
cotovelo. Quando fui levado ao cirurgião, ele precisou escavar ainda mais para
impedir a gangrena do braço. O paciente é amarrado com correntes forradas de
couro para não estragar a operação caso tente se levantar ou tenha convulsões.
A carne mole é cortada com uma faca, o osso com uma serra. Quem tem sorte
consegue beber o suficiente para perder os sentidos, mas na pressa só tive
direito a uma experiência sóbria. As veias grandes têm de ser fechadas depressa.
Já vi jorros de sangue indo bem longe quando o grampo escorrega. Os homens
perdem as forças e ficam brancos em segundos. Se tudo correr bem, é possível
salvar uma aba de pele grande o suficiente para ser dobrada de volta por cima
do coto, e as bordas são costuradas com linha e agulha. Está vendo aqui? Dá
para identificar a cicatriz ao redor do coto e ainda ver as marcas da agulha. Se o
membro não apodrecer, basta esperar ele brotar de novo.
Ele sorri sem ânimo para Winge, que está ouvindo com atenção.
— Você já viu todos os estágios da cicatrização bem mais de perto do que
qualquer um poderia desejar. Pode tentar datar para mim a amputação dos
membros de Karl Johan?
— Passe o lampião para cá, então.
É a vez de Cardell contornar o morto. Ele se inclina sobre cada canto do
corpo para estudar os cotos. Com o braço saudável ocupado com o lampião,
não é capaz de tapar o nariz. Respira pela boca, e solta o ar malcheiroso em
pequenas lufadas.
— Pelo que estou vendo, ele perdeu primeiro o braço direito. Depois a
perna esquerda, o braço esquerdo e a perna direita. Eu diria que o braço direito
foi embora uns três meses atrás, caso Karl John tenha cicatrizado no mesmo
ritmo que eu. Já a perna direita há um mês, quem sabe.
— Quer dizer que esse homem teve os braços e pernas amputados em
sequência. Cada ferida foi tratada, e então esperaram que cicatrizasse antes de
removerem o membro seguinte. Os olhos foram arrancados propositalmente.
Não sobrou nenhum dente. Nem a língua, aliás. A julgar pelo estado das
feridas, o processo de transformá-lo no que vemos hoje começou no verão
passado e terminou poucas semanas atrás. A morte só veio ontem ou no dia
anterior.
Cardell sente os pelos da nuca se arrepiarem ao entender o pleno significado
do que o outro está dizendo. Pensativo, Winge bate com a unha do polegar nos
dentes da frente antes de arrematar:
— Imagino que tenha sido bem-vinda.
Ele interrompe no meio o gesto de recolocar a mortalha no lugar e esfrega
com cuidado a fazenda entre os dedos.
— Obrigado por toda a sua ajuda, Jean Michael. Infelizmente, você
superestimou a habilidade de Karl Johan como larápio. Seu porta-moedas
continua debaixo do seu casaco. A protuberância está claramente visível, e, se
isso não bastasse, o mealheiro em si apareceu quando você se abaixou com o
lampião. Mas disso você já sabia, uma vez que as substâncias intoxicantes que
se permitiu ingerir na noite passada não permaneceram no seu organismo por
tanto tempo quanto você quis me fazer acreditar.
Cardell se retrai, e no seu íntimo amaldiçoa o impulso que revelou sua
mentira. À medida que sua embriaguez pouco a pouco vai sendo substituída
pela náusea, o que o domina é a raiva. A atitude fria de Winge em relação ao
morto, contrária a dele próprio, o incomoda — Cardell já viu mais mortes do
que desejaria ao pior inimigo. Cospe por cima do ombro, como para espantar
o mal.
— Sujeito frio você, Cecil Winge. Não é de espantar que se sinta tão à
vontade na companhia dos mortos. Permita-me retribuir seus poderes de
observação com algumas das minhas: você não se alimenta o bastante. Em seu
lugar, eu tentaria passar mais tempo à mesa do jantar, e menos sentado na
latrina.
Winge não dá atenção ao insulto.
— Alguma outra coisa o trouxe aqui esta noite. Não precisamos comentar
exatamente o quê. Mas você continuaria o que começou? Vingaria a morte
deste homem depois que ele for enterrado? Posso proporcionar determinados
recursos em nome da polícia. Ficaria grato por sua ajuda e estou disposto a
compensá-lo.
Winge encara Cardell com seus olhos grandes. Algo que não estava ali antes
se acendeu. Isso deixa Cardell ao mesmo tempo confuso e com medo, mas ele
sente o cansaço se espalhar pelo corpo e simplesmente fica ali parado enquanto
Winge prossegue:
— Não precisa dar sua resposta imediatamente. Eu agora vou para a Casa
Indebetou ouvir os relatórios da manhã. Já sei o que vou escutar. O agente de
polícia dará seu testemunho. A responsabilidade recairá sobre o promotor
público, já ocupado com assuntos bem mais simples e que prometem muito
mais glória do que esse. No melhor dos casos, vai pedir aos agentes de polícia
da Igreja de Maria para consultarem seus agentes de bairro e descobrir se há
algum boato circulando que possa lançar luz sobre o ocorrido. Tenho poucas
esperanças quanto a algum progresso nessa frente. Este corpo mutilado
continuará privado de seu verdadeiro nome e, às custas da cidade, será jogado
numa vala do lado norte do cemitério em que estamos agora. Não haverá
ninguém para lamentar sua partida. O chefe de polícia me pediu para fazer o
possível, mas, sozinho, temo que não seja o bastante.
É preciso mais do que isso para acalmar Cardell quando ele se zanga.
Tomado por emoções contraditórias, ele já virou as costas para ir embora. A
voz rouca de Winge o segue recinto afora.
— Se quiser me ajudar, Jean Michael Cardell, volte a me procurar. Eu alugo
um quarto de Roselius na Chácara Spens.
4

Como sempre, o despontar da aurora traz caos e tumulto à Casa Indebetou,


empoleirada no alto do Morro do Castelo. Winge esfrega os olhos para tentar
esquecer o sono em atraso e se pergunta se em algum lugar de um daqueles
cômodos poderia haver um bule de café ainda com algumas gotas dentro.
A escada está cheia de gente chegando, saindo ou simplesmente aguardando
ali na falta de um lugar melhor. Os funcionários da corporação ainda estão se
esforçando para se adaptar à nova sede e ao novo chefe. Ainda não haviam
conseguido designar cada cômodo para a finalidade que melhor lhe convinha.
Apenas um ano transcorreu desde a mudança para a Casa Indebetou e,
segundo boatos maldosos, o único motivo para a saída da rua do Jardim foi
poupar o prestígio da cidade depois que o ex-dono da casa conseguiu obter
acesso ao leito de morte do rei Gustav e saiu de lá com uma assinatura real
quase ilegível numa escritura que lhe prometia vinte e cinco mil daler em troca
de um prédio decrépito há muito abandonado. Com a vedação ruim, era
quente demais no verão e frio demais no inverno.
A casa é estranhamente assimétrica, inclinada em direção ao morro, situada
entre a catedral e o terreno baldio onde ainda estão espalhadas as ruínas da
recém-demolida Grande Quadra de Tênis.

Sob a luz débil da manhã, rostos conhecidos e desconhecidos se misturam.


Contrariado, Winge vê Teuchler e Nystedt, dois brutamontes a serviço da
polícia, carregando parcialmente um homem cujo olho roxo e lábio cortado
denunciam que ele acaba de confessar qualquer coisa da qual estivesse sendo
acusado. Bem nessa hora, o secretário Blom passa por ele no meio da multidão
e revira os olhos quando seus olhares se cruzam por um instante. Mais de duas
décadas se passaram desde que aqueles métodos foram proibidos por lei, mas
Teuchler e Nystedt continuam filhos de outra época.
Aqueles que sabem o nome e a aparência de Winge sem conhecê-lo mais a
fundo viram o rosto para o chão ao vê-lo se aproximar. Winge sente os olhares
em si depois de passar. Ao subir a escada, observa que ainda não tiraram da
parede o brasão do antigo chefe de polícia; mais um sinal da desordem que
flagela a corporação desde que o rei Gustav foi se juntar a seus antepassados.

Quase dois anos se passaram desde que o tiro de Anckarström ecoou pelo salão
do baile de máscaras, mas na polícia é como se o barulho ainda ecoasse. Como
o príncipe da Coroa tinha apenas treze anos e ainda era menor de idade, a
disputa de poder começou antes mesmo de o monarca perder a luta contra a
morte. O ex-chefe de polícia Nils Henric Aschan Liljensparre, um protegido
do rei Gustav que havia construído a corporação do nada e liderado
pessoalmente as operações por quase três décadas, foi um dos poderosos que
enxergou naquele momento uma oportunidade e demonstrou abertamente
suas ambições: nomear como tutor do príncipe um regente fantoche, o pobre
de espírito irmão do rei, duque Karl.
Mas tal sede de poder findou sendo a ruína de Liljensparre. O barão
Reuterholm assumiu o lugar que Liljensparre desejara para si, e, enquanto ele
governa o país em nome do duque, Liljensparre foi despachado para a
Pomerânia sueca. No início do ano, Reuterholm confiou o cargo de chefe da
polícia ao advogado da Coroa Johan Gustav Norlin, nomeação esta que,
segundo dizem, já teve motivos para reconsiderar. Como qualquer um que seja
capaz de enxergar com clareza, Winge sabe por quê: Norlin é um homem de
bem.

No terceiro andar, há cadeiras encostadas nas paredes do corredor. Winge dá


tapas nos ombros para forçar o sangue a fluir para as pontas congeladas dos
dedos. O ar úmido e frio faz cócegas em sua garganta, e ele precisa encurtar a
respiração para evitar tossir. É obrigado a esperar mais quinze minutos no
vento que permeia as janelas mal vedadas antes de as portas da sala de Norlin se
abrirem e sua entrada ser autorizada.
Assim como o restante da casa, o escritório de Norlin está uma bagunça.
Mal se pode ver a mesa elegante por baixo das pilhas de papéis. Norlin está em
pé junto à janela. Não é muito mais velho do que Winge, mas as muitas noites
insones em um ano o envelheceram para além dos trinta que tinha. Rente ao
colarinho do casaco formal, sua pele está vermelha e irritada no ponto em que
as unhas tentaram repetidamente aliviar uma coceira. Empoleirado no peitoril
da janela, um gato malhado ronrona enquanto Norlin acaricia seu pescoço.
— Um dos poucos moradores desta casa ainda de plena posse do seu juízo e
com prioridades razoáveis.
Ele empurra delicadamente o gato para o chão, repousa as costas no peitoril
e cruza os braços.
— Bem. Seu exame foi satisfatório?
— Fui precipitado ao sugerir que o agente tivesse bebido. A reação dele foi
completamente justificada. É um crime muito fora do comum.
— Tirando a sua competência, existe outro motivo para eu ter lhe pedido
para lidar com esse caso, Cecil. Você não faz parte do quadro formal da
corporação, por isso pode trabalhar sem ser notado. Reuterholm está de olho
em mim, e poucas coisas irritam mais o barão do que me ver de fato fazendo
um trabalho policial. Ele preferiria que eu estivesse colocando em prática seus
regulamentos de censura do que tornando esta cidade segura para a população.
Dê uma olhada.
Norlin ergue um papel dobrado com o lacre recém-rompido.
— É uma carta assinada por Gustaf Adolf Reuterholm na qual exige saber
por que não houve progresso na investigação que solicitou em relação a um
boato de que ele tentou envenenar o príncipe da Coroa. O mesmo boato diz
que a sua sede de poder pode ser atribuída à impotência e a uma longa lista de
tendências perversas. O barão sente que já esperou demais para punir os
responsáveis, e exige agora que eu faça um relatório completo dos meus
esforços.
— E o senhor vai fazer?
— Como meus esforços foram nulos, provavelmente é melhor não. O
homem perdeu a razão. Reuterholm não passa de um déspota, não tem um
amigo ou parente que possam dar a ele alguma noção de estabilidade. Está
tentando fazer o vidente Arvidsson falar com os mortos. Vaidoso, cabeça-dura
e, para completar, rancoroso, igualzinho ao rei Gustav no fim da vida. O medo
da revolução e de ser traído é uma doença que acomete todos aqueles cujos
traseiros se aproximam demais do trono. Sua Majestade pediu para o meu
antecessor montar uma rede de informantes que relatasse as fofocas e
conspirações do povo. O problema não é que as pessoas estejam infelizes. O
problema é que os informantes de Liljensparre foram instruídos a procurar
descontentamento nos lugares errados. Enquanto o rei Gustav tinha pesadelos
de que a revolução da França se espalhasse até o extremo norte e fazia tudo que
podia para bisbilhotar as conversas republicanas nos cafés, seus assassinos
estavam à espreita, escondidos entre os membros da sua própria corte. Seu
medo dos plebeus que nunca chegou a conhecer era tanto que ele acreditava
que os nobres, bem diante do seu nariz, eram inofensivos.
Norlin fez um gesto em direção à própria mesa.
— Mesmo fazendo de tudo para ignorar as fofocas de Liljensparre, ainda
preciso receber os relatórios, cada um mais absurdo do que o outro. Um tal de
Ödman reclamando que um tal de Nilsson cantou A Marselhesa durante uma
noite de bebedeira em Strängnäs. Um oficial de cavalaria com gosto duvidoso é
acusado de ter elogiado o prendedor de gravata do famoso conspirador Juhlin.
Kullmen e Ågren foram de calça comprida à igreja, para deleite de Weinås e
Falk. Carlén está escondendo escritos de Thorild debaixo do travesseiro. E por
aí vai. Enquanto eu me distraio com isso, questões importantes são
prejudicadas. Mas Liljensparre, aquele velho tirano, acha coisas desse tipo de
maior interesse. Você com certeza já escutou o apelido que a polícia deu a ele,
certo? “O Asno”, inspirado em um dos sobrenomes dele, Aschan.
Winge observa a pilha de cartas, pega uma e dá uma olhada indiferente
antes de recolocá-la no lugar. Norlin tira a peruca e a joga em cima da pilha
enquanto coça os cabelos.
— Pelo que eu sei das fofocas, Reuterholm já está procurando meu
substituto.
— O senhor sabe quem é?
— Ouvi dizer que o cargo foi oferecido a Magnus Ullholm. Um nome que
você conhece muito bem.
— O senhor sabe quanto tempo vai durar?
— Não. Mas quando o barão põe alguma coisa na cabeça, as coisas tendem
a acontecer depressa. Ullholm não vai permitir que a sua missão siga em curso.
De modo que é um caso de urgência, Cecil.
Winge massageia a ponte do nariz e esfrega os olhos inchados. Sua
sonolência faz pontinhos borrados de luz dançarem no seu campo de visão.
— Eu sou a última pessoa a quem o senhor precisa lembrar o que é urgente.
Norlin convida Winge a se sentar numa cadeira vazia. Abre uma fresta na porta
e grita para o corredor pedindo um café, ordem rapidamente obedecida por
quem quer que esteja mais perto. Com um suspiro profundo, ele se senta em
frente a Winge.
— Bem, vamos voltar ao cadáver que foi pescado no lago. Que esperança
você tem de encontrar o responsável?
— Tenho motivos para crer que o corpo foi jogado na água algumas horas
antes de ser encontrado. Pretendo procurar testemunhas que possam ter estado
nas redondezas pouco antes do anoitecer.
— Parece um esforço inteiramente inútil. Só isso?
— Tem mais uma coisa. O corpo estava nu, mas parcialmente envolto num
pano preto de um tipo que eu nunca vi. Parece um tecido caro demais para ser
descartado dessa forma. Especialistas no assunto talvez saibam mais.
Parecendo perdido em pensamentos, Norlin aquiesce consigo mesmo.
— Seja discreto em tudo que fizer, e não só por causa de Reuterholm. O
descontentamento anda se espalhando por aí. No começo do ano tivemos uma
multidão agitada nos portões do castelo, clamando aos uivos por sangue, tudo
porque um nobre tinha conseguido arranhar um burguês com sua rapieira.
Qualquer ato de violência precisa ser tratado com o maior cuidado possível.
Faça esse favor, sim?
Uma criada bate na porta e entra com um bule de café e xícaras de metal.
Norlin serve, e Winge encosta seus lábios finos na borda da xícara para beber a
poção ressuscitadora. Despreocupadamente, o gato salta na expectativa de se
aninhar no colo de Norlin, que encara Winge com uma expressão preocupada.
— Desculpe dizer isso, Cecil, até porque sei que não sou totalmente
inocente em relação ao motivo, mas meu Deus, você está com uma cara
péssima.
5

O NOME DO BAR é Perdição. Uma grossa camada de fuligem recobre as paredes,


mas qualquer um que se esforce um pouco pode distinguir o mural pintado ali.
É a dança da morte. Camponeses e burgueses, nobres e membros do clero,
todos de mãos dadas ao redor de um esqueleto que toca uma rabeca negra
como alcatrão. O desenho deixa muita gente incomodada, e os poucos clientes
podem ser facilmente contados até a hora avançar e o nível de intoxicação
tornar qualquer decoração irrelevante. O dono do bar, Gedda, rejeitou todas as
tentativas de convencê-lo a caiar suas paredes. O mural foi pintado pelo
próprio Hoffbro, rosna ele, e além disso é uma obra-prima.
Cardell o detesta, sobretudo porque seu trato com Gedda significa que ele
precisa se manter razoavelmente sóbrio. Está ali como leão de chácara,
contratado para expulsar os arruaceiros por cerca de um xelim semanal e uma
comissão extra por cada expulsão bem-sucedida. Seu salário de sentinela não
basta para viver, e aquela renda extra é bem-vinda. De seu lugar no banco junto
à porta, ele sente a presença do esqueleto pela centésima vez, suas órbitas vazias
buscam seu olhar. Ele estremece e enche a boca de tabaco.
Um pressentimento lhe diz que a noite não vai ser boa, e essa sensação
nunca deixa de vir acompanhada por certa expectativa. Uma atmosfera agitada
vem se armando desde que o sol se pôs. Companheiros de copo brigam por
causa da cerveja e do aquavit. Provocações não demoram a produzir palavras
ríspidas na confusão de clientes. Várias vezes Cardell é obrigado a se levantar
da cadeira e ir apartar alguma briga, tentando argumentar com homens que
não escutam nem compreendem até que sejam erguidos pelo colarinho a ponto
de descolarem os calcanhares das tábuas do chão e jogados lá fora.
Um grupo de marinheiros entra se espremendo pelas portas, todos ao
mesmo tempo, de braços dados até o mais fraco ser obrigado a quebrar a
corrente e dar lugar às alegres zombarias dos outros. Estão cantando uma
canção vulgar a plenos pulmões. Cardell ouve aquela baboseira toda, versos
sobre homens se gabando de virgindades conquistadas, e tem certeza de que a
noite vai acabar mal.
Homens jovens, rudes e bêbados, integrantes de um grupo que considera
uma questão de honra defender uns aos outros. Ele os conhece bem.
Costumava ser igual a eles. Adora-os e detesta-os. De seu lugar junto à porta,
analisa os movimentos do grupo como um lobo estuda um bando de coelhos,
sabendo que é só uma questão de tempo para que sejam seus.

Não demora muito. Um homem baixote com uma barriga rotunda tropeça na
fivela do próprio sapato e derrama sua bebida nas costas de um dos
marinheiros. Em poucos segundos, colocam o pobre coitado em cima de uma
mesa e o obrigam a dançar enquanto o cercam por todos os lados, inclinando a
superfície da mesa até a madeira gemer. Um deles sacou a faca e está caçando
os dedos dos pés do sujeito com a ponta.
Cardell cruza olhares com Gedda do outro lado do bar. Gedda não se
importa que os clientes derramem bebida ou sangue, mas a mobília custa
dinheiro. Sem que precise sequer pensar, a única mão de Cardell aperta as
correias de couro que mantêm seu braço esquerdo no lugar.
A guerra lhe ensinou que não existe honra em combate. Apesar disso, há um
ritual a ser observado, tão previsível quanto insignificante, e ele o segue como
se fosse uma rotina conhecida. A mão no ombro de um dos marinheiros,
mímicas diplomáticas em meio ao alarido. Gestos tranquilizadores. Perto de
sua orelha, alguém diz gritando que ele vá para o inferno. Outra pessoa cospe
na sua cara. Ele sente as batidas do coração feito um tambor nos ouvidos
enquanto o mundo vai se avermelhando. Mas, ainda assim, se controla. Deixa
os ombros afundarem submissos diante de seus sorrisos triunfais.
Quando o primeiro golpe vem, eles não entendem o que está acontecendo.
A mão esquerda se ergue da altura da cintura e, como foi talhada como se
estivesse espalmada, parece quase acariciar o rosto do homem mais próximo.
Dentes voam pelos ares numa cascata vermelha. Cardell usa o impulso do
movimento do braço para o segundo soco e para o seguinte, sente um braço se
partir, o osso de um nariz rachar, uma costela ceder, um olho ser arrancado da
órbita. Cada golpe se traduz numa explosão no coto do braço, e a dor só faz
aumentar sua raiva.
Os marinheiros fogem desastradamente. O último é obrigado a rastejar de
quatro pelo chão, choramingando, e só consegue atravessar a soleira da porta
com uma ajudinha da bota de Cardell. Quando ele torna a se virar, o homem
que tinha sido sua vítima ainda está de pé em cima da mesa, aplaudindo, com
um sorriso de orelha a orelha.
Sua gratidão é sem limites. Ele insiste em celebrar seu salvador com uma
jarra de vinho renano e brindes infindáveis. Cardell, por sua vez, constata que a
altercação bastou para garantir a paz no Perdição até o fechamento das portas.
O sangue escorre pelo chão, e a mancha conduz diretamente até ele, um sinal
de alerta para todos. Ele ignora os olhares de reprovação de Gedda e bebe
muito e com vontade. Brigas são das poucas coisas que ele considera
energizantes. Costumava fazer de tudo para se meter em uma, só para saborear
a sensação efêmera de que detinha o controle da própria vida após cada vitória.
Ao longo dos anos, esse efeito perdeu a força. Seu braço dói. Ele se sente velho
demais para uma vida assim. O vinho o reconforta. O homem se apresenta
como Isak Reinhold Blom.
— Eu sou poeta. Ao seu dispor.
Cardell arqueia uma sobrancelha enquanto o homem pigarreia.
— Ó, Herói! Diante da tua vitória nós trememos, foi-se a tua oposição. Tu
pisas manchados do rubro mais vivo os cadáveres dos teus irmãos!
— É assim que o senhor ganha a vida?
Blom crispa os lábios e acende na vela seu cachimbo de barro.
— Essa é a sina do poeta: todo mundo é crítico. Mas no caso, não. Até a
noite cair eu fico sentado na Casa Indebetou, lá em cima, perto do Castelo.
Trabalho na Câmara de Polícia. Como secretário, na verdade, desde janeiro
passado.
Até agora Cardell não tinha sequer pensado em Cecil Winge e nas suas
palavras de despedida.
— Por acaso o senhor conhece um certo Winge, Cecil Winge?
Blom o encara com um ar curioso e exala uma lufada de fumaça.
— É um homem difícil de esquecer depois que o conhecemos.
— Quem é ele? Pode me dizer algo a seu respeito?
— Ele começou a aparecer na Indebetou mais ou menos na mesma época
em que Norlin foi nomeado chefe de polícia, no início do ano. Os dois têm
uma espécie de acordo. Winge é livre para fazer o que quiser, dentro dos limites
da razão. Interessa-se por alguns crimes, outros simplesmente deixa passar.
Cardell aquiesce, pensativo. Blom dá um trago fundo que produz um
gorgolejo no cachimbo, então retoma:
— Por acaso nós dois estudamos direito em Uppsala ao mesmo tempo, eu e
Winge, embora eu seja alguns anos mais velho e nunca tenha frequentado os
mesmos círculos. Ele vivia com o nariz enfiado em Rousseau. Winge era um
prodígio, de um tipo que não se via desde Rudbeck. O sujeito tem uma
memória tão absurda que é capaz de repetir cada palavra que leu como se
estivesse com o livro nas mãos. Talvez tenha sido aí que as coisas deram errado.
Tem gente que lê demais e fica com ideias estranhas na cabeça. No começo da
carreira, ele criou caso insistindo para interrogar os acusados, algo que se evita
o tanto quanto possível. Todos os seus casos eram apresentados em detalhes
excruciantes, intermináveis. Embora ninguém em sã consciência jamais
pudesse duvidar da culpa ou da inocência de alguém julgado por Winge, ele
nunca conseguiu ser visto com bons olhos pelos colegas de profissão. A maioria
das pessoas nomeadas para os tribunais inferiores quer ver a justiça sendo feita
o mais rápido possível, ao ponto de nunca se preocupar com esse tipo de coisa,
mas foi difícil fazer Winge parar, porque ele é um mestre da argumentação
lógica. Recorreram então ao desdém e ao ridículo, apenas para constatar que
ambos entravam por um ouvido de Winge e saiam pelo outro. Desde que ele
uniu forças com Norlin, surgiu um rico tesouro de anedotas sobre tudo que ele
conseguiu realizar trabalhando para a agência no último ano. Outros homens
cometem erros, se deixam distrair, e quando sua capacidade de concentração
não é deficiente, a diligência muitas vezes é. Winge não.
Blom acena com a haste do cachimbo para frisar as palavras. Como fez uma
pausa longa o suficiente antes de dar a tragada seguinte, o cachimbo se apagou.
Ele o pousa sobre a mesa com um leve dar de ombros.
— Se o senhor quiser que eu diga algo menos lisonjeiro em relação a ele, eu
diria que o charme nunca foi seu forte.
— Isso ficou claro.
— Conheci a esposa dele na Ópera no ano passado, e quando ouvi seu
nome e me dei conta de quem era o seu marido, tive certeza de ter escutado
mal. Que mulher fantástica, Cardell. Linda, claro, mas também simpática,
carinhosa, espirituosa e exuberante, todas palavras que estão entre as últimas
que eu usaria para descrever o marido. Ela devia ter filas de pretendentes
saindo pela porta. Por que escolheu Winge eu nunca vou entender. Assim
sendo, é uma ironia do destino que tenha sido ele a decidir deixá-la, e não o
contrário, como seria de se esperar...
Blom se cala, e na mesma hora é como se o seu bom humor tivesse se
apagado, a exemplo do cachimbo. O burburinho do bar preenche o silêncio.
Num canto, um homem de casaco remendado, com uma cumbuca de
mendigo na mesa à sua frente, começa a tocar uma melodia triste em métrica
tripla numa flauta simples de madeira.
— Eu com certeza deveria ter mencionado isso desde o início, mas estou
sentindo os efeitos do vinho. Mas é isso, Cardell; Cecil Winge está morrendo
de tísica. Ele nunca foi um sujeito robusto, mas a doença o enfraqueceu de
modo considerável. Ele é pálido, mas disfarça bem, quase nunca tosse em
público, e quando o faz é discretamente dentro de um lenço, sempre de cor
escura para o sangue não aparecer. Dizem que deixou a esposa para poupá-la de
vê-lo sendo consumido pela doença. Dizem que especialistas conceituados do
Hospital Seraphim estabeleceram a data da sua morte para um mês atrás. Ou
seja, ele está com os dias contados. Não falta respeito por Winge entre os
homens do Morro do Castelo, mas os que lá trabalham já o batizaram de
Fantasma da Indebetou.

Mais tarde, bem depois de Blom ter saído cambaleando com pernas bambas
pela noite de Estocolmo, depois de a embriaguez aumentar e de as velas de
banha terem sido apagadas uma a uma à medida que os clientes iam deixando
virados os barris de carvalho que servem de mesa, o dono do bar põe a mão no
ombro de Cardell.
— Eu contratei você para manter a ordem por aqui, não para protagonizar
um banho de sangue. Você está assustando a clientela, Mickel. Não posso
continuar com você.

Algum momento depois de soada a meia-noite, Mickel Cardell acorda em seu


quarto com falta de ar e o coração disparado. A dor varreu seu braço, cuja
ausência seus sentidos se recusam a aceitar. É a segunda vez em dois dias que
nem a bebida nem as brigas conseguiram lhe trazer paz.
6

NINGUÉM A CHAMA de “tísica” antes de ficar claro que a doença está tão
avançada a ponto de ser irreversível. Somente depois de esgotada toda
esperança, quando a morte é considerada inevitável, é que se dá ao mal seu
nome correto.
Começou como uma tosse leve na primavera anterior, uma tosse insistente
que durou semanas. Quando menino, ele também tossia com frequência, mas
nunca nada digno de nota. Então veio a febre durante a noite, os suadouros
que o faziam acordar entre lençóis e cobertores encharcados. Quando o verão
chegou, Cecil Winge já precisava disfarçar a tosse com um lenço para não
chamar atenção, e em certo dia de junho o tecido de algodão bordado ficou
salpicado de pontinhos vermelhos. Ele perdia o fôlego com facilidade e muitas
vezes sentia uma cãibra nos quartos, como se tivesse acabado de correr. No
peito a sensação era de um enorme peso instalado, um peso cujos domínios se
expandiam à custa de seus pulmões, ceifando cada inspiração.
Médicos apalparam os nódulos inchados de seu pescoço e os chamaram de
escrófula. Receitaram uma beberagem de gosto ruim feita com elmo, garança,
gengibre, alcaçuz e anis estrelado. Ele precisava tomar uma garrafa por dia.
Quando não houve resultado, o médico, com um ar pensativo, limpou os
óculos e sugeriu uma sangria para extrair os líquidos adoecidos de seu corpo.
Usando potassa cáustica, ele abriu um furo do lado esquerdo de seu peito, uma
abertura menor do que a unha do seu dedo mindinho. Uma ervilha foi inserida
no furo para impedir que a ferida sarasse. Em poucos dias o pus escorria aos
montes, e o médico garantiu que aquilo era sinal de um desfecho favorável.
Mas ele estava errado. A queimação não deixava Winge dormir à noite. Ele
alternava entre o frio e o suor. Sua esposa estava sempre ao seu lado com um
pano para lhe umedecer a testa, uma toalha para secar seu corpo descarnado,
uma canção para acalmá-lo e fazê-lo dormir por um curto período de trégua.
O ano avançou, e o inverno virou primavera. Os tratamentos se sucediam.
Ele se curvou acima de tonéis de vinagre e giz, bebeu leite de vaca cru, respirou
ar de curral. Todo dia de manhã acordava exausto, com a pele fria e úmida, e
nada era capaz de aquecê-lo. Suas veias ficaram azuis e inchadas, os olhos,
injetados e com olheiras escuras, e uma dor constante se espalhava pelo quadril.
Quando a tosse chegava, nada era capaz de contê-la, e tecido morto lhe subia à
boca nos piores acessos. Seu cuspe fedia. Quando lhe faziam sangrias,
constatavam que o sangue rapidamente se coagulava numa crosta azulada, sinal
certeiro de que o mal tinha se alastrado. Ele não conseguia mais ser um marido
para sua esposa, tornando-se insuportável dividir a cama com ela quando a
tosse e os suores noturnos o acometiam e ele era atormentado por uma agonia
tão avassaladora que pensava que suas costelas fossem rachar.

Um mês se passou desde que Winge abandonou todos os conselhos dos


profissionais da medicina. Todas as tentativas de diminuir o sofrimento só
fizeram seu estado piorar. A única coisa que lhe resta é recorrer a cada grama de
autodisciplina para ignorar a coceira na garganta, e ele constatou que a
distração ajuda mais do que qualquer outra coisa. A concentração mental
esvazia sua mente de pensamentos, e seu corpo relaxa.
À noite, em seu quarto solitário na casa de Roselius, ele fica sentado junto a
uma vela acesa e desmonta seu relógio de bolso. Espalha as diversas peças na
sua frente até ficarem todas organizadas em fileiras. Então torna a montá-las.
Uma depois da outra, as rodas novamente unidas, fixadas no centro e
encaixadas umas nas outras. Minúsculos parafusos penetram seus sulcos e são
apertados. A partir de uma coleção de partes, todas individualmente inúteis,
forma-se um relógio que volta a funcionar.
Winge vai em direção à morte guiado pela mesma bússola pela qual se
orientou a vida inteira: a razão. Diz a si mesmo que todos os homens vão
morrer, que todos estão morrendo. Isso ajuda. Mas quando vêm os suores
noturnos e seus pensamentos começam a desembestar, o que o assombra não é
o princípio geral, mas sim as especificidades do seu próprio fim. Todos os
detalhes clínicos da tuberculose. Será que a infecção vai se alastrar para todas as
suas articulações e ossos, como às vezes acontece? Será que ele vai morrer em
silêncio durante o sono, ou tomado por espasmos e paroxismos? Que tipo de
agonia o aguarda? Quando nada mais adianta, ele diz a si mesmo que a maior
parte de si já morreu na última vez em que viu sua mulher. Mas isso tampouco
reconforta muito, pois a parte dele que seguiu vivendo parece sentir a dor com
mais clareza.

A noite cai, e Winge está se arrumando para sair. O espelho do quarto é tão
estreito que ele precisa recuar até bem longe para ver sequer metade do corpo.
As roupas que está usando são as únicas que possui. A camisa e as meias longas
são lavadas com regularidade segundo uma rotina que ele combinou com as
criadas. Algumas passadas da escova dão conta do resto. O tecido está
começando a ficar gasto e nem o casaco nem o colete continuam à la mode,
mas servem. As roupas que ele decidiu manter são as mesmas que usava
quando trabalhava nos tribunais inferiores, e seu objetivo nunca foi a vaidade,
mas sim a adequação, destinadas a transmitir a um observador uma sensação de
indiferença diante de qualquer coisa que não seja de suma importância.
Ele enrola a gravata em volta do pescoço e a amarra, enfia os braços nas
mangas do casaco e pega sua bengala no canto, a que antes usava só por estilo e
da qual agora depende com mais frequência. Então desce lentamente a escada,
sem fazer barulho, para não atrair ninguém da casa.
Vai descendo a encosta em direção ao mar, um lenço pressionado à boca
para se proteger da umidade. Perto do estaleiro, não demora muito a encontrar
um homem disposto a levá-lo remando até a cidade em troca de algumas
moedas. Ao longe escuta o leve rumor da correnteza, mas a água ali está
parada, perturbada apenas pelos gemidos dos remos nos suportes e por seu
ruído ao romper a superfície.
Passam sob o arco da ponte do estaleiro, e com repetidas olhadelas por cima
do ombro o remador encontra um caminho em meio ao labirinto de barcos
ancorados diante do Cais. Cabos de ancoragem grossos como a coxa de um
homem se esticam e se afrouxam nos arredores. Sob o aroma predominante de
piche há outros cheiros mais sutis, de araca, canela, café e tabaco.
Após um trajeto de meia hora, Winge aceita o auxílio da mão firme para dar
o passo que o faz pisar na Escada do Mestre da Receita. Dali, a caminhada até a
Via Bagge é curta.
O beco está animado como sempre. Os bordéis ali se amontoam, e em frente a
cada um deles circulam clientes em variados estágios de embriaguez, indo ou
voltando de uma visita. Canções alegres em homenagem a Vênus ecoam entre
as construções, vozes contam vantagem sobre feitos que foram ou serão em
breve perpetrados. Há também os mais discretos. Muitos homens casados
preferem andar com um lenço em frente ao nariz, como Winge.
Ele encontra a entrada que estava procurando. Lá dentro, a mulher que
herdou o negócio do falecido capitão Ahlström tem o semblante tão
inescrutável quanto ancestral, e não dá qualquer sinal de o ter reconhecido,
exceto um breve gesto da cabeça.
— Ela está livre?
A cafetina faz que não. Winge pousa a bengala e se senta pesadamente
numa cadeira.
— Vou esperar. E roupa de cama limpa, por favor. Um quarto arrumado.
A mulher lhe lança um olhar difícil de interpretar e se retira. Outros
chegam e se retiram sem que ele preste atenção. Quase uma hora transcorre
antes de a mulher voltar e lhe acenar para subir a escada. Ele encontra a porta
dela sem precisar de orientação, bate e entra.
Aquela que chamam de Flor da Finlândia está à sua espera sentada na
beirada da cama, com as pernas tentadoramente cruzadas. Não foi fácil de
encontrar. Ele procurava alguém próximo da sua idade, e três décadas é mais
do que vive a maioria das mulheres naquele ofício. Mas ela permaneceu
notavelmente intocada por aquele submundo cujos habitantes parecem viver
suas vidas num ritmo duas vezes mais rápido do que o normal. Sua expressão é
de reconhecimento no exato segundo em que seus olhares se cruzam. Sua
linguagem corporal muda na mesma hora. Os ombros afundam, e as costas
antes arqueadas para melhor exibir seus encantos relaxam.
— Ah, é você. A velha morcega poderia ter me avisado.
Seu sotaque oriental é agradável. As vogais cantam. Winge responde com
um aceno de cabeça e olha em volta para se certificar de que o quarto foi
preparado segundo as suas instruções. Entrega-lhe o pequeno mealheiro de
tecido que preparou com uma soma já conhecida de ambos. Ela lhe indica com
um gesto para pousá-lo em cima da cômoda.
— Vai passar a noite, como de costume?
— Sim, Johanna. Espero que o dinheiro baste.
Ela ri.
— Mesmo que não bastasse, eu estaria disposta a lhe fazer um desconto.
Você é o meu melhor cliente. Paga bem e faz muito poucas perguntas, ou seja,
o contrário do que estou acostumada. Ou será que desta vez vai querer mais
alguma coisa?
Winge faz que não com a cabeça.
— Não. Só o de sempre.
Ele pendura o casaco e solta a gravata. Do bolso do colete, retira o pequeno
frasco e lhe entrega com todo cuidado. Ela tira a tampa e pinga algumas gotas
no pescoço e no colo. Ele pendura a camisa e as calças no encosto de uma
cadeira enquanto ela também despe as poucas peças de roupa que está usando,
e juntos os dois entram na cama.

Ele se vira de costas, e ela passa o braço à sua volta do mesmo jeito que ele lhe
mostrou. Pode sentir todas as costelas sob a mão, e as respirações dele, de tão
curtas, são quase imperceptíveis. Ela se parece com sua mulher: os mesmos
cabelos escuros e longos, a mesma cor dos olhos. Agora tem o mesmo cheiro, e
o calor de seu braço é o mesmo.
Ela sopra a vela ao lado da cama e sente a pulsação dele bater fraca e sua
respiração ir ficando mais lenta à medida que o sono o domina. Em vários
momentos ele fica agitado sem despertar por completo, e ela acaricia sua testa
com os movimentos que ele lhe mostrou, murmurando as palavras solicitadas.

Ele acorda no raiar do dia e, como de costume, não sabe se deveria considerar
uma bênção ou uma maldição aqueles breves instantes entre o sono e a
consciência, quando a consciência semidesperta lhe permite reviver o que um
dia foi. Desce da cama e se veste. Johanna continua deitada, e só acorda
quando Winge gira a chave para destrancar a porta.
— Hoje foi a última vez.
Ela se espreguiça e esfrega os olhos sonolentos.
— Cansou do nosso arranjo?
— Não. Nem um pouco. Mas essas moedas são as últimas que eu tenho.
Ela dá de ombros com um pequeno sorriso. Winge põe o casaco sobre os
ombros e nota que o tecido está começando a puir nos cotovelos, o suficiente
para se poder ver do outro lado. Pouco importa. Está confiante de que todas as
suas roupas vão lhe durar o resto da vida.
7

CARDELL OUVE OS sinos de Edviges Leonor e de Jacob badalarem as duas da


tarde enquanto se arrasta pela Ponte Nova debaixo de chuva. Os mastros dos
barcos a vela desaparecem na névoa que paira atrás do estaleiro e do forte
octogonal que protege a enseada do porto. As três línguas da bandeira naval
tremulam ao vento, encharcadas pelo temporal. Sob seus pés, a Baía dos Gatos
está revolta. Em comparação com a Ucharia, a água ali é menos estagnada
graças ao fluxo de água limpa do mar. Às margens da enseada, as pilhas de fezes
despejadas das latrinas se juntam num espesso lamaçal, engrossado mais ainda
pelo Riacho que vem do norte. Embora o líquido tenha um tom entre o
amarelo e o marrom, no cais há várias lavadeiras com pilhas de roupas. Elas
alternam o gesto de mergulhar as peças na lama, depois retirar a água suja
batendo nelas com suas tábuas. Ao seu lado fica o mercado de peixe.
Ele precisa forçar passagem por um pedinte que, em busca de compaixão,
estende as mãos deformadas. No mercado de peixe há o cavalo de madeira com
sua espinha dorsal afiada; sobre ela, há um homem aos prantos, deitado e com
pesos presos aos pés. A julgar pelas roupas, é um condutor de carruagem que
foi pego fixando as próprias tarifas. Um homem seminu está amarrado ao
tronco, aos uivos, com sangue escorrendo do nariz e da boca.
Cardell passa pelos casebres do outro lado da ponte. Ali, as famílias vivem
amontoadas em barracos e choças que parecem prestes a desabar. Eles têm bons
motivos para temer a estação vindoura: quando o inverno tiver preenchido
todos os cantos da casa dos pobres com os corpos trêmulos dos destituídos,
aqueles que ficaram nas ruas virarão cadáveres congelados, jazendo em pilhas
bem altas junto ao cemitério até o solo degelar.
Ele continua pela rua até o estaleiro em Terra Nova, onde a margem foi
aterrada para dar lugar a um cais seco e oficinas. Então vira as costas para a baía
e sobe até um terreno mais alto. Ali, as moradias são mais esparsas. A cidade
começa a chegar ao fim, e a brisa salgada tem mais chances de dispersar o fedor
exalado pelas ruas. Cardell não precisa seguir por muito tempo para ver a
Chácara Spens, com seu semicírculo de construções reunidas em volta de um
bosque de tílias. No pátio entre as casas, Cardell é recebido por uma velha
criada com uma jarra de cobre na mão. Ele explica a natureza de sua visita.
— O Sr. Winge aluga um quarto no segundo andar na casa de pedra nova.
Fique à vontade para esperar na cozinha. O aquecedor está aceso, então você
vai poder se secar.
A criada sobe a escada para anunciar o visitante. Atrás de um hall de entrada
com um poço, há pão assando num forno de pedra. Vários empregados
domésticos passam para lá e para cá, e, onde quer que se posicione, Cardell
constata que está atrapalhando. Não demora muito tempo para alguém
empurrar na sua mão uma caneca de cerveja aquecida com especiarias. Ele
balança a cabeça para um pãozinho de trigo recém-saído do forno, pois não
tem outra mão para segurá-lo. Em pouco tempo, a criada volta e lhe acena da
escada. Ela não precisa lhe dizer onde fica o quarto de Winge. A tosse
excruciante dele já pode ser ouvida do portão.

O quarto de Cecil Winge é um lugar sombrio. Os móveis, provavelmente


incluídos no acordo de locação, estão arrumados rente às paredes. Vê-se poucos
dos seus objetos pessoais. Livros empilhados e um baú. Uma escrivaninha
simples está posicionada junto à janela para aproveitar a claridade, e espalhada
pela sua superfície há o que parece ser um relógio parcialmente desmontado. O
calor do fogo aceso no primeiro andar sobe pelas frestas do piso e é a única
fonte de aquecimento, uma vez que o aquecedor de alvenaria ainda não foi
aceso.
Alguém com uma vivência diferente da de Cardell facilmente poderia ter
tomado por ferro o cheiro que permeia o ar. Mas ele o conhece muito bem. É
cheiro de sangue, e sob a cama ele vê um recipiente sujo de vermelho,
escondido às pressas. Constrangido, desvia os olhos assim que pode.
Winge está sentado na cama, pálido e imóvel. Não demonstra nenhum
impulso de tossir. Enquanto Cardell procura as palavras que vem tentando
encontrar desde a véspera, quem fala primeiro é ele.
— Você conversou com alguém que conhece o meu estado de saúde. Está
arrependido das suas últimas palavras, muito embora não tivesse como saber na
ocasião.
Cardell assente com um suspiro de alívio.
— Isso não tem importância, Jean Michael. O importante é que você está
aqui. Posso saber o que o fez mudar de ideia?
— Você mencionou dinheiro, e Deus bem sabe que eu preciso.
— E eu não teria lhe oferecido nada caso não tivesse sentido que havia um
motivo mais profundo para o seu interesse nesse caso. Não havia moeda
alguma em jogo quando você entrou na Ucharia e saiu carregando Karl Johan.
— Durante a guerra... eu tinha um amigo que nunca estava muito longe de
mim. Ele deve ter salvado a minha vida umas cem vezes, assim como eu a dele.
Quando o infortúnio se abateu sobre nós, ambos fomos jogados no mar. Uma
viga de madeira o acertou na cabeça, e eu segurei seu rosto acima da superfície
pelo máximo de tempo que consegui. Ele apareceu para mim num sonho na
noite retrasada, o que acontece com frequência, e quando eu entrei bêbado no
lago foi como se estivesse de novo na mesma água. Só que dessa vez nenhuma
onda o arrancou da minha mão, eu continuei a segurá-lo e consegui fazer nós
dois chegarmos à terra firme. Desde então já fiquei sóbrio, mas a sensação
perdura.
— Obrigado pela confidência, Jean Michael. Não estou perguntando por
mera curiosidade. A oferta de compensação financeira permanece, sim, mas
que bom que agora posso pagá-lo sabendo que a sua lealdade não vai para
quem oferecer mais. Mas qual é a sua situação? Você é sentinela, mas raramente
parece estar trabalhando.
Cardell estremece ao pensar em seus colegas sentinelas, homens detestáveis
com um amplo leque de defeitos, que preferem receber seus subornos na forma
de mercadorias e serviços.
— Eu sou sentinela só no nome. Consegui esse cargo como um favor feito a
um mendigo que foi mutilado enquanto servia à Coroa. Dentre os homens que
voltaram da guerra, eu me incluo entre os que têm sorte. Alguns viraram
mendigos, outros oferecem seus serviços nas ruas, outros fazem trabalho
escravo em alguma loja de tabaco. Consegui o posto de sentinela graças a bons
contatos, mas Deus me livre de gastar meu tempo levando vagabundos e
prostitutas para o reformatório. Assim como eu, nenhum deles escolheu seu
destino.
Escureceu. Winge acende a vela sobre a escrivaninha com uma mecha. A
chama faz as sombras dançarem ao redor de ambos. Winge volta para a cama e
se senta com as pernas cruzadas.
— Tem algumas coisas que eu gostaria que você soubesse. Em primeiro
lugar, estou agindo com base num acordo com o chefe de polícia Norlin, e é
com autorização dele que vamos buscar o assassino de Karl Johan. A nomeação
de Norlin está chegando ao fim, e ele já citou o nome de seu provável sucessor:
Magnus Ullholm. Uns dois anos atrás, Ullholm foi nomeado para
supervisionar o fundo de pensão para viúvas da Igreja. Numa auditoria
posterior, constatou-se que faltavam grandes quantias, e naturalmente a
suspeita recaiu sobre ele. Nessa época eu trabalhava nos tribunais inferiores e
participei do processo movido contra ele. Não duvidei sequer por um instante
de que ele fosse culpado, e menos ainda depois que ele fugiu para a Noruega, o
que levou à suspensão do processo. O barão Reuterholm agora decidiu ter pena
dele, uma vez que sabe muito bem como explorar alguém que só pensa em
enriquecer. Ullholm não é homem de esquecer suas desavenças. Assim que ficar
sabendo do meu trato com Norlin, vai colocar fim nele e fazer tudo que estiver
ao seu alcance para contrariar nossos objetivos.
Winge se levanta e começa a andar de um lado para outro pelo piso, com as
mãos unidas nas costas.
— Em segundo lugar, o crime que temos diante de nós é de uma natureza
altamente incomum. Não é obra de um criminoso normal. Quais recursos
teriam sido necessários para manter um homem prisioneiro por tempo
suficiente para desmembrá-lo sem chamar atenção? Pense também na força de
vontade que isso implica. Na determinação. Quem pode saber o que vai sair
rastejando se levantarmos essa pedra? Com cada centavo que você ganhar,
poderá muito bem estar comprando um grande inimigo. Digo isso porque o
risco que você corre é maior do que o meu.
Winge se vira e encara a janela. A chuva fraca vai se transformando
lentamente em pesados flocos de neve.
— Não vou sobreviver a esse inverno que está chegando. Em breve estarei
além do alcance de qualquer causa ou efeito. Aconteça o que acontecer depois
disso, você vai ter de enfrentar sozinho.
Cardell olha para o chão. Não conhece Winge há muito tempo, mas agora
se pergunta se as suas tentativas de curar a ferida deixada por Johan Hjelm vai
apenas deixar outra nova em seu lugar. Mesmo assim, constata que a decisão é
fácil de tomar. Ele dá um tapa na mesa com força suficiente para bagunçar as
minúsculas peças do relógio.
— Então vamos aproveitar ao máximo o tempo que temos, assim você terá
a chance de aproveitar seu justo quinhão nessa cagada toda.
Cardell olha para o reflexo distorcido de Winge na vidraça da janela e se
pergunta se o que vê ali é o esboço de um sorriso.
8

O CLIMA NA FLÂMULA, uma adega próxima à orla da baía, ficou animado. Dois
músicos itinerantes, um deles com uma sanfona no colo e o outro com uma
rabeca apoiada no quadril, quiseram ambos nessa noite montar seus
instrumentos e tocar para os clientes, e transformaram seu conflito inicial em
colaboração. O público vai entrando aos montes para ouvi-los, e não demora
para a fila chegar até a escada. Lá fora, o ar está gelado. A névoa noturna que
sobe do mar vai tateando com seus dedos em direção à cidade. Winge e Cardell
estão fazendo sua refeição da noite numa mesa junto à lareira, para evitar o
vento que entra pela porta.
Cardell tem um apetite voraz; Winge, quase nenhum. Da cozinha vem um
fluxo constante de pratos: almôndegas de peixe; uma terrine de cenoura na
manteiga com sal; uma travessa de linguiças de porco; bacalhau pochê e
arenque frito; nabo fumegante; torradas e queijo, tudo isso acompanhado por
um prato de papa com gomos de laranja e biscoitos doces. Cardell se alimenta
como se aquela fosse a sua última refeição. Winge lhe permite saciar a sede e
satisfazer a fome sem ser interrompido. Ele, por sua vez, fica apenas
empurrando a comida pelo prato com o garfo, e não demora a largar o talher e
pedir um café. Após terminar de comer, Cardell franze o nariz diante do cheiro
dos grãos recém-moídos e recusa a xícara oferecida.
— Nunca entendi o que as pessoas veem nessa coisa lamacenta.
— Talvez o gosto seja uma questão de hábito, mas ele clareia os
pensamentos na hora. Jean Michael, você aceitaria me contar como perdeu o
braço?
— É uma história que eu faria de tudo para não contar, mas uma coisa lhe
digo: seria melhor se todos pudessem ouvir como foi a guerra russa de Gustav,
assim campanhas como essa podem ser evitadas no futuro. Minha participação
não foi nem heroica, nem importante. Uma peça trivial num jogo fora do meu
controle, destinada a morrer, salvo apenas por um capricho do destino. Perdi
meu braço, mas ele me salvou a vida.
Apesar da patente humilde de oficial não comissionado, Cardell começou a
desconfiar quase na mesma hora que o país tinha entrado na guerra de modo
excessivamente apressado. Passou cinco anos servindo na unidade de artilharia
do exército. Junto com milhares de homens, foi conduzido no mar pelos remos
da frota naval de Estocolmo até o Golfo da Finlândia por volta do solstício de
verão de 1788. Na ilha de Hangö, juntaram-se às muitas naus de linha que
haviam zarpado de Karlskrona sob o comando do duque Charles, irmão do rei.
Cardell foi embarcado no Terra Pátria, um navio de guerra de sessenta canhões
projetado por Chapman e construído em Karlskrona cinco anos antes.
— De modo que se poderia dizer que nós tínhamos uma quantidade
equivalente de experiência, o Terra Pátria e eu. Interpretei isso como um bom
sinal. O futuro iria mostrar que eu estava errado.

Cardell estava em pé no convés do Terra Pátria em meio à névoa do início da


manhã do dia dezessete de julho quando a linha de frente da esquadra sinalizou
ter avistado o inimigo. Meia hora mais tarde, o próprio Cardell viu os mastros
emergirem da bruma a leste e sentiu nas entranhas a primeira pontada de
terror. As duas linhas eram mais ou menos equivalentes: dezessete navios russos
contra uns vinte suecos.
— Bem, essa seria minha primeira batalha. No mar, tudo acontece
dolorosamente devagar, Winge. No mesmo instante em que as forças navais se
avistam, começam as manobras. Você aguarda o vento e as correntezas para
chegar perto o suficiente, depois entra em formação com sua linha de batalha
em direção ao inimigo de modo a dar espaço para os canhões operarem. Ao
ouvir o comando, você dispara, uma, duas, três vezes. Tudo que nós vemos é
pelas vigias dos canhões enquanto eles estão sendo carregados com mais
chumbo e mais pólvora. No melhor dos cenários, dá para ver de relance ondas
tingidas de sangue e destroços flutuantes, e no pior, uma linha impecável de
canhões prontos para varrer o seu convés. Nós somos alvos tanto quanto nossos
inimigos. É horrível. As balas que não conseguem penetrar ricocheteiam no
casco e fazem o navio inteiro balançar. Lascas de madeira rasgam carne e ossos
como se fossem manteiga. Homens se cagam e se mijam em pé onde estão, e os
excrementos se misturam com o sangue sob nossos pés. Até o suor tem outro
cheiro diante da morte, sabe? Misture isso com fumaça de pólvora, e você terá
o perfume do diabo. Se ao menos nós estivéssemos com munição suficiente, a
vitória teria sido nossa.
“Mil vidas encontraram seu fim em Hogland, duas vezes mais russos do que
suecos. Uma escuridão caiu, o silêncio de ambos os lados era total, e pela
manhã houve uma retirada dos suecos em direção a Helsinque, porque sem
munição a batalha não podia continuar. Os russos decidiram não persegui-los.
Uma nau se perdeu no confronto, e outra, o Vladislav, foi capturada. Tinha
setenta e quatro canhões.
“Se soubéssemos disso na época, teríamos afundado o navio ali mesmo. O
Vladislav sozinho quase nos custou a guerra. Os tripulantes estavam com tifo, e
nós os levamos conosco para o Forte Sveaborg. Passei o inverno lá enquanto os
navios voltavam para Karlskrona. Tivemos de cortar o gelo com machados e
picaretas para poder abrir o porto, e os navios levaram a febre de volta para a
Suécia em seus porões. Nesse inverno, Sveaborg se transformou num dos
círculos do inferno. Por toda parte via-se homens mortos ou agonizando.
Morríamos feito moscas. Nos leitos da enfermaria havia até cinco homens
empilhados, os de baixo inevitavelmente mortos. Os mais afetados começavam
a ter alucinações. Arregalavam os olhos injetados diante de coisas que nenhum
outro ser humano conseguia ver, e gritavam a plenos pulmões. Vi homens tão
dominados pelo terror que abandonavam seus leitos e saíam correndo nus para
o meio da nevasca. Eu mesmo fui poupado da doença, e, quando o verão
chegou, a guerra foi retomada no Golfo da Finlândia. Fomos massacrados em
Svensksund, não tivemos chance alguma em Viborg. Mesmo assim, a guerra
mal havia tocado um fio de cabelo da minha cabeça, e escapei ileso à febre, às
lascas de madeira e às balas de canhão. Em maio de 1790, recebemos reforços
de Åbo, e fui um dos incumbidos de auxiliar os recém-chegados. Fui
transferido para uma fragata, a Ingeborg, que detestei desde o primeiro instante.
Chapman, que a havia construído também, nunca tinha navegado um só dia
na vida, Winge. O sujeito era matemático, responsável por projetar navios
jamais destinados a seres humanos. Ingeborg tinha cento e vinte pés de
comprimento e uma dúzia de peças de artilharia, e dez delas disparavam balas
de calibre doze. Tinha goteiras. O casco era coberto por uma camada de limo
de um palmo de espessura que se podia cortar com faca. Aos trancos,
conseguimos nos juntar à força principal.
“Pela segunda vez, os navios suecos se posicionaram como cordeiros para o
abate em Svensksund, gravemente feridos, perseguidos pelos russos e isolados
da esquadra, interceptada em Sveaborg sem escapatória possível. Tudo que
restava era o fim. Não havia para onde fugir, e lutar parecia a única opção. E o
rei queria lutar.
“Eles nos atacaram no raiar do dia, por volta das sete da manhã. Foi preciso
quatro horas para chegar ao raio de alcance dos tiros, e essas quatro horas
teriam sido as piores da minha vida não fossem as que vieram depois. Não
restava dúvida de que o que vinha em nossa direção era a morte, dividida em
trezentas embarcações. Muitos homens já tinham tentado desertar. Milhares de
outros tinham sido largados ao mar na fuga de Viborg, e nessa manhã em
Svensksund vários disseram ter ouvido no vento as vozes de seus companheiros
mortos, clamando por companhia. Quando os russos chegaram, nos atacaram
pelo flanco direito, mas nos defendemos. Passamos horas operando os canhões.
“Ao meio-dia, o tempo virou: uma brisa subiu do sudoeste, e o que a
princípio era um leve sussurro logo virou um rugido. Com isso veio um mar
bem mais agitado, com vagalhões de cristas brancas onduladas sob pesadas
nuvens de tormenta. A artilharia pesada das embarcações suecas, ancoradas e
presas umas às outras, eram bem mais eficazes do que as dos russos, que se
viram disparando em vão, à mercê do mar agitado. Um grupo menor de navios
da nossa esquadra se separou para atacar o flanco russo por trás. O inimigo
entrou em pânico ao avistar os suecos partindo para o ataque e bateu em
retirada. Nosso flanco esquerdo interpretou a debandada daquele grupo como
uma ordem geral e logo os seguiu. Mas o centro continuou onde estava,
sozinho. Enquanto a noite caía sobre Svensksund, esses remanescentes foram
prontamente estraçalhados pelos canhões. Um a um, os navios afundaram e
deixaram seus mortos e feridos boiando no mar, agora um caldo vermelho
fervilhante. Quando as últimas embarcações finalmente tentaram se virar e
fugir, já era tarde. Foram engolfadas pela tempestade e naufragaram, uma a
uma, nos arrecifes da Finlândia.
“Quanto a mim? O Ingeborg foi atingido por uma bala de canhão russa
durante a tarde. O tiro arrancou o canhão de doze libras ao meu lado e
continuou até sair pelo outro lado do casco. Uma dezena de artilheiros morreu
na hora. Os que não estavam na trajetória da bala propriamente dita foram
esmigalhados pelo canhão que veio rolando. Nossos inimigos tinham
esquentado a bala antes de dispará-la até o ponto de torná-la incandescente,
portanto o metal incendiou toda a madeira com a qual entrou em contato.
Quando nossos próprios canhões não puderam mais ser usados como defesa,
subi correndo para o convés, onde reinava o mais completo caos. Nossa única
possibilidade de salvar a fragata — que a essa altura estava afundando — era
puxar a âncora e levá-la para terra firme. Estávamos tentando puxar a âncora
quando nosso estoque de pólvora explodiu. O cabrestante foi totalmente
arrancado, e os homens que não ficaram mutilados nessa hora foram
arremessados por cima da amurada. Eu aterrissei numa parte ainda intacta do
convés. Estava atordoado quando a corrente da âncora caiu chacoalhando
como uma fita de ferro bem em cima do meu braço esquerdo. O peso dela me
manteve preso ao deque e, enquanto meu amigo se afogava, eu estava a bordo.
Fui encontrado mais tarde nessa mesma noite por um bote que voltava para se
unir à força principal. Fizeram um torniquete com uma corda e em seguida
cortaram meu braço abaixo do cotovelo. E assim terminou a guerra para
Mickel Cardell. Voltei para convalescer no acampamento de Lovisa e depois
um transporte médico me trouxe de volta para Estocolmo, onde vivo há três
anos do jeito que você está me vendo agora.”
Cardell bate na mesa com a mão de madeira.
— Você sabe, é claro, que a guerra não teve propósito algum e que essa
vitória nada nos valeu. Uma coisa me deixou particularmente impressionado,
Winge. No início do verão de 1790, conheci um jovem oficial chamado Sillén.
Ele me contou sobre um acontecimento curioso logo após nosso
desentendimento em frente a Fredrikshamn mais cedo naquele ano. O rei
Gustav e seu séquito estavam voltando para a nau real, o Amphion. Um certo
capitão Virgin se apresentou e fez um relatório sobre sua tentativa fracassada de
assumir o controle do estaleiro russo ali perto. Como para enfatizar a própria
derrota, mostrou ao rei a mão ferida e apontou para seu imediato, que jazia
esparramado no convés do navio em meio a um emaranhado feito dos próprios
intestinos. O rei apontou para o corpo que ainda se movia e, em tom de piada,
disse para os outros oficiais que o cadáver o fazia pensar num manequim da sua
própria ópera, Gustav Wasa, diante do comentário ele e seu séquito riram e
aplaudiram. Assim era o homem por quem nós lutamos, e foi esse o
agradecimento que tivemos.
Winge absorve as palavras dele e termina de beber seu café. Cardell enxuga
a testa com a manga.
— E agora?
— Eu tenho um nome para você, Jean Michael. Uma pessoa que talvez
possa nos levar a algum lugar se a sorte estiver do nosso lado. Eu vou cuidar da
investigação a respeito do tecido de algodão no qual Karl Johan foi mandado
para o seu descanso final. Você sabe onde fica o meu quarto, certo? Volte
quando tiver algo para relatar.
9

O AGENTE DA POLÍCIA responsável pela Paróquia de Maria, com quem Cardell


combinou de se encontrar com o auxílio de Winge e da corporação, tomou
certos líquidos como desjejum. Apresenta dificuldade para manter o equilíbrio
ao se apresentar nos degraus em frente à sua porta. Está com soluço e exala o
mesmo cheiro de um chão de bar. É um homem forte e largo, com um nariz
torto que decerto já foi quebrado mais de uma vez. Sob a pele, varizes se
espalham como um bando de sanguessugas.
— Henric Stubbe, ao seu dispor! As pessoas me chamam de Stubby.
O sujeito contém um arroto com um pequeno ruído e se desculpa com um
dar de ombros.
— Mickel Cardell, seu humilde criado, e muito grato por me receber.
— Ah, não há de quê. Entre, entre. Não vamos prolongar esse assunto mais
do que o necessário, mas, por Deus, vamos beber alguma coisa antes. Ver essas
ruas de Maria e Catarina em condição de sobriedade é algo que eu não
desejaria nem ao meu pior inimigo.

Após uma deplorável meia hora passada junto a um tonel de vinho que Cardell
supõe ser uma mistura barata dos restos de vários barris diferentes — o gosto
ruim disfarçado graças à adição de anis —, os dois tornam a sair para a rua
Catarina. Stubby discorre longamente sobre os bairros que foi incumbido de
vigiar.
— A merda que não é levada para a Ucharia escorre morro abaixo em
direção à Baía Dourada. Os recém-nascidos vão na mesma direção, mas fazem
uma parada no cemitério. Por Deus, Cardell. O pessoal talvez não tenha muito
do que se gabar aqui na Paróquia de Maria, mas foder é uma coisa que essa
gente sabe. E, se você não quiser a sua própria mulher, tem sempre a do
vizinho. Não para de nascer gente do instante em que a donzela põe uma
aliança no dedo até virar uma velha com os peitos se arrastando, dez anos e
muitos filhos depois. Poucos têm a sorte de crescer para virar um espécime tão
exemplar da raça humana como o senhor ou eu. Os que sobrevivem mal
conseguem chegar aos vinte e poucos anos antes de a febre os ceifar.
Suando por baixo do chapéu e da peruca, Stubby se senta numa caixa de
madeira e põe ambos os acessórios no colo enquanto esfrega prazerosamente o
couro cabeludo até as caspas saírem voando.
— A prostituição é uma vergonha. As meninas mal aprendem a usar as
pernas para andar e já as estão abrindo. Começam a ir de porta em porta com
cestos de fruta e fazem tudo ao seu alcance para tentar os tementes a Deus a
cometerem pecado. E isso custa caro, sabe, porque é só uma questão de tempo
para contraírem sífilis, quando já estão sem dinheiro algum para o tratamento
porque o pouco que ganham é gasto com bebida. Após um ou dois anos,
ninguém com a cabeça no lugar sequer olha para elas. Aqueles dentre nós que
são ao mesmo tempo sensatos e lascivos precisam se apressar antes de a rosa
perder o viço.
Stubby dá uma piscadela para Cardell.
— Mas o senhor já deve saber isso, sendo sentinela. Olhe ali, alguns dos
seus colegas.
Basta um vislumbre das silhuetas para Cardell saber seus nomes: Fischer e
Tyst, sentinelas como ele. Estão andando pela rua e parando no caminho para
abrir portas na esperança de surpreender alguma jovem pecadora em flagrante.
Cardell, por sua vez, só trabalhou algumas horas como sentinela antes de ir
procurar o comandante e apresentar sua demissão. Sua única visita à prisão
feminina na Cicatriz quase o fez vomitar: corpos emaciados obrigados a
executar trabalhos forçados, morrendo aos poucos de inanição e sujeitos às
atenções de seus colegas sentinelas. Ocorreu-lhe que, fosse qual fosse o inferno
ao qual aquelas pobres almas estivessem condenadas após a morte, seria uma
mudança bem-vinda depois do tempo passado entre aquelas paredes. Chegou a
dizer isso em voz alta. Tentaram fazê-lo mudar de ideia, mas ele insistiu num
silêncio obstinado até o comandante dar de ombros, cuspir no chão de
cascalho e ir embora, ignorando Cardell.
Ao que parecia, consideravam mais fácil simplesmente mantê-lo na folha de
pagamentos do que correr o risco de se indispor com o homem que o havia
indicado. Sendo assim, ele continua recebendo o salário, e tudo que faz em
troca é usar parte do uniforme, o que no fim das contas é melhor do que as
suas próprias roupas. O casaco, as botas e o cinto. O porrete ele partiu em cima
do joelho e jogou no mar junto com a corda. Cardell manobra Stubby até um
canto para evitar esbarrar com Fischer e Tyst enquanto o homem segue
tagarelando.
— E a Ucharia, Cardell. Que visão dos infernos. E pelo que entendi você
entrou naquela água. Você por acaso já veio aqui quando tem um vento de
verdade soprando? Não? Ele vem da baía em fortes rajadas. Faz os moinhos
girarem até a madeira começar a soltar fumaça... mas, quando essas rajadas
chegam à Ucharia, criam um ensopado e tanto, fique sabendo. Todas as
porcarias que estavam lá no fundo são trazidas à tona. As pessoas descem em
uma fuga desenfreada pelo Morro do Moleiro o mais depressa que podem, ou
então para Danto ou para o Portão de Inverno. Mas o quão bem o senhor
conhece a Ilha Sul afinal, Cardell?
— Conheço um pouco, mas tudo que vi foi sobretudo pelas janelas dos
bares.
— Bem, isso não vai servir! Vou lhe contar como é. A Ilha Sul é o lar de um
bando de ladrões. As crianças aprendem a roubar no berço para escapar do
risco de morrer de fome, e lá mesmo começa sua marcha em direção ao
pelourinho e à prisão. Ou ao cadafalso, no pior dos casos. Numa noite dessas,
no bar, um homem leu em voz alta uma carta para o Stockholm Post em que um
defensor dos bons costumes reclamava das damas da noite na Cidade-entre-as-
Pontes, e de como essas prostitutas estavam oferecendo seus serviços por uns
poucos xelins. Todos nós rimos dos preços inflacionados. Aqui desse lado da
Eclusa dá para ter quem você quiser por menos de um xelim: homem, mulher
ou criança.

Juntos eles percorrem as ruas em volta do Lago da Ucharia, quarteirão após


quarteirão. Edifícios de pedra branca abrigam manufaturas e famílias cujas
gerações vivem amontoadas. Aqui e ali há casas ainda feitas de madeira, um
tipo de construção que as autoridades municipais ainda não conseguiram
demolir por causa do risco de incêndio que representam. As pedras do
calçamento são tiradas do lugar por saltos de bota e rodas de carroça.
Eles param para beber água no poço da igreja de Maria. Cardell faz uma
careta enquanto Stubby dá uma risadinha experiente.

É
— É a brisa do mar. O vento sopra a água salgada pela Eclusa e ela penetra
até nossos poços. Por isso o gosto. Muitos cervejeiros já tiveram lotes
arruinados por usarem água sem provar primeiro.
Stubby identifica todos os prédios e faz fofocas sobre quem mora ali,
batendo em janelas e portas e permitindo que Cardell faça suas perguntas. As
respostas são vagas. Os pobres e impotentes aprenderam a temer as autoridades
que, sem o menor remorso, arrastam para casas de trabalho e oficinas de
trabalhos forçados quem não tem autorização municipal. Tudo é
rotineiramente negado, num padrão que se aprende desde pequeno: ninguém
ouve, ninguém fala, ninguém vê. Após algumas horas, Cardell começa a
duvidar que mesmo a mais simples das perguntas encontre uma resposta.
Stubby dá de ombros.
— Bem, o que o senhor esperava? Vamos continuar descendo o morro e
arrumar algo para comer.
Ouve-se um forte clangor da balança sobre a qual os trabalhadores estão
descarregando tachas de ferro. Os compradores moscovitas do Pátio Russo dão
o melhor de si para que suas estranhas palavras sejam ouvidas apesar do
barulho. No Pelicano, no Morro do Carrasco, bem próximo da Eclusa, servem
nabo com arenque acompanhado por uma cerveja simples e uma dose de
conhaque. O salão do bar está lotado, e os dois se espremem para se acomodar
em bancos diante de uma mesa longa, ombro a ombro com os outros clientes.
Cardell ouve de todas as bocas o mesmo descontentamento: os nomes do
duque Charles e do barão Reuterholm entremeados por palavrões, enquanto
sussurros lamentam o estado deplorável da economia, a administração
incompetente do país e a necessidade urgente de mudança.
— Caso não se importe, permita-me perguntar, Mickel Cardell: o que
exatamente o senhor está fazendo aqui? Já não há o suficiente com que se
preocupar nesta cidade? Eu já ouvi falar em Cecil Winge, cheguei até a vê-lo, e
é fácil constatar que nem tudo vai bem com ele porque o homem parece um
cadáver que fugiu da cova. Mas não acho natural se apegar tanto assim à vida.
Ele deveria ter o bom senso de se entregar ao destino. Mas e quanto ao senhor,
Cardell? Um homem de verdade, de carne e osso, com o futuro pela frente...
por que perder seu tempo com um caso infrutífero desses?
Cardell sabe se controlar. Está acostumado. Sua raiva vem sendo destilada
há tantos anos que cada segundo foi uma oportunidade de se preparar para
situações como essa. Se tivesse bebido, a tentação de endireitar outra vez o
nariz torto de Stubby teria sido fortíssima. Em vez disso, ele inspira fundo e
volta os olhos para a multidão na praça lá fora.
— Quando chegar a hora certa saberemos se a investigação vai render
algum fruto, Stubby. Enquanto isso, você vai ter de confiar em mim quando
garanto que não há uma longa fila de benfeitores ricos à minha espera. O
senhor tem alguma lembrança sobre a noite em questão?
Stubby bebe um pouco da cerveja enquanto reflete sobre a pergunta, então
ri alto.
— Com certeza foi uma noite estranha, Cardell. Eu acordei de madrugada
para ir ao banheiro... coisa que ultimamente parece acontecer cada vez mais.
Como o penico estava quase transbordando, saí para o pátio. Levou um tempo,
mas, enquanto estava ali resolvendo minhas questões, meus olhos se
acostumaram com o escuro e de repente senti uma coisa estranha, como se a
parede tivesse se mexido. Quando fui tateando até lá, ainda com o membro
para fora, veja bem, senti alguma coisa dura e angulosa diante de mim. Não
consegui pensar em nada melhor a fazer do que voltar e pegar um lampião, e
quando voltei eu vi... uma liteira, Cardell, uma liteira coberta, com janelas e
cortinas pequeninas, e com uma das alças quebrada. O senhor deve saber que é
muito raro eu receber visitas de liteira ultimamente, muito embora a cada ano
que passa me preocupe menos em cobrir meu membro.
Stubby faz uma curta pausa para rir, encantado com seu próprio comentário
espirituoso.
— Em todo caso, ela estava vazia, quebrada e abandonada. Não havia
ninguém por perto. E também não estava mais lá quando acordei de manhã, o
que foi melhor, caso contrário teria se transformado na casinha de bonecas de
todas as crianças do bairro até algum miserável resolver decorá-la e fixar
residência lá dentro. Imagino que o dono tenha tido algum tipo de problema
durante a noite, deixado a liteira no lugar tranquilo mais próximo, arrumado
outro meio de transporte, e depois os criados tenham voltado com cordas ou
ferramentas para recolhê-la antes de o dia raiar.
— Como era essa liteira?
— Verde, com arremates dourados. Cara, mas com aparência gasta... o que
não é de espantar, claro. Não se vê mais tantas liteiras por aí. Não como alguns
anos atrás.
— Alguém mais na sua casa viu alguma outra coisa?
— Eu gosto tanto da minha própria companhia que raramente a
compartilho com alguém. Fiz algumas perguntas por aí, só por curiosidade,
mas ninguém parecia saber de nada.
— Mudando de assunto, o que o senhor faz, além se ser policial neste
bairro?
— Bem, meu amigo, a ressaca não é a única coisa a resultar de um álcool
forte como o aquavit. Quando a bebida acaba de ser destilada, ainda sobra um
depósito, sobretudo frutos silvestres e cascas. Essa polpa ainda contém alguns
nutrientes e pode ser usada na alimentação de animais. Eu a recolho das
destilarias e às vezes até das residências maiores, depois vendo para as fazendas
e estrebarias. Se alguém algum dia lhe oferecer uma colherada desse troço, eu
sinceramente não recomendaria, mas porcos, vacas e gansos nunca parecem se
fartar.
— Entendo. Eu no fundo sou um velho soldado de artilharia, e todos
aqueles golpes e explosões cobraram seu preço. Se você fica ao lado de um
canhão de trinta e seis libras quando ele é disparado, a sensação é a de ter
levado um soco na cara, e, se tiver algum catarro no seu nariz, ele vai sair
voando pelos ares. Mas como o senhor é um homem sensível, Stubby, com a
mente ainda intacta, quem sabe pode me ajudar com as minhas deduções?
Consegue pensar em algum meio de transporte que pudesse servir para carregar
um corpo pela cidade sem ser detectado?
Stubby franze o cenho e morde o lábio inferior.
— Bom, eu diria que para fazer isso seria preciso algum tipo de carroça
coberta, creio eu.
Cardell inclina parcialmente a cabeça para concordar.
— É difícil se locomover numa carroça grande. Além do mais, carroças
fazem barulho, os cascos batem no calçamento, as rodas rangem, e alguns
agentes alfandegários mais diligentes podem muito bem decidir checar o
carregamento mesmo dentro dos limites da cidade.
— Algo ao mesmo tempo silencioso e discreto? É isso que o senhor está
tentando sugerir? Não consigo imaginar o que poderia ser, Cardell.
— O que foi que o senhor acabou de dizer sobre o que encontrou no seu
pátio, que, por acaso, não fica situado muito longe da Ucharia?
— Uma liteira? Não está querendo dizer que o corpo foi transportado numa
liteira?
— Não numa liteira, seu imbecil. Naquela liteira. Você me arrastou por
metade da Ilha Sul sem qualquer resultado, e esse tempo todo justamente
aquilo que eu mal ousava esperar ficou parado durante horas em frente à sua
porta. Meu único consolo é que eu acho que a caminhada foi ainda menos
agradável para você do que para mim. Alguém carregou o corpo por trás de
cortinas fechadas, coberto por um saco, e foi obrigado a deixar a liteira para
trás e depois voltar para buscá-la assim que possível. E essa liteira pode estar
numa oficina em algum lugar enquanto nós estamos aqui conversando. Agora
preste muita atenção, Stubby. Se você quiser ter sequer a mais remota esperança
de continuar com o seu cargo nesta maldita latrina, corra direto para casa e
converse pessoalmente com cada uma das pessoas que mora lá, da mais idosa
até os recém-nascidos. Se mais alguém tiver visto a liteira e puder descrevê-la
com detalhes, ou as pessoas que vieram buscá-la, venha me avisar antes de as
luzes da cidade serem acesas.

No caminho de volta pela Eclusa, Cardell vai falando sozinho numa voz baixa
e animada acompanhada pelo murmúrio da correnteza.
— Ora, ora, Karl Johan, agora eu o segurei pela gola com tanta força que
vai ser difícil soltar. Tudo que preciso fazer é encontrar uma liteira verde com
arremates dourados e uma alça recém-consertada. — Ele ergue os olhos para a
torre torta da Igreja de Maria e arremata: — E cheirando a mijo.
10

WINGE GASTOU O dia inteiro tentando encontrar a origem do tecido de


algodão. Isso levou algum tempo. Cada comerciante se mostrava, é claro, mais
interessado em falar efusivamente sobre a própria mercadoria do que sobre a da
concorrência. A melhor informação que conseguiu o levou até um mercador
inglês que poderia ou não já ter ido embora de Estocolmo. Ninguém soube lhe
dizer onde o navio estava, e a única alternativa de Winge seria consultar ele
mesmo os registros.
Os andares inferiores da Casa de Alfândega são uma confusão de
mercadorias e idiomas. Agentes alfandegários correm para lá e para cá seguidos
por ajudantes munidos de lápis e livros-caixa. Mercadores, donos e capitães de
navio negociam suas obrigações fiscais, questionando a precisão das balanças e
a integridade de quem as opera. Os que não conseguem se fazer entender
simplesmente repetem num volume mais alto o que acabaram de dizer. Winge
leva horas para conseguir passar discretamente uma pequena quantia para um
dos agentes, de modo a poder olhar as listas dos navios que atracaram no
porto. A nau em questão se chama Sophie, e sua cidade natal é Southampton.
Foi atribuída a ela uma vaga no cais no bairro chamado Orpheus, perto do
Morro do Castelo. No status de partida está assinalado que a embarcação
aguarda o vento certo para zarpar.
Está começando a escurecer quando Winge sai da Casa de Alfândega e vai
andando depressa pelo Cais até depois da escada que desce para a água.
Coalhado de lixo, o local ainda exibe os vestígios da feira de outono de São
Miguel. Ele olha nervoso para o mar, mas nenhum navio parece estar
zarpando. A hora já está bastante avançada, e o vento mal consegue agitar as
flâmulas presas nos mastros.
Ele sente uma coceira na garganta, irritada pela umidade do mar e pelo
esforço. A cãibra na lateral do corpo parece um alfinete cravado entre as
costelas. Com relutância, é obrigado a diminuir o passo, e quando precisa
apoiar mais peso na bengala com ponta de prata, o jeito como a madeira se
curva o faz lembrar que o modelo foi feito mais para adorno do que apoio.
Winge suspira aliviado ao ler o nome Sophie na popa de um navio. A nau é
uma escuna, com o mastro dianteiro mais curto do que o central, e ainda está
atracada com o lado boreste para o cais. Não há nenhuma atividade visível.
Flâneurs noturnos visitam cafés e adegas, carregadores e trabalhadores da estiva
já voltaram para casa, os marinheiros desapareceram nos becos de Stadsholmen
em busca de companhia e diversão. Ele atravessa a passarela. Vê-se apenas um
homem no convés. Com um ar concentrado, ele está baixando um peso de
chumbo para dentro de uma caixa revestida de ferro.
— Joseph Satcher?
O homem responde em francês. Tem um físico robusto e está usando um
casaco de marinheiro reforçado, um tricórnio e botas resistentes nos pés, além
de uma barba que desce bastante pelo peito coberto pelo colete.
— Meu nome é Thatcher. O que é tão ruim para fazer negócios com a
Suécia quanto as minhas mercadorias em si. Suponho que o senhor não fale o
meu idioma?
Winge fala um excelente francês — então entende o comentário, porque
“tchatcher” quer dizer falador —, um bom alemão, tem conhecimentos
funcionais de grego e lê latim com desenvoltura, mas falta-lhe um domínio
mais profundo do inglês. Thatcher assente, sem surpresa.
— Meu sueco também não é o que deveria ser. Francês, então. O que deseja
comigo?
— Meu nome é Cecil Winge. Dizem que o senhor é especialista em tecidos
de algodão.
Thatcher se senta na caixa e, com um gesto, indica a Winge para se
acomodar num alçapão do convés. Winge lhe entrega o pano preto. Thatcher o
examina sem dizer nada.
— Meus dedos já me informam muito, mas para dizer qualquer coisa
definitiva preciso ir buscar meu lampião. Antes disso, porém, poderia
compartilhar comigo o motivo para a pergunta?
— Esse tecido foi encontrado enrolado no cadáver submerso de um homem
mutilado. Estou tentando esclarecer a questão.
Thatcher passa algum tempo encarando Winge, então se retira e volta da
cabine com um lampião aceso. Torna a examinar o tecido em todas as costuras
e cantos enquanto Winge aguarda em silêncio. Por fim, Thatcher pega um
cachimbo de madeira simples e o acende no lampião antes de falar.
— Diga-me, Sr. Winge, a expressão homo homini lupus est significa alguma
coisa para o senhor?
— Plauto as escreveu durante as Guerras Púnicas. O homem é o lobo do
homem.
— Queira perdoar um simples mercador que não teve o privilégio de uma
educação clássica. Eu conheço as palavras de Voltaire, mas, considerando seu
significado, não me espanta que sejam mais antigas. E o que o senhor pensa
sobre o assunto? Nós somos lobos uns para os outros, sempre à espreita do
menor sinal de fraqueza para escolhermos o melhor momento de atacar?
— Por isso existem leis e regras, para conter tais impulsos.
Thatcher ri em meio à sua nuvem de fumaça.
— Nesse caso o sistema está funcionando mal, Sr. Winge. Eu mesmo sou
um bom exemplo disso. Seu país está falido, e, se as notícias viajassem mais
depressa, talvez tivesse sabido disso a tempo de evitar minha ruína. Ninguém
aqui quer os meus artigos, e para não voltar para casa sem ter feito negócio
algum sou obrigado a vendê-los com prejuízo. Some a isso a ganância dos
agentes alfandegários, onde muitos ducados ficam retidos, mais a astúcia de
meus concorrentes e as dívidas que tenho com meus credores, e estou perdido,
Sr. Winge. Por acaso viu o que eu estava fazendo antes de me interromper?
— Sim, colocando pesos numa caixa que parece ser o seu cofre.
— E consegue adivinhar por que eu faria uma coisa assim?
Winge assente e desvia o olhar. Pensa se a morte possui um cheiro ou
alguma outra característica que torna tão fácil para ele notar sua presença, e se
a sua sensibilidade é resultado do trabalho que ele faz ou do seu próprio estado
de saúde.
— O senhor vai jogá-la no mar. Como os documentos de um homem
muitas vezes valem mais do que a sua vida, imagino que esteja planejando
abraçá-la e acompanhá-la por sobre a amurada, e que a função do peso
adicional seja abreviar seu sofrimento.
Thatcher sopra um lindo círculo de fumaça por cima d’água, onde uma
rajada de vento o dissolve.
— Eu sou pessoalmente responsável pelas minhas mercadorias. Tudo que
possuo está hipotecado. O gentil cavalheiro que investiu dinheiro em mim na
esperança de obter lucro vai me rasgar em pedaços. Tudo que tenho será
confiscado quando eu voltar. Posso alcançar o mesmo resultado antes de sair de
Estocolmo e me poupar uma viagem cansativa e mais problemas. Minha
jornada será encurtada para sete metros e vai terminar na lama sob o casco do
Sophie. Levando meus documentos, consigo diminuir o risco de as minhas
dívidas serem herdadas.
Thatcher pita seu cachimbo. Algo mesquinho surge em seus olhos quando
ele os pousa calmamente em Winge através da fumaça rodopiante.
— Por que eu deveria ajudá-lo? Por que deveria, como meu último ato
nesta vida, colocar mais uma vez obstáculos vãos no caminho daquele que já
mostrou ser o melhor de dois lobos? Se ao menos eu tivesse sido um lobo
melhor, esta hora não seria a minha derradeira. Então, que espécie de lobo é o
senhor, Sr. Winge? Um lobo bom? Um exímio caçador?
— Não sou lobo nenhum, infelizmente. O que faço não é para satisfazer
minha sede de sangue. Mesmo assim, sei que terei sucesso na minha
empreitada quer o senhor decida me ajudar ou não.
Thatcher estremece de repente e esfrega os braços, com o cachimbo ainda
pendurado na boca. Naquela disposição, com a fatídica decisão já tomada,
parece já estar a meio caminho de outro mundo.
— O senhor é pálido e magro além do normal, Sr. Winge. O que o aflige?
— Meus pulmões. Tenho tísica. Não vou viver muito mais do que o senhor.
Thatcher ri alto, um som estrondoso e alegre que sai rolando por cima da
amurada em direção ao mar.
— Por que não disse isso logo? O que seria do mundo se nós moribundos
não pudéssemos nos unir? Há algo que eu posso fazer para ajudá-lo, pois pode
ser que o pano que me mostrou de fato contenha o segredo que o senhor
espera.
Ele faz um gesto para Winge chegar mais perto e segura o tecido sob a luz
do lampião.
— Veja. O algodão foi costurado em camada dupla. Esta costura me diz
algo com muita clareza, especialmente por ter sido rasgada num dos lados:
alguém virou este pano do avesso. Vejamos.
Thatcher enfia a mão grosseira pelo buraco onde a costura foi desfeita,
segura o lado contrário e vira o pano preto do avesso como se fosse um saco
grande.
— Voilà! Eis aqui algo que não se vê todo dia.
Na bainha do tecido há um largo debrum estampado numa cor dourada
que a água da Ucharia não conseguiu apagar. Mostra figuras humanas em
grupos de quatro, entrelaçadas em poses que retratam os prazeres carnais. Os
órgãos sexuais dos homens foram grotescamente aumentados, bem como os
seios das mulheres. Há êxtase na expressão das figuras. O quarteto se repete,
idêntico, por toda a borda do tecido.
— Como especialista, posso acrescentar que tanto o tecido quanto a
estampa são da melhor qualidade, embora eu deva admitir que o artista lançou
mão de uma certa liberdade e que não usou modelos de verdade. Bem, não que
isso faça alguma diferença agora. Minhas próprias proezas nessa área são coisa
do passado. Espero que meus filhos se saiam melhor do que eu me saí, embora
eu duvide. Por mais ingênuo que eu tenha sido, criei todos para se tornarem
homens bons e imagino que serão uma presa tão fácil para os outros quanto eu
fui.
Thatcher começa a remexer nas cinzas do cachimbo, mas então se
interrompe e o lança por cima da amurada. Levanta o corpo pesado e ergue a
tampa da caixa dentro da qual o peso de chumbo repousa sobre uma pilha de
papéis. Há espaço para mais.
— Sendo assim, Sr. Winge, se me der licença, ainda tenho coisas para
empacotar antes de partir. Agora que o ajudei a farejar o rastro, basta segui-lo
floresta adentro para encontrar o que procura. E já vejo como a sua expressão
mudou. O senhor não me engana! É mesmo um lobo, afinal. Já vi exemplares
suficientes para saber, e, mesmo que eu esteja errado, o senhor em breve se
tornará um. Ninguém corre com a matilha sem aceitar suas condições. O
senhor tem tanto os dentes de predador quanto o brilho de seus olhos. Nega
sua sede de sangue, mas ela se ergue à sua volta como um fedor. Um dia seus
dentes estarão manchados de vermelho, e nesse dia o senhor terá certeza do
quanto eu estava certo. Sua mordida será funda. Pode ser que o senhor se revele
o melhor lobo, Sr. Winge, e com isso lhe desejo boa noite.
11

CARDELL ACORDA SUANDO frio. A palha do colchão pinica suas costas, e seu
corpo coça por causa dos percevejos. Do outro lado das tábuas de madeira da
parede, um bebê chora, e logo um companheiro da mesma idade integra o coro
mais longe ainda no labirinto de quartos. O álcool da noite anterior ainda
corre em seu sangue, resquícios da comemoração pelas deduções em relação à
liteira de Stubby. Alarmado, senta-se ao mesmo tempo em que solta o cordão
das calças com as quais dormiu vestido, e urina no penico. Abre a janela e, com
um gesto experiente, lança o conteúdo no pátio lá embaixo. Do lado de fora, as
nuvens estão tão baixas que a flecha da catedral de Estocolmo está escondida e
com ar fantasmagórico. O mostrador de seu relógio, legível somente quando
ele semicerra os olhos a ponto de intensificar a dor de cabeça, marca pouco
mais das nove da manhã. Ele precisa beber alguma coisa.
Do lado de fora do quarto que ele aluga há mais de seis meses, mulheres
cochicham enquanto preparam mingau. Ele não sabe como se chamam, mas
lhes dá bom dia, pede uns goles do balde d’água do poço e segue escada abaixo
até sair no Beco do Ganso. Toma a direção da Praça Sul, onde pode beber a
crédito. Por hábito, prende a respiração ao passar pelo Encontro das Moscas, a
gigantesca montanha de excrementos recolhidos pela cidade, ao lado dos
celeiros do porto. A ponte da Eclusa Vermelha está levantada para permitir que
uma pequena embarcação siga correnteza acima. A ponte levadiça recém-
construída à beira-mar, já chamada de Eclusa Azul, só ficou pronta cerca de
quinze dias antes, e ainda é vista com desconfiança. Parece fina e frágil se
comparada à construção maciça de Polhem. Muitos ainda esperam a Vermelha
em vez de arriscar a vida na Azul. Cardell não. Se por ser mais corajoso ou por
valorizar menos a própria vida, não sabe dizer.
Algo está acontecendo. Uma grande turba se reuniu na praça, derramando-
se pela Passagem do Maçom. Passivamente, Cardell se permite ser levado. A
julgar pela multidão diante do Hamburgo, deve ser dia de execução. Os
desocupados se reuniram ali para ver o condenado que em breve chegará de
carroça para receber o trago costumeiro.
Cardell bebe algo rapidamente no bar ao lado, então vai seguindo o fluxo de
gente pela rua Gótica e pela rua do Carteiro, onde as construções vão ficando
ainda mais escassas. As baterias do Portão do Fortim se erguem de um lado e
outro da rua, e atrás da elevação a via segue subindo o Morro Hammarby. Lá
no alto, o cadafalso de três pernas forma um contorno que se destaca do céu de
tempestade ao fundo: três colunas de pedra interligadas por vigas para formar
um triângulo letal. A turba de umas quarenta fileiras de pessoas rodeia o
cadafalso. São mantidas à distância por uma fila de sentinelas que formam uma
cerca viva conectada pelos porretes que têm nas mãos. O meirinho sobe para
ler a sentença. Cardell repara que hoje não é a forca que vai ser usada. Não é
um simples ladrão que será enforcado, mas o assassino de uma mulher, e como
tal foi condenado a ter a cabeça cortada.

A carroça ainda não apareceu. Sua chegada é anunciada pelo clamor do bando
de crianças de rua e desmiolados que corre atrás do condenado e alveja suas
costas com todo tipo de lixo e restos que consegue encontrar. Ele é jovem, com
certeza ainda não tem vinte anos, e foi detido após estrangular a noiva por
causa de uma galinha roubada — ele queria matar a fome na mesma hora, ela
queria poupar o animal para colher os ovos.
Depois de ter sido empurrado para dentro da área de execução, seu corpo
inteiro começa a tremer e uma mancha escura desce pelo joelho da perna
esquerda de suas calças. A multidão mal consegue se conter de tão animada.
Duas vagabundas que Cardell conhece de vista, ainda que não de nome, gritam
insinuações sobre a masculinidade do condenado. Atrás delas, um homem cujo
nariz a sífilis transformou numa cratera apodrecida ri tanto que seu catarro sai
voando. O meirinho se retira com o máximo de dignidade que consegue
reunir. Ele já está bebendo de uma garrafinha de prata e pousa os pés no chão
com cuidado para poupar da lama os sapatos elegantes.
Um silêncio se abate sobre a multidão quando a porta da casa do executor
se abre, e o carrasco aparece. Seu nome é Mårten Höss, e ele goza de uma
estranha mistura de notoriedade, respeito e repulsa. O capuz típico da profissão
pende da nuca. Enquanto muito de seus predecessores preferiram esconder o
rosto, ele não se constrange. Apesar de marcado, seu rosto não tem nada de
incomum, e os olhos negros são desprovidos de expressão. Ele próprio foi
condenado após arrancar com uma caneca o maxilar de um companheiro de
bebida, numa época em que o posto de carrasco estava vago. Foi agraciado com
um adiamento da pena contanto que aceitasse ele próprio a função. A cada
golpe do machado ou da espada, seu próprio destino se aproxima; a cada
sentença executada, suas mãos parecem tremer um pouco mais e seu estado de
embriaguez se acentua.
Dizem os boatos que Höss já tentou três vezes tirar a própria vida, mas,
após lhe faltar a coragem de se jogar nas águas do Årsta, ele decidiu se matar de
tanto beber para fugir do machado. Isso não o torna menos popular: sua
embriaguez acrescenta um elemento de diversão ao espetáculo.
O júbilo aumenta quando os sentinelas se afastam e Höss adentra o espaço.
Ele está trôpego e quase cai para trás ao tentar fazer uma mesura exagerada
diante dos presentes. O entusiasmo dos espectadores o inspira. “Mestre” Höss
— assim chamado numa referência à sua incompetência — pega da mão de
um dos assistentes o machado pela borda reta e brande a ferramenta no ar. Sai
correndo em direção ao condenado como se fosse decapitá-lo de imediato, mas
escorrega na lama. A multidão em delírio uiva e aplaude.
O bloco é trazido. É uma peça de madeira simples, marcada por talhos e
manchas. O condenado é forçado a se ajoelhar até pousar ali a cabeça. Um dos
assistentes pisa entre as suas escápulas enquanto outro passa uma corda em
volta da sua mão direita e a amarra no bloco. A mão será cortada primeiro para
garantir que o condenado não vá para o outro mundo sem ter sofrido. O
carrasco assume sua posição, e, quando o machado se ergue, outro silêncio
paira no ar. Um brincalhão nas fileiras de trás é silenciado após ter aproveitado
o momento para gritar o nome de um órgão sexual. Com um rugido, Höss
deixa o machado cair, mas o faz parar a menos de meio metro do braço
trêmulo.
O carrasco sente orgulho da sua exibição. Enxuga da testa um suor
imaginário, une as mãos nas costas e finge se espreguiçar como quem carregou
um fardo pesado. A reação positiva do público basta para ele repetir o gesto três
vezes. O condenado começou a chorar. Embora não esteja mais amarrado, não
tenta mudar de posição, mas todos podem ver os soluços que lhe convulsionam
o corpo.
Apesar da embriaguez, Höss tem experiência suficiente para saber que agora
precisa concluir o trabalho ou então enfrentar a ira da turba. Os soluços se
transformam num uivo que faz até mesmo a multidão empolgada se acalmar.
Sobrevém um clima de expectativa.
Mais uma vez, os assistentes assumem suas posições e seguram o condenado.
Höss cospe nas palmas das próprias mãos, ergue o machado e o deixa cair sobre
o pulso do rapaz com um baque úmido. Acompanhado por seu grito de dor,
um assistente recolhe da lama o membro decepado e o lança para a multidão.
Os dedos e a mão de um criminoso executado trazem sorte — em especial o
polegar, que promete proteger um ladrão da lei, e os ladrões são tão numerosos
quanto supersticiosos. A mão será cortada e vendida pelo menino de rua que
tiver conseguido arrancá-la das mãos dos adversários.
Höss cambaleia para desferir o golpe fatal enquanto o rapaz está ficando
rouco de tanto gritar. Não é mais um som humano, mas algo que chega ao
público vindo de outro mundo, como um eco vindo de trás das cortinas do
inferno.
Mestre Höss precisa de várias tentativas para separar a cabeça do corpo. O
primeiro golpe acerta nos ombros, o segundo arranca o escalpo da parte de trás
da cabeça e separa um grande pedaço com uma orelha dependurada. Não é
fácil dizer se Höss está rindo ou chorando quando começa a brandir o
machado de modo mais frenético ao mesmo tempo em que grita a plenos
pulmões:
— Como punição por seus atos e alerta para os demais! Como punição para
os seus atos e alerta para os demais!
Somente depois do quinto golpe as duas vozes se calam, tanto a do
condenado quanto a do carrasco.
É a execução mais malsucedida de Mestre Höss até então, concordam os
especialistas. São unânimes ao dizer que ele poderia ter bebido um pouco
menos por respeito à profissão; parece pouco provável que consiga se safar com
mais exibições como aquela até que ele próprio seja amarrado no bloco.
Quando os guardas se retiram, algumas idosas se adiantam para recolher o
sangue empoçado no chão. Nada é mais eficaz para tratar epilepsia. Os
assistentes do carrasco já viraram o cadáver de costas e levantam suas pernas
para que o máximo possível de sangue se entranhe na lama e o mínimo neles
mesmos enquanto o arrastam para a cova recém-aberta atrás da estrutura.
Mickel Cardell vira as costas para a cena. Ao erguer a cabeça, vê o contorno
magro e escuro de Cecil Winge sobre um montinho de terra na beira da rua. O
encontro acidental faz Cardell hesitar, e ele passa muito tempo observando
Winge sem tentar atrair sua atenção. O rosto pálido não revela emoção
alguma, não dá qualquer sinal de ter sido afetado pelos atos que acaba de
presenciar. É só quando se aproxima que Cardell repara nos dedos magros
apertando a bengala com tanta força que as juntas estão brancas e o braço
inteiro treme.
Ainda virado para o cadafalso, Winge está perdido em pensamentos. Só
desvia os olhos e cumprimenta Cardell quando este chega bem perto. Uma
chuva fina começa a cair sobre o terreno de execução.
— Boa tarde, Jean Michael. Fazia algum tempo que eu não via o carrasco
em ação. Então vim ver a justiça ser aplicada à luz do assassinato que estamos
investigando. É esse o destino que aguarda nosso culpado se tivermos sucesso
em nossa causa.
— E?
— Nunca vi muita lógica no fato de a Coroa tentar combater o assassinato
tirando a vida de seus cidadãos, e de um modo muito mais bestial do que os
crimes que levaram esses homens até ali. Mas minha maior objeção é a
seguinte: a lei não faz o menor esforço para compreender os condenados.
Como é possível alguém ter esperança de impedir os crimes de amanhã sem
tentar entender os que foram cometidos hoje? A resposta, Jean Michael, é que
esse pensamento sequer ocorreu a quem está no poder. Essas pessoas acreditam
que o seu dever é julgar e punir. Muitos dos que eu próprio julguei viram suas
vidas acabarem aqui neste morro. Meu único consolo é nenhum deles ter sido
levado embora na carroça sem ter sido interrogado, e eu ter me esforçado ao
máximo para provar, sem qualquer sombra de dúvida, de que o acusado tinha
de fato culpa. Todos tiveram a oportunidade de falar para se defender.
— A turba nunca vai dar ouvidos à razão, por mais que você tente entendê-
la. Sem o temor do machado e da corda, Estocolmo seria incendiada numa
noite.
Winge não responde, e Cardell continua.
— Talvez meu encontro com Stubby tenha nos deixado um passo mais
perto de solucionar o caso. Direi mais quando tiver informações melhores, mas
já posso ao menos adiantar que estou à procura de uma liteira verde que talvez
tenha sido usada na derradeira viagem de Karl Johan.
Eles viram as costas para o cadafalso e para a mancha vermelha, que agora é
tudo que resta do homem executado. Juntos, começam a voltar pela estrada
que conduz ao Portão do Fortim. Chegando ao sopé do morro, Winge rompe
o silêncio.
— Você me contou sobre o rei Gustav e a guerra, Jean Michael, e foi
impossível não notar o que você sente por ter perdido tanto numa campanha
empreendida sob pretextos falsos. Sendo assim, quero que entenda algo sobre
mim que pouca gente sabe, mas que mesmo assim é verdade. Você fez
perguntas a meu respeito, e sei que os boatos dizem que deixei minha mulher
por me preocupar com o bem-estar dela.
Desacostumado a ouvir confidências, Cardell sente-se pouco à vontade.
Baixa os olhos para as botas à medida que pisam no que rapidamente vai se
transformando num lamaçal.
— Conforme fui ficando mais doente, a tosse piorou, eu fiquei mais magro
e mais fraco, e comecei a definhar na frente dela. Eu não podia mais oferecer
nada, e não podia ser tudo que um marido deve ser.
A voz rouca de Winge sai monótona, sem qualquer indício de sentimento,
quase como se ele estivesse lendo um trecho da Bíblia. Cardell pode notar por
trás das palavras o controle que as retém, quase como a pressão de uma
tempestade antes do ponto de ruptura.
— Eu entendi o que estava acontecendo, é claro. Consequência de uma
vida servindo à lei. Pequenos detalhes que apontam para um engodo... minha
atenção a isso era o que mais aguçava meus sentidos. Encontrei objetos
desconhecidos em nossa casa. Ela saía para visitar amigas que eu mais tarde
vinha a descobrir que não havia encontrado. Mais do que tudo, porém, eu
percebi aquilo nela própria. Ela parecia feliz. Tinha as faces rosadas, e nos seus
olhos havia um brilho onde antes houvera apenas a certeza da morte.
Winge se vira para Cardell. Tem o semblante imóvel, como alguém que
ficou paralisado.
— Pela primeira vez em meses, ela parecia a mulher por quem eu tinha me
apaixonado.
Ele se demora um pouco nesse pensamento antes de prosseguir.
— Finalmente os surpreendi, em pleno ato, num momento de fraqueza.
Tinha feito o meu possível para evitar isso, mas estava fraco e distraído. Minha
tosse abafou o ruído de sua relação e vice-versa. Ele era um jovem oficial de
espada e cinturão no ombro, com o bigode pintado de preto e o futuro pela
frente. Não pude culpá-la. Na mesma noite preparei minha partida para a casa
de Roselius. Desde então não nos vimos mais, eu e ela.
Cardell abre a boca para lhe dar os pêsames, mas Winge o detém, com o
rosto virado para o Lago Hammarby, cujas ondas o vento agora começou a
fustigar.
— Não precisa dizer nada. Assim como você me disse em nosso primeiro
encontro, eu não quero pena. Minha confidência não tem a intenção de ser um
convite à amizade, mas tenho a sensação de que nós dois podemos nos
beneficiar se conhecermos as forças e fraquezas um do outro durante as
atribulações que nos aguardam. Nada é mais importante agora. Não quero
palavras de conforto. Não se torne meu amigo, Jean Michael. O tempo é curto
demais. A única recompensa pelo seu esforço seria tristeza.
Eles se separam no portão da cidade, onde Winge faz sinal para uma
carruagem puxada a cavalo.
— Encontre comigo amanhã às nove no Mercado Pequeno. A história da
liteira parece promissora. Tenho esperanças quanto ao epitáfio de Karl Johan.
12

O TRANSPORTE POR LITEIRA não está mais na moda; Cardell consegue concluir
pelo menos isso poucas horas após ter deixado para trás os horrores do terreno
de execução. O que sente em relação a isso é contraditório. O fato deveria
simplificar a questão de localizar a liteira verde de Stubby, mas a falta de uma
organização mais concreta do ramo complica as coisas. Nenhuma associação
supervisiona os carregadores, e as velhas liteiras que ele costumava ver por toda
parte quando era criança ou viraram fumaça num dos novos aquecedores de
alvenaria ou então foram compradas por empreendedores independentes que
ficam parados nas esquinas na esperança de atrair clientes.
Depois de perguntar um pouco por aí, Cardell acaba chegando a uma
estrebaria perto da Várzea das Crianças, na Paróquia de Catarina. Mas ali
também ninguém sabe de nada. Um negociante barbado usando peruca de
crina espirra entre uma pitada e outra de rapé e pragueja contra os tempos
modernos que lhe roubaram o ganha-pão. No começo do século, nenhum
cavalheiro deixava de ser carregado pela cidade por uma dupla de homens
fortes. No final da década de 1770, ele próprio chegara a ter em circulação
duas dúzias de liteiras. Agora esse número estava reduzido a um terço, e os
preços se encontravam em queda livre. Carregadores que outrora usavam libré
precisam se contentar com um festão ostentando o símbolo da estrebaria. O
velho meneia a cabeça com amargura ao lembrar que suas cores características
— preto sobre branco — não são mais conhecidas por todos. Cardell vai
embora da Várzea das Crianças sem ter chegado mais perto de encontrar sua
resposta.
Quando o sol se põe, homens começam a subir em escadas ou a levantar
tochas compridas para acender os lampiões de rua. O fedor de óleo queimado
invade tudo, embora a diligência dos sentinelas em garantir que cada
quarteirão esteja devidamente iluminado decline à medida que se deixe a
Cidade-entre-as-Pontes para trás.
Sob o crepúsculo, Cardell chegou até o outro lado da cidade, um trecho
abandonado da Campina situado ao redor do Portão Norte. Vai seguindo o
Riacho, o curso d’água malcheiroso que corre em curvas marrons por entre as
casas rumo ao norte, com o íngreme Espinhaço de Brunke à sua esquerda e as
margens do Lodaçal à direita. A água exala um fedor pronunciado, mas não é
páreo para a Ucharia. Certa vazão de água corrente e um volume total maior
conseguem dar mais conta de transportar o afluxo constante de latrinas e
dejetos domésticos.
Depois do Lodaçal, casas de pedra dão lugar a outras de madeira, e o
calçamento de pedra termina em barro socado. A casa que Cardell procura fica
perto do Poço Azedo, e lá dizem residir certo carpinteiro que ainda se dedica a
reparar e construir liteiras. Está escuro no pátio entre as construções. Cardell se
espanta ao ver pessoas ao ar livre, muito embora o frio de outubro esteja ainda
mais intenso com o cair da noite. Um homem está sentado sob os degraus da
entrada de um edifício cuja sombra, a uma curta distância, abriga uma silhueta
grandalhona que parece não conseguir decidir em que pé se apoiar.
O homem sentado o cumprimenta com um aceno. É tão largo de ombros
quanto Cardell, só que mais pesado, com um ventre rotundo que força os
botões do casaco. Seu corpo transmite ao mesmo tempo força e preguiça. Seu
crânio é redondo feito uma bola e o pescoço de touro é tão grosso que a cabeça
parece ter sido plantada diretamente nos ombros. A boca é larga, os lábios
grossos, os olhos apertados e estrábicos. Está mascando fumo, e a intervalos
regulares dispara pelo canto da boca um jato de cuspe bem mirado. Cardell
retribui o aceno com uma leve mesura.
— Olá. Meu nome é Mickel Cardell e peço desculpas pelo adiantado da
hora, mas estou à procura de um carpinteiro chamado Vries.
— E acabou de encontrar. Esse nome é meu e de mais ninguém. Sente-se.
Aceita um pouco de tabaco?
Cardell permanece de pé, mas pega uma pelota de tabaco da bolsinha que
lhe é estendida. Ao chegar mais perto, vê que a figura manca é um rapaz jovem,
embora grande como um gigante. Ao seu lado, tanto Cardell quanto o
carpinteiro parecem um pouco mais baixos. Cardell vê também que o jovem
deve ser idiota. Tem a boca entreaberta, e um comprido filete de baba cintila
em seu queixo. Seu olhar é meio bovino, de olhos mansos e vazios. Ao redor de
seu pescoço há uma cordinha de couro, cuja outra ponta o prende à
balaustrada de madeira.
— E Sr. Vries, o que o leva a passar a noite nos degraus em frente à sua
porta?
— O ar da noite não é um bálsamo para a alma? Mas e o senhor? O que o
traz até mim, Mestre Carpinteiro Pieter de Vries, aqui neste lodaçal distante,
numa noite como esta?
Um sorriso zombeteiro surge em seus lábios enquanto o sumo do tabaco
escorre pelos dois cantos da boca.
— Estou seguindo o rastro de uma determinada liteira, verde, com a alça
rachada. Um menino de rua lá da Baía dos Gatos diz que viu algo desse tipo
vindo na direção da sua oficina não mais de quatro dias atrás.
Uma ruga de preocupação surge entre os olhos de Vries.
— Ah, não, meu caro senhor. Não recordo de nada desse tipo. Lamento que
tenha se arrastado até aqui a troco de nada além de um pouco de tabaco. Talvez
essa liteira estivesse a caminho de algum outro artesão aqui perto?
Cardell meneia a cabeça enquanto reflete.
— Na realidade o senhor não tem concorrentes por aqui. E fiquei sabendo
também que talvez fosse difícil entender o Mestre Carpinteiro de Vries, uma
vez que vem de Roterdã e fala um sueco tão ruim que é um espanto ter
arrumado qualquer cliente, por mais capaz que seja.
O homem relincha de rir, então se levanta, endireita as costas com um
estalo e limpa os fundilhos da calça com as mãos.
— Entendo! Bem. Pelo menos Jöns Kuling é homem o suficiente para
assumir quando foi flagrado mentindo.
Cardell inclina a cabeça na direção do rapaz ao seu lado, ainda absorto em
seu mundo.
— Quem é?
— Aquele ali é meu irmão, Måns. Como o senhor pode ver, ele não é bom
da cabeça. Nosso pai e nossa mãe não vêm da cidade grande como o senhor,
Cardell, entende? Eles eram de uma aldeia tão pequena que era difícil
encontrar um bom partido, e quando meu pai chegou à idade não teve outra
escolha que não desposar a própria irmã. Esse tipo de violação das leis de
Nosso Senhor carrega seu preço, e aí ele está, batizado de Måns. Meu irmão
tirou a vida de nossa mãe ao sair de dentro dela, o maior bebê que a parteira
jamais vira. Não é um grande pensador, mas se você quiser alguém capaz de
segurar a alça de uma liteira durante horas sem reclamar, Måns é o homem
perfeito.
— E o senhor segura a frente, suponho.
— O senhor é mesmo um sujeito astuto, Cardell. Sim. Se tivéssemos
invertido as posições, Måns teria nos guiado direto para o inferno antes que o
pobre passageiro sequer percebesse. E aqui estamos nós sentados, esperando
tempos melhores. O carpinteiro nos pediu para voltar amanhã, mas a liteira é
nosso ganha-pão, então não saímos de perto dela. Especialmente quando nosso
maior benfeitor deixou escapar que nosso desempenho recente não foi
totalmente satisfatório e que, se mais alguém aparecesse perguntando sobre
uma liteira verde e onde ela esteve nos últimos dias, as coisas não iriam correr
bem para nós. Quero dizer, isso caso a situação não pudesse ser contornada
imediatamente. Sendo assim, aqui estamos nós, o senhor, eu e Måns.
Jöns desamarra a tira de couro que mantém Måns preso. Dá alguns passos
até o meio do pátio, inclina a cabeça para um lado e para o outro de modo a
aquecer os músculos enrijecidos e assoa o muco de cada narina. Abre um
sorriso sinistro e ergue os punhos, cada um do tamanho de um balde. Seus
ombros e coxas são puro músculo, após tantos anos sob o peso da liteira.
— Não deveria ter vindo farejar por aqui, Cardell, pois este vai ser o fim da
linha para você, amigo. Agora vamos, venha fazer uma rodada comigo e
veremos de que fibra você é feito.
Cardell anda em círculo para a esquerda de modo a manter tanto Jöns
quanto Måns em seu campo de visão. O jovem grandalhão parece sensível às
mudanças de atmosfera e começa a saltitar e a emitir pequenos ruídos ansiosos.
Um órgão sexual grande feito um braço se intumesce junto à sua coxa por
baixo das calças justa. Após trocarem alguns golpes por finta, Cardell acerta o
primeiro. Sua mão esquerda atinge Jöns Kuling na lateral do corpo, com força,
e o faz se dobrar. Uma expressão atônita se transforma em risada depois de ele
tatear o flanco e baixar os olhos para a mão ensanguentada.
— Maldição, Cardell! Esse soco acertou mesmo em cheio. Meu peito parece
o fundo de uma chaleira. Que punho de ferro!
— Só madeira, lamento dizer.
O irmão estava apenas aguardando sua ordem, e seu ataque súbito é tão
direto e sem sutileza que pega Cardell totalmente de surpresa. Måns se joga em
cima dele e o envolve num abraço do qual Cardell não tem tempo de escapar.
Ele cai com força, com todo o peso do rapaz sobre si. Måns se senta em cima
do seu peito, e os socos começam a chover. Cardell sente seu nariz quebrar, um
dos supercílios se abrir e o sangue inundar seu olho. Jöns logo surge pela sua
esquerda, e ele sente dedos forçando as correias que mantém seu braço de
madeira no lugar. As correias escorregam, a madeira desliza para fora da sua
manga e o deixa indefeso. Acima das pancadas abafadas que ele sabe serem o
som dos punhos de Måns batendo no seu rosto, ele ouve um sussurro quase
afetuoso e vê os lábios de Jöns junto à orelha do irmão. Os golpes cessam.
— Bem, Måns querido, vamos agora ajudar Cardell a ficar em pé e ver se
ele é tão durão quando privado de sua arma secreta.
Cardell limpa a sujeira do rosto e pisca para clarear a visão. Jöns lhe sorri
com zombaria enquanto arremessa a mão de madeira por cima do seu ombro;
ela aterrissa em algum lugar junto à parede. Måns começa a ganir com grande
animação enquanto limpa as próprias mãos com lambidas. Cardell ouve um
zumbido e o mundo começa a girar. Bem lá no alto, as estrelas cintilam.
Constelações inteiras piscam e rodopiam. Sua boca está cheia de lascas de
dente, e ele se pergunta se o que sente na língua é poeira de estrelas.
Em sua imaginação, vê o sangue espumar na boca de Johan Hjelm, ouve a
voz rouca de Cecil Winge, e estremece diante do sorriso sem dentes aberto nos
lábios podres de Karl Johan sob a luz fraca da cripta. Começa a cambalear em
direção às duas figuras ondulantes quando sente o braço morto assumir forma
ao seu lado, dolorido e latejante, estufado de dor e de ódio.
— Venham então, seus cachorros de merda.
13

O ESTABELECIMENTO DE Gustav Adolf Sundberg acaba de se transferir para a


Praça do Ferrageiro vindo da rua do Capitão, na Paróquia de Clara, mas já
recebeu o nome de Pequeno Mercado, uma vez que o café se tornou o ponto
de encontro dos moradores da beira do Cais. Muitos bebem canecas de
chocolate quente, mas a maioria dos clientes, como Cecil Winge, privilegia
infindáveis xícaras do amargo café árabe, principalmente desde os rumores de
que o regente está considerando banir a bebida numa tentativa de controlar a
boataria crescente nos cafés.
Ali as fofocas fluem tão soltas quanto o líquido fumegante: as pessoas
trocam notícias sobre o comportamento bizarro do príncipe Gustav, de quinze
anos, com seus cortesãos; sobre o duque Charles, apaixonado pela dama de
companhia srta. Rudenschöld, cujo coração pertence ao traidor Armfelt; sobre
o escriba literário Thomas Thorild, que dizem ter caído de uma mesa em
Lübeck ao proclamar que seu exílio havia lhe proporcionado a imortalidade
que os anos lambendo as botas do barão Reuterholm não tinham conseguido.
Winge decide dar uma hora a Cardell. Como segue sozinho quando seu relógio
de bolso marca as dez e meia, sai do café e segue rumo ao norte até chegar ao
Beco do Ganso, onde pergunta por ele. Um sapateiro ocupado trocando sola
de um par de botas de cavalaria tem informações.
— O sentinela maneta? Ele aluga um quarto da viúva Pihl.
Um bando de crianças está brincando na escada. A casa não tem aquecedor
de alvenaria, mas a lareira aberta no andar de cima está sendo atiçada por uma
menina magra de pele amarelada. Ela passou a última semana adoentada, com
febre, e sabe que Cardell saiu de seu quarto na manhã da véspera e ainda não
voltou. Não resta a Winge alternativa a não ser sair da casa de Pihl sem ter
descoberto nada. A voz da menina o acompanha escada abaixo.
— Se Mickel não aparecer antes de ela vir coletar o aluguel, ela o põe para
fora.
Winge pega uma rua que conduz à Praça Velha de modo a se dar um tempo
para pensar. Sem a ajuda de Cardell, suas opções são limitadas. Fica algum
tempo parado junto ao poço, onde crianças e criados enchem seus baldes.
Quando torna a se levantar, toma o rumo do Castelo e da Casa Indebetou,
com uma parada no caminho.

A tarde está no fim quando ele chega ao escritório do chefe de polícia Norlin.
Pode sentir a raiva do outro através da porta, e imagina que o pedem para
aguardar porque Norlin precisa de tempo para se recompor. Por fim, a voz soa
do outro lado, e nesse momento o assistente dá um passo de lado e lhe abre a
porta.
— Peça para ele entrar.
Norlin está sentado atrás da escrivaninha bagunçada, a camisa e o casaco
desabotoados no pescoço e a peruca jogada em meio aos papéis na sua frente.
Nenhuma cadeira foi trazida para Winge. Norlin coça o couro cabeludo e
esfrega os olhos vermelhos.
— Não faz muito tempo desde a última vez em que nos encontramos aqui.
Você se lembra do que eu disse sobre as pré-condições para esse caso, Cecil? Se
lembra de eu ter lhe recomendado discrição? Em vez disso, você interrompe a
reunião da câmara para falar sobre uma estampa obscena num pedaço de
tecido. Por acaso você não viu aquele escrevinhador Barfud sentado na plateia,
à escuta, com seu lápis em punho?
— Não só o vi, como também o acordei de seu sono de bêbado e o
convenci a me acompanhar até a Casa Indebetou, onde prometi que a reunião
matinal da Câmara de Polícia iria lhe proporcionar uma boa história para o
impressor Holmberg incluir no Extra Post de amanhã.
Norlin enterra o rosto nas mãos.
— Barfud é capaz de escrever sobre qualquer coisa entre os seus longos
trechos da Bíblia, e Holmberg as imprime sem ler naquele jornaleco
desgraçado. Quanto mais ultrajantes forem os artigos, melhor, e Estocolmo
inteira lê. Por que, Cecil?
— Meu comparsa, um sentinela vadio chamado Cardell, está desaparecido,
e meu instinto me diz que foi por ter chegado perto demais da verdade. Então
o tecido é minha última esperança. É um tecido caro e pertencia a alguém de
recursos. Quem tiver visto essa estampa não vai ter como se enganar quando ler
a descrição no jornal. Se alguém influente estiver interessado em abafar o caso,
essa pessoa vai recorrer a você. Vão querer minha cabeça. A sua também,
talvez. E aí, Johan Gustav, você vai me dizer quem é a pessoa.
— O problema é que Reuterholm lê o Extra Post assim como qualquer
outro fofoqueiro deste país. E ele certamente interpretará isso como prova da
minha insistência em priorizar outras questões antes de assuntos do interesse
dele. É a desculpa que ele estava esperando para se livrar de mim, Cecil. Você
assinou minha condenação à morte.
— A tirar pelo efeito que este cargo vem tendo no seu bem-estar no último
ano, creio que contribuir para um encurtamento do mandato é, pelo contrário,
prolongar a sua vida.
— Eu deveria ter prestado atenção nas pessoas com quem estava unindo
forças quando pedi sua ajuda. Cecil Winge, sempre disposto a sacrificar
qualquer um e qualquer coisa em nome de seus grandes ideais.
Os olhos de Winge chispam.
— Sim, foi você quem pediu minha ajuda, e teria sido melhor ter em mente
quem eu sou. Minha lealdade a você pode ter sido motivo suficiente para eu
aceitar o caso, mas na mesma hora em que disse sim, minha lealdade se
transferiu para a vítima. Minha responsabilidade agora é com ela, não com o
seu prestígio. Poucas noites atrás eu estive na casa mortuária da Igreja de Maria
para examinar o corpo. Permita-me descrevê-lo, já que você nunca pousou os
olhos nele: os quatro membros tinham sido decepados ao longo de um extenso
intervalo de tempo. Quem quer que tenha feito isso permitiu que cada ferida
cicatrizasse por um período suficiente para a vítima sobreviver à cirurgia
seguinte. Ele foi mantido durante meses preso a uma maca em algum lugar.
Deve ter gritado por ajuda, mas de nada adiantou, uma vez que sua língua
tinha sido cortada. Deve ter tentado tirar a própria vida, mas não lhe foi
permitido manter sequer os dentes. Nem os olhos. Você consegue imaginar
uma coisa dessas, Johan Gustav? Estar deitado, sozinho e impotente, até o dia
em que sente a serra na parte seguinte do seu corpo. Eu vou descobrir quem fez
isso. Vou descobrir por quê. E você vai me dar os nomes que eu quero assim
que os tiver, em vez de ficar reclamando de Reuterholm e da sua honra. E você
ainda ousa falar de morte na minha presença. Não tem vergonha?
Norlin sente a resignação substituir o vazio deixado pela raiva. Sente falta da
mulher e da filha, de seus cheiros, de seus risos. Do outro lado da mesa, Winge
o encara com as pupilas dilatadas no rosto extenuado. Norlin suspira e pousa a
mão num pedaço de papel na sua frente.
— Tive notícias de Paris hoje de manhã. Segundo as minhas fontes, a
rainha viúva será julgada por um tribunal revolucionário. Você sabe tão bem
quanto eu como isso vai terminar. Maria Antonieta vai perder a cabeça com
tanta certeza quanto o marido perdeu a dele. Vai ser jogada numa vala comum
por cima dos milhares que estavam à sua frente na fila da guilhotina. Vivemos
tempos sombrios, Cecil.
A voz de Winge sai suave quando ele responde.
— Johan, você mesmo me disse na outra noite: qual é o motivo que temos
para fazer o que fazemos, senão esse?
— Você tem razão, é claro. Como sempre. Não compre uma briga com
Cecil Winge, ele tem sempre razão... era isso que diziam nos tribunais
inferiores, e na universidade. Será do jeito que você quer. Agora vá, porque
preciso escrever para Reuterholm uma carta suficientemente obsequiosa para
comprar um pouco de tempo e diminuir a fúria dele quando o jornal chegar às
livrarias.
Winge inclina o corpo para a frente.
— Obrigado, Johan Gustav.
14

O SECRETÁRIO ISAK Reinhold Blom detesta todas as partes de Estocolmo que


cometeram o erro de se estender além da Cidade-entre-as-Pontes, e de todas
elas a Campina é a pior. Uma chuvarada matinal transformou as ruas num
lamaçal. Maltrapilhos, miseráveis, indigentes e figuras esqueléticas correm pelos
cantos, encolhidas como se evitassem a colheita do ceifador que se aproxima. A
eles se misturam marinheiros e soldados com uniformes amarrotados.
Ele não deveria ter ido a pé até a velha Chácara Spens. A água das poças
penetra pela costura das botas até cada passo soar como se estivesse batendo
manteiga. Blom vive encontrando motivos para amaldiçoar o destino. Apesar
de sete anos a serviço da Câmara de Polícia, seus proventos mal chegam a cento
e vinte daler por ano. Ao ser promovido do serviço notarial para substituir o
velho Halquist como secretário da câmara, imaginara um salário maior. Em vez
disso, viu sua carga de trabalho dobrar sem nenhuma compensação adicional.
Fica um pouco mais calmo quando ouve alguém tossir ao longe. Há quem
esteja pior. Cecil Winge poderia ter ido longe com as suas habilidades, mas vai
ter sorte se conseguir sobreviver até o ano seguinte. A tosse para quando Blom
bate na porta do quarto, e, instantes depois, ao abri-la, Winge lhe parece tão
alinhado quanto de costume. No entanto, um canto do lenço que ele guardou
no bolso do colete está sujo de vermelho, e Blom se assombra com a força de
vontade que aquele esforço deve lhe custar. Na mesma hora, diz a que deve sua
visita.
— Norlin me mandou trazer da Casa Indebetou a correspondência que
você solicitou. Foram muitas reclamações.
Blom se senta em frente ao aquecedor de alvenaria para secar as botas
enquanto Winge pega os três pequenos maços de papéis: três cartas com os
lacres partidos. O secretário pigarreia e continua.
— Muito provavelmente foram escritas às pressas depois que o Extra Post foi
entregue nas livrarias. Todas pedem a mesma coisa, mas dão motivos
diferentes. As três citam razões para você encerrar sua investigação. A primeira
é de um homem imensamente rico, preocupado com as flutuações no preço do
algodão e as duras consequências para as finanças do reino. Outro, um tal
conde Enecrona, da Câmara de Comércio, deseja alertá-lo quanto à decadência
moral que pode ocorrer ao informar as pessoas comuns sobre coisas que elas de
outro modo jamais teriam conseguido imaginar. Por fim, mas não menos
importante, temos Gillis Tosse, cuja ponderada opinião é de que assuntos
escandalosos, por sua própria natureza, estimulam o instinto revolucionário.
Tosse chama você diretamente de jacobino.
Winge aquece alternadamente os dedos de uma das mãos na palma da
outra.
— Eu conheço Tosse. Se lembra dele? Estudou em Uppsala, como nós.
— O nome não soa conhecido.
— É um vagabundo, sem talento para os estudos, mas com uma família rica
o suficiente para comprar uma posição para ele independentemente dos
resultados acadêmicos. Eu me lembro de como ele desdenhava dos alunos que
estudavam com afinco. Imagino que considerasse nosso esforço um atestado de
nossas heranças pífias. Norlin disse por que o mandou vir até aqui com essas
cartas?
— Não, mas não foi necessário. Eu não sou nenhum bobo, Winge. Eu
estava tomando notas quando você apresentou seu tecido e li a matéria do
Extra Post. Você está torcendo para que um desses remetentes alterados tenham
motivos bem distintos para reclamar de você do que os que afirmam ter.
Alguma conexão com o cadáver da Ucharia, suponho.
Winge contrai os lábios até formar uma linha e fecha os olhos enquanto
massageia a testa.
— Exato. Devo confessar que tinha esperança de que os nomes fossem
clarear um pouco a situação, mas nunca ouvi qualquer um deles antes, e não
consigo imaginar o que têm em comum a não ser a riqueza.
Blom abre um sorriso malicioso.
— Mas eu consigo. Só que nada neste mundo vem de graça e exijo algo em
troca.
— Se estiver ao meu alcance, Blom, será seu.
— No dia em que a sua saúde piorar, gostaria que informasse a mim, e só a
mim, o mais depressa possível. Há uma aposta entre os cavalheiros da câmara
quanto à data da sua partida. O prêmio equivale atualmente ao triplo do meu
salário anual.
— Se a informação que você me der for útil, não vejo motivo para alguém
não se beneficiar com o meu fim. Você tem a minha palavra de que mandarei
um mensageiro no mesmo instante em que sentir a febre chegar. Sua vez agora.
Blom sente um calafrio na barriga ao pensar na soma inimaginável, que
melhoraria imensamente sua condição de vida e lhe permitiria concluir sua
grande obra, A Necessidade da Religião para o Bem-Estar da Sociedade, não em
sua gélida sala, mas em grande estilo, num dos melhores estabelecimentos da
cidade, diante de pratos e mais pratos fartos vindos da cozinha: arenque
defumado fumegante, carneiro, ensopado de carne.
— Muito bem! Já ouviu falar numa sociedade chamada Eumênides?
— Só por alto. Se bem me lembro, é uma das muitas ordens secretas que
realizam trabalho de caridade para os menos afortunados aqui em Estocolmo.
Elas dão apoio financeiro às casas dos pobres em paróquias carentes
— Verdade. A Eumênides se destaca por sua grande generosidade, e só os
ricos podem pagar para fazer parte. Eu escrevo poesia, sabe? Certa vez conheci
um tal Claes von der Ecken, que herdou um comércio e me pagava
generosamente para recitar meus poemas. Ecken era membro da Eumênides.
Mas quando seu negócio começou a ir mal e ele manifestou desejo de
suspender seus donativos para administrar melhor as finanças, os outros se
uniram e o destruíram. É esperado que todos os membros honrem sem
desculpas os seus compromissos. O banco exigiu o pagamento imediato do
empréstimo de Ecken, e de repente ninguém se dispôs a garanti-lo. Certa noite
um mendigo apareceu na minha porta alegando que as moedas que eu havia
recebido para recitar meus poemas tinham sido apenas um empréstimo. Era
Ecken, na mais completa miséria. Foi assim que meu interesse pela Eumênides
despertou. Já tive a oportunidade de ver um rol de membros e, como tenho
uma memória quase tão boa quanto a sua, Winge, sei que todos os autores das
cartas que lhe entreguei são membros dessa ordem.
Winge começou a bater com os pés no chão de modo quase imperceptível.
— Talvez a sua história seja menos surpreendente do que parece. Você
conhece a origem do nome dessa ordem, Blom?
— Eumênides? Não, creio que não.
— Eu já tive um tutor cuja paixão pelos clássicos gregos era tão grande
quanto seu talento em aplicar castigos com o bastão, então passei um número
considerável de horas com o nariz colado em Ésquilo. Na nossa língua, a
tradução dessa palavra deveria ser “gentis”. Na história original, é assim que os
sábios se referem às fúrias, as deusas da vingança, para escapar da sua ira.
Blom começa a desejar que a visita termine e que a sua própria participação
nela seja esquecida. Apenas a ganância o mantém ali.
— Mais uma coisa. Eu sei que eles se reúnem na Casa Keyser, ao lado dos
Barracões Vermelhos.
Winge começa a andar de um lado para o outro enquanto pensa.
— Já ouvi falar nessa casa. É onde fica um dos bordéis clandestinos com
autorização para funcionar com as bênçãos da Câmara de Polícia, contanto que
tudo corra sem maiores perturbações. Acho esse um vizinho um tanto estranho
para uma ordem caridosa.
— Ah, e fica mais estranho ainda, Winge. Posso afirmar com segurança que
a ordem não apenas usa a Casa Keyser como sede. Ela é dona do prédio inteiro.
Pensativo, Winge se vira para a janela com vista ao Portão da Campina, as
últimas palavras de Mickel Cardell ainda ecoando. Na noite que cai lá fora, o
vento diminuiu e o moinho se calou à espera da brisa noturna.
— Você sabe de tantas coisas, Blom. Por acaso saberia dizer se a Casa Keyser
tem liteiras próprias, e, em caso afirmativo, se elas são verdes?
15

À NOITE, PENSAMENTOS perturbadores o dominam em vez do sono. A luz que


recai na escrivaninha lança longas sombras sobre as partes desmontadas do
relógio de bolso de Cecil Winge. Engrenagens e pecinhas assumem o formato
de insetos que dançam toda vez que um vento agita a chama. Isak Blom já foi
embora há muito tempo. A visita forçou Winge a reprimir a terrível tosse que o
atormenta desde a manhã. O penico segue cheio em seu lugar sob o canto da
cama, com seu conteúdo maculado de vermelho. Ele sente a garganta
contraída. Coçando, coçando.
Nessa noite, não encontra o mesmo estímulo no trabalho com as
ferramentas de relojoeiro. Combinar peças inanimadas de metal para formar
um todo contendo algum tipo de vida — contanto que o fabricante seja
esperto o bastante para pôr cada peça exatamente no lugar certo — em geral
acalma seus pensamentos, mas dessa vez ele está preocupado com o destino de
Mickel Cardell desde o instante em que se viram pela última vez no Portão do
Fortim e ele seguiu em direção ao seu destino desconhecido.
Pelo pouco que ele sabe sobre a vida de Cardell, imagina que o homem
atraia confusão como um ímã, mas ao mesmo tempo irradia uma capacidade
incomparável de prevalecer em situações do gênero. Parece improvável que o
seu desaparecimento não esteja relacionado à investigação sobre a liteira.
Winge passou a vida inteira confiando na Navalha de Occam, que agora lhe
diz que o ex-soldado chegou perto demais de uma verdade bem protegida. Os
detalhes estão além do alcance dos seus poderes de dedução. Uma vez
novamente montado o relógio de bolso, ele mede a própria pulsação em cento
e sessenta batidas por minuto e o peito lateja de ansiedade. Nada de sono, nada
de paz.
Na cômoda ao lado da cama há um frasco de vidro de palmeira doum
comprado de um boticário no Urso, na rua do Artilheiro, em frente ao Pátio
da Artilharia. Gotas de ópio numa mistura de álcool, ácido sucínico e sal de
amônia. Ele tem a tintura há tempos, mas ainda não a tinha usado. No Urso,
foi recomendado a ele que não ultrapassasse a dose indicada, e disseram que ela
anestesiaria não apenas a dor, mas os sentidos também. Essa é a primeira noite
em que ele está disposto a correr o risco.
Ele pinga as gotas da solução de ópio numa caneca e bebe. Em pouco
tempo, uma sensação morna se espalha por seu corpo e faz surgir uma
esperança reconfortante. A coceira na garganta parece se dissolver ao contato da
solução. Do lado de fora da janela, os últimos raios do sol se seguram nas
pontas das pás do moinho, então desaparecem. Winge se perde nos próprios
pensamentos.

Depois do pôr do sol, com o relógio desmontado outra vez, Cecil Winge perde
a noção do tempo. Não sabe dizer quantas horas se passaram quando lhe
ocorre o erro que cometeu. Tudo indica que Cardell foi eliminado. Em algum
ponto, encontrou um fim violento. Winge, por sua vez, se expôs denunciando
sua própria participação por meio da matéria no Extra Post.
Será que agora não ocorreria aos assassinos de Karl John agir contra ele
também? O que poderia ser mais fácil do que acabar com a sua vida? Seu
estado de saúde não é segredo. Um tísico que exala seu último suspiro após ter
sobrevivido aos prognósticos dos melhores especialistas do Hospital Seraphim
não chamaria a atenção de ninguém. Uma visita durante a noite e um
travesseiro em cima do rosto: seu fim não despertaria qualquer suspeita.
Winge sente um arrepio de medo lhe descer pelas costas. Levanta-se e vai
espiar pela janela, mas tudo que vê é o próprio reflexo, pálido e com os olhos
cansados. Põe o casaco em cima dos ombros, pega a vela no suporte e protege a
chama do vento. No corredor, usa o polegar e o indicador para apagar o pavio,
fica parado no escuro e apura os ouvidos. A casa está vazia. Os aposentos dos
criados ficam em outro local, e na cozinha as brasas estão cobertas de cinzas até
o dia seguinte. Winge abre a porta que dá para o pátio e sente a umidade do ar,
a névoa permeada de estrume dos campos, salgada com a maresia. Seus olhos se
acostumam lentamente com a escuridão.
A Chácara Spens está silenciosa e às escuras. As tílias se dobram lá fora. Não
se vê nenhuma luz na Cidade-entre-as-Pontes. Deve passar muito da meia-
noite. O portão está aberto. Além dele, o luar se derrama sobre os campos e o
pomar. Por mais pastoral que seja aquela cena durante o dia, à noite é
fantasmagórica.
No início do século, quando a peste chegou a Estocolmo trazida por um
mercador holandês, os mortos foram enterrados num pânico desenfreado. No
cemitério da Igreja de Catarina, as pilhas enormes de cadáveres envoltos em
suas roupas de cama eram salpicadas de lixívia e deixadas ali por mais de uma
semana enquanto cada um aguardava um lugar para ser enterrado no solo
abarrotado. Na Campina lidaram melhor com os despojos da epidemia. Os
mortos eram depositados em largas valas escavadas atrás das casas. E a terra lá
ainda hoje é mais fértil do que em outros locais. Os jardins daquele casarão
florescem até a primeira geada do inverno, mas os jardineiros aprendem desde
pequenos a nunca fincar as pás fundo demais. Winge não está só. Um vulto
vindo da água surge na estrada, uma nesga negra de vida que não pertence
àquele lugar. Aproxima-se devagar, curvada e cautelosa. Winge torna a
mergulhar nas sombras atrás da parede. Toda vez que uma nuvem obscurece a
lua, a cena diante dele se apaga, e, quando o luar retorna, a figura está mais
próxima. Aquela não é a morte que ele vem tentando aceitar há tanto tempo,
não é o fim previsível e sorrateiro da doença para cujos mínimos detalhes ele
vem tentando se preparar munindo-se de coragem. Aquilo é um fim violento e
desonroso de terror e ignorância, no fio de uma faca, na ponta de um porrete,
ou então esganado.
Agora consegue ouvir passos, ruídos leves de estalos. Esforçando-se para
respirar sem fazer barulho, consegue ouvir as batidas do próprio coração. A
sombra passa pelo portão e chega debaixo das árvores do pátio. Winge
compreende que está travando uma batalha perdida com um acesso de tosse
iminente e toma sua decisão. Melhor deixar o confronto acontecer ali, onde
pelo menos pode deixar marcas de sangue que testemunhem um fim violento.
Seu corpo encontrado sob as tílias pela manhã no mínimo causará estranheza.
Com poucos passos ele alcança a silhueta e a agarra. Percebe seu erro
quando a mão se fecha em torno de nada. Aquela criatura é desprovida de
forma. Aquilo não é um assassino contratado da cidade, mas sim um fantasma
saído da tumba para assombrar a propriedade durante a noite. Winge sente o
sangue fluir para as têmporas e centelhas de luz surgem no seu campo de visão.
Quando a aparição se vira de frente para ele, seu rosto não é humano, e,
quando a testa de Winge bate no chão frio, ele já perdeu a consciência.
Quando acorda, está na própria cama. A luz da aurora entra através da poeira
que cobre a janela. Uma pilha de lenha arde no aquecedor, e a madeira estala.
Winge leva alguns segundos para se reorientar. O efeito do ópio já deixou seu
corpo, e um galo lateja em sua cabeça. Ao falar, ele sente a língua grossa.
— Eu segurei seu braço esquerdo, Jean Michael. Como a mão de madeira
não estava no lugar, a manga estava vazia.
Cardell aproxima da cama a cadeira da escrivaninha.
— Pode ser. Já eu senti um puxão no casaco e mal tive tempo de me virar
antes de você desabar no chão ganindo.
— Pensei que você fosse um fantasma, que eu tivesse tentado agarrar um
espírito. Que bobo eu sou... Mas, verdade seja dita, seu rosto não ajudou
muito. O que houve com você? Por onde andou?
Mickel Cardell tem os olhos cobertos de hematomas tão grandes e escuros
que parece estar mascarado. Os nariz está quebrado, os lábios, rachados, e
debaixo deles Winge pode entrever vários dentes faltando. Um dos malares
parece esmagado, o que mudou o aspecto de seu rosto. Cardell faz uma careta
de dor ao falar.
— Estava lambendo minhas feridas na casa de um amigo que mora perto
do Portão da Anca do Gato, e teria mandado lhe avisar não fosse o fato de que
dormi direto por mais de um dia. Quando voltei mancando para casa,
encontrei meu quarto cheio de bandidos poloneses e todos os meus pertences
num saco perto da escada. Sem ter mais para onde ir e sem lugar para dormir,
decidi vir para cá. Por isso a hora tardia.
— E a liteira?
— Encontrei tanto ela quanto seus carregadores. E eles não quiseram
responder à minhas perguntas sem certo nível de convencimento. O maior dos
dois foi relativamente simples de resolver: era lento e fácil de espantar se o
oponente tivesse prática. Já o irmão foi um osso mais duro de roer, levei mais
tempo para contornar. Enquanto estavam os dois na jogada, conseguiram tirar
meu braço, mas depois que eu o reencontrei fiz dele um porrete até sobrarem
só as farpas. Depois de se defender da melhor maneira possível, o gordo saiu
correndo na direção do portão, saltitando na perna que eu ainda não tinha
quebrado, e duvido que seu irmão o reconheça caso os dois algum dia voltem a
se ver. É possível afirmar algo parecido em relação a mim também,
infelizmente, e lamento dizer que naquela altura eu não estava em condições de
impedir sua fuga. Mas consegui arrancar dele uma coisinha quando dei a sorte
de cravar o calcanhar em seus dedos: os dois tinham uma participação dos
lucros da liteira e o restante pertencia ao patrão. A liteira fica guardada não
muito longe dos Barracões Vermelhos, perto do córrego ao lado do Lago de
Clara.
— Na Casa Keyser.
— Isso mesmo. Suas investigações também o levaram até lá?
— Exato. Agora preciso descansar mais um pouco. Depois vamos sair para
comer. Hoje à noite nós vamos pegar o assassino de Karl Johan.
16

O CREPÚSCULO CAI sobre os Barracões Vermelhos, e o barulho do dia arrefeceu.


Entre os barcos que descarregam grãos na margem lamacenta, apenas um ainda
não concluiu o desembarque da carga. Dois estivadores, ambos bêbados, rolam
com dificuldade um barril até o chão. Um deles diverte a si e ao companheiro
cantando uma cantiga vulgar.
— Oh, moça, oh, moça, eu no seu lugar, mandaria a boceta de couro
forrar...
O Córrego passa pelo meio da construção abandonada da ponte a caminho
do mar. No horizonte se ergue a fachada imponente do Salão dos Nobres, com
a flecha do campanário da igreja na ilha logo à direita. Os lampiões estão
acesos na ilhota próxima, no prédio estranhamente riscado com sua cúpula
enfeitada por uma flâmula. A praça pública está vazia, e o cais das lavadeiras,
deserto. Ao longe, vindos da ponte sobre o Lago de Clara, ouve-se as vozes
abafadas e as pancadas dos tamancos de madeira dos trabalhadores a caminho
de casa. Winge para virado para a Cidade-entre-as-Pontes do outro lado da
água.
— Apesar de tudo, ela tem certa beleza.
Cardell assente, quase a contragosto.
— Estocolmo? A cidade fede e está cheia de gente à beira da morte só
interessada em diminuir mais ainda a expectativa de vida dos outros. Mas sim,
sob o poente é uma bela visão, e tanto mais bela quanto mais água houver
entre ela e o observador.
Cardell cospe tabaco na correnteza e se vira para a direita. Ao seu lado, a
Casa Keyser se ergue ameaçadora, com o lado mais comprido virado para a
praça e o mais curto para o lago. Tem três andares e uma entrada em arco. A
imagem de um sol poente adorna o frontão acima das suas cabeças. Algumas
velas estão acesas no segundo andar. O som de uma risada esganiçada. No frio,
Cardell esfrega seu coto nu.
— E agora?
— A menos que você tenha trazido um gancho ou uma arma de cerco, só
nos resta uma coisa a fazer. Vamos bater na porta.

O homem que vem abrir faz Cardell dar um passo para trás tamanha surpresa.
Tem a pele negra, e sob a luz fraca e vestindo um libré escuro, por um breve
instante parece não ter cabeça. Cardell já viu mais de uma vez, mas nunca de
perto, o pajem negro do rei Gustav, Badin, e o filho bastardo que ele teve vive
correndo perto dos navios no Cais. Winge toca o chapéu num cumprimento.
— Boa noite. Vim falar com a dona da casa.
O homem de pele negra lhe responde com um largo sorriso, abre a porta de
par em par e os acolhe com um gesto amplo do braço. Toca uma sineta de
prata e lhes indica com um gesto para seguir por uma escada que sobe em
espiral à direita. Então fecha atrás deles a porta de carvalho e retoma seu lugar
num banquinho sob um nicho iluminado. No segundo andar, encontram uma
porta já aberta. No vão dela está postada uma jovem usando um vestido
simples, translúcido o suficiente para se vislumbrar os mamilos. Ela tem uma
fita de seda nos cabelos e não parece estar usando maquiagem alguma, exceto
um pouco de ruge nos lábios e uma pinta no canto da boca. Parecendo
acostumada com visitas, faz uma mesura e sorri para Winge.
— Queira entrar, por gentileza. O senhor deve ser um dos novos iniciados.
Permita-me pegar seu casaco e tirar dos seus ombros o peso deste mundo. Meu
nome é Nana, sua humilde criada.
O papel de parede do corredor tem uma estampa de flores roxas e pretas.
Tapetes turcos cobrem o chão. Do teto pende um lustre com cerca de doze
velas. Mesas encimadas por candelabros margeiam as paredes. Winge deposita
uma moeda na mão da jovem. Seus lábios formam um o silencioso ao sentir o
peso do metal.
— Meu nome é Winge. Vim falar com sua patroa.
— É claro, senhor! É assim que iniciamos todas as nossas novas relações.
Uma conversa íntima é o início de um relacionamento feliz. Madame insiste.
Para melhor satisfazer suas necessidades, ela precisa saber tudo a seu respeito. O
senhor não deve ter vergonha. Estamos aqui para servir. Peço-lhe apenas para
aguardar aqui alguns instantes antes que eu possa levá-lo ao salon.
Winge assente. Após alguns segundos, a moça rompe o silêncio com um
meneio de cabeça em direção a Cardell, que permaneceu parado junto à porta.
— O senhor gosta de disciplinar seu criado, Monsieur Winge? Muitos de
nossos convidados têm essa inclinação, e é algo que podemos proporcionar.
Basta o senhor dizer a madame o que precisa e terá!
— É permitido bater nos seus artigos?
— Seu desejo para nós é uma ordem, meu senhor. Naturalmente que um
entusiasmo excessivo nesse quesito pode afetar o valor de nossos artigos aos
olhos dos demais, mas contanto que o senhor esteja disposto a compensar
qualquer prejuízo, tudo está como deve ser.
— Entendo.
O som nítido de uma sineta ecoa nos aposentos do outro lado da porta.
— Agora queira por gentileza me acompanhar, monsieur. Gostaria que o seu
criado permanecesse aqui?
— Prefiro mantê-lo ao alcance da mão, caso seja tomado pelo desejo de lhe
bater.
Ele e Cardell a seguem casa adentro. Do lado de fora das janelas, a vista da
cidade é esplendorosa. O cômodo ao qual são conduzidos está vazio. Há um
sofá posicionado de frente para uma poltrona. Winge se acomoda segundo as
instruções da garota. Ela serve vinho num cálice esguio e lhe entrega a bebida
sorrindo.
— Madame Sachs em breve estará com o senhor, monsieur. Espero que não
me considere ousada demais se disser que desejo revê-lo em breve por aqui.
Ela se retira. Winge pousa o cálice e atravessa o aposento depressa até uma
abertura em arco do outro lado, protegida por uma cortina. Examina um canto
do tecido, enfeitado com uma estampa de figuras em plena cópula.
— Jean Michael, acho que estamos prestes a escutar coisas bem piores do
que o que já foi dito. É de extrema importância que você mantenha seu ânimo
sob controle, para o bem de Karl Johan. Essa tal Madame Sachs é nossa única
oportunidade de descobrir alguma coisa. Entende o que estou dizendo?
Cardell abre a boca, então torna a fechá-la sem dizer nada. Simplesmente
assente e assume uma posição perto da parede. Sua mão saudável forma um
punho cerrado no bolso do casaco, cuja manga esquerda está amarrada num nó
em volta do seu coto.

É
É difícil estimar a idade da mulher que pouco depois afasta a cortina e entra no
cômodo. Não está claro se ela envelheceu prematuramente ou se conservou na
velhice uma ilusão de juventude. Seu vestido é imponente, um mar de carmim
adornado com bordados em fio de ouro. O rosto está pintado com uma
camada pesada de pó à base de chumbo, disfarçando muito bem todas as
marcas e rugas, embora persistam bolsas profundas sob os olhos. Ela dá um
sorriso sem vontade, a boca emoldurada por rugas. Ao redor do pescoço há
uma cicatriz, como a deixada por uma forca. Sua expressão de boas-vindas não
demora a se retesar numa careta.
— Os senhores não são os convidados que eu estava esperando. Nana deve
ter andado bebendo. Não tenho nada para conversar com os senhores nem
nada para oferecer. Seria melhor partirem imediatamente.
Winge ergue a mão num protesto.
— A senhora está enganada, madame. Meu nome é Cecil Winge. Venho da
Casa Indebetou. Vejo que a senhora consegue operar tão abertamente este
estabelecimento graças a um protetor poderoso, que muito provavelmente
possui contatos na corporação. No entanto, sistemas que em alguma medida
dependem de segredo possuem uma inércia intrínseca, e existe um número
bem grande de pessoas sem ciência do seu arranjo que poderiam facilmente
destruir seu negócio antes que seus apoiadores possam impedir a catástrofe. Em
meia hora posso ter vinte homens aqui.
O semblante dela não revela nada, mas sua voz se transforma num sibilo.
— O senhor sabe com quem está lidando?
— Sei que a Ordem das Eumênides é proprietária desta casa.
— Se está ciente disso, então sei que o senhor está blefando. Ainda que isso
que está dizendo seja verdade, eles jamais deixariam sua atitude passar impune,
e o preço seria terrível.
— Eu estou morrendo de tísica. Nosso atual chefe de polícia está a um
passo de perder o cargo. Nenhum de nós dois tem nada a perder. Fique à
vontade.
Madame Sachs dá um muxoxo audível.
— O senhor é jovem e ingênuo, meu garoto. Todo mundo tem alguma
coisa a perder. Mas a sua ameaçazinha só pode significar que eu tenho algo que
o senhor quer em troca do seu silêncio. Quem sabe se eu der em vez de receber
os senhores saem logo daqui. Desembuche, então. O que querem? Um
punhado de moedas do meu tesouro cada um? Acesso ilimitado aos meus
artigos para reviver algumas lembranças do antigo brilho de seus leitos
conjugais?
— Um homem mutilado foi levado desta casa numa liteira e jogado na
Ucharia, enrolado num tecido do mesmo tipo desse que está pendurado atrás
da senhora. Quero que me conte tudo que sabe sobre ele e o seu destino.
Os olhos dela se movem de Winge para Cardell e se fixam no coto do seu
braço.
— Agora estou entendendo. Eu recentemente perdi uma liteira e seus
carregadores. O maior dos dois reapareceu na noite retrasada, espancado e
ganindo. À noite, é atormentado por pesadelos terríveis e não consegue dormir.
Ele nunca aprendeu a falar, mas, quando lhe demos um pedaço de giz e uma
ardósia, fez o desenho de um demônio com um braço só. Vejo agora que a
realidade é bem menos assustadora do que a fantasia.
Madame Sachs torna a se virar para Winge. Cardell já viu a mesma
expressão em cães provocados a brigar por esporte. Antes de se atracarem, eles
medem as forças do oponente e avaliam suas chances. Bons apostadores
aprendem a encarar seus olhos para decidir em qual apostar. O próprio Cardell
já apostou, e julga conhecer o jogo tão bem quanto possível. Consegue sentir o
espírito daquela mulher e sabe que se trata de uma adversária formidável. E
Winge? Ele não parece grande coisa, mas seus olhos dizem o oposto. Não
demonstram terror algum. Cardell descobre quem vai vencer uma fração de
segundo antes de Madame Sachs chegar à mesma conclusão. Ela dá uma risada
amarga e levanta as mãos. Quando sorri com a boca aberta, mostra dentes
pretos de tão podres.
— Vejam só vocês dois! Um saco de ossos e um aleijado vestido com trapos,
e ousam olhar para mim desse jeito. O que gente como vocês pode saber sobre
os desejos dos nobres? Homens que cresceram sob o jugo de gerações de
riqueza, à espera de suas heranças feitas de bens, propriedades, domínios e
títulos. Esses homens foram criados para governar. A responsabilidade pesa
imensamente sobre eles. O alívio do qual precisam, vocês não podem sequer
imaginar. Mal derramaram seu primeiro jato de sêmen e já mandam a criada
segurar seu órgão na mão, depois fazê-lo rolar entre os seios, depois fechar em
torno dele os lábios. Aos doze anos já rodaram a casa toda, aos dezoito já
sodomizaram seus pajens. Depois que já provaram tudo que a cidade tem a
oferecer, eles vêm me procurar. Já gozaram mijando em bocas abertas, já
bateram, machucaram, pisotearam, destruíram. Eu posso oferecer a eles coisas
melhores. Tudo que eles desejam, seja lá o que for, nós conseguimos.
Proporciono a eles o inesperado em soirées especiais, já que muitos apreciam
coisas que jamais teriam sido capazes de imaginar. Mantenho uma coleção de
criados fora do padrão, alguns bem feios para acentuar a beleza dos outros,
alguns para aumentar o prazer de meus convivas por meio da sua baixeza, da
sua humilhação, da sua dor ou do seu infortúnio. Tenho corcundas, anões,
lábios leporinos, hidrocéfalos, desfigurados e disformes. Aqueles que exigem
pagamento recebem o devido, assim como nossos outros empregados. Outros
nos servem sem cobrar. A criatura no saco era um desses. Durante algum
tempo foi minha pièce de résistance. Entendem o que estou dizendo? Mais do
que qualquer outra coisa, ele servia de lembrete dos prazeres da vida, da sorte
de que gozavam todos aqueles que o viam. Alguns se contentavam em tê-lo
presente enquanto obtinham seu prazer. Outros preferiam usá-lo e aproveitar o
que ele podia oferecer, indefeso como era. Ele nem sempre se prestava de bom
grado, mas não tinha dentes. Os clientes riam ao apertar seu nariz enquanto ele
chupava seus órgãos intumescidos e era obrigado a engolir o que recebia.
Minha clientela é formada por homens que mandam no mundo. O que era o
sacrifício de meia pessoa em comparação com o seu prazer?
Winge pode sentir a raiva de Cardell como um campo magnético no
recinto. Passa o braço ao redor de seus ombros antes que o outro dê um passo.
Então meneia a cabeça para Madame Sachs prosseguir.
— Apesar do caráter grotesco, ele conservava algo de sua beleza. Os cabelos
eram lindos, ele era jovem. O contraste lhe valia certa popularidade. Ele me
tornou rica sem me fazer pagar um xelim. Como não ser eu a primeira a
lamentar sua morte?
— Estou certo ao supor que a Eumênides representa tanto seu senhorio
quanto sua clientela?
— Sim. E antes de julgá-los, saiba que eles doam sua riqueza a todos os
membros mais vulneráveis de nossa sociedade. Quem é o senhor para condená-
los pelo que acontece entre estas paredes quando metade dos lares de pobres de
Estocolmo seria obrigada a fechar as portas sem esse patrocínio?
— Como esse homem mutilado veio parar sob os seus cuidados?
— Bateram à minha porta certa noite. Um homem que se negou a dizer
como se chamava me ofereceu a criatura como presente. Não deu motivo
algum. Disse que era do seu interesse fazer aquela coisa passar os dias que lhe
restavam sob meus cuidados. O sujeito me pagou pela sua estadia e me deu
instruções quanto aos cuidados necessário. A coisa não comia por iniciativa
própria, então tínhamos de abrir sua boca e alimentá-lo uma vez ao dia
despejando papa na sua boca. Quando seus serviços não eram necessários, nós
o guardávamos num armário.
— Ele era tanto cego quanto surdo?
— Não tinha olhos, nem braços, nem pernas, língua ou dentes. Quanto à
audição, eu não saberia dizer.
— E a mente?
— Quem poderia ser tratado dessa forma e manter a sanidade? Imagino que
ele fosse idiota, e um fato me convenceu disso. Já mencionei que ele se recusava
a comer, certo? Isso era verdade, mas com uma exceção: ele comia as próprias
fezes toda vez que defecava, e sempre dava um jeito de fazer isso quando
ninguém estava vigiando. Quem faria uma coisa dessas a não ser alguém que há
muito já perdeu a razão?
— E então um dia ele morreu? Vocês mandaram levá-lo daqui?
— Exato. Embora o tenhamos alimentado, ele foi minguando pouco a
pouco. Um dia amanheceu morto. Não passou mais de quatro semanas aqui
nesta casa.
— Por que a Ucharia? O Córrego fica bem aqui ao lado.
— Meu estabelecimento já precisou descartar rejeitos sensíveis outras vezes,
com resultados menos do que desejáveis desse modo que você sugeriu. Tudo
que jogamos na água aqui tende a encalhar nas docas, e os pobres, nem aí para
o que pode ter matado os peixes, lançam redes no Lodaçal. Sendo assim,
apenas um demente perturbaria as águas da Ucharia.
Cardell avança pelo recinto mais depressa do que Winge consegue reagir, até
ficar em pé com a mão saudável em volta do pescoço da mulher. Seus dedos se
juntam na nuca.
— E a senhora, madame, sabe nadar? Quem sabe podemos ver se encalha
nas docas ou continua até o mar? Eu já vi uma boa cota de pessoas morrendo
afogadas. Ouvi seus gritos de agonia antes do mergulho final. Muitas que
nunca haviam demonstrado ter a consciência pesada confessam seus pecados
num momento assim. Fico me perguntando que ruído a senhora faria.
— Não tenho medo de homens como você. Se eu ainda me considerasse
viva, estaria em algum outro lugar, feliz e livre, e não recolhendo moedas no
subúrbio desse lugar vil que vocês ousam chamar de cidade.
Ela cospe na cara dele. De puro susto, Cardell a solta, e, enquanto está
limpando a saliva dos olhos, Winge se interpõe entre os dois. É a ele que ela se
dirige quando torna a falar, com a voz rouca por ter sido esganada.
— Agora saia daqui e leve junto seu animal de um braço só. Posso ver que o
túmulo o aguarda com impaciência. Considere-se com sorte por seu contato
com a Eumênides acabar por aqui, porque o senhor não é nada contra o poder
da ordem. Quanto ao homem que me deixou a criatura no saco, o senhor
agora sabe tanto quanto eu. Eu nunca o tinha visto antes nem o vi desde então.
Já cumpri minha promessa. Agora cumpra o senhor a sua!

Novamente lá fora, junto aos Barracões Vermelhos, já é noite. Não se vê


nenhuma estrela. Mais adiante, no Parque do Rei, algo está sendo comemorado
com luzes: todas as janelas do Arsenal estão acesas. O primeiro a falar é Cardell.
— Quando tudo isso acabar, vou voltar aqui e matar essa mulher.
Winge responde distraído, como se quisesse impedir a voz de Cardell de
interromper seu raciocínio.
— Ela viu isso nos seus olhos tão bem quanto eu, Jean Michael. Se voltar a
encontrá-la aqui, será porque ela decidiu acolher a morte. Você estaria fazendo
um favor a ela.
Winge cambaleia ao atravessar as pedras do calçamento até uma pilha de
material para construir cercas, então senta-se e afunda o rosto nas mãos. Faz
uma longa pausa antes de voltar a falar.
— Infelizmente acho que estamos num beco sem saída, Jean Michael.
Preciso de tempo para pensar, e tempo é um recurso escasso para mim. Estou
deixando escapar algo, mas esse algo se agita no meu subconsciente, como uma
mariposa batendo na vidraça. Só que não consigo ver com clareza, por mais
que me esforce.
É a vez de Cardell responder. Um garrote invisível dificulta sua respiração.
O coração lhe sobe à garganta, e ele se sente tomado por um terror que não é
capaz de explicar e do qual não consegue se defender. Na escuridão, o braço
esquerdo se materializa ao seu lado e projeta ondas de dor latejante pelo seu
ombro. Ele precisa reunir todas as forças para manter a voz firme.
— Alguém deve ter mais informações, pessoas que ainda não conhecemos.
Cardell virou as costas para ocultar seu estado. Os poderes de observação de
Winge realmente lhe faltam, de tão absorto que está nos próprios pensamentos.
— Sim, sem essas pessoas nossa empreitada agora parece fadada ao fracasso.
— Você vai desistir? É isso que você está dizendo?
Winge tira do colete o relógio de bolso. Mal consegue distinguir os
ponteiros no mostrador, mas, com os olhos fixos no pequeno círculo em relevo
onde são contados os segundos, encosta dois dedos na veia que pulsa sob a
mandíbula. Durante um minuto, conta as batidas do coração em cento e
oitenta antes de se virar outra vez para Cardell com a resposta que lhe deve.
— Não. Mas o tempo urge.
PARTE DOIS
O sangue e o vinho

Verão de 1793
Tudo na vida nos leva a beber
Basta pensar para ver que assim é.
Fortuna nos traz alegria ou pesar,
E ambos bebendo podemos domar:
Com vinho o feliz mais feliz ficará
E prantos e dor haverão de cessar.

Tudo é somente o que dele se faz,


Quem se embriagou não se deixa abater.
Aproveite os amigos enquanto os tiver,
Se tristes ficarem, não os queira prender.
O vinho é o conforto que a Dita nos dá
Da mais tenra idade ao lado de lá.
Anna Maria Lenngren, 1793
17

MINHA MAIS QUERIDA irmã!


Quero lhe escrever em todas as oportunidades, mas como ainda não sei para
onde enviar as cartas, perdoe seu tamanho até eu ter condições de entregá-las
em mãos a você.
Mesmo assim, é uma alegria afiar minha pena de ganso e colocar palavras
no papel neste dia que começou excelente. Acordei cedo, pulei da cama, puxei
o penico de seu lugar sob a cama, torci a camisola ao redor da cintura e adotei
a posição de cócoras habitual. Esse esvaziamento do intestino se revelou de um
tipo que raras vezes tive o prazer de experimentar, uma vez que todos os fatores
conspiraram para proporcionar o melhor resultado possível. Embora minha
dieta recentemente tenha passado longe do ideal, a consistência era excelente:
firme o suficiente para criar certa resistência e permitir uma sensação de dever
cumprido, mas também maleável o bastante para não apresentar maiores
dificuldades. No mesmo instante em que a mercadoria foi descarregada, o
canto do galo no pátio ao lado foi como uma validação, que não considerei de
todo injustificada. Quando lavei o rosto e me vesti, estava com a melhor
disposição possível.
E esse ânimo logo viria a calhar. Poucos instantes após as abluções matinais,
ouvi na porta da frente as batidas que temia havia tempos, acompanhadas pelas
duras palavras:
“Kristofer Blix! Abra a porta para podermos conversar! Blix, seu patife!”
Decidi não obedecer, uma vez que estava certo de que elas vinham dos
capangas que trabalharam para um determinado cavalheiro com quem
recentemente peguei emprestada uma quantia não insignificante em dinheiro.
Assim sendo, não perdi tempo. Coloquei meus pertences na bolsa e, com a
bolsa em cima do ombro, fui até a cozinha contígua. Elsa Johanna, a criada que
estava diante do fogo, revirou os olhos e franziu a testa enquanto eu surrupiava
um pão e abria a janela para o pátio. Seis varas mais abaixo ficava a pilha de
estrume onde a dona da casa — a viúva cujo temperamento carente tem
permitido que eu more a crédito — havia deixado se acumular tudo que os
cavalos do moinho produziam. Passei para o outro lado e me pendurei com os
braços até onde foi possível, então fechei os olhos, recitei um Pai Nosso e soltei
o peitoril da janela.
Bem, você pode imaginar meu alívio quanto aterrissei sobre o estrume sem
o menor arranhão. Lá de cima, ouvi o adeus de Johanna.
“Agora faça o possível para não dar as caras por aqui de novo, Blix, porque a
viúva Beck contava com alguém para esquentar sua cama por muitas outras
noites antes de a dívida ser quitada, e quando chegar a hora de cobrar a dívida,
esses seus cabelos bonitos não vão valer grande coisa!”
Joguei meus cachos louros para trás, agora compridos o bastante para
alcançar os ombros, acenei para ela enquanto espanava a sujeira das calças de
couro e saí pelo arco situado no outro extremo do pátio. Agradeci o fato de a
criada ter me refrescado a memória, caso contrário eu com certeza teria
esquecido: afundei a cabeça no gorro e tomei cuidado para esconder todos os
cachos sob a borda. Como você bem sabe, meus cabelos louros sempre foram
motivo de orgulho para mim, mas eles nem sempre ajudam, já que tornam
fácil me reconhecer de longe.
Ah, querida irmã... Estocolmo! Queria que você pudesse ver a cidade como
a vejo agora! É tão diferente de nossa infância em Karlskrona... Aqui as casas
são feitas de pedra entalhada, e a cidade inteira reluz feito ouro, principalmente
sob a luz da manhã num dia como hoje. Os prédios são diferentes, mas ficam
todos pintados com a mesma luz amarela e dourada. Eu soube por um homem
culto de casaco listrado que foi Carlsberg, o grande arquiteto da cidade, quem
emitiu um decreto que até mesmo seu discípulo König seguiu à risca. Entenda
isso, minha irmã: um único homem, escolhido pela clareza de seu raciocínio, é
quem cultiva a beleza desta cidade feito um jardim. Quanto nossa cidade, com
suas casinhas de madeira surradas, não poderia ter evoluído se tivesse sido
tratada com o mesmo cuidado?
Minha descida pelas encostas da Ilha Sul em direção à Eclusa me
proporcionou uma vista impressionante da Cidade-entre-as-Pontes, e fiquei
completamente de bom humor. Quem ficaria desanimado diante da
perspectiva de viver numa cidade como esta? As flechas das igrejas cintilavam
na ilha: Nicolau, Francisco, Gertrude. As ondas brilhavam e reluziam. Os
prédios do Cais se erguem como soldados em postura de atenção acima das
ondas do mar logo abaixo, com seus navios ancorados, e do outro lado da ilha
fica o Palácio do Rei, uma construção tão imensa que palavra alguma que eu
escrever poderá lhe fazer justiça.
Pouco antes do jantar, atravessei a Eclusa pela ponte levadiça vermelha,
então dobrei à esquerda e cobri o nariz ao margear os celeiros por causa do
Encontro das Moscas — uma pilha de excrementos alta como uma montanha,
minha irmã, que fica acumulada ali antes de ser transportada para os campos e
para as destilarias de salitre —, e fui serpenteando entre multidões tanto de
gente elegante quanto de mendigos, todos com algum detalhe digno de causar
fascínio ao olhar: um relógio de ouro numa coxa, uma peruca de verdade, um
pé torto ou um par de mãos tão deformadas que dá vontade de desviar o olhar,
mas por algum motivo não conseguimos. Após muito pouco tempo, me vi na
praça em frente ao Salão dos Nobres. Mal tinha olhado em volta quando
escutei uma voz alegre.
“Mas se não é Mestre Blix, passeando neste dia ensolarado! E procurando
um lugar para se hospedar, a julgar pela bolsa!”
Virei-me, ainda alerta para burgueses zangados e seus seguranças armados
com porretes, mas para meu grande deleite me deparei com meu amigo
Rickard Sylvan. Ele vinha pelas pedras do calçamento trajando um casaco novo
com a gola acoplada, uma peruca de lã vermelha medonha e calças compridas.
“Ah, Mestre Sylvan, eis aqui seu mais humilde criado!”, exclamei. “Por acaso
Sua Magnificência teria informações sobre alguma casa elegante porventura
disponível para locação em troca de uma quantia razoável? Ou, por que não,
em troca de alguém para vigiar uma pilha de feno, de preferência de
propriedade de algum cavalheiro generoso que goste de emprestar uma moeda
ou duas a um rapaz trabalhador prestes a subir na vida?”
Rimos com gosto e nos abraçamos.
“Infelizmente, Kristofer, já tenho dificuldade suficiente para encontrar um
colchão onde eu mesmo possa dormir, ao menos um que não saia andando
durante a noite sobre milhares de patinhas de percevejos e me faça amanhecer
em um lugar totalmente diferente daquele em que peguei no sono. Mas nem
tudo está perdido, meu irmão. Tenho alguns xelins aqui no bolso, deverão
bastar para nos pagar uma refeição e um pouco de Danziger para acompanhar.”
“Louvada seja a Providência”, falei. “Quando acordei, eu sabia que hoje
seria um dia de sorte!”
E voltamos para a cidade de braços dados para encontrar algo para comer.
No Paz Dourada, o dono do estabelecimento franziu o cenho de modo
ameaçador assim que Sylvan e eu aparecemos na porta. Sylvan foi obrigado a
negociar antes de permitirem que nos acomodássemos. Os xelins que ele tinha
no bolso foram examinados com atenção, e no início o proprietário quis
confiscar a bolsa inteira como pagamento pelas muitas canecas que ele havia
secado a crédito. Foi, no entanto, convencido a aceitar uma parcela com a
garantia de que pretendíamos gastar tudo com mercadorias suas. À mesa, nos
refestelamos com arenque frito e cerveja à vontade.
Após um ou dois copos, confessei a Sylvan as preocupações que me
pesavam: devo mais a Jonas Silfver do que conseguiria pagar. Ser capturado por
seus cobradores seria apenas um prelúdio à prisão dos endividados, onde
minha beleza e juventude seriam desperdiçadas. Fiquei pasmo quando Sylvan
começou a gargalhar.
“Kristofer Blix, você não sabe nada sobre a anatomia da dívida?” Sylvan
passou o braço pelos meus ombros. “Escute, Kristofer, e vou lhe ensinar uma
ou duas coisinhas sobre a vida na cidade grande que você, na condição de
recém-chegado, pode ser perdoado por não saber.”
Meus olhos foram se arregalando cada vez mais à medida que ele falava. O
que Rickard me explicou foi um método infalível não só para se manter vivo,
mas também para conseguir obter algum prazer. Como você sabe, querida
irmã, é apenas uma questão de tempo para quem não tem dinheiro e está
endividado ser denunciado aos tribunais inferiores pelos credores, e, quando
isso acontece, todos os bens do pobre coitado são confiscados como
pagamento. Caso esses bens somados não cubram o valor da dívida, o pobre é
jogado na prisão e fica definhando lá até seus parentes conseguirem reunir a
soma necessária para libertá-lo.
“O segredo”, sussurrou Sylvan, “é nunca pedir dinheiro demais para um só
credor! Digamos que você tenha recebido dois daler de Jonas Silfver.
Naturalmente não pode reembolsá-los, uma vez que eles foram usados para
bancar necessidades como vinho, mulheres e música. Você então procura outro
conhecido, pega quatro daler emprestados dele, e marca um encontro com
Silfver para fazer um acordo sobre o pagamento da dívida. Paga-lhe um daler e
lhe garante que mais virá em breve, e quanto, Blix, ainda lhe sobra para se
divertir?”
“Três daler!”, respondi.
“Isso mesmo, Kristofer, e depois você repete a mesma fórmula. Contanto
que se cerque de companhias generosas, tudo ficará bem, já que os
empréstimos novos são sempre parcialmente usados para pagar as dívidas
antigas.” Sylvan piscou e me deu um beijo brincalhão na bochecha. “É assim
que se faz na cidade grande, irmão Blix! Um brinde aos novos amigos que
podemos fazer hoje mesmo, e cuja generosidade em breve irá livrá-lo dos
capangas de Silfver!”
“À saúde de Mestre Sylvan”, exclamei, mais alto do que pretendia, e esvaziei
meu copo diante do cenho franzido dos outros clientes.

Devemos ter passado muito tempo no Paz Dourada, mas quanto exatamente
eu não me recordo. Já estava anoitecendo quando cambaleamos para a rua,
segurando um ao outro para nos equilibrar. A praça e as vielas estavam escuras,
mas o céu de um vermelho flamejante acima dos prédios iluminava o caminho.
Encontramos no poço um grupo de rapazes animados como nós e nos
juntamos a eles, uma vez que estavam a caminho de um baile no Morro do
Castelo. Levamos um pouco mais de tempo para negociar nossa entrada do
que prevíramos e aproveitei o intervalo para me aliviar parcialmente do que
havia bebido.
“Sic transit gloria mundi!”, bradou Sylvan com vontade enquanto eu
limpava o vômito da boca.
Uma vez lá dentro, achei o salão de baile assombrosamente lindo, querida
irmã, os tetos altos como os da igreja de nossa cidade, com galerias a meia
altura onde membros da sociedade bebiam vinho tinto em luxuosas taças de
cristal, erguendo-as para nós lá embaixo. Com algum incentivo e insistência,
podiam ser convencidos a virar os copos enquanto tentávamos capturar o
conteúdo com a boca. A peruca de Sylvan sofreu bastante devido à sua
incapacidade de se mover depressa o suficiente para capturar a chuva alcoólica
e logo sua lã molhada começou a cheirar mal. Mas isso pouco importava,
porque estávamos muito felizes! Todos na festa se divertiram com as nossas
brincadeiras. A essa altura, o salão girava mesmo sem que eu estivesse
dançando, e abandonei as tentativas de bailar um minueto depois de quase
derrubar uma mesa inteira.
Procurei um lugar para sentar e devo ter pegado no sono encostado na
parede, pois pouco tempo depois um homem de libré me acordou com uma
sacudida e me enxotou.
O relógio marcava quase dez, horário em que a festa precisava acabar para
não incorrer no desagrado dos casacos azuis. Na Praça Velha algumas pessoas
conversavam, embora os lampiões nos cantos mal iluminarem o chão logo
abaixo delas. Eu não fazia ideia para onde Sylvan e os outros tinham ido. Sem
mais nada para fazer, juntei-me a um cavalheiro na escada em frente ao
Mercado. O homem não queria falar de outra coisa a não ser a música que fora
tocada no baile. Eu, que não queria ser visto como um camponês bobo, adotei
uma postura crítica, o que me pareceu o modo mais fácil de passar a impressão
de ser especialista no assunto. Para meu deleite, minhas objeções pareceram
despertar certo interesse, e segui afirmando que os músicos pareciam estar com
dificuldade para acompanhar as notas e que a sua noção de timbre deixava
muito a desejar. Como o homem parecia muito preocupado com a
participação da trompa na orquestra, não demorei para lhe dedicar um
desprezo especial, um instrumento que não gosta de se deixar abafar mesmo
quando cercado por virtuoses de talento bem superior. A essa altura, meus
olhos tinham se acostumado com a penumbra e reparei que o homem estava
sentado em cima de uma caixa confortável. Olhei em volta, mas não havia
outros assentos do mesmo tipo, e enquanto conversávamos percebi que sob
determinados aspectos a caixa tinha o mesmo contorno afunilado de uma
trompa. Eu mal tinha acabado de concluir que era uma notória coincidência,
levando em conta o tema da nossa conversa, quanto recebi um tapa fortíssimo
que me acertou logo acima da boca.
“Seu projeto de peruca de pentelhos!”, gritou o sujeito, que de pé era uma
vara inteira mais alto do que eu. “Vou mandar você cantar, e então vamos
poder ouvir como você sabe manter o timbre!”
Saí correndo, e, ainda que obviamente eu tivesse atingido um ponto sensível
com minhas observações, o homem compensava a falta de musicalidade com
muita obstinação, pois pude ouvir os estalos de seus passos até a rua Nova,
acompanhados vez ou outra por uivos ameaçadores.
Como eu tinha conseguido tirar alguns cochilos no baile, não senti
necessidade de encontrar um lugar para descansar durante a noite. Atravessei a
Eclusa em direção à Paróquia de Catarina para esperar o sol nascer. Comi o pão
que me restava e, apoiado numa lápide em meio à grama perfumada, escrevo-
lhe isto tudo, querida irmã, usando tinta que misturei na sola do sapato com
um pedaço de carvão e um pouco d’água. O sol agora está nascendo e não
decepciona: as flechas das igrejas já capturam a luz; galos e cruzes reluzem;
Estocolmo outra vez põe suas vestes douradas, e ai de quem se deixar abater
por um lábio partido!
18

QUERIDA IRMÃ, ALGUNS dias transcorreram desde a última oportunidade que


tive de escrever. Como não me atrevo mais a dar as caras na casa da viúva Beck,
tenho passado as noites onde me pareceu mais adequado, e portanto pude
aproveitar o clima resplandecente do início do verão. Muitas vezes também é
possível dormir algumas horas no bar, mas, se o dono for atento demais,
existem vários lugares não tão exigentes. A uma caminhada energizante é
possível encontrar celeiros e montes de feno, campos e leitos de ervas. Como
pedir mais do que deitar a cabeça no colo da natureza, com folhas como
travesseiro e coberto por um toldo de estrelas? Pela manhã, os sinos da igreja
acordam a cidade com seus límpidos badalos, e torno a cruzar as pontes para
comer algo e beber água no poço. Escrevo-lhe de um de nossos muitos cafés,
revigorado por uma xícara matinal e por um pedaço de pão enquanto
mergulho a pena na borra.
Meu amigo Rickard Sylvan e eu nos juntamos a um grupo de jovens cujos
pais de todos têm negócios no Cais. São cavalheiros com dinheiro sobrando e,
como parecem achar as proezas de Sylvan e as minhas muito divertidas, quase
sempre tendem a ser generosos. Sylvan e eu competimos para ver quem
aguenta mais do que está sendo oferecido. Aquele que consegue ficar em pé
numa perna só durante um minuto inteiro é coroado vencedor e recebe o
título de majestade da noite, e uma sopeira é posta sobre a sua cabeça. Os
cavalheiros choram de tanto rir. Que noites maravilhosas, irmã minha! A
alegria parece não ter fim, e a bebida tampouco. O ponche e o aquavit correm
irrestritos, mas o que prefiro é o vinho, querida irmã, úmido e rubro, como se
fosse a própria luz do sol presa dentro do copo e da garrafa. Os bares são tantos
que nem se pode contar. Enfileiram-se uns após os outros, e a luz de suas velas
vaza para os becos, transformando a noite em dia. Nós vamos de bar em bar,
braços passados pelos ombros uns dos outros, conversando alegremente até um
a um nos separarmos e irmos para casa. Rickard Sylvan, por ter nascido na
cidade grande, não tem o mesmo apreço pelo ar livre que eu, e dorme
encolhido junto ao aquecedor na casa do primo em algum lugar para lá da
Ponte Nova.

Quando estávamos ocupados matando a sede numa adega perto das docas,
uma grande comoção irrompeu de repente. Alguém atirou uma caneca de
vidro, que por pouco não me acertou e foi se espatifar na parede atrás de nós.
Um grupo de marinheiros estrangeiros berrava uns com os outros em algum
idioma desconhecido, e, antes de compreendermos o que estava acontecendo,
uma briga havia começado. Fui me esconder embaixo da mesa. Quando um
dos homens desabou no chão, os outros decidiram fugir, e do meu esconderijo
pude ver que o que caíra estava ferido. O sangue esguichava de seu pulso feito
uma mangueira de incêndio, pois ele tinha posto a mão bem em cima de uma
garrafa de vinho quebrada. Uma vez que o perigo imediato aparentemente
havia passado, engatinhei até ele e dei uma olhada em seus ferimentos.
O pulso me pareceu o maior dos problemas, e de um tipo com o qual eu
estava bastante acostumado após meus anos em Karlskrona. Fiz o que tinham
me ensinado e pressionei o ferimento, depois coloquei um curativo feito com o
pano arrancado da manga do marinheiro. Por cima enrolei o restante da
manga, prendi tudo com um nó, e depois disso o sangramento estancou.
Durante esse tempo todo, o marinheiro não prestou atenção alguma em mim.
Permaneceu sentado no chão, encolhido, balançando-se de um lado para o
outro. Ficou ali cabisbaixo, resmungando em seu idioma.
“Os amigos dele chamaram sua esposa de prostituta e não pareciam
infundados nesse julgamento”, disse um cavalheiro de nariz vermelho que
observava os acontecimentos com grande interesse. “E ela não vai se sentir
menos tentada a continuar agindo feito prostituta quando o marido chegar em
casa com a cara arrebentada.” Ele riu do próprio comentário espirituoso.
“Vamos tomar um trago por esse pobre coitado e fazer um brinde ao médico.
Salve o médico!”
Todos os clientes me elogiaram. Todos beberam, e todos pareceram querer
me pagar um trago e brindar. O próprio ferido ficou ali até um aprendiz de
carpinteiro ajudá-lo a ficar de pé, depois saiu cambaleando noite afora, com o
olhar vazio e sem dizer nada. O episódio me fez lembrar do motivo original
que me trouxe a Estocolmo, mas devo confessar que todos os que brindaram a
mim rapidamente me conduziram a outros pensamentos.
Encorajado por minha popularidade, decidi tentar pôr em prática a fórmula
de Sylvan. Dividi um cachimbo com um dos cavalheiros em cuja companhia
tínhamos chegado e pedi a ele vinte xelins emprestados para me ajudar a
providenciar um alojamento melhor. Sua reação não foi a que eu esperava. Ele
empalideceu e pareceu um tanto constrangido. Pediu licença e saiu da mesa
sem responder. Fiquei pasmo, já que não era nem de longe uma quantia grande
para se pedir, vista a displicência com a qual aqueles homens em geral tratavam
seu dinheiro. Minha cabeça girava por causa da bebida e não pensei mais no
assunto. O movimento ao redor das mesas começou a rarear à medida que a
noite avançava, e, quando não vi mais nenhum de meus amigos, decidi que
estava na hora de encontrar um lugar para passar a noite.
Na rua, Rickard Sylvan estava à minha espera. Eu mal tinha passado o braço
em volta dos seus ombros quanto ele me segurou pelo colarinho e me
empurrou contra a parede, ao que bati com a cabeça nos tijolos.
“Blix, seu imbecil! É verdade que você falou com Wallin e pediu um
empréstimo de vinte xelins para não precisar dormir ao relento esta noite?”
Não pude negar. Sylvan me soltou com um gemido alto. Afundou no chão
com as costas apoiadas na parede e cobriu o rosto com as mãos. Fiquei
paralisado, sem saber o que dizer, até ele se virar para mim de novo e ver minha
expressão de quem não estava entendendo coisa alguma. Resignado, gesticulou
para eu me sentar e passou o braço à minha volta.
“Kristofer”, falou, “pedindo uma soma tão pequena, Wallin percebe que
você está na miséria. Eu fiz o sujeito acreditar que nós dois somos mantidos em
rédeas bem curtas por nossas famílias, cujos bens um dia vamos herdar. Você,
por sua vez, não deixou dúvidas de que nós na verdade não passamos de
charlatães que mal têm um tostão no bolso.”
“Mas o que eu deveria ter feito? Estamos inteiramente arruinados!”
Sylvan deu um suspiro e revirou os olhos.
“O que você deveria ter feito, Kristofer, era inventar um motivo que
justificasse um empréstimo maior... uma peruca nova, por exemplo, ou um
colar de pérolas para sua mãe, já que a sua mesada foi usada em outros mimos,
e fazer seu pedido como se fosse a coisa mais natural do mundo. Desses
cavalheiros é mais fácil pedir três ou até cinco daler emprestados do que tentar
arrancar um par de xelins.”
“Mas e nossas roupas? Nós usamos trapos! Como alguém poderia nos
confundir com filhos de burgueses?”
“Você só precisa fazer os cavalheiros quererem acreditar nas suas mentiras. É
preciso duas pessoas para contar uma boa mentira: uma disposta a dizer e outra
disposta a escutar!”
Não tive resposta para isso e fiquei ali parado com a boca escancarada até
Sylvan não conseguir fazer outra coisa senão rir.
“Você pode ser um maldito de um imbecil, Kristofer Blix, mas pelo menos é
um imbecil honesto. E isso é algo que nós em breve conseguiremos remediar.
Daqui para a frente, você falará comigo antes de tentar pegar qualquer dinheiro
emprestado com os amigos.” Sylvan, que agora parecia ter recuperado a
disposição alegre, levou a mão ao bolso do colete e sacou um mealheiro
abarrotado. “Enquanto você estava nos denunciando para Wallin, eu pelo
menos consegui extrair uma bela quantia de Montell, dizendo que precisava
comprar uma bengala com ponteira de prata. Disse a ele que era questão
urgente, já que vira um tenente-coronel cobiçando a mesma bengala e que meu
próprio pai, de cujas benesses uma compra dessas em geral dependeria, estava
fazendo uma visita a De Gerr em Finspång.”
“Mas eu pensei que seu pai fosse...”, comecei, mas parei ao perceber o leve
balançar de cabeça de Sylvan em meio à névoa do álcool.
“Kristofer Blix, eu às vezes temo pelo seu futuro.” Ele me lançou um olhar
de reprovação antes de segurar meu braço. “A hora já deixou de ser tarde para
virar cedo. Vamos ao poço nos lavar, depois ao café fazer o desjejum.”
19

MINHA QUERIDA IRMÃ, hoje fui surpreendido por uma onda de clima
inclemente que trouxe consigo um frio que eu não sentia desde o começo de
abril. A água da chuva empoçava e escorria para dentro de meu pequeno
ninho, e fui acordado quando um filete me lambeu no rosto. Minhas roupas já
estavam encharcadas, e eu tremia. Para recuperar um pouco de calor, fiquei de
pé num pulo e comecei a marchar sem sair do lugar, agitando os braços.
Algumas migalhas de pão e um pedaço de queijo duro tiveram de fazer as vezes
de desjejum. Esperei pelo sol, mas logo percebi que nenhuma luz ou calor
passaria pelas nuvens espessas. Por sorte, a chuva começou a diminuir, e, como
não vi sentido em esperar mais tempo, comecei a caminhar em direção à
cidade. O tempo sempre afetou minha disposição, como você com certeza deve
se lembrar. Depois de refletir profundamente, decidi encarar o que vinha
adiando há muito tempo.
Uma caminhada breve me conduziu até a paisagem pastoral da Campina,
com suas casas arejadas onde as frestas entre as tábuas eram às vezes largas o
suficiente para enfiar a mão e tocar os que lá dormiam. Os bairros ainda
estavam vazios, mas no Pátio da Artilharia já havia agitação e movimento.
Soldados corriam de um lado para o outro ou marchavam em formação sob as
ordens de comandantes severos.
Do mercado de peixe, vi as lavadeiras no píer da Baía dos Gatos, esfregando
a roupa suja até deixá-la branca e batendo cada peça até deixá-la o mais seca
possível no ar úmido. A visão me fez pensar no meu próprio aspecto, coberto
de fuligem e sujeira. No Hospital Seraphim, para onde eu pretendia ir, uma
boa aparência contaria a meu favor. Isso me fez pular até o píer com o objetivo
de convencer uma das mulheres a dedicar um pouco de atenção à minha
camisa. A maioria estava ocupada demais e as que me deram atenção fizeram
isso rosnando. Na margem, uma delas vigiava um bando de crianças, a
menorzinha muito pequena e ainda de colo, e cantava para ela enquanto lhe
oferecia o seio. A melodia era triste, a letra um tiquinho séria demais para uma
canção de ninar: “Assim se decidem nossos destinos e assim transcorrem nossos
anos, o próximo suspiro pode ser o derradeiro, e então no carro fúnebre iremos
nos deitar.”
Quando parei para escutar, reparei que uma das mulheres no píer tinha
interrompido seu trabalho e que suas lágrimas rolavam. Ela olhou para mim
sem dizer nada, mas então estendeu a mão. Talvez tivesse perdido um filho, e
talvez eu me parecesse com ele. Rapidamente despi o casaco, puxei a camisa
por cima da cabeça e lhe estendi. Ela a submergiu em sua bacia cheia de sabão,
deu uma rápida esfregadela, enxaguou-a na beira do cais e a devolveu para mim
depois de uma ou duas batidas com seu bastão. Curvei-me para lhe agradecer e
tornei a vestir a camisa, agora limpa e branca.

Bem em cima do Lago de Clara, um lago raso, construíram um píer de tábuas


com cerca de mil varas de extensão. A intenção era permitir que os moradores
da cidade permanecessem secos no caminho até a Ilha do Rei. Fiquei muito
tempo parado junto ao guarda-corpo perto dos Barracões Vermelhos, hesitante.
Na água do lago formavam-se cristas brancas, e as ondas subiam pelos muros
de pedra até encharcar a madeira do guarda-corpo. Uma mulher conduzindo
pela coleira um porco enlameado passou por mim e riu.
“Cuidado aí, menino! Se conseguir se segurar bem, dá para atravessar sem as
selkies morderem você e te arrastarem para as profundezas!”
Engoli em seco, com força, e com os nós dos dedos brancos de tanto segurar
as cordas amarradas de um lado a outro, e então iniciei a travessia até a outra
margem.
De volta à terra firme, logo me vi bem diante do meu destino: uma bela
porta num arco que se erguia até formar uma ponta. Acima dela lia-se as
palavras “Hospital Real” e dois leões seguravam de ambos os lados um brasão
dourado. Próximo da porta havia um lindo castanheiro em plena floração.
Entrei, atravessei o arco, mas tive de parar para encarar algo que me
assombrou. O prédio principal tem quatro andares de altura, e duas
construções anexas o ladeiam. É o Hospital de Cirurgia Seraphim, o Seraph,
como era conhecido por todos. Fui recebido por um amplo saguão de entrada
com o chão de pedra. Um rapaz passou por mim apressado a caminho de
alguma tarefa urgente e pedi desculpas. Aproveitei para perguntar por quem
estava procurando.
“O professor Martim não aparece aqui no Seraphim desde o ano de Nosso
Senhor de 1788, e por isso devemos dar graças, uma vez que foi também o ano
em que ele faleceu”, respondeu o rapaz. Fiquei sem ter o que dizer. Ele me
encarou com um ar de empatia. “Você estava procurando Roland Martin
pessoalmente ou seu substituto? Se for o substituto, poderá encontrar o
professor Hagström na sala de anatomia norte.” Eu não soube o que fazer além
de menear a cabeça. “Suba um andar, depois dobre à direita.”
Na metade da subida, fui surpreendido por um cheiro que conheço bem e
do qual nunca vou esquecer: cadáveres. Pela fresta de uma porta entreaberta me
deparei com uma visão macabra: o cadáver de um homem cortado da cabeça
até o final do tronco jazia sobre uma mesa. A pele afastada em seções deixava as
entranhas expostas. O peito era mantido aberto com o auxílio de ganchos
fortes. Do rosto havia sobrado apenas metade, uma vez que o crânio e a
estrutura muscular da face tinham sido expostos. Duas órbitas brancas leitosas
encaravam o teto. Só então reparei no homem em pé junto à maca.
“Está procurando por mim?”, perguntou ele, retomando a escavação do
peito do morto.
“Estou procurando o professor Hagström.”
Reparei que minha voz saiu um pouco trêmula, menos devido à presença do
cadáver do que à do professor. Avaliei sua idade em cerca de quarenta anos; o
homem parecia gozar de excelente saúde e usava apenas um colete por cima da
camisa de mangas arregaçadas e um avental de couro amarrado na cintura.
“Ao seu dispor. Por favor, fique à vontade para entrar, contanto que esta
cena não o perturbe além da conta.”
Ele pousou sua faca e começou a lavar as mãos numa bacia de porcelana.
“Em que posso ajudá-lo?”
“Meu nome é Johan Kristofer Blix”, falei, e tirei a boina da cabeça. “Estive
em Karlskrona em oitenta e oito, como aprendiz de cirurgião naval sob as
ordens de Mestre Hoffman.”
“Emmanuel Hoffman?”
“Sim, professor.”
“Nesse caso não é de espantar que fique tão pouco abalado diante de uma
visão que já fez muitos visitantes empalidecerem e se debruçarem na janela”,
disse Hagström. “Se o senhor passou os anos da guerra em Karlskrona, o
professor é o senhor e eu o aluno, pelo menos no que diz respeito à visão da
morte e da putrefação.”
O professor Hagström me pediu para sentar, e educadamente fez perguntas
sobre minha experiência em Karlskrona enquanto pedia um bule de café,
trazido poucos minutos depois por uma mulher de branco. As palavras
jorraram da minha boca. Nunca falei com ninguém sobre os anos terríveis da
guerra, nem mesmo com você, minha querida irmã, de modo que já está mais
do que na hora de contar minha história.

A esquadra retornou do outro lado do Báltico no inverno de 1788 com um


navio russo capturado em Hogland. Seu nome era Vladislav, uma nau de
guerra com setenta e quatro canhões. A esquadra mal tinha chegado ao seu
porto de origem quando o gelo chegou, e do Vladislav começaram a descer
homens acometidos de um mal de navio nunca visto antes. Os que adoeciam
apresentavam rapidamente febre e calafrios. Em alguns a doença chegava aos
pulmões, e eles tossiam até os lábios ficarem azuis. A febre sumia com a mesma
rapidez com que havia chegado, mas uma semana depois voltava com força
redobrada. Vi os homens mais robustos sobreviverem a uns dez ciclos desses
antes de sucumbirem, a essa altura já velhos, corcundas de olhos vazios. Foi um
inverno rigoroso, e todas as tábuas serviam de cama para alguém. Cada vez
mais homens caíram doentes, não só marinheiros, mas moradores da nossa
cidade, a ponto de deixar abarrotado o hospital naval. Primeiro virei garoto de
recados, e então, mais ou menos na virada do ano, me tornei aprendiz do
Mestre Hoffman até sua morte. Depois disso ainda permaneci três anos no
hospital.
O Mestre esperava que a epidemia perdesse força na primavera, mas, pelo
contrário, piorou ainda mais. Milhares de pessoas morreram, enquanto novos
recrutas chegavam de outras partes do país para ocupar seu lugar, apenas para
caírem doentes também.
O professor me interrompeu.
“Hoffman morreu também de febre recorrente? Só o conheço pela
reputação.”
“Não”, respondi. “O flagelo de meu Mestre foi um canhão russo de trinta e
seis libras.”
Em junho, Hoffman foi com a esquadra que zarpou rumo ao leste para
prosseguir na campanha contra a Rússia. Como havia uma escassez de médicos
para atender os soldados, fui autorizado a acompanhá-los a bordo do Courage,
construído por Chapman em Karlskrona e com capacidade para sessenta e
quatro peças de artilharia. Encontramos os russos a sul de Öland e trocamos
tiros antes de o inimigo decidir fugir com o vento pelas costas. Eu havia subido
no cordame, pois nunca vira uma batalha naval antes e não conseguira resistir à
tentação. Tinha ajudado o Mestre a espalhar serragem pelo chão para absorver
o sangue e impedir que escorregássemos na hora de atender os feridos, e
aproveitei a oportunidade num momento de desatenção dele. Estava tão alto
que podia ver o Courage inteiro e vi o exato momento em que a bala de canhão
chegou zunindo por cima do mar. Acertou nossa embarcação bem no alto do
costado, e, após o impacto, vi um corpo estraçalhado sair voando direto pelo
outro lado do casco em meio a uma nuvem de serragem queimada.
Foi esse o fim de Hoffman, e tanto eu quanto a tripulação ficamos gratos
pelo fato de a batalha ter acabado após essa única troca de tiros. Eu não teria
sido de grande serventia como cirurgião para um navio inteiro sem as
instruções do Mestre.
A esquadra voltou para Karlskrona, onde permaneci durante o resto da
guerra. A febre se agravou mais ainda. Fabricaram um imenso acampamento
com as velas dos navios, grande o bastante para abrigar cinco mil homens, e
agradecemos a Deus pelo outono de 1789 ter sido tão frio a ponto de ser
possível armazenar os mortos ao ar livre. Na primavera seguinte vimos menos
casos, e o pior parecia ter passado. Ainda assim fiquei lá para ajudar enquanto
fosse preciso. Uma vez enterrados os cadáveres do inverno, pudemos ir de casa
em casa recolher os mortos das camas onde estavam deitados desde que haviam
sucumbido à doença.

Quando terminei minha história, o professor Hagström ficou me observando


com um olhar firme.
“E o senhor então veio para Estocolmo. Estou certo ao supor que veio até
mim na esperança de prosseguir sua carreira em medicina?”
“Não posso negar.”
Hagström suspirou.
“Vemos muitos do seu tipo por aqui, Blix. Muitos, demais. Durante os anos
de guerra havia uma grande necessidade, e qualquer indivíduo com as duas
mãos era melhor para serrar ossos do que mão nenhuma. Só que agora não é
mais o caso. Veja só nosso hospital! Nós arrancamos a medicina e a cirurgia das
mãos dos artesãos e as transformamos em ciência.”
O professor se levantou, inflamado pelo próprio discurso, e foi se postar
junto ao cadáver.
“Pode me dizer o nome deste osso, Blix?”
Fui forçado a reconhecer que não.
“Qual é o melhor lugar para sangrar a artéria que passa por aqui?”
Mais uma vez, pude apenas menear a cabeça.
“Emmanuel Hoffman alguma vez lhe disse o que pensava em relação à
origem da febre?”
Diante dessa pergunta, fiquei animado por finalmente ter algo a dizer.
“O Mestre me disse que ela era causada por emanações de poças de água
parada e terrenos pantanosos.”
Hagström sorriu, mas seus olhos permaneceram tristes.
“Era isso que ele pensava. Nós hoje temos outra explicação. Infelizmente o
seu mestre pertencia à velha escola e era capaz de usar a faca para amputar os
membros de seus desafortunados donos, mas praticamente mais nada além
disso.”
Hagström olhou em volta e de uma prateleira, pegou um livro encadernado
em couro que estendeu para mim.
“O senhor compreende alguma coisa disto aqui?”
As letras eram conhecidas, mas não formavam nenhuma palavra cujo
significado eu entendesse. Os ombros de Hagström afundaram quando eu
disse isso a ele.
“Infelizmente não posso fazer muita coisa pelo senhor no momento, Blix.”
Mas então, com as sobrancelhas ainda unidas, ele pareceu se lembrar de alguma
coisa, e sua expressão se animou. “Espere aqui um pouco”, falou, saindo da sala
e me deixando com o morto.
Nessa hora eu peguei uma coisa, irmã. Confesso que me arrependi no
mesmo instante, mas bem quando estava colocando a mão de volta dentro da
bolsa para restituir o objeto roubado ouvi Hagström no corredor e o momento
se perdeu. Ele entrou com um pequeno folheto escrito numa língua que eu era
capaz de compreender.
“Homens piores do que o senhor já se tornaram cirurgiões competentes
mesmo sem conseguirem ler francês”, disse ele, e pôs o folheto na minha mão.
“Esse resumo eu escrevi por iniciativa própria para ajudar os estudos de meus
alunos. Se o senhor se esforçar, talvez consiga se qualificar para iniciar seus
estudos no ano que vem, ainda que eu não possa prometer nada.”
Hagström tornou a me examinar com uma expressão concentrada em seu
rosto inteligente e franco.
“Está com sangue no casaco, Blix. É seu?”
Fiz que não com a cabeça. Hagström deu um passo mais para perto e se
inclinou na minha direção.
“Seus olhos estão amarelados. Como tem vivido, Blix? Tem ingerido
bebidas fortes?” Fico vermelho, e Hagström tece a resposta de que ele precisava:
“Venha cá, Blix, dê uma olhada.” Ele suspendeu uma aba de pele do corpo do
homem morto e revelou uma massa fétida coberta por calombos. “Isto é o
fígado deste homem, e foi o que acabou com a sua vida. Se ele tivesse tido a
sensatez de beber com mais moderação, ainda estaria entre nós. Existem órgãos
no mesmo estado de destruição escondidos em incontáveis ventres desta
cidade, e eles arrastam homens para o túmulo feito ímãs. Que isso seja para o
senhor uma lição de temperança.”
A consternação deve ter ficado explícita no meu rosto porque os olhos dele
adquiriram uma expressão de empatia. De um dos bolsos do colete, ele sacou
um mealheiro bordado, e foi contando as moedas sobre a mesa até por fim
parecer mudar de ideia e simplesmente despejar todo o conteúdo.
“Leve isto, Blix, e veja se cuida de si mesmo para eu ter o prazer de vê-lo na
minha sala de aula na primavera que vem.”
Eu fiquei sem palavras. Em cima da mesa devia ter pelo menos vinte daler!
Aquele tesouro superava os meus sonhos mais desvairados. Recolhi as moedas e
as guardei nos bolsos enquanto fazia mesura após mesura. As lágrimas faziam
meu rosto arder, em parte por gratidão, mas principalmente por vergonha por
ter roubado daquele samaritano, daquele bondoso cavalheiro cuja boa vontade
eu já tinha recompensado tão mal. Cheguei a ver seus olhos brilharem em
reação à minha emoção. Ele estendeu a mão, que eu segurei e beijei.
Quando eu já tinha quase saído pela porta, ele ainda perguntou, com um
tremor na voz:
“Uma última coisa, Johan Kristofer. Quantos anos você tem?”
“Neste inverno farei dezessete, se Deus quiser”, respondi, com a mesma voz
hesitante.
20

IRMÃ QUERIDA, VÊM aí dias e noites maravilhosos de abundância e alegria! Dei


adeus a minhas noites sob as árvores na Campina e em meio aos túmulos
debaixo da torre de Catarina, e, em troca de um punhado modesto das moedas
de Hagström, aluguei um quarto no bairro de Pomona, no Beco do Alfaiate. A
vista me tirou o fôlego. Das janelas do sótão, os telhados de cobre e telhas se
estendem em todas as direções e reluzem ao sol qual ouro escuro até onde o
olhar alcança. Bem no alto dessa cidade dourada eu tinha enfim minha própria
cama, que os raios do sol tocavam bem depois de os becos já terem sido
tomados pelas sombras. À noite, as luzes da rua piscavam para mim de seus
nichos profundos e, quando eu erguia os olhos, as estrelas pareciam mais
próximas do que antes. Junto ao aquecedor de alvenaria, abri um espaço para
Sylvan. Diante de uma garrafa, debatemos nossa nova situação e o melhor
modo de tirar proveito dela até que eu iniciasse meus estudos no Seraphim.
Interrompíamos um ao outro, gargalhávamos, dávamos tapinhas nas costas um
do outro e brindávamos.
Logo chegamos a um consenso quanto à melhor forma de administrar nossa
riqueza — os meus vinte daler, e os quatro que Rickard conseguira
emprestados com Clemens Montell. É claro que não durariam para sempre,
então cada um desses daler precisava se multiplicar.
“Para ganhar mais, primeiro precisamos dar a impressão de sermos
exatamente algo que não somos: dois filhos de famílias abastadas, maltratados
por pais avarentos, mas que no futuro herdarão uma fortuna. Em outras
palavras, rapazes de valor, para quem cada empréstimo parece um investimento
sensato para o futuro.”
Com essas palavras, Sylvan me pegou pelo braço e nos dirigimos a um
alfaiate ali perto. Levamos um punhado de dinheiro, e o restante foi
cuidadosamente escondido no meu colchão de palha. O dono da alfaiataria no
início nos tratou com rispidez, mas logo passou a nos bajular quando fizemos
tilintar as moedas. Passamos horas revirando armários e gavetas em busca de
roupas da melhor qualidade, mas suficientemente usadas para justificar um
preço razoável. Experimentar todas elas foi um prazer que não esquecerei tão
cedo. Eu e Sylvan nos passamos por nobres, batendo palmas e fingindo elogiar
um ao outro em francês enquanto exibíamos nossas figuras diante do espelho.
“Magnífico, monsieur Blix!”
“Não mais do que o senhor, Sylvan Sua Alteza.”
Escolhemos coletes bordados de vermelho e roxo, um casaco de punhos
dourados cada um, camisas novas e calças na altura dos joelhos feitas de couro
macio, meias compridas e sapatos de couro com fivelas vistosas. Sylvan
encontrou uma peruca de crina de cavalo em condição bem melhor do que a
sua vermelha, enquanto eu preferi continuar usando meus cabelos louros num
rabo comprido, só que agora cuidadosamente alisados com um pente de osso e
presos na nuca por uma fita de seda. Em pé lado a lado diante do espelho, mal
dava para acreditar em nossos próprios olhos. No calor do momento,
abraçamo-nos. Sylvan passou um bom tempo pechinchando o preço
exorbitante que nos foi cobrado. Deixamos então a quantia sobre a mesa do
alfaiate e fomos embora.
Adeus não só aos farrapos sujos e às noites ao relento, mas também ao tipo
de estabelecimento que costumávamos frequentar, onde bêbados e
desqualificados vomitavam uns nos outros, contraíam sífilis trocando
prostitutas e se engalfinhavam por qualquer provocação. Em vez disso,
passamos a ir ao Mercado, a mais renomada das adegas da cidade, e a
frequentar bailes nos palácios. É engraçado como todo mundo parece disposto
a ajudar quem não precisa de nada, mas fazem de tudo para evitar a
necessidade evidente. Logo nos tornamos íntimos de filhos de condes,
príncipes burgueses e membros de guildas, falávamos com eles como se
fôssemos irmãos, e nos esforçávamos para sermos sempre agradáveis,
espirituosos e divertidos. Irmã, você se lembra de quando lhe contei sobre o
primeiro baile no Morro do Castelo, quando alegremente nos deixamos ser
manchados pelo vinho da alta sociedade que nos observava do mezanino? Pois
então, finalmente tínhamos pleno acesso a eles, e podíamos também
demonstrar horror diante da facilidade com que a ralé se deixava humilhar em
troca de um gole de vinho. Prometemos a nós mesmos nunca mais pagar um
tostão por nada do que comíamos ou bebíamos, e procurávamos a companhia
de quem se sentia honrado em nos festejar.
Assim passamos muitas noites de verão, e quando já tínhamos nos tornado
presença constante nesses eventos, ansiosamente procurados sempre que nossa
ausência era detectada, começamos a pedir emprestado. Muitas vezes
escrevíamos notas promissórias para os empréstimos, com assinaturas que
tínhamos ensaiado na mesma mesa e com a mesma pena gasta que uso para
escrever agora. Nenhum de nossos novos amigos demonstrou a menor
hesitação. O dinheiro para eles não tinha valor, embora nossa amizade e nossa
companhia tenham se valorizado mais ainda. À noite, esvaziamos nossos bolsos
sobre o colchão no Beco do Alfaiate e vimos nossos vinte e quatro daler se
transformarem em trinta, depois no dobro disso. Mantínhamos um registro de
nossas dívidas, e separávamos uma parte do lucro de cada noite para pagar as
mais antigas. Em pouco tempo passamos a gozar de mais confiança ainda e, se
alguém demonstrava a menor hesitação que fosse, podíamos facilmente
recorrer a um benfeitor anterior para nos servir de garantia. Assim, as moedas
no colchão foram se multiplicando: cinquenta viraram setenta, e setenta,
noventa.

“Meu caro Kristofer Blix, amado irmão e mui estimado amigo”, disse Sylvan
certo dia quanto estávamos voltando de um passeio ao sol pelo Cais. “Por acaso
você já ouviu falar em ombre?”
“Claro”, respondi. “É um jogo de cartas, não é? Parecido com o faraó?”
“Sim e não. O faraó é um jogo em que a sorte escolhe o vencedor. No
ombre, ou l’hombre, para chamá-lo pelo nome correto, o que decide o
desfecho é a perícia, e a Fortuna não tem voz.”
“Por que esse interesse por jogos, Rickard?”, perguntei deitado na cama,
saboreando o calor como um gato de fazenda.
Ele então me contou que muitos cavalheiros tinham obsessão pelo jogo e
que muito dinheiro passava de mão em mão todas as noites, em salões aos
quais a polícia não tinha acesso. Na mesma hora fui contra a ideia de arriscar
nosso dinheiro, já que a probabilidade de perder parecia muito maior do que
qualquer chance de ganhar.
“Calma, Kristofer, você está tirando conclusões precipitadas!”, protestou
Sylvan. “Há partidas e partidas. Encontrei Block no Pátio Ventoso... Você se
lembra dele, da ópera na semana passada, certo? Ele me falou sobre um evento
em especial organizado por seu amigo Carsten Vikare. Vikare convida pessoas
de todos os tipos segundo três critérios: ricos, pouca tolerância ao álcool e
ingenuidade de caráter. Há cinco jogadores por mesa, mas quatro estão
mancomunados contra o convidado, que portanto não tem outra saída que não
perder tudo. Eles chamam esse pobre coitado de Coelho, pressupondo que os
demais são os cães de caça. A comunicação é feita sem palavras, sempre por
meio de gestos e sinais. Todos os envolvidos no esquema dividem os lucros
com o anfitrião, que fica com uma parte em dobro.”
“Bem, e o que isso tem a ver conosco?”, falei, mas não pude negar que meu
interesse tinha sido despertado.
“Ofereceram para mim um lugar vago na mesa. O risco é mínimo, e Block
garantiu que basta entender os fundamentos básicos do jogo. Se o Coelho for
gordo o bastante, Kristofer, nós provavelmente conseguiríamos dobrar nossa
fortuna em uma noite. Duzentos daler!”
Foi como se a minha barriga tivesse sido subitamente preenchida por um
enxame de abelhas. Sentei-me na cama tão depressa que fiquei tonto. Peguei
uma garrafa de vinho e enchi dois copos. Fizemos um brinde.
“A Sylvan e Blix!”, exclamei. “Jovens, belos e em breve mais ricos do que
nunca!”
“A Sylvan e Blix!”, respondeu ele. “E rumo a duzentos ou mais!”
No mesmo dia saímos para comprar um baralho e jogamos várias partidas
de ombre segundo as regras que Carl Gustav Block havia descrito
sumariamente para Rickard. Então vestimos nossas roupas elegantes e seguimos
a pé até a Praça Velha e a diversão da noite. O jogo não era particularmente
complicado. De quarenta cartas, cada jogador recebe oito. Cada um aposta
com base em quantas rodadas de oito imagina ganhar. A maior aposta escolhe
o naipe que será o trunfo.
“Como na vida”, disse Sylvan, e secou seu copo.
21

NESSA NOITE, UMA quinta-feira, empoamos os cabelos e colocamos cada um


uma gravata nova. Depois nos inspecionamos com um olhar crítico, limpamos
pelos e partículas de golas e lapelas, e enfim esvaziamos o tesouro do colchão.
Às sete da noite, os jogadores deveriam se reunir num salão que Carsten Vikare
havia reservado atrás do Terra Nova, na Passagem da Forquilha, antes um bar,
mas agora aberto apenas para marinheiros e alguns clientes convidados. O
campanário da Igreja de Nicolau bateu quinze para as sete quando pisamos as
pedras do calçamento do Beco do Alfaiate. O calor era intenso, e o ar
tremeluzia. A carga que Sylvan levava consigo nos deixava com o coração na
boca. Um ataque vindo das sombras recompensaria o criminoso com o maior
lucro de sua vida.
Mas nos preocupamos à toa. A caminhada pela Praça do Ferrageiro e dali
até o palácio transcorreu sem problema algum. Em Terra Nova, Block nos deu
as boas-vindas e nos apresentou a Vikare, que não pôde evitar uma piscadela
cúmplice para Sylvan e, com um leve movimento de cabeça, apontou o
Coelho, que aparentava ser um alemão vestido com um traje caro e com uma
corrente de ouro no colete. Serviram vinho enquanto as mesas eram
preparadas, e, após bebermos à saúde uns dos outros, fomos levados ao salão
por uma mulher que se curvou numa mesura. Bem na hora em que eu estava
prestes a cruzar a soleira, senti a mão de alguém no peito, e quando ergui os
olhos, surpreso, constatei que era Carl Gustav Block balançando a cabeça. Ele
sussurrou no meu ouvido:
“Só os jogadores, por gentileza. Não queremos afugentar nossa presa
olhando as cartas dele por cima do ombro.”
Cruzei olhares com Rickard, que já estava dentro do salão, prestes a se
sentar na cadeira indicada.
“Não se preocupe, Kristofer. Me espere no Santuário. Encontrarei com você
assim que a partida terminar.”
Ele me deu alguns xelins. Não pude fazer nada senão dar de ombros, desejar
sorte aos jogadores e virar as costas.

No Santuário, em frente ao prédio do banco, as festividades estavam no auge.


Um homem corpulento e de nariz vermelho agitava seu arco vermelho acima
de um violoncelo, acompanhado por um careca que dedilhava uma flauta. Os
sons combinavam. Peguei um lugar à mesa e constatei que não me faltava
companhia. A música era mais do que suficiente. Empurrei por cima do tampo
uma moeda de doze xelins, pedi uma cerveja Danziger e solicitei à garçonete
que ficasse de olho na minha jarra e que tornasse a enchê-la assim que ficasse
vazia.
Mas fato é que eu estava com uma disposição estranha. Quando bebo,
tenho tendência a ficar exageradamente alegre, e também tonto como se
estivesse rodopiando numa dança. Dessa vez foi diferente. Lembrei-me das
excrescências que o professor Hagström havia me mostrado no ventre do
homem morto e olhei em volta para meus irmãos e irmãs de copo, agora nem
belos nem engraçados. Ao sorrir, eles deixavam à mostra os cacos marrons dos
dentes, seus olhos eram vesgos de cobiça e luxúria. No espelho atrás de um
nicho na parede vi meu próprio aspecto, ainda jovem, pouco depois de
alcançar a idade adulta, com a pele branca e os membros finos. Eu ainda não
era um deles, mas naquele instante me ocorreu que decerto logo seria.
Nenhum feitiço fora lançado sobre mim para me proteger da deterioração da
carne. Meu nariz também iria inchar feito um cacho de uvas, minha barriga
começaria a se distender e a lutar contra alguma excrescência letal causada pela
bebida forte.
Jurei então que aquele não seria o meu destino. Eu pegaria meu quinhão
dos duzentos daler e lhe daria um destino diferente. O dinheiro bastaria para
reembolsar o que Hagström tinha me dado, manter um teto humilde sobre
minha cabeça até passada a primavera, pagar um professor que me ensinasse
francês para que eu pudesse acessar os mistérios dos guias médicos, e pagar
jantares e bebidas a meus colegas estudantes durante nossos esforços para
absorver os ensinamentos de Linné, Scheele e Acrel. Eu dedicaria minha vida a
ajudar tanto ricos quanto pobres; não exigiria pagamento algum de destituídos
e párias em troca de atendimento. Na próxima guerra que aportasse em nossas
terras, meus irmãos e eu manteríamos as epidemias e a morte à distância. Os
órfãos não precisariam mais cavar covas no chão gelado para os próprios
parentes. Quando eu ficasse mais velho, tomaria uma esposa e colocaria alguns
filhos no mundo. Seria um bom pai, não ríspido e indiferente, nem bêbado e
violento, sem nunca bater, sem nunca açoitar. Meus filhos crescerão sem que
lhes falte nada.

Acordei de meu devaneio quando um grupo que havia começado uma dança
em fila caiu por cima da minha mesa. Devia estar ali sentado por mais tempo
do que me dera conta, porque boa parte dos clientes já tinha ido embora.
Perguntei as horas para um homem de cuja corrente do relógio pendia um
distintivo de policial, e ele respondeu com uma voz arrastada que era meia-
noite. Nada de Sylvan ainda. Talvez ele tivesse voltado para o Beco do Alfaiate
pensando que eu já teria me cansado e ido para casa. Mas não havia sinal
algum dele em nossa casa. Abri a janela de par em par e me debrucei para fora
na esperança de me refrescar com a brisa. Acima da baía, a lua brilhava em
soberana majestade, sua corte formada pela poeira das estrelas, tudo
perfeitamente refletido na água parada. Afundei na cama e fiquei encarando
essa visão maravilhosa até ser totalmente impossível continuar de olhos abertos.

Acordei encharcado de suor e com a sede de um marinheiro naufragado. Não


tinha como avaliar que horas eram, mas a lua já estava bem avançada em seu
trajeto. Apurei os ouvidos no escuro para tentar detectar a respiração de
Rickard e tateei o chão com o pé, mas estava sozinho. Levantei para pegar o
balde d’água na escada e acendi um toco de vela para não cair de cabeça
enquanto descia até o outro andar. Foi na escada que ouvi os ruídos, mas não
consegui discernir se eram de uma pessoa ou de um animal. Somente quando
cheguei lá embaixo vi as costas trêmulas de Rickard Sylvan. Ele chorava
descontroladamente, com o rosto afundado nas mãos. Quando se virou, vi que
as lágrimas haviam riscado o pó de arroz da face. Os cabelos da peruca estavam
arrepiados, e as lindas roupas todas sujas. Levei muito tempo para conseguir
fazê-lo falar comigo, e só consegui depois de pousar a vela no chão, passar o
braço à sua volta e o ninar até ele parar de tremer e os soluços cessarem.
“Era eu, Kristofer”, sussurrou ele. “O Coelho era eu.”
Eles nos trapacearam, minha irmã. Carsten Vikare, Carl Block, seus
companheiros e o alemão, que era de Estocolmo mesmo assim como todos
nós. Trapacearam porque são iguaizinhos a nós. No meio de tantas artimanhas
que fizemos com o mundo, findamos nos tornando vulneráveis também,
acreditando sermos os únicos capazes de usar a astúcia para pôr as mãos num
ouro que não era de nosso merecimento. Aqueles jogadores não eram os ricos
filhos de burgueses por quem se faziam passar. Eles eram como nós, nascidos
na sarjeta, e assim como o lúcio de dentes afiados engole a perca deliciosa, nós
e nossos cem daler nos revelamos uma suculenta iguaria. Rickard foi apostando
todo o nosso dinheiro pensando que isso fazia parte da trapaça, mas quando a
partida acabou, foram nossas moedas que dividiram ao som de risadas
zombeteiras. Quando ele protestou, espancaram-no e jogaram-no na rua.
“Kristofer” disse Sylvan, encostando a testa no meu ombro. “Dessa vez
estamos perdidos. Quando as promissórias vencerem, vão nos jogar para
sempre na prisão dos endividados. Só seremos libertados quando estivermos
velhos. Nossa sina será viver de trabalhos forçados. Vamos passar o resto da
vida acorrentados ao banco da manufatura com o pescoço marcado pelo cinto
do supervisor.”
Fiquei calado. Bem lá no fundo, todo meu ser se esgoelava. Quando o toco
de vela se apagou, minha imaginação criou sua própria luz na escuridão e eu vi,
como no sonho que tinha tido no Santuário, a névoa se fechar em torno da
terra prometida do meu futuro.
22

FICAMOS NA ESCADA até o amanhecer. Com a luz da manhã, a calmaria da


desesperança que se abatera sobre nós se rompeu, e subimos correndo para o
quarto. Às pressas, juntamos os papéis nos quais havíamos anotado nossas
dívidas, e sua leitura foi um mau presságio. Muitas das notas promissórias que
exibiam nossas assinaturas estavam próximas de vencer. Se não pagássemos,
pelo menos em parte, nossos credores ficariam furiosos. Logo começariam a
conversar entre si, chegando à conclusão de que éramos pilantras que
finalmente haviam juntado o suficiente para fugir com o dinheiro. Um ou mais
de um procuraria os tribunais, mostraria as promissórias e exigiria ajuda das
autoridades para reaver o dinheiro. Os casos se multiplicariam, a soma total se
tornaria conhecida, e nós seríamos procurados com urgência cada vez maior.
“Precisamos ir embora, Kristofer” sussurrou Sylvan com os olhos cheios de
lágrimas. “E logo, antes que descubram nosso paradeiro.”
“Mas embora para onde?”
“Precisamos nos separar e ir em direções diferentes. Tanto os guardas na rua
quanto os homens da polícia estarão de olhos abertos para identificar eu e você
pelas roupas elegantes. Separados, nossas chances melhoram.”
“E depois? Não podemos ficar longe para sempre.”
“Nós precisamos sair da cidade, Kristofer. Você entende isso, não entende?”
Com o coração pesado, pensei em tudo que tinha sacrificado para ir de
Karlskrona até lá, nas estradas onde gastei as solas dos sapatos, nas caronas em
diligências e carroças que paguei com serviços que preferiria não ter prestado.
Sylvan, que tinha vivido desde sempre ali, para quem a vida na cidade grande
era simplesmente um presente do destino, podia estar disposto a deixar
Estocolmo, mas para mim isso significava o fim de um sonho pelo qual eu
vinha lutando a vida inteira. Rickard nunca tinha visto a pobreza da zona rural
e sua miséria tacanha. Eu disse isso, mas ele não quis escutar.
“Vou sair pelo Portão do Fortim e vou para Fredrikshald, e se Deus quiser
vou refazer a vida lá antes do fim do verão.”
Empacotamos nossos parcos pertences, eu na mesma bolsa com a qual
chegara, Sylvan numa trouxa improvisada com uma camisa. Antes de o galo
cantar e de o sol nascer por completo, já estávamos no beco lá embaixo.
Nenhum de nós dois achou fácil colocar em palavras o que estávamos sentindo.
Demos um último abraço, ambos comovidos até as lágrimas, e então nos
separamos: Sylvan rumo ao norte, para tentar extrair do primo alguns xelins
para a viagem, enquanto eu tomei a direção do mar para encontrar o
comerciante de roupas no Beco da Chibatada. Ele só apareceu no meio da
manhã e fingiu não reconhecer nem a mim, nem as roupas que eu estava
usando. Como todo comerciante, parecia ter um sexto sentido para o desespero
do cliente, e logo percebeu que eu não estava com disposição para negociar.
Troquei as peças caras que tínhamos comprado por artigos mais modestos: uma
túnica grosseira digna de um ajudante de fazenda, um casaco de lã com
remendos nos cotovelos, uma calça e um par de sapatos fabricados para durar
uma vida. O chapéu troquei por um gorro tricotado. Ele fingiu surpresa
quando lhe perguntei quanto pagaria pela diferença entre as peças.
“Dinheiro em troca destes farrapos manchados? Meu rapaz, você deve estar
brincando.”
No fim, me deu alguns xelins só para se ver livre de mim. Puxei o gorro
mais para baixo para esconder os cabelos, saí para o Cais e olhei em volta.
Para onde poderia ir agora? Não podia mais dar as caras na Cidade-entre-as-
Pontes. Um encontro desafortunado num beco estreito e seria o fim da minha
farsa. Eu tinha passado tempo demais andando pela Campina também. A Ilha
Sul parecia minha única alternativa viável, lá eu dificilmente ficaria sozinho no
meu infortúnio. Fui seguindo a linha reta do porto em direção à Eclusa, passei
pelas quatro grandes rodas de moinho que domavam a correnteza a correr por
baixo da rua, e segui na direção das pontes levadiças.

Diferentemente do que eu havia imaginado, a vida de um andarilho sem


vintém era pior na Ilha Sul do que em qualquer outro lugar da cidade; o fato
de haver tantos párias e indigentes por toda parte não denunciava o contrário,
mas era justamente a causa disso. Nos bares e adegas, os funcionários tinham
desenvolvido uma intuição aguçada para detectar quem não tinha como pagar.
Sabiam na mesma hora quem havia entrado no bar quentinho para catar as
migalhas e restos de bebida e tentar descansar num canto por alguns instantes.
Fui enxotado sem dó de alguns lugares e tive meu acesso negado a outros
quando não pude mostrar o dinheiro na entrada. Isso significava que todos os
recantos, todos os espaços, ficavam ocupados à noite, e nos montes de feno e
celeiros, alguns criados eram destacados para ficar de vigia. Comecei a passar as
noites debaixo das árvores em Danto ou nos arredores do Portão de Inverno.
As moedas recebidas do comerciante de roupas bastavam para comprar restos
de cozinha e um pão duro que eu amolecia com água e comia como se fosse
papa. Ninguém podia pedir dinheiro em troca da água da baía. Em suas ondas
eu podia lavar o rosto e as mãos e, quando precisava de um lugar fresco para
descansar, preparava uma espécie de cama nos galhos dos salgueiros que se
espichavam sedentos água adentro.

Eles me pegaram certa noite, querida irmã, quando eu já tinha caído no sono.
Como tantas vezes, vi seu rosto em meus sonhos, logo transformado no esgar
zombeteiro de alguém que me olhava de cima. Uma bota pesada tinha sido
cravada no meu ombro e me segurava imobilizado no chão, impotente.
Aproximaram um lampião do meu rosto, e o gorro foi arrancado da minha
cabeça.
“Ora se não é Kristofer Blix! Desejo-lhe boa noite, porque agora seu
descanso acabou.”
Tentei me desvencilhar da bota, sem sucesso.
“Nunca ouvi falar em nenhum Blix. Meu nome é David Jansson, eu devo
ter me perdido quando estava voltando do Último Xelim e deitei aqui para
esperar o dia amanhecer.”
“Ah, é mesmo? E o seu pai, como se chama?”
“Jan Davidsson, um jornaleiro que fabrica latão na Paróquia de Edviges
Leonor, e minha mãe se chama Elsa Fredrika, nascida Gudmundsdotter.”
Mencionei a igreja mais distante em que consegui pensar, na esperança de que
acreditassem em mim sem que os fatos fossem verificados. Estava enganado.
“Bem, vejam só. E onde fica a casa dos seus pais?”
“Para lá do Morro do Lodaçal, bem ao lado dos moinhos.”
“Tenho certeza de que eles ficarão felizes ao saber que você teve companhia
para atravessar bairros tão perigosos.”
Fui segurado com força pelas axilas e posto de pé no chão, ainda contido e
sem poder me desvencilhar e correr para o meio da vegetação. Eram três
homens. O que tinha falado era corpulento e tinha as pernas curtas, a boca
cheia de tabaco e traços que não eram tão fáceis de discernir por baixo da
sujeira. Ele foi na frente com o lampião enquanto os dois companheiros,
ambos sem dizer nada, me escoltavam um de cada lado. Eu não conseguia vê-
los muito bem, pois recebia um tapa espalmado e ardido no pescoço sempre
que tentava me virar em alguma direção. Quando eu cambaleava, um deles me
beliscava com dedos que pareciam pinças. O hálito de um deles me deu ânsia
de vômito quando sibilou no meu ouvido:
“Ande direito, seu maricas, ou eu esgano você.”
Mal tínhamos passado pela Ucharia quando me dei conta de estar num
beco sem saída. Eu iria pagar com uma surra caso esperasse chegarmos ao
Morro do Lodaçal antes de ser forçado a confessar que não conhecia ninguém
lá, muito menos meus pais.
“Esperem. Eu menti. Sou a pessoa que estão procurando.”
O homem do lampião se virou.
“Como você é o último de uma dúzia de moleques maltrapilhos que
tivemos de arrastar pela cidade pelo mesmo motivo ao longo da última semana,
essa com certeza é uma boa notícia.”
Ele fez um sinal, e então uma dor terrível explodiu diante dos meus olhos e
minha bochecha foi bater numa das pedras do calçamento. Quando caí, ouvi
uma risada que mais parecia o relincho de um cavalo, e vi de relance um
porrete sujo de sangue antes de perder a consciência e apagar.

Acordei com o forte choque de sais de cheiro debaixo do nariz. Estava sentado
numa cadeira, e soltaram meus ombros assim que consegui manter o
equilíbrio. Minha cabeça latejava, e um ferimento na parte de trás da cabeça
ardeu ao toque. O recinto foi se revelando à medida que minha visão clareava.
Tapeçarias pendiam de paredes de pedra, e sobre o piso de madeira estavam
dispostos lindos tapetes. Não havia janelas. A cadeira estava posicionada no
centro do espaço em frente a uma escrivaninha elegante de pernas recurvadas.
Do outro lado da escrivaninha havia um cavalheiro sentado numa cadeira de
braço. Cada vez mais incomodado, comecei a notar que minha cadeira não
tinha sido posta diretamente em cima do tapete, mas sim sobre um pedaço de
tecido manchado estendido debaixo de mim. O homem notou a direção do
meu olhar e disse:
“Você está estranhando o lençol, certo? É para que não sujem meus tapetes
turcos com diversas impurezas. Muitos convidados que se sentam onde você
está agora não conseguem se conter, Kristofer Blix. Aqueles que não sangram
perdem fluidos de outros modos.”
Ele sorriu francamente quando recuei, alarmado.
“Você parece assustado, Blix, o que é compreensível, mas o seu destino
agora está em parte nas suas próprias mãos. Não esqueça disso quando me
responder. Se não para o seu bem, então pelo bem do meu tapete.”
Ele estava usando roupas caras, e os pelos que lhe cobriam o rosto eram tão
curtos quanto os cabelos da cabeça, que formavam um bico de viúva
pronunciado na testa. Os olhos eram de um azul gélido. Eu estimei sua idade
em mais de quarenta anos. Sua voz era rouca.
— Eu me chamo Dülitz. Já ouviu falar de mim?
Fiz que não com a cabeça. Dülitz estendeu a mão para uma moringa do
outro lado da escrivaninha e se serviu uma bebida num copo de vidro — água,
a julgar pela cor.
“Você passou um tempo delirando, Blix, e intuí pelo seu sotaque que você
não é de Estocolmo. Onde fica a casa da sua família?”
“Em Karlskrona.”
Ele assentiu.
“Então nós temos uma coisa em comum, que é estarmos ambos distantes do
nosso local de nascimento.” Ele bebeu sua água. Com sede, pude apenas
assistir. “Durante minha infância na Polônia eu trabalhava com vidro, Blix.”
Ele falou como se meu nome tivesse um gosto ruim. “Fazia dragões, leões, reis,
quimeras e bailarinas surgirem das brasas e se transformarem em obras de arte
ao esfriar. Vim para cá em busca de abrigo quando o meu lar se tornou um
estado fantoche dos russos, apenas para descobrir que aqui pessoas como eu
eram proibidas de praticar seu ofício. Quem decretou isso foi o próprio Rei,
sem dúvida para aumentar sua popularidade com as guildas de artesãos. Mas
como esses pobres diabos que cortam vidraças para janelas poderiam pensar
que eu estava invadindo o seu território é algo que não compreendo. Por sorte
eu já era rico, e justamente quando estava analisando minhas alternativas, certa
noite alguém bateu na minha porta bem tarde. Era um rapaz, não muito
diferente de você. Pedi a ele que entrasse, ofereci pão e vinho, e ele por fim
disse o que queria. ‘Preciso de um empréstimo’. Aquilo me espantou. ‘Tenho
algumas moedas sobrando, mas por que o senhor veio me procurar?’ ‘Bem, o
senhor é judeu, não é?’ Na sua língua, Blix, há centenas de anos um judeu é
alguém que empresta dinheiro a juros. O fato de eu nunca na vida ter
endividado a mim mesmo ou a qualquer outra pessoa não teve a menor
importância para o rapaz. Eu era judeu, e assim sendo qualquer um podia me
procurar e pegar dinheiro emprestado, e isso sem qualquer demonstração de
gratidão, pois emprestar a juros supostamente fazia parte da minha natureza.”
Enquanto falava, Dülitz pegou um cachimbo numa gaveta, encheu-o de tabaco
e o acendeu numa vela. “Meu visitante, ávido para incorrer em dívidas, não se
mostrou tão ansioso para reembolsar o empréstimo que eu tinha feito a ele por
pena. E foi quando me dei conta de que tinha encontrado minha nova
profissão.”
Uma sombra cobriu seu rosto.
“Eu não sou um simples contador de feijões que administra os negócios por
meio de taxas de juros, Kristofer Blix. Eu comercializo outros artigos. Quando
a dívida do rapaz se tornou considerável, percebi que ele me pertencia e que eu
podia fazer com ele o que bem entendesse, contanto que o destino que lhe
escolhesse fosse preferível a ser jogado nas celas frias e úmidas da prisão dos
endividados. Antigamente eu moldava o vidro em formatos que me
agradavam. Hoje moldo vidas da mesma forma.”
Com essas palavras, ele pousou de lado o cachimbo que já se apagava, e de
outra gaveta tirou uma pasta de couro que abriu diante de si e cujo conteúdo
foi revelando devagar, embora nem por um instante sequer tenha tirado os
olhos dos meus.
“Reconhece isto aqui, Blix?”
Eram as notas promissórias, todas com a minha assinatura e cujo valor
somado ultrapassava cinquenta daler.
“Eu comprei suas dívidas, e agora você também me pertence, Kristofer Blix,
tanto no corpo quanto na alma.”
Levei um bom tempo para recuperar a voz.
“O que o senhor vai fazer comigo?”, indaguei.
Ele respondeu com uma indiferença ensaiada.
“O que você sabe fazer? Quais são suas habilidades e talentos? Estabelecer
isso é o objetivo desta nossa primeira conversa. Vamos estabelecer seu valor,
para mim.”
Eu disse tudo a ele. O que mais poderia fazer? Contei sobre os anos em
Karlskrona, recitei tudo que aprendera e tudo que sabia, e torci para isso bastar.
Dülitz mergulhou uma pena branca reluzente num tinteiro e anotou algumas
das palavras que pelo visto eram dignas de registro.
“Só isso?”, perguntou, quando eu não tinha mais nada a dizer. “Então. Toda
noite, quando soar a meia-noite, você vai aparecer diante da minha porta. E
assim será até eu ter decidido a melhor maneira de usá-lo.”
Nesse momento senti um alívio que jamais sentira antes, só de pensar em
poder sair daquele recinto abominável, ainda que temporariamente, e respirar
ar puro, lavar o pânico da minha goela e sentir o vento no rosto.
“A ideia de fugir de mim será a primeira que vai lhe ocorrer, e quero,
portanto, frisar que vou encontrar você e... Bem, vamos deixar isso em
suspenso, já que você até agora conseguiu manter o lençol limpo. Rask! Por
favor, leve Blix até a porta.”
Fui agarrado pelo colarinho e puxado até ficar de pé. O homem foi
obrigado a me segurar, pois minhas pernas não me sustentaram, e continuou
me segurando até eu cambalear porta afora. Mesmo assim, dei um jeito de
fazer uma última pergunta por cima do ombro:
“O que aconteceu com meu amigo Rickard Sylvan?”
Dülitz respondeu sem alterar a expressão do rosto.
“Nós o encontramos bem antes de encontrar você. Muitas das manchas
nesse lençol são dele. Apesar dos meus esforços, nossa conversa não foi de
grande interesse para mim e por fim concluí que o valor dele não era maior do
que as suas dívidas. Dei vinte dias para que pague o que me deve, e depois
disso vou deixá-lo a cargo dos tribunais. Seu amigo vai cumprir uma ou duas
décadas de trabalhos forçados e morrer aos poucos na manufatura.”
Em frente à casa de Dúlitz, depois de jogarem minha bolsa no chão de terra
batida, fiquei de quatro e vomitei na sarjeta até ver o amarelo da bile.
23

EU ME LEMBRO desse dia com grande pesar, querida irmã. Na rua onde despejei
todo o conteúdo do meu estômago, levantei a cabeça, limpei a boca, e pude ver
que a casa de Dülitz ficava perto da Praça Sul, e que os seus capangas não
tinham precisado me levar muito longe do lugar onde tinham me golpeado
com o porrete.
Não sabia o que fazer quando essa noite horrível terminasse e mais um dia
amanhecesse sobre Estocolmo. Não tinha como saber que destino Dülitz
escolheria para mim, e quando vi estava descendo sem rumo a rua do Chifre
até os arredores da cidade, parando só ao me deparar com o Monte de Ansgar.
A rua estava deserta. Embriagados, um ou outro homem ou mulher se
esgueirava rente às muralhas após as aventuras da noite no Jardim dos
Carpinteiros. Meu caminho me fez dar a volta no sopé do morro, e cheguei
então diante das colinas que se erguem acima da Angra dos Peleiros. Comecei a
escalar, como que movido por um desejo de me afastar de qualquer moradia
humana. Do alto da colina, Estocolmo se espalhava a meus pés. Quando
acompanhei o contorno da cidade por cima da Ilhota do Espírito Santo ao
norte e até a ponte para a Ilha do Rei, senti uma pontada de culpa ao
vislumbrar os muros do Seraphim. Aquilo foi demais para mim. Me joguei
sobre as pedras e fiquei ali sentado um bom tempo, braços em volta dos joelhos
e cabeça baixa.
O clima da semana anterior fora ameno, e agora a pressão criada pelo calor
parecia estar se dissipando. Nuvens escuras surgiram vindas do arquipélago.
Ouvi trovoadas ao longe, chamados ribombantes ecoando pela paisagem.
O objeto que eu havia subtraído ao professor Hagström continuava dentro
da minha bolsa. Desatei o cordão, peguei o produto furtado e o suspendi na
luz do início da manhã. Era um pequeno frasco de vidro transparente. Dentro
dele havia um lagarto suspenso em líquido, cuja cauda repousava no fundo.
Hoffman também possuía objetos como aquele e os protegia com cuidado,
uma vez que seu conteúdo era impedido de se decompor por estar submerso
em álcool. O Mestre talvez mantivesse seus frascos sob vigilância, mas aquele
ali agora era meu. O lagarto era de uma espécie que eu nunca tinha visto.
Tinha o corpo grosso, preto e escorregadio, e uma boca aberta com a língua
dependurada. Nas costas, pintas amarelo-claras formavam um desenho
intrincado. Os olhos negros, redondos e parados como seixos pareciam me
estudar com malícia pelo vidro, com um ar de desafio.
Você é um desgraçado covarde, Kristofer Blix. Roubou a mim sem motivo,
porque não se atreve a fazer nada comigo.
Rompi a cera que lacrava o frasco, desfiz as voltas do barbante que segurava
a tampa, e finalmente o abri. O cheiro era familiar. Além do aroma medicinal
do álcool, havia também alguma outra coisa, algo ao mesmo tempo pungente e
doce. Com os dedos, pesquei o lagarto lá dentro, escorregadio e inerte.
Estremeci ao contato da pele morta, inteiramente lisa e sem nenhuma escama.
Joguei o animal na encosta do morro, levei o frasco à boca e bebi até não
sobrar nada.

O efeito da embriaguez correu por minhas veias. Beber não é novidade para
mim, minha irmã, especialmente nesses meses transcorridos desde que pus os
pés na capital, mas nesse dia a bebida me afetou de um jeito inédito. Como
pela primeira vez, meus olhos se abriram e pude vislumbrar outro mundo, um
escondido por trás do nosso. Não era a luz da manhã que se refletia na baía! A
cidade se erguia sobre uma poça de sangue, e mais sangue escorria pelas ruas.
Diante dos meus olhos, os mortos despertaram. Praticamente não havia um
centímetro da cidade que não tivesse sido usado para execuções em algum
momento, ou como cova coletiva para vítimas da peste, ou para as largas valas
onde se jogava os soldados mutilados depois das batalhas. As mãos dos mortos,
algumas limpas e brancas como osso, outras devoradas por vermes ou
encharcadas de água após um afogamento, se erguiam como ervas daninhas por
entre as pedras do calçamento. Às cegas, tateavam tentando segurar os pés dos
vivos.
Nesse instante, um temporal irrompeu. Gotas pesadas de chuva caíram
sobre Estocolmo e puseram-se a tamborilar nos telhados, na baía e nos morros.
As trovoadas eram ensurdecedoras. Quando os raios começaram a surgir mais
velozes, a nuvem de tormenta acima da cidade tornou-se um besouro corcunda
gigante. A criatura ia avançando por entre as casas com membros de fogo azul
gelado. Talvez estivesse vasculhando as casas assim como eu fora de porta em
porta em Karlskrona na primavera de 1790, um lenço cobrindo o nariz. As
vítimas da febre começavam a descongelar nas casas, e eu podia seguir o fedor
até os quartos de dormir, onde cadáveres disformes aguardavam em suas camas,
onde os ratos às centenas tinham perdido o medo dos vivos e guinchavam para
defender seus tesouros.
Tonto, vi mulheres aos gritos amontoadas nos cemitérios de Estocolmo,
dando à luz minúsculos cadáveres pálidos que escorregavam do útero direto
para dentro da cova, tão depressa que o cordão umbilical as puxava também
para debaixo da terra. Do palácio no Cais e das casas elegantes emergiam
cavalheiros trajando suas melhores roupas, os dentes afiados. Aos risos, esses
homens iam caçando os pobres, mendigos e órfãos, capturavam mulheres,
empregados e criadas, estraçalhavam seus corpos em pedaços e se
banqueteavam com sua carne até seus ventres se romperem tal qual pústulas
maduras.
Não era o sol nascente que agora ardia acima dos telhados da cidade, mas
sim o fogo do próprio inferno. Vi Emmanuel Hoffman sair cambaleando das
chamas, o rombo da bala de canhão aberto no tronco, arrastando atrás de si os
próprios intestinos e com a cabeça pendendo do pescoço quebrado. Ele tateava
às cegas. “Onde estão minhas pinças, Kristofer? Onde está minha serra? Vou
surrar você até que mije sangue para nunca mais esquecer.”

Acordei tonto e febril numa vala, ao som da minha própria voz e sentindo a
chuva no meu rosto. Gritava o seu nome sem parar.
24

NA TERCEIRA VEZ em que voltei à porta de Dülitz, fui conduzido casa adentro.
Nas duas noites anteriores, apenas uma nesga de porta fora aberta, um rosto
surgira rapidamente e sacudira a cabeça, com a luz forte mais atrás a esconder
todos os seus traços, e então a porta se fechara, obrigando-me a encontrar um
lugar para dormir onde pudesse. Eu ainda sentia os efeitos do álcool
consumido. O lagarto devia ter excretado alguma substância com poder de
afetar a mente. Olhando para o céu estrelado, sentia a mesma vertigem que
sentiria se estivesse olhando não para cima, mas para um abismo onde as
estrelas formavam imagens estranhas e perturbadoras.
Pela terceira vez ali estava eu, na rua do Mascate, e dessa vez o que temia
finalmente aconteceu. A porta se abriu, o brutamontes no saguão deu um
passo de lado e acenou para que eu entrasse. Logo me vi no mesmo subsolo
sem janelas da primeira vez. Não havia nem cadeira nem lençol à vista, o que
me proporcionou um pequeno reconforto. Dülitz estava sentado diante da
escrivaninha como se não tivesse mudado de posição desde o nosso último
encontro. Quando entrei, ele ergueu os olhos de um livro-caixa. Na hora em
que as sombras bateram em seu rosto, pensei ver presas entre seus lábios, dois
pequenos chifres despontando da testa, os dedos terminados por garras.
Esfreguei os olhos para voltar à realidade.
“Jovem Mestre Blix. Eu estava à sua espera.”
“O que vai acontecer comigo?”, perguntei, com uma voz trêmula e o
coração batendo nos ouvidos feito um tambor. Dülitz me encarou com
indiferença.
“Você foi vendido, Blix. Suas dívidas estão agora nas mãos do seu
comprador, assim como a sua vida.”
“Quem as comprou? O que eles querem comigo?”
“Por acaso o padeiro pergunta aos seus clientes o que eles querem com seus
pães? Ou o açougueiro o que será feito da sua linguiça? Serão consumidos.
Cumprirão seu objetivo. O comprador está livre para fazer o que bem entender
com os artigos que adquiriu. Igualzinho ao seu caso, Kristofer Blix.” Dülitz
fechou o livro-caixa. “Nossos últimos instantes juntos estão se aproximando
depressa, e devo admitir que não lamento isso, uma vez que suas noites ao
relento tornaram sua presença uma provação tanto para o nariz quanto para os
olhos. Não sei mais nada sobre o que o destino tem reservado para você a
partir de agora, mas faça um favor a nós dois e nunca mais apareça na minha
frente se algum dia recuperar a liberdade.”
Um cavalheiro desceu a escada, e na hora não consegui discernir se ainda
era o lagarto de Hagström me pregando peças, mas a simples visão dele fez
meus pelos se arrepiarem. Não sei como descrevê-lo. Não era alto nem baixo,
nem velho nem moço. Usava roupas que um dia tinham sido belas, mas que
haviam sofrido com o desinteresse do próprio dono. Os punhos do casaco
estavam esfarrapados, e havia alguns fios soltos no bordado. Vários dos botões
de madrepérola que antes decoravam o colete estavam faltando. Ele não usava
peruca, e tinha os cabelos finos e ralos. Embora não tenha esboçado qualquer
gesto ameaçador, fui rapidamente tomado por um terror que não consegui
explicar.
Tinha algo errado com aquele homem, isso eu podia sentir com todo o meu
ser. Havia à sua volta uma grande sensação de vazio, uma ausência, como se ele
fosse não um homem, mas algo morto tempos antes e que, por motivos
particulares, decidira ignorar sua condição. Ou então algo terrível que havia
tomado a forma de um ser humano, mas era incapaz de desempenhar
completamente o papel. O rosto era desprovido de expressão, como se os
músculos e tendões que controlavam os traços tivessem sido cortados, deixando
a face paralisada. Dülitz o cumprimentou com um meneio de cabeça e fez um
gesto na minha direção.
Quando o homem virou a cabeça para mim, foi como se não visse. Olhou
como se o meu lugar estivesse preenchido de vazio, como se eu fosse um móvel
ou um pedaço do papel de parede mais atrás. Quando falou, foi com uma voz
monótona que não traiu qualquer emoção ou expectativa. Sua única
característica especial era uma espécie de gagueira. Era como se determinados
sons não quisessem atravessar seus lábios, como se ficassem alojados dentro da
boca e o forçassem a fazer uma pausa para escolher outra palavra, mais
adequada.
“A soma toda em notas bancárias, a ser compensada quando o senhor julgar
conveniente.”
O homem entregou um envelope para Dülitz, que rompeu o lacre e
conferiu o conteúdo. Pelo modo com que assentiu, deve ter achado satisfatório,
e então entregou um embrulho que devia conter as notas promissórias antigas
que agora guiavam o meu destino. O homem guardou tudo no bolso do
casaco. Sem dizer nada, virou-se para ir embora e fez um gesto para que eu
subisse a escada à sua frente. Tirei o gorro da cabeça e parei diante dele.
“Meu nome é Johan Kristofer Blix...”
Ele se virou para mim e me encarou pela primeira vez. Foi o suficiente para
me fazer calar. Nos olhos claros, que me pareceram grandes e largos demais
para o rosto, não havia piedade alguma, nenhuma compaixão, apenas um ódio
represado, de um tipo que eu nunca vira antes. Um ódio parecido com aquele
que uma paisagem desértica poderia sentir pelos viajantes vivos, tolos o
bastante para testar suas dunas, tão triunfante e tenaz quanto a própria
eternidade. Desviei os olhos, mas senti que os dele ainda queimavam meu
rosto. Ele deu um passo mais para perto, o suficiente para eu sentir seu hálito
na testa, e mesmo querendo recuar, não me atrevi a sair do lugar. Depois de
um longo tempo, ele rompeu o silêncio.
“Alguém esvaziou o penico no beco lá fora. Os lampiões não iluminaram
bem as pedras do calçamento até eu sentir o cheiro da bosta. Poderia ter a
bondade de limpar meu sapato?”
Um silêncio se fez entre nós quando eu hesitei. Em algum lugar mais atrás,
Dülitz e seu assecla observavam a cena, mas o homem não lhes deu atenção.
Quando meu olhar hesitante tornou a encarar seu rosto, encontrei apenas os
mesmos olhos mortos. Ele aguardou até eu me ajoelhar com um movimento
canhestro e enrolar a manga em volta da mão para usá-la como pano. Balançou
a cabeça.
“Não, assim não.”
No início não entendi o que ele estava querendo dizer. Toda vez que fazia
uma tentativa de estender a mão para o seu sapato mais próximo de modo a
limpar as fezes, ele me corrigia da mesma forma, com a mesma voz impassível.
Quando todas as outras possibilidades se esgotaram, abaixei o rosto até o couro
sujo e pus a língua para fora, e pela primeira vez ele não fez nenhuma objeção.
Não esboçou nenhum movimento, não mexeu o pé um centímetro sequer para
me ajudar na tarefa, e enquanto eu me esforçava para não vomitar com o gosto
repulsivo, precisei engatinhar para alcançar tudo. Eu chorava sem fazer
barulho, e ele não transpareceu qualquer prazer ou desagrado diante dos meus
soluços ou ânsias de vômito. Era como se eu tivesse deixado de existir. Quando
terminei, fiquei de pé com as pernas trêmulas. Ele me deteve.
“Não era a esse sapato que eu estava me referindo.”
E depois, quando terminei o segundo, ele repetiu seu gesto em direção à
porta sem dizer nada. Subi a escada com o passo hesitante.
No beco havia uma diligência puxada por quatro cavalos. A parte superior
era coberta e aberturas laterais que podiam ser fechadas com pedaços de couro
presos à estrutura. O condutor havia descido de seu lugar e se aproximado para
dar aos cavalos o alimento de uma bolsa grossa. O homem que havia comprado
as minhas dívidas fez um gesto para eu subir. Até com o condutor ele foi breve.
“Vamos voltar.”
“A viagem toda? Meu senhor, o caminho é longo, não deseja parar em
algum lugar para descansar?”
“Não. A viagem toda, não vamos parar em nenhuma hospedaria ou
taberna.”
O condutor resmungou uma resposta que não consegui escutar. Ouvi o
tilintar de moedas trocando de mãos, e o homem então se sentou na minha
frente. Um estalo da língua e um golpe das rédeas pôs a diligência em
movimento. Descemos o morro em direção à água, cruzamos a ponte levadiça
na Eclusa e seguimos pelo Cais.
A cidade ia passando, e a reconheci do sonho que tivera acordado na colina
acima da Angra dos Peleiros, quando o sangue escorria pelas sarjetas; um
terreno de caça, onde os fortes perseguiam todos que lhes cruzavam o caminho.
Vi Rickard Sylvan de relance. Ele estava encostado num muro no beco onde
homens e meninos vão para se vender. Não me viu. Nos seus olhos não
consegui detectar nada daquilo que um dia tinha sido luz, nenhuma centelha
de travessura, nenhuma alegria, nem seu entusiasmo contagiante nem sua
astuta engenhosidade. Tudo havia desaparecido, restando apenas dois poços
negros de desespero. Era o olhar de alguém cuja chama de vida fora apagada,
ainda que o corpo cambaleasse e os pulmões seguissem bombeando. Meu
coração quis se partir em dois.
Após menos de uma hora de viagem, chegamos ao Portão Norte, perto da
Hospedaria do Chefe dos Cavalariços, e o condutor fez uma parada nos
prédios da alfândega localizados ali. Acima de nós havia uma passagem
rebuscada em forma de arco, grande o suficiente para permitir a passagem dos
veículos. Um agente grogue de sono bateu na lateral da diligência e inclinou
seu lampião para iluminar o interior da nossa cabine.
“Boa noite”, falou, com uma voz pastosa. “Viajando tarde, é?” Ele reprimiu
um bocejo. “Posso pedir seus documentos, por gentileza?”
O cavalheiro tirou do bolso um pedaço de papel. Quanto a mim, querida
irmã, eu não tinha passaporte. É claro que eu havia mentido para conseguir
acesso à cidade, e desde então não me atrevera a dar as caras nos portões.
Quando não apresentei documentos e fiquei apenas ali parado, o agente da
alfândega deve ter imaginado que o homem fosse o meu responsável, e
portanto foi a ele, não a mim, que dirigiu sua pergunta.
“E os do jovem senhor?”
Os olhos vazios do cavalheiro se viraram pela primeira vez e fulminaram em
cheio os do agente de alfândega. Então ele falou com sua voz morta, como
alguém imitando a linguagem dos seres humanos sem nunca tê-la ouvido
direito.
“Me diga seu nome e o do seu superior.”
“Meu nome é Johan Olof Karlsson, e meu superior é Anders Fris.”
“Como pode ver, Johan Olof, eu estou sozinho dentro desta diligência. Não
tem mais ninguém aqui.”
O agente o encarou por alguns instantes, mas então baixou rapidamente os
olhos, olhando para mim de relance. Eu estava ali, um jovem pálido, sujo e
amedrontado, e notei no ar um sentimento de pena que fez o sangue em
minhas veias gelar. Sem dizer nada, o agente devolveu o passaporte ao
cavalheiro, virou-nos as costas e bateu na lateral da diligência como sinal para o
condutor. Levei algum tempo para entender o que mais havia me perturbado, e
foi o seguinte: eu não tinha ouvido nas palavras do meu anfitrião a menor nota
de dissimulação, e sentia que do seu ponto de vista ele tinha dito a verdade.
Para ele, eu não era nada. Mas o que ele iria fazer comigo? Bem, isso estava
além da minha compreensão. Pensamentos terríveis me dominavam, além de
uma apreensão que jamais sentira antes. Mesmo durante os anos da guerra em
Karlskrona, a morte e o medo vestiam-se de um modo que tornava fácil
reconhecê-los.
O balanço da diligência na noite de verão me deixou sonolento, e, embora
eu tenha lutado contra o impulso, acabei cochilando. Impossível dizer por
quanto tempo. Despertei assustado quando as rodas derraparam no chão. Você
nunca saiu dos limites de nossa cidade natal, minha irmã, e nunca se viu longe
de fósforos e brasas ao cair da noite, mas eu sim, e o tipo de escuridão que
existe aqui engole tudo e torna o mundo irreconhecível. A existência parece se
apagar, a visão cessa por completo. Nem mesmo a luz das estrelas tem qualquer
poder para imprimir na paisagem algum contorno que não seja o de uma
massa disforme. Conforme avançávamos, pude distinguir a silhueta de abetos e
pinheiros em fileiras infindáveis, uma vasta extensão de floresta sem qualquer
ponto de luz.
Ele não se moveu. Ficou ali sentado, com seu rosto inexpressivo, encarando
a escuridão pela qual viajávamos, sem que seu olhar se detivesse em nada.
25

DEVEMOS TER CONTINUADO noite afora pela mesma estrada sulcada, pois,
quando acordei já estava claro, e quando a diligência parou quase fui projetado
para fora do banco. O dia nascente era cinza. O cavalheiro estava sentado bem
na minha frente, como se o cansaço não tivesse efeito sobre ele. Sem dizer
nada, ele abriu a porta da diligência e saltou. Fui atrás.
“Há algum celeiro onde eu possa dar de beber aos cavalos e um monte de
feno para dormir um pouco?”, perguntou o condutor com uma expressão
exausta.
“Não há nada aqui nem para você nem para os seus cavalos”, respondeu o
cavalheiro.
Ele então tirou uma moeda do bolso e lançou em sua direção. Parecendo se
contentar com isso, nosso condutor deu meia-volta com a diligência e
desapareceu pela mesma estrada pela qual tínhamos chegado.
Estávamos parados num pátio de pedra e cascalho. No meio havia uma
fonte com a estátua de uma mulher sentada cercada por náiades e golfinhos. A
água já não corria, mas brotava lentamente das aberturas e alimentava um
musgo marrom. Era como se a própria pedra estivesse chorando dentro de uma
piscina tão turva que já não era possível ver o fundo. Do outro lado do pátio,
havia uma casa alta com alas de um lado e outro. À nossa volta, uma floresta
triste de abetos e campos sem cultivo cujas lavouras apodreciam de volta para
dentro da terra. A casa que com certeza um dia fora imponente estava agora
caindo aos pedaços.
O gesso rachado se desprendera da fachada. Ervas daninhas cresciam altas
entre as fendas nas pedras. Não havia sinal de vida nos muitos alpendres. Em
algum lugar, um cachorro latia. Fui tomado por uma melancolia e terror
enormes. Alguma calamidade devia ter se abatido sobre aquele lugar e
transformado a propriedade em uma ferida na paisagem. Com certeza ele um
dia tinha sido belo. Só que não era mais. As palavras saíram da minha boca
antes que eu conseguisse me conter.
“Para onde nós viemos? Que lugar é esse?”
Dei um pulo para me afastar da bengala quando me dei conta de que tinha
falado sem autorização, mas meu anfitrião me surpreendeu ali mesmo no pátio
onde estávamos, virando-se para mim como se esperasse a minha reação e com
os olhos repletos de melancolia.
“Estamos na sede dos meus ancestrais. Nenhum pássaro canta mais aqui.”
Não entendi o que ele quis dizer com isso, mas não tinha intenção
nenhuma de perguntar.
Ele acenou para que eu o seguisse, mas não até a casa grande. Em vez disso,
fomos andando até o grupo de construções baixas à esquerda, na orla dos
campos. Ele ergueu uma barra de porta e me fez entrar. Foi difícil adaptar a
visão ao escuro, mas logo tomei consciência de uma terceira presença ali, da
sensação de estar sendo observado por alguém à espera que não queria o meu
bem. O interior fedia a ar parado, e dei um passo para trás ao escutar na minha
frente um rosnado baixo. Foi então que vi: uma forma imensa, andando para lá
e para cá. Era um cachorro grotesco, o maior que eu jamais tinha visto.
Calculei que sua anca devia bater no meu peito, e que ele devia pesar bem mais
do que eu. Por baixo da pelagem, os músculos se destacavam como elos de uma
corrente de âncora. A baba escorria da sua boca, e minha morte cintilava em
seus olhos. No instante em que suas mandíbulas teriam se fechado em volta da
minha garganta, porém, ele foi interceptado no ar, e o clangor de madeira e
metal sobre metal me informou que estava preso. Quando meus olhos se
adaptaram totalmente à penumbra, vi que correntes enferrujadas estavam
amarradas num nó de correr em volta do seu pescoço largo, e que a outra
ponta estava presa numa viga de madeira. Meus joelhos cederam e bateram nas
tábuas do piso, e recuei engatinhando. Eu estava com os olhos marejados por
causa do seu cheiro, e meu rosto estava salpicado pela baba que o animal
projetava a cada respiração.
“Este é Magnus”, disse uma voz atrás de mim. Senti meu gorro ser
removido da cabeça e lançado para o meio da escuridão, onde foi interceptado
pelo animal. “Com o tempo você vai se cansar da minha hospitalidade”,
prosseguiu meu anfitrião, “e caso decida ir embora deste lugar por iniciativa
própria é bom que saiba que as correntes que mantém Magnus preso serão
soltas. Ele nunca vai esquecer o seu cheiro. Será capaz de farejar seu medo pelo
mijo que escorre pela sua perna nesse momento e vai encontrá-lo, sozinho sob
as árvores onde não há ninguém para protegê-lo. Vai rasgar você em pedaços e
deixar os restos para os corvos.”
Meu anfitrião passou por mim e saiu do galpão. Fui atrás dele.

Como o exterior da casa indicava, querida irmã, o interior estava dilapidado.


Havia muitas vidraças rachadas, e de muitas das telhas restavam apenas cacos.
A casa exalava um forte cheiro de mofo e bolor; a água devia escorrer do
telhado para dentro quando o céu se derramava. O desenho do papel de parede
estava deformado pela umidade e pregava peças nos olhos. Os pisos de madeira
eram irregulares e rangiam alto a cada passo, os cômodos estavam vazios e sem
iluminação, o tecido das poltronas e sofás, puído e rasgado, deixava o
enchimento escapar. No grande salão, meu anfitrião me disse umas poucas
palavras por cima do ombro antes de me virar as costas e tornar a sair.
“Amanhã começa o seu trabalho.”
Ouvi seus passos atravessarem o pátio e fui deixado a sós.
Como não tinham me atribuído nenhum lugar para dormir, não vi outra
alternativa que não procurá-lo eu mesmo.
O espaçoso térreo da casa fora construído para receber. Havia um grande
salão de baile, agora vazio e escuro, com cadeiras amontoadas numa pilha. A
mesa comprida na sala de jantar comportava pelo menos vinte pessoas, mas o
tampo havia rachado ao meio e aberto uma fresta na madeira de fora a fora.
Um quadro a óleo pendia acima da lareira, mas alguém o havia desfigurado. A
julgar pelas roupas, retratava um homem virado na direção do observador,
orgulhosamente postado diante de uma fértil paisagem. Tinha as mãos repletas
de anéis, e de uma fita de seda em seu pescoço pendia uma medalha. O rosto já
não era discernível, minha irmã. Alguém o havia recortado da tela. Acima dos
ombros agora havia apenas um buraco com as bordas esfiapadas. Muito tempo
depois, eu encontraria os restos do retrato nas cinzas logo abaixo.
Subindo a escada havia quartos e mais quartos, todos vazios. Escolhi um
para mim. Como o colchão estava úmido e a cama decrépita, decidi dormir no
chão usando minha bolsa como travesseiro, o mais longe possível da porta e
com as costas viradas para um canto.
Continuei minha exploração, e no outro extremo da casa ficavam os quartos
maiores, decerto outrora reservados para os donos da propriedade. Na ala oeste
havia outro retrato, dessa vez de uma mulher em um vestido antiquado. Tinha
os braços erguidos num gesto de quem convida, como se quisesse acolher o
espectador dentro do quadro. Seu rosto também fora removido, embora com
mais delicadeza do que os rasgos irados que haviam estragado o quadro na sala
de jantar. Não demorei muito para encontrar o pedaço de tela que faltava. Na
grande cama encostada na parede, algumas trouxas de roupa tinham sido
dispostas no formato de um corpo feminino, como se ela estivesse deitada de
costas sob as cobertas, e o rosto do retrato fora cuidadosamente posicionado
em cima da cabeça. O rosto da manequim exibia um sorriso caloroso, mas
havia também alguma outra coisa, algo que parecia indicar emoções de outro
tipo. Não soube dizer se era uma falha da modelo em si ou do artista que não
soubera lhe fazer justiça. Na cama ao lado dessa estranha figura, o colchão
estava afundado, e me dei conta de que era ali que meu anfitrião devia passar
suas noites, deitado de lado com um dos braços em volta da boneca. Minha
desconfiança seria confirmada nas noites seguintes, porque eu podia escutá-lo
através das portas fechadas do quarto. Ele falava com a boneca durante a noite,
mas nunca cheguei a discernir as palavras. Às vezes havia outros ruídos; não sei
se ele estava rindo ou chorando.
Perturbado com o que vira, voltei para o quarto escolhido. Coloquei uma
cadeira em frente à porta, me arrastei até meu canto, dobrei os joelhos sob o
queixo e fiquei deitado, tremendo de frio e de nervoso até o sono por fim me
levar. A casa à noite era cheia de barulhos, minha irmã, como se as próprias
paredes estivessem assombradas por seus antigos moradores. Só consegui
dormir por intervalos curtos. Os sonhos se misturavam com as lembranças,
como tantas vezes acontece nesse limiar entre sono e vigília, e pensei ouvir
passos arrastados no corredor, gritos de luxúria e dor e preces pedindo
clemência, risinhos, ecos de festividades dissipadas tempos antes; pensei ver de
relance homens e mulheres com estranhas máscaras brincando de esconde-
esconde pelos cômodos. Lá fora um vento lúgubre uivava na noite, e no meio
da madrugada começou a chover. O ar dentro da casa esfriou e umedeceu, e
pude ouvir a água batendo direto no piso do sótão, dois andares acima de onde
estava.
26

ACORDEI EM REAÇÃO ao peso etéreo que um olhar muitas vezes tem sobre quem
está sendo observado. Quando abri os olhos, encontrei meu anfitrião sentado
na cama que eu havia rejeitado ao escolher o chão.
“Está na hora”, disse-me ele.
Após limpar a sujeira dos olhos, levantei depressa e saí do quarto atrás dele,
escada abaixo e pelo pátio em direção ao conjunto de construções onde
Magnus já saudava a manhã com seu latido ensurdecedor. Temi um novo
encontro com o animal, mas passamos por seu abrigo torto até chegar a uma
pequena cabana de pedra. Meu anfitrião abriu a porta com uma grande chave
de ferro e me fez entrar.
Atrás do vestíbulo, num cômodo grande com uma lareira apagada e suja de
fuligem, havia uma mesa. Em cima dela estava deitado um homem que não
devia ser mais velho do que eu. Suas mãos e pés tinham sido presos por uma
corda amarrada sob a mesa, o que o impedia de se mexer. Um pedaço de
madeira fora enfiado entre os dentes e preso por correias em volta da cabeça.
Por trás dele era possível distinguir o pedaço de pano embolado dentro da boca
para mantê-lo calado. Um trapo estava amarrado ao redor dos olhos. Estava
desacordado. Ao lado da mesa havia diversas garrafas com o cheiro azedo de
vinho, bem como um funil, e supus que ele devesse ter sido obrigado a beber
tanto a ponto de perder os sentidos. Seus traços eram simétricos e bonitos, os
cabelos chegavam à altura dos ombros e — assim como os meus — eram
louros como ouro fiado. Eu mal tinha tido tempo de absorver a cena chocante
quando a voz sem entonação atrás do meu ombro falou:
“Fui informado de que você foi aprendiz de cirurgião. Quantos membros
você amputou para salvar a vida dos feridos?”
“Só usei a serra e a faca uma ou duas vezes, mas estive presente em
incontáveis ocasiões nas quais meu mestre executou operações assim”, respondi,
apreensivo.
Meu anfitrião assentiu.
“Este é o seu paciente agora, Kristofer Blix. Desejo que todos os membros
dele sejam separados do corpo como se tivessem sido destroçados por munição
ou baionetas. Ambas as pernas, ambos os braços. Além disso, gostaria que ele
fosse cegado e que sua língua seja arrancada. Também desejo que ele fique
surdo. Essa é a tarefa da qual lhe incumbo para pagar sua dívida. A vida dele
está em suas mãos e, se você a perder, seja por piedade ou em decorrência de
cuidados inadequados, o destino dele parecerá clemente em comparação com o
seu. Todas as ferramentas e recursos dos quais vai precisar serão providenciadas.
Algo do que eu disse não ficou claro?”
Minha cabeça girava. Eu não conseguia acreditar no que acabara de ouvir.
Era como se as cenas de pesadelo da Angra dos Peleiros tivessem voltado para
me atormentar. A consternação me fez esquecer a apreensão e deixar de lado
toda a cautela.
“Não! Eu não vou fazer isso seja pelo preço que for, nem mesmo em troca
da minha liberdade! Quero voltar para Estocolmo, para os tribunais e a prisão.
Prefiro vinte anos de trabalhos forçados a isso!”
Ele balançou a cabeça.
“Essa não é mais uma alternativa. Se me desafiar, dou você vivo para o
cachorro, os pés primeiro.”
“Mas o que foi que ele fez? Ninguém pode merecer um destino desses!”
O homem ficou calado por algum tempo antes de dizer:
“Decida.”
Em meio aos soluços eu podia ouvir sua respiração vagarosa, e enxuguei o
rosto na manga. Ele não precisava esperar minha resposta, pois ambos
sabíamos qual seria.
“Ele está sedado com vinho. Vai permanecer assim até a noite. Quero sua
língua removida antes de o sol se pôr. A partir daí, pode proceder na ordem
que julgar mais adequada. O ritmo deve ser o mais rápido possível sem pôr em
risco a vida dele. Debaixo da mesa você vai encontrar um baú de madeira do
tipo usado pelos cirurgiões navais, com todas as ferramentas afiadas e em boa
condição. Qualquer outra coisa de que precise, gostaria que me avisasse assim
que lhe ocorrer.”
Eu não conseguia parar de chorar, mas, com lágrimas e catarro escorrendo
pelo queixo, lembrei das admoestações constantes de Emanuel Hoffman e das
coisas que ele considerava imprescindíveis para afastar os gases pantanosos que
ameaçavam espalhar a putrefação pelas feridas dos combatentes.
“Galhos de junípero para defumar o quarto”, falei. “Galhos de abeto para
espalhar pelo chão. E vinagre.”
27

FUI DEIXADO SOZINHO no quarto com o homem amarrado. Meu peito arfava
em busca de mais ar, e após vários minutos recuperando o fôlego escutei a sua
respiração. Pensar nos atos horrendos que estava prestes a cometer com aquele
rapaz que poderia ter sido um irmão desencadeou um pânico dentro de mim, e
saí correndo da cabana de pedra. Meu anfitrião não estava por perto. Eu tinha
lhe dito a verdade. Já vira Emanuel Hoffman afastar pele e músculos com a
mão firme até expor o osso, prender as artérias com pinças, equilibrar-se
apoiando um joelho no ombro do ferido e, após alguns puxões na serra, fazê-lo
cair no chão, aplicando em seguida um curativo na ferida. Nem todos
sobreviviam a essa intervenção, e outros feneciam durante a convalescência. A
putrefação conseguia penetrar entre os pontos e deixava o coto enegrecido e
malcheiroso, atraindo febre e então morte pouco depois. Hoffman nunca tinha
me deixado executar essa operação. Ambos nos contentávamos com ter a mim
apenas na função de instrumentador. Afinal, como eu conseguiria fazer aquilo?
Peguei o caminho que passava pelo galpão onde o monstruoso Magnus vivia
acorrentado. A parede estava tão decrépita e ressecada que as toras tinham se
afastado umas das outras e deixado frestas. Uni as mãos ao redor dos olhos e
espiei a escuridão. Em pouco tempo ele se levantou devagar quando algum
instinto animal lhe alertou sobre estar sendo observado. Pareceu-me olhar
diretamente para mim e fitar meus olhos com uma expressão faminta.
Respirava pela mandíbula aberta, e não demorou muito para a saliva começar a
escorrer por entre seus dentes amarelos. Imaginei a mim mesmo no chão, com
ele por cima de mim; vi meus pés entre suas presas, vi-as subindo mordida por
mordida pelas minhas canelas, esmagando minhas patelas como se fossem
castanhas. Comecei a chorar outra vez, querida irmã, ao me dar conta de que
não era de coragem que eu necessitava para ser capaz de desmembrar outro ser
humano, bastava a covardia de querer salvar minha própria vida a qualquer
preço. Compreendi isso com muita rapidez.
Junto à fonte, lembrei-me do folheto que Hagström tinha me dado. Subi
correndo até meu quarto, virei a bolsa do avesso e comecei a ler o mais depressa
que consegui. Havia instruções e imagens de diversos procedimentos, entre os
quais a amputação e os instrumentos necessários. Talvez a ajuda do professor
fosse mais uma vez a minha salvação. Mas não havia descrito em lugar algum o
procedimento para extrair uma língua. Pelo visto, eu teria de me virar sozinho.
O maior desafio me parecia ser o estancamento da hemorragia. Sangrar uma
pessoa era bom para manter os fluidos corporais em equilíbrio, mas até certo
ponto.
Como o texto de Hagström não podia me ajudar, decidi seguir o que
Hoffman tinha me ensinado. Ele denominava de miasma os gases invisíveis
produzidos pelas impurezas no fundo da terra, capazes de penetrar os pulmões
das pessoas saudáveis e os ferimentos dos convalescentes. Vivia sempre me
despachando para encontrar as coisas que mais ajudavam a eliminar seus
efeitos, de modo que saí em busca de uma despensa. Não encontrei nada que
cheirasse a vinagre, mas atrás das prateleiras vazias havia uma porta, e atrás
desta, uma escada que descia até uma adega. Encontrei algumas tochas finas
para iluminar meu caminho lá embaixo, e ao erguer a chama acima da cabeça
vi várias fileiras de garrafas empoeiradas. Era uma adega de vinhos, e embora
eu tivesse pedido vinagre, por muitas vezes havia deixado tigelas de vinho em
algum recinto fechado para azedarem e virarem vinagre a pedido de Hoffman.
Peguei tantas garrafas quanto consegui carregar.
Na floresta, não precisei ir muito longe para encontrar galhos de abeto e
junípero. Espalhei os galhos de abeto pelo chão em volta do homem amarrado,
e os de junípero acendi para que começassem a liberar uma fumaça branca
espessa. Esperei que ela preenchesse o recinto antes de pisar nas brasas acesas.
No baú debaixo da cama encontrei todas as ferramentas que conheci através
de Hoffman, ainda que aquelas ali estivessem mais limpas e não parecessem ter
sido usadas. Havia a pinça, a serra, as facas. Testei os fios no polegar esquerdo e
constatei que estava tudo bem afiado.
Eu estava prestes a remover uma língua, querida irmã. Soltei a correia que
mantinha o pedaço de madeira preso entre seus dentes, removi a bola de tecido
úmida que fora enfiada por baixo e soltei o pano amarrado em volta dos seus
olhos. Acendi um pequeno fogo na lareira, e ali pus um atiçador de ferro de
modo que as chamas o lambessem. O metal logo adquiriu um tom
incandescente avermelhado que foi embranquecendo à medida que o calor
aumentava. Esculpi uma cunha de madeira que pressionei entre os dentes dele
para manter seu maxilar aberto. Então inclinei sua cabeça de lado para que o
sangue não escorresse garganta adentro. Quando ergui a faca, minhas mãos
tremiam tanto que entrei em desespero. Enfiei os dedos na boca morna e
úmida e tateei, mas achei impossível segurar a língua com firmeza. A ponta
escorregadia escapou vezes sem conta entre o polegar e o indicador. Lembrei-
me da sensação de tentar pegar o lagarto dentro de seu frasco de vidro. Desisti,
pousei a faca e saí do recinto. Peguei uma das garrafas de vinho, um Tokaji, e
precisei quebrar o gargalo na falta de um modo melhor de sacar a rolha. Bebi
até sentir a garganta queimar e minha camisa branca ficar manchada.

O sol estava se pondo. Ainda não era noite, mas quase. Eu estava sentado com
os braços em volta dos joelhos, balançando-me para a frente e para trás.
Somente então o escutei atrás de mim, apenas umas poucas palavras arrastadas
através do estado de embriaguez considerável ao qual fora forçado. Ele falava
em seu sono, murmurando:
“Estamos em débito...”
Eu mal conseguiria dar conta da tarefa que me fora atribuída com meu
paciente desacordado. Se ele acordasse, eu não teria chance alguma. Levantei-
me num pulo, revigorado pelo vinho. O atiçador em brasa exalava seu cheiro
pelo recinto, discernível até mesmo em meio ao forte aroma de junípero.
Tomado pela desesperança, virei o baú de cirurgião no chão e pus-me a
vasculhar os vários instrumentos. Na minha tolice, na verdade consegui ajudar
a mim mesmo. Logo vi as ferramentas que deveria estar usando. Havia tanto
um alicate quanto uma tesoura. Peguei-as e segurei a língua com firmeza, mas
percebi então que sua raiz continuava fora do alcance da tesoura. Corri de novo
até as ferramentas, peguei um pequeno martelo e um cinzel de ponta chata. O
que eu estava agora me preparando para fazer era algo que vira Hoffman
executar em alguns de seus desafortunados pacientes, muito embora meu
estômago se revirasse ao ver a cena. Virei a cabeça do homem até o maxilar
ficar posicionado próximo da mesa, encostei a ponta do cinzel nos dentes ao
longo da mandíbula, e bati com o martelo até ouvir as raízes cederem. Mudei o
cinzel de posição e tornei a bater e bater. Por fim, onde pouco antes ficavam os
dentes restaram apenas as gengivas laceradas e crateras ocupadas por lascas
pálidas. Agora a tesoura tinha espaço para manobrar. Cortei a língua dele o
mais próximo que consegui da raiz. Quando estendi a mão para pegar o
atiçador, não estava pensando direito e segurei-o com a mão descoberta, e pela
primeira vez desde Karlskrona senti o fedor de carne queimada. Depois de
soltar um palavrão, enrolei a manga na ponta do atiçador e encostei a
extremidade branca incandescente na cachoeira de sangue que brotava da boca
do homem amarrado.
Foi só então que ele gritou, minha irmã. E isso não foi o pior. O pior foi
quando abriu os olhos e me encarou.
Esse olhar vai me acompanhar até o túmulo.
28

TENHO MUITO TEMPO para escrever agora, minha querida irmã, enquanto o
verão vai chegando ao fim. A tarefa da qual fui incumbido me permite muitas
horas diárias de lazer. As feridas precisam de tempo para cicatrizar, e devo estar
atento à capacidade do meu paciente para recobrar as forças. Meus deveres
muitas vezes se limitam aos cuidados diários com ele. Sirvo sua papa, lavo seu
corpo e cuido de todas as suas necessidades. Com frequência, quando ele se
agita e começa a uivar, dou vinho, que ele nem sempre quer, e, nesse caso,
preciso usar o funil. É péssimo escutá-lo. Ele se acalma à medida que o álcool
vai surtindo efeito.
O mesmo se pode dizer sobre mim. Faço visitas frequentes à adega para
pegar mais garrafas, e bebo tanto e tão regularmente quanto me atrevo. O que
faço nesse tempo livre não parece incomodar meu anfitrião. Ele já me viu
tropeçar pelos corredores ao cambalear entre a adega e meu quarto, mas nunca
comentou nada. Não há alegria em minha embriaguez, mas ela ainda é
preferível à consciência da sobriedade. Pelo menos embota as imagens que
correm pela minha mente. Consegue imaginar o horror de encostar a lâmina
de uma faca num olho e pressioná-la até chegar a um lugar em meio a todo
aquele branco em que algo se perde para sempre? Cenas como essa se repetem
vezes sem conta na minha mente quando fecho os olhos.
A cada vez que extirpo do paciente uma nova parte, ela vira alimento para
Magnus. Vejo dedos de mãos e pés desaparecerem dentro da sua goela
vermelha, ouço como ele parte os ossos entre os dentes para expor a medula. E
ele me encara de seu canto como se tentasse me dizer alguma coisa: “O próximo
é você.”

Os efeitos contínuos do vinho tornam difícil distinguir o sonho da realidade.


Os desenhos do papel de parede ondulam e parecem se mover como tentáculos
quando eu passo, prontos para me agarrar caso eu me aproxime demais. Lá
embaixo na adega, quando desci certa noite já tarde para pegar mais vinho, vi
um emaranhado de ratos à luz da lanterna, um enxame de roedores com as
caudas todas presas num mesmo nó, soltando guinchos agudos. Ou será que
sonhei? A coisa rastejou rente à parede fazendo um barulho horrível e
desapareceu num canto. Dizem que é um presságio. Bebo muito antes de me
recolher, tanto para me ajudar a dormir quanto para evitar acordar sóbrio.

Certa noite fui despertado por um ruído próximo de mim e me dei conta da
presença de meu anfitrião, que havia entrado no meu quarto, revirado minhas
coisas, e estava agora sentado na cama lendo o que escrevi para você, minha
irmã. Essas cartas não enviadas, destinadas a você e mais ninguém. Se é que
isso também não foi um sonho, escutei as risadas dele.

O folheto de Hagström tem sido de grande valia no meu trabalho. Há


ilustrações que mostram qual o melhor modo de separar um membro do
corpo, onde se deve cortar e como manter uma aba de pele para dobrar de
novo por cima do coto. Primeiro faço um torniquete feito com uma rédea de
couro que peguei num dos estábulos e cortei no tamanho certo. Trato o couro
com banha para torná-lo maleável e forte, de modo que ele não se parta
quando o puxo com toda a força que tenho.

Não tenho muito apetite, irmã querida, e melhor assim, já que preciso
encontrar comida procurando nos vastos campos. Não sei de que vive o meu
anfitrião. Talvez tenha estoques de comida que só ele conhece. Minha camisa
pende do corpo, e é difícil impedir as calças de escorregarem. Ultimamente
venho usando um pedaço de barbante para mantê-las na cintura. O retrato na
sala de jantar me assombra. Meu anfitrião me disse que aquele é o seu pai. Ele
diz que o odeia. Em meus sonhos, vejo um homem de roupas elegantes
tateando os cômodos da casa, com um vazio no lugar em que a cabeça deveria
estar. Está à procura o filho para comprimi-lo numa asfixia ou num abraço,
não sei qual dos dois.
Ontem fiz os preparativos para amputar o braço esquerdo na altura do
ombro. Faltam apenas ele e a perna do lado oposto. Depois desse dia, terei de
encontrar outro jeito de manter meu paciente preso à cama, pois quase já não
restam membros nos quais amarrar correntes forradas de couro. Afiei minha
faca e testei cada dente da serra. Despejei vinagre no chão e nas paredes, trouxe
galhos frescos de abeto e defumei o recinto até purificar o ar ali dentro. Tinha
acabado de fazer um nó de forca com minha rédea de couro e de enfiar dentro
dele um pedaço de madeira para torcê-lo com a maior força possível quanto
reparei numa coisa. O sol entrou no recinto e algo cintilou no dedo daquele
homem. Era um anel, minha irmã, no dedo mindinho da mão esquerda. Sabe-
se lá como, até então eu não tinha prestado atenção. Curvei-me para examiná-
lo mais de perto. Era um anel de ouro com um engaste oval. Cuspi na mão
dele e o removi — a mão tentou me lanhar com suas unhas sujas, mas fui
rápido o bastante para evitar ser arranhado. No centro do anel havia uma pedra
escura com um brasão cuidadosamente entalhado na superfície. Minha cabeça
girou como se algo tivesse me atingido fisicamente. Deixei a rédea pender, saí,
e fui me sentar no degrau de pedra da porta da frente.
Ao longe pude ouvir um corvo grasnar nos galhos mais altos de uma bétula.
Fiquei sentado ali por muito tempo, encarando o anel. Era de um tipo usado
pelos nobres, com um brasão de armas representando a linhagem ancestral.
Embora eu nunca tenha ficado sabendo como se chamava, alguém capaz de ler
aquele símbolo heráldico poderia identificá-lo.
Eu tremia, e meus pensamentos giravam num turbilhão. O destino havia
me proporcionado a chance de fazer uma única e minúscula gentileza com
aquele homem sem nome, um homem contra quem eu pecara do modo mais
horrendo que qualquer um poderia pecar contra o pior inimigo. Mas como?
Comecei a andar de um lado para o outro em frente ao chalé. O vinho
dificultava meu raciocínio. Quando ouvi uma voz atrás de mim, pensei que
fosse ter uma síncope e cair morto ali mesmo.
“Como está indo com o braço esquerdo? Vejo que sua camisa está limpa.
Por que o atraso?”
Meu anfitrião estava em pé bem atrás de mim. Ele conseguia se mover num
silêncio quase total. Os pelos da nuca se arrepiaram e ouvi a mentira na minha
voz quando respondi, ao mesmo tempo em que apertava com mais força o
pequeno círculo de metal.
“Por nada, senhor. Estava a ponto de começar.”
Como sempre, sua expressão não traía nada e seus olhos eram tão
impassíveis quanto um lago escuro sob o céu da noite.
“O que está escondendo com tanta força na mão? Os nós dos seus dedos
estão brancos. Me mostre.”
Baixei a cabeça, estendi as mãos em frente ao corpo e as abri. Ambas
estavam vazias. Como eu conhecia a intuição sobrenatural dele em relação a
tudo que alguém tentava lhe esconder, tinha deixado meu segredo cair na
grama atrás de mim.
Ele passou um longo tempo me encarando enquanto eu ficava ali com as
duas mãos trêmulas estendidas no ar.
“Pare de perder tempo. Você está ficando mais magro a cada dia e não vai
ter serventia alguma para mim se morrer de inanição antes de completar sua
missão.”
Com essas palavras, ele virou as costas e se foi. Quando ouvi seus passos no
pátio, joguei-me no chão para pegar o anel. Suas últimas palavras tinham me
dado uma ideia que eu antes não tivera a capacidade de conceber.
Novamente lá dentro, pus a mão na bochecha do paciente. Seu rosto
continuava belo, embora por trás da venda houvesse órbitas vazias e as faces
estivessem afundadas onde faltavam os dentes. Eu nunca o havia tocado desse
modo antes, e isso pareceu acalmá-lo. Segurei o anel entre o polegar e o
indicador e o passei junto aos seus lábios. Depois de ele sentir o formato, pus o
anel dentro da sua boca e fui buscar um copo d’água. Deixei que ele bebesse e
fiquei escutando seus goles profundos. Afastei seus lábios e olhei. Nenhum
brilho de ouro. Ele o havia engolido.
Meu anfitrião tinha um plano para aquele desgraçado. Aquela mutilação
deliberada devia fazer parte disso, mas agora meu paciente levará dentro da
barriga uma prova de seu nome e da sua origem. Eu ainda não sei como, uma
vez que em breve terei removido todos os membros que lhe restam e o privado
da capacidade de sobreviver no mundo, mas talvez alguém o encontre e rastreie
sua origem até aqui, até o monstro responsável por essa abominação.
Não sei se meu paciente ainda pode escutar. No terceiro dia, sob ordens
explícitas, enfiei um galho dentro do seu ouvido até onde foi possível, e meu
anfitrião em pessoa testou sua audição batendo palmas bem alto sem obter
reação. Mesmo assim, curvei-me, aproximei bem a boca de um ouvido e falei:
— Se o anel sair, eu o darei de novo para você engolir depois de limpá-lo.
Quando nós dois nos separarmos, você terá de assumir essa responsabilidade se
quiser continuar com ele. Como fará isso eu não posso dizer.
Ele não deu nenhum sinal de ter entendido. Então cortei seu braço
esquerdo, levei-o dentro de um balde até o barracão de Magnus e depois fui
para a adega beber até perder os sentidos. Nem assim consegui dormir. Como
tem sido meu hábito há muito tempo, fabrico minha tinta com fuligem e água,
mergulho nela meu toco de pena e escrevo a você, querida irmã, minha única
amiga.

Você se lembra, minha irmã querida, de como costumávamos conversar sobre


um mundo depois deste nosso nas noites de primavera? Quando eu me
ajoelhava junto à sua cama até os pássaros começarem a cantar e os primeiros
raios de sol entrarem pela janela? Como imaginávamos uma pradaria tranquila
para além deste vale de lágrimas, onde um dia planejávamos correr de mãos
dadas em meio às flores de verão sem qualquer preocupação ou medo, um
lugar onde nenhuma tristeza ou conflito jamais poderia nos alcançar? Quando
nossas pernas ficassem cansadas, buscaríamos a sombra das árvores, refrescados
pela brisa. Beberíamos água pura de uma fonte e comeríamos à vontade maçãs
e framboesas silvestres. Riríamos juntos longe, bem longe da pestilenta
Karlskrona, onde os barcos a remo chegam todos os dias de onde a esquadra
atracou para passar o inverno, com os conveses lotados de cadáveres negros e
azulados para descarregar. Seríamos felizes juntos como apenas um irmão e
uma irmã podem ser.
Eu não sonho mais com pradarias e framboesas silvestres, querida irmã. Para
mim tudo isso está destruído para sempre. Dizem que a inocência, uma vez
perdida, nunca mais pode ser recuperada, e este verão que descrevo a você me
roubou os sonhos. Como algum dia voltarei a sentir felicidade ou alegria
depois do que vi e do que fiz?
Quase quatro anos se passaram desde que a febre a tirou de mim, irmã
minha, desde que o seu coração parou de bater, desde que o lençol que eu
acabara de lavar se imobilizou sobre o seu peito e eu percebi que você não
respirava mais, e que não me restava mais nada a fazer senão abrir sua cova e
tecer uma coroa de flores de primavera para enfeitá-la, e fabricar com dois
galhos uma cruz para marcar o lugar do seu eterno repouso.
Não rezo mais para você estar me esperando na sombra daquela árvore, com
as faces coradas e usando o vestido de linho branco que nossa mãe lhe deu de
presente no aniversário que seria o seu último. Rezo, isso sim, para que
continue jazendo na terra onde a deixei, e para que nenhum Elísio nos aguarde
após a morte, pois lá talvez você ficasse sabendo das coisas que fiz. E rezo para
que eu mesmo em breve encontre o descanso numa vala igualmente escura, na
qual reste apenas o esquecimento e nada mais.
PARTE TRÊS
A mariposa e a chama

Primavera de 1793
Sentimento! Vida! Para onde terão ido?
Nesse abismo em que me vejo despencar,
Sombras me obrigam hoje a recordar
Tempos há muito esquecidos.
Esse caminho escuro, minha sina,
Esse teto de nuvens lá em cima,
Esses véus que me contorcem as ideias,
Esse frio a me gelar cada veia,
Essa fraqueza — isso tudo só faz mostrar
Que apenas o túmulo agora me rodeia.
Johan Henric Kellgren, 1793
29

ANNA STINA SABE que uma fogueira é um jogo de ângulos e espaço. Seja lá qual
for o combustível, ele precisa ser cuidadosamente arrumado, precisa ter espaço
suficiente para o fogo pegar. Ele é como uma coisa viva, o fogo, e, assim como
todo o resto, precisa respirar. As chamas criadas com uma lenha
cuidadosamente cortada que ela acende na lareira na Paróquia de Catarina são
mais desafiadoras do que o fogo que se apresenta agora à sua frente. A pilha
consiste em feixes de gravetos e pedaços de madeira que irão se acender no
instante em que a tocha os tocar. O oficiante está esperando tocar as sete.
Quando o sentinela da torre de Catarina der as horas, a fogueira será acendida
para Santa Valburga.
Anna Stina costumava ter medo do fogo. Nas histórias da sua infância, ele
era sempre o monstro, descrito por quem testemunhara as casas de madeira da
cidade serem transformadas em cinzas. Mas Anna Stina é filha de outra época,
criada numa Estocolmo feita de pedra, não de madeira, e à medida que os anos
passam torna-se mais difícil ver a ligação entre aquele feroz incêndio e o brilho
cálido e útil do fogo de cozinha. O mesmo vale para aquela noite, quando por
algumas horas se permite que a fogueira cresça, mas permaneça domada,
alimentada, protegida e cercada pelo balde e pela mangueira.

A noite está quente, mas do lago sopra uma brisa refrescante. Ela é bem-vinda,
pois deixa a Várzea das Crianças contra o vento em relação à Ucharia, que
desgelou o suficiente para tornar o fedor quase visível graças às nuvens de
moscas. Ao longo da primavera e do verão, a luz do início da noite é a mais
agradável. Longe já se vão os meses de inverno, escuros como piche, em que o
andarilho noturno precisa encontrar seu caminho pelas ruas com os braços
estendidos, indo do brilho débil de um lampião ao outro, e, se algo cair, estará
perdido na sarjeta de modo irrecuperável, e a única esperança é conquistar a
simpatia dos carregadores de água na manhã seguinte ou então permanecer
simplesmente parado no mesmo lugar e esperar pela aurora. De todas as
estações, a primavera é a preferida de Anna Stina. Ela é cheia de promessas que
o ano ainda não teve a oportunidade de quebrar. Tudo parece possível.
Ela não está sozinha em sua animação. A Campina está repleta de gente.
Crianças, pobres e meninos de rua das Paróquias de Catarina e Maria estão
sentados na grama lado a lado com operários das manufaturas, aqueles que
tiveram tempo e energia sobrando ao final de um dia de trabalho. Um pouco
mais adiante estão os grã-finos, donos de manufaturas com amigos na Cidade-
entre-as-Pontes, um grupo de homens e mulheres nobres vestidos com lindos
trajes de cetim e renda. Sentado ao seu lado está Anders Petter, o filho do
vizinho. Alguns anos mais velho do que ela, já está em treinamento para seguir
os passos do pai e partir para o mar. Um dia ele vai sair do Cais e atravessar a
passarela com um passo seguro, e velas brancas o carregarão mar afora. Ela o
inveja e se sente presa à cidade por correntes que, embora invisíveis, nem por
isso a seguram menos.
O vento que sobe da água fica mais forte. Ela puxa os joelhos até debaixo
do queixo, e ao mesmo tempo ouve o chamado lá de cima. A tocha é encostada
na base da fogueira, onde as chamas lambem com avidez os galhos e gravetos.
Em pouco tempo o fogo pega e vai subindo em direção ao topo. Um tumulto
irrompe entre as pessoas reunidas quando percebe-se que o grito na verdade
não veio da torre da igreja, mas de moleques impacientes imitando a voz. Mas
o que está feito, está feito. Desanimado, um bombeiro começa a subir a
encosta para caçar os jovens delinquentes, que de modo experiente se
dispersam em todas as direções sob uma chuva de risos. Os oficiantes dão de
ombros. A alegria se alastra. Garrafas de conhaque passam de mão em mão. O
crepúsculo se adensa ainda mais. A fogueira, agora uma garra luminosa que
tenta alcançar as estrelas, torna difícil discernir algo além de contornos. Um
deles é inconfundível: uma figura fervorosa presa ao enforcador de um policial,
o que torna impotente devido a distância mantida pelo seu longo cabo de
madeira enquanto os dentes de metal se fecharam em volta do seu pescoço. Ele
se debate e tenta sair correndo numa direção, depois na outra. Sua linguagem
chula e temperamento indócil lhe valem um séquito de observadores aos risos.
Só depois de o grupo passar, Anna Stina repara que Anders Petter pôs a mão
por cima da sua.
Anna Stina sempre soube que esse dia iria chegar. Ela não é ingênua. Anders
Petter vem sendo um bom companheiro de brincadeiras, mas agora os dois
cresceram e seu interesse há muito já ultrapassou a simples amizade. Ela não
tem nada contra ele — seu temperamento é agradável e ele tem boa
fisionomia, com seus cabelos escuros e olhos azuis —, mas não se sente pronta
para dar o passo que ele quer. Ela não anseia por companhia, não mais do que
Maja, sua mãe, que viveu sozinha a vida inteira. Em outra noite, quem sabe, e
talvez até nem tão distante assim no futuro, mas não naquela. Ela vem
esperando um momento como aquele, tem passado noites em claro pensando
em como apresentar sua recusa sem ferir a amizade que os une. Leva um susto
quando sua reação vem por iniciativa própria, mais depressa do que ela
consegue controlá-la. Ela puxa a mão de volta. No silêncio que se segue, Anna
não sabe o que dizer. Sente-se grata pela escuridão densa o suficiente para
esconder seu rubor. Mas é Anders Petter quem fala.
— Anna, você sabe que eu gosto de você. Sempre gostei.
Ela fica sem palavras.
— E em breve você vai ter idade para se casar, Anna. Sua mãe não está bem
de saúde. Quando ela se for, você vai ficar sem ninguém. Nós podemos
procurar o padre, Anna, e mandar dizer as proclamas...
Sua voz vai sumindo até não sobrar mais nada. Ela continua sem saber o
que dizer. Detesta a si mesma por isso, sente a ferida dele se aprofundar com
seu silêncio. É como se ela fosse um pedaço de mármore caído ali entre os tufos
de grama da Várzea das Crianças a caminho do cinzel do grande Sergel.

O que a faz despertar são os soluços dele. Não consegue mais vê-lo, mas ouve o
mesmo menino que ela um dia reconfortou por causa de cotovelos esfolados e
de hematomas azuis e pretos deixados por um pai que sabia brandir uma vara
de aveleira. Quando ela era criança, a Paróquia de Catarina não era o bairro
miserável e decrépito que só começaram enxergar com a idade, mas uma terra
fantástica de aventura e diversão. As ideias eram dela, mas sem ele não teriam
sido possíveis. Ela fez o telhado de um barraco se transformar no convés de um
navio com destino à China e à Índia, enquanto pedras e lascas de madeira eram
a porcelana e o jade que lhes valeriam fortuna. Quando as chuvas de verão
faziam torrentes d’água jorrarem pelos caminhos da encosta da montanha, eles
combatiam lado a lado. Anna Stina descrevia as chamas que só ela podia ver
enquanto Anders Petter suava a camisa e ria com um balde furado. Com a
imaginação, ela reinventava os seus dias. Por muito tempo pensou que fosse
por isso que Anders gostava tanto dela.
Mais uma vez sua reação vem direto do coração, sem raciocínio ou cálculo.
Ela se vira e o abraça, envolve seu corpo trêmulo com os braços miúdos, e sente
como ele escondeu o rosto nas mãos. Põe-se a balançá-lo para a frente e para
trás como sempre. Ele reage fechando os braços em volta dela e pousando o
rosto em seu pescoço enquanto ela lhe acaricia os cabelos. É um abraço
catártico, e Anna Stina tem tempo de pensar que tudo vai ficar bem antes de os
lábios dele buscarem os seus. Ele lhe cobre a boca com a sua enquanto seus
braços a seguram com força. Quando ela se afasta, ele vai atrás, e juntos os dois
caem na grama. Ele muda de posição em cima dela, pressionando-a no chão
com os quadris pesados, e, quando ela quer protestar, a língua dele está na sua
boca.
Anna Stina sente uma incompreensão como que advinda de um mal-
entendido. Logo a seguir vem o medo. Anders Petter sabe que ouviu um não.
Talvez esteja torcendo para no auge dos beijos conseguir convencê-la a mudar
de ideia, acreditando que um devido recato e a preocupação com a própria
honra sejam seus únicos motivos para rejeitá-lo, que ela na verdade se sentirá
grata pela insistência de modo a poder fingir que a responsabilidade é só dele.
Todos os sons que Anna Stina consegue produzir são sufocados pela boca de
Anders Petter — primeiro as tentativas de falar com ele, depois os pedidos de
socorro. Ela agora está em pânico, e o peito e os ombros de Anders a
imobilizam no chão enquanto com os joelhos ele tenta afastar suas coxas. Algo
que ela não quer oferecer está prestes a lhe ser tirado, e ela não pode fazer nada
em relação a isso.
Não. Ela suga o lábio inferior dele e crava ali os dentes com a maior força de
que é capaz, e sente um gosto salgado e quente que parece metal líquido.
Quando ele se afasta, ela consegue lhe bater, primeiro um tapa, depois dois. Os
braços que a imobilizavam de costas de repente são necessários para estancar a
hemorragia, a pressão que estava em cima dela se alivia. Anders Petter rola de
cima dela para a grama.
Ambos estão aos prantos. Anna Stina é a primeira a parar de chorar. Estende
a mão para tocar Anders Petter outra vez, como amiga, como para dizer que o
que aconteceu pode ser perdoado, mas é como se a sua mão tivesse queimado o
ombro dele. Ele se afasta com um tranco, se levanta e começa a subir correndo
a encosta.
Depois, Anna Stina se lembra de quanta coisa conseguiu pensar durante o
breve tempo que aquilo durou. Dos sentimentos conflitantes. Parte dela
sussurrava que a culpa era sua, que o que estava acontecendo era algo natural,
que tentativas como aquela deveriam ser bem-recebidas. Eles se conheciam a
vida inteira. Por que não se conhecerem daquela forma também? É o tipo de
coisa que se vê por toda parte nos barracos de Catarina, relacionamentos
infantis que amadurecerem e viram algo mais sério. Quantos não terão
começado com cenas iguais a essa, quando o menino que virou homem sabe o
que é melhor e a menina que virou mulher precisa ser forçada a ver a razão?
Anna Stina espera um pouco antes de se levantar. Lá embaixo, na margem,
a fogueira é uma pilha incandescente que em breve será reduzida a cinzas. Um
velho desdentado com o chapéu torto e a barba cheia de nós está sentado perto
dela e lhe sorri com uma das mãos dentro das calças manchadas de sujeira e
vômito. Esteve sentado ali o tempo todo. Ele dispara uma cusparada de sumo
de tabaco por um buraco entre os dentes da frente.
— Estava esperando um espetáculo melhor, mas tenho certeza de que você
vai encontrar um parceiro com mais pulso. Quando isso acontecer, ficaria grato
se pudesse mandar avisar a este pobre coitado, que ficaria feliz em pagar um
xelim para assistir.
Ele dá um tapa na perna e ri das próprias palavras. Anna Stina estremece de
repulsa, sacode a grama das roupas e vai embora pelo mesmo caminho de
Anders Petter, de volta em direção à Paróquia de Catarina.
30

COM A PRIMAVERA vem um tempo mais quente, e com o tempo mais quente
vem a febre. Ela se espalha depressa, e muito embora arrebanhe tanto velhos
quanto moços, tanto ricos quanto pobres, os fracos são atingidos com mais
força. Até onde a memória de Anna Stina alcança, sua mãe Maja trabalhou
como lavadeira na Várzea das Crianças, com as costas vergadas por cima da lã e
do linho, ombro a ombro com as outras mulheres. Toda primavera, ela cai
doente. Sempre foi assim. A febre parece entrar com facilidade nas casas de
manufaturas, mesmo com as janelas fechadas para bloquear os vapores
insalubres da cidade, e Maja Knapp está sempre entre os que adoecem.
Começa com uma dor de garganta e ínguas de um lado e outro da mandíbula.
À noite ela sente calor, chuta as cobertas para longe e sua profusamente.
Quando a manhã chega, continua na cama. Alterna um frio intenso com um
forte calor, e Anna Stina, que divide com ela o cobertor, precisa aceitar ser
alternadamente abraçada ou empurrada para longe. Maja não quer comer nada
e mal bebe água. Cada bocado precisa de muita insistência.
Às vezes ela delira. A fala sai num jorro constante, como se fosse impossível
contê-la, às vezes com palavras incompreensíveis, outras com tanta clareza
quanto se estivesse acordada e de plena posse dos seus sentidos. Nessa noite,
enquanto Anna Stina tenta convencê-la a abrir os lábios para colheradas de
uma sopa rala, ela fala sobre o incêndio. Assim como muitas pessoas mais
velhas daquela cidade, refere-se a ele como o Galo Vermelho, a calamidade que
consumiu a Paróquia de Maria quase inteira no ano de 1759, quando fazia só
poucos anos que Maja Knapp saíra da barriga de sua mãe. Anna Stina já ouviu
essa história mais vezes do que é capaz de recordar, mas nunca como nessa
noite. Tomada por calafrios, Maja fala sem qualquer inibição, e os detalhes
saem tão claros quanto se os estivesse vendo diante dos próprios olhos. É a
história de como elas chegaram à Paróquia de Catarina.
Maja Knapp nasceu na Paróquia de Maria, e naquele dia estava na casa de sua
família, num verão em que o tempo quente havia deixado de ser benção para
tornar-se seca. No pátio entre as casas, construía uma fazenda com pinhas e
gravetos, usando as pedras do calçamento como edificações e agulhas de
pinheiro como cercas. Tanto seu pai quanto sua mãe tinham saído para
trabalhar nos campos para lá de Danto, e enquanto a esposa do vizinho, velha
demais para fazer qualquer outra coisa e com o lado direito do corpo
paralisado, ficava de olho em Maja entre um cochilo e outro, ela podia brincar
durante horas à sombra da tília.
Já era de tarde quando os sinos de Maria começaram a dobrar
desordenadamente. Dois toques distintos, repetidos vezes sem conta, pouco
antes das quatro horas. A torre de Catarina não demorou a responder, e
instantes depois o mesmo toque veio de todas as três torres na Cidade-entre-as-
Pontes. Então veio também do outro lado da Baía Dourada, de Clara, Jacob e
Edviges, e depois da torre do relógio lá no alto do Espinhaço de Brunke. Um
canhão logo respondeu do estaleiro com uma dupla saudação, dois tiros secos,
repetidos várias vezes. Por toda a cidade, bandeiras foram hasteadas para
marcar a propagação das chamas, e suas cores serviam como alerta de que
direção evitar.
Depois de um tempo veio o cheiro, um odor pronunciado de fumaça. Os
olhos ardiam. Os primeiros da multidão em fuga começaram a surgir nas ruas,
pessoas que haviam colocado em carroças ou nas próprias costas quaisquer
pertences que mais valorizassem. Na primeira meia hora, foram
suficientemente poucos para dar a quem morava perto da igreja uma esperança
de que o incêndio fosse debelado. Mas toda a esperança morreu com os ratos.
Eles vieram numa onda cinza, saídos de adegas, depósitos e armazéns do
porto, todos correndo em direção ao mar. Como todos sabem, quando os
irmãos roedores fogem para se salvar, tudo está perdido. Em seu rastro veio o
pânico. Uma hora depois de os sinos da igreja terem começado sua toada, o
vento se intensificou e veio empurrando a fumaça que no lusco-fusco a
Paróquia de Maria inteira mergulhou.
Um menino veio correndo ajudar a tirar os vizinhos dali. Sequer olhou para
Maja, e só quando estava saindo sua consciência o deteve.
— Menina! Fuja! O fogo está vindo de Danto e do Portão do Chifre. Corra
para a Eclusa!
No entanto, por ter sido severamente instruída a não sair para a rua sozinha,
ela decidiu esperar. Àquela altura, a fumaça já fazia seus olhos lacrimejarem e
havia transformado cada inspiração em tosse. Uma vez na rua, logo se perdeu.
Nunca tinha ultrapassado a soleira da porta de casa, e a fumaça ia apagando os
marcos mais memoráveis — as flechas das igrejas, os moinhos. A multidão a
deixou com medo. Pés pesados calçados com tamancos de madeira, rodas de
carroça, carrinhos de mão. Para não ser pisoteada em meio à lama e à pedra, ela
preferiu se esconder na fresta entre dois muros. Perto do chão ainda havia ar
fresco para respirar, e, com a bochecha encostada na terra, ela esperou. Da
névoa a oeste vieram barulhos terríveis. Vacas e cavalos deixados presos foram
assados em pé, gemiam na agonia da morte. Quatro horas mais tarde, quando
o sol baixou e o fluxo de pessoas em fuga tinha cessado, Maja Knapp
continuava no seu esconderijo. Somente então se atreveu a sair de fininho e viu
como o céu estava em brasa.
Foi na rua calçada de pedra que teve sua primeira visão do Galo Vermelho.
Mais alto do que a torre da Igreja de Maria, e com jorros de faíscas que
alcançavam o céu, ele subia com um rugido estrondoso a encosta que se
estendia da margem da baía até o alto do morro. Engolia tudo em seu
caminho. As labaredas irrompiam da madeira seca das casas mambembes.
Sitiavam por todos os lados as construções de pedra dos ricos, agarravam com
seus dedos de fuligem as colunas e adornos do acabamento das fachadas,
estilhaçavam janelas e transformavam interiores num braseiro quente o
bastante para incinerar móveis e tapeçarias. Quando os telhados de cobre
chegavam ao limite de calor, desprendiam das vigas e eram sustentados no ar
pelos ventos quentes tal qual morcegos vermelhos com as asas rasgadas. O calor
do bafo do Galo Vermelho deixou sua pele cheia de bolhas. Ela carregaria essas
marcas até o fim de seus dias.
Um pouco mais adiante na rua, viu um homem de uma perna só lutando
com sua muleta para escapar do fogo em seu encalço. Quando a muleta ficou
presa entre duas pedras e foi arrancada de sua mão, ele tentou rastejar. As
roupas e a peruca começaram a soltar fumaça enquanto ele gritava sem
articular palavra alguma, e de repente a peruca pegou fogo. Seus guinchos
agudos continuaram por algum tempo. Foi então que Maja finalmente
começou a correr, aos prantos e aos gritos, para longe do braseiro, com riscos
de lágrimas no rosto esfumado. À sua volta, as faíscas voavam, acendendo
novos incêndios onde quer que aterrissassem. A sensação era a de estar
correndo por uma floresta luminosa de outono, mas caíam chamas em vez de
folhas.

Sua mãe a aguardava desesperada na Praça Sul, para onde os moradores tinham
sido forçados a descer na direção da Eclusa e agora estavam amontoados,
contidos por guardas da cidade armados com baionetas. Ela nunca mais viu o
pai.
No dia seguinte, o incêndio ainda ardia. Maja e a mãe primeiro
sobreviveram graças às doações da comunidade da paróquia. Depois o dono
das terras de Danto ficou com pena delas, que perderam a casa. O corpo do pai
de Maja era indistinguível entre os outros cadáveres. Da noite para o dia, uma
geração inteira foi reduzida a destroços e ruínas, fadada a passar o resto de seus
anos vagando pelas ruas, vestida com andrajos e afogada em álcool, fantasmas
de quem um dia tinham sido. Trezentos casarões e casas deixaram de existir.
Uns vinte quarteirões foram ao chão.
À medida que ia se tornando adulta, Maja Knapp os viu se reerguer das
cinzas, só que dessa vez em pedra. As casas de madeira da sua infância não
existiam mais. O carpinteiro morria de fome, e o pedreiro fazia fortuna. Maja
Knapp e a mãe foram obrigadas a se mudar para a Paróquia de Catarina, onde
as velhas e gastas casas de cômodos de madeira continuavam de pé, uma
barafunda de ângulos e recônditos com anexos construídos onde fosse possível,
para que os senhorios pudessem ganhar mais dinheiro — a uma faísca de se
tornar uma nova armadilha mortal para os destituídos. Foi lá que ela ficou, lá
que encontrou um homem, com quem teve também uma filha. O pai
desapareceu no mesmo instante em que a barriga começou a aparecer.

Anna Stina encosta a mão na testa da mãe. Maja Knapp arde em febre e sua
respiração está fraca. Provavelmente é o calor da febre que a faz recordar a
Paróquia de Maria devastada pelo Galo Vermelho. Anna Stina sente o nó na
garganta. Não quer deixar a mãe sozinha, mas não tem outra escolha. Precisa ir
correndo buscar socorro, embora não tenha nada a oferecer em troca.
Quando joga o xale nos ombros e abre a porta para sair às pressas, leva um
susto ao ver uma pessoa em pé do lado de fora: é Boman, o sacristão da Igreja
de Catarina. Ele é jovem e tem esperanças de algum dia assumir a paróquia.
Exala um cheiro de bebida tão forte que decerto deve ter tomado alguns goles
da garrafa segundos antes de Anna Stina abrir a porta. Mas ela não estava
esperando nenhuma ajuda e se pergunta quem terá lhe pedido para ir até lá.
Não tem tempo para desperdiçar com gratidão.
— Maja está com febre. Por favor, reze por ela enquanto eu corro até o
boticário.

Meia hora mais tarde, ao voltar, Anna Stina está de mãos vazias. O boticário
Josef Karlsson vai ficar fora pelo resto do dia e, na opinião da esposa, estava tão
alterado pelo efeito do ponche que não faria diferença nenhuma mesmo que
Anna Stina fosse correndo até o Pasto Real para buscá-lo.
Um silêncio se abateu sobre a casa. Até as famílias com quem as duas
dividem a moradia estão paradas em suas soleiras quando Anna Stina retorna.
Boman, em pé junto à cama, tem as mãos unidas em prece. Alguém puxou o
lençol por cima do rosto de Maja, e no início Anna Stina não entende por quê.
Boman pigarreia e as palavras que ele diz soam desconfortavelmente
cerimoniosas em sua voz jovem.
— Anna Stina, sua amada mãe Maja Knapp nos deixou, que Deus tenha
piedade de sua alma.
Ele balbucia mais umas poucas palavras que Anna Stina não ouve. Ela sente
os joelhos cederem sob o peso do corpo. Perde o ar como se tivesse levado um
soco na barriga. A injustiça é mais do que ela pode suportar. Maja Knapp, que
sustentou a filha única sozinha por tanto tempo, que aguentou pacientemente
o desprezo de seus irmãos paroquianos por causa da filha ilegítima, que
maltratou o corpo com trabalho físico dia após dia... Ter suportado tudo isso
apenas para morrer sozinha sem o conforto merecido? É demais. O corpo
inteiro de Anna Stina estremece. Boman se esforça para encontrar as palavras
certas ao falar outra vez.
— Não foi por causa de Maja que eu vim aqui hoje. Vim trazendo um
recado do pastor, e você precisa saber que nenhum de nós dois tinha como
saber de antemão o que o destino reservava para esta noite. Creio ter sido a
providência que fez Maja ter um homem de Deus ao seu lado em seus instantes
finais.
Boman se cala e precisa esfregar o osso do nariz por algum tempo antes de
poder prosseguir.
— Nós recebemos uma carta com um testemunho contra a sua pessoa,
Anna Stina. Você está intimada a se apresentar diante do Consistório para
enfrentar uma acusação de prostituição e tentativa de induzir um inocente ao
pecado. O pastor gostaria de lhe falar primeiro.
31

— E COMO VOCÊ ganha a vida, Anna Stina?


Elias Lysander é baixo e rotundo; com cerca de cinquenta anos de idade, é
quase tão largo quanto alto. O casaco preto de religioso está justo no peito e na
barriga, e a papada se derrama pelo colarinho. O cômodo onde ele recebe
visitas é mal iluminado e tem as paredes revestidas por um tecido que as
últimas décadas encardiram de fuligem. O que pretendia passar uma impressão
séria e solene se perdeu em meio ao entulho. Há livros e volumes contábeis
empilhados junto a tinteiros e cachimbos de barro. Lysander a recebe sentado
atrás de sua mesa enquanto ela fica em pé na frente dele. Anna Stina quase
nunca viu o pastor fora do púlpito. Ele parece ao mesmo tempo maior e
estranhamente diminuto. Assim de perto, exala cheiro de suor e fumaça, e
ainda se nota em seu hálito o cheiro do arenque do desjejum. Ao mesmo
tempo, o poder que ele detém é mais evidente agora que ele se dirige não a
uma multidão, mas somente a ela. A voz é a mesma, uma voz forte que exige
atenção por meio de uma dignidade inerente. Ela não consegue impedir as
próprias palavras de vacilarem ao lhe responder.
— Eu carrego um cesto de frutas e posso ficar com uma parcela do lucro
das vendas.
Lysander aquiesce como se isso confirmasse o que ele já sabe. Deixa passar
algum tempo antes de prosseguir e mantém os olhos cravados em Anna Stina,
que não sabe se deve encará-los ou não.
— O sacristão Boman me disse que sua mãe Maria Knapp nos deixou.
— Maja. O nome da minha mãe é Maja.
A voz de Anna Stina sai baixa e débil. Os olhos injetados de Lysander se
voltam venenosamente para Olof Boman. Este último está em pé num canto,
com as mãos nas costas, fingindo ignorância. Anna Stina endireita a coluna no
silêncio pesado.
— Era.
Lysander se sacode para descartar a irritação.
— O Senhor dá e o Senhor leva embora, Anna Stina, e você deveria se
reconfortar com o fato de que a sua mãe agora está num lugar melhor.
Lysander parece momentaneamente confuso, sem saber como levar a
conversa daquele aconselhamento sobre o luto para a questão em pauta. Está
de ressaca da noite anterior, e sua tradicional série de doses matinais não
conseguiu amenizar a dor de cabeça. Com um quê de tristeza, ele decide que,
na falta de uma solução mais elegante, terá de ir direto ao ponto.
— Você já pensou em como vai se sustentar na ausência da sua mãe? Maja
Knapp não era casada, ninguém nunca soube do seu pai, e não parece haver
nenhum noivo por perto, embora você já esteja na idade.
Anna Stina se fez a mesma pergunta e duvida que uma resposta incapaz de
satisfazer a ela mesma pudesse ser o bastante para Elias Lysander. Mal havia se
passado um dia desde que o corpo da mãe havia sido levado em uma maca para
o cemitério dos pobres na igreja. Anna Stina providenciou o melhor enterro
que pôde.
— Pode ser que eu consiga manter meu quarto por um aluguel menor. Ou
quem sabe meu senhorio tenha um aposento menor para mim. Acho que
conseguirei casa e comida. Acho que conseguirei vender mais se o verdureiro
Jansson permitir, e estou disposta a trabalhar mais horas.
Lysander e Boman trocam olhares cúmplices.
— E que tipo de fruta você vende, Anna Stina?
Ela sente o tom ameaçador subjacente na voz dele.
— Limões, quando temos, senão ameixas e frutas silvestres. Maçãs no final
do verão e no outono.
Lysander a encara com severidade.
— Anna Stina, você sabe o que dizem das jovens que vendem frutas em
cestos?
Ela sabe. Não consegue encará-lo nos olhos ao responder.
— Muitas se vendem por dinheiro e quase nunca carregam frutas.
Ela mesma já cruzou com essas jovens nas ruas e nos pátios, já viu moças
com quem trabalhou saírem de vãos de escada com os cabelos despenteados, as
roupas em desalinho, e no cesto a mesma quantidade de frutas que havia pela
manhã. Todas sonham em arrumar um beau. Todas conhecem as histórias. Por
acaso sempre aconteceram com a amiga de uma amiga; um dia fora igual a elas,
mas hoje dança na companhia de barões usando colares de pedras preciosas,
com os cabelos cacheados em penteados tão altos e esplendorosos que os
candelabros tilintam quando ela passa. Algumas das moças se adaptam melhor
ao trabalho nos colchões e nas escadas. Encaram isso com naturalidade. Outras
sofrem, poucas duram muito. Desaparecem. Para onde vão, ninguém sabe
dizer. Algumas deixam os cestos de frutas não em troca de lindos salões de baile
e rodas da alta sociedade, mas de alguma casa de má fama onde abandonam
seus verdadeiros nomes e passam dias e noites deitadas de costas enquanto os
clientes montam nelas em sequência. As vielas da cidade têm um nome para
essas criaturas perdidas: “borboletas da noite”. Toda noite elas se juntam num
enxame.
— Anna Stina, você e sua mãe parecem ter vivido com razoável conforto
mesmo sem ter um homem em casa. Ambas foram concebidas em pecado.
Você parece ter ganhado uma quantia considerável com as mercadorias do seu
cesto e agora se posta aqui na minha frente dizendo que foram os seus limões
que agradaram tanto aos clientes?
Anna Stina sente o sangue subir às faces. Seu rubor certamente será
interpretado como mais um sinal de culpa. Ela não sabe o que dizer. Desde o
início, a verdade parece ter sido rotulada de mentira. O pastor Lysander se
inclina para a frente, une as pontas dos dedos e continua sem esperar resposta.
— Você faz bem em se manter calada, minha menina. Há testemunhas do
seu comportamento pecaminoso. A Paróquia de Catarina pode sofrer com a
pobreza, mas se você pensa que aqui não há pessoas de bem dispostas a fazer
alguma coisa em nome do que é correto e adequado, está redondamente
enganada.

Elias Lysander se pega desejando ter sido deixado em paz naquela manhã,
sozinho com seu tabaco numa cadeira posta no jardim. Considera aquele
processo tanto exaustivo quanto previsível. Como aquela menina se atreve a
tentar lhe vender aquelas mentiras, a ele que vive e trabalha há anos na
Paróquia de Catarina, e que conhece de cor e salteado aquela velha história? A
filha, uma rameira igual à mãe, geração após geração, remontando até a Queda.
São de um tipo que não teme a Deus, que não sabe distinguir o certo do
errado, tão suscetível aos pecados da carne quanto os animais do campo,
simples pagãs que só se curvam a Mamon, Baco e Vênus. Tudo só fez piorar à
medida que o século foi passando, e para Lysander o fardo se torna mais pesado
a cada ano.
O incêndio de 1759 fez a Paróquia de Maria mergulhar numa miséria
abjeta, e quando as casas de pedra subiram e com elas os novos aluguéis, quem
teve de acolher os menos afortunados foi Catarina. Elias Lysander precisa
responder perante Deus por todas essas almas, mas, por mais que se esforce,
nunca é o bastante. As sessões diante do Consistório da Igreja, onde a roupa
sempre suja da sua paróquia é lavada na presença de sacerdotes de todos os
cantos da cidade — de Clara, Maria, Jacob, Nicolau e Edviges Leonor — são
as piores. Ele começou a se fortalecer com algumas doses antes dessas reuniões,
mas nem o conhaque é capaz de aliviar a humilhação diante de colegas que
observam de modo maldoso o que todos podem ver: que Elias Lysander é um
mau pastor para o seu rebanho. Mais um cordeiro perdeu o rumo, e ele se vê
impotente para evitar que isso aconteça. Subitamente é dominado pela
injustiça da própria situação.
— Anna Stina Knapp, não adianta mentir. Natanael Lundström e sua
esposa Clara Sofia, ambos pessoas tementes a Deus, que contribuíram para o
bem-estar da paróquia com suas doações e preces, testemunharam por escrito
sobre como você tentou conduzir o filho deles, o aprendiz de marinheiro
Anders Petter, ao pecado. Com seus ardis femininos, você o atraiu, expôs suas
vergonhas e rebolou os quadris, oferecendo-se e tentando de todas as maneiras
por meio da sedução fazê-lo violar o sacramento. Assim como tantas outras
mulheres que vieram antes de você, eu sei que tudo que deseja é encontrar seu
Adão, fazê-lo cair em tentação, desvirtuar seu caminho. O que você faz com o
seu cesto está claro para todos, e os Lundströms sabem muito bem disso. Não
vejo motivo para duvidar das afirmações deles.
Lysander se detém. Está ofegante após tanto esforço e sente o coração bater
depressa. A moça fica ali, com a saia de linho branco erguida ao redor dos
tornozelos para que não arraste no chão sujo do trajeto que precisa percorrer
todos os dias, a cabeça abaixada sob o lenço que amarrou à sua volta, calada e
pálida. Quando o pastor volta a falar, é num volume um pouco mais baixo e
por seus próprios motivos: que dessa vez sejam as rameiras da Campina e das
encostas do Espinhaço de Brunke a cobrir de vergonha a história de seu pastor.
— Mas embora o seu comportamento seja grave, eu não gostaria de vê-la
diante do Consistório. Você ainda é jovem e tem toda a ignorância da
juventude que pode agir a seu favor. Melhor seria se esse problema encontrasse
uma solução dentro da paróquia, embora você não deva ser liberada sem uma
penitência adequada. Sendo assim, eu sugiro o seguinte: você se arrepende dos
seus pecados aqui diante de mim e do sacristão, redime-se com Anders Petter e
a família dele em preces de perdão e promessas de se emendar, e depois disso
resta apenas a multa da igreja. Como sabemos que você não tem muitas
moedas sobrando e tampouco queremos você por aí com seu cesto vendendo
mais daquilo que chama de fruta, vamos nos contentar com uma soma
simbólica. Entendeu, Anna Stina?

Anna Stina sente a mesma paralisia experimentada diante do leito de morte de


Maja. Não consegue respirar, não consegue se mexer. Tudo que consegue fazer
é ficar sentada imóvel enquanto Boman se remexe e o rosto do pastor Lysander
vai adquirindo um tom de vermelho cada vez mais escuro.
— Perdeu a língua? Não está entendo o trabalho que terei para poupá-la
desse sofrimento? Você vai confessar o que fez e se penitenciar pela sua
prostituição!
Talvez seja por possuir tão pouca coisa que Anna Stina faz o que faz. Talvez
alguém com mais posses em termos de bens mundanos tivesse se dado ao luxo
de valorizar menos a verdade. Mas diante do olhar furioso de Lysander, é como
se aquilo fosse tudo que lhe restasse, e ela constata, para o próprio espanto, que
não quer perdê-lo. Aquilo é seu, e de repente representa tudo para ela. Maja
Knapp está morta, e quando Anna Stina toma a única decisão que pode tomar,
é a primeira vez que sente qualquer reconforto desde a morte da mãe. Debaixo
da terra, Maja jaz segura e fora do alcance da catástrofe que Anna Stina já
antevê. O que lhe escapa dos lábios é o mais débil dos sussurros.
— Não.
Anna Stina fecha os olhos e espera o rompante. Ele não vem. Quando torna
a abri-los, tudo continua igual a antes. Lysander está imprensado na cadeira
com seu traseiro demasiado grande para a almofada. Boman está fingindo que
não existe. Um ódio mudo reluz nos olhos de Lysander, mais amedrontador
ainda quando domado. Ele não ergue mais a voz, que sai quase branda ao
dizer:
— Suma da minha frente, Anna Stina Knapp.
Anna Stina só começa a chorar depois de virar as costas. Promete para si
mesma que essas lágrimas serão as suas últimas. O que é uma mentira.
33

TUDO ACONTECE DEPRESSA, conforme dissera Fischer. Sob o orvalho, Anna


Stina é conduzida ao sopé do morro de Catarina com uma corda no pulso
direito e gritos zombeteiros dos carregadores de dejetos, que talvez um dia
foram vítimas do mesmo destino. No Tribunal Sul, a audiência de Anna Stina
termina em minutos, após um testemunho sumário já apresentado por escrito
por Lysander e corroborado pelo próprio Fischer. Umas poucas palavras de
reprimenda selam seu destino.
Anna Stina Knapp é considerada culpada de prostituição. Sua internação na
casa de correção é justificada ainda pelo fato de ter perdido sua única
responsável, e, portanto, também seu sustento, especialmente uma vez que o
verdureiro Efraim Jansson não quer mais saber dela. O juiz, um sujeito muito
vermelho e rosto ébrio e inchado, caça uma pulga debaixo da camisa enquanto
repete palavras que fluem com uma facilidade experiente.
— A corte espera que o ofício de fiandeira ao qual a senhorita Knapp irá se
dedicar na casa de correção seja benéfico para ela e sirva de base para um futuro
emprego na indústria manufatureira local. Com isso em mente, a sentença terá
um ano e meio de duração, após o qual ela sem dúvida será uma fiandeira
razoavelmente capaz.
Seu comentário espirituoso o faz dar uma risadinha satisfeita ao mesmo
tempo em que ele bate o martelo. Ele examina a pulga esmagada e em seguida
limpa a mão na barra da toga.

Anna Stina é conduzida para longe da tribuna do juiz antes de ter tempo de
protestar ou fazer qualquer pergunta. Atrás dela, há uma longa fila de
sentinelas, todos prontos para fazer desfilar diante da lei a captura da noite.
Eles a conduzem em silêncio por fileiras de homens e mulheres, alguns tão
ébrios que não conseguem nem ficar em pé, outros ostentando marcas
ensanguentadas de brigas recentes. Em frente ao Tribunal fica o Pátio Russo.
Fischer boceja sob o sol da manhã e estica a perna enrijecida com as mãos na
base das costas.
— Eu é que não vou a pé até a Cicatriz. Vamos tentar arranjar uma carona.
Tyst responde com um meneio de cabeça. Fischer tenta em vão reacender
seu cachimbo quebrado, mas para ao ver uma carroça carregada de lenha a
caminho das docas, puxada a passo vagaroso por um boi. Vai depressa até lá
falar com o condutor e após um breve diálogo acena para Tyst. Há um lugar
para eles na caçamba, em cima dos troncos recém-abatidos. Fischer pega a
corda que prende Anna Stina e amarra uma das pontas numa das vigas que
servem de contenção para a carga.
— Estamos esperando mais uma passageira. Vai demorar só um instante
para Tyst ir buscá-la.

Quando ele emerge da entrada do Tribunal, quem está na outra ponta da corda
é Karin Ersson. O Dragão. Fischer aquiesce ao ver a expressão de
reconhecimento no rosto de Anna Stina.
— Pegamos essa outra de lambuja graças àquela vendedora de frutas
imbecil. Ela deu menos trabalho; bastou seguir os grunhidos altos de um oleiro
devasso. Conseguimos pegar a Srta. Ersson em flagrante, por assim dizer.
Anna Stina vê o Dragão de perto pela primeira vez em muito tempo. Seu
vestido está endurecido com uma crosta de lama. As costas tortas formam um
caroço num dos ombros, silhueta que todas as vendedoras de frutas
aprenderam a evitar de longe. O Dragão parece mais acabado desde a última
vez. O corpo alto e esbelto emagreceu durante o inverno. Os cabelos estão tão
imundos com a sujeira das ruas que parecem prematuramente grisalhos, e há
uma crosta de sangue seco na parte de trás da cabeça. As roupas estão rasgadas,
os pés descalços e cobertos de feridas. Deve estar dormindo ao relento há
semanas. Os gélidos olhos azuis estão arregalados e fixos. Anna Stina já viu a
mesma expressão nos olhos dos ursos domesticados que dançam no Pasto Real
enquanto seus donos estalam os chicotes: uma raiva mal contida, impotente e
desesperançada, mas sempre pronta para se acender como o enxofre, uma
espécie de insanidade cuidadosamente construída de modo a manter o medo
longe.
Tyst empurra o Dragão para cima da carroça na sua frente. A mulher lança
para Anna Stina um olhar rápido e furtivo antes de se concentrar em um nó na
madeira. O condutor dá um tapa no boi e a carroça começa a subir o morro.
Passam pela prisão dos endividados antes de fazer uma curva para descer em
direção à baía, e também por dois moinhos muito antigos. Quando a estrada
faz outra curva, ela a vê pela primeira vez: a Cicatriz, logo depois da Ponte da
Casa de Correção, que ela já ouviu ser chamada de Ponte dos Suspiros.

A ilha é pedregosa e árida. O pouco de terra que recobre a camada rochosa não
basta para que a vida se instale. Do outro lado da ponte há um conjunto de
construções, e atrás delas se ergue a casa de correção em si. Anna Stina nunca
viu nada igual àquilo nem na Paróquia de Maria, nem na de Catarina. Mais
perto dela se ergue a torre da capela. Um solitário sino preto pende sob um
telhado encimado por uma cruz e uma flâmula. Atrás da capela se estendem
alas com as janelas fechadas por barras. Os mais velhos dizem que alguns
lugares desenvolvem lembranças e poder próprios. Anna Stina acredita nisso. Já
sentiu arrepios no terreno de execução em Hammarby e, perto das antigas valas
de pestilentos, sentiu o medo residual contido no cavalo de madeira e no
tronco. Chegou até a sentir alguma coisa nos arredores das manufaturas, como
se os tijolos estivessem saturados de maldade. Ao atravessar a ponte, sente uma
onda avassaladora da mesma sensação. Das paredes da casa de correção, uma
vibração de ódio antigo que se acumula há décadas vem cobri-la. Aquele é um
lugar de tormento.
À sua esquerda, ela escuta um som do último tipo que imaginaria ouvir
naquele cenário sombrio. Alguém está cantando. A voz se propaga bastante na
manhã calma, e é possível perceber que o cantor foi talentoso quando jovem.
Ele é afinado, embora sua voz grave como um baixo tenha perdido boa parte
do timbre.
— O Deus da Noite aqui se apronta para capturar sua presa...
A canção vem de um casarão alto junto à estrada, no qual uma janela está
aberta. A parte externa da casa exibe o mesmo amarelo-claro que se vê por toda
a Cidade-entre-as-Pontes, mas a proximidade com a água deteriorou a pintura.
A umidade e o gelo cravaram seus dedos bem fundo no reboco, soltando
pedaços enormes. Quando a carroça chega mais perto, Anna Stina vê que a
condição do prédio principal é parecida. A voz se dissipa atrás deles.
— Nas profundezas do abismo encontrarei meu caminho...
O condutor faz o boi parar. Fischer e Tyst desamarram o Dragão e Anna
Stina, depois as obrigam a descer da caçamba. Fischer lança olhares rápidos
para os lados antes de se dirigir ao condutor.
— Então, amigo, agora chegou a hora do seu pagamento. Meninas, por
favor levantem a saia para este nosso bom homem, e não se acanhem pois a
gorjeta deve ser generosa.
O Dragão hesita, mas então dá de ombros, ri alto e mostra a língua para o
condutor ao mesmo tempo em que faz o que lhe mandaram. Anna Stina é
tomada pela mesma sensação que teve diante de Lysander, um ressentimento
feroz diante do que lhe está sendo tomado, tão pequeno aos olhos do mundo,
mas para ela infinitamente importante. Mais uma vez, fica parada como se
estivesse com alguma paralisia. Cerra os punhos com tanta força que suas
unhas cortam as palmas. O condutor aponta para ela com gesto de acusação e
exprime seu desagrado.
— E essa daí? Esta aqui não é grande coisa, e se ela estivesse sozinha eu
nunca teria aceitado vir até aqui.
Fischer lança um olhar venenoso para Anna Stina e, sem dizer nada, faz um
gesto para Tyst, que solta o porrete do cinto. Bem nesse instante, uma porta se
abre atrás deles. Um homem de roupa preta de religioso sai. Para ao ver o
pequeno grupo junto à carroça e os encara com um ar intrigado. O religioso é
alto, magro e tem cabelos grisalhos arrepiados. Os olhos são esbugalhados, as
pupilas proeminentes no meio da parte branca, e as pálpebras piscam com
incomum regularidade. Ele parece pressentir que algo não está certo. Chega
mais perto e encara Fischer e Tyst alternadamente enquanto ostenta um
desagrado evidente.
— Pois não?
Fischer tira o chapéu azul e responde em tom deferente:
— Fischer e Tyst, sentinelas números doze e vinte e cinco. Viemos entregar
duas fiandeiras noviças aos cuidados do inspetor Björkman.
O religioso bufa pelas ventas e se aproxima até a ponta do nariz ficar a
apenas um dedo de distância do de Fischer. Este último precisa fincar os
calcanhares no chão de modo a não cambalear para trás.
— Aos cuidados do inspetor Björkman, o senhor diz? Não é possível que
esteja se referindo ao mesmo inspetor Björkman que passa os dias berrando
velhas árias esquecidas de uma época igualmente esquecível no palco da ópera,
talvez uma elegia ao monarca que o nomeou para esse cargo, um que o permite
se entregar à glutonia, algo que valoriza mais do que tudo exceto o vinho e a
masturbação. Não esse inspetor Björkman, tenho certeza?
Fischer fica aparvalhado e sem saber o que fazer. As lágrimas quase lhe
brotam dos olhos na sua tentativa de sustentar o olhar do religioso.
— O senhor parece ter perdido a língua, Fischer. Permita-me lhe esclarecer,
de modo que possa responder melhor da próxima vez em que alguém
mencionar o inspetor Björkman. Björkman é um vadio, um canalha, um porco
que não hesitaria em entrar no chiqueiro e copular com as porcas até rolar de
luxúria na lama e matar de medo o povo honesto da Paróquia de Maria com as
trovoadas de seus roncos.
Quanto mais o religioso fala, mais alta vai ficando a sua voz. A saliva espirra
de sua boca toda vez que ele articula uma consoante. Anna Stina percebe que
não foi seu olhar intenso que fez os olhos de Fischer lacrimejarem. O fedor de
álcool que emana dele agora a alcançou, muito embora ela esteja a um ou dois
metros de distância e uma brisa leve sopre da água.
— Mas talvez o senhor seja feito da mesma fibra, Fischer, a julgar por sua
pança.
O religioso começou a rodear Fischer com as mãos nas costas, como se fosse
um diretor de escola severo em plena inspeção.
— Bem, Fischer, o senhor lançou algum olhar desejoso para nossos animais
a caminho daqui? Talvez tenha visto o touro em seu estado de excitação e
desejado pular a cerca para assumir posição com o traseiro virado para cima.
Os animais não estão formalmente sob a minha responsabilidade, e se possuem
ou não alma é questão que deixo para homens mais sábios, mas prometo não
deixar de dar meu voto por sua descida veloz rumo ao inferno se for esse o
caso. Na verdade, é para lá que eu lhe incentivo a ir agora, e depressa, assim
que as suas mercadorias tiverem sido carregadas portão adentro e admitidas
aqui.
Fischer, com a testa salpicada de suor no esforço de manter o autocontrole,
afasta-se depressa para soltar as cordas do braço de Anna Stina, sentindo-se
grato. Com a boca junto ao ouvido dela, sussurra suas palavras de despedida.
— Se nos reencontrarmos, Anna Stina Knapp, é melhor você rezar aos
deuses para me ver primeiro.
Ele a empurra junto com o Dragão para dentro dos portões, onde um
guarda vestido com o mesmo uniforme azul está à espera. O religioso
desaparece atrás deles em direção à casa junto à ponte, com um andar um
pouco trôpego e resmungando consigo mesmo como se ainda repreendesse
Fischer, que cospe por cima do ombro.
— Então esse é o pastor Neander. Ouvi dizer que ele não bate bem. Agora
tenho certeza.
O sentinela no portão, um homem mais velho, de pele manchada e sem
cabelos nem sobrancelhas, dá uma risadinha maldosa.
— Lamento saber. Quem cruza o caminho de Neander quando ele está com
esse humor certamente não tem sorte.
— Qual é o problema com ele?
— Tirando uma falta generalizada de bom senso, ele soube recentemente
que Björkman, nossa voz grave preferida e inspetor da casa de correção,
apresentou sua demissão e pretende ir se aposentar em Savolax.
— Considerando os sentimentos que ele acaba de demonstrar em relação ao
inspetor, seria de se pensar que ele ficaria feliz com a separação, não?
— Ah, esses dois têm uma história complicada. O pastor passou anos
escrevendo cartas arrebatadas de protesto contra Björkman para todas as
autoridades em que conseguisse pensar, inclusive o próprio finado rei Gustav.
Essas, aliás, terminaram com uma multa de vinte dalers por ter empregado em
sua missiva um tom inadequado aos olhos de um regente. Dizem que ele
brindou com champanhe na mesma hora em que ouviu que o rei tinha levado
um tiro. Meu palpite é que o pastor Neander está bravo porque, com sua saída,
Björkman vai escapar da vingança que ele vem planejando há tanto tempo.
— Quem vai substituir Björkman?
— Ninguém sabe, mas talvez isso só aconteça no outono, talvez depois.
Quem diabo vai querer se instalar nesta ilha desolada? Björkman vem, é claro,
negligenciando suas obrigações há vinte anos, e provavelmente foi apenas
graças a isso que se manteve são. Praticamente não o vi na casa de correção
desde o inverno. Neander conduz as preces pela manhã e também à noite, em
geral tão embriagado que mal consegue ler, e, de toda forma, ele não está nem
aí para os detentos a não ser que possam de alguma forma ser usados como
munição em sua batalha contra Björkman. Seja como for, quem manda aqui é
Pettersson, como você sabe, e isso não vai mudar apenas porque vamos ganhar
um novo inspetor.
— Maldição, mas que latrina é isto aqui, hein? Deus bem sabe que eu não
tenho muitas coisas pelas quais agradecer, mas evitar este ninho de vespas é um
deles. Trouxe duas novas fiandeiras para você, vadias as duas. Muito boa sorte,
meninas.
Fischer leva a mão à aba do chapéu, gira nos calcanhares e sai mancando
pelo portão.
34

O SENTINELA COM o rosto marcado chama um colega mais jovem, puxa a barra
da porta para trás e faz os três entrarem num pátio interno. No centro dele há
um poço com uma bomba manual. O pequeno quadrado de céu que dali se vê
parece muito distante, como se Anna Stina o estivesse observando do fundo de
um túnel. Atrás das janelas nas alas, todas fechadas com barras, é possível
distinguir silhuetas escuras inclinadas sobre seus trabalhos. A outra extremidade
do pátio é ocupada por uma construção mais antiga, parecida com os casarões
que Anna Stina viu nos arredores da Ilha Sul, erguidas mais de um século antes
para serem usadas pelos ricos. Talvez houvesse uma como essa ali antigamente,
agora transformada em parte da casa de correção com a construção do resto.
Os sentinelas param no cascalho. Ali precisam esperar o zelador.
Ele não tem a menor pressa. Se Dragão está sentindo a mesma ansiedade de
Anna Stina, não o demonstra. Pelo contrário, está importunando um dos
sentinelas que foram destacados para vigiá-las. Pula sem sair do lugar e diz que
precisa usar a latrina. Ele dá de ombros.
— Se no espaço entre uma orelha e outra você tiver alguma coisa, vai ficar
de boca calada. Petter Pettersson não vai demorar a chegar, e é melhor você não
deixá-lo com raiva.
O Dragão lhe lança um olhar de fúria e lhe faz uma careta assim que ele se
vira de costas. Eles aguardam.
O zelador é um homem imenso, com os ombros tão largos que Anna Stina
não conseguiria abarcá-los nem se esticasse os dois braços. O uniforme azul
não é do seu tamanho. O casaco está aberto, e ela duvida que ele conseguisse
abotoá-lo mesmo se quisesse. O calor faz seu suor escorrer. Seu rosto é grande e
redondo, dividido por uma boca que vai de orelha a orelha, com um nariz
largo e arrebitado que parece um focinho e olhos atentos muito afundados na
carne inchada. Sua farta cabeleira está presa na nuca com um nó apertado. A
pele tem várias cicatrizes, e a voz é bem rouca.
— Bem-vindas ao nosso humilde barracão, minhas pintinhas. Eu me
chamo Pettersson e sou zelador deste lugar juntamente com meu colega
Hybinett. A sua presença aqui foi requisitada para reparar seu comportamento
pecaminoso. Nomes?
Quem aponta e responde é o jovem sentinela.
— Anna Stina Knapp. Karin Ersson.
Pettersson inspeciona as duas. Anna Stina baixa os olhos do modo que
aprendeu ser o preferido por homens assim. O Dragão o encara de volta com
um ar de desafio. Ela não para de se balançar para aliviar a necessidade urgente.
Pettersson aponta para ela com a mão que tem o tamanho de um presunto
defumado.
— Qual é o problema com a Srta. Ersson?
— A garota disse que precisa mijar.
— É mesmo, Srta. Ersson? Naturalmente a senhorita está acostumada a
andar por aí e urinar quando quer, livre como um animal selvagem.
O Dragão espera antes de responder. Anna Stina ouve o desafio implícito na
fala de Pettersson mesmo que suas palavras tenham soado com uma suavidade
fingida, e reza em silêncio para Karin Ersson ter o bom senso de não morder a
isca que lhe foi lançada. Mas ela morde. Empina o queixo e cospe a resposta.
— Eu esvazio minha bexiga como bem entender e ninguém tem nada a ver
com isso.
Os cantos dos lábios de Petter Pettersson se curvam para cima num sorriso
que faz Anna Stina estremecer. Um gato bem gordo de fazenda que acabou de
pegar um camundongo. Bem devagar, ele umedece os lábios com a ponta da
língua enquanto chega mais perto.
— Deixe-me dar uma olhada.
Com o polegar e o indicador, ele segura o queixo de Karin Ersson e vira o
rosto dela em direção à luz.
— Ah, eu já conheci moças como a Srta. Ersson. Elas enfeitam os bares e
bordéis da cidade. A senhorita gosta de dançar?
Anna Stina sente vontade de lhe dizer para não morder a isca, para manter a
boca fechada e torcer para ele se cansar daquele jogo. Mas não há nada que
possa fazer. O Dragão sorri com segurança.
— Eu com certeza sei dar umas voltas pelo salão.
Pettersson finge admiração e se vira para o colega.
— Justo o que eu pensava, não é? Eu conheço as minhas meninas. A
senhorita é boa dançarina, ou se segura no parceiro como um saco de batatas e
se cansa após uma ou duas polonesas?
O Dragão dá uma risada desdenhosa.
— O senhor está olhando para alguém capaz de dançar a noite inteira
enquanto os outros se cansam e caem no chão!
Pettersson aquiesce.
— Se a senhorita diz... Eu gostaria de acreditar na sua palavra, mas aprendi
que as pessoas muitas vezes superestimam as próprias habilidades. A senhorita
faria uma pequena dança aqui? Só para mim?
O Dragão hesita. Após algum tempo, não sabe mais o que fazer senão dar
alguns passos saltitantes ali mesmo onde está. Pettersson meneia a cabeça.
— Não, não. Em volta do poço. É assim que fazemos aqui na Cicatriz. Por
que a senhorita não dança em volta dele uma ou duas vezes para podermos ver
como é boa?
Ele lhe estende o braço, dobra um dos joelhos enquanto faz uma mesura e
arrasta o pé no chão. Ela se deixa conduzir até o poço, onde a bomba se
estende por cima de uma pia de pedra para recolher qualquer água derramada.
No início ela parece insegura, mas então se decide e, com um sorriso, abraça
um parceiro invisível e começa a dançar num ritmo rápido de três compassos
que só ela pode ouvir. Vai girando e dá uma volta no poço. Pettersson bate
palmas e assobia.
— Ora, ora, vejam só! Não é que no fim das contas a Srta. Ersson sabe
dançar? Podemos pedir outra volta? E com a mesma disposição?
A segunda volta é praticamente igual à primeira. Quando Petersson pede
uma terceira e uma quarta, porém, a novidade já perdeu o brilho. O Dragão se
cansou da brincadeira e deixa os braços penderem conforme seu ritmo começa
a falhar. Quando Petersson aplaude e pede mais uma volta ao redor do poço,
ela para e cruza os braços em frente ao peito.
— Agora chega. Não tem mais graça, e eu ainda preciso ir à latrina ou a
uma moita, se for só isso que tiver. Ou a um canto qualquer.
Sem tirar o olhar de Karin Ersson, Pettersson estala os dedos para o
sentinela em pé ao lado de Anna Stina. O rapaz atravessa depressa o pátio e,
sem dizer nada, sai pelas portas da frente de uma das duas alas. Quando
Petersson torna a falar, sua voz já não tem mais humor algum.
— Você pode mijar depois. Agora dance. Vamos lá, Srta. Ersson, mais uma
volta. Löf vai voltar daqui a pouco e trazer uma surpresinha para nós. Você tem
tempo para mais uma volta antes. Duas até, se tiver sorte.
Os movimentos dela já não se assemelham a uma dança, mais a uma corrida
com um pulinho ocasional. Quando o sentinela Löf volta, vem trazendo no
ombro um pequeno saco, e Pettersson dá alguns passos mais para perto do
Dragão. Löf entrega o saco ao zelador, e ele o estende em direção ao Dragão
com um braço grosso feito um tronco de árvore.
— Mestre Erik chegou. Daqui a pouco vou apresentar vocês dois.
Do saco ele tira uma correia de couro comprida e trançada, com mais ou
menos duas varas de comprimento. Tem um cabo firme em uma das
extremidades e termina com uma ponta fina na outra.
— Talvez você nunca tenha visto um chicote. Contanto que mantenha bem
o ritmo, não vamos precisar da ajuda de Mestre Erik. Agora dê mais uma volta,
e com um pouco mais de energia, por favor.

O Dragão dá mais três voltas e meia antes de Pettersson desferir a primeira


chicotada. Seu passo diminui a ponto de ele agora poder acompanhá-la com os
largos passos calçados de botas. O estalo do chicote ecoa entre as paredes do
pátio, e em seguida vem o grito dela. O couro fino na ponta do chicote a
acertou no tornozelo e deixou uma marca vermelha. Ela morde o lábio para
segurar o choro, mas é possível ouvir pela respiração alterada que Karin Ersson
está à beira das lágrimas. Pettersson também notou.
— Ah, mas isso não foi nada, Srta. Ersson. Mestre Erik pode fazer coisa
muito pior. Continue dançando e vamos ver se ele vai precisar ser o seu par
outra vez.
Rostos emaciados e pálidos surgiram nas janelas ao redor do pátio. O
Dragão dança mais cinco voltas antes de ele tornar a bater, dessa vez na
panturrilha e com força suficiente para tirar sangue. Depois de mais sete voltas,
o Dragão perde o controle da própria bexiga e segue sua dança com a saia
molhada. O sal faz arder os cortes, e ela começa a chorar, primeiro de modo
quase imperceptível, depois cada vez mais alto. Em pouco tempo, mal há
distinção entre os uivos que ela emite ao ser chicoteada e o resto do barulho
que faz. Ela uiva e implora, promete inúmeras coisas ao algoz, mas ele sequer
toma conhecimento. Por fim, o Dragão simplesmente começa a chamar pela
mãe com gritos longos e demorados. Toda a dureza que ela desenvolveu em
seus anos nas ruas da Paróquia de Maria lhe é tirada pelo chicote, camada após
camada, como se Petersson estivesse descascando uma das cebolas do cesto de
Anna Stina. Em pouco tempo, tudo que resta é uma criança aterrorizada. Duas
horas depois, ela só consegue rastejar enquanto Pettersson faz as chicotadas
choverem sobre suas coxas e costas. Quando o sol está no zênite, o sino da torre
começa a badalar. As fiandeiras saem de seus quartos arrastando os pés para
irem comer. Algumas apontam e riem da dança do Dragão. A maioria sequer
consegue reunir forças para olhar. Enquanto Anna Stina fica ali de olhos
fechados, esquecida, e com as pernas tremendo pelo simples esforço de ficar em
pé parada por tanto tempo, sente algo dentro de si seguir o caminho oposto de
Dragão. Uma casca começa a se formar à sua volta. Está ali, diante de um
homem monstruoso que vitima uma garota para o próprio prazer, amparado
pela lei, sem que ninguém mova um dedo sequer para protestar. Pettersson é da
mesma laia de seus equivalentes: Anders Petter na Várzea das Crianças,
Lysander em seu escritório, o juiz no tribunal, e Fischer e Tyst com seu porrete,
sua corda e sua rapieira. Enquanto o Dragão desenha um círculo de sangue em
volta do poço, Anna Stina jura nunca mais ser aquela garota indefesa, por mais
que possa parecer assim aos olhos do mundo. Em pensamento e atitudes,
precisa deixar aquele lugar desprezível, e precisa fazer isso depressa, antes de se
perder e se juntar àquele rebanho anestesiado de mortas-vivas em que se
transformaram as fiandeiras. Para Karin Ersson é tarde demais. Anna Stina sabe
que ela não será mais um dragão.
Pettersson ofega tanto que seu peito imenso arfa sob a camisa, em parte por
causa do esforço, mas mais ainda, percebe Anna Stina com horror, por causa da
excitação. Ele se detém para enxugar o suor da testa e se depara com Anna
Stina ali em pé ao lado de Löf, que começou a cochilar em pé sob o calor do
meio-dia.
— Ei, Jonatan! Pegue essa daí e mostre a ela uma cama, um lugar para
comer e a sua roca. Quando voltar, me traga uma garrafa. Disciplinar dá sede,
sabia? E, mesmo que olhando para ela ninguém acredite, tenho a sensação de
que a nossa Ersson ainda consegue dançar uma ou duas valsas.
35

ELA AOS POUCOS aprende os costumes da casa de correção. Fiar é sua obrigação,
dia após dia, numa roca ao lado de muitas outras rocas iguais, gasta e cheia de
rangidos após incontáveis horas de trabalho do pedal e da roda. Elas são
acordadas às quatro da manhã para se reunirem na capela, onde são presididas
pelo pastor que as recebeu no portão. Ele em geral está tão de ressaca que suas
mãos tremem no púlpito. Depois da missa, recebem como desjejum casca de
pão e um copo pequeno de cerveja nos mesmos aposentos em que realizam seu
trabalho, local onde também dormem à noite em camas estreitas dispostas ao
longo das paredes. O almoço é servido ao meio-dia, e o jantar, uma vez
terminado o trabalho do dia, às nove da noite. Pedaços duros de carne salgada
e arenque passado, acompanhados por nabo e aveia amolecida em água. As
refeições são servidas em velhas bandejas de madeira divididas por quatro
detentas. Não bastam nem para satisfazer a fome de uma. Ela logo descobre
por quê. Há um sentinela presente a cada refeição, e por meio dele é possível
pedir mais comida. Ele anota os pedidos num grande livro de registro. Por cada
carretel de fio completo, a detenta recebe um pequeno salário, e com ele
espera-se que compre o tipo de comida que não é servido de graça. Manteiga,
queijo, carne que não tenha passado meses na salmoura. Todas fazem isso. A
única alternativa ali é encarar essa morte lenta por inanição.
O trabalho é medido em “cordões”: cada um é composto por um carretel
inteiro de fio com três mil varas de comprimento. Anna Stina demora o
primeiro dia inteiro para fiar mil varas. Sempre teve mais destreza com a mão
esquerda do que com a direita, e é difícil aprender os movimentos da roca. As
fibras retorcidas que puxa entre os dedos saem grossas ou finas demais. O fio
não para de se partir. Ela precisa emendá-lo e fazer isso depressa, uma vez que
um supervisor vive passando entre elas para monitorar seu trabalho. À noite,
entende que não está aprendendo na velocidade necessária. Se não começar a
fiar um fio mais longo e melhor, não vai conseguir comer o suficiente e, se não
comer, não vai ter energia para fiar. A fome não lhe é desconhecida, e ela sabe
muito bem como diminui o ritmo tanto da mente quanto do corpo.

As outras três no seu grupo de refeição têm idades variadas. Uma é velha, tão
enrugada e desgastada que seu corpo parece ter sido enrolado em volta da roca.
Era como se todo o seu ser estivesse dedicado àquela ocupação e não soubesse
fazer mais nada. Fica resmungando sozinha enquanto trabalha. Uma
membrana branca leitosa lhe cobriu um dos olhos. O outro encara o nada com
uma expressão vazia. Suas mãos se movem como por vontade própria.
Outra mulher, da mesma idade de Maja, foi posta um pouco mais longe. É
magra e nervosa. Toda vez que o sentinela vem fazer a ronda, seus olhos se
viram para o chicote dele e sua respiração se torna rápida e difícil. Quando ele
está atrás dela, ela encolhe os ombros e recua a nuca para protegê-la de um
golpe repentino. Às vezes se sobressalta sem motivo, tão violentamente que o
fio de lã em sua mão se parte ao meio.
A moça mais próxima de Anna Stina não deve ser muito mais velha do que
ela e tem os cabelos negros como tinta e olhos igualmente escuros. Mantém a
cabeça inclinada sobre o trabalho, mas seus olhos se movem por toda parte.
Escondidos sob os cabelos, ficam para lá e para cá sem deixar escapar nada.
Anna Stina sentiu que estava sendo observada quando foi conduzida ao seu
lugar e quando começou a fiar, mas a moça rapidamente voltou sua atenção
para outro lugar. Quando o sentinela vira as costas para falar com o colega na
troca de turno, Anna Stina se curva em direção a ela.
— Me mostre como fiar.
Sem interromper o ritmo do pé no pedal para girar a roda que enrola a lã
no carretel, a moça olha de relance para Anna Stina. Os sentinelas concluem
sua conversa, e o que está assumindo vai até o final do cômodo e volta.
Quando ele está fora do alcance de sua voz, ela sussurra uma resposta.
— Quero o pagamento inteiro do primeiro cordão que terminar.
O sentinela se vira. Ele deve ter ouvido alguma coisa, mas não consegue
identificar a origem, e, após correr os olhos de um lado a outro pelas cerca de
vinte mulheres presentes no recinto, ele desiste. Anna Stina leva algum tempo
antes de se sentir segura o suficiente para responder. Teve tempo para pensar na
sua contraoferta.
— Pode ficar com o dinheiro todo do primeiro e metade do segundo, mas
preciso de algum tempo antes de fazer o primeiro pagamento.
A moça ao seu lado a encara com um ar cético. Anna Stina sustenta o seu
olhar.
— Se eu não comer mais em breve, nenhuma de nós duas vai conseguir
nada de mim.
A moça se inclina mais para perto e estende uma das mãos com o polegar
esticado. Anna Stina hesita por alguns segundos, então estica o próprio polegar
e, quando seus dedos se unem para selar o acordo, acrescenta:
— Se o fio quebrar ou ficar com nós, o salário é meu, e o primeiro cordão
tem de estar pronto antes de amanhã à noite.
A outra dá um sorriso débil e um muxoxo.
— Combinado, mas, se você morrer de fome antes de aprender, eu fico com
seu vestido e tudo o mais que você deixar.
Ela começa a girar sua roca devagar para Anna Stina poder ver. Muda o
ritmo do pé no pedal e começa a fazer todos os movimentos mais lentamente.
Isso ajuda.
Mais tarde nesse dia, a caminho da prece do início da noite e enquanto o
pastor fala, elas têm uma oportunidade de conversar aos sussurros, sentadas nos
bancos da capela. O nome da moça é Johanna.
— Quanto tempo? — pergunta ela.
— Um ano e meio.
Johanna dá uma risada sem alegria e passa alguns instantes calada para se
certificar de não ter atraído a atenção dos sentinelas.
— Você é nova. A pena não é medida em anos ou dias, é medida em
cordões. Com um ano e meio o seu conselheiro quis dizer mil cordões. Dizem
que podemos fiar setecentos por ano se formos aplicadas. Dois por dia, seis mil
varas. Nem mesmo a Ovelha consegue fazer isso, a velha caolha sentada ao
nosso lado, e ela teve a vida inteira para aprender.
Anna Stina fica em silêncio enquanto faz as contas. Tenta ver seu futuro
imediato, sentir a lã nas mãos, sentir como vai ficar melhor na fiação à medida
que os dias forem se sucedendo. Pensa em seu pé e sua mão trabalhando o mais
depressa que podem, e tenta visualizar mil cordões em termos de tempo. O
resultado é como um soco no estômago.
— Três anos! Ou mais.
O silêncio de Johanna é de empatia, vindo de alguém que um dia fez as
mesmas contas e recorda o que sentiu. Ela dá de ombros.
— Talvez quatro ou cinco. Se fizer inimigos aqui, a primeira coisa na qual
descontam é nos dedos. Então você vai fiar um cordão por semana e vai
precisar roubar para não morrer de fome. Se for descoberta, eles simplesmente
aumentam sua pena.
À sua volta, as outras detentas tentam encontrar mais alguns minutos de
descanso antes de os sentinelas que patrulham os bancos as encontrarem com
suas bengalas compridas. As duas moças ficam sentadas em silêncio enquanto o
pastor Neander lê trechos arrastados da Bíblia até Johanna se inclinar outra vez
em direção ao seu ouvido.
— Por que mandaram você para cá?
— Prostituição. Mas sou inocente. E você?
— E pensar que duas inocentes receberiam rocas bem ao lado uma da
outra, hum?
Johanna torna a dar de ombros quando arremata.
— Estamos ao lado de assassinas e ladras. Tudo que eu fiz foi me deitar com
homens por um tostão cada.

Bem alto acima do pátio, as estrelas traçam seu caminho pelo início claro da
noite. Depois de conduzirem as detentas da igreja até seus quartos, os
sentinelas vão embora e levam consigo seus lampiões, mergulhando-as na
escuridão. As portas dos quartos são trancadas. A noite de primavera lá fora é
clara o suficiente para entrar pelas janelas e fazer as barras lançarem no chão
uma rede de sombras. Anna Stina está acordada. A palha do colchão fede e está
infestada de percevejos. Ratos correm rente às paredes à procura de migalhas. A
noite afrouxa o autocontrole que as fiandeiras conseguem manter com certa
dificuldade enquanto o sol brilha. Muitas podem ser ouvidas gemendo e
chorando. Outras roncam ou fungam, ou então falam dormindo. Anna Stina
também sente vontade de chorar, mas se lembra da promessa feita a si mesma e
mantém o olhar cravado no teto. Após algum tempo, formas e cores começam
a dançar diante de seus olhos. Johanna está na cama ao seu lado. No escuro, ela
sussurra.
— Acordada?
Demora algum tempo para receber uma resposta.
— Estou. Mesmo depois de um dia de trabalho longo, é difícil pegar no
sono.
— Quem são as outras duas que comem conosco?
Johanna suspira em sua cama. Deve estar pesando as vantagens de tentar
pegar no sono com a bem-vinda ideia de se distrair pensando em outra coisa.
Leva algum tempo para decidir.
— Uma é Lisa. Ela não bate bem da cabeça. Já foi casada, mas dizem que o
marido a levou à loucura. Certa manhã a encontraram andando na rua
totalmente nua. Ela poderia muito bem ter sido mandada para o hospital na
baía dos Dinamarqueses, mas, em vez disso, a mandaram para cá. Como não
consegue fiar muito rápido, já está bem magra. Há uma aposta em curso para
saber se ela vai sobreviver até o cair da última folha do castanheiro no campo lá
fora. Alguém sugeriu a mesma aposta em relação à primeira neve, mas
ninguém quis participar.
— E a outra?
— Chamamos ela de Ovelha, por causa dos pelos no rosto e porque vive
mascando pedacinhos de lã. Ela raramente diz alguma coisa, mas vive falando
sozinha e com pessoas que só ela vê. É a fiandeira que está há mais tempo aqui.
Ela se lembra de como isto aqui era quando havia apenas o casarão de Ahlstedt,
antes de construírem as duas alas e a capela. Eles nos dividiram, sabe?
Prostitutas e ladras deste lado, e as que fizeram coisas piores do lado de lá. A
Ovelha passou anos com as piores, mas agora está velha e inofensiva, então
decidiram transferi-la para cá. E aqui ela vai ficar até o dia em que a levarem
embora num caixão.
— Você sabe o que ela fez para vir parar aqui?
— Dizem que jogou os filhos num poço.

Elas ficam deitadas por um tempo sem dizer mais nada.


— Johanna, eu não posso ficar aqui.
Não há resposta.
— Deve haver algum jeito de sair.
Ela torna a ouvir a mesma risadinha amarga.
— Não, ultimamente não tem havido. No ano passado duas mulheres no
canto sudoeste conseguiram tirar uma das barras da janela. Um total de sete se
atreveram a pular e sair correndo pela ponte. Houve um escândalo, e foi a
única vez em que eu vi o inspetor em pessoa aqui na casa. Ele tem uma voz
bonita, mas o jeito como gritou e berrou... Então inspecionaram cada janela,
tiraram todas as barras enferrujadas e substituíram por novas. Contaram todas
as chaves e mandaram vir mais sentinelas. Qualquer uma que sequer olhasse
para onde não devia era chicoteada. Desde então ninguém mais conseguiu
fugir.
Anna Stina sente qualquer esperança que ainda tem tremeluzir como uma
chama ao vento. Johanna demora algum tempo para sussurrar seu último
comentário.
— Bem, na verdade houve uma. O nome dela era Alma. Alma
Gustafsdotter. Ela estava no mesmo grupo da Ovelha antes de eu assumir seu
lugar. E, sabe, seja como for, não demora muito para as que fogem acabarem
aqui outra vez. Tudo que os sentinelas precisam fazer é uma ou duas rondas
pelo antigo bairro, aí nos encontram, dão um novo nó em volta dos nossos
braços, e nos arrastam de volta para a roca com os colos cheios de lã. Mas Alma
não. Ninguém sabe como ela conseguiu.
O lamento de uma mobelha chega do outro lado da baía. Maja Knapp
costumava dizer que aquele era o som que os marinheiros afogados faziam das
profundezas, clamando por um solo sagrado.
36

DUAS SEMANAS PASSAM antes de Anna Stina rever o Dragão, mas quando a vê é
por puro acaso e poderia muito bem não ter reconhecido a figura no meio das
detentas. O corpo magro e alto está agora encolhido e curvado. Uma das
pernas está torcida, obrigando-a a caminhar com os joelhos afastados para
impedir os pés de baterem um no outro. Todos os pedaços de pele visíveis por
baixo do vestido variam entre tons de azul ou preto e amarelo em meio a cortes
e feridas parcialmente cicatrizados, e ela parece incapaz de parar de tremer. Em
poucos dias o Dragão foi transformado numa velha. Quando ela cruza olhares
com Anna Stina, não demonstra qualquer sinal de tê-la reconhecido. Se não
parar de tremer, não vai mais conseguir fiar, e Anna Stina já viu o resultado
disso entre as fiandeiras com quem divide o dormitório. Elas começam a se
mover mais lentamente até por fim ficarem sentadas, apáticas, quase sem tocar
a lã a menos que os sentinelas as ameacem com a bengala. Passam a fiar cada
vez menos, a não receber nada, e com isso as refeições minguam. Com o
decorrer dos dias, a carne vai abandonando seus ossos até que enfim elas
desmaiam e são levadas para a breve trégua da enfermaria a caminho da cova.
Anna Stina começou a carregar um pedaço de queijo e pão escondido
dentro da manga do vestido e, ao passar pelo Dragão no pátio, tenta lhe
transferir a comida sem que os sentinelas vejam. Mas o Dragão se afasta como
se tivesse apanhado, aparentando apenas incompreensão e nervosismo. Petter
Pettersson, o zelador, parece não se fartar de achar graça no quão dócil se
tornou a moça atrevida que ele conheceu apenas quinze dias antes. Gosta de se
aproximar e então pular para perto dela e gritar “bu”. Seus asseclas entre os
sentinelas riem, mas mesmo assim eles são de outra estirpe. Punições são
dispensadas diariamente e todos podem brandir Mestre Erik, mas ninguém o
faz com a mesma energia frenética e o mesmo deleite de Pettersson.
Johanna sussurra que as outras também começaram a fazer apostas em
relação a Karin Ersson. Ela sequer come a comida que é servida, não defende
os bocados que lhe cabem quando as outras vêm roubá-los de seu prato. Se
durar mais quinze dias, vai ser um milagre. Para Anna Stina, isso confirma o
que ela já sabe. Foi mais rápido no caso dela, mas Karin Ersson está apenas
percorrendo o caminho que muitas ali estão fadadas a tomar. As detentas
podem ser liberadas quando suas rocas produzem os cordões que foram
condenadas a entregar, mas muito poucas se livram da Cicatriz no sentido
verdadeiro da palavra. Algo vital resseca dentro delas enquanto o corpo segue
cambaleando, adequando-se a uma vida muito semelhante a que se leva nas
manufaturas lá fora. Talvez o endurecimento que ela sentiu dentro de si ao ver
o Dragão apanhar com o chicote tenha sido a primeira fase do processo. Talvez
isso a ajude a sobreviver, mas a um preço que ninguém deveria ser obrigado a
pagar.

Somente à noite, no quarto escuro, ela se atreve a travar uma conversa


ininterrupta com Johanna, seus sussurros abafados por choros e gemidos.
Nenhuma das duas ainda chamaria a outra de amiga. Johanna sabe disso, e
Anna Stina pressente. Relações desse tipo podem facilmente se transformar
numa fraqueza, numa brecha no escudo pela qual o perigo pode entrar.
Construir laços fortes ali dentro provavelmente prepara o caminho para a
tristeza e a traição. Assim, as duas se contentam com um respeito mútuo.
Johanna reconhece outra sobrevivente, e Anna Stina pôde comprar um
conhecimento que de outra forma teria lhe custado muito mais. O simples fato
de ter alguém com quem conversar já basta, tendo em mente uma fronteira
que impeça as confidências mais profundas.
— Me fale mais sobre a moça que sumiu.
— Eu não sei mais do que já disse. Posso perguntar por aí se quiser saber
mais, mas talvez seja perigoso com Pettersson alerta, e não vou correr o risco
por menos de meio cordão.
Seguindo o exemplo de Johanna, Anna Stina agora está fiando melhor.
Apesar de tão longe quanto as outras de preencher sua cota, é hábil o suficiente
para comprar manteiga e carne aos domingos. Embora meio cordão seja um
preço alto — alto o suficiente para obrigá-la a ir se deitar com fome por várias
noites seguidas — a decisão é fácil.
— Então faça.
Os sonhos de Anna Stina não são mais como antes. Depois que a respiração de
Johanna se torna regular e profunda, ela fica deitada encarando o teto,
observando os pensamentos tomarem forma. Sua mãe jaz morta e pálida
debaixo da terra. Ela vê Anders Petter, Lysander, o juiz, os sentinelas, o zelador,
e todos zombam dela lá de cima. O sono chega de fininho. Até onde sua
memória alcança, ela sonha ocasionalmente com o grande incêndio, com a
catástrofe que Maja Knapp lhe descrevia desde que ela era menina, tanto para
lhe ensinar os perigos do fogo quanto porque a própria Maja não conseguia
fugir dessas lembranças. O fogo acabou entrando nos sonhos de Anna Stina e
antes ele vinha como fonte de pavor. Agora, o sonho é praticamente o mesmo,
mas os papéis se inverteram. Agora o Galo Vermelho é ela própria. Ela incinera
tudo em seu rastro. A casa de correção, a capela, o terreno, o casarão e os
pátios: transforma tudo em ruínas fumegantes e sente com isso uma feroz
alegria. No braseiro raivoso que é seu estômago, ela consome seus adversários.
Quando acorda sobressaltada no meio da noite, seu coração bate numa euforia
desabalada. O objetivo da casa de correção é lhe ensinar a fiar lã e imprimir
nela os esforços da cidade rumo à eficiência e à produtividade. Mas, mais do
que tudo, Anna Stina aprende a arte do ódio.

Johanna leva a semana inteira em sua rodada de perguntas. Anna Stina já se


acostumou com o fato de a voz que sussurra do pé da cama não ter rosto.
Prefere assim. Em sua mente, pode dar a Johanna um rosto melhor do que na
vida real. Mais saudável, mais cheio.
— Algumas internas se lembram de Alma Gustafsdotter, e algumas que
ainda nem estavam aqui acreditam que estavam, de tantas histórias que já
ouviram a seu respeito. Ela fiava na mesma ala que nós e fazia as refeições no
mesmo grupo da Ovelha. Chegou aqui no outono passado e desapareceu em
março deste ano. Ela sofria de sífilis e muitas vezes era levada à enfermaria para
tomar banho. Foi chicoteada uma vez durante o inverno, acusada de roubo,
mas teve a sorte de não pegar Pettersson.
— E a fuga dela?
— Todas concordam em relação a uma coisa. Alma estava sentada no banco
para a missa da noite na capela, jantou como todas as outras e estava deitada
em sua cama quando os lampiões foram levados embora naquela noite. De
manhã, sua cama estava vazia. As sentinelas não souberam o que pensar.
Viraram o quarto de pernas para o ar, empilharam as camas no meio do piso,
bateram nas paredes, testaram as barras das janelas. Pudemos vê-los pelas
vidraças mais tarde nesse dia, uma longa fila de homens batendo na vegetação
com bengalas e espadas. Mas Alma Gustafsdotter nunca foi encontrada.
Anna Stina sente uma pontada de decepção. A história não contém nada
que possa ajudá-la, nenhuma pista que a auxilie a realizar a mesma fuga.
— Só isso?
Ela ouve a voz de Johanna assumir um novo tom de satisfação quando ela
torna a falar.
— Não é grande coisa para gastar metade do salário de um dia? Mas calma.
Tem mais. Eu falei com a menina que dorme na cama mais perto da porta. Ela
disse que sabe exatamente o que aconteceu. Ela não é muito velha e,
infelizmente, também não muito inteligente, mas diz que acordou algumas
vezes no meio da noite por volta da época em que Alma sumiu. Disse que se
lembra de ouvir alguém mexendo na fechadura da porta e que imaginou que
fosse um fantasma tentando entrar no quarto para matar a fome. O fantasma
voltou várias noites enquanto ela puxava as cobertas por cima da cabeça e
trincava os dentes. Até que um dia conseguiu destrancar a porta e abri-la. Ela
sentiu o ar entrando. Segundo essa menina, o fantasma entrou e devorou a
pobre Alma sob o manto da noite antes de voltar para sua toca dentro de
algum túmulo.
— Você disse que Alma foi acusada de roubar uma coisa. O que ela roubou?
— Pelo que ouvi falar, uma colher de latão sumiu, e também duas ampolas
de remédio da enfermaria, que ela alegou ter pego porque estava com dor de
dente. Agora você sabe tanto quanto qualquer outra pessoa sobre Alma
Gustafsdotter, exceto é claro o fantasma faminto. Sei que não é muito, mas
mesmo assim quero meu pagamento.
Havia alguma coisa por trás de tudo aquilo, disso Anna Stina tinha certeza.
A moça, a colher, a enfermaria, a dor de dente, alguém mexendo na porta
durante a noite. Fez uma última pergunta.
— Você falou com a Ovelha?
— Oi? Ninguém fala com a Ovelha há anos. Ela só fala consigo mesma.
No dia seguinte, após o parco desjejum, Anna Stina começa a empurrar sua
roca mais para perto da Ovelha, centímetro a centímetro, enquanto a velha
mantém o olho sadio fixo à frente, fiando com destreza. Anna Stina se esforça
para ouvir a fieira contínua de palavras sussurradas, tão baixas que os sentinelas
nem se dão ao trabalho de silenciá-la. O murmúrio se perde facilmente em
meio aos estalos e ao zunido das rocas, e Anna Stina precisa chegar bem perto
para ouvir. Parece um cântico sem melodia, repetido no mesmo ritmo do
pedal.
— Três braçadas e três mergulhos e três décadas, três décadas e três mil
varas de lã por dia, tudo que é bom vem em três.
Quando o sentinela sai do recinto por um instante, ela sussurra o mais perto
possível do ouvido da Ovelha.
— Está falando sobre os seus filhos? Três mergulhos?
A Ovelha recua um pouco e perde o ritmo. Seu olho sadio se vira e pousa
em Anna Stina como se fosse pela primeira vez. Após um tempo, ela franze o
cenho e retoma a fiação. Quando volta ao ritmo habitual, o cântico é
retomado.
— Três braçadas e três mergulhos e três décadas, três décadas e três mil
varas de lã por dia, tudo que é bom vem em três.
— Faz trinta anos que você está aqui?
A Ovelha faz um ar distraído e torna a olhar para Anna Stina.
— A senhora se lembra de Alma Gustafsdotter? No outono e na primavera
passados? A moça que era do seu grupo de refeição?
A Ovelha parece estar avaliando suas alternativas, mas por fim se inclina
mais para perto com um brilho travesso no olho sadio.
— Dizem que eu fiz aquilo porque odiava meus filhos. Mas foi o contrário,
sabe? Foi por amor, para poupá-los de todo o sofrimento que o mundo tinha
reservado para eles. Cada novo dia é pior do que o anterior, e isso me deixa
feliz. Toda vez que o sol nasce é uma prova de que eu fiz a coisa certa.
Anna Stina não sabe como responder. Apenas assente, e a Ovelha lhe dá
uma piscadela quando recomeça a fiar.
— Três braçadas e três mergulhos e três décadas, três décadas e três mil
varas de lã por dia, tudo que é bom vem em três.
Anna Stina é tomada por uma sensação de desesperança. A Ovelha é outro
beco sem saída, mais uma criatura reduzida a pó sob o peso da casa de
correção, agora útil apenas como uma extensão de suas ferramentas. Ela não vê
motivo para correr o risco de ser descoberta pelos sentinelas e decide esperar a
noite, quando então torna a recuar sua roca até dentro da marcação a giz
original. Quando a Ovelha se dirige a ela depois do jantar, Anna Stina é
totalmente pega de surpresa. Acontece de modo quase imperceptível, no
mesmo ritmo monótono do seu cântico de fiar. O que ela diz parece ser um
jorro de lembranças de seus muitos anos ali.
— Eles acham que fiar lã é um trabalho difícil, mas eles não sabem de nada.
Acham que não tem muita comida, mas não fazem ideia. Em setenta e dois, o
mesmo ano em que o rei Gustav assumiu o trono, eles quiseram ampliar o
casarão de Ahlstedt, e as que estavam aqui tiveram que carregar coisas, muito
embora tivéssemos de pagar nós mesmas pela comida e pelas roupas... toras de
madeira e blocos de pedra talhada, cimento e reboco numa cangalha, as pessoas
morriam feito moscas, mas não a velha Maria. Não, ela era durona já naquela
época... mastigava os próprios dedos e comia cascalho quando não havia mais
nada para comer... Todas acham que Pettersson é uma praga, mas ele não é
louco como o velho Benedictus... ele e Von Torken e o velho Jhan Wik nos
deixavam morrendo de fome, eram tão determinados a nos matar de trabalhar
que sentíamos como se estivéssemos cavando nossas próprias covas... Mas a
velha Maria sobreviveu a todos eles... o inspetor deveria morar lá, mas não deu
em nada...
A Ovelha sorri com as lembranças. Anna Stina baixa os olhos para suas
mãos que parecem garras enquanto se movimentam junto com o fuso e o fio, e
com um arrepio vê que os dedos ainda exibem marcas de dentes.
— Naquela primavera só conseguimos terminar os porões. Foi um lindo
verão… Alguém da casa de correção masculina me levou para o meio dos
arbustos, um homem bonito. Morreu de fome antes do final do ano, mas ainda
me lembro dele... Continuamos a trabalhar na construção o verão inteiro
enquanto a cidade comemorava com salvas de tambores e de armas, e quando
o outono veio não tivemos tempo de terminar tudo, muito embora Benedictus
tenha gritado e arrancado os cabelos... Eu tive de levar embora as pedras que
tinha ajudado a trazer até aqui. Também precisamos abrir um buraco na parede
do porão para a água escoar enquanto a casa passava o inverno sem telhado...
Só que não foi suficiente... A umidade invadiu tudo e saturou as paredes, o ar
encanado entrava pelo buraco, e nem o inspetor nem o pastor quiseram se
mudar para lá... Agora aquilo lá vive cheio de sacos de nabos apodrecendo...
Anna Stina leva um tempo para filtrar o que está ouvindo e se dar conta do
valor daquelas informações. Quando finalmente acontece, o sangue lhe sobe à
cabeça e ela precisa chegar mais perto para escutar a voz da Ovelha acima do
ruído da própria pulsação.
— A senhora disse isso a Alma Gustafsdotter? A outra moça que ficava
sentada onde eu fico agora?
A Ovelha parece espantada.
— Três braçadas e três mergulhos e três décadas, três décadas e três mil
varas de lã por dia, tudo que é bom vem em três. Ele era um homem bonito...
É essa a solução. Em algum lugar existe um porão com um túnel oculto na
estrutura — construído para escoar a água da chuva e a neve derretida
enquanto o prédio destelhado atravessava o inverno de 1772 — e esquecido
quando a obra foi retomada. Alma Gustafsdotter sabia disso. Tudo que ela
precisava era arrumar um jeito de ir até o porão sob o manto da noite, tirar do
caminho os sacos de nabos, rastejar algumas varas em direção à liberdade e
desaparecer para sempre.
37

NESSA NOITE ANNA Stina não consegue dormir. Em vez disso, tenta imaginar o
passado, meses antes, quando o inverno tinha se apoderado da Cicatriz,
quando o sol mal se erguia sobre o horizonte para fazer brilhar o gelo da Baía
Dourada, quando as detentas precisavam trabalhar na penumbra. O tempo
devia se arrastar, a duração entre as horas do relógio se alongar, e Alma
Gustafsdotter deve ter ficado entediada. Deve ter aproximado sua roca da
Ovelha para fazer o tempo passar escutando seus murmúrios. E ali, de repente,
esbarrou com uma promessa de liberdade.
Quanto tempo Alma levou para planejar sua fuga? Ela chegou no outono e
desapareceu na primavera. Talvez a Ovelha tenha contado sua história no
começo do cumprimento da pena de Alma, mas, sendo assim, ela teria sido
esperta o suficiente para esperar o degelo, já que, caso contrário, haveria um
risco muito grande de que o buraco estivesse bloqueado por uma camada de
neve dura como ferro graças aos ventos gelados vindos da baía.
Então Alma esperou.
Anna Stina tenta imaginar os passos dela em direção ao ponto do seu
desaparecimento, o mesmo caminho que agora precisa seguir. Onde fica o
porão? Supõe que localizá-lo vá ser a parte mais fácil. Fazia parte de uma obra
de ampliação do velho casarão, a velha residência do cervejeiro Ahlstedt que
fora vendida e transformada em casa de correção. O anexo deve estar situado
mais para os fundos do terreno. A Ovelha mencionou sacos de nabos, e toda a
comida que Anna Stina viu é trazida do andar de cima do casarão.
Provavelmente é lá onde fica a cozinha, e os mantimentos devem ficar
armazenados perto dela. Num impulso, Anna Stina levanta da cama e segue até
a janela devagarinho, pé ante pé, por entre as rocas silenciosas. Encosta a
bochecha no vidro e tenta espiar na direção da casa de Ahlstedt. Não consegue
ver nada depois da quina de sua ala, mas, quando está prestes a desistir, repara
na sombra da lua, e no chão da Cicatriz de repente fica perfeitamente visível: o
telhado da sua ala, preto como a noite, que logo se transforma no contorno da
casa antiga, e então continua como uma ala mais baixa estendendo-se na
direção oposta. Aquele é o lugar! No subsolo, sua liberdade a espera. Tudo que
ela precisa fazer é chegar lá.

Os dias passam, e Anna Stina continua a fiar, cordão após cordão, sem nem
mais contar. Em vez disso, passa a prestar mais atenção na rotina dos
sentinelas, assim como nos hábitos e horários da casa de correção. As
preocupações e desafios de Alma são agora os seus. Primeiro há a porta do
quarto, cuidadosamente trancada toda noite. Ela precisa de cerca de duas
noites pensando para vincular tudo que já sabe numa cadeia de acontecimentos
que faça sentido para ela. A solução é a colher de latão, a que Alma foi
chicoteada por ter roubado, mas que nunca foi encontrada. Ela talvez a tenha
usado para fabricar uma chave, e as muitas visitas noturnas do fantasma à
fechadura podem ter sido suas tentativas de experimentar seu trabalho até ter
certeza do encaixe.
Anna Stina escutou atentamente toda vez que os sentinelas as trancaram à
noite. A fechadura está enferrujada, a chave correspondente é pesada, e, a
julgar pelos ruídos que eles produzem, o mecanismo não é lubrificado há anos.
Latão é um metal mole, e ela duvida que uma única colher tenha sido capaz de
fazê-lo girar sem entortar. Talvez Alma conhecesse um método para endurecer
metal. Talvez por isso tenha roubado o remédio para dor de dente nas suas idas
à enfermaria. Para Anna Stina, isso não importa. As únicas colheres que ela viu
são de madeira, e ela não tem nada afiado com o qual talhá-las. Além disso,
sabe tanto sobre latão quanto sobre fechaduras. Mesmo assim, precisa
encontrar um jeito de sair por aquela porta trancada à noite. Esse é o primeiro
obstáculo, o primeiro de quatro.
Haverá outras portas fechadas no caminho? Se Anna Stina estiver certa,
Alma deve ter conseguido com uma chave só. A porta para a casa de Ahlstedt
no alto da escada muitas vezes fica entreaberta para que os sentinelas consigam
acessar facilmente seus aposentos sem ter de atravessar um quarto de fiar. Se a
porta da frente do casarão não ficar trancada à noite, então alguém que consiga
sair para o pátio poderia continuar casa adentro até descer para o porão. Deve
ter sido isso que Alma fez. Mas será que o ultraje de sua fuga fez a equipe
revisar as rotinas de segurança? Em caso afirmativo, Anna Stina não vê nenhum
sinal de tal coisa. Desse modo, é apenas uma única fechadura o que impede a
sua passagem. O segundo desafio será descer até o porão sem ser vista.
Encontrar o velho túnel de escoamento e atravessá-lo será o terceiro. Os
resmungos da Ovelha não revelaram muito sobre a sua localização exata. A
abertura deve ser pequena o bastante para ter passado despercebida por duas
décadas. Mesmo tudo correndo conforme o plano, ela só terá o restante dessa
noite para encontrar o caminho.
O quarto e último desafio: ela não pode voltar nem para a Paróquia de
Catarina, nem para a de Maria, onde é conhecida e onde Fischer, Tyst ou seus
colegas estarão à sua procura. Anna Stina não tem motivos para não confiar no
que Johanna disse: aquelas que conseguem escapar são trazidas de volta pouco
tempo depois, e com um número ainda maior de cordões acrescido à sua cota.
Se conseguir chegar ao outro lado do muro, terá de criar uma vida nova, além
do alcance de seus inimigos. Como fará isso, Anna Stina não sabe.

No domingo, o trabalho é deixado de lado para a longa missa. O pastor


Neander, que ultimamente tem deixado as preces noturnas a cargo de seu
assistente, está em estado ainda pior do que de costume. Esquece a hora de
cantar os salmos e a hora de recitar as preces, quando deve ser feito o sermão e
quando os pecados devem ser perdoados. Com as mãos trêmulas, bebe o vinho
da comunhão sem se preocupar com quem está olhando. Ao ler a Bíblia em
voz alta, gagueja e pisca os olhos lacrimejantes de esforço. Ele lê um trecho do
Livro de Mateus sobre o retorno de Jesus a Jerusalém. Todas elas já ouviram
esses versículos. Neander se esfalfa para chegar ao capítulo vinte e um, quando
os mercadores são expulsos do templo.
— Está escrito: “A minha casa será chamada casa da prece... mas vocês a
transformaram num antro de ladrões.”
Com essas palavras, Bengt Neander faz uma pausa, subitamente pensativo.
Entre as sobrancelhas peludas e a pele enrugada, seu olhar escurece.
— A minha casa. Um antro de ladrões.
Ele fecha a Bíblia com força suficiente para acordar aquelas que pegaram no
sono clandestinamente. Alarmadas, as internas cruzam o olhar do pastor que
agora encara com raiva os bancos da capela. O restante do seu sermão deixa de
seguir o Livro Santo e se torna uma improvisação. Quanto mais ele fala, mais
irado vai ficando. A voz vai ficando mais alta quando começa a rugir sobre
fariseus e escribas, sobre mercadores e romanos, sobre todos aqueles que lucram
com o sofrimento dos justos e dos mansos. O pastor exibe seus dentes marrons
num sorriso sem alegria enquanto segue falando sobre a terra santa e cerca de
mil e setecentos anos antes até chegar ao que vê diante de si hoje na Cicatriz.
Suas tentativas de apontar o inspetor Hans Björkman como um opositor de
Jesus vão se tornando cada vez menos sutis.
— Os adoradores de Satã podem ter lindas vozes, mas suas línguas são
bifurcadas, refinaram a arte do engodo e da bajulação nos palcos mais
elegantes.
Quando nenhum dos presentes — nem mesmo a mais simplória das
detentas — consegue mais deixar de perceber a quem ele está se referindo, o
pastor assistente se sente impelido a salvar Neander de si mesmo, e quando um
pigarro desesperado se revela impotente contra a voz estrondosa do pastor, o
assistente não vê alternativa que não começar a tocar o sino mais cedo.
Interrompido pelos badalos, Neander retoma o autocontrole, embora com
dificuldade.
Assim como as demais, no início Anna Stina ouvia atônita as diatribes do
pastor. Então se dá conta de que ele poderia se tornar sua boia salva-vidas,
aquele velho amargurado que abraçou a bebida como reconforto ao constatar
que sua vingança lhe fora roubada. Ela recorda as palavras do sentinela em seu
primeiro dia na Cicatriz: após duas décadas de má administração, os dias de
Hans Björkman como inspetor estão contados. Ele em breve irá zarpar rumo à
Finlândia. Ela mal consegue passar o resto da missa sentada no banco da
capela. Para conseguir fazer o que pretende, vai precisar ao mesmo tempo agir
depressa e ter a sorte a seu lado, pois, na mesma hora em que elas disserem
amém, os sentinelas vão começar a conduzir as fiandeiras para o pátio e de lá
rumo a seus quartos.
A cerimônia termina. Todas se levantam e começam a avançar pelo meio da
capela. Sobre pernas bambas, ela empurra as outras e segue no contrafluxo, na
direção do altar onde Neander está despejando na boca as últimas gotas de
vinho do cálice. O zelador Peter Pettersson está postado bem na frente da
capela, observando o deslocamento do grupo. É um homem tão grande quanto
na sua lembrança, e está em pé bem no meio do seu caminho. Então, com um
misto de surpresa e raiva, ele a vê. Ela mal tem tempo de pensar antes de se
esquivar para a esquerda, passar encolhida debaixo dos braços dele e gritar para
o pastor Neander:
— E se tivesse havido um jeito de Nosso Senhor punir os mercadores por
seus pecados antes de eles saírem do templo?
Só consegue chegar até aí quando Pettersson a agarra pelo pescoço com a
mão. Ele quase a levanta do chão, e ela fecha os olhos quando ele ergue a outra
mão para o tabefe.
— Ah, pelo amor de Cristo, ponha a menina no chão.
A voz de Neander recobrou a força do sermão. É o suficiente para fazer
Pettersson parar.
— Até um zelador deve saber que não se pode cometer violência na casa de
Deus. O senhor não é temente a Deus?
Pettersson não responde. Apenas estreita os olhos com desdém.
— É melhor soltá-la, Petter Pettersson. Deixe um homem na porta para
acompanhá-la de volta ao alojamento ao qual pertence. Essa moça está
atormentada por preocupações religiosas. Como pastor da sua alma, cabe a
mim tranquilizá-la.
Pettersson solta o ar pelo nariz e relaxa a mão com uma lentidão exagerada,
de modo a demonstrar a força sobrenatural que se estende até a ponta dos seus
dedos.
— Claro, pastor. O senhor sabe que eu jamais ergueria a mão para uma
moça indefesa...
Ele se afasta alguns passos pela capela antes de se virar e encarar Anna Stina
nos olhos.
— … enquanto estiver na casa de Deus.

Bengt Neander espera o corpanzil de Pettersson sair pelas portas da frente.


— Fale depressa, minha menina. Estou com dor de cabeça. Não tenho
metade da força do Sr. Pettersson, mas se você me fizer perder tempo garanto
que vai embora daqui com três tapas em vez de um só.
Os cabelos de Neander estão arrepiados. Parecem não ser lavados há
semanas. Há sujeira entranhada em cada sulco do seu rosto. É uma face que
envelheceu prematuramente graças a um franzir constante de reprovação. Por
baixo do cheiro azedo de vinho derramado, Anna Stina nota substâncias ainda
mais fortes. Sente também que a paciência dele está se esgotando. Ela precisa
correr o risco de ir direto ao assunto.
— O inspetor Björkman em breve irá embora deste lugar sem uma justa
punição por seus pecados. O senhor deseja ser um instrumento do Senhor
enquanto ainda há tempo, certo? Eu sei de um jeito.
— E o que uma fiandeira iniciante tem a ver com questões que dizem
respeito ao inspetor e a mim? Desembuche.
— O inspetor já está sob vigilância depois das fugas no ano passado, e até
agora ninguém conseguiu escapar depois que ele implantou suas novas medidas
de segurança. Se alguma de nós por acaso fugisse, ele ficaria humilhado, quem
sabe o suficiente para perder tanto seu cargo atual quanto o próximo.
Ela está fazendo uma grande suposição, mas torce para estar certa. Neander
a encara com uma expressão ao mesmo tempo astuta e severa. Acena para fazê-
la entrar na sacristia após ter feito um gesto para o sentinela junto à porta ficar
onde está. O homem mal consegue passar pela porta antes de tirar do casaco
um cantil de latão e dar um gole ávido. O cheiro forte de artemísia faz lágrimas
brotarem nos olhos dela enquanto ele torna a falar.
— Você é mais esperta do que a sua idade poderia sugerir, mas infelizmente
acho que está superestimando meus poderes aqui dentro. Como pastor, não
tenho como passar pelo sentinelas. Nenhuma chave me foi confiada. E, mesmo
que eu tivesse alguma, homens ficam de guarda à noite na entrada principal. O
que você está sugerindo é algo que já cogitei muitas vezes, menina, e, se isso
estivesse ao meu alcance, eu a esta altura já teria esvaziado o prédio inteiro.
Que diferença faz se as vadias acabam voltando para suas rocas um ou dois dias
depois? Mas Björkman, maldito seja, é esperto o suficiente para ler meus
pensamentos e conseguiu separar as questões do espírito das mundanas.
Espero, para o seu próprio bem, que você tenha pensado em algo além disso.
— Existe uma saída, outra saída. Eu tenho certeza. Tudo que preciso é de
ajuda para destrancar a porta da ala sudoeste.
— Isso é mentira sua. Que saída seria essa?
— Uma moça fugiu na primavera passada. Eu sei como ela fez. Existe um
buraco na parede do porão. O inspetor Björkman deve ter abafado o
desaparecimento dela antes de a notícia se espalhar, mas, se o senhor tiver um
relatório pronto, dessa vez ele não vai conseguir o mesmo feito.
Bengt Neander a examina durante um longo tempo enquanto reflete. Então
começa a se balançar para a frente e para trás enquanto resmunga consigo
mesmo. Fica mordiscando distraidamente um fio da própria barba.
— Mais uma fugitiva... Depois de todos os recursos que o inspetor exigiu
do Conselho para remediar a situação... Ora, ora. Uma porta só, uma única
chave. — Ele esfrega os olhos com os polegares e cospe a barba. — Eu já fiz
algo parecido com isso antes, sabe? Convenci uma detenta como você a causar
infortúnio para Björkman, mas o plano deu errado. Mandei uma reclamação
em nome dela, mas o Conselho reconheceu minha caligrafia. Talvez eu tenha
aprendido com meu erro. — Ele ri e brinda consigo mesmo antes de tomar
mais um gole do seu cantil. — Ou quem sabe é justamente o contrário. Talvez
meu único erro tenha sido usar um mosquete quando um canhão teria sido
mais útil. O que você está sugerindo não é impossível, mas preciso me
informar. Quando souber mais, mandarei chamá-la depois da prece da noite.
Mais uma coisa. Vire-se para cá.
Neander lhe desfere o tapa que impediu Pettersson de dar. Anna Stina não
duvida que ele careça da mesma potência de Pettersson, mas mesmo assim sua
bochecha arde e seus ouvidos apitam.
— Pelos seus pecados, e para você entender que não deve me enganar, e
porque isso é o mais perto que eu chegarei de apertar a mão de uma prostituta.
E porque não quero que digam de mim que eu trato de modo inadequado uma
criatura da sua laia. Seu rosto vermelho falará por si.
Ele a leva até a porta e entrega Anna Stina ao sentinela que está à sua espera.
O guarda a segura pelo braço, e ela ouve Neander assobiar consigo mesmo
enquanto é conduzida até o pátio lá fora.
32

— TEM DOIS HOMENS PROCURANDO você!


Anna Stina conhece a moça apenas como Ulla. Ninguém sabe o sobrenome
dela, possivelmente nem ela mesma. Anna Stina leva alguns instantes para
reagir às palavras ditas com a língua presa. Ulla não bate totalmente bem da
cabeça, e é fácil descartar suas palavras aleatórias sem prestar atenção no que
significam. Assim como Anna Stina, ela vende mercadorias num cesto, porém
mais ao sul, na Paróquia de Maria. O verdureiro Efraim Jansson tem um
sistema para suas vendedoras no qual cada uma segue uma rota
predeterminada, que uma vez estabelecidas passam a ser territórios muito bem
guardados. Deus ajude qualquer uma que tentar invadi-los — as que forem
pegas em flagrante podem esperar ser perseguidas, encurraladas, ter os cabelos
puxados e levar tabefes e arranhões.
Mesmo assim, elas às vezes se encontram no cruzamento das rotas, como
acontece agora. Anna Stina percorre as margens da Baía Dourada até a rua do
Cordoeiro a oeste e a rua Catarina ao sul, e Ulla dá a volta na Ucharia, onde
ninguém mais se dispõe a pisar. Elas se encontram no alto do Morro do
Carteiro, de onde se pode ver a Eclusa e a Cidade-entre-as-Pontes. O cesto de
Anna Stina está quase vazio. Com sorte, ela conseguirá vender o que sobrou no
caminho de volta até Jansson, logo ali no pé do morro, na esperança de que ele
tenha algo mais para lhe dar. E, caso se apresse, pode dar ainda mais uma volta
antes de o sol se pôr.
Ulla está com a boca entreaberta e os olhos estreitados. Anna Stina não sabe
muito sobre a outra. Ela trabalha como vendedora desde a primavera, e as
semanas passadas ao ar livre deixaram suas marcas. A pele está queimada de sol
e de sujeira, as costas vergadas sob o fardo pesado e desigual. Ela mal vende o
suficiente para manter sua rota e é sempre repreendida no final do dia, quando
o verdureiro faz as contas e os artigos que não foram vendidos precisam ter seus
preços reduzidos antes de apodrecer. Anna Stina já a viu sair mancando de
barracões e celeiros, com o vestido sujo e o gorro de cor viva torto na cabeça,
depois de ter sido abusada por alguns homens. Anna Stina torna a recordar a
noite de Walpurgis, o descampado e Anders Petter, e estremece ao pensar em
quantas lembranças como aquela a mente de Ulla deve abrigar. Se ela ainda
não engravidou, foi por pura misericórdia divina.
Durante as longas e arrastadas horas noturnas, Anna Stina teve tempo para
refletir sobre as palavras de Lysander e tentar imaginar as partes da história que
não tinha como saber com certeza. Como Anders Petter deve ter chegado em
casa naquela noite, abalado por ter sido rejeitado, e como seus pais devem ter
ficado preocupados ao ver o filho tão agitado. Ela sabe o suficiente sobre
Natanael e Clara Sofia Lundström para adivinhar o resto. A mãe, em especial,
ao longo dos anos vinha olhando Anna Stina cada vez com mais suspeita à
medida que sua amizade com Anders Petter amadurecia, decerto temendo que
o filho fosse tentado a fazer um mau casamento com uma moça simples da rua
em vez de esperar ser promovido a imediato e cortejar a filha de algum cidadão
abastado. Se Anders Petter tivesse lhe contado qualquer coisa que não a
verdade, ela não teria tido a menor dificuldade para encaixar Anna Stina no
papel de uma oportunista que tentara atrair seu primogênito para a ruína com
o único recurso disponível. Perguntas tendenciosas teriam produzido as
respostas que ela buscava. Anders Petter, certamente movido às lágrimas mais
de uma vez, só precisaria ter meneado a cabeça para confirmar todos os medos
da mãe.
O muco escorre pela penugem que recobre o lábio superior de Ulla. Perdida
em pensamentos, Anna Stina leva um susto.
— Que homens?
Ulla limpa o nariz na manga puída do vestido.
— Eles estavam usando roupas esquisitas. Tinham um olho a menos.
— O que eles queriam comigo?
— Perguntaram se eu conhecia Anna Stina. Qual delas, perguntei, Knapp
ou Andersson? Knapp, disseram. A que vende frutas num cesto na Paróquia de
Maria.
— Quando foi isso? O que eles disseram?
Com uma expressão contraída, Ulla reúne a concentração necessária para
responder a duas perguntas de uma vez.
— Mais cedo. Antes do meio-dia, porque o relógio da torre ainda não tinha
soado. Eu teria escutado claramente porque fui ao poço da igreja, pois estava
com sede.
— Por que não foi ao poço perto da praça? Se o Dragão a tivesse visto perto
da igreja, teria pegado você outra vez. Você deveria saber disso mais do que
ninguém.
Ulla sorri, e orgulhosamente levanta o lábio superior para exibir o rombo
deixado pela ausência de três dos dentes da frente. Karin Ersson — mais
conhecida como Dragão, uma vez que o bairro da cidade assim chamado faz
parte da sua rota diária com o cesto — os arrancou com uma pedrada na
última vez em que Ulla se desviou da rota.
— Eles me perguntaram se eu conhecia Anna Stina Knapp e se sabia onde
poderiam encontrá-la. Perguntei o que tinha acontecido com o olho do mais
alto e com a perna do mais baixo, e o mais baixo então falou que era melhor eu
ficar calada e responder às perguntas deles em vez de inventar as minhas. Então
eu disse que iria tentar, mas que é difícil segurar minha língua e responder ao
mesmo tempo, e então o mais alto puxou meu cabelo.
Ulla ergue um canto do gorro para mostrar a Anna Stina uma marca
vermelha sem cabelos atrás da orelha.
— Ardeu tanto que deixei cair meu cesto e quase comecei a chorar, mas
então lembrei que Anna Stina sempre tinha sido muito bondosa comigo, e vi
que aqueles dois provavelmente não queriam o bem dela, então disse sim, eu
conheço Anna Stina, ela é uma moça de ossos largos, com cabelos pretos, meio
corcunda, que anda com um cesto para lá do Bosque do Urso.
A descrição corresponde bem pouco aos cabelos acobreados, às costas retas e
a rota ocidental de Anna Stina no bairro do Cordoeiro. Por outro lado, não é
muito diferente de Karin Ersson e seus domínios no bairro do Dragão.

As duas se separam. Anna Stina desce a rua de paralelepípedos sob uma luz
cada vez mais fraca. Na mercearia, Efraim Jansson já se ocupa com as últimas
tarefas do dia e se prepara para o seguinte. Anna Stina mudou de ideia quanto
a voltar à sua rota para tentar esvaziar mais um cesto cheio, e o verdureiro
resmunga sobre os artigos que voltaram sem terem sido vendidos.
— Entendo. Quer dizer que a Srta. Knapp dos pezinhos delicados deseja
voltar mais cedo para casa para empoar o rosto e passar água de rosas no
pescoço?
Ela conhece muito bem o brilho de ganância nos olhos do sujeito quando
ele consulta os números de seu livro-caixa.
— Seu ruibarbo está nas últimas e não vai poder ser vendido pelo mesmo
preço amanhã. Você sabe muito bem disso. Serei obrigado a descontar a
diferença do seu pagamento.
Ela recebe um par de moedas pelo que conseguiu vender; é menos do que
esperava. No Morro do Carteiro, as sombras já se alongaram. O sol está
descendo pelo outro lado do morro, e a luz que resta já começa a adquirir os
tons amarelos e vermelhos do poente. Ela olha em volta com atenção antes de
sair para a rua, mas nenhum homem na encosta do morro nem na direção da
praça e da Eclusa corresponde à descrição de Ulla. Anna Stina sobe o morro
em direção à Paróquia de Catarina, passa pelo cemitério e pela manufatura de
roupas de Rutenbeck. Mais adiante fica o emaranhado de casas de madeira,
passagens e vielas cujos nomes só os moradores conhecem. Entre elas fica a
casinha onde Anna Stina teme não poder mais ficar.
Ela os vê no mesmo instante em que eles a veem. Estão esperando depois da
quina de uma casa com a pintura descascada e caindo aos pedaços. Usam
uniformes azuis sem lapela abotoados até o pescoço e caneleiras até os joelhos.
O mais baixo empunha um sabre, e o mais alto, um porrete e um pedaço de
corda. O mais baixo está fumando um cachimbo de barro, e ela o ouve xingar
quando o encontro surpresa o faz quebrar a frágil boquilha do cachimbo entre
os dedos. Ela gira nos calcanhares e sai correndo; os dois disparam atrás dela.
Anna Stina mergulha entre duas construções. O espaço estreito vai ficando
cada vez mais exíguo, mas por fim a conduz a um pequeno pátio interno. Ela
vê um velho coxo sentado junto ao muro, aproveitando os últimos instantes de
luz do dia para talhar algo em madeira. Tudo que ele consegue é dar um grito
consternado antes de ela chegar ao outro lado e pular por cima da cerca do
pátio. Como quase todas no bairro, a rua de trás não passa de uma camada de
terra poeirenta sem qualquer calçamento. Ela vira à direita aleatoriamente e
corre o mais depressa que é capaz. De trás dela uma voz grita “Pega ladrão!” —
ou seus perseguidores tentando conseguir ajuda ou então o velho, que
aprendeu por experiência que alguém correndo na Paróquia de Catarina
geralmente o faz com alguma mercadoria roubada nas mãos.
Apoiadas na lateral de um celeiro, algumas tábuas à espera da plaina do
carpinteiro deixam espaço suficiente para ela engatinhar entre a madeira e a
parede. Ela fica esperando ali até escurecer. Quando torna a espiar lá fora, as
estrelas brilham acima da Paróquia de Catarina, mais do que qualquer um seria
capaz de contar e com um brilho muito intenso, uma vez que poucos senhorios
do bairro se dão ao trabalho de pagar por lampiões de rua. Ela precisa ir
embora dali, mas não sem os seus pertences; ainda tem um punhado de xelins
guardados dentro de um mealheiro junto com um broche de Maja, uma
pulseira trançada que ela ganhou de presente no dia da sua santa e um
punhado de bolinhas de gude. Há também um pouco de comida, o bastante
para durar uns poucos dias. Tempo suficiente para atravessar a Eclusa e
desaparecer na Cidade-entre-as-Pontes, ou então na direção dos morros após a
Ponte do Matadouro.

Ela se mantém rente às paredes e traça um grande círculo em volta dos


quarteirões, de modo a não voltar pelo mesmo caminho pelo qual veio. A casa
foi ganhando novas portas da frente à medida que mais paredes internas
surgiram a fim de abrigar um número ainda maior de famílias. Anna Stina
segue uma das valas que serve de sarjeta e se abaixa para passar por um buraco
numa cerca. Passa um tempo deitada na grama sem se mexer, atenta a qualquer
movimento. Nada acontece.
A porta usada pelo aprendiz de carpinteiro Alm e sua submissa esposa está
fechada, mas a barra é fácil de levantar com um graveto. Ela adentra a
escuridão do corredor, se esgueira pelo piso de madeira cujos rangidos são
abafados pelos roncos de Alm, e chega à porta do quarto que antes dividia com
a mãe. Não precisa ver para encontrar o que está procurando. Na volta, ela se
detém. Na cozinha há uma panela de cobre, já bem gasta, que Anna Stina
comprou por uma soma que levou meses para quitar. Está a meio caminho da
lareira quando a ponta de uma rapieira lhe toca o ombro.
— Ah, Anna Stina. Tínhamos começado a pensar que você não fosse voltar
para casa hoje. Não é verdade, Tyst?
Quando seus olhos se acostumam mais ao escuro, ela vê que quem falou foi
o mais baixo dos dois. Tyst, o mais alto, resmunga algo inaudível enquanto o
mais baixo dá de ombros.
— Esse homem não junta duas palavras desde que os russos lhe deram um
susto tão grande que ele perdeu a fala. Eu me chamo Fischer, e minha
capacidade de falar mais do que compensa o silêncio dele, para deleite geral.
Queira ter a bondade de se sentar aqui neste banco enquanto Tyst acende uma
vela, sim? Quem sabe aí nesse saco tem algum pedacinho de alguma coisa para
dividir conosco?
Tyst gera faíscas com uma pederneira e um pedaço de metal, grunhindo
quando a centelha pega e o fogo ilumina o recinto. Uma de suas órbitas
oculares é um buraco vazio. Fischer, baixo e troncudo, com os cabelos ralos
penteados por cima da careca e um bigodinho pintado de preto que não
consegue esconder a cicatriz que desce bem pelo meio dos lábios, está tateando
dentro da bolsa dela com uma repulsa evidente. Deixa a perna esquerda com o
joelho enrijecido esticada no chão na sua frente.
— Peixe podre e legumes passados. Bem, pelo menos tem um punhado de
café aqui dentro. Tyst, se você puder acender a lareira podemos pelo menos
preparar algo para beber.
Sobre o peitoril da lareira há um pequeno moedor de café meio cego.
Fischer coloca o objeto sobre o joelho e estala os dedos para atrair a atenção de
Anna Stina. Está segurando alguns grãos de café na mão fechada.
— Vou ensinar uma pequena lição sobre a natureza das coisas. Vamos supor
que estes pequenos grãos de café são Anna Stina Knapp e suas amiguinhas que
vivem correndo aqui pelo bairro abrindo as pernas em troca de um tostão
furado.
Ele aponta para o moedor.
— Este aqui somos Tyst e eu, e, por extensão, toda a autoridade e poder
terreno que representamos.
Ele despeja alguns dos grãos entre os dentes do moedor. Gira a manivela, e
os grãos estalam ao serem esmagados.
— É isso que está prestes a acontecer com você. Pode parecer desagradável
no começo, mas veja!
Fischer puxa o compartimento na parte inferior do moedor e lhe mostra o
pó fino, sorvendo seu aroma com prazer.
— Ah! Um café, prestes a ser preparado e saboreado pelos homens de bem.
Tudo está bem quando acaba bem. Para você também vai ser assim, Anna
Stina, quando aprender a corrigir seu mau comportamento.
O café leva algum tempo para começar a ferver no bule. Anna Stina encara
o chão. Fischer se inclina para a frente e deixa de lado o tom jocoso. Seu olhar
se torna duro como sílex.
— Você sabe quem somos, não sabe?
Anna Stina sabe. Com exceção de Ulla, não há quase ninguém nas
Paróquias de Maria ou Catarina que não reconheça os casacos azuis, na maioria
das vezes coxos, aleijados ou com alguma deformação que os torna incapazes de
exercer outros cargos na guarda da cidade ou nas forças armadas. Noite e dia,
eles perseguem mendigos, ladrões de galinha, andarilhos e prostitutas — todos
aqueles que não têm serventia alguma aos olhos da administração da cidade. A
maioria dos casacos azuis não representa perigo algum, já que todas as moedas
que ganham são gastas no bar. Eles muitas vezes podem ser subornados ou
convencidos a deixar passar alguma ofensa em virtude do próprio
comportamento que estão encarregados de reprimir. Os membros da Guarda
Municipal são conhecidos como Cadáveres, e entre as pessoas comuns aqueles
homens também receberam um apelido.
— Vocês são Porcos.
Ele ri sem humor.
— Já bati em desgraçadas mais indefesas ainda do que você, Anna Stina,
por terem pronunciado esse nome em vão. Somos sentinelas, se me permite.
Cabe a nós chapinhar na lama desses bairros nojentos e conduzir vocês em
direção à honra e à glória. Elias Lysander está cansado de vocês, putas baratas
que infestam o rebanho dele como pulgas e pelo visto cada vez mais jovens
conforme passam os anos. O pastor está farto de passar vergonha diante do
Consistório. Com a nossa ajuda, isso não vai mais acontecer. Capturamos vocês
vadias sob encomenda, e o pastor pode sair incólume. Só precisamos esperar o
dia amanhecer para descermos o morro até o Tribunal e uma parada rápida no
caminho para a Baía Dourada. Não vai precisar esperar muito, você vai ver.
Anna Stina não se atreveu a fazer as perguntas cujas respostas já sabe, mas
agora não consegue mais contê-las. Sua voz sai quase inaudível.
— O que vocês querem comigo? Para onde vão me levar?
— Nós queremos que você se emende. Não, minto. Tyst e eu queremos ser
pagos por ter capturado você, e o que quer que o destino lhe reserve, não
poderia nos ser mais indiferente.
Tyst produz um som que é algo entre um chocalho e uma risada enquanto
Fischer prossegue.
— E para onde iremos levá-la? Você, Anna Stina Knapp, será amarrada com
uma corda e encaminhada para a casa de correção. Você é uma borboleta da
noite que acaba de ter as asas arrancadas.
38

OS APOSENTOS DE Petter Pettersson ficam no canto nordeste do casarão de


Ahlstedt, o melhor de dois quartos idênticos. Logo ao lado fica Johan Franz
Hybinett, que divide as responsabilidades com Pettersson. Embora a janela
esteja inteiramente aberta para os rochedos e a baía, o quarto está quente como
um forno com o calor do verão que chegou cedo nesse ano. A transpiração
constante nunca basta para resfriar o corpanzil de Pettersson. Ele tirou o casaco
e a camisa para se esticar na cama. Fica encarando as vigas de madeira do teto
em que seus antecessores, ou seja lá qual tenha sido o lixo que se hospedou ali
antes dele, entalharam seus nomes ou suas fantasias para afastar o tédio. Um
nome e um ano aqui, um pênis ereto ali. Todos desbotaram ao longo dos anos.
O fim do décimo segundo ano de Pettersson na Cicatriz está se aproximando
depressa. Aquele quarto sempre foi dele, que chegou ao cargo vindo das
cervejarias reais em 1781, onde havia ocupado uma vaga após ser dispensado
do exército. Desde então vem definhando entre os colegas de uniformes azuis e
amarelos, e ainda que o cargo de zelador não seja formalmente parte do grupo
de sentinelas da cidade, Petterson constatou que sua falta de deficiência em
meio aos sentinelas mancos e aleijados acabou se tornando por si só uma
deficiência. Até Hybinett sofre as consequências de um tiro de morteiro mal
calculado e tem enorme dificuldade para fechar a mão direita. Pettersson
precisa ter vergonha de seu corpo saudável. Sua dispensa das forças armadas
deveu-se a outros fatores, e ele está convencido de que os sentinelas — cuja
atividade preferida é a fofoca — ouviram falar ou adivinharam qual é a sua
história. Pettersson foi mandado para casa porque representava um risco.
Imenso, forte, agressivo e ardiloso, com um gosto pela crueldade que muitas
vezes o levava a explorar sua superioridade física para infligir dor aos outros,
em pouco tempo nenhum cabo queria nem chegar perto dele. O exército se
livrou dele com base em uma mera tecnicalidade, argumentando que era
apenas uma questão de tempo para ele causar danos reais. Petter Pettersson
estava acostumado a ouvir acusações, mas nunca ninguém precisara cometer
perjúrio apenas para prejudicá-lo. A lembrança da injustiça faz seu sangue
ferver até hoje. Zelador de casa de correção naquele penhasco desolado. É só
para isso que ele serve.
O cargo tem lá seus benefícios, claro. Pettersson se agarrou a ele como se lhe
fosse muito estimado. Em 1783, antes de aprender a se controlar, chicoteou
uma das detentas, chamada Löhman, com força suficiente para lhe custar a
vida. Era de manhã cedo, ele estava no turno do alvorecer e, em vez de usar a
voz, começara a brandir Mestre Erik entre as camas. Mesmo assim, Löhman
tinha se recusado a levantar e permaneceu deitada após uma dúzia de
chicotadas. Foi como se a visão dele fosse tingida de vermelho. Ele começou a
bater nela sem parar, no final usando a ponta mais grossa do chicote em vez da
fina e trançada.
Löhman nunca mais levantou. Quando Pettersson foi forçado a informar a
enfermaria, ela estava deitada sem se mexer, ganindo. Na hora do jantar,
começou a soltar uma espuma pela boca e morreu. Muita gente se mostrou
disposta a testemunhar sobre o que tinha acontecido. Björkman foi obrigado a
convocá-lo para um interrogatório, e mesmo com a insistência de Pettersson de
que a surra não teria sido o bastante para pôr fim à vida de Löhman, que ela
devia ter sucumbido a alguma fraqueza dos pulmões contraída durante a noite,
ou no máximo a uma infeliz combinação desses dois fatores, ele pegou
quatorze dias na solitária a pão e água.
Lembra-se desses dias, duas longas semanas numa cela com a fome a lhe
dilacerar o ventre. Na penumbra, reviveu cada golpe, cada sulco que o chicote
havia aberto na pele daquela mulher e, quando tornou a ver a luz do dia e
retomou suas tarefas, soube que tinha valido a pena. Aprendeu a tomar mais
cuidado, mas não consegue viver sem aquilo. A pressão que aos poucos vai se
acumulando dentro dele só consegue ser aliviada usando o chicote. O poder
sem limites. Seu corpo imenso assomando junto a alguma detenta emaciada, o
chicote em riste. Ele fica duro só de pensar e, em seu quarto, desabotoa as
calças e começa a esfregar a virilha. Acaba depressa demais, aquele parco gozo,
e, como sempre, ele não fica satisfeito.
Como os outros sentinelas, já abordou uma das fiandeiras e a encurralou em
algum canto afastado da casa — afinal, é por isso que a maioria delas está ali, e
muitas se entregam de bom grado a alguém que lhes ofereça uma bebida ou
um pedaço de carne. Mas mesmo isso foi uma decepção para ele. Depois,
quando ele subiu as calças e enfiou a camisa de volta no lugar, ela lhe sorriu, a
putinha, como se aquilo tivesse dado a ela algum tipo de poder sobre ele. Ele
virou as costas e foi embora, irritado por motivos que nem ele próprio
compreendia totalmente.
O que as fiandeiras estão dispostas a lhe oferecer voluntariamente não lhe
interessa tanto quanto aquilo que ele pode lhes tirar contra a sua vontade. A
dança em volta do poço é algo bem diferente, e leva mais tempo — muito
melhor do que algumas arremetidas rápidas dos quadris, um instante de prazer,
um jorro da pelve. Durante a dança, ele está em outro mundo. Todos os outros
sentinelas preferem olhar para o outro lado. Ele não fez mais ninguém dançar
desde aquela garota Ersson, que praticamente se ofereceu como voluntária,
com sua boca grande e sua atitude petulante. Esse tipo é o seu preferido: as que
conservam alguma autoconfiança, que acreditam ainda ter algum valor.
Chicotear mortas-vivas é tão insignificante quanto amaciar um bife. Ersson foi
um bem-vindo interlúdio. Agora a garota anda mancando por aí, transtornada
de medo. Ele sente o membro latejar toda vez que a vê.
Pettersson respira pesadamente depois do esforço. O alívio físico quase não
abrandou a frustração que pesa sobre ele. A pressão recomeçou a aumentar,
agora pior do que nunca depois da missa com aquele pastor bêbado, cujo
sorriso desagradável sempre parece zombar dele com o canto do olho, um
velho beberrão que ousa discipliná-lo diante das fiandeiras. Seu peito vai
explodir se ele não conseguir alguma satisfação logo. Ele sabe como e já fez sua
escolha, já encontrou a menina, aquela insolente do mesmo grupo de refeição
da velha caolha. Pettersson viu nos olhos dela. Há ali um sentimento de
orgulho, uma resistência. Ela está tramando alguma coisa, ele tem certeza. Em
breve vai tirá-la para dançar. Em breve, mas não tanto. Quanto mais conseguir
esperar, maior será a recompensa.
Há apostas em curso na ala masculina, os velhos demais ou jovens demais
para colaborar em qualquer outro lugar onde o trabalho árduo seja necessário.
Eles conhecem Petter Pettersson, talvez uma espécie de entendimento tácito,
“de homem para homem”, sobre como ele lida com seus notórios desejos. Já faz
semanas que ele espancou a garota nova, e em breve chegará a hora outra vez.
Mas quem será a próxima? A que derramou seu mingau na ânsia de pegar o
rabo de arenque extra? A que foi a mais preguiçosa e mal fiou um cordão
inteiro a semana toda? Eles o observam com atenção, reparando em quais
meninas seus olhos se demoram, tentam ler seus pensamentos. Os que querem
e têm dinheiro para tal apostam sobre a ala de que virá a vítima, de qual grupo
de refeição, e até mesmo — embora a chance possa ser remota — qual será o
seu nome.

Quem avisa Anna Stina é Johanna.


— Você é a favorita. Não estão praticamente nem pagando o preço da
aposta se ele escolher você. Dizem que ele fulmina você com os olhos toda vez
que saímos do nosso quarto. Você chegou com aquela outra, a última que ele
fez dançar, e agora eles têm certeza de que você vai ser a próxima.
A dança em si, ser levada às raias da exaustão em volta do poço e apanhar
com o chicote até ficar em carne viva, não é isso que assusta Anna Stina. O que
a assusta é que a sua fuga pode jamais vir a acontecer depois disso. Talvez
Pettersson seja hábil o suficiente agora para não matar suas vítimas, mas dizer
que ele as deixa vivas tampouco é verdade. O Dragão continua se arrastando
com as pernas abertas por causa do quadril machucado, contrariando quem
apostou em sua morte iminente, mas não fala mais, se encolhe ao sinal de uma
sombra, não consegue dormir de tantos pesadelos e se assusta com tanta
facilidade que qualquer um pode amedrontá-la. Mesmo que as cicatrizes e
feridas eventualmente sarem, sua consciência encontrou um refúgio bem lá no
fundo dela de onde nunca mais retornará por completo. Então por que Anna
Stina teria um destino melhor?
A prece noturna já terminou. Ela precisará esperar até de manhã para poder
falar com Neander e apressar seus planos. Reza para Pettersson conseguir
controlar seus impulsos só por mais um dia. Quando apagam as luzes do
quarto e trancam a porta, ela não consegue dormir. Ouve pela respiração de
Johanna que a outra também ainda está acordada.
— Johanna, se algum dia você conseguisse fugir daqui, o que faria para
evitar ser pega outra vez?
Johanna não responde na mesma hora.
— Você está tramando alguma coisa. Pode achar que eu não reparei, mas
reparei sim. Não precisa ter medo, não vou entregar você.
— Existe uma saída, eu acho, e eu vou usá-la se tiver oportunidade. Você
pode vir comigo.
Johanna ri.
— Daqui a menos de cem cordões eu terei cumprido a minha pena e, se
mantiver a cabeça baixa, estarei livre antes do final do verão. Se já fiei esse
tanto, posso muito bem fiar o resto.
Anna Stina não pode contrariar seu raciocínio. Ainda demora um pouco
para Johanna responder à sua primeira pergunta.
— A maioria que vem parar aqui não vale muito. Você tem sido uma boa
companheira, então vou lhe contar uma coisa. Eu tinha uma amiga quando era
pequena. O pai dela era dono de um bar, até onde eu sei ainda é. O bar se
chama Patife. Não fica longe da Eclusa Vermelha. Anos atrás, os pais dela
tiveram uma briga que ninguém conseguiu conciliar, embora o próprio pastor
da Paróquia de Nicolau tenha tentado. No fim das contas, a mãe acabou indo
embora e levando minha amiga junto. A mãe era de algum lugar fora do
condado, deve ter voltado para a casa dos pais. Eu perdi minha amiga, mas
para o pai foi ainda pior. O pobre coitado ficou com o coração partido. Desde
então não é mais o mesmo, mesmo tantos anos depois. Hoje em dia ele fica lá,
atrás do seu balcão, servindo os clientes como se estivesse programado para
simplesmente executar gestos. O nome dele é Kalle Tulip, conhecido como
Florista, embora a maior parte dos clientes assíduos do bar pensem que Flor
Murcha cairia melhor. Minha amiga se chamava Lovisa Ulrika. Kalle Tulip
ficou tão orgulhoso no dia em que ela nasceu que a batizou com o nome da
rainha.
— Que história triste.
— Não é uma historinha para boi dormir, está bem? Fique quieta e escute.
Você e Lovisa devem ter um ano de diferença. Os olhos dela eram tão verdes
quanto os seus, e os cabelos ruivos são quase iguais. Se você conseguir sair
destes muros e ir embora da Cicatriz, nunca mais vai estar segura na Ilha Sul.
Então, o melhor a fazer é procurar Kalle Tulip e dizer que você é a filha dele,
Lovisa Ulrika, amiga de infância de Johanna Ulv, e que agora voltou para junto
do seu amado pai depois de todos esses anos.
— Ele não iria reconhecer a própria filha?
— É claro que iria. Ele não é burro. Mas vai acreditar em você porque essa é
a mentira que ele quer ouvir mais do que qualquer outra coisa nesse mundo.
Para alívio de Anna Stina, Petter Petterson não está no seu lugar habitual na
prece da manhã. Quem está lá é o mesmo sentinela que a levou até o pátio pela
primeira vez, o que ficou ao seu lado enquanto Pettersson espancava o Dragão.
Seu nome é Jonatan Löf, é mais jovem do que a maioria dos colegas, e parece
não haver nada de muito errado com ele, exceto uma leve rigidez nas costas. É
conhecido pelos modos suaves, e vende tanto comida quanto bebida alcoólica
sem cobrar somas exorbitantes. Anna Stina decide tomar a iniciativa, vai até ele
em frente aos bancos da capela quando a missa termina, faz uma mesura e pede
para falar com o pastor. Mal consegue acreditar nos próprios olhos quando ele
dá um passo de lado e, com um pequeno sorriso, deixa que ela se aproxime de
Neander, que por sua vez a conduz à sacristia com um gesto e um grunhido de
irritação.
— Qual é o problema com você, garota burra? Não entende que as pessoas
vão começar a desconfiar se você ficar vindo me procurar o tempo todo? Ainda
não tenho uma chave para lhe dar.
— Tem que ser hoje à noite. É agora ou nunca. A qualquer momento,
Petter Pettersson vai me arrastar até o poço e me fazer dançar. Depois disso eu
não vou mais ser capaz de rastejar por um buraco.
A respiração de Neander fica pesada, e ele tateia às cegas em busca de um
encosto de cadeira, onde senta-se com força. Então fica mascando a barba e
esfrega o couro cabeludo até fazer voar pedaços de pele morta. Quando começa
a pensar em voz alta, Anna Stina percebe que ainda está bêbado e não deve ter
dormido nada antes da missa.
— Inferno. Maldição. Será que não vou ter recompensa alguma por todo o
meu trabalho? Por que me testar tanto, Senhor? Hoje à noite, ela diz, mas é
cedo demais, cedo demais. Mas Björkman, aquele canalha ganancioso, aquele
vira-lata esfomeado... Em breve vai estar além do alcance, e a reclamação já foi
escrita e... talvez existam outras maneiras, igualmente eficazes...
Após alguns minutos desses resmungos, o pastor parece tomar uma decisão.
Bate com a mão espalmada na mesa.
— Que inferno, menina. Escute bem. Hoje à noite, certo? Então hoje à
noite será, custe o que custar. Fique acordada e espere uma batida na porta.
Virão abrir para você, e então você vai desaparecer. O que quer que aconteça
com você depois disso não é problema meu, contanto que fique longe daqui
por tempo suficiente para Björkman ser responsabilizado por má
administração. Entendeu bem? Está certo, agora suma daqui, e que Jesus
Cristo, Belzebu e Odin Todo-Poderoso a acompanhem. Senão eles vão ter de se
ver comigo.

Quando Anna Stina chega ao pátio conduzida pelo sentinela Löf, alguma coisa
está acontecendo. Todas as detentas estão enfileiradas, cada grupo de refeição
em pé diante do respectivo quarto, e Petter Pettersson anda de um lado para o
outro no meio delas, orgulhoso como um galo, brilhando feito o sol. Löf
empurra Anna Stina em direção ao seu grupo de refeição, e ela se apressa para
se postar ao lado da Ovelha, de Johanna e de Lisa Louca. A voz ribombante de
Petter Pettersson ecoa entre os prédios.
— Senhoras e senhores, um roubo foi descoberto hoje mais cedo. E
enquanto vocês estão aqui paradas tão quietinhas, nós estamos revirando todas
as camas para encontrar os artigos roubados. Ninguém que for inocente tem
nada a temer. Enquanto a busca estiver em curso, vocês podem calmamente
repousar os olhos na belezura aqui na sua frente.
Anna Stina sente toda esperança dentro de si morrer. É tarde demais.
Pettersson já escolheu sua vítima, e agora tudo que resta é a dança. Eles vão
encontrar um pequeno objeto qualquer que ele plantou entre os percevejos
inchados de sangue no colchão dela, e suas objeções veementes não farão
qualquer diferença.
Pettersson mandará buscar Mestre Erik e aplicará a punição dentro dos
limites permitidos. Ela está à beira das lágrimas. Morde com força o lábio
inferior, uma dor que ela mesma pode escolher.
Alguns minutos mais tarde, eles encontram a faca de madeira. Um sentinela
triunfante a ergue no ar e caminha direto na direção dela sacudindo seu prêmio
entre o polegar e o indicador. Pettersson lhe pergunta em que cama a faca foi
encontrada. O sentinela então segura Johanna pelo braço e a arrasta até o poço,
onde o sorriso de Pettersson se estica de orelha a orelha.

São quatro e meia da manhã. Quando mais de metade do dia já se passou, os


gritos de Johanna ainda ecoam, mais fracos a cada golpe do chicote. Anna
Stina nunca mais a vê.
39

A CAMA AO lado de Anna Stina está vazia. Como fizeram com o Dragão, os
sentinelas devem ter carregado o corpo inerte de Johanna até a enfermaria para
ser remendado da melhor maneira possível. Os ruídos noturnos são mais
assustadores do que o normal. Ganidos e fragmentos de palavras surgem de
todos os cantos, arquejos violentos quando as internas despertam de sonhos
perturbadores. A maioria dorme mal após ter sido forçada a ouvir os gritos do
pátio por tantas horas. Quando Anna Stina foi escutar a Liturgia das Horas,
havia uma mancha em volta do poço onde Johanna tinha se arrastado. Os
esguichos vermelhos na parte externa do poço rapidamente secaram e viraram
manchas marrons seria inescrutável, exceto para aqueles que testemunharam
sua origem. Mas o que ela está sentindo não deixa lugar para o cansaço. O
terror, o pesar e a tristeza pelo destino de Johanna, um alívio sussurrado com o
fato de outro alguém ter ocupado o lugar que ela pensara ser seu,
imediatamente seguido pela vergonha que o pensamento causava. Em seu
âmago, ela sente também um pânico crescente, uma sensação de ter sido
envolvida em algo que não pode deter. Anna Stina precisa recorrer a cada
grama de força de que dispõe para sua fuga, mas o que aconteceu com Johanna
abriu um talho profundo pelo qual sua energia se esvai. Não hoje à noite,
Deus, hoje à noite não. Mas ela sabe que o tempo das escolhas passou e então
fica aguardando no escuro.
A batida vem tão baixa quanto o prometido. No início Anna Stina não tem
certeza de ter escutado direito, mas, quando escorrega o quadril para fora da
cama e percorre o piso pé ante pé, ouve uma chave girar na fechadura. Uma
fresta da porta se abre. Alguém está esperando do outro lado, e em silêncio abre
a porta o suficiente para ela passar. É Jonatan Löf, o jovem sentinela. Ele leva
um dedo à boca, encosta o ombro na porta e ao mesmo tempo segura a
maçaneta para não forçar as dobradiças quando torna a fechá-la. Tranca a
porta, então faz um gesto para ela o seguir.
Eles atravessam o pátio depressa e sobem a escada em direção à casa antiga.
Ela ouve vozes e risos do andar de cima. Os sentinelas estão acordados até
tarde, se divertindo. Ela ouve ruídos de jogo e de bebida: o estalo de cartas já
bem gastas sobre o tampo de uma mesa, o tilintar de garrafas e copos. Com um
gesto, Löf indica que ela deve ir até uma sombra ao lado da porta enquanto ele
atravessa a parte aberta. Quando ele enfim se assegura de que o andar de baixo
está vazio, os dois passam por uma cozinha escura onde ainda resta um pouco
do calor do fogão. Löf acende nas brasas uma pequena tocha que protege com
a mão em concha e então prosseguem por uma pequena sala de jantar e por
um corredor. Anna Stina enxerga com dificuldade, já que a chama contribui
mais para cegá-la do que iluminar o caminho. Contudo, percebe que estão
entrando na ala nova, aquela cujos alicerces a Ovelha ajudou a construir.
O teto vai ficando mais baixo, e a textura das paredes, ainda mais áspera sob
a sua mão. Nenhum cavalheiro mandou decorar aquelas superfícies com papel
de parede. Por trás de uma porta sem tranca, há uma escada cujos degraus
descem rangendo até o porão. Num gancho está pendurado um lampião com
uma pequena vela que Löf acende após ter fechado a porta atrás deles. No pé
da escada, ele se dirige a ela pela primeira vez.
— Ninguém deve conseguir nos escutar aqui embaixo, mas isso não é
motivo para falarmos mais alto do que o necessário. Você está com sorte, você e
seu amigo Neander. Pettersson costuma fazer todo mundo festejar depois de ter
se divertido com o chicote, para ninguém ir procurar o inspetor Björkman e
mencionar o uso excessivo da força. A esta altura não tem muitos lá em cima
que ainda consigam andar direito.
Anna Stina o observa e aguarda. Ele pressente a pergunta dela.
— Neander me deu alguns dalers para destrancar sua porta, trazê-la até aqui
e depois ficar calado. Disse para esperar enquanto você faz o que precisa fazer.
Leve o lampião. Pelo tamanho da vela, você deve ter uma hora. Talvez mais.
Ela aquiesce. Löf abre o vidro do lampião e acende um cachimbo de barro
já cheio de tabaco. Sobe num dos degraus enquanto lhe entrega o lampião com
um sorriso.
— Boa sorte.
Depois que Löf sai do alcance da luz débil, tudo que resta dele é o brilho do
cachimbo. Toda vez que ele traga, uma claridade avermelhada ilumina seu
rosto. Ela acha aquilo parecido com uma máscara teatral suspensa no vazio,
não parece em nada com um homem vivo.
O porão é grande, e paredes dividem o espaço em compartimentos
separados, alguns repartidos internamente por tábuas de madeira. Olhos
cintilam e em seguida se apagam ao refletirem a luz. O lugar fede. O porão
inteiro está cheio de comida, parte da qual foi claramente esquecida e
abandonada para apodrecer. Caixotes de maçãs ressecadas, sacos de nabos,
barris até a metade com carne salgada cujo fundo se desintegrou e fez a
salmoura se derramar pelo piso de terra batida. Ela supõe que a carne seja a
responsável pela pior parte do cheiro, um fedor pesado e repugnante de
decomposição. Moscas e mariposas surgem atraídas por seu lampião, zumbem
junto ao seu ouvido e voam para cima do seu rosto como se a saciedade as
houvesse deixado embriagadas.
Metodicamente, olhando de quando em quando para a vela que diminui,
ela começa examinar todas as paredes. Leva mais tempo do que havia
imaginado. Tudo ali está em desordem, as coisas empilhadas e amontoadas nos
cantos. Várias vezes ela é obrigada a se deitar de bruços no chão para tentar
espiar por entre a bagunça. Todas as vezes, se depara com a visão dos alicerces
de pedra.
Por fim, restam apenas os pequenos espaços entre as divisórias de madeira.
Ali os sacos e a quinquilharia formam pilhas tão altas que ela não consegue
chegar perto. Não resta alternativa senão começar a retirar as coisas uma a uma.
Anna Stina pousa o lampião no chão para se dedicar à tarefa. É um trabalho
pesado. Tecidos e tábuas de madeira podre se desintegram com o peso de seu
conteúdo. Não demora muito para os cupins começarem a rastejar para seus
braços e ombros. Toda vez que a chama tremeluz, ela tem certeza de que vai se
apagar e deixá-la no escuro. O fedor piora a cada instante. Aos poucos,
entretanto, ela avança. Abre um caminho entre a montanha de objetos
esquecidos até ser capaz de sentir a pedra na sua frente.

Leva um susto com a voz de Löf outra vez, muito próxima. Ele está sentado de
pernas cruzadas ao lado do lampião, alguns passos atrás dela. Moveu-se de
modo tão silencioso que ela não ouviu nada, tão ocupada que estava com seu
esforço de mover o entulho.
— Como vai indo? Não tem muito mais luz no lampião.
Ela sente uma brecha no ponto em que a parede encontra o chão.
— Neander me deu instruções sobre como proceder caso você não
encontrasse a tempo o que estava procurando.
Ela se deita de bruços no chão e explora a brecha com as mãos. É menor do
que ela imaginava, com a borda superior apenas alguns palmos acima do chão.
— O pastor não estava muito disposto a testar a sorte mais uma vez
deixando que você refaça o trajeto de volta pelo pátio. Se alguém por acaso
estiver lá fora esvaziando a bexiga e nos surpreender, isso vai acabar mal.
Ela estica o braço o máximo que consegue e encontra um espaço vazio. É
ali. O caminho de Alma Gustafsdotter rumo à liberdade.
— Se você não encontrar a tempo, Neander me pediu para estrangular você
e deixá-la perto da parede coberta por alguns sacos de nabos.
Ela se vira. Ele está torcendo o fino bigode entre o polegar e indicador e lhe
sorrindo à luz do lampião. Ela retribui com um sorriso desesperado e
triunfante.
— É aqui! Encontrei. É um canal para escoar água de chuva, construído
quando a casa ficou sem telhado durante o outono de setenta e dois. Passa bem
debaixo da parede.
Ele inclina a cabeça de lado.
— E eu aqui torcendo em segredo para você não encontrar o que estava
procurando... Neander tinha prometido um bônus pelo trabalho de calar a sua
boca para sempre, e para ser bem sincero eu vi também outras vantagens.
Agora pelo visto vou ter de me contentar só com uma parte. Você vai me
perdoar por preferir fazer no escuro, mas é que você está tão magra e suja que
prefiro não olhar para você.

Ele apaga a vela de sebo. Não há como fugir quando se aproxima com os
braços abertos, força-a a deitar no chão, rasga seu vestido branco e toma o que
ela recusou a Anders Petter na Várzea das Crianças uma eternidade antes.
Depois de terminar, ele a deixa ali no chão do porão. Ela permanece
esparramada de costas, de olhos abertos, mas está tão escuro que poderiam
muito bem estar fechados. No escuro, Anna Stina vê a si mesma como se
flutuasse, de algum modo iluminada, um corpo que poderia muito bem ter
sido o de outra mulher. Emaciado, nu, imundo. Anna Stina não o reconhece.
Insetos rastejam por sua pele, e ela não sente nada. Estão se juntando para
beber o sangue que escorreu de dentro dela, agora acumulado numa poça que
já coagula sob as coxas e a base das costas. Ela não chora. Não há mais
sentimento algum. Seu peito sobe e desce, e ela se dá conta de que ainda está
viva, mas que uma escolha foi colocada diante dela. Anna Stina não precisa
mais viver. Seria tão simples. Tudo que precisa fazer é escutar com atenção o
movimento raso dos pulmões e da pulsação fraca e desejar que cessem para
sempre. Eles iriam obedecer.
Não sabe onde encontra forças naquele lugar repulsivo, que reservas ocultas
ainda existem dentro de si, mas sabe que não pode permitir que tudo acabe ali.
De forma alguma. Um fogo ainda arde em seu âmago. Anna Stina toma sua
decisão e começa a engatinhar em direção à parede. A dor agora não é nada, é
algo que ela sente como se viesse de longe. A superfície áspera da brecha
arranha seus ombros quando ela faz força para entrar com os braços esticados
acima da cabeça. Precisa dar meia-volta e entrar de costas, rastejando feito uma
lagarta sobre os calcanhares e as escápulas. Basta mover a cabeça de leve para
bater com a testa na pedra acima de si. Ela sente aquela massa muda, a casa
inteira pesadamente assentada em seus alicerces. Vai avançando devagar,
centímetro por centímetro, até ficar rodeada por pedras.
Então sente algo logo à frente. Alguma coisa está impedindo sua passagem
num ponto em que a brecha se estreita. Uma das pedras do teto parece ter
escorregado e diminuído o espaço. Executados de qualquer modo por detentos
supervisionados por pedreiros que competiam entre si para ver quem cobrava
menos, os alicerces cederam. É sua mão que toca primeiro o curioso objeto
imprensado debaixo da pedra e cujo fedor se espalhou pelo porão.
O que ela sente é um pé.
O pé frio e morto de Alma Gustafsdotter.
Alma nunca foi embora. Ela chegou até ali, mas não foi adiante, imprensada
sob uma pedra a meio caminho da liberdade até sucumbir à sede, à fome e aos
ratos.
Anna Stina não sabe quanto da noite transcorre enquanto ela abre o caminho.
Parece-lhe que o próprio tempo a abandona num pesadelo que ela jamais
esquecerá, um abismo trêmulo repleto de emoções, formas, vozes, sons. O
cadáver é mole feito lama. Despedaça-se ao toque. Pouco a pouco, punhado
por punhado, ela retira os dejetos da sua frente. Na cavidade torácica, antes
firme o bastante para ficar presa entre terra e pedra, os ratos fizeram um ninho.
Ossos roídos cedem com a menor das forças e fazem os novos residentes saírem
correndo em todas as direções. Com o caminho enfim livre, Anna Stina vira a
cabeça de lado para passar por baixo da pedra pendurada, rastejando feito uma
cobra sob uma ponta afiada que arranha sua pele. Num progresso lento, mas
constante, chega ao ponto mais estreito. Esvazia todo o ar dos pulmões e se
espreme para prosseguir, sentindo a argamassa se esfarelar nas costelas. Clarões
se acendem diante de seus olhos quando a pressão torna impossível respirar.
Como ela conseguiu se espremer por aqueles poucos centímetros que separam
a vida e a morte, ela jamais saberá. Talvez esteja ainda mais descarnada pela
fome do que Alma estava. Talvez as pedras agora estejam escorregadias graças
aos fluidos vertidos pelo cadáver. Talvez a moça morta no porão atrás dela
tenha colocado as mãos defuntas nas solas de seus pés e lhe dado o último
empurrãozinho necessário.
Do outro lado da parede, um vento morno sopra da baía. A primeira coisa
que ela vê quando seu rosto sai do túnel são os pontinhos de luz na escuridão.
Mais acima se ergue o muro da casa de correção, mas do outro lado um céu
estrelado cobre o horizonte de um extremo ao outro. Ao longe, vindo do mar,
o rufar de trovoadas. Quando sente as primeiras gotas de chuva na pele nua e
vê nos breves clarões dos raios a própria imagem refletida na água perto da
Ponte dos Suspiros, ela sabe que nunca mais será a mesma; nunca mais voltará
a ser Anna Stina Knapp.
40

QUANDO O VERÃO se aproxima do fim, o sangue da sua lua deixa de vir pela
terceira vez. Na primeira, ela nem prestou atenção. Muitas das moças paravam
de sangrar na casa de correção, decerto porque seus corpos emaciados sabiam
que precisavam conservar cada parcela de força que restava. Da segunda vez foi
a mesma coisa. Ela diz a si mesma que seu corpo precisa de tempo para se
recuperar, ainda que sob os cuidados do pai de Lovisa, que se chama Karl
Tulip, tenha começado a reaver a carne roubada pela fome. Ela agora vive sob o
teto dele e o ajuda a cuidar do bar. Seu nome agora é Lovisa Ulrika. Se ele sabe
que ela não é sua filha pródiga, só o demonstra no modo como lhe concede
algum espaço, tomando cuidado para não sufocá-la com amor paterno
reavivado. O homem voltou à vida. Nada mais resta do velho grisalho que ela
encontrou pela primeira vez, com as costas vergadas como se quisesse se
esconder do mundo atrás de seu balcão. Os dias de glória do Florista voltaram.
Sua risada ecoa pelo estabelecimento quando ele brinca com os clientes. Seu
bom humor é contagiante. O bar vai mudando de cor conforme as paredes
sujas são caiadas de branco, o chão é varrido, as canecas são esfregadas e secas.
A clientela aumenta. Até mesmo gente elegante da praça perto do Salão dos
Nobres já foi vista entre os convivas quando a hora avança e a sede diminui os
critérios.
Quando a terceira vez chega e se vai, ela sabe que a boa sorte que esteve ao
seu alcance está fadada a ser passageira. Contra a sua vontade, ela está grávida,
grávida do filho de Jonatan Löf. Assim que chegou, Karl Tulip a pegou pela
mão e a fez subir o morro até São Nicolau para falar com o pastor, inscrever
seu nome nos livros e torná-la mais uma vez parte da paróquia. Mas à medida
que sua barriga for crescendo, ela trará desonra ao seu novo nome e ao seu
novo pai.
Alguns ainda se lembram de Lovisa Ulrika. Após alguns copos, em geral
brincam dizendo como é estranho maçãs do rosto poderem mudar de lugar em
poucos anos e o formato de um nariz ser a tal ponto transformado. Mesmo
assim, guardaram para si qualquer desconfiança diante da visão da alegria
desmedida do Florista. Em breve, no entanto, irão mudar de discurso. Irão
chamá-la de caçadora de fortunas, de rameira, capaz de se envolver em atos de
prostituição e criar um verdadeiro engodo. Uma mulher que, em desespero,
está disposta a fazer qualquer coisa que lhe permita garantir um futuro para si e
para o bastardo que vai parir. Até mesmo o próprio Florista terá de ouvir a
razão quando o pastor e o vigário vierem procurá-lo com seus casacos negros
para uma conversa séria. A menina é uma vagabunda, dirão. Ele tem certeza de
quem ela realmente é? Os clientes assíduos, preocupados com o seu bem-estar
pela primeira vez em anos, irão convencê-lo. Ela, Anna Stina Knapp, será
jogada na sarjeta. De lá, o caminho de volta para a Cicatriz será bem curto.
Ela ouviu dizer que o pastor Bengt Neander desapareceu. A reclamação
apresentada por ele para condenar Hans Björkman testou a paciência já curta
do Conselho, e seu relato não se encaixou muito bem com os ossos
encontrados no porão, restos humanos que, apesar do estado de decomposição
avançado, só podiam estar relacionados à detenta sumida, Knapp. Em vez de
ficar e correr o risco de a suspeita recair sobre si, ele foi visto embarcando num
navio com destino à Inglaterra, praguejando e caminhando sobre pernas
bambas. Björkman, que tampouco permaneceu no cargo, zarpou na direção
oposta, pelo Báltico. Mas Pettersson continua lá, assim como Mestre Erik. Do
outro lado da baía, eles aguardam pacientemente a hora de tirá-la para uma
última dança em volta do poço da casa de correção.

Ela o encontra pela primeira vez num início de noite em setembro. Está na
hora de fechar, e a maioria dos clientes do Patife não se mostra difícil de
convencer. Até o mais truculento se deixa subornar na soleira da porta pela
oferta de um último trago. Karl Tulip já se retirou depois de um dia de
trabalho pesado. Quando ela dá uma última volta pelos barris que servem de
mesa, repara que resta ainda um cliente, um homem que se encolheu no chão
num canto do recinto, ao lado do fogo para se aquecer. Está pálido, emaciado,
e não é fácil supor sua idade. Parece ao mesmo tempo jovem e velho. Os
cabelos compridos são louros, mas estão tão sujos que não se pode distinguir o
tom exato. Seu rosto é uma máscara de sujeira entranhada. Não é a primeira
vez que ela o vê. Ele cambaleia de bar em bar como um espectro, desde a hora
em que as casas abrem até tarde da noite. Nesse dia, recusa-se a se mexer. Tem
a respiração curta, sibilante, os olhos fechados, e o corpo enrodilhado em volta
de qualquer calor que ainda retenha. Não reage ao seu cutucão, e ela precisa se
ajoelhar e sacudir os ombros ossudos. Ele fede. Não passa de um saco de ossos.
— Acorde. Está tarde. O senhor não pode dormir aqui.
Ela torna a sacudi-lo, primeiro com delicadeza, mas logo com mais força, e
só então ele abre os olhos. Ela lê ali as mesmas emoções que o ano anterior lhe
ensinou: medo e incompreensão, uma dor de um tipo que se fará sentir
enquanto durar a lembrança, e então percebe que ele é jovem, mais jovem do
que seu aspecto exaurido deixaria imaginar. Seus olhos se reviram nas órbitas, e
as pálpebras tornam a se fechar quando ele mergulha mais uma vez no estupor,
deixando-a sem alternativas óbvias.
Anna Stina abre uma fresta da porta da rua. O vento sopra forte na viela, e
nessa noite está cortante. A luz dos lampiões de rua mal chega ao calçamento.
O ano está caminhando para o fim, e a qualquer momento espera-se que
comece a gear durante a noite. Ela fecha a porta com um puxão e faz deslizar a
barra de madeira. Então vai buscar alguns pedaços de lenha para o fogo,
reavivando com um sopro as brasas escondidas sob as cinzas da lareira. Põe no
fogo uma chaleira de cobre cheia d’água e, quando a água fica morna, lava o
rosto dele com um trapo.
A sujeira entranhada aos poucos se dissolve e vai embora. Por baixo dessa
camada, ele mal passa de um menino, tão jovem quanto ela. Está aos poucos
recobrando a consciência, e embora o estado de embriaguez prejudique sua
capacidade de controlar o corpo, faz o que pode para ajudá-la a tirar a própria
camisa de modo que ela possa colocá-la de molho e limpá-lo. A água na panela
fica turva, e ela precisa esquentar mais. Dá-lhe água do poço para beber, então
mói alguns grãos de café e prepara um bule. Ela mesma nunca aprendeu a
apreciar o gosto amargo, mas já ouviu dizer que a bebida ajuda a curar a
bebedeira. Fala com ele baixinho, tentando despertá-lo com suas perguntas.
Aos poucos, ele acorda o suficiente para começar a falar.
— Meu nome é Johan Kristofer Blix.
— O meu...
Ela precisa se deter.
— O meu é Lovisa Ulrika, Lovisa Ulrika Tulip.
Ela não quer lhe contar sobre uma origem que não é a sua, e ele também
parece igualmente pouco inclinado a fazer confidências.
— A casa da minha família fica em Karlskrona. Fui aprendiz de cirurgião lá
durante a guerra. Vim para Estocolmo atrás de fortuna, mas em vez disso
encontrei... outras coisas.
Os dois ficam ali sentados sem dizer nada. Ela coloca um cobertor sobre os
ombros dele enquanto sua camisa seca com o calor do fogo. Inesperadamente,
Anna Stina sente uma intimidade crescer entre os dois, e é isso que a leva a
fazer a pergunta que foi seu primeiro pensamento no instante em que ele citou
sua profissão.
— Dizem que existem ervas, ervas especiais para mulheres que estão
grávidas, mas que não querem estar. Do tipo que as borboletas da noite usam.
Ela não consegue impedir as emoções de transparecerem no rosto. Não
tristeza pela criança que será desfeita, mas raiva ao pensar no pai e no
sentimento de estar suja. Um sentimento do qual, por mais que se esfregue e se
lave, nunca conseguiu se livrar. Precisa esperar por muito tempo a resposta
dele. Por fim, ele aquiesce.
— Você me ajuda a encontrar?
O olhar dele se move para o ventre dela, escondido sob as dobras do vestido
largo que ela trocou por seu antigo para ganhar tempo. Pisca como se a
estivesse vendo pela primeira vez, e Anna Stina capta uma centelha de alguma
outra coisa nos olhos dele, algo além da desesperança e do desespero. Até
mesmo a voz sai com outro timbre quando ele lhe dá sua resposta.
— Sim. Sim. Você me ajudou, e eu vou ajudar você.
41

KRISTOFER BLIX TEM vivido em meio a uma névoa desde o fim do verão; evita a
sobriedade sempre que possível. Quando não está sentado num bar ou taberna,
anda cambaleando pelos becos. Acorda no último lugar em que o sono o
surpreendeu, num vão de porta, junto a uma cerca ou no meio do próprio
vômito num canto do Lote Queimado, e quando desperta e descobre que
nenhuma carroça o esmagou na penumbra da noite, tem a impressão de que o
universo o está provocando. Por alguns instantes de pânico, de ressaca e a meio
caminho entre o sono e a vigília, se vê de volta em seu quarto de dormir úmido
e frio, tendo de encarar mais um dia em que vai dar banho no homem cada vez
mais reduzido sob os seus cuidados, despejar mais vinho em sua goela, aplicar
um torniquete, cortar, levar os restos para Magnus, sentar-se trêmulo num
canto e beber até perder os sentidos à medida que as sombras vão baixando
sobre a ruína assombrada da propriedade, a coruja amarela piando na floresta.
Mesmo agora, depois de tudo, sua única fonte de alívio é o aquavit. Sempre
que pode, ele recorre à garrafa. Seu corpo vai sendo aos poucos exaurido, mas
seu âmago segue jovem e resiliente. Ainda tem poder para resistir aos venenos
que ele mesmo instila, por tempo suficiente para conhecer a moça. Seu nome é
Lovisa Ulrika, e ela lhe pediu ajuda. Ela precisa de ajuda e não tem mais
ninguém. Kristofer Blix entende que aquilo é um fio dourado de misericórdia
que lhe foi estendido na escuridão de seus dias derradeiros. A providência lhe
deu uma possibilidade de se redimir, uma vida por uma vida.
A moça o deixa ficar no bar até de manhã. Sua camisa está seca, e o tecido,
limpo a ponto de parecer que a peça de roupa inteira foi substituída por algo
melhor. Pela primeira vez desde seu retorno a Estocolmo, não é de conhaque
que ele parte em busca. Não precisa mais do álcool. Em vez disso, muda seu
rumo em direção aos limites da cidade, passa pela Ponte do Matadouro, pelo
mercado de peixe, e segue para o norte margeando o Riacho e o Lodaçal. Traça
um círculo ao redor do Portão da Anca do Gato e vê o que está procurando na
Grande Sombra junto ao Parque Lill-Jans. Ali os troncos das árvores estão
silenciosos, a floresta, deserta e fria, e as folhas brilham vermelhas e douradas
como chamas. Em breve irão cair. A estação já está avançada, mas ele corre o
olhar pela terra em volta dos tocos e das árvores desenterradas, todos os tipos
de lugares que Emanuel Hoffman um dia lhe mostrou.

Volta a procurá-la no dia seguinte com as ervas prometidas no bolso. A moça,


Lovisa, parece espantada, e tem dificuldade para se adaptar à mudança que o
acometeu. Ele recusa tanto vinho quanto álcool destilado, mas devora com
avidez o pão que ela oferece. As ervas foram amarradas em buquês pequeninos
para que ela os guarde pendurados de cabeça para baixo, de modo a conservar
sua potência. Ele lhe pede um bule, mostra cada passo e se assegura de que ela
entendeu o que precisa ser feito.
— Deixe a decocção ferver devagarinho até a água mudar de cor. Coe com
um pano e beba quando estiver morno. Prepare uma nova leva todo dia de
manhã.
— Mas como vou conseguir mais ervas quando estas acabarem?
— Vou colher e trazer para você.
Anna Stina dá o primeiro gole, decerto preparada para um sabor pelo
menos tão amargo quanto o café ou tão forte quanto o conhaque. Kristofer
sabe que a mistura não tem um gosto nem um pouco forte, e vê o alívio no
rosto dela.
— Como funciona?
— As ervas despertam uma sede na sua carne, e a criança ainda por nascer é
consumida até não sobrar mais nada. Foi isso que meu mestre disse. Mas o
processo leva tempo. Você vai ter de ser paciente. Esse método é o melhor e o
mais seguro.

Em meados de outubro, chega a notícia pelo Extra Post. Encontraram um


cadáver no Lago da Ucharia sem braços nem pernas, sem olhos, dentes ou
língua. Kristofer sabe que o corpo não pode ser de mais ninguém. A sua obra.
Ele estremece com a lembrança, mas se reconforta ao pensar que o sofrimento
que ajudou a causar enfim acabou. Faz uma prece para o morto e sabe que ele
agora está trilhando outro caminho. Todos os dias, visita a moça para se
certificar da sua boa saúde, e aguarda mais uma semana antes de finalmente
abordar aquilo que vem planejando há muito tempo. Certo dia de manhã,
quase congelando ao fazê-lo, lava no regato suas roupas manchadas, deixa que
sequem sob o sol de outono e vai até a Igreja de Nicolau falar com o pastor.
Espera um horário vago, se apresenta e explica por que está ali.
— Eu pretendo me casar.
Kristofer deixa seu nome e o de Lovisa Ulrika Tulip. O pastor lhe dá os
parabéns e pergunta qual é a sua paróquia de origem. Ele responde que a
família Blix sempre pertenceu à igreja de Fredrik, e o pastor promete mandar
um recado assim que puder, para que as proclamas possam ser lidas lá também.

Kristofer não pode mais adiar a única questão que resta. Desce o morro até o
Patife e espera a noite cair e chegar o horário da sua visita diária. Enquanto a
moça está preparando sua decocção do dia, ele a detém pousando a mão sobre
a sua. Segura uma das folhas e a suspende na sua frente.
— Isto aqui é cavalinha-das-areias. Mestre Hoffman me disse que faz bem
para o fígado.
Ele escolhe uma flor.
— Erva-de-são-joão. É o que deixa a água vermelha.
Ele pega outras e vai explicando seus efeitos benéficos: angélica, samouco-
de-brabante, erva cicutária. Guarda uma delas para o final.
— E isto aqui é camomila. Escolhi por causa do sabor. Nenhuma têm
qualquer poder de prejudicar o seu bebê.
Anna Stina fica confusa, não sabe o que dizer, mas Kristofer vê o rubor lhe
subir às faces.
— Você agora está adiantada demais. Não dá mais tempo de se livrar dele.
A criança vai nascer.
E então Kristofer já não consegue discernir nenhuma palavra em meio aos
gritos dela. Ela bate nele com as mãos abertas, no rosto, no peito, onde
consegue alcançar. No início ele fica parado e aceita sem se defender, e então
ela chega mais perto, e ele abre os braços para envolver num abraço seu corpo
convulsionado pelos soluços. A força se esvai de dentro dela até que se acalme,
e em seu ouvido ele sussurra que mandou ler as proclamas, que o bebê terá o
nome dele. Que não virá ao mundo como bastardo, e que ela não o dará à luz
no pecado.

Anna Stina Knapp não sabe mais o que dizer nem o que sentir. Está carregando
o leitão de Löf, uma semente plantada no mal durante um ato de violência. Por
muito tempo, ficou imaginando o bebê com o rosto de Löf à luz do cachimbo:
um fantasma malévolo pairando em seu próprio interior escuro, um sorriso
zombeteiro no rosto. Mesmo assim, com o passar do tempo, seus sentimentos
mudaram, e é com uma hesitação cada vez maior que ela toma o remédio que
lhe foi dado. Pode senti-la, aquela vida crescendo suavemente dentro dela,
como o roçar de asas de uma mariposa. Como algo tão minúsculo, fruto do seu
próprio corpo, pode se tornar igual ao pai contra a sua vontade? Agora a
decisão havia sido tomada por ela.
Quando ela vai até Karl Tulip e lhe conta, ele começa a chorar, e ela leva um
tempo para perceber que são lágrimas de alegria. Ele lhe dá um abraço, encosta
o ouvido em sua barriga e conta como havia sonhado que teria um neto e
como acordara louco de felicidade. Não pergunta quem é o pai. Ela lhe conta
mesmo assim. É Kristofer Blix, o cirurgião magro cuja saúde melhorou tanto
recentemente. Ele a pediu em casamento. Eles vão se casar assim que houver
tempo. Tulip abre um sorriso conhecedor com um brilho nos olhos que
remove décadas da face enrugada.
— Eu vi vocês dois juntos, sabe? Bem que achei. Não tem nada de errado
com meus olhos, e eu precisaria ser cego para não ver que tinha algo
acontecendo entre vocês.
Alguma coisa mudou dentro dela. À noite, Anna Stina não sonha mais o
mesmo sonho sobre o Galo Vermelho em que ela é o incêndio que ruge de
ódio, dizima Estocolmo e transforma a cidade em ruínas fumegantes. O fogo
agora é a criança, mas não um fogo que destrói. Pelo contrário, é um fogo que
molda e transforma. Ela irá trazer uma vida para aquela época maldita, e o
bebê — seja menino ou menina — será seu para criar. Não irá se tornar como
os outros. A criança crescerá, será forte e transformará aquele mundo em outra
coisa, livre de injustiça e de maldade. E então um dia porá no mundo filhos
seus que irão continuar a luta, perpetuando a corrente. Essa será sua vingança
contra aquele mundo cheio de ódio. Se for menino, ela irá batizá-lo de Karl
Kristofer em homenagem ao pai e ao avô. Se for menina, será Anna Stina,
batizada em homenagem a alguém que não existe mais, mas que não será
esquecida.
42

NO FINAL DE outubro, o frio se abate sobre Estocolmo com a força de um soco.


Certa manhã, a Baía Dourada amanhece luzidia e congelada. Kristofer Blix fica
parado junto à margem enquanto o sol mergulha mais no horizonte em seu
breve percurso pelo céu invernal, debaixo da antiga torre que já abrigou tanto
reis quanto seus assassinos.
Pensa nas últimas semanas do verão, antes de conhecer a moça e ser
conduzido pelo destino a uma encruzilhada que jamais poderia ter previsto.
Em seu estado de embriaguez constante, Kristofer vagava pela Cidade-entre-as-
Pontes e buscava a morte como se ela fosse uma velha amiga atrasada para um
encontro. Sua esperança renascia toda vez que via alguma briga, homens
sacando suas facas com raiva, ou então alguma carga pesada que tombava e caía
no cais. Só que, mesmo assim, a morte não vinha. Ninguém levantava a mão
para seu corpo descarnado, nenhum acidente se dava ao trabalho de acabar
com a sua vida, como se a dele não tivesse valor e a dos outros fosse muito mais
apetitosa. Pensou em tirá-la ele próprio, mas, como antes, constatou que lhe
faltava coragem. Todos sabem que tirar a própria vida é pecado. Se o paraíso
com o qual sonha é mesmo um vazio negro de esquecimento, Kristofer
imagina que o inferno dos suicidas seja um lugar no qual ele seria forçado a
relembrar e a reviver incontáveis vezes os dias de verão que passou com as mãos
sujas de sangue e o peito inundado de horror. Como poderia ser capaz de tirar
a própria vida? Em vez disso, tentou encontrar um jeito de encurtá-la, talvez
discretamente o bastante para escapar aos olhos do Senhor. Privou-se de
comida até suas mãos ficarem magras, frias, trêmulas ao menor sobressalto,
mas, no fim, a fome sempre o derrotava. Tentou cavar a própria sepultura com
a garrafa, mas em vão.
Então pediu à moça para lhe fazer um favor. Entregou a ela um pacote
embrulhado e lacrado com cera. Nele estão todas as páginas que preencheu, as
cartas escritas ao longo do verão para uma irmã que não existe mais. Agora ele
sabe para onde devem ir. Lê o endereço num dos jornais na livraria, o mesmo
que lhe deu a notícia sobre o corpo encontrado na Ucharia, e finalmente
entende as únicas palavras que saíram dos lábios de sua vítima que jazia
deitada, bêbada e entorpecida, antes de ter a língua cortada. “Em débito”, era o
que ele tinha escutado na ocasião. Mas agora Kristofer sabe que era outra coisa:
“Indebetou.”
Kristofer Blix corre os olhos pela baía. O sol lança seus reflexos no gelo de
um dia. A água parece uma estrada calçada de ouro cintilante abrindo-se diante
dele. Tudo ficou claro no instante em que a moça lhe pediu ajuda. Uma vida
por outra. Ao salvar a alma do bebê ainda por nascer, ele comprou o direito de
dispor de sua própria.
Tira os sapatos, fica em descalço no chão frio, e pousa ao lado deles a
camisa, as calças e a túnica. Por cima, o chapéu.
Seu corpo não está mais exausto e descarnado. Recuperou o viço da
juventude. Os cabelos dourados que descem até os ombros não estão mais
embaraçados, e o rosto encovado se encorpou. É como se o tempo tivesse
voltado atrás e mais uma vez lhe permitido aparentar não mais do que os
dezessete anos que tem.
Ele dá os primeiros passos pelo caminho dourado. O gelo sobre o qual
caminha é tão transparente que ele é capaz de distinguir as pedras do leito até o
ponto em que a água fica funda demais. E assim ele segue, um passo após o
outro. Atrás de si, ouve algumas pessoas reunidas na margem gritarem para que
retorne. Mas elas já estão em outro mundo, e ele está a meio caminho do
próximo. Fecha os olhos, sente o sol aquecendo a pele no ar gelado, e sorri
enquanto avança até o ponto em que o gelo estala a cada passo. E então se
parte.
PARTE QUATRO
O melhor de todos os lobos

Inverno de 1793
Soa no Advento o último sino do mundo,
O Senhor virá seu julgamento dispor;
Amigos fiéis não hão de ter nenhum temor,
E pecadores penarão no breu profundo.
Carl Michael Bellman, 1793
43

MICKEL CARDELL NÃO sabe onde está quando acorda, mas está com o rosto
molhado e pode sentir o sal das lágrimas nos cantos da boca. Tudo em volta
está escuro. Debaixo dele, algo lhe pressiona dolorosamente o flanco. Um
bastão redondo e liso. Ao tatear com a mão pela superfície de madeira, percebe
estar deitado em cima do cabo de uma vassoura. A dor de cabeça é abominável,
assim como o gosto na boca. Quando seus olhos se acostumam com a
escuridão, ele consegue discernir o formato de uma porta.
Ainda permanece mais alguns instantes deitado de costas na esperança de
que a memória volte. Canecas cheias de espuma, bares enfumaçados, um
estado de embriaguez crescente, vozes alteradas pela raiva, uma troca de socos.
À medida que vai recuperando os sentidos, Cardell toma consciência do frio.
Um ar gelado sobe pelas frestas entre as tábuas do chão, um frio de bater os
dentes. Estocolmo, é claro. É novembro agora. Ele está dentro do armário no
Perdição, às vezes usado como depósito de clientes com os quais não se
consegue lidar de nenhum outro modo. E Cecil Winge está morto.
Em seu estado de semiconsciência, a princípio Cardell não consegue
distinguir pesadelo e realidade, mas a memória eventualmente surge das
brumas alcoólicas e a perda o atinge novamente, tão impiedosa quanto na
primeira vez em que o recado foi dado. Ele fica sem ar, inspira com
dificuldade, sente uma dor súbita no braço esquerdo. Um ganido lhe escapa
enquanto ele massageia as cicatrizes deixadas pela faca do cirurgião. Luzes
piscam atrás das pálpebras fechadas.
Cardell rola de bruços. O peso do braço esquerdo ainda é pouco familiar.
Sua mão de madeira é nova outra vez, feita de carvalho agora, e pesa mais do
que a que ele perdeu. Ainda não teve tempo de se acostumar, mas, apesar disso,
ela cumpre seu objetivo. O carvalho pode ser mais difícil de brandir, mas,
quando atinge o alvo, deixa um rastro de morte e destruição. A correia nova
está mais ajustada. Cardell não pretende perdê-la outra vez. Decide soltá-la
para recuperar um pouco do fluxo de sangue e constata que dois dentes da
frente ficaram cravados entre os dedos do punho de madeira. Quando o braço
esquerdo volta à vida, ele prende a correia novamente e esmurra a porta.
— Abram! Me deixem sair daqui, porra!

Demora um pouco para receber uma resposta vinda do outro lado.


— Está mais calmo agora, Cardell? Não quero mais nenhuma encrenca,
ouviu bem?
— Eu só fico de mau humor quando abusam da minha paciência.
Arrastam para longe alguma coisa pesada que havia sido colocada junto à
porta. Cardell ergue o braço para proteger os olhos da luz e se precipita para
fora do armário. O salão do bar está uma bagunça, há cacos de vidro e garrafas
espalhados pelo chão. Cardell se deixa afundar no primeiro banco que vê e
apoia o rosto nas mãos. Quando ergue os olhos, o mural de Hoffbro lhe sorri
da parede. O cadáver com uma foice na mão dança de alegria.
— Gedda, me dê alguma coisa forte. Minha cabeça parece que vai explodir.
O dono do bar volta com uma caneca de cerveja.
— Agora escute aqui, Cardell. Se você vai se comportar como na noite
passada, eu não posso mais aceitar sua presença, nem mesmo como cliente.
Você espantou toda a clientela, e todo mundo que eu contratei para manter a
ordem depois de você preferiu pedir as contas imediatamente a ficar no seu
caminho.
Cardell vira a bebida toda de uma vez e responde quando recupera o fôlego:
— Fique calmo, Hans. Ontem à noite recebi uma notícia ruim e reagi mal.
Mas agora não estou esperando mais nenhuma. Não tenho mais nem amigos
nem parentes.
Cardell vira seu mealheiro do avesso em cima da mesa. Três xelins e um
tostão alemão.
— Pode pôr na minha conta os estragos que eu causei que eu acerto quando
receber. Tirando isso, considere nossa relação encerrada, a menos que esteja
disposto a pintar sua parede. A morte já riu demais na minha cara.

As ruas já estão tomadas pelo crepúsculo. O sol mal conseguiu se erguer acima
dos telhados e já torna a mergulhar. A neve cobre o calçamento, e o vento a fez
se acumular junto às paredes. Os lampiões de rua ainda não foram acesos e
nenhuma luz tampouco emana das casas; dentro delas, as pessoas se ajuntam
perto das janelas para aproveitar a última claridade do dia. Faz frio, e muito
embora o coração de Cardell bata feito um martelo-hidráulico e o suor escorra
para aliviar a ressaca, ele precisa fechar um pouco mais o casaco para se
proteger do vento que sopra da baía. Vai percorrendo seu caminho em direção
ao Salão dos Nobres e vira à esquerda na direção do Morro do Castelo. Se tiver
sorte, ainda vai conseguir encontrar Isak Reinhold Blom na Casa Indebetou.
Lembranças perdidas da noite anterior lhe voltam à mente à medida que ele
caminha.
O primeiro a falar foi um jovem assistente de polícia. O rapaz
provavelmente já o vira na companhia de Cecil Winge e se adianta para lhe
prestar condolências. No início Cardell não entendeu nada, mas outros
confirmaram o que o colega tinha dito. O secretário da Câmara de Polícia
havia confirmado ele próprio a notícia: o Fantasma da Indebetou já não existia
mais. O frio agravara a doença de Cecil Winge, e na última noite ele dera seu
último suspiro.
Cardell a essa altura já estava bêbado. A notícia não era surpresa, mas
mesmo assim o desequilibrou. Bem lá no fundo, Cardell estivera convencido
de que o tempo que tinha junto a Cecil não terminaria antes de terem
conseguido esclarecer o destino de Karl Johan. O corpo da Ucharia fizera Cecil
Winge se agarrar à vida, pagando o preço que fosse. Cardell se lembrava de
como bebera a ponto de parecer suspenso numa atmosfera própria, alheio ao
burburinho do mundo, num lugar tranquilo o bastante para aceitar aquela
separação, quando um desconhecido havia trombado de frente com ele.
A raiva que a infâmia do mundo lhe causava somada à tristeza pela morte de
Cecil fizeram Cardell se acender como um cartucho de pólvora. Houvera uma
troca de palavras ríspidas, depois socos. Por fim, devem tê-lo subjugado e
jogado dentro do armário no meio das vassouras, onde ele logo adormeceu. De
seu buraco solitário no cemitério da Igreja de Maria, Karl Johan assombrava
seus sonhos. Pela boca sem lábios ele sussurrava acusações, e em sua voz se
podia ouvir os vermes rastejando.
“Vocês deveriam ter feito justiça em meu nome, mas fracassaram. O outro
pagou com a própria vida. O próximo será você.”
Ao dobrar a quina da catedral de Estocolmo, Cardell é obrigado a segurar o
chapéu. Lá longe, onde a água do lago corre em direção ao mar, junto às ilhas
enfileiradas, espirais de neve descem de nuvens ameaçadoras no céu. A Casa
Indebetou está silenciosa. A polícia não pode se dar ao luxo de desperdiçar
dinheiro com velas, então foi forçada a ajustar suas atividades de acordo com o
sol. Ele tem a sorte de esbarrar com um homem que está de saída e consegue
lhe informar que o secretário Blom continua lá dentro, curvado sobre sua
contabilidade, embora — como acrescenta ele em volume mais baixo — seja
apenas pela astúcia de usar uma lenha que não é sua, aquela raposa velha.
— Não que ele tenha qualquer necessidade de ser tão pão-duro agora.
Cardell não entende o sentido da brincadeira, mas já fica feliz por conseguir
entrar.
A sala de Blom está abarrotada de livros e livros-caixa. Conforme esperado,
um aquecedor de alvenaria irradia calor a ponto de permitir que Blom esteja
sentado diante de sua mesa em mangas de camisa. Cardell não se dá ao
trabalho de bater.
— Eu soube ontem à noite.
Blom põe o papel no qual estava trabalhando dentro de uma pasta.
— Meus sentimentos, Cardell. É uma grande perda para todos nós.
Cardell se senta num banquinho e desabotoa o casaco. A caminhada
acelerada clareou seus pensamentos. Pela segunda vez desde que acordou, ele
sente a conhecida sensação de pânico se aproximar. Não é um evento surpresa,
mas nem por isso menos doloroso. Ele sente a garganta apertar, e cada
respiração se torna um esforço. Pontinhos escuros surgem diante de seus olhos,
então ele os fecha com força e tenta forçar o coração a desacelerar. Blom fica
esperando em silêncio até Cardell conseguir sentir o corpo voltar à vida.
— Tem alguma coisa para beber aqui?
Blom hesita, encabulado. Seu rosto adquire um leve rubor.
— Tenho a mais intensa compaixão pela dor do seu luto, mas preciso cuidar
das minhas obrigações. Cada segundo importa se eu quiser pregar o olho esta
noite...
— É mesmo? Deixe eu ver então.
Com destreza, Cardell pega a pasta na qual Blom estava trabalhando. O
secretário tenta retomá-la, mas não é rápido o suficiente.
— Que engraçado, Blom. Isso aqui não me parece assunto da polícia.
Parece mais uma carta lambendo as botas do barão Reuterholm em relação a
um cargo no palácio de Drottningholm. “Excelência”... que história é essa? Já
cansou do seu cargo de secretário depois de pouco mais de um ano de serviço?
Blom afunda na cadeira e esfrega o rosto com as mãos, derrotado.
— Maldição, Cardell! Não era para você ter visto isso. Mas eu vou relevar.
Norlin finalmente foi demitido, como esperávamos há tanto tempo. Algo que
com certeza faz sentido, já que Reuterholm queria um cachorrinho, e nosso
Johan Gustaf Norlin só fazia o que queria, conforme amplamente demonstrado
pela gracinha de Winge no jornal com aquelas cortinas obscenas.
— Quem vai assumir?
— Norlin vai ser mandado para o norte, para expiar seus pecados. Magnus
Ullholm vai ficar em seu lugar. Ele está deixando um cargo no palácio de
Drottningholm, e eu agora estou pleiteando justamente este emprego.
— Eu já ouvi esse nome. O mesmo Ullholm que foi forçado a fugir para a
Noruega após ser acusado de fraude, certo? E agora o sujeito vai se tornar chefe
de polícia.
— Não se esqueça que os principais requisitos para esse cargo são lealdade
inabalável ao regime em exercício e tendência à servilidade e à bajulação.
— A julgar pelo que vi de relance da sua carta para o barão, devo dizer que,
se existe alguém bem posicionado para reconhecer servilidade e bajulação, esse
alguém é você, Blom.
O cenho franzido de Blom fica ainda mais vermelho.
— Que inferno, Cardell! Eu ganho cento e cinquenta dalers por ano. Mal
dá para viver. Ser visto na companhia de gente como Cecil Winge e você não
vai me favorecer em nada, então, se você veio aqui só para isso, eu tenho outros
assuntos para cuidar.
Cardell se detém quando ouve a referência ao baixo salário. O que era
mesmo que o rapaz na porta tinha dito? De olhos semicerrados, lança uma
expressão pensativa para Blom, que se levantou e está segurando a porta aberta
para ele.
— Se você tiver juízo nessa cabeça, vai se sentar e fechar a matraca. Tem
mais alguma coisa acontecendo que não faz sentido. Eu preciso pensar.
Cardell amaldiçoa a lentidão do próprio raciocínio. Seu estado atual não
ajuda. Por outro lado, seu instinto nunca falhou. Blom está escondendo
alguma coisa. Embora a temperatura da sala não tenha aumentado, o secretário
começou a suar. Seu olhar dispara pelo recinto e não para de recair sobre uma
mesa perto do aquecedor. Sobre uma pilha de livros, há um embrulho de papel
amarrado com barbante. Cardell segue o rastro, levanta-se e pega o embrulho.
Está endereçado a Cecil Winge, com o nome escrito numa caligrafia infantil e
com uma tinta quase transparente de tão rala.
— Como isso veio parar aqui, Blom?
— Uma moça deixou o embrulho na recepção hoje de manhã. Como eu
sou o secretário, trouxeram para mim.
Blom lança olhares esperançosos para a porta da sala. Mais uma vez Cardell
capta a direção do olhar do sujeito e balança a cabeça devagar. Então muda a
cadeira de posição para bloquear a saída, põe o pacote no colo, solta o barbante
e o desembrulha. É um maço de folhas desiguais, com palavras escritas na
mesma caligrafia infantil, envolto em um trapo manchado. Cardell começa a
ler as linhas tortas, e seu coração começa a bater mais rápido. Quando pousa as
páginas sobre o colo, ele fulmina Isak Blom com um olhar inerte. A névoa em
sua mente se dissipa lentamente.
— Como você ficou sabendo da morte de Winge?
— Não me lembro exatamente. Alguém trouxe um recado.
— Você mesmo falou com o mensageiro?
— Não, eu...
— Que estranho... Um dos policiais com quem falei ontem à noite me disse
que foi você quem informou a eles sobre o horário exato da morte e deu
detalhes. Outra coisa: um homem com quem cruzei na hora em que estava
chegando aqui deu a entender que você tinha ganhado um dinheiro
recentemente. Se me permite a impertinência da pergunta, Blom, de onde veio
esse dinheiro? Talvez uma tia recém-falecida?
— Olha, Cardell, você precisa me prometer que vai ficar calmo...
Cardell se levanta, tranca a porta e guarda a chave no bolso. Ele e Blom
começam a andar em volta da mesa, um para aumentar a distância que os
separa, o outro para diminuí-la.
— Pelo que ouvi dizer, houve um bolão aqui na corporação em relação ao
horário exato da morte de Cecil Winge. Foi graças a isso que você ficou tão
rico, irmão Blom?
— Mickel, meu caro... você precisa entender minha situação...
— Quando você recebeu este embrulho, Cecil Winge ainda estava vivo,
mas você não tinha a menor intenção de encaminhá-lo para ele. Já tinha
decidido usar sua falsidade para enviar o camarada ao túmulo e encher o
próprio bolso. Então se você quiser passar do dia de hoje com apenas um lábio
inchado, recomendo que pese suas palavras com cuidado a partir de agora.
Winge está vivo ou está morto?
Cardell vira a mesa, dá vários passos e agarra Blom pelo colarinho ao
mesmo tempo em que prepara o punho de madeira para o soco. A voz de Blom
sobe uma oitava.
— Seja sensato, Cardell. Eu encontrei o cordoeiro Roselius no café e o ouvi
reclamar dizendo que estava prestes a perder um inquilino muito bom. Winge
caiu da cama pela última vez e está enchendo o penico de catarro com sangue.
O médico abandonou o caso dele para ir cuidar de pacientes para os quais
ainda há alguma esperança, e o pastor já foi visitá-lo para dar a extrema-unção.
Que diferença faz para o resto do mundo se ele morreu ontem ou se vai morrer
amanhã? Para mim a diferença é quase um ano de salário! Será que você não
consegue entender isso, Cardell?

Poucos minutos depois, no Cais, antes de esticar o braço esquerdo para pegar
uma carona com uma carroça que passa, Cardell para e limpa a madeira com
um pouco de neve.
44

NENHUMA CARROÇA O vê acenando no meio da nevasca, nem no Cais nem na


Ponta de Blasius. Cardell só percebe que começou a correr quando escuta o
chapinhar das solas de couro encharcadas batendo nas tábuas do assoalho. Está
correndo pela pequena ponte levadiça que permite a passagem dos barcos de
pesca pela Ponte Nova a caminho da Baía dos Gatos. A urgência que sente é
intensa, como se o embrulho que carrega fosse o suficiente para tirar o doente
do leito de morte no último segundo. Da escuridão da noite, flocos de neve
cortantes se derramam, arranhando seu rosto. Para lá da baía coberta de gelo,
Cardell divisa o mercado de peixe, deserto desde antes da nevasca. Antes de se
dar conta, chega ao Pátio da Artilharia, e o ar em seus pulmões se transforma
em fogo. Uma música vem da igreja de Edviges Leonor. É um coral, cantando
o “Te Deum”. Estão desafinados, a congregação decerto está lotada de gente
simplesmente querendo fugir da tempestade. Mas o esforço que fazem em
busca de afinação não priva suas vozes de significado. Esperança e desespero
ressoam em igual medida. Cardell vai contando as ruas até a cidade acabar, até
ver os muros das mansões e o aglomerado de tílias vergadas sob seu fardo
branco.
A porta está destrancada. As coxas de Cardell ardem quando ele sobe
correndo a escada até o quarto de Winge. Lá dentro há uma única vela acesa.
Um religioso vestido de preto está sentado junto à cama, apagado, como de
costume, na fronteira entre a prece e o cochilo. Uma criada cujo rosto Cardell
reconhece de visitas anteriores torce um pano úmido sobre uma bacia e ergue o
rosto, espantada. Cecil Winge está no leito, imóvel. Cardell achou que Winge
não tivesse mais peso a perder, mas vê que estava equivocado. O corpo
esquelético lembra os cadáveres congelados em Svensksund, mas o rosto está
descoberto. Ainda deve estar vivo. Após recuperar fôlego suficiente para
conseguir articular, Cardell se vira primeiro para a criada:
— Ele está consciente? Podemos acordá-lo?
— Infelizmente o Sr. Winge não fala nem se mexe desde hoje de manhã. O
Sr. Roselius ficou de vigília ao lado dele e já se despediu.
Cardell aquiesce em silêncio. A tigela junto à cama está cheia de um muco
coagulado. Ele então se vira para o pastor.
— Saia. Essa cadeira é minha. O senhor e suas escrituras já fizeram o
melhor que podiam. Eu trouxe outro livro, e em breve veremos se ele é mais
eficaz.
Cardell não espera por resposta. Arranca o casaco molhado de neve e suor, e
a criada vem em seu auxílio. Quando ela começa a ajudá-lo a soltar as correias
do braço de madeira, o pastor parece tomar uma decisão e, sem dizer nada,
passa por eles e vai embora. Cardell se joga na cadeira de espaldar de balaústres
e fica escutando a respiração rasa de Winge antes de se virar para a criada.
— Tem algum café? Cerveja? Se tiver, por favor traga os dois. Vou ficar aqui
algum tempo.
A criada os deixa a sós. Cardell examina o rosto de Winge. Seus olhos estão
encovados, e os malares, muito destacados nas bochechas descarnadas. A pele
da testa está muito esticada e tão fina que Cardell tem a impressão de que o
crânio sob ela reluz. Os cabelos compridos estão espalhados e úmidos nas
têmporas por causa da febre. O formato das órbitas é visível sob as pálpebras.
Os acessos de tosse sujaram de vermelho os lábios e o colarinho da camisa. A
visão faz Cardell estremecer.
— Por Deus, Cecil Winge. Eu não teria imaginado uma situação dessa para
você. Um homem na flor da idade se rendendo tão facilmente assim a uma
tossezinha de nada. Você quer que a gente sinta pena? Pois bem, uma coisa eu
lhe digo de graça: você não engana ninguém. Porque está o próprio retrato da
saúde. No meu tempo de soldado diziam que a dor é só a fraqueza indo
embora do corpo. Tenho certeza de que isso também se aplica à tísica.
Maldição! Mostre um pouco de coragem!
Cardell põe o maço de páginas em cima do joelho e tenta equilibrá-lo
enquanto as folheia.
— Agora escute aqui. Morrer é algo em que você deveria ter pensado antes,
quando a situação estava menos desesperadora, está bem? Nós ainda não
terminamos. Nem de longe.
Cardell abre as memórias de Kristofer Blix, pigarreia e começa a ler em voz
alta.
“Querida irmã...”
As horas vão passando. A criada entra e sai do quarto trazendo cerveja e
água, depois algumas fatias de pão e uma jarra de leite adoçado com mel.
Cardell mal nota sua presença.

Desperta com a luz da manhã entrando pela janela bem em cima de sua cabeça
curvada. A pilha de papéis não está mais em seu colo, e ele sente uma pontada
de pânico ao imaginar que tenham sido levadas. Talvez tenham escorregado de
suas mãos quando ele pegou no sono, aquelas folhas valiosíssimas que recebeu
por acidente ou então por obra da providência. Mas ele também não as vê
sobre o piso do quarto. É só quando ergue os olhos que nota que o relato de
Blix repousa sob as mãos magras de Winge. Cardell limpa o sono dos olhos, e,
enquanto observa o rosto adormecido de Winge, o doente também abre os
seus. No início os dois ficam se encarando em silêncio. Cardell é o primeiro a
falar.
— Então você está vivo, afinal. Bem, você sempre tem resposta para tudo,
não é mesmo? Essas cartas salvaram sua vida como um feitiço de conto de
fadas, ou foi simplesmente uma grande coincidência o que testemunhamos essa
noite?
Winge dá de ombros.
— Minha doença piora de tempos em tempos. Essa recaída foi a pior de
todas. Todo mundo pensou que fosse o fim, inclusive eu mesmo. Quanto à
leitura, vou ficar devendo uma resposta, mas me atreveria a chutar que todo
enfermo sempre recebe lembretes de motivos pelos quais ainda vale a pena
viver.
O olhar de Winge desliza até a janela. Uma sombra parece anuviar seu rosto
quando ele torna a falar:
— Você me disse que chegou perto da morte durante a guerra. Mas já
olhou nos olhos dela? Digo, já viu que forma ela tem?
A lembrança da destruição do Ingeborg e da visão que teve enquanto o
corpo sem vida de Johan Hjelm era tragado para as profundezas do Báltico faz
Cardell se encolher.
— Sim, estive diante dela naquela ocasião. Ela aguardava seu troféu sob a
quilha do navio, com suas asas negras abertas, e seu rosto de caveira nua sorria.
— Talvez a morte venha com um aspecto diferente para cada um. Para mim
era um abismo crepuscular, um vazio escuro e sem fim. Eu sabia que no seu
abraço desapareceria do tempo para nunca mais voltar. Quando ela estava me
puxando mais para perto, tive tempo de pensar na vida. E fiquei com a
impressão de que diante da escolha entre razão e emoção, eu permaneci fiel à
primeira por todos os meus dias. Como advogado, eu me esforcei para garantir
que todos os clientes tivessem voz. Nunca ninguém que eu tenha defendido no
tribunal, que eu tenha acompanhado até o banco dos réus, foi mandado para o
seu destino sem ser ouvido primeiro. Mesmo nas questões pessoais, eu...
Ele faz uma pausa e precisa recomeçar.
— Jean Michael, nos últimos tempos eu passei a duvidar da minha
convicção. Não de uma perspectiva racional, mas em face de todo o
sofrimento. Nesses meus últimos dias de vida tenho me perguntado se um
caminho que conduz a um lugar tão escuro pode mesmo ter sido feito para
seres humanos. Mas agora, com o abismo à minha espera, com sua promessa
de alívio eterno da infelicidade que vivi, finalmente consigo enxergar além do
sofrimento. A vida inteira eu defendi o que considero correto. E de repente
sinto como se tivesse carregado nas mãos uma chama tênue e delicada para
iluminar a escuridão. Perceber isso foi um reconforto tão grande para mim que
o medo desapareceu e me senti pronto para dar meus passos derradeiros com a
mente em paz. Mas ao escutar sua voz, dei as costas para o abismo. Quando
voltei a mim, você estava roncando. Percebi que eu ainda tinha força suficiente
para pegar os papéis. E então li o relato de Kristofer Blix.
— E agora que está vivo outra vez, a dor e a dúvida voltaram?
Cardell vê tristeza nos olhos de Winge, mas também uma resolução que não
vai ceder. Ele contrai os lábios finos até formar uma linha branca antes de
responder:
— Sim. Ao que parece essas são as constantes da minha existência. Mas me
parece que o melhor remédio para ambas é fazer o assassino de Karl Johan
responder por seus atos. Por favor me ajude a levantar, Jean Michael, e se tiver
sobrado alguma água morna para lavar a febre do meu corpo, eu ficaria grato.
— Tem certeza que está bem o bastante para se levantar? Faz apenas
algumas horas que o médico o deu por morto.
— Bem, a essa altura já não pode restar mais muita fraqueza em mim, a
julgar pelo que penso ter ouvido você dizer mais cedo. Vamos usar o que nos
resta de tempo para tirar proveito da informação que nos foi dada. Você se
lembra do que Madame Sachs nos disse na Casa Keyser?
— Quanto menos me lembro das coisas, mais feliz eu sou.
— Karl Johan tinha o hábito de comer as próprias fezes quando estava
sozinho. Ela achava esse comportamento um sinal de que ele havia ficado
louco, certo? À luz do que sabemos agora, eu penso justamente o contrário.
Esse era o único jeito de Karl Johan conservar a única coisa que possuía, um
objeto que poderia levar alguém a descobrir seu nome verdadeiro e, portanto,
também o de seu assassino. Blix deu o anel para Karl Johan, e ele fez de tudo
para mantê-lo consigo do único jeito possível. Colocava-o para fora e tornava a
engoli-lo repetidamente. Em meio a tudo que foi obrigado a suportar, ele
manteve a sanidade.
Cardell sente a náusea lhe embrulhar o estômago. Precisa alternar entre
engolir em seco e respirar fundo para conseguir manter a comida lá dentro.
— Meu Deus. Meu Deus, que inferno.
— Exato. Eu dificilmente conseguiria expressar melhor o que isso me causa.
Não podemos deixar o calvário desse homem ter sido em vão. Se corrermos,
talvez seja possível fazer o coveiro cravar a pá no chão congelado com força o
bastante para chegar ao corpo antes de o sol se pôr. O que precisamos fazer será
melhor executado se estivermos sob a proteção da noite. Com certeza o anel
continua lá. E com certeza ele terá um brasão, e por trás desse brasão está o
verdadeiro nome de Karl Johan. Vamos logo.
45

QUANDO SCHWALBE, o coveiro, surge na fresta entre a porta e o batente, passa


um tempo a espiá-los antes que seu semblante transpareça ter reconhecido os
visitantes.
— Sr. Winge, não é? E Sr.… Carlén? Kardus? Caliban?
— Cardell.
Schwalbe os faz entrar com um gesto da mão. Um fogo arde em sua lareira,
e sobre a mesa há uma Bíblia aberta.
— Queira me perdoar, Sr. Cardell. Eu em geral sou bom fisionomista, mas
o seu rosto parece ter sido um pouco reorganizado. Não creio que o seu nariz
fosse tão para a esquerda, e um de seus olhos parece ter escorregado para o
lado. E Sr. Winge, o senhor anda se alimentando bem? Eu soube que está na
moda ser pálido, mas com a neve por trás o senhor não passa de um casaco e de
um par de calças que fugiram do armário.
Cardell grunhe enquanto bate com as botas no chão para se livrar da neve.
— Se todos nós passássemos a vida ostentando uma beleza como a sua,
Schwalbe, os artistas deste mundo virariam todos mendigos.
Schwalbe abre um largo sorriso expondo os cacos marrons que são seus
dentes.
— Os senhores voltaram por causa do cadáver difícil, aquele raivoso e sem
membros, o senhor Karl Johan? Na verdade eu estava esperando que voltassem.
— Por quê?
— Aqui na paróquia algumas pessoas têm o dom da vidência, e segundo
elas a alma dele não quer descansar. Ele rasteja entre as lápides feito uma lesma,
emanando um brilho débil e resmungando palavras que é possível escutar. Por
isso eu sei que deixou alguma coisa inacabada em vida, e portanto estava
esperando os senhores voltarem.
Winge e Cardell se entreolham. Cardell se sente reconfortado pelo ceticismo
explícito nos olhos do companheiro. Ele próprio não tem tanta certeza assim.
Winge saca o mealheiro e deposita algum dinheiro sobre a mesa de Schwalbe.
É
— Gostaríamos que o túmulo fosse aberto o quanto antes. É extremamente
importante conseguirmos examinar o corpo mais uma vez, então vamos
precisar que o senhor nos empreste a sua sala.

No cemitério, as tílias nuas se sucedem em fila, ainda jovens, já que só foram


plantadas depois que o grande incêndio abriu espaço para tal. Um vento
apático sopra os flocos dos galhos e os faz saírem dançando pelo ar. Seguido
por Winge e Cardell, Schwalbe avança pela grossa camada de neve que recobre
o chão. Encontra o caminho até o túmulo usando pontos de referência que só
ele conhece, limpa a neve do local com um galho de abeto e inicia o árduo
trabalho de cavar. Vai alternando entre a enxada, a pá e o pé de cabra. Logo
encontra um ritmo e começa a cantarolar uma melodia enquanto maneja as
ferramentas cadenciadamente. Cardell observa o espetáculo com um misto de
animação e preocupação. O frio é intenso, as expirações formam nuvens diante
de seus rostos. Winge está em pé ao seu lado, apoiado em seu ombro e com um
lenço por cima do nariz para aquecer a respiração.
— Não tem por que você ficar aqui provocando o destino. Melhor você
ficar lá dentro, que está quente. Eu aviso assim que Karl Johan for
desenterrado.
Winge faz que não com a cabeça. Cardell gostaria muito de correr sem sair
do lugar e agitar os braços para aquecer o corpo, mas a mão de Winge o
impede de se mexer. Ele fica onde está, e só com muito esforço evita que os
dentes batam. O tempo vai passando até a cabeça de cabelos ralos de Dieter
Schwalbe — suada demais para um chapéu — baixar à altura dos joelhos de
Cardell. O coveiro consegue soltar uma pequena trouxa da terra, com um
grunhido final.
— Me ajudam a subir com ele?
O primeiro contato faz Cardell praguejar.
— Ele também está totalmente congelado, maldição.
Winge aquiesce com um ar pensativo e se vira para Schwalbe.
— Vamos precisar descongelar o corpo.
Cardell ajuda o coveiro a sair do buraco.
— Na verdade, eu estava prevendo justamente essa situação, então já pus
um par de toras extras no fogo. Vou buscar um trenó para puxá-lo, e depois
mais lenha. Depois vou descer até a Eclusa para comer alguma coisa e tomar
uns goles. Deixem ele debaixo de um lençol quando terminarem.
O fato de Schwalbe aceitar tudo sem questionar incomoda Cardell por
motivos que ele não consegue explicar.
— Nós estamos fazendo isso por...
— Nein. Eu faço uma ideia, mas, contanto que os senhores não digam
nada, ainda posso torcer para estar enganado.

Eles vão empilhando lenha, e o calor do fogo faz as vigas do chalé começarem a
gemer e estalar. O cadáver rígido ainda está envolto em sua mortalha e é
colocado em um banco próximo à lareira, então eles aguardam. Cardell está
pasmo com a mudança ocorrida em Cecil Winge em apenas poucas horas. É
verdade que ele praticamente precisou ser içado para cima da carroça, e que
estava tão fraco que Cardell precisou não apenas ampará-lo, mas carregá-lo
pelo jardim congelado de Roselius. Ali, enquanto aguardam, ele já está com
outro aspecto. Seus olhos brilham, a pele tem uma cor mais saudável, e os
cabelos, agora penteados e presos na nuca, recobraram parte da antiga
vitalidade. Não precisa mais de apoio para ficar de pé. Em vez disso, anda para
lá e para cá, inquieto, enquanto o corpo descongela lentamente. À medida que
o tempo passa, Cardell se dá conta de que vai precisar respirar pela boca se
quiser aguentar.
— O fedor está piorando. Acha que Karl Johan já descongelou?
— Sim. Vamos começar.
Com as mangas arregaçadas, usando os dedos e uma faca à guisa de
ferramentas, os dois examinam a cavidade macia. Os vermes acomodados para
o descanso invernal se incomodam e agitam seus corpos roliços, sem
compreender. A luz do lampião capta o flash de um metal rebrilhando em
meio à escuridão vermelha e castanha.
Winge leva o anel até perto da luz e o examina de perto. Cardell se obriga a
ficar calado mesmo com toda a empolgação que sente. O peso daquele instante
é tão grande que chega a ser quase insuportável. Quantas vezes Karl Johan deve
ter procurado pelo anel e o engolido na esperança de que, em algum lugar para
além da sua morte, este momento chegasse? Cardell sente sua própria
esperança e a de Winge se unirem como um trovão que se aproxima no céu, e
mantém os olhos pregados no rosto do outro na expectativa de ler nele
compreensão e triunfo. Winge vira o anel na luz para afastar as sombras e ver
seu desenho.
Cardell pressente um toque de decepção mesmo antes de qualquer palavra
ser pronunciada. Winge não para de olhar para o anel enquanto fala, como se
esperasse vê-lo materializado em um formato mais promissor.
— Eu conheço um pouco de heráldica. Muito embora não tenha visto a
marca de todas as grandes famílias, e portanto não seja capaz de me lembrar de
todas, conheço bastante as convenções. As armas que vemos aqui não
pertencem a um nobre. O escudo está dividido entre azul e vermelho, com três
estrelas de seis pontas em cada lado acompanhadas por uma insígnia: uma
coroa de louros e um leão rampante, tudo encimado por uma nuvem de penas
cor-de-rosa. É um brasão quase ridículo tamanha a profusão de detalhes
rebuscados. É o tipo de heráldica que uma criança teria desenhado usando a
imaginação, fantasiando com títulos de cavaleiros e honrarias. E o anel
tampouco é de ouro, como em geral seria. Além disso, está manchado e
descolorido onde os sucos gástricos marcaram a superfície. A pedra com certeza
não é nada além de vidro pintado.
Somente então ele pousa o anel e esfrega os olhos cansados.
— Isso é menos do que eu esperava, Jean Michael. Mas é um anel muito
surpreendente.
Os ombros de Cardell, quase erguidos até as orelhas de tanta ansiedade,
desabam como se a cordinha que os sustentasse tivesse arrebentado. Winge se
apressa em continuar.
— Quando alguém recebe o título de cavaleiro, os calígrafos habilíssimos da
Real Academia de Letras criam a heráldica. Eles escolhem símbolos ligados à
vida e ao trabalho da pessoa. Veja Olof af Acrel, o médico do rei Gustav, cujo
brasão consistia no caduceu da sua profissão médica, uma cobra enrolada em
volta de um bastão, mas entrelaçada a uma coroa, e desse modo tanto a sua
profissão quanto o apreço do rei gozavam de proeminência. Mas este desenho
aqui vem de outro lugar.
— Mas aonde isso nos leva? É mais uma pista falsa?
Winge se aproxima da luz e mais uma vez se perde na contemplação do
desenho.
— Ele me lembra alguma coisa. É de algum modo familiar.
Cardell sente a frustração aumentar, precisa colocá-la para fora. Então ele
xinga e soca com o punho esquerdo o tampo da mesa de Schwalbe com força
suficiente para deixá-lo marcado. Inspira o ar por entre os dentes trincados
quando o soco sobe reverberando pelo seu coto. Winge tira os olhos do anel e
encara Cardell.
— Jean Michael, você diria que está de plena posse de suas faculdades?
— Que espécie de pergunta é essa numa noite como a de hoje?
— Vou interpretar isso como um sim. Está com vontade de comer alguma
coisa mais do que qualquer outra? Algum prato em especial?
Se Cardell não o conhecesse tão bem àquela altura, teria pensado que o
outro estava zombando dele, mas não há sinal algum de humor no rosto de
Winge. Como nunca houve.
— Eu gosto de rolinhos de repolho.
— E qual é a pior comida que já provou?
— Havia uma sopa no forte de Sveaborg servida sempre que a esquadra
ficava isolada pelo gelo. Tentar adivinhar o conteúdo daquela água suja era a
melhor distração que se podia encontrar naqueles dias intermináveis. Uma vez
eu achei um pelo de bigode dentro, e muito embora tenha torcido para que
tivesse pertencido a um gato, por algum motivo duvido muito.
— No entanto, se a escolha fosse entre essa sopa indigesta e o conteúdo do
seu penico, você sem dúvida teria preferido a sopa, certo? O que estou
tentando dizer, Jean Michael, é que Karl Johan não teria comido os próprios
excrementos por semanas a fio se não houvesse esperança alguma de isso
resultar algo bom. Ele sabia que o anel permitiria que descobrissem sua
identidade, ainda que isso exigisse um esforço considerável.
46

MICKEL CARDELL ENCONTROU um novo quarto para alugar, no mesmo bairro.


Seus novos aposentos, suficientemente exíguos para que, da cama, ele consiga
tocar nas quatro paredes, quase não diferem dos antigos. O colchão é fino em
pontos onde deveria ser grosso, gasto por usuários de diferentes gerações. Mas
o lugar é suficientemente aquecido e suficientemente barato. Vai servir. O
conhaque ajuda a dormir, e ele bebe mais do mesmo no desjejum para aliviar as
muitas dores trazidas pela aurora.
Por mais cansado que esteja, Cardell não está pronto para ir dormir. Toda
vez que fecha os olhos, imagens do chalé de Schwalbe estão à sua espera. Há
muitos anos ele pode dizer que é habituado a pesadelos, então, quando a noite
chega sem nenhum recado de Winge, não é para a cama que ele vai, mas para
os bares. Seu adeus ao Perdição foi definitivo, mas as opções são infinitas. Ele
atravessa um pouco sem rumo a Praça do Ferrageiro, e da rua Leste pega uma
via lateral aleatória em direção ao cais. Acima da porta, lê uma placa que diz
“Terranova” — o novo mundo. O nome lhe soa familiar. Um novo mundo
seria perfeito para ele.

Há mais gente no bar do que ele teria imaginado numa noite de semana como
aquela. Os clientes parecem tão animados que ele precisa perguntar o que está
acontecendo. Um guarda bem barbeado se vira para ele com um ar incrédulo.
— Você não soube? Como pode não ter ficado sabendo? A cidade não fala
em outra coisa desde que a notícia se espalhou ontem à noite.
Uma sombra cruza o semblante do guarda.
— Ela morreu! Cortaram sua cabeça.
— Ela quem, maldição?
— A rainha.
Cardell não pode crer nos próprios ouvidos. O homem deve ter bebido
demais.
— Sofia Madalena? A viúva de Gustav? Mas que...? A corte finalmente se
cansou das suas soirées musicais?
— Não, seu idiota, estou falando da rainha da França! Maria Antonieta. A
notícia chegou ontem. Eles a empurraram para a guilhotina e jogaram seu
corpo numa cova sem identificação. Uma barbaridade!
O guarda segura Cardell pelos ombros e leva a boca até junto de seu ouvido
para murmurar dissimuladamente:
— Mas há quem ache que a turba está com a razão, inclusive algumas
pessoas aqui neste momento. Fica o alerta.
O homem cospe no chão com nojo e abre caminho até a porta a
cotoveladas.

Mais tarde, tendo bebido algumas canecas, Cardell tem plena consciência de
como o guarda tinha razão. A cidade parece não se fartar do escândalo. Todo
mundo ouviu uma história sobre o fim da rainha, todo mundo está ansioso
para compartilhar sua versão, quer Cardell peça ou não. Um deles diz que
Maria Antonieta riu com desdém da multidão e afirmou que a sua vida de
adultério e luxo valeu cem guilhotinas. Segundo outro, chorou em silêncio.
Um terceiro disse que suas últimas palavras foram para o carrasco: um pedido
de desculpas por ela ter sem querer pisado no seu pé ao subir no cadafalso.
Cardell faz o que pode para manter essas vozes fora da mente. A cada dose vai
ficando mais fácil, mas existem outros clientes bebendo no mesmo ritmo, e aos
poucos começam a falar cada vez mais alto à medida que as horas avançam. As
conversas revolucionárias se intensificam. Correm boatos de que o duque
Charles tomou providências para contrabandear suas obras de arte para o outro
lado da fronteira para evitar ser taxado. As leis deveriam valer para ricos e
pobres, sustentam seus críticos; os mesmos homens e mulheres que acharam
mais fácil esconder sua tristeza na morte da rainha francesa.
Na primeira vez em que ele vê o anel, põe a culpa no álcool. Balança a
cabeça e esfrega os olhos, convencido de que suas intenções o fizeram alucinar,
mas quando torna a olhar, o anel continua ali. Na mão esquerda de um rapaz
de pantalonas e colete de tafetá: um sinete dourado, com um escudo negro
entalhado em formato oval. Cardell se aproxima para examinar melhor. Anéis
com brasões parecidos se veem aqui e ali nas mãos dos nobres, mas não é o
caso ali: quanto mais perto chega, mais certeza tem. O desenho é pequeno
demais para ser visto em detalhes, mas a construção é a mesma e a cravação
parece ter saído do mesmo molde.
O salão gira, e a fumaça de tabaco faz seus olhos arderem. Ele pisca, e
lágrimas escorrem por suas faces quando se vira para examinar o dono do anel.
O rapaz deve ter uns vinte anos. Está vestido com espalhafato em roupas tão
caras quanto de mau gosto. Usa um lenço muito alvo amarrado na garganta,
casaco vermelho e os cabelos estão muito empoados. Cardell amaldiçoa as
canecas que bebeu ao se dar conta de que seu olhar direto atraiu a atenção do
homem. Com juras silenciosas, torna a se recostar num banco e se prepara para
escoar o álcool do próprio sangue ao mesmo tempo em que não tira os olhos
do homem. E então ele aguarda.

Leva um tempo para o grupo do homem dispersar. Todos os convivas têm um


aspecto parecido, vestidos como pavões e portando-se com elegância exagerada.
Uma a cada três palavras é dita em francês ou inglês. Eles se despedem com
beijos na bochecha. Cardell já começou a recuperar a sobriedade e sai na frente
deles rumo ao beco, onde se vira para uma parede e finge estar fazendo xixi.
Fica feliz ao notar que o homem carrega uma bengala que vai batendo nas
pedras do calçamento a cada passo. O som facilita segui-lo mesmo quando ele
dobra uma esquina.
Ele deve ter superestimado seu estado de sobriedade. Por mais que esteja
tomando cuidado, não consegue evitar chutar algumas lascas de gelo e vê o
homem lançar uma olhada rápida por cima do ombro. Na Passagem da Salsa, o
outro começa a correr. Cardell cerra os dentes e vai atrás dele com toda energia
que consegue, mas logo constata estar perdendo terreno. Na rua do Recife, mal
consegue escutar os passos, e quando chega à rua do Mercador não há ninguém
à vista. Ele se inclina para a frente com a mão direita no joelho e espera até
recuperar o fôlego. Quando os pulmões param de arder, ele cospe para se livrar
do gosto de ferro na boca e lhe ocorre que a perseguição talvez não tenha
terminado. Cardell conhece bem a Cidade-entre-as-Pontes. Se o seu alvo tiver
corrido para o beco sem nome à sua direita, talvez tenha descoberto que
desemboca num banco de neve acumulado junto à parede, já que toda neve
que os homens não tem energia para transportar até a Praça Antiga em geral
vai parar ali. Ele espia do beco pela quina e constata que está vazio. Uma
segunda olhada lhe arranca uma risadinha satisfeita.
— O senhor respira bem silenciosamente, eu reconheço, mas nesse frio isso
não faz muita diferença. Uma chaminé fumegante teria dado no mesmo. Agora
saia de trás dessa neve e vamos conversar.
As nuvens de vapor cessam quando o homem prende a respiração, mas ele
logo se dá conta do quanto isso é inútil. Quando se revela, está com um metal
a brilhar no punho. Ao mesmo tempo em que dá um passo de lado para
impedir sua passagem, Cardell avalia o comprimento da adaga em pouco
menos de vinte centímetros. O rapaz a aponta para ele enquanto se aproxima.
— Agora que estou vendo você de perto, não sei muito bem por que fugi.
Você é gordo e lento, velho.
Cardell não tira os olhos da faca.
— Cauteloso e experiente, eu diria.
O rapaz segura sua arma entre os dois, com a ponta estendida na direção do
outro. Mas Cardell sabe o que deveria fazer. O risco é considerável, mas é sua
melhor chance.
— Quer dançar?
Cardell dá um salto para a frente, no que parece um abraço. Ele é muito
mais pesado do que o adversário, a quem projeta para frente até que bata de
costas no muro. O ar lhe escapa dos pulmões como um fole quebrado. Cardell
abre os olhos e verifica para ter certeza, mas ao olhar para baixo vê que o plano
deu certo. A força bastou para pressionar o cabo da adaga no tronco do rapaz e
fazê-lo desistir. Cardell levanta o braço que estava segurando em frente ao
próprio corpo. A lâmina da adaga está cravada dois dedos na madeira.
— Ora, veja só.
O rapaz escorregou muro abaixo, encolhido de dor. Cardell limpa a neve da
sarjeta e se senta ao seu lado. Aguarda um pouco até os gemidos cessarem.
— Coloque um pouco de neve na boca, garoto. Vai ver como se sente
melhor.
Com um olhar amargo, o jovem obedece.
— Viu só?
Ele aquiesce em resposta.
— Não havia motivo para sacar armas. Não tenho a intenção de machucá-
lo. Tenho só uma coisa a pedir. Por favor, me mostre esse anel que está usando.
Não vou roubá-lo.
O rapaz lambe o dedo e tira o anel. O desenho do escudo é diferente do de
Karl Johan. Ao mesmo tempo, Cardell tem razão. Todos os outros elementos
são idênticos.
— Pode me dizer onde conseguiu este anel?
A voz do rapaz sai rouca e com dificuldade, e a dor o obriga a manter a
respiração rasa.
— São as armas da minha família. Meu pai me deu em seu leito de morte.
— Deu coisa nenhuma. Se você é nobre, eu sou Gustav Adolf em pessoa,
recém-chegado de Lützen e gozando de plena saúde. Agora me diga a verdade.
Como resposta, ele recebe um olhar irado e grosseiro.
— Existem muitos ourives coniventes por aí que fabricam esses anéis.
Pagando, eles criam um brasão para qualquer um.
— Para você e seus amigos poderem fingir que são mais importantes do que
de fato são?
O rapaz dá um sorriso débil e pousa os olhos no punho de madeira de
Cardell, com a faca ainda cravada na lateral.
— Imagino que isso seja difícil de entender para um cavalheiro elegante
como o senhor, que nunca teve nenhum motivo para desejar subir na vida,
certo?
Cardell não consegue evitar uma risada.
— É comum que as pessoas façam esses anéis falsos?
— Nos últimos tempos, tem havido uma grande procura, infelizmente, o
que tornou a farsa mais difícil de sustentar. Somos muitos os sujeitos dispostos
a pagar por um brasão emprestado. Mas visto o grau da sua curiosidade, fico
surpreso que o senhor não tenha visto nenhum até hoje.
— Só recentemente comecei a me interessar pelos anéis alheios.
Cardell enche a boca de tabaco e passa a bolsinha de couro para o rapaz,
que assente com um meneio de cabeça e enfia um punhado na boca.
— Qual é o seu nome?
— Carsten Norström. Aqui na cidade me conhecem como Vikare.
— Carsten Vikare?
É um nome que Cardell escutou não faz muito tempo. Os últimos vestígios
de álcool deixam seu raciocínio lento. Ele masca as folhas de tabaco entre os
dentes até a língua ficar banhada nos sumos e obrigá-lo a cuspir um filete de
saliva escura na neve. Ele estala os dedos quando a lembrança lhe volta.
— Isso! Você e seus amigos são golpistas que pegam dinheiro de presas
fáceis. “Coelhos”, certo? Por acaso você se lembra de um certo Kristofer Blix?
Sabe onde ele pode ser encontrado?
Vikare começou a suar no frio.
— Blix está morto. Se suicidou por afogamento na Baía Dourada poucos
dias depois de lerem suas proclamas.
— É mesmo?
— Nunca tivemos a intenção de... A gente estava só brincando.
Então dezessete anos era toda a vida que haveria para Kristofer Blix. Cardell
nunca se atrevera a ter esperança de conhecê-lo em vida, mas mesmo assim a
notícia é triste. Uma jornada tão curta, repleta de tanta morte e agora
encerrada em desespero. Blix podia ter sido um covarde, mas Cardell se
pergunta se ele próprio teria se saído muito melhor em circunstâncias
semelhantes.
— Quanto vocês pegaram dele e do amigo? Cem dalers? Eu me afeiçoei ao
jovem Blix durante o que podemos chamar de nosso breve contato, e agora me
ocorre que não fui totalmente honesto com você mais cedo.
Carsten Vikare arqueia as sobrancelhas e interrompe sua mastigação.
— Como assim?
— Quando disse que não tinha intenção de machucar você.
47

QUANDO SE ENCONTRAM mais tarde na mesma manhã, diante de um café


quente no Mercado Pequeno, Cardell não conta a Winge a história toda,
tampouco cita o nome de Carsten Vikare. Mesmo assim, raramente viu Cecil
Winge de melhor humor.
— Sinto que a nossa sorte está virando, Jean Michael. Esse foi um encontro
de sorte, e você não poderia ter se comportado melhor. Pela primeira vez
sabemos algo definitivo sobre Karl Johan. Ele era jovem, veio para Estocolmo
de outro lugar, não era de família rica, acalentava esperanças de uma vida
melhor e procurou um ourives para fabricar uma origem nobre.
Cardell, que teve mais tempo para processar a informação, tem mais
facilidade para se controlar.
— Isso tudo é muito bom, mas não vejo mudança nenhuma na situação.
Nós continuamos sem saber o nome dele, e sem isso não temos nada. Talvez o
ourives que fabricou o anel se lembre dele?
Winge meneia a cabeça.
— Existem muitos ourives por aí, Jean Michael. Além disso, a maioria dos
que se disporiam a aceitar esse tipo de serviço provavelmente são contratados
individualmente e trabalham sem aprovação nem conhecimento da guilda. Vai
ser tão difícil descobrir seus nomes quanto o do próprio Karl Johan, e, mesmo
que a sorte estivesse do nosso lado, eu não vejo por que Karl Johan teria
informado o nome ao artesão, seja o de batismo ou aquele que pretendia
assumir.
Cardell estende os braços num gesto derrotado.
— Então é como eu disse. Estamos no mesmo pé, nem um pouco mais
perto de uma solução.
— Sim e não. Na primeira vez em que eu vi o anel, achei alguma coisa nele
surpreendentemente familiar, mas na hora não consegui atinar de jeito
nenhum. Tudo que pude afirmar com certeza era que aquele brasão não
pertencia a nenhuma família nobre da Suécia. Agora temos nossa explicação: o
próprio Karl Johan fez o desenho.
— E daí?
— Não sei. Preciso de mais tempo para pensar.

De volta à praça, o vento cria lençóis de neve que jorram das vielas. Cardell
estica as costas doloridas, avalia mal a superfície da rua e, girando furiosamente
os braços, cai de costas quando o vento puxa seu casaco e ele escorrega ao pisar
num trecho congelado da calçada. Xinga com vontade ao aterrissar num monte
de neve.
— A hospedaria Sol Dourado não fica muito longe daqui, sabe? A neve e o
frio estão me deixando com sede. Sei que você não tem o hábito de beber, mas
o bêbado pensa diferente. Se houver alguma coisa presa dentro dessa sua cabeça
grande que não esteja saindo por conta própria, é com conhaque que nós
vamos extrai-la.
Winge abre a boca como quem vai protestar, mas muda de ideia e inclina o
corpo levemente na direção de Cardell antes de lhe estender um braço para
ajudá-lo a se levantar. Cardell finge usá-lo apenas para expressar gratidão pelo
gesto, porque tem total consciência de que mesmo uma fração de seu peso
derrubaria Winge como se ele fosse uma criança.
No Sol Dourado, um fogo arde com força na lareira, mastigando pedaços
de lenha que estalam e racham quando as chamas lhe chegam à medula. Um
pão de centeio e um pedaço de queijo chegam acompanhados por duas canecas
de chocolate quente, e logo também vinho tinto numa jarra com dois cálices
rasos. Eles brindam, e Cardell pede mais comida. Com a jarra seguinte, comem
ragu e uma lebre de inverno não muito gordurosa, mas encharcada de molho.
Seguem bebendo um cálice após o outro, e Cardell — que não pode evitar se
perguntar que efeitos o álcool terá em Cecil Winge — observa com tristeza
que, pelo contrário, ele parece ainda mais retraído e melancólico, embora uma
leve cor tenha começado a se espalhar pelas bochechas pálidas. Cardell se
espanta quando Winge é o primeiro a abrir a boca.
— Bem, me permita apresentar um problema, Jean Michael. Se você ama
alguém mais do que a si mesmo, não é sensato tentar fazer tudo que puder para
garantir a felicidade dessa pessoa?
Cardell franze o cenho e se sacode para evitar um arrepio.
— Sei muito pouco sobre esse tipo de coisa.
— Pois me permita discordar. Não é possível ser humano sem ter sido
colocado nesse tipo de situação de algum modo.
Cardell sente uma comichão no coto e se vira para o fogo ao responder.
— Esse tipo de sentimento nunca leva a nada de bom. A pessoa que a gente
ama sempre nos abandonará por algum motivo, e acabamos nos sentindo pior
do que antes.
— Essa é uma resposta sábia e muito relevante para a minha argumentação.
Vou lhe dar um exemplo concreto do que estou querendo dizer. Suponhamos
que um homem descubra que está morrendo. Ele sabe que o seu amor pela
esposa é correspondido, e que sua morte será uma catástrofe para ela. Pensar
em como será a sua vida depois que ele partir o atormenta noite e dia; ele vê
uma viúva solitária trajando luto, recusando todos os pretendentes por causa da
lembrança do marido enquanto a sua juventude se esvai. Pensa se há algo que
possa fazer para impedir que isso aconteça, apesar de não poder mudar seu
destino. Está me acompanhando até aqui, Jean Michael?
Cardell assente. Winge estende a mão para o vinho, esvazia o cálice, e na
mesma hora torna a enchê-lo até a borda.
— O homem à beira da morte conhece a esposa melhor do que ninguém.
Sabe do que ela gosta e do que não gosta. Certa noite, ele conhece um jovem
praça do exército, de uniforme e bigodes tingidos de preto, um belo homem
com o futuro pela frente. Os dois conversam, e o moribundo repara que o
praça possui não apenas atributos físicos, mas que é também um homem
sensato, dono de uma boa cabeça e de um bom coração, com uma inocência
juvenil que lhe cai bem. O moribundo convida o praça para ir à sua casa e
rapidamente se torna seu amigo. Ele o apresenta à esposa, cuja melancolia à
iminência da perda empresta à sua beleza algo de sublime. Nota que tal fato
não escapa à atenção do praça. Eles começam a socializar com mais frequência,
e o homem à beira da morte começa a buscar desculpas para deixar os dois a
sós. É preciso muito tempo e muito esforço, mas, por fim, uma identificação
mútua começa a criar raízes entre eles. O moribundo imagina como os dois,
que ambos gostam dele, enxugarão as respectivas lágrimas no dia em que ele
der seu último suspiro, e juntos rumarão para um futuro comum. Um
casamento.
Winge fecha os olhos e joga a cabeça para trás, fazendo o rabo de cavalo lhe
açoitar as costas quando esvazia o cálice.
— Filhos.
Ele tosse quando parte do vinho desce pelo lugar errado. Cardell o encara
horrorizado.
— Você fez isso? Você ficou maluco?
— Sim, Jean Michael, eu fiz isso, e não há motivo para que não tivesse dado
certo.
— Sim, a não ser pelo fato que as pessoas vivas não são bolinhas num ábaco
ou números num livro-caixa.
— Teria dado certo, Jean Michael, se a minha tosse não tivesse abafado o
barulho dos dois fazendo amor. Se eu tivesse permitido que a porta do quarto
ficasse fechada, teria mantido a farsa até o fim, como era minha intenção. Mas
existe uma diferença entre planejar uma coisa e ver essa coisa com os próprios
olhos. Eu saí de casa no mesmo dia e me mudei para a de Roselius.
— E o bebê que está a caminho? É seu ou do praça?
— Não sei.
Do lado de fora da janela, sombras passam pela viela, curvam-se ao tocar o
morro em direção à praça, inclinam-se para trás e estendem seus braços para se
equilibrar. Um novo pedaço de lenha colocado no fogo projeta no chão uma
chuva de faíscas. Cardell se levanta num pulo para ajudar a criada a apagá-las.
— Menina, pelo amor de deus! Tome cuidado. Uma centelha é o suficiente.
Winge continua sentado sem se mexer. Cardell lhe lança um olhar
preocupado e torna a se sentar.
— E vamos pedir outra bebida antes que eu morra de sede. Estou mais seco
do que o assoalho!

Eles bebem juntos, e as horas vão passando. O salão de jantar do Sol Dourado
se enche e se esvazia com a maré de clientes. As pessoas entram para fugir do
frio, descongelar o corpo, rir e se divertir. Num recinto contíguo, uma partida
de cartas está em andamento e somas vão trocando de mãos em meio a júbilo e
palavrões. O dono do bar, Olof Myra, tão velho e encarquilhado quanto as
vigas de madeira do bar, deixa Cardell e Winge ali sentados sem incomodá-los
até a meia-noite, mas nada acontece.
— E agora, Jean Michael?
Winge já não fala mais com clareza. Cardell sente as tábuas do piso
oscilarem como se estivesse no convés de um navio. Com um olhar
supersticioso, certifica-se de que as paredes têm janelas e não escotilhas, e que
do outro lado estão os becos calçados de pedra, não as ondas de Svensksund.
— Agora chega. Tomaremos a bebida clara da morte e voltaremos à estaca
zero. Tão ignorantes quanto antes, mas não tão sóbrios, pelo menos. Myra!
Duas doses de aquavit antes de você nos jogar porta afora.
Eles erguem os copos num brinde.
— A andar em círculos.
— Skål, Cecil Winge. Pode ser que a minha ideia não tenha sido tão boa
quanto parecia a princípio, e considerando o quão boas as minhas ideias
costumam ser, eu já deveria saber disso, asno que sou. Mas o que está
acontecendo? Você ficou pálido de repente. Engasgou com alguma coisa?
Winge encara o nada com um olhar vazio, subitamente tão sóbrio quanto
no dia em que nasceu.
— Espere, espere...
As pupilas negras pulam de lá para cá entre coisas que Cardell não consegue
ver. Quando o olhar recupera o foco, está cravado no rosto afogueado de
Cardell.
— Asno.
— Como é?
— O Asno! Eu sei quem Karl Johan é. Venha comigo!
48

ELES SAEM CORRENDO pelo meio da nevasca. Imprevisíveis, rajadas de vento


fustigam as vielas. Os passos são escorregadios pelos trechos insidiosos de gelo
no calçamento. A bebida os torna imunes ao frio. Ninguém se deu ao trabalho
de acender os lampiões nas casas, imaginando que os sentinelas noturnos não
fossem levar suas incumbências a sério numa noite como aquela. Cardell
mantém o colarinho levantado com a mão sadia para que a neve não desça pelo
pescoço e segue no encalço de Winge, que não passa de um borrão na névoa
branca à sua frente. Mas enxergar não é necessário. A tosse de Winge,
semelhante a um latido, basta para indicar o caminho. Quer pedir ao amigo
para diminuir o passo e recuperar o fôlego, mas já tem dificuldade suficiente
apenas para manter o ritmo. Um enfeite de renda preta, arrancado de uma
cabeça em algum lugar bem longe dali, passa rolando por cima do esterco
congelado das ruas. No Morro do Castelo, Winge tenta acionar a maçaneta da
porta da frente da Casa Indebetou, mas vê que está trancada. Os murros de
Cardell acabam por acordar um guarda noturno sonolento que pragueja no
mesmo instante em que pousa os olhos em Cecil Winge, então se desculpa
depressa.
— Não que eu desejasse que o senhor estivesse morto, mas, quando o vejo
andando por aí desse jeito, percebo que tenho um probleminha a resolver com
o secretário Blom.
Somente com um esforço combinado eles conseguem fechar a porta atrás de
si. Com as mãos trêmulas, Winge segura o anel diante de Cardell e aponta para
a parede no vão da escada, onde o brasão do antigo chefe de polícia Nils
Henric Aschan Liljensparre continua pendurado no mesmo lugar.
— Entendeu agora? Aschan, mais conhecido como “o Asno”?
Cardell estreita os olhos e tenta fixar o foco primeiro no desenho do anel,
em seguida no escudo ricamente decorado suspenso na parede.
— Há semelhanças, mas eu não diria que eles são exatamente iguais.
— Justamente. E é assim que deve ser. Se eu estiver certo, Karl Johan ficou
parado muitas vezes onde nós dois estamos neste exato momento, e com os
olhos virados para o mesmo alvo. O brasão de Karl Johan têm tantas
semelhanças com o do nosso antigo chefe de polícia que não pode ser
coincidência. Ele se inspirou no brasão de Liljensparre para desenhar o dele.
— E daí? Esse brasão não é nenhum segredo guardado a sete chaves. Está
pendurado na escada onde todo mundo pode ver.
— Sim e não. Antes de o departamento de polícia ser transferido para a
Casa Indebetou, o brasão estava pendurado na escada na rua do Jardim, mas
nenhum dos dois são lugares de acesso livre. Um criminoso sendo levado para
uma audiência não estaria muito inclinado a imitar o chefe de polícia. Karl
Johan decerto não trabalhava para a polícia em nenhum cargo formal. Eu
conheço cada agente de rua, cada notário, cada assistente e cada policial de
bairro pelo nome e pela fisionomia. Em nenhum desses grupos há alguém com
o mesmo cabelo louro que sabemos que Karl John tinha, muito menos que
tenha sumido em circunstâncias misteriosas. Mas Liljensparre tinha outra
corporação sob o seu comando, um grupo de informantes que espionava todo
mundo que pudesse ter tido más intenções em relação à Coroa.
— Parece que não adiantou grande coisa.
— Dizem que uma pessoa muitas vezes encontra seu destino no caminho
que pegou para evitá-lo. O rei Gustav não foi exceção. Mas havia muitos
informantes, homens ambiciosos e sem potencial para sucesso em outras áreas,
que foram atraídos para esse grupo. Era a ocupação perfeita para rapazes como
Karl Johan, e como esses jovens caçadores de fortuna só se relacionam com o
chefe indiretamente, era mais fácil idealizá-lo. Como indica o apelido de
Liljensparre, raramente era esse o caso entre os que recebiam ordens diretas
dele. Mas os informantes vinham constantemente aqui apresentar seus
relatórios antes de Liljensparre ser mandado para o exílio, e isso aborrecia os
agentes de polícia mais antigos.
— Não entendo como isso nos deixa mais perto de descobrir o verdadeiro
nome de Karl Johan.
— Que dia é hoje?
Cardell precisa de um momento para refletir. Desde o falso anúncio da
morte no início da semana, os dias vêm se sobrepondo, separados por uma
quantidade mínima de sono. Winge se vira para o guarda noturno que, com
relutância, se sacode para espantar o sono e consegue dar uma resposta:
— Sábado, sábado dia 7.
— E que horas são?
— Quase meia-noite.
— Então não temos tempo a perder, Jean Michael. Lá no Mercado está
acontecendo uma homenagem a Norlin, que está de partida. Se tivermos sorte,
o homenageado ainda estará por lá. Preciso dar umas palavrinhas com nosso
chefe de polícia demitido antes que ele desapareça no norte.

Eles terminam de subir o morro e chegam à Praça Antiga; o Mercado fica à


esquerda. Em meio à nevasca, a flecha da catedral projeta sua sombra bem alto
acima do telhado do palácio. Winge dá um suspiro audível de alívio ao ver o
prédio iluminado: as festividades ainda estão em curso. Há luz em todas as
janelas. No salão de baile, as mesas foram colocadas junto às paredes de modo a
abrir lugar para a dança, e os calcanhares batem com tanta força nas tábuas do
piso que os lustres do teto balançam. Cardell vê muitos rostos conhecidos na
festa, pelo menos duzentos convidados. Até o governador Modée, com o rosto
tão vermelho quanto um camarão cozido e o lenço de pescoço desamarrado
pendurado nas costas, entrou na dança. Conhecidos passam para lá e para cá
segurando taças de champanhe. De relance, entre duas dobras de cortina,
Cardell vê as costas do encarregado de comércio Cederhielm, que urina junto a
uma parede enquanto ri para alguma coisa no teto.
— Norlin era um homem querido, no fim das contas.
Winge aquiesce.
— Foi demitido do cargo por motivos profissionais. Você está vendo ele em
algum lugar?
Cardell corre os olhos pelo recinto.
— Perto da mesa de honra.
Winge alcança Norlin no canto da mesa. Seu nariz e suas bochechas estão
vermelhos, e sua peruca elegante está despenteada. Ele leva um susto ao ver
Winge.
— Cecil, ouvi dizer que você tinha batido as botas. Será que comemoramos
tanto que acordamos os mortos?
— Você só está me vendo porque você mesmo acabou de passar para o
outro lado, Johan Gustaf. Os seus restos mortais estão ali jogados na pista de
dança, mortos de tanto vinho e com uma amêndoa confeitada entalada na
garganta. Eu vim lhe mostrar o caminho até as margens do Estige e entregá-lo
ao abraço de Caronte.
Norlin deixa cair o copo. O sangue se esvai de seu rosto, e ele fica parado
sem saber o que dizer durante vários segundos, até uma mulher trombar com
Winge ao descer a escada. Norlin então dá uma gargalhada.
— Cecil Winge, seu maldito? Fantasma da Indebetou uma ova! Você está
bêbado. Nunca vi você alterado antes nem o ouvi contar uma piada, mas agora
pressinto uma conexão entre as duas coisas. Embora deva dizer que os soluços
prejudicam um pouco o efeito geral.
Norlin faz um gesto como se quisesse abarcar toda a injustiça do mundo.
— Assim se encerra a minha história como chefe de polícia. Se o norte ficar
frio demais, lembrar que escapei das intrigas de Estocolmo vai me aquecer o
coração.
— Você sabe quando a administração de Ullholm vai assumir?
A gravidade retorna ao semblante de Norlin.
— Não sei ao certo. Daqui a uma semana, talvez. Sinto muito não ter
conseguido comprar mais tempo pra você, Cecil.
— Eu vim me endividar mais ainda com você, Johan Gustaf. Quando fui
procurá-lo em seu escritório após ter olhado o cadáver da Ucharia, sua mesa
estava coberta de cartas ainda fechadas dos informantes de Liljensparre,
relatórios que continuavam a chegar do país inteiro, muito embora já fizesse
quase um ano desde que ele desapareceu na Pomerânia. Essas cartas ainda
existem ou a sala já foi esvaziada?
— Deixei esse trabalho com total confiança nas mãos de Isak Blom.
— Tenho motivos para acreditar que nesses escritos há alguma explicação
para a morte que manteve eu e Jean Michael ocupados no outono passado.
Você me autorizaria a ter acesso a eles hoje à noite mesmo, Johan Gustaf?
— Se é simplesmente isso que deseja, é o mínimo que posso fazer. Leve
Blom com você, sim? O valoroso secretário já bebeu demais.
Norlin lança um olhar pleno de significado na direção de Cardell.
— Mas não deixe o homem descer a escada sozinho. Outro dia ele
escorregou e machucou horrivelmente o rosto.
Isak Reinhold Blom, que está conversando com duas damas pintadas de branco
vestindo saia rodada, deixa cair o cálice no chão ao ver Cardell, que é obrigado
a agarrá-lo pelo colarinho para impedi-lo de se esconder debaixo da mesa.
— Não me bata mais!
Cardell põe o homenzinho de pé, muito embora suas pernas tenham
perdido as forças. Winge pousa uma das mãos no seu ombro para tranquilizá-
lo. Blom se permite acalmar com vinho e vai recuperando a autoconfiança a
cada gole. No hall de entrada, eles encontram seu casaco surrado. Winge é o
primeiro a sair. Os poucos degraus que levam até a praça estão ocupados por
convivas que saíram para tomar um ar, gente aquecida pela dança e pelo vinho
a ponto de rir de uma nevasca tão intensa que chega a ocultar o poço e suas
bombas. Uma mulher de ombros largos tenta capturar flocos de neve com a
língua diante de risos e aplausos de uma coleção de cavalheiros admirativos.
Um deles dá um passo para trás bem na hora em que Winge vai passar. Os dois
se esbarram e, quando o homem se vira, ficam frente a frente. Se reconhecem
de imediato. Winge dá um passo para trás.
— Gillis Tosse... Não nos vemos desde o nosso tempo de universidade, não
é mesmo? Tampouco ouvi seu nome desde que o vi num relatório para Norlin
me chamando de jacobino.
As faces de Tosse estão coradas de tanto beber, mas sua voz sai firme:
— Cecil Winge! Queria poder dizer o mesmo a seu respeito, mas seu nome
anda por toda parte ultimamente. — Ele faz uma pausa para efeito dramático,
e um sorriso desagradável surge em seus lábios. — Mas não por muito mais
tempo, ao que parece.
— Como andam as coisas com Madame Sachs por estes dias?
Tosse dá de ombros.
— Ah, ela precisará fazer um grande esforço se quiser recuperar a confiança
que perdeu. A Casa Keyser por enquanto está vazia, mas nossa pequena
sociedade não carece de recursos e tem outros estabelecimentos igualmente
bons para usar. Não se preocupe com isso. Você não privou ninguém de
diversão.
— Você é do tipo que gosta de olhar enquanto os outros exploram quem
não pode se defender, Gillis, ou prefere participar? Pelas lembranças que tenho
de você em Uppsala, imaginaria a primeira opção.
Tosse dá um passo mais para perto e baixa a voz ao mesmo tempo em que
pousa uma das mãos no ombro de Winge.
— Cecil, eu sei que você não tem muito mais tempo. Não desejo a
ninguém morrer tísico entre lençóis ensanguentados, mas gostaria que fosse
um reconforto para você saber que o seu destino teria sido bem pior caso
tivesse tido tempo para continuar desafiando a Eumênides. E sem resultado,
vale ressaltar. Existem coisas neste mundo que ninguém pode mudar, e uma
delas é o direito dos fortes, diga seu amado Rousseau o que disser.
Winge se livra da mão de Tosse.
— Se Reuterholm não tivesse se livrado de Norlin, os seus dias estariam
contados.
Tosse joga a cabeça para trás e ri.
— Reuterholm? Ah, Cecil, agora estou me lembrando como se fosse ontem.
Você sempre teve essa mistura notável de inteligência e ingenuidade.
Ele bebe o que lhe resta de vinho na taça, que então joga na escada com
displicência, e se volta novamente para o seu grupo, com o riso ainda a
borbulhar nos lábios.

Com Isak Blom no meio dos dois, Winge e Cardell caminham ombro a ombro
pelo lado mais protegido da praça, encolhidos por causa do vento. Vão até o
Morro do Castelo e passam pelo Beco da Adega até chegar à Casa Indebetou,
onde o guarda parece ter desertado seu posto. Blom se atrapalha com as chaves,
Winge pigarreia.
— Isak, há quanto tempo você trabalha na corporação? Desde oitenta e sete
ou oitenta e oito?
Com raiva, Blom encara o chão enquanto luta contra o vento para abrir
uma das portas.
— Oitenta e seis.
No hall, eles batem com os pés no chão para se livrar da neve. Cardell
coloca a mão na parede e sente que está tão fria quanto o ar do lado de fora.
Blom faz um gesto distraído por cima do ombro enquanto os conduz mais para
dentro do prédio. Winge o segue, com a mão em suas costas.
— E por anos você e Liljensparre estiveram juntos, certo? O que se lembra
sobre os informantes que ele mantinha na cidade e na zona rural?
— Bem, a ansiedade do rei Gustav foi aumentando com passar dos anos e à
medida que seus inimigos se multiplicavam. O lugar onde ele se sentia mais
relaxado era Haga, em seu mundo de fantasia sob os pinheiros, nas margens
pedregosas que ele batizara com nomes italianos, bem longe das intrigas da
cidade. A nobreza cuspia por cima do ombro ao ouvir o nome dele, a corte
temia seus caprichos, seus próprios pajens contavam histórias de arrepiar... e
um deles veio a se tornar seu assassino. Liljensparre deu início à carreira policial
no quarto ano de Gustav como regente, em setenta e seis, mas também com o
passar do tempo as necessidades do rei foram aumentando. Coube a
Liljensparre encontrar ouvidos para Gustav, recrutar uma equipe que deveria
ouvir conversas particulares e fazer relatórios sobre questões discutidas
confidencialmente. Nos últimos anos, o que despertou mais interesse dele foi a
situação na França. Gustav temia que a revolução se espalhasse, então os
delatores de Liljensparre foram despachados para procurar por traidores.
Winge aquiesce.
— Sim, também me lembro de tudo isso. E então Liljensparre se demitiu
um ano atrás, em dezembro. A notícia do exílio dele deve ter levado algum
tempo para chegar a todo mundo que mandava relatórios, creio. Então estamos
à procura de uma ou mais cartas não abertas da primavera e do verão.
Blom aponta para o corredor mais adiante.
— Eu tirei tudo que estava na mesa de Norlin e coloquei em uma sala de
arquivo morto, com coisas que ninguém quer mais, mas que ninguém quer
jogar fora. Num canto há um armário que já era velho quando a polícia se
mudou para cá. Tudo que resta da correspondência de Liljensparre está lá
dentro. Vou arrumar um pouco de luz para vocês.
A vela de Blom ilumina um recinto coberto de livros, registros, pastas e
papéis. Quando Cardell abre o armário em questão, pilhas de documentos que
estavam apoiadas nas portas se esparramam pelo chão.
— Merda. Se você limpar a mesa, eu recolho tudo isso. Bem, como vamos
proceder?
Winge dá uma volta lenta em torno dos papéis e vai pegando
aleatoriamente alguns envelopes fechados.
— Vamos classificar tudo. Você se lembra da nossa conversa no cemitério de
Maria? Sobre os cotos parcialmente cicatrizados de Karl Johan? Vamos voltar
no tempo junto com as feridas. Quando você acha que o primeiro membro
deve ter sido separado do restante do corpo?
— Meu palpite seria em algum momento de julho.
— Então podemos imaginar que todas as cartas de Karl Johan terão cessado
em julho. Vamos separar tudo por remetente e por data. Se um montinho de
cartas do mesmo remetente incluir qualquer coisa de agosto ou de um mês
posterior, podemos descartá-lo. Qualquer correspondência regular que se
encerre em junho ou julho pode ser interessante.

Uma hora ou mais transcorre enquanto eles examinam centenas de cartas. Em


silêncio, vão separando-as em pilhas, entretidos como se jogassem um
misterioso carteado. Determinadas pilhas são devolvidas às profundezas do
armário, acompanhadas por um palavrão no caso de Cardell. A coleção vai
diminuindo até restarem poucas. Winge dispõe numa fileira as que sobraram
enquanto Cardell dá o melhor de si para controlar a impaciência.
— E agora?
— Agora nós abrimos as que sobraram e checamos se o conteúdo nos
fornece alguma coisa que ainda não sabemos.
Cardell não é um leitor nato. As longas linhas o cansam, o conteúdo
raramente parece valer o esforço.
— Por Deus. Esses cavalheiros seriam os maiores talentos do reino se
estivessem competindo para ver quem consegue ser mais entediante. Este aqui
não consegue acertar a ortografia de uma só palavra.
— Deixe-me ver.
— É só um monte de asneiras.
Winge se concentra, franzindo a testa.
— Ah, sim. Mas eu não acho que sejam asneiras aleatórias. Esta carta aqui
está escrita em código, um sistema que substitui determinadas letras por outras.
— E o que isso significa para nós?
— Que é impossível saber o conteúdo. Quem é o remetente?
— São assinadas por Daniel Devall.
— E as datas?
— A primeira foi escrita mais de um ano atrás, a última tem a data de
junho.
Winge levanta as mãos e esfrega as têmporas.
— Uma vez aprendi um método para decifrar códigos, mas aquelas últimas
taças de vinho no Sol Dourado relegaram esse conhecimento aos confins mais
remotos da minha mente.
Ele começa a andar em círculos, movendo os lábios em silêncio e rabiscando
coisas no ar. Depois de algum tempo, para e volta para a mesa, onde levanta
um dos envelopes. Então ri, satisfeito.
— Jean Michael, me perdoe, mas dificultamos as coisas para nós mesmos,
mais do que o necessário. Você não devia ter me deixado beber tanto.
Winge segura a carta no ar, e Cardell se aproxima. Em cada um dos cantos
há sobras da cera do lacre recentemente rompido. O pequeno brasão moldado
é o mesmo do anel de Karl Johan. Cardell leva algum tempo para encontrar as
palavras.
— O nome verdadeiro de Karl Johan é Daniel Devall?
— Sem sombra de dúvida.
— Ele menciona algum local?
— Sim. A última carta se refere a uma propriedade chamada Canto do
Pássaro. Significa alguma coisa para você?
— Nunca ouvi falar.
— Nem eu. Vamos ver se Isak Blom tem algo a acrescentar.
Blom está deitado sobre a mesa com o rosto enterrado nos braços. Está
roncando bem alto e resiste às tentativas de ser acordado até Cardell cutucá-lo
com força nas costelas.
— Tiveram sorte? — pergunta ele, acordando com um sobressalto.
— Talvez — diz Winge. — Por acaso você conhece um lugar chamado
Canto do Pássaro?
Blom esfrega o rosto.
— Conheço. É um casarão às margens do rio Saga, não muito longe da
antiga residência real em Väsby. É uma propriedade que passou por gerações da
casa de Balk, uma família de condes. O brasão deles é simples, típico das casas
mais antigas: uma faixa branca sobre um fundo preto. Até onde eu sei, não
restam mais muitos Balks por lá. Gustav Adolf Balk fez parte do conselho do
rei algumas décadas atrás. Tenho vaga lembrança de ele ter desaparecido no
estrangeiro. Talvez tenha tido algum descendente. Os Balk já foram uma
linhagem importante no passado, e em mais de uma direção. Mais do que isso
eu não sei.
Winge já está a meio caminho de sair pela porta quando Blom termina de
falar.
Depois do Morro do Castelo, a rua do Mercador jaz estreita e vazia. A nevasca
amainou um pouco e um novo dia vai raiando, embora a escuridão de inverno
ainda vá perdurar por algumas horas até que o sol tenha energia suficiente para
se erguer do horizonte. Winge baixa a aba do chapéu para observar melhor as
cercanias em busca de transporte. Um Cardell empolgadíssimo o segue logo
atrás. Se até pouco tempo a busca deles avançava lentamente, agora ela parecia
ir rápido demais.
— É sensato partir com tanta pressa? Não deveríamos fazer alguns
preparativos?
Winge responde por cima do ombro.
— O que você sugeriria?
Cardell pragueja quando o salto do sapato escorrega entre duas pedras.
— Um sabre para cada, uma faca escondida na bota, uma adaga na manga?
Pistolas, mosquetes? Um morteiro rebocado atrás da carroça caso não nos
deixem entrar? E eu também não tenho documentos para mostrar aos agentes
alfandegários.
Junto ao Lote Queimado, um condutor está ajustando uma ferradura solta.
Winge lhe acena enquanto espera Cardell alcançá-lo.
— Não se preocupe com isso. Eu tenho papéis assinados por Norlin que
vão garantir nosso acesso sem qualquer pergunta. Quanto ao resto, os poucos
aliados que tínhamos se foram. Agora somos só você e eu, Jean Michael. Eu
não sou um homem violento. Se um poder superior estiver à nossa espera no
final dessa jornada, não temos muito como resistir. Vamos ater nossas
esperanças ao que de fato temos, e para mim o tempo é de suma importância,
não só por conta da minha saúde, mas também por conta da chegada de
Ullholm. Estamos exatamente no hiato entre as duas administrações e o
melhor seria encerrarmos nossa aventura antes de essa situação se resolver. Mas
essas condições deixam você um pouco descrente? Porque eu mesmo estou
embarcando nessa carroça sem grande coisa a perder. Você ainda pode dar
meia-volta, e eu seria o último a culpá-lo.
Winge sobe até o assento e faz um gesto para o condutor em direção à
Ponte do Matadouro. Cardell limpa os flocos de neve do rosto e dá um
muxoxo.
— Se pudermos dar uma paradinha e comprar mantimentos na Hospedaria
do Chefe dos Cavalariços antes de sairmos da cidade, você terá um
companheiro de viagem mais alegre e uma viagem mais agradável. Uma dose
antes de partir também seria muito útil para equilibrar meu humor.
Winge mordisca pensativamente a cutícula.
— Está bem — diz ele, por fim. — Eu estou padecendo de uma dor de
cabeça daquelas.
49

ELES ENCONTRAM UM transporte na Casa da Alfândega. Há algumas semanas as


carroças substituíram as rodas por barras de trenó. A Hospedaria do Chefe dos
Cavalariços, última parada entre Estocolmo e a floresta, vende pão, carne e
tabaco, e vinho para acompanhar. A estrada está em mau estado. O tempo
ameno da semana anterior se transformou em frio, as barras derrapam e
chacoalham sobre o gelo que se formou na estrada, afiado em alguns trechos,
ondulado em outros. Os cavalos têm dificuldade para firmar os cascos no chão.
Sinalizadores de distância feitos em madeira, ferro ou pedra se sucedem
devagar. A cada quinze quilômetros mais ou menos há hospedarias
modorrentas e paradas para descanso de beira da estrada, lugares onde o tempo
se prolonga enquanto os cavalos exaustos são trocados e o condutor atualiza os
empregados sobre às últimas fofocas da cidade.
Winge conhece bem a estrada. Percorreu aquele caminho muitas vezes nos
tempos de estudante em Uppsala, e o fato de alguns trechos serem nivelados
com mais regularidade do que outros não é nenhuma surpresa para ele. Um sol
distante se ergue a leste e ilumina a paisagem sem vida por uma ou duas horas.
A luz muda de lado e faz as sombras se alongarem na direção oposta. A floresta
antiga e indiferente os acompanha silenciosamente em ambos os lados da
estrada. O relógio de bolso de Winge, o Beurling que funciona mesmo depois
desmontado e remontado tantas vezes, permanece aberto em seu colo até a luz
se tornar fraca demais para se ler a posição dos ponteiros. Quando as estrelas
começam a surgir, Winge e Cardell se enroscam ainda mais nas peles e
cobertores do trenó, cada um perdido em sua sequência de pensamentos,
interrompida apenas pelos resmungos do condutor. A lua é nova, e seu
tamanho mal é capaz de lançar qualquer claridade.
Cecil Winge se pega retornando às confidências que compartilhou com
Cardell apenas poucas horas antes. Lembra como foi a esposa quem ficou
enfurecida quando ele os flagrou em pleno ato. Ele, por sua vez, sentiu apenas
uma tristeza infinita, o que pareceu irritá-la ainda mais. Ele deveria ter
demonstrado seus sentimentos com uma força violenta, expulsado o amante da
cama e o espancado até tirar sangue? Porém a violência nunca o atraiu, sempre
fora um homem dado à racionalidade. Ele agora pensa se pode haver um lugar
em que o amor se deixe traduzir em violência, um lugar fora de alcance para
ele. Bem distante dali, uma coruja solitária sobe voando em direção à lua. Ele
se lembra das palavras de adeus de Josef Thatcher e estremece.
“O senhor é mesmo um lobo, afinal... Um dia seus dentes estarão
manchados de vermelho, e nesse dia o senhor terá certeza do quanto eu tinha
razão.”

O trenó avança pela noite. Um após o outro, os cem quilômetros vão ficando
para trás. Nos arredores de Sala, construída junto a uma mina, o condutor os
leva até um pátio quadrado entre uma casa e alguns estábulos, puxa as rédeas e
se vira para dizer:
— Não vamos chegar mais perto do que isso do destino de vocês. E para
mim já está na hora de encontrar uma cama e dar de comer a meus cavalos.
Dentro do calor da hospedaria, alguns hóspedes ainda jantam. Uma mulher
de proporções avantajadas comanda o estabelecimento e solta o ar pelo nariz
quando eles lhe perguntam sobre o Canto do Pássaro.
— Não há nada lá para os senhores, muito menos a esta hora da noite. Faz
tempo que ninguém se dá ao trabalho de visitar o Canto do Pássaro.
— Se não houver condução, quem sabe podemos pegar um cavalo
emprestado cada um?
— Neste frio, e para hóspedes cujos nomes eu nunca ouvi antes? Nem por
todo o dinheiro deste mundo.
Winge conta algumas moedas e coloca sobre o tampo áspero da mesa. Um
valor que ultrapassa o preço das montarias. Os lábios da mulher vão se
transformando num sorriso em seu rosto enrugado, e ela faz uma curta mesura,
não desprovida de humor.
— Pelo visto tem mais dinheiro circulando por essas terras do que eu
imaginava.
Os dois cavalos são animais largos, de trabalho, e a velocidade não está entre as
suas qualidades. Há muito tempo a neve já encobriu as estradas menores, que
só tornarão a ver a luz do dia na primavera. Cardell e Winge seguem as
indicações passadas pelo saber coletivo da hospedaria. Vão cavalgando sob o
luar, um morro distante à sua esquerda e a estrela do norte bem à frente, até
que depois do que deve ter sido uma hora ou mais, surge uma fileira de tílias.
Os cavalos vão abrindo a trilha até chegarem às árvores, onde o solo é plano.
Na outra ponta desse caminho há construções, escuras e silenciosas. O casarão
assoma do outro lado de um pátio onde há uma fonte coberta por uma crosta
de gelo. Winge puxa as rédeas e obriga o cavalo a parar lentamente.
— Parece familiar?
Mickel Cardell, desacostumado à sela e secretamente feliz pelo fato de não
terem conseguido montarias mais velozes, passa a perna por cima do lombo do
cavalo, apeia, e fica algum tempo com uma das botas presa num estribo que
não coopera.
— Das cartas de Blix? Sim, o coitado descreveu bem o lugar. Mas parece
que já faz muito tempo desde que alguém esteve aqui. O lugar está silencioso
feito um túmulo, nada de luz, de passos, nada de fumaça saindo das chaminés,
e daqui eu consigo contar pelo menos uma dúzia de janelas quebradas.
— E, apesar disso, aqui estamos nós. Não vamos dar meia-volta enquanto
não tivermos certeza. A casa é grande, temos muito a explorar.
A porta da frente está ligeiramente entreaberta. Há montinhos de neve
acumulados em ambos os lados, e eles precisam usar o peso combinado dos
corpos para forçar uma das metades a ceder o suficiente para que entrem. O
hall é imenso e está deserto. Winge fica parado, à escuta.
— Como você disse, realmente não parece haver qualquer presença
humana. Vamos começar por baixo, Jean Michael. Eu pego o corredor à
esquerda, você pega à direita, e depois vamos subindo. Nos encontramos na
escada antes de passar para o piso seguinte. Pela localização das chaminés, você
deve encontrar a cozinha. Veja se consegue achar algum lampião ou qualquer
outra coisa para iluminar.

Uma porta conduz Cardell ao primeiro cômodo à direita. Uma sala de estar,
supõe. O gelo, e antes disso a chuva e a umidade, escorreu pelas paredes,
deixando as tábuas do assoalho tão inchadas que algumas se curvam em arco.
Na semiescuridão, tudo tem o mesmo tom cinza: as cortinas pendendo em
frangalhos diante das janelas, os móveis cheios de ninhos de ratos e
camundongos, as molduras com as telas deformadas pelo tempo e pelo vento.
Mais para dentro da casa, o cinza se transforma em preto. Cardell tateia pelas
paredes à medida que avança, sente as lombadas dos livros enfileirados numa
prateleira e, para sua alegria também, um pequeno castiçal de latão, frio o
suficiente para grudar na palma da sua mão por um instante. A cera está frágil
e congelada, e as faíscas das muitas tentativas de Cardell de acender o pavio
com sua pederneira e seu pedaço de metal iluminam as estantes bolorentas. Por
fim, o fogo pega. Uma chama hesitante e tremeluzente se ergue.
Com o braço, ele protege o fogo do vento e avança mais para dentro da
casa. Está tudo em silêncio, morto, frio. O gelo penetrou fundo nas paredes. O
telhado deve vazar como uma peneira. Atrás de uma despensa vazia, uma
escada tanto sobe para o piso superior quanto desce para uma adega. Ele fica
parado sem conseguir decidir, então resolve explorar para baixo. A luz revela
barris e prateleiras imersos na escuridão e, para seu deleite, Cardell vê que estão
repletas de garrafas. Muitas estão congeladas, mas, quanto mais fundo penetra
no cômodo, mais encontra garrafas que sobreviveram ao abandono. Cardell
escolhe uma, quebra o gargalo e a leva aos lábios com delicadeza, tomando
cuidado para não se cortar. Um Tokaji! Com um suspiro de prazer, dá as costas
para a adega e volta para a escada.
Um ruído vem lá de cima. Um passo nas tábuas que rangem, ou então
algum móvel que caiu. Cardell se dá conta de que a sua aventura com a vela e a
garrafa de vinho o fez perder a noção do tempo. Winge deve ter se cansado de
esperá-lo junto à escada após ter inspecionado a sua metade da casa e decidido
encontrá-lo no piso superior. Ele dá mais uns goles e continua a subir. A
pequena janela da escada deixa entrar a luz da lua, e aliado ao efeito do vinho,
isso faz com que ele se sinta melhor quanto àquela empreitada inútil. A luz que
ele acendeu o privou de qualquer visão noturna, e o cega na mesma medida
que ilumina o caminho.
— Não se mexa.
Não é a voz de Cecil Winge. É uma voz baixa, monótona, e talvez mais
alguma coisa. Talvez dificuldade para articular em virtude do frio.
— Apague a vela e se vire.
Cardell obedece. Na escuridão repentina é difícil ver quem falou. O
contorno do outro se destaca diante de uma janela e, lá fora, o mundo se
divide ao meio entre um céu escuro e um descampado coberto de neve.
— O senhor talvez não esteja vendo o que eu estou segurando, mas é uma
carabina com o cano apontado direto para o seu peito.
Cardell estreita os olhos para ver melhor. O homem tem estatura mediana e
usa uma pele de lobo comida por traças jogada por cima dos ombros. Por baixo
dela, as roupas condizem com o restante da casa. O que antes foi magnífico
está agora em frangalhos. As calças reluzem de tão gastas, há botões faltando,
costuras se desfazem. O homem tem um rosto frágil e parece mais velho do
que verdadeiramente deve ser.
— Ah, sim, agora estou vendo. Tínhamos dessas na marinha. Bela arma,
mas também percebo que não é exatamente de última geração.
— Não se deixe enganar pelo estado da casa, que nada tem a ver com esta
arma. Ela serviu muito bem ao meu antepassado, de Narva até Fraustadt, sem
falhar uma vez sequer. Veio roubar vinho? Está sozinho?
Cardell sente a pulsação latejar nos tímpanos. É hábil nesse tipo de mentira,
e não hesita por uma fração de segundo sequer.
— Sim. Entrei aqui na esperança vã de encontrar algo que me ajudasse a
passar o inverno. Há tempos não tenho nenhum amigo.
O homem assente.
— Parte das suas roupas é uniforme de sentinela, se não me engano. O que
alguém assim está fazendo tão longe da cidade?
— Talvez tenha deixado seu cargo e tentado sobreviver da melhor forma
possível depois de ter gastado há muito tempo todos os seus proventos. Ouvi
dizer que a casa estava abandonada, achei que ninguém sentiria falta de nada.
— Pois então dê meia volta e vamos sair pelo mesmo lugar por onde você
entrou. Não precisa olhar por cima do ombro. Eu estou fora do seu alcance e
com a carabina apontada para as suas costas. Há um pequeno barracão perto
daqui, chegando nas campinas. É para lá que nós vamos.
Cardell o encara com um olhar atento.
— Esse mosquete tem um mecanismo bem caprichoso. Na marinha diziam
que a pólvora deixava de acender pelo menos uma vez a cada cinco tentativas.
O homem passa algum tempo tão imóvel quanto Cardell até que sua voz
sem inflexão se faz ouvir novamente:
— Há uma pilha de esterco não muito longe do lugar para o qual estamos
indo. Tem muitas jardas de profundidade acumuladas há gerações, alimentada
por sujeira animal e humana. Sabe que nem mesmo o frio do inverno consegue
conter seu calor de podridão? Ela borbulha e fumega por dentro. Vermes mais
velhos do que as tílias vivem ali. Não estou despreparado para visitas. Guardo a
munição dentro dessa pilha de esterco, e todos os dias vou lá e carrego a
carabina com balas recém-retiradas. A sua morte em meio a febre e calafrios
está garantida se uma delas o atingir, mesmo que seja de raspão. A ferida vai
começar a infeccionar, depois vai gangrenar, e a sua morte só virá após um
sofrimento atroz. Minha arma nunca falhou até hoje. Talvez queira o destino
que seja a primeira vez. Mas aí cabe ao senhor correr o risco.
Cardell reflete alguns segundos sobre o valor da própria vida, então dá de
ombros, vira-se e começa a subir a escada.

Caminham pela neve. As estrelas e o luar iluminam o percurso em direção ao


barracão, a primeira de várias construções pequenas anexas à casa. A porta está
fechada com uma barra pesada.
— Levante a barra e entre.
Cardell tem dificuldade usando apenas um braço, mas encaixa o ombro sob
a madeira e a ergue do suporte. A porta desliza e se abre. Cardell é atingido por
um fedor tão forte que cobre o nariz com a manga.
— Jesus.
— Qual é o seu nome, afinal?
— Meu nome é Mickel Cardell.
— Pois bem, Mickel Cardell. Eu tenho uma proposta e quero que o senhor
reflita com cuidado antes de responder. Queria poder oferecer algo melhor,
mas preciso ficar mais um tempo aqui, esperando outra visita, e não quero
correr o risco de vê-lo voltar aqui com outros no seu encalço.
Em algum lugar bem no fundo do barracão, Cardell percebe movimento.
Algo grande está acordando, chegando mais perto. Os elos de uma corrente
chacoalham quando ela é esticada até seu comprimento máximo. Ele vê o cão
— de um tamanho impossível — com os olhos acesos como brasas e a saliva
escorrendo pelos cantos da boca.
— Mickel Cardell, este é Magnus. Ele será o seu túmulo, por assim dizer,
depois que tiver consumido os seus restos mortais. O senhor é um homem
grande. Eu preferiria não ter de arrastar seu corpo pelo chão até ele, então
proponho o seguinte: vá até a parede, depois ande até o mais perto que puder
de Magnus, mas sem que ele possa alcançá-lo. Feito isso, o senhor vai se
ajoelhar. Eu lhe darei um tiro no pescoço de modo que o senhor caia no raio
de alcance da corrente dele. Será uma morte limpa, um fim rápido e clemente,
e nenhum de nós dois se sujará com o seu sangue. Se por outro lado o senhor
estiver inclinado a cometer um ato desesperado, vou lhe dar um tiro na barriga
e deixa-lo à mercê do frio, da dor e dos calafrios. Magnus é grande o suficiente
para manter o barracão aquecido. A menos que a bala acerte mal o alvo, o
senhor não morrerá congelado esta noite. Talvez tampouco amanhã.
Os cabelos se arrepiam na nuca de Cardell. Ele não sabe o que responder.
Vê um clarão, e pontinhos dançantes preenchem de significado a escuridão
atrás do cachorro. Asas negras num abismo. A morte chega mais perto, a
mesma força que quase cerrou nele seus dedos brancos feito osso nas águas de
Svensksund. Com as pernas bambas, ele vai pé ante pé e cai de joelhos junto à
parede, onde cada nó da madeira se transformou numa órbita ocular da cruel
ceifadora.
— Um pouco mais perto, por gentileza. Tanto o pelo de Magnus quando a
pele que estou usando já viram dias melhores, mas isso não é motivo para sujá-
las.
Cardell se arrasta mais para a frente, centímetro por centímetro, ajoelhado.
A boca cheia de baba de Magnus e seus olhos ávidos de predador estão muito
próximos, seu hálito fede a carne podre e sangue. No instante seguinte, um
barulho de movimento e o farfalhar de roupas congeladas vêm de trás de
Cardell. Ao virar a cabeça, ele vê o contorno de Cecil Winge na porta aberta e
constata que até o homem com o casaco de pele de lobo se virou para avaliar o
intruso. Um disparo ecoa com um estouro úmido. O vermelho salpica o
recinto.

Cardell tem a impressão de que o tiro segue reverberando num eco infinito, e
que o silêncio então paira por um tempo impossível de tão longo. A fumaça da
pólvora sobe em direção às vigas e então se dissipa. Ele está morto, sabe disso, e
compreende que se já não sente nada é porque se encontra além dos limites da
dor, já está no lugar para o qual tanto ansiou ir enquanto a âncora do Ingeborg
o mantinha acorrentado à vida. Pelas pernas sente escorrer o fluxo morno do
tiro que deve tê-lo acertado na base das costas. Não sente nenhuma ferida,
porém, nem quando seus dedos procuram por ela, e seu nariz não demora a lhe
informar que o líquido é algo diferente de sangue. Vivo e ileso, ele ouve a voz
de Cecil Winge romper o silêncio.
— De todas as coisas nas quais você poderia ter atirado aqui hoje, eu teria
considerado o cachorro a menos provável.
— Magnus cumpriu seu objetivo. Você é Cecil Winge. Era o senhor que eu
estava esperando. Eu sou Johannes Balk. Sou o responsável pelo destino de
Daniel Devall. O senhor veio me levar para Estocolmo, então vamos logo. Não
há mais nada para mim aqui.
50

O SOL PARECE mais distante do que nunca ao se levantar para começar sua
curta viagem, uma brasa fraca rolando pelo horizonte. A luz fraca ilumina
Cecil Winge e Johannes Balk sentados sozinhos dentro do trenó. Mickel
Cardell está na frente ao lado do condutor, fora do raio de alcance da conversa,
com os braços fechados ao redor do corpo para conservar calor. No trenó,
Winge alterna seu olhar pensativo entre as costas do amigo e Balk. À luz
nascente da aurora, teve pela primeira vez a oportunidade de dar uma boa
olhada no homem sentado em cima das peles à sua frente. À primeira vista é
difícil estabelecer sua idade. Jovem, mas envelhecido prematuramente, ou
então velho, mas com uma falta de maturidade pronunciada nos traços.
Palavras escolhidas por Kristofer Blix lhe retornam à mente, e ele se pega
concordando: há uma notável ausência.
A respiração seguinte de Winge entala na garganta. Seus pensamentos são
interrompidos por uma súbita crise de tosse, e ele se inclina sobre a beirada do
trenó, protegendo a boca com um lenço enquanto cospe um filete vermelho na
direção das barras.
— Como vai a saúde, Sr. Winge?
A voz de Johannes é desprovida de inflexão. É como se ele nunca tivesse
aprendido a cadência da língua e simplesmente adotado um tom monocórdio.
Essa carência faz Winge pensar em seus primeiros anos de estudos, quando ele
e os amigos eram ensinados a ler em voz alta idiomas que ainda não haviam
dominado e cujo significado não compreendiam. A impressão é de que a
língua do sujeito não é capaz de produzir os sons corretos e o força a
interromper o discurso e escolher outra palavra.
— Por que a preocupação?
Johannes Balk ergue os olhos para Cecil Winge, e seus olhares se cruzam de
verdade pela primeira vez. Balk tem as pupilas tão grandes e negras que a cor
de sua íris não fica aparente.
— E por que eu não iria me preocupar com meu semelhante, Sr. Winge?
— Porque você é um monstro, Johannes.
Balk permite que o silêncio se instale entre eles sem desviar os olhos. Ele
aquiesce, e Winge sente a pele dos braços e do peito se arrepiar.
— O mundo me transformou no que eu sou. Se o que o senhor diz é
verdade, então o que deveríamos pensar do mundo? Mas talvez eu tenha outros
motivos para me preocupar com a sua saúde além da compaixão. Tudo em seu
devido tempo.
— Você já sabe quem eu sou?
— Fiquei sabendo de sua existência pelo Extra Post na primeira vez em que
os jornais anunciaram o cadáver do lago da Ucharia, e então fiz as minhas
pesquisas. Examinei com interesse a sua carreira jurídica. O senhor sempre se
agarrou aos seus ideais. Nunca deixou de interrogar os acusados e sempre deu
espaço para que eles se exprimissem no tribunal, onde todos podem ouvir.
Preciso perguntar, Sr. Winge, se o senhor ainda acredita que um monstro como
eu merece o mesmo direito, depois de tudo que aconteceu e de tudo que sabe a
meu respeito.
— Todos são iguais perante a lei. É um direito seu, pouco importa o seu
crime.
— O senhor permite que eu primeiro conte a minha história, no meu
ritmo? Não vou omitir nada. E então faça suas perguntas, e eu responderei da
melhor maneira que for capaz. Estaria bom assim, Sr. Winge? Não sei quanto
tempo o senhor tem para me dar.
— Nem eu mesmo sei. Mas imagino que estamos prestes a descobrir.
— Um prólogo primeiro, se me permite.
Johannes Balk fecha os olhos e inspira fundo. Quando o ar sai dos seus
pulmões, duas nuvens de fumaça lhe escapam do nariz. Ele começa.
— É uma tradição na minha família batizar o filho primogênito em
homenagem ao rei Gustav II. A guerra que ele travou foi a origem de nossa
fortuna, assim como a de tantos outros. Cento e cinquenta anos atrás,
deixamos as terras dos príncipes-eleitores alemães em ruínas e seguramos o
Leão do Norte pelo rabo com a maior força possível. Envoltos em sangue e
honra, fomos feitos condes, e nossos cofres incharam com o peso do ouro
saqueado. Construímos o Canto do Pássaro em nossas antigas propriedades,
derrubamos a floresta e aramos as terras. Meu pai foi o último de uma longa
sequência de Gustavs Adolf Balk, pais e filhos.
— Eu me lembro do seu pai de quando era criança. Ele era parte do
conselho até o rei Gustav se atribuir poderes onipotentes. Um grande homem.
Mais uma vez, Johannes Balk encara Winge nos olhos, sua expressão é
inescrutável.
— Dizem que os grandes homens são criados pelos desafios que superam.
Ninguém pode negar que meu pai teve muitos. Houve cinco gerações de Balks
entre ele e os campos de batalha onde nossos antepassados conquistaram
fortuna. Cada uma delas tirou dos cofres sem pôr de volta sequer um xelim.
Meu pai só herdou dívidas. Logo se deu conta de que um berço nobre não
adianta muito sem capital, mas ainda assim se dedicou a devolver a Casa de
Balk ao seu devido lugar. Passou muitos anos solteiro. Nós nunca fomos uma
família bonita, mas, quando meu pai nasceu, parecia que todos os traços que
vinham nos amaldiçoando tinham se unido. Seus olhos saltados e seu nariz de
batata compensavam a falta de queixo, e ele era magro e alto, com têmporas
encovadas e cabelos ralos. Precisou procurar muito até encontrar uma noiva.
Foi um casamento de conveniência. Não muito longe do Canto do Pássaro,
existem extensões de terra muito vastas, e antes de eu nascer elas pertenciam à
Casa de Vide. Na época, os Vide estavam à beira da extinção. Lukas, o
patriarca, tinha apenas uma filha, e ele e a esposa já estavam numa idade
avançada demais para gerar um herdeiro. A família não tinha outros ramos. A
fortuna estava intacta. O que nós Balk tínhamos esbanjado, nossos vizinhos
tinham cultivado. Certa noite, meu pai pegou o cavalo e foi atrás de Lukas
Vide para pedir a mão de sua filha. Foi um encontro turbulento.
— Por quê?
— O nome da filha, Sr. Winge, era Maria Vide. Por estas bandas, ela era
conhecida como Virgem Maria. Era retardada. Mais de três décadas antes,
tinha nascido pelos pés. Foi um parto difícil. Um médico salvou sua vida, mas
Maria nunca conquistou o pleno gozo de suas faculdades mentais. Precisava
que lhe dessem comida, vivia deitada na cama. Passava os dias olhando
fixamente para coisas que ninguém via e, se algo acontecia por trás de seus
olhos baços, ela jamais transparecia. Quando meu pai pediu a mão dela em
casamento, Lukas Vide não pôde acreditar no que estava escutando. Ficou uma
fera e quis expulsar o visitante de casa. Gustav Adolf fincou pé e defendeu os
méritos racionais do pedido. Com aquele casamento, uma pura formalidade,
ele herdaria as terras dos Vide e as seguiria administrando como eles próprios
sempre tinham feito, nem que fosse apenas por mais uma geração, o suficiente
para prometer um futuro aos camponeses que eles sustentavam. Isso impediria
que a propriedade voltasse às mãos do rei apenas para ser vendida a
desconhecidos, gerando joias e badulaques para as amantes da corte. Gustav
Adolf jurou dispensar a Maria os mesmos cuidados que seus pais lhe
dispensavam, agora que suas vidas estavam chegando perto do fim. Depois de
algum tempo, Lukas Vide capitulou diante da lógica da proposta de meu pai.
Apertaram as mãos, e a inerte Virgem Maria foi carregada até a igreja, onde se
casou sem dizer uma só palavra. Apenas os membros mais próximos da família
compareceram. O dote foi grandioso, com a promessa de mais assim que Lukas
Vide falecesse. Assim, Gustav Adolf Balk conseguiu salvar a casa de seus
antepassados. Mandou pintar um retrato de minha mãe não como ela era, mas
como deveria ter sido, numa cena pastoral com o Canto do Pássaro ao fundo.
Uma zombaria...
Johannes Balk faz uma pausa. Seu discurso vai se tornando mais fluente à
medida em que fala, e a gagueira pontual torna-se menos pronunciada.
— Como o senhor pode imaginar, houve um escândalo quando nem todas
as mantas disponíveis no Canto do Pássaro puderam mais esconder a barriga
da Virgem Maria. No acordo com Lukas Vide, ficara subentendido que o
casamento jamais seria consumado. E agora ali estavam eles, obrigados a
mandar buscar parteiras e médicos em Sala. Desse modo vim a este mundo, a
prova de que Gustav Adolf Balk tinha entrado no quarto da sua esposa
semimorta e violado seu corpo imóvel. Dizem que Lukas Vide teve um ataque
ao saber da notícia. Gustav Adolf foi visitar o sogro acamado e, com seu
discurso persuasivo, reconfortou-o dizendo que o futuro de suas propriedades
conjugadas estava agora garantido; que o ocorrido devia ser recebido como
uma boa notícia. Afinal, Vide não podia desejar que o neto morresse. O velho
ainda viveu mais uns poucos anos, isolado e entristecido, e os dois nunca mais
tornaram a se falar. Depois da morte de Lukas, sua propriedade foi combinada
com a nossa sob o nome Canto do Pássaro. Tudo que Gustav Adolf queria se
tornou realidade. Graças e ele, eu existia e poderia então crescer em meio à
fartura.
Sob o trenó, o metal arranha o gelo num sussurro contínuo, tão monótono
quanto a voz do próprio Balk. O ângulo da luz está falhando e vai escurecendo
de um amarelo-claro até o vermelho mais profundo.
— Quem quiser criar um monstro, Sr. Winge, fará bem de ensiná-lo a odiar
desde a mais tenra idade. Meu pai me batia com frequência. Como o grande
homem que era, exercia seu poder sobre todos à sua volta, inclusive o próprio
filho. Quando cresci um pouco mais, aprendi a distinguir entre os diversos
motivos para as surras. Muitas vezes era por causa dele mesmo, para descarregar
o próprio mau humor com algum revés. Mas ele também me batia quando
parecia estar de bom humor, e passei a entender que ele devia achar que era
assim que se tornava uma criança boa e obediente. Devia ter lembranças de
uma infância em que ele tampouco conseguia se sentar numa cadeira sem
começar a chorar de dor, e de algum modo devia creditar seus sucessos tardios
a essa criação. Muitas vezes fazia perguntas só para me testar e, com medo de
dar a resposta errada, eu tropeçava nas palavras. Isso o irritava ainda mais e me
tornava mais hesitante ainda. E como o senhor pode ouvir, nunca mais me
livrei dessa limitação. Um monstro, criado por um monstro. Acho
reconfortante o fato de eu mesmo nunca ter colocado nenhuma criança neste
mundo. Nessa longa linhagem de vilões que certamente remonta ao início dos
tempos, eu serei o último, e, ainda que isso só venha a ser uma nota de rodapé
no meu epitáfio, deve ser considerado uma bênção.
Balk faz uma breve interrupção e meneia a cabeça para si mesmo.
— Ele fazia outras coisas comigo também. Quando tinha bebido demais e o
silêncio da casa devia parecer implorar pelas lágrimas de uma criança.
Winge não consegue ver se alguma coisa muda no rosto de Balk ou se são
apenas as sombras das árvores à margem da estrada lhe pregando peças.
— Eu me vingava como se vingam as crianças, em todos aqueles fracos
demais para se defenderem de mim. Os sapos que brincavam no lago. Cães,
galinhas. Os bichos aprenderam a temer minha ira como eu havia aprendido a
temer a de meu pai.
O sol logo desaparece. Winge sente o frio se intensificar. Mais uma noite de
inverno está a caminho. Na Estocolmo da qual se aproximam mais a cada
minuto, ela cobrará seu tributo de vidas de mendigos, forçará Dieter Schwalbe
e seus colegas a vãs tentativas de quebrar o chão gelado até desistirem e
empilharem os mortos para esperar a primavera.
Balk limpa os flocos de neve dos ombros e ajeita a pele nos joelhos.
— Ainda falta um pouco. Deixe-me chegar ao coração da minha história.
51

O MENINO CRESCE tão sozinho que essa palavra perde qualquer significado. Há
pessoas constantemente à sua volta, mas ele é feito de outro barro, o último
numa longa série de nobres, e, como seu pai muitas vezes está fora em
Estocolmo, é o único da sua espécie. Superior. Quando segue o som das risadas
até as crianças brincando juntas na ala dos criados, elas rapidamente se calam.
É recebido com olhares baixos, e as crianças são rapidamente enxotadas para
cumprir suas tarefas enquanto os pais balbuciam pedidos de desculpa. Embora
não demonstrem, ele pode sentir a hostilidade das crianças. Acostuma-se aos
cômodos vazios.
Uma sequência regular de professores particulares lhe ensina tudo que ele
precisa saber para um futuro em relação ao qual é mantido na ignorância, e a
instrução nunca é ministrada com afeto de qualquer tipo. Os professores batem
nele como o pai costumava bater, seguindo instruções quanto à natureza
formadora de caráter das punições corporais. O Canto do Pássaro é um lugar
soturno, e poucos parecem tolerar o garoto por mais de um ano.
Absolutamente todos acham que ele não passa de um mal necessário para
ganhar algum dinheiro e então ir para outro lugar. Com o tempo, o menino
acaba com todos os sapos do lago, e os animaizinhos aprendem a temer o
barulho dos seus passos.
Aos poucos, ele começa a tomar consciência da mãe. O Canto do Pássaro
não é grande o suficiente para esconder seus segredos indefinidamente. Existe
um piso e um cômodo aos quais o acesso lhe é negado, e é para lá que são
levadas tigelas de mingau que retornam vazias. Eles a mantêm ali, tão morta
para o mundo quanto no primeiro dia em que seu pai a trouxera para aquele
lugar. Ele começa a investigar. Dentro de um armário há um molho de chaves
pendurado num prego, enferrujado e esquecido, coberto de teias de aranha. À
noite, ele experimenta todas elas, lubrificadas com gordura da despensa,
assustado com cada ruído que a fechadura emite em protesto. Após várias
tentativas, encontra uma que serve.
Sob um toldo branco ele a vê deitada, completamente imóvel entre os
lençóis. Ele atravessa o cômodo lentamente para as tábuas do piso não
rangerem e chega perto o suficiente para ver seu rosto pela primeira vez. É
parecido com o seu. Pousa uma das mãos sobre a coberta e sente o calor
daquele corpo inteiramente imóvel. Quando entra diretamente no campo de
visão dela, percebe que os olhos estão vazios. Ele se deita ao seu lado, aninha-se
junto dela e se sente reconfortado por sua presença. Passa a ir lá todas as noites.
Aos poucos uma mudança começa a ocorrer nela. Se antes ficava deitada
sem se mexer como se ele não estivesse ali, agora começa a se movimentar.
Quando o menino a encara nos olhos, ela reage com um lampejo de
reconhecimento. Faz menção de erguer a mão até seu rosto e, à medida que as
noites passam, vai chegando mais perto. Em breve o rosto dele sentirá a ternura
de um toque materno, e a cada amanhecer, quando ele arruma a coberta e vai
embora, pensa que isso vai acontecer na próxima visita.
Demora semanas. E quando ela enfim consegue, sua mão se retorce feito
uma garra, e suas unhas compridas arranham o rosto onde os traços do pai são
tão visíveis quanto os dela. Um sibilo lhe escapa da garganta. Chorando de
choque e de medo, o menino sai correndo do quarto. As lacerações são
profundas. Ele é obrigado a mentir sobre como aquilo aconteceu.

Só volta quando ouve as tábuas do piso rangendo à noite. Entende que ela deve
ter se levantado da cama, como se o encontro houvesse despertado algo bem
em seu âmago. No início, ele fica espiando pelo buraco da fechadura. Quando
finalmente reúne coragem para girar a chave outra vez, percebe que ela não
nota sua presença quando ele se mantém à distância. Então ele passa as noites
sentado no chão, de costas para a parede. Vai embora quando o dia começa a
raiar, uma meia hora antes de os criados — um velho casal que veio junto com
ela da casa de sua infância — a conduzirem de volta para a cama e tornarem a
pôr os lençóis no lugar. Quando chega a meia-noite, ela recomeça.
Leva quase um ano até conseguir andar bem o suficiente para chegar à
janela antes do amanhecer. Uma vez lá, executa o mesmo ritual, noite após
noite. Bem devagar, ergue as mãos na direção dos mosquitos-gigantes que
quicam na vidraça numa tentativa vã de conquistar uma liberdade que podem
ver, mas não alcançar. Sua lentidão e paciência fazem dela uma caçadora
formidável. Ela captura os insetos um de cada vez dentro da mão em concha, e
segura cada corpinho diminuto entre o polegar e o indicador. Aproxima-os do
rosto. Então, pacientemente, começa a arrancar as asas, em seguida as patas,
tomando cuidado para não prejudicar a vida que ainda treme no tronco fino.
O menino vê seus lábios se moverem e se dá conta de que ela está sussurrando
para os insetos enquanto os mutila. Precisa se atrever a chegar mais perto para
ouvir que ela está dizendo o nome de seu pai. Para ela, aquela é a única
vingança que resta. Um misto de emoções intensas toma conta dele. Na noite
seguinte ele não volta e a deixa agir sozinha.

Uma febre tira a vida de sua mãe mais tarde naquele inverno. Os mosquitos-
gigantes mutilados continuam dispostos em fileiras no peitoril da janela. O
último continua a se mover mesmo dias depois de Maria Vide já estar debaixo
da terra. O menino não lamenta sua morte.
Na primavera, quando o gelo começa a derreter, o calcanhar da bota de
Gustav Adolf Balk escorrega nas pedras do calçamento de uma rua de
Estocolmo, e ele quebra o fêmur. O médico do rei em pessoa cuida do
ferimento e realinha o osso, mas todos sabem que o ar da primavera traz
enfermidades. A ferida não é grande, mas se putrefaz e começa a verter pus.
Seu pai fica confinado ao leito à medida que a gangrena vai cavando mais
fundo, chegando à medula do osso, e os dedos dos pés primeiro ficam
vermelhos, depois esbranquiçados e, por fim, pretos. Em março, o menino é
chamado à cidade pela primeira vez para comparecer ao leito de morte do pai.
Gustav Adolf está doente demais para ser transportado. A dor na perna, que
agora já não pode mais ser amputada, é grande demais para suportar uma
viagem de carroça, e a putrefação começou a se espalhar pela pelve e pela
virilha através de veias escurecidas.
O menino é conduzido bruscamente até o quarto de dormir, onde cestos de
pot-pourri já não conseguem mais disfarçar o fedor da carne podre. Uma
cadeira foi trazida para que ele possa ficar de vigília junto à cabeceira do pai.
Por muito tempo fica ali sentado, calado e atônito diante da pilha de
cobertores e mantas que estremecem a cada respiração rascante. O rosto do pai
está pálido e banhado de suor, seu olhar é aflito e confuso. Eles são deixados a
sós com frequência, uma vez que os religiosos têm outros afazeres. O menino
leva muito tempo para reunir coragem para se levantar e erguer a mão do pai.
Não nota qualquer resquício de força nela, então consegue agitá-la para cima e
colocá-la sobre as cobertas sem que o pai consiga fazer mais do que emitir
débeis ganidos. Afasta as cobertas para expor o rosto de Gustav Adolf Balk,
grande, vermelho e aterrorizado, então põe a pequena mão branca por cima da
boca dele e fecha o nariz com o polegar e o indicador. Fica estarrecido ao ver
como é fácil impedir a passagem do ar. Dentes impotentes tentam morder sua
mão de um ângulo impossível. O corpo de Gustav Adolf estremece sob as
cobertas, ele fica azul, e seus olhos parecem que vão explodir para fora das
órbitas. O menino repete a operação várias vezes, mas não tem coragem de
manter a mão no lugar por tempo suficiente. Em vez disso, sempre solta, e
deixa o pai voltar a respirar numa inalação longa e molhada de saliva. Gustav
Adolf Balk morre sozinho durante a noite. A criada de quarto que passa o
braço macio em volta dos ombros franzinos do garoto confunde a risadinha
com soluços, e com um lenço enxuga suas lágrimas de felicidade.

Seu pai jaz sob uma lápide na mesma igreja onde seus ancestrais estão
enterrados, no condado natal dos Balks, não muito longe do Canto do Pássaro,
e onde suas armas enfeitam as paredes num lugar de honra em frente ao coro.
Certa noite, no início do verão, o menino fica acordado até a casa adormecer,
atravessa o pátio e segue até depois das tílias que margeiam a estrada. Se a
escuridão do seu quarto é uma fonte de pavor, aquela é de outra natureza, uma
amiga que tranquiliza e protege.
Algum tempo depois ele chega à igreja e encontra as portas da frente
destrancadas e o templo totalmente deserto. Vai tateando pelo piso de pedra
até as pontas de seus dedos detectarem o nome do pai. Abre os botões das
calças e as deixa cair enquanto se agacha. Na manhã seguinte, o chantre vai
encontrar o pequeno monte de excrementos rodeado de moscas, e a imundície
espalhada bem por cima das letras que formam o nome Gustav Adolf Balk.
Não diz nada, limpa o chão, e passa o resto de seus dias acreditando que o
diabo em pessoa atravessou aquela região adormecida, decerto a caminho de
assuntos mais urgentes na cidade grande ao sul dali.
Para o menino, a sensação de triunfo desaparece rápido. Ele dorme mal,
atormentado por um pesadelo que reproduz os passos do pai se aproximando
pelo corredor até a porta do quarto. Com o tempo, também toma consciência
de algo que jamais teria sido capaz de adivinhar. Que existem coisas piores do
que apanhar, e que a solidão é uma delas.
52

É SEGUNDA-FEIRA À tarde, e Mickel Cardell envolve com as mãos a cerâmica


branca de uma xícara para absorver o calor. Está vendo Winge pela primeira
vez desde que saltou do trenó vindo do Canto do Pássaro na Praça Norte e
atravessou cambaleando a ponte na direção de casa para se lavar e tentar
dormir um pouco, em vão.
— Então, conseguiu arrancar alguma coisa do sujeito no caminho?
Sério, Winge meneia a cabeça.
— Consegui. Ele está dormindo agora. Não tenho certeza de quando vai ser
o julgamento. Até lá, deixei o sujeito sob custódia da Prisão Norte em
Kastenhof, por enquanto sob anonimato. Ainda não sabemos quando Ullholm
vai dar as caras, e prefiro manter tudo isso na maior discrição possível até ter
concluído meu interrogatório e o julgamento poder começar. Conheço bem o
pessoal da prisão, então consigo ir e vir sem ser identificado.
Horas se passaram desde que eles retornaram à cidade e seguiram seus
caminhos distintos na Casa de Alfândega. Mesmo assim, Cardell ainda tem a
sensação de que o vento lhe arranha as faces.
— Não creia nem por um segundo que eu não seja grato por ter sido
poupado de levar um tiro na barriga e ser dado de comer para um cachorro,
mas por que ele cedeu tão facilmente? Depois de tudo pelo qual passamos,
parece quase uma descortesia.
— Espero conseguir uma resposta para essa pergunta, Jean Michael. E para
outras também.
— O que vai fazer agora?
— Vou a Kastenhof falar com Balk. Encontro você aqui amanhã no mesmo
horário.

Cardell termina sua bebida sozinho, com uma careta de desagrado. Ouviu dizer
que o café tira o cansaço, que mantém a pessoa acordada, então decidiu
suportar o sabor para o caso de ser mesmo verdade. Abre caminho pela praça às
cotoveladas entre a multidão de entusiastas do café. Não é sempre que
Estocolmo provoca em Mickel Cardell algo além de irritação, mas dessa vez ele
se sente grato por rever a cidade. Recordar o barracão no Canto do Pássaro lhe
traz o sussurro de uma morte cujo horror ele nunca antes havia imaginado.
Uma morte feita sob medida, contrastando fortemente com o caos aleatório da
guerra, que ataca em qualquer direção, sem distinções. Nunca sentiu menos
vontade de dormir na vida, e fica feliz que o peso pendurado em seu flanco lhe
sirva de distração. É o mealheiro do qual ele ajudou Carsten Vikare a se
desfazer. Não contou as moedas, mas a julgar pelo peso total deve conter cada
tostão roubado de Kristofer Blix, com juros. Cardell raramente teve uma
quantia dessas em mãos, e mais raramente ainda sentiu tanto remorso em
relação a isso. Poucas vezes deixou de pensar que todo tesouro pertence a quem
o encontra, mas esta soma é diferente. As moedas pertencem a outra pessoa.
O ar fresco arranha sua garganta e nariz, e, embora sinta o pulmão ardendo
toda vez que inspira, é um lembrete da vida que ele recentemente pensou ter
perdido. Ele tem uma missão, e a cada passo na neve sente como esse novo
objetivo aumenta a distância entre ele, aquela besta chamada Magnus, a
carabina de Johannes Balk e os horrores do Canto do Pássaro. O responsável
por lidar com Balk agora é Winge, de modo que seus próprios pensamentos se
voltam para os escritos de Kristofer Blix. Isak Blom lhe disse que uma moça
fora deixá-los na porta da Casa Indebetou, endereçados a Cecil Winge, e
Carsten Vikare mencionara que Blix havia deixado uma jovem viúva.
Cardell trocou as calças, o tecido endurecido onde a urina havia molhado,
pelo único outro par que possuía, aquele do uniforme que recebeu ao entrar
para o grupo de sentinelas noturnos e que não gostava de usar. Nenhum dos
outros inquilinos tinha água quente para compartilhar, e ele tivera de se
contentar com esfregar o corpo com neve no pátio lá fora. Algumas crianças
aproveitaram sua posição vulnerável para bombardeá-lo com bolas de neve, e
sua explosão de xingamentos fez as persianas do prédio chacoalharem nas
dobradiças. Mas uma vez em movimento, o calor começa a retornar a seu
corpo, e sua disposição está seguindo o mesmo caminho. Ele percorre a rua
Oeste e vira, indo direto morro acima até chegar à catedral de Estocolmo.
Dentro do edifício imenso está quase tão frio quanto lá fora. Dizem que o
pastor está em casa, resfriado, mas, por insistência de Cardell, após um tempo
surge um capelão morrendo de frio. Cardell consegue convencê-lo a consultar
os registros da igreja. Sim, há uma entrada em nome de Johan Kristofer Blix,
uma certidão de matrimônio recente, e em seguida uma cruz junto ao seu
nome, assinalando a sua morte. Após uma moeda ser depositada na mão
trêmula do religioso, Cardell consegue fazer o capelão se recordar um pouco
mais daquele caso notável.
O rapaz sucumbiu a um acidente pouco depois de o casal ter ficado noivo.
A noiva já estava grávida. O capelão revira os olhos, não sem equanimidade.
Crianças nascerem tão pouco tempo após o casamento a ponto de revelar o
entusiasmo juvenil do casal é mais a regra do que a exceção. Mas ele e os
colegas religiosos ficaram com pena da moça e declararam que o casamento na
verdade ocorreu antes da morte de Blix. Assim, a criança ainda por nascer será
poupada do rótulo de bastarda e, em vez de ser chamada de vadia, a mãe
ganhará status de viúva. O capelão meneia a cabeça para si mesmo. Sabe que
eles violaram o sacramento, mas não vê em que o Senhor poderia se opor a
isso.
— E o nome da viúva?
— Lovisa Ulrika Blix, nome de solteira Tulip. O pai dela tem um bar
chamado Patife.
— O senhor é particularmente bem informado para um religioso.
O capelão sorri e revira os olhos outra vez.
— Esta é uma paróquia sedenta, e depois da comunhão o cálice às vezes está
tão seco que nós clérigos somos obrigados a ir buscar o sacramento em outro
lugar.

A caminhada é curtíssima pelo mesmo caminho pelo qual chegou. O Patife é


um estabelecimento modesto, onde as mesas consistem em fileiras de barris
tombados de lado. Um homem mais velho e de olhos lacrimejantes vem
recebê-lo e pousa as canecas de bebida que limpava com um pano úmido.
— Peço desculpas, mas ainda não abrimos e estamos sem comida quente. Se
o senhor estiver procurando por uma refeição terá de se contentar com frios.
— Não faz mal, não vim atrás de provisões. Vim encontrar Lovisa Ulrika.
O senhor por acaso não saberia onde ela está, saberia?
O dono o observa com cautela de cima a baixo.
— Lovisa é minha filha.
— E ela está em casa?
Karl Tulip faz que não com a cabeça.
— Infelizmente não. Ela é uma moça trabalhadora, de um tipo que é difícil
encontrar entre os mais jovens. Mesmo assim me dói ver o quanto meu
negócio toma do seu tempo. Se ela não estiver no poço, deve estar no mercado,
e se o senhor não quiser esperar por muito tempo, sugiro que retorne em outra
ocasião.
Cardell não sabe o que dizer e bate com as botas no chão para se livrar da
neve.
— O senhor gostaria que eu transmitisse algum recado a ela?
Cardell hesita, sopesando o mealheiro na mão dentro do casaco.
— Não. É um assunto pessoal. Voltarei outra hora.
— Pois não. Desejo que tenha mais sorte da próxima vez.
53

A PRIMAVERA FOI quente, assim como o final do verão. A neve agora já está
grossa, e quem alega ler padrões nas juntas doloridas ou em outros presságios
quaisquer, há muito tempo vem dizendo que aquele será o pior inverno da
história.
Anna Stina Knapp acredita. As noites já começaram a ceifar seu quinhão
dos desabrigados por embriaguez ou pobreza, e com o chão congelado é
impossível enterrá-los até o tempo melhorar. Cadáveres rígidos jazem
empilhados em barracões de cemitérios e, quando estes depósitos lotam, outros
cadáveres aguardam do lado de fora, envoltos em mortalhas. Na volta do
mercado de peixe, Anna Stina viu que em frente à igreja de Jacob havia um
monte de neve, do qual despontavam mãos e pés congelados. A neve fora
removida do rosto negro-azulado do cadáver, e alguns meninos de rua
espirituosos cravaram um cachimbo de barro quebrado em sua boca, assinando
sua obra com mijo.
Durante o dia, Anna Stina atende pelo nome de Lovisa Tulip, e seu trabalho
no Patife e a serviço dele ocupa todo seu tempo. Seu dia começa cedo, e ela
aprende a se vestir depressa e então cumprimentar os homens que descarregam
o conteúdo da latrina do bar em sua carroça, para levá-lo embora. É uma das
muitas tarefas cuja responsabilidade ela assumiu depois de perceber que
estavam tirando vantagem da desatenção do Florista, exigindo pagamento
semanal sem realizar serviço algum em troca. Ela carrega água enquanto as
bombas do poço da praça ainda não congelaram. Lava pratos e canecas
esfregando-os com neve, vai buscar lenha nas balsas de madeira do cais, e toda
manhã e todo final de dia varre o chão e o esfrega de acordo com a necessidade.
Esses trabalhos aliviam a dor na consciência que sente toda vez que encara as
íris azul-esverdeadas de Karl Tulip. Toda vez que vê surgir um sorriso naquele
rosto diante da presença dela, e toda vez que pousa afetuosamente a mão em
seu ventre cada vez mais volumoso. Ela sabe que ele já a vê como sua filha e
deseja também poder vê-lo como seu pai.
Não é mais assombrada pelo Galo Vermelho em seus sonhos, mas mesmo
assim o futuro não a deixa tranquila. Quando acorda, seu cobertor está
molhado de suor, embora o quarto esteja gelado e o vento sopre pelas frestas. É
como se a criança tivesse acendido uma brasa dentro dela, mantendo-a sempre
aquecida. A cada dia que passa, Lovisa fica maior. Quando não consegue
dormir, acende uma vela e fica analisando o próprio reflexo no vidro rugoso da
janela que dá para a rua. Imagina que seu rosto esteja ficando mais redondo,
tanto por toda a comida que vem ingerindo, quanto por conta da vida que
cresce dentro dela. A moça faminta da casa de correção agora já não é tão fácil
de reconhecer. Mas essa transformação não basta. Nem o que Kristofer Blix —
cujo nome ela agora carrega — fez por ela será o bastante.
Estocolmo é terrivelmente pequena. Todo mundo se aglomera nas mesmas
ruas, nos mesmos lugares. Quando Anna Stina sai do Patife, amarra um lenço
sobre os cabelos ruivos fazendo com que ele caia para a frente, encobrindo a
testa. Mantém-se ao norte da Eclusa, longe do território onde Tyst e Fischer
caçam pecadores, mas também há sentinelas na Cidade-entre-as-Pontes, e toda
vez que ela vê seus casacos azuis e cintos brancos seu coração para de bater por
um segundo.
Em seus sonhos, a mesma cena se repete inúmeras vezes: ela está ocupada
com alguma coisa na despensa atrás do salão do Patife e, ao atravessar a soleira,
cruza olhares com ele e larga o que estava segurando sem escutar quando bate
no chão. Petter Pettersson está ali em pé, recostado num barril, com um sorriso
de sarcasmo no rosto. Ele se curva e a chama pelo seu nome de verdade. Ela
fica congelada onde está até ele percorrer a distância que os separa e segurá-la
pela mão.
“Creio que a senhorita me deve uma dança.”
Os clientes do Patife, que ela está começando a considerar como amigos,
apontam e cochicham, e Karl Tulip tem uma crise de soluços ao perceber o
tamanho da farsa que ela encena. Petter Pettersson amarra uma corda em volta
do seu pulso como se fosse um sinal de afeto e a conduz pela rua até uma
carroça, pronto para levá-la de volta para a Cicatriz, onde é o seu lugar e onde
Mestre Erik aguarda. Lá, ela será forçada a dançar voltas suficientes ao redor do
pátio para apagar quem ela é, até que sobrem apenas fragmentos de sua
humanidade. O bebê em seu ventre se perderá. Na esperança de salvar a
própria vida, seu corpo irá repelir todos os excessos, abandonando aquela vida
ainda não formada como uma mancha vermelha no cascalho junto ao poço,
um sinal que ela terá de ver inúmeras vezes à medida que o terror e a loucura a
forem dominando.

Já é de tarde quando Anna Stina Knapp volta ao Patife com as compras


adquiridas com o dinheiro do Florista: um par de coelhos recém-caçados com
suas pelagens invernais; alguns peixes; pão. O sol já tornou a mergulhar de
volta abaixo do horizonte. Nas ruas, o vento e a neve fazem os poucos que
ainda estão fora de casa andarem depressa, sempre rente às paredes dos prédios,
indo em direção a algum abrigo. Karl Tulip está preparando um vinho com
especiarias no fogão e separou uma caneca para ela. Dá um abraço nela e
esfrega seus ombros com as mãos grandalhonas para esquentá-la.
— Um homem esteve aqui perguntando por você.
— Ele disse o que queria?
— Não. Disse que iria voltar.
— Como ele era?
— Um sujeito grande com um rosto horrendo. Soa familiar?
Anna Stina balança a cabeça diante do olhar levemente intrigado dele.
— Ah, e ele estava de uniforme. De sentinela.
A palavra é como um tapa, e ela precisa virar as costas para que Karl não
veja o sangue lhe acorrer às faces.

Ela não está segura. Não possui nada. Seu novo nome e o mundo que acaba de
lhe ser dado dependem da boa vontade dos outros. Os sentinelas vão voltar, e
eles sabem que o seu rosto é o de Anna Stina Knapp, e não Lovisa Ulrika Blix.
Implacável, a verdade atropelará a sua mentira e o pesadelo se tornará
realidade. O bebê do qual ela no início queria apenas se livrar é agora uma
fornalha de ternura dentro dela e, se a encontrarem, ele estará condenado antes
mesmo de sorver sua primeira inspiração. Quando a noite chega, ela fica
sentada em seu quarto, analisando o próprio reflexo na janela e amaldiçoando
seus traços pálidos. Passa o resto da noite com os braços ao redor dos ombros
esbeltos, se balançando para a frente e para trás num banquinho que range,
perdida em pensamentos sobre a melhor maneira de se livrar do rosto que Maja
Knapp lhe deu.
54

CECIL WINGE APERTA mais o lenço ao redor do pescoço a fim de proteger da


neve a nesga de pele acima do casaco. Deixa a Cidade-entre-as-Pontes pela Real
Casa da Moeda e pega um caminho pelas toras congeladas da ponte, junto ao
depósito de madeira. Então atravessa a Ilhota do Espírito Santo fugindo do
vento pelas estrebarias do rei e pela casa de Per Brah, mas volta a enfrentar o
vento perto da Ponte do Matadouro. À sua direita, os pilares de pedra da Ponte
Norte incompleta se erguem das águas agitadas do lago, cada qual rodeado por
uma coleira feita de gelo. As extremidades inacabadas da estrutura tateiam em
vão à procura do apoio dos arcos que serviriam para uni-las.
O prédio da corte inferior, ainda chamado de Kastenhof em homenagem ao
cervejeiro que administrava o bar no subsolo mais de cem anos antes, fica na
Praça Norte. Cinco degraus o conduzem até a entrada, acima da qual o
emblema real foi esculpido em um arenito resplandecente. Winge é
reconhecido na porta. Dirige-se ao guarda de plantão pelo nome e é levado até
as celas, um corredor com fileiras de portas que dão para celas fechadas, todas
iluminadas por fendas estreitas à guisa de janelas. O recinto é espartano: uma
cama cuja altura mal consegue ocultar o penico; uma cômoda; um banquinho.
Johannes Balk está sentado na penumbra da cela. Tem o olhar perdido
quando a chegada de Winge o desperta das próprias reflexões. Atrás deles, a
porta é fechada com o trinco, e o ruído das botas do guarda no piso de pedra
diminui à medida que os deixa a sós.
Winge faz um aceno de cabeça para Balk num cumprimento.
— Bom dia. Estão trazendo tudo que precisa? Comida, cobertas, tabaco?
— Eu não preciso de nada. Nunca fumei. O peixe e a carne de porco
bastam. O frio não me incomoda mais.
Algo em Balk faz Winge pensar numa aranha, imóvel e paciente em sua
teia, perigosamente passiva. Sobre a cômoda há um prato com os restos de uma
refeição: mingau, e o que aparenta ser peixe cozido. Balk esfrega os olhos
enquanto Winge se senta no banquinho.
— Sabia que eu sou vários anos mais novo do que você, Sr. Winge, embora
pareça que tenhamos nascido no mesmo ano? Talvez a vida imprima em nossos
rostos as experiências pelas quais passamos, e talvez tenham sido meus atos que
me fizeram envelhecer precocemente. Onde estávamos? Ah, no meio do
segundo ato. Eu me preparava para sair do país.
A água na jarra junto à cama já formou uma camada de gelo na superfície.
Balk usa o indicador para rompê-la e se serve uma caneca. Limpa a garganta
com um pigarro e bebe, detendo-se um instante como para encontrar o lugar
onde interrompeu a história, então a retoma.

Com o tempo o menino vira um rapaz, mas, sem pai e sem mãe, está fadado
sob muitos aspectos a permanecer criança. Enquanto não tem idade suficiente,
o Canto do Pássaro é administrado por um conselho, um grupo de cavalheiros
sisudos de Estocolmo que costumavam ajudar Gustav Adolf Balk nos negócios,
homens que o rapaz conhece apenas pelas cartas que recebe, escritas em tom
tão formal que seu contexto não é fácil de compreender. Duas vezes por ano,
um representante é despachado para o Canto do Pássaro para supervisionar a
administração da propriedade e se certificar de que a instrução do jovem está
prosseguindo conforme os desejos de seu pai.
No seu décimo sétimo aniversário, ele recebe um comunicado com
informações inesperadas: segundo os termos do testamento deixado por Gustav
Adolf Balk, um fundo foi separado para uma turnê educativa pelo continente.
Uma rota específica foi definida, com endereços de banqueiros preparados para
lhe transmitir recursos nas moedas adequadas em troca das notas certificadas
por notários incluídas nas instruções. A viagem começa por mar, de Estocolmo
até Reval, então segue para o sul rumo a Paris, Florença e Roma. Pela segunda
vez ele deixa o Canto do Pássaro, a construção escura desaparecendo atrás do
final das tílias.

É em Paris que se desvia de seu itinerário. Já leu sobre a cidade, cenário de


romances e histórias, lar de pensadores e visionários. Sempre quis vê-la com os
próprios olhos, e constata que a arte não fez jus à realidade. Existe algo no ar
de Paris. Em todos os cafés e restaurantes, as pessoas debatem condições e
direitos da humanidade. Todos são unânimes em condenar a escravidão.
Outros vão além e comparam a submissão do escravo com o destino das
pessoas sob seu monarca. Por baixo das belas ideias o rapaz vislumbra um
sentimento que conhece melhor do que ninguém: medo.
Guiado por uma espécie de sexto sentido, já se sente cercado pela sede de
sangue que vem impiedosamente no rastro do medo, e quando o dia da partida
se aproxima constata que não quer ir embora. Algo está por acontecer e, seja lá
o que for, ele quer testemunhar pessoalmente. Nos primeiros meses, passa
todos os minutos acordado, andando pelas ruas e praças da cidade. Ouve os
discursos num idioma aprendido graças aos livros e às surras dos professores
particulares, mas rapidamente passa a compreendê-lo cada vez melhor. Com
alguns despachos para casa, consegue obter crédito com banqueiros franceses e
aluga um quarto no Quartier Latin.
Por toda parte há vida e movimento. A rebelião fervilha na cidade,
fomentada pela safra ruim do ano anterior. No início de maio há uma
convocação dos Estados Gerais, a primeira em quase duzentos anos. A
Assembleia Nacional é proclamada, a Bastilha é invadida, e quando chega o
verão de 1789, Paris é uma cidade autogovernada pelo conselho municipal e
pela recém-instituída Guarda Nacional. No restante do país, os camponeses se
livram do jugo da opressão. Senhores feudais são forçados a fugir ou abrir mão
dos antigos direitos. Ele se vê no meio de tudo isso, um observador passivo,
mas entusiasmado. Em agosto, a nova Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão é publicada pela Assembleia Nacional. A notícia se espalha pelas
praças e pontos de encontro da cidade. Ele vê o rei Luís XVI em pessoa se
dirigir ao povo da sacada do Palácio das Tulherias, não mais um rapaz, mas
mesmo assim imponente, um homem no apogeu da vida. O rei discursa
calorosamente sobre a nova constituição, o símbolo máximo do antigo
aceitando o novo. Nos meses seguintes, a cidade parece ter se estabilizado sob a
nova ordem, mas ele pressente a fragilidade daquilo e aguarda. Fica até o final
do ano. E no ano seguinte.
Johannes Balk sabe que o ódio depende do medo assim como o fogo
depende do combustível, e sente o medo crescer à sua volta. Talvez seja isso,
mais do que tudo, que o faz sentir que Paris é o lar que o Canto do Pássaro
nunca se tornou para ele. Ele ali não é excepcional: todo mundo sente medo;
quase todo mundo está tão cheio de ódio quanto ele — e entre aquelas pessoas
Johannes se sente superior. Os franceses estavam começando a conhecer
emoções que ele vem carregando consigo até onde a sua memória alcança.
Embora a crença no poder do povo cresça em detrimento à monarquia, o
nervosismo se espalha entre os revolucionários. Muitos veem inimigos em cada
sombra, tanto dentro quanto fora dos muros da cidade. Marat, o agitador,
escreve panfletos cáusticos que defendem medidas extremas: um expurgo da
chaga judaica para o bem de muitos. Agora dizem que o fim justificará os
meios.
Pela primeira vez na vida, o rapaz se sente parte de algo que compreende,
cercado por pessoas iguais a ele. Pressente uma morte colossal se aproximando,
algo que as massas não veem e que vem chegando sem pressa. Ele a aguarda
com grande expectativa, ansioso para descobrir que forma ela irá tomar.

Em dezembro de 1791, é acordado por uma confusão na escada. Homens


trajando os uniformes de fabricação caseira da Guarda Nacional com as cores
da nova bandeira derrubam sua porta aos chutes. Alguém o denunciou. Ele
nunca descobre quem foi o informante. Alguém tentando cair nas graças dos
jacobinos? Talvez seu banqueiro, seu senhorio? Como um nobre estrangeiro,
ele é um alvo fácil de suspeita. Dizem que é um espião. É levado para a abadia
de Saint-Germain-des-Près, bem perto de onde mora, onde lhe dizem que será
interrogado.
Nenhum interrogatório jamais acontece. Ele é jogado numa cela na
masmorra da prisão militar, bem nas profundezas do antigo monastério
beneditino. Não há nenhum tipo de janela ou luz. No início, aguarda
pacientemente e prepara sua defesa da melhor maneira que é capaz. Um guarda
lhe traz pão e água, às vezes outras coisas para comer, sem nunca mostrar o
rosto. Uma cumbuca é empurrada por uma abertura no pé da porta, e
ninguém responde a nenhuma pergunta. Ele é deixado ali para apodrecer.
Talvez a hierarquia entre os revolucionários tenha mudado e a ordem da sua
prisão tenha sido esquecida. A cela é um breu completo. Ele não consegue ver a
mão diante do rosto. Com o tempo, passa a não ter certeza se os seus olhos
estão abertos ou fechados, ou quando seu corpo termina e começa a escuridão.
Tudo que pode fazer é ficar sentado no escuro.
Toma consciência do fato de que não está sozinho. Coisas que não podem
existir ali se tornam visíveis. O pai que ele acreditava estar morto vem visitá-lo.
Quando tateia em direção ao catre para dormir, sua mãe — que o vinha
aguardando pacientemente — rasteja até ele e estende a mão para lanhar seu
rosto. Ele se defende revidando na mesma moeda. Assim o tempo vai passando,
sem que ele tenha como mensurá-lo.

É despertado daquele seu estado de vigília sonolenta por sons terríveis que logo
percebe serem vozes humanas alteradas de raiva. Sua porta é aberta de supetão,
e uma luz tão forte entra na cela que ele é obrigado a cobrir o rosto com as
mãos. Punhos aleatórios o agarram e suspendem seu corpo. Ele é carregado até
o pátio em frente à igreja, onde centenas de pessoas estão reunidas. Os sans-
culottes, a turba revolucionária e a Guarda Nacional estão todos ali reunidos, e
os prisioneiros de Saint-Germain são todos arrastados para fora.
Ele vê a grande multidão ondular. Aqui e ali, cabeças se espicham para fora
do tumulto, apenas para tornarem a afundar com um baque até o mesmo nível
das outras. No início não entende o que está vendo; então percebe que todos os
prisioneiros estão sendo pisoteados até a morte. Uma dúzia de homens de cada
vez pisam em cima de uma única vítima, seguram-se nos ombros e cinturas uns
dos outros para se equilibrar, então começam a pular dobrando e esticando os
joelhos. O corpo da vítima não demora a ceder. O peito explode com um
estouro, o crânio é esmigalhado com tanta força que os globos oculares são
projetados pelo calçamento. Debaixo deles resta uma massa ensanguentada,
impossível de identificar como um corpo humano.
Mais e mais pessoas vão entrando no pátio até o pânico se generalizar e os
homens que levaram o rapaz até lá fora serem obrigados a soltá-lo para repelir
os outros. Ele se arrasta em meio à floresta de pernas que se debatem até chegar
a uma cerca. Vê uma brecha entre as tábuas — tão estreita que parece
impossível — e então, para sua surpresa, constata que seu corpo está magro o
suficiente para que consiga atravessar.
É assim que ele recupera a liberdade. Do outro lado, nada mais o separa dos
outros miseráveis que se aglomeram em volta da igreja. Ele vai se limpar no
Sena. Não reconhece o próprio reflexo. Com o tempo, ouve que se espalhou
um boato segundo o qual a quantidade de estrangeiros presa ficou grande o
suficiente para ameaçar a própria Comuna, e a turba enfurecida criou coragem
para resolver a própria a situação. Saint-Germain-des-Près é apenas uma das
muitas prisões em que tais cenas ocorrem.
Durante seu período no cárcere, a morte que ele vinha esperando havia
tanto tempo chegou a Paris. Em suas andanças pela cidade, vê corpos
empilhados mais alto do que os braços erguidos poderiam alcançar. Milhares
foram massacrados. O caos reina. Do outro lado do rio, ele vê homens
embriagados obrigarem uma mulher a subir numa pilha de cadáveres para
dançar e cantar em homenagem à república, e, quando ela se recusa, seu corpo
é traspassado pelas baionetas. É setembro de 1792, e as folhas do outono estão
por toda parte. Alguns dias antes, o rei foi obrigado a fugir das Tulherias
quando o palácio foi invadido, mas então capturado junto com sua família.
Nas ruas as pessoas cantam “Ça ira”, canção que ele conhece bem do primeiro
ano da revolução, mas ela agora tem outra letra. Antes as pessoas cantavam
sobre justiça para os oprimidos. Agora a canção fala em enforcar aristocratas
nos postes públicos. Todos os homens precisam usar no chapéu a roseta
tricolor da revolução, cores que antes supostamente simbolizavam liberdade,
fraternidade e igualdade. Seu caminho para sair de Paris o leva até a praça
octogonal que ele antes conhecia como Place Louis XV, e no meio da qual
agora se ergue um estranho objeto junto ao plinto sobre o qual antes havia uma
estátua equestre do pai do rei. É a primeira guilhotina que ele vê. Como não se
pode esperar que um carrasco dê conta de todas as decapitações exigidas pela
revolução, alguém inventou uma máquina para fazer isso. Ele bate palmas e ri
com tanta vontade que seus lábios ressecados se racham.
Segue a esmo rumo ao norte, descalço. Ninguém o incomoda. Sua
aparência é alarmante, e ele não possui nada de valor. Em Flandres, encontra
alguns conterrâneos suecos a quem convence de sua origem familiar e consegue
pegar algum dinheiro emprestado em troca de um pagamento três vezes
superior. Então entra na Suécia por Rostock, onde consegue comprar uma
passagem de navio para Karlskrona. No final do ano, retorna à sua terra natal
após anos de ausência, embora pareça ter envelhecido bem mais do que isso.

Balk volta para a luz. Seus olhos parecem cegos, como se o seu olhar estivesse
direcionado para as próprias lembranças a fim de resgatar do passado uma
imagem perdida.
— Foi então que conheci Daniel Devall. Eu estava em busca de uma
carona, alguém que me levasse de volta ao Canto do Pássaro, o único lar que
me restava. Encontrei Daniel na hospedaria de beira de estrada onde entrei na
esperança de encontrar um condutor. Tinha comprado uma passagem no
mesmo trenó, e durante a viagem começamos a conversar. O senhor mesmo
sabe como as horas passam lentas e desconfortáveis à medida que os cavalos se
esfalfam para avançar. O senhor nunca o viu em vida, Sr. Winge. Lamento que
os restos que resgatou do Lago da Ucharia não tenham conseguido lhe fazer
justiça. Daniel irradiava uma aura como se a alma brilhasse de dentro para fora,
transformando-o num lampião a iluminar o caminho para os outros. Seus
olhos eram grandes e de um azul límpido, levemente enviesados num rosto de
traços perfeitamente simétricos. Tinha uma centelha no olhar ao mesmo
tempo travessa e inocente, ousada e modesta, como a de um filho preferido
que nenhum pai ou mãe jamais consegue se obrigar a repreender. Tinha os
cabelos dourados compridos quando nos conhecemos, presos num rabo de
cavalo baixo com uma fita de seda mas, com o passar o tempo, muitas vezes os
deixava soltos em volta dos ombros. Ao sorrir, exibia duas fileiras de dentes
brancos como leite. Os de cima eram totalmente retos, e na fileira de baixo
havia um levemente torto, como se o seu criador tivesse tido medo de exagerar
na perfeição. Seu corpo era esbelto e bem-proporcionado, vestido com belas
roupas feitas sob medida para realçar suas formas. Tinha as mãos de um
virtuose, com dedos longos e esguios. Até seu cheiro era bom: um leve toque
de flores do campo numa época em que todos os demais se encharcam de
perfume para disfarçar o fedor.
“As horas passaram simplesmente voando, a ponto de eu desejar que
tivessem durado mais. Daniel era encantador, espirituoso, descontraído e um
conversador estupendo. Sentou-se bem perto de mim e, toda vez que eu lhe
dizia algo que achava divertido, ele gargalhava e punha a mão no meu joelho
como se não pudesse se conter.”
Ele faz uma pausa e se serve mais água.
— O senhor precisa entender, Sr. Winge, que eu nunca tive nenhum amigo.
Minha solidão era muito maior do que isso. Não consigo me lembrar de
ninguém que tenha prestado qualquer atenção em mim ou me feito uma
pergunta por simples curiosidade. Por isso estava tão totalmente despreparado
para Daniel Devall. Eu estava... vulnerável.
Ele bebe a água gelada até o fim.
— Quando chegamos a nosso destino, Devall se ofereceu para ser meu guia
em Estocolmo por um ou dois dias. A viagem tinha me deixado exausto, e eu
precisava descansar. Ele conhecia a cidade que eu só chegara a ver muito de
passagem, e sem a ajuda dele sei que rapidamente eu teria me perdido no
turbilhão da vida agitada. Não vi motivo para recusar sua proposta.
Ele aquiesce para si mesmo.
— Permita-me contar sobre uma das noites em especial, Sr. Winge. Embora
fizesse menos de um ano desde o assassinato do rei num evento exatamente
igual, houve um baile de máscaras. Os homens pareciam sentir prazer nessa
incongruência; não eram do tipo a lamentar a morte do rei Gustav. Estavam
todos mascarados, mas suas roupas deixavam claros seu berço nobre e sua
riqueza. Nem eu nem Daniel Devall pertencíamos a esse circuito, mas depois
que ele conseguiu máscaras para nós dois, ninguém reparou que éramos
estranhos ali, até por conta da quantidade de vinho em circulação. Quando a
noite avançou, os cavalheiros começaram a se dirigir a outros estabelecimentos.
Fomos levados de roldão, e então chegamos a uma casa separada das outras por
águas frequentadas apenas pelas embarcações de carga. Um criado de pele
escura nos recebeu, e logo nos vimos em recintos rebuscados.
“Horrores nos aguardavam lá dentro, Sr. Winge. Eu tinha bebido, e quando
detectei máscaras novas que não tinha visto antes levei um susto ao perceber
como eram parecidas com a vida real. Havia rostos deformados com calombos
volumosos, cabeças retorcidas em formatos esquisitos, fantasias que
transformavam quem as vestia em aleijões e figuras grotescas. E logo percebi, é
claro, que aqueles pobres coitados não estavam de máscara. Aquela era a sua
verdadeira forma, e eles ali estavam para diversão e distração daqueles
cavalheiros. Depois de algum tempo chegaram mulheres, usando apenas véus
por cima dos corpos nus, e os homens não demoraram a desafivelar os cintos e
deixar suas roupas caírem no chão. Em pouco tempo o recinto se transformou
numa massa rastejante de homens e mulheres copulando de todas as maneiras
possíveis. Os aleijões deformados prestavam qualquer serviço que lhes fosse
solicitado. A cena me causou repulsa, e quando arranquei a máscara do rosto,
Devall pôde ler minha expressão. ‘Eu pensei que... o seu pai...’, disse ele, e só
muito depois compreendi o que quisera dizer. Fomos embora. Não vi razão
para adiar por mais tempo a minha partida e tomei as providências necessárias.
Pedi a Daniel para me acompanhar até o Canto do Pássaro, já que eu não
dispunha de criados e ele não tinha grandes exigências.”
— O que aconteceu depois disso, Johannes? Você encontrou a
correspondência dele?
— Eu sabia que ele escrevia cartas, Sr. Winge. Mas não achei isso estranho.
Levei algum tempo para entender para quem ele estava escrevendo e por quê.
As cartas que mandava para Liljensparre eram codificadas, como o senhor
certamente deve saber, mas primeiro ele as escrevia em texto simples, só depois
usando uma chave para codificá-las. Imagino que ele tenha aberto o aquecedor
de alvenaria do quarto sem antes verificar se ainda havia brasas lá dentro.
Como fez frio depois de anoitecer, eu abri o aquecedor mais tarde para me
certificar de que houvesse lenha suficiente até de manhã. Havia um pedaço de
papel amassado em meio às cinzas. O texto original. Não pude me conter e o
li.
— E qual foi sua conclusão?
— Daniel Devall era um caçador de fortunas, Sr. Winge. Tudo que ele
queria era cair nas graças de Liljensparre e promover os próprios interesses.
Imagino que alguém tenha lhe informado sobre a minha chegada iminente em
Karlskrona, talvez um dos suecos que conheci em Flandres. Sua incumbência
como informante era ficar de olho no porto e observar cuidadosamente
quaisquer suspeitos que chegassem da França para espalhar a revolução pelo
norte. Ele imaginou que eu fosse um jacobino que tivesse participado da
revolta e que agora estivesse voltando para casa decidido a difundir a mesma
mensagem. Por isso ele aceitou ir comigo ao Canto do Pássaro. Estava torcendo
para eu lhe confidenciar meus planos para derrubar a monarquia, e com isso
garantir para si a honra de ter desmascarado o complô.
— O que você fez após ler a carta?
— Pensei na minha mãe. Em como ela desmembrava mosquitos-gigantes
no lugar do meu pai. E o que era Devall senão um mosquito-gigante que tinha
voado para dentro da minha casa? Ele não merecia o mesmo fim? Levei muitas
horas pensando em como tal coisa poderia ser feita. Minha mãe punha suas
presas no peitoril da janela e as deixava ali para morrerem. Eu precisava de um
peitoril grande o suficiente para Daniel Devall. Então lembrei-me da Casa
Keyser, onde tínhamos ido parar entre homens mutilados e figuras grotescas, e
somente então entendi que a visita tinha sido proposital. Lembrei-me das
palavras que Devall dissera por engano, e finalmente entendi o que aquilo
significava. Ele tinha me levado até lá porque conhecia o meu pai, que devia ser
um frequentador assíduo da casa. Devall supôs que eu tivesse as mesmas
inclinações. Em sua mente, deve ter imaginado que o digníssimo Gustav Adolf
Balk tinha levado seu primogênito para Estocolmo de modo a apresentá-lo aos
apetites da carne que satisfazem seus pares. Mas não sou capaz de colocar em
palavras o quanto a ideia me enoja. Sendo assim, achei adequado deixar que ele
terminasse os seus dias na Casa Keyser, relacionando-se com pessoas como o
meu pai. Nos círculos que frequentava, Daniel Devall seria muito bem-vindo
da forma na qual eu iria moldá-lo.
Ele estreita os olhos para a nesga de luz cada vez mais débil próxima ao teto.
— Praticamente não preciso lhe contar o resto, Sr. Winge. A única coisa
que o senhor não conhece são alguns detalhes práticos. Precisei ir até
Estocolmo tomar essas providências, e precisei me certificar que Daniel não iria
embora do Canto do Pássaro antes de eu voltar. Minha primeira parada foi no
conselho que me julgava morto havia muito tempo. Solicitei uma quantia em
troca da promessa de nunca mais me apresentar ali. Algumas perguntas aqui e
ali me conduziram ao judeu Dülitz, cujos serviços eu então podia pagar. Por
meio dele encontrei o aprendiz de cirurgião Kristofer Blix, e comprei tanto suas
dívidas quanto a sua vida. Magnus era o único morador do Canto do Pássaro
que ainda restava quando voltei da França. Era um cão de caça meio selvagem,
que se lembrava do meu cheiro o suficiente para me associar com o fato de ser
alimentado. Sendo assim, o bicho se deixou acorrentar no barracão e não o
decepcionei.
Winge permite que o silêncio se acomode antes de falar.
— Você sabe que Blix escreveu tudo o que fez? Um relato em primeira mão
que nos permitiu encontrá-lo. O que aconteceu com Blix depois que cumpriu
seu papel?
— Blix tinha medo até da própria sombra, estava disposto a fazer qualquer
coisa para salvar a própria pele. Depois que fez tudo que eu pedi, deixei que
fugisse pela floresta.
— E se está agora disposto a confessar tudo, por que esperou que fôssemos
ao seu encontro, Johannes? Por que não me procurou diretamente?
— Eu não tinha provas dos meus crimes, Sr. Winge, e para mim é de suma
importância minha confissão não ser refutada. Li no Extra Post que o senhor
tinha assumido o caso do cadáver da Ucharia, e me senti seguro na certeza de
que o senhor me encontraria e me faria pagar pelo que fiz.
Uma sensação de incômodo faz Winge hesitar antes de fazer a pergunta que
vinha esperando.
— Por que está fazendo isso agora, Johannes? Qual é seu objetivo?
Johannes Balk o encara bem diretamente. Na luz fraca, suas pupilas grandes
e negras parecem a Winge dois poços sem fundo contendo apenas um vazio de
ódio.
— Eu agora já vi o mundo, Sr. Winge. Os seres humanos são vermes
mentirosos, um bando de lobos sedentos por sangue que só querem estraçalhar
uns aos outros em sua luta por poder. Os escravizados não são melhores do que
seus senhores, apenas mais fracos. Os inocentes só permanecem isentos de
culpa por falta de capacidade. Antes de Paris se transformar num banho de
sangue, todos falavam em igualdade, liberdade e fraternidade, em direitos
humanos, e agora essas mesmas vozes são ouvidas aqui. Eu vi a declaração dos
direitos humanos nas peles curtidas de homens esfolados, a cabeça já separada
do corpo pela guilhotina. Aqui, os moradores da cidade e os camponeses
também estão prontos para se levantar contra a nobreza, sua antiga opressora.
Está lembrado, Sr. Winge, que no início do ano um oficial nobre levantou a
mão contra um mercador e a guarda municipal teve de repelir a turba
enfurecida dos próprios portões do castelo? Dava para sentir o cheiro da
revolução. Ainda dá. Eu, o último descendente de uma das casas mais
importantes do reino, filho primogênito de um integrante do Conselho Real,
ficarei de pé nas cortes inferiores e confessarei em detalhes o que fiz com
Daniel Devall, um homem comum, do povo. O senhor mesmo irá provar
minha culpa sem sombra de dúvida. E, por vingança, as pessoas irão se rebelar.
Antes que o senhor me faça passar pelo fio da espada, terei desequilibrado a
balança da revolução. Em Paris, o sangue corre pelas ruas neste exato
momento. A lâmina da guilhotina precisa ser afiada várias vezes ao dia para dar
conta do trabalho. Eu desejo o mesmo para Estocolmo. As sarjetas vermelhas.
Quanto menos de nós sobrevivermos, melhor. Desejo que a Cidade-entre-as-
Pontes se engasgue de tantos cadáveres. Que os cemitérios transbordem. Que
sobrem apenas os corvos.
Ele ri baixinho.
— E então há a sua pessoa, Sr. Winge. Num mundo de lobos, o senhor é a
exceção. Um homem de um tipo melhor, nascido na época errada. O senhor
defende a justiça e a razão quando todos os demais desejam apenas melhorar a
própria condição. Li seu nome no Extra Post, e quando entendi quem o senhor
era tudo ficou claro para mim. A providência o trouxe ao lugar em que a
minha viagem termina. O senhor é conhecido por sempre dar voz aos
acusados, por permitir que contem sua versão. E eu vou contar. O que
acontecerá obrigatoriamente depois será tanto responsabilidade sua quanto
minha.
55

NA TERÇA-FEIRA de manhã, quando Cecil Winge acorda após ter dormido


algumas poucas horas, o quarto está um gelo. A roupa de cama parece pesar.
Ainda grogue de sono, ele primeiro se pergunta quem dispôs sobre o seu corpo
um cobertor desconhecido, marrom-escuro em vez de branco como o seu.
Quando a consciência retorna por completo, vê que se enganou. O cobertor
está vermelho de sangue. Nos pontos em que teve tempo de secar, o tecido
endureceu até virar uma casca escura. Ele começou a tossir durante a noite e
não conseguiu mais parar. Há uma crosta vermelha em seu queixo e pescoço.
De tão pálida, sua pele parece transparente. Quanto sangue terá perdido?
Seus dedos estão brancos feito osso quando os ergue em frente ao rosto.
Estão dormentes, assim como as pernas. Ele cambaleia para fora da cama,
quebra o gelo que se formou em sua jarra d’água e a despeja na bacia. Bebe o
resto da jarra mesmo, e fica horrorizado com a perda de líquido que a sua sede
demonstra. Leva tempo para esfregar e limpar tudo. Sua pele arde. Quando
termina, veste-se o mais depressa que a fraqueza lhe permite, desce para a
cozinha e manda o filho de uma das criadas ir buscar uma carruagem para levá-
lo de volta à Cidade-entre-as-Pontes e a Mickel Cardell.

A fumaça de um café fresco sobe em direção às vigas do teto no Mercado


Pequeno. É cedo. Madrugadores curiosos se misturam aos arrependidos, que
tomam uma caneca revigorante para curar a ressaca antes de voltarem ao
labirinto de ruas a caminho do trabalho. Embora esteja atrasado para o
encontro, Cecil Winge se vê chegando primeiro. Espera sem reclamar, perdido
em pensamentos, até a figura imponente de Cardell obscurecer a soleira. Ele
bate com os pés no chão para tirar a neve e se sacode feito um cachorro
molhado.
— Queira me desculpar. É que agorinha mesmo esbarrei com nosso caro
amigo Blom. Ele estava cambaleando de prédio em prédio pela Via dos
Dominicanos. Como não estava falando coisa com coisa, minha consciência
não me permitiu deixar que seguisse sozinho. Fui arrastando o sujeito até a sala
dele na Casa Indebetou, para que possa dormir até curar a pior parte da
bebedeira sem morrer congelado.
— E ele estava comemorando o quê?
— Acho que estava mais para o contrário. Não foi fácil entender por causa
da voz arrastada, mas acho que ontem ele recebeu uma carta dizendo que
Ullholm está vindo do oeste com toda sua comitiva, pronto para assumir o
novo cargo de chefe de polícia e se mudar para os antigos aposentos de Norlin.
Esperam a chegada dele para amanhã. Blom pode ter lá os seus poréns, mas em
algum lugar no fundo dele há um homem decente escondido. Acho que ele
não está ansioso para trabalhar para um corrupto, por isso a bebedeira. E você?
O que descobriu?
— Johannes Balk me contou uma história sobre como se cria um monstro.
Eu já vi isso antes, Jean Michael, embora nunca com tanta clareza quanto
agora, mas todo algoz começa como vítima. Só que ainda não terminamos.
Alguns detalhes dessa história não fazem sentido. Preciso confirmar minhas
suspeitas antes de voltar a vê-lo.
Mickel Cardell sopesa na mão seu punho de madeira e vê diante de si todos
os socos que desferiu, toda a devastação que causou. Mais do que ninguém, ele
sabe que Winge está dizendo a verdade.
— Jean Michael, tem uma coisa que eu preciso lhe pedir.
— Você sabe que é só falar.
— Eu preciso de mais tempo antes de Ullholm chegar. Pelo menos mais um
dia.
Cardell coça a cabeça e parece não entender.
— O que você está com medo que aconteça quando Ullholm virar chefe de
polícia?
— Imagino que ele vá escolher o caminho mais fácil e tirar de mim toda a
autoridade que Norlin me deu. Que ele declare minha investigação encerrada e
liberte Balk assim que souber da sua existência. Isso não pode acontecer. Ele é
perigoso demais.
— Mas com certeza até a autoridade do chefe de polícia é ilimitada, não?
Por que você não toma providências para que Balk seja levado a julgamento
imediatamente? Ullholm não pode interromper um julgamento sem parecer
um déspota.
O olhar com o qual Winge encara Cardell está cheio de respeito.
— Antes de escrever o nome dele no registro de prisões e no rol das cortes
inferiores, eu gostaria de entender completamente sua motivação. E só depois
disso decidir qual a melhor forma de efetuar o julgamento. Portanto, Jean
Michael, preciso de mais um dia. Se você puder fazer isso por mim, ainda
temos esperança.
— Esperança? Esperança de quê?
— Não vou esconder nada de você, mas não posso perder nem mais um
minuto. Preciso que você seja paciente.
— E como exatamente você acha que um sentinela desertor deveria impedir
a chegada do chefe de polícia de Estocolmo?
— Eu não tenho uma resposta para você, Jean Michael, e tampouco posso
lhe oferecer qualquer ajuda com essa incumbência. Todos os meus recursos
serão direcionados para os deveres que me ocupam. Não sobrou mais nada de
mim.
Cardell coça a cabeça e faz uma careta. Então fica sentado sem dizer nada.
Bate com a mão na mesa repetidamente, no ritmo de uma marcha militar
inaudível. Somente após um minuto inteiro torna a levantar a cabeça e cruzar
olhares com Winge.
— Se é isso que você quer, é isso que vai ter. Um dia.
Ele se vira no banco e acena com o braço de madeira no ar.
— Menina! Leve estas canecas de café e me traga um conhaque, sim?
Mickel Cardell precisa de alguma coisa para ajudá-lo a pensar e a pressa é
grande.
Winge o deixa sozinho e sai pelas ruas em direção ao Lote Queimado,
encolhido por causa do vento. Pressiona o lenço na boca enquanto tenta
manter a respiração controlada. Aos poucos, recupera o controle do próprio
corpo e esfrega um punhado de neve no rosto antes de atravessar a praça.
56

HÁ UM HOMEM na esquina da rua do Padre por quem Anna Stina já passou


muitas vezes ao subir o morro em direção ao mercado na Praça Velha. Em geral
está sentado sobre dois pedaços de madeira que uniu para formar um banco, e
diante de si, sobre o colo, expõe a malformação que é o seu ganha-pão. Ele tem
as duas mãos a tal ponto deformadas que todos que passam por ali ou param e
ficam encarando, ou então se afastam até a sarjeta para não chegar perto
demais.
Não é uma ferida causada pelo fogo. É como se algo tivesse transformado
sua carne em cera, moldado-a em um novo formato e deixado que assim
endurecesse. O tecido dos dedos parece ter derretido e escorrido, deixando as
pontas sem unhas e com uma camada de pele cuja espessura mal basta para
cobrir o osso. Nas palmas e nas costas das mãos há formas estranhas,
reentrâncias e calombos. A pele é descorada e quase tão lisa quanto a de um
recém-nascido.
É a ele que Anna Stina decide fazer sua pergunta, mas logo descobre que ele
não passa o tempo todo sentado ali. Então ela precisa esperar. Quando o frio
fica intenso demais, ela tenta espantá-lo batendo com os pés no chão. Por fim o
sujeito aparece, com uma plaquinha debaixo do braço, e se senta, desenrolando
com toda delicadeza o pano para expor suas mãos laceradas ao olhar alheio e à
neve que cai. A respiração de Anna Stina acelera ao ver que as mãos são
exatamente como ela se lembrava. Ela chega mais perto e estende o pão que
guardou do próprio desjejum. O mendigo pisca os olhos sem acreditar naquela
generosidade, e fica mais espantado ainda ao ver quem está lhe dando aquilo.
— Que Deus a abençoe, minha menina, mas o que eu fiz para merecer um
presente assim?
— Eu quero saber o que aconteceu com as suas mãos.
Ele sorri, quase aliviado.
— Essa é uma história que eu já contei muitas vezes, e por menos que este
pão. Você já esteve no Lago de Clara, minha menina?
Ela faz que sim.
— Então já deve ter sentido certo cheiro, um que não vem nem da água
podre nem do lixo na margem. Pois bem, lá existe uma manufatura onde eu fui
aprendiz. É uma fábrica de sabão, tanto do tipo com o qual os pobres se
esfregam para o banho natalino quanto do tipo usado na toalete matinal da
nobreza. O processo de fabricação é o mesmo. A diferença está na exclusividade
dos aromas. Só que antes do perfume existe um fedor, e esse fedor vem dos
cadáveres de animais. É preciso derreter essas carcaças para obter a gordura, e
então essa gordura é misturada com outros ingredientes e solidificada. Antes de
se contar até dez o sabão ficou transparente e está pronto para ser usado. Eu era
um aprendiz jovem e disposto e um dia me empolguei ao misturar a potassa
com cal. A dose ficou forte demais e eu derramei o pó branco nas duas mãos.
No mesmo instante em que as mergulhei na água para me limpar ouvi meu
mestre gritar, mas era tarde demais. Foi como se eu tivesse mergulhado as mãos
em óleo fervente. A potassa queima com água, entende? Vai consumindo tudo
em seu rastro. Então foi assim que me tornei como você está me vendo hoje.
Eles ficaram com pena e desde então me deixam trabalhar com uma vassoura,
mas eu não sou tão eficiente quanto era e o que ganho não basta para viver.
Anna Stina deixa sua mente absorver as palavras enquanto reflete.
— Qual foi a sensação?
Ele ri.
— Foi um aperitivo do inferno que com certeza me espera, menininha.
Quando ele vê que ela não está satisfeita, continua num tom mais sério.
— Eu nunca senti nada pior. Quando meu mestre pegou um pedaço de lã e
limpou a potassa que tinha se transformado numa pasta borbulhante, tive a
sensação de que a pele estava sendo arrancada. Ele mandou buscar limões,
porque disse que o sumo aliviaria a dor, e talvez ele tivesse razão, só que a dor
perdurou por dias e a sensação era de estar apertando carvões em brasa com
toda a minha força.
A lembrança o faz cuspir, e quando ele ergue os olhos seu bom-humor se
evaporou.
— Bem, é só isso? Agora que me lembrei de tudo, não acho que o pão seja
nem de longe um pagamento justo.
— O senhor consegue fabricar a potassa outra vez? Do mesmo tipo da que
o queimou? Eu pago.
Eles não levam mais de meia hora para sair da Cidade-entre-as-Pontes.
Talvez seja uma ilusão provocada pelo terreno, mas Anna Stina tem a
impressão de que o prédio às margens do Lago de Clara está pendendo sobre a
água, como se o terreno pantanoso sobre o qual foi construído não conseguisse
mais suportar seu peso. Eles precisam esperar o sol se pôr e o expediente
terminar. Os funcionários saem da oficina uns após os outros ou então em
pequenos grupos e seguem pelo gelo escorregadia. Consegue ouvir o homem
das mãos deformadas ir contando entre os dentes para ter certeza de que todos
foram para casa. Nervoso, ele olha em volta antes de fazer um gesto
mandando-a segui-lo.
Eles dão a volta no prédio por fora em direção à margem. Do lado da água,
a estrutura é sustentada sobre palafitas altas o suficiente para permitir que uma
pessoa curvada passe por baixo. O homem avança até as tábuas mais acima e
pragueja entredentes quando escorrega várias vezes. Por fim, acaba
encontrando o buraco que está procurando, grande o suficiente para deixá-lo
passar a mão e o antebraço e puxar uma barra para trás. Debaixo desse alçapão
há uma pilha de lixo congelado, e Anna Stina imagina que aquilo seja aberto
todo dia de manhã quando o chão é varrido, para que os detritos sejam jogados
no lago. O aleijado pede silêncio com um gesto ao levantar ligeiramente a
porta e olhar lá para cima, cobrindo a boca com a mão livre para que o vapor
da sua expiração não o denuncie. Fica parado por muito tempo antes de içar o
corpo para dentro da oficina. Anna Stina aguarda um sinal antes de subir atrás
dele.
57

CARDELL TRAÇA CÍRCULOS com o braço sadio para fazer o sangue circular até as
pontas congeladas dos dedos, e pula sem sair do lugar para se aquecer. Está
esperando há mais de uma hora no pátio em frente à casa baixa. A empregada,
que se recusou a deixar um desconhecido cruzar a soleira — especialmente
alguém como Cardell — obrigou-o a ficar esperando do lado de fora até a
patroa ficar pronta. Quando ele pede algo quente para se proteger do frio, ela
solta o ar pelo nariz com força e bate a porta na sua cara. Ele está mais do que
farto de esperar. Toda vez que ergue os olhos para o relógio da Paróquia de
Catarina — que consegue ver acima do cume do telhado quando se ergue, com
um pé só, no bloco de cortar lenha — se convence de que o mecanismo
congelou e de que os ponteiros não estão mais se movendo. Por fim, a porta é
aberta e o mesmo rosto redondo da empregada carrancuda aparece na brecha.
— Pode entrar no hall agora e tomar uma caneca de cerveja quente se
quiser. Minha patroa logo irá recebê-lo.
A menção de algo quente basta para fazer Cardell deixar de lado qualquer
ideia de vingança. Ele limpa a neve dos ombros e bate cuidadosamente com as
botas no chão antes de entrar. A casa recende a pão recém-saído do forno. Uma
vez pendurados seu casaco e seu cachecol, ele sente o calor do aquecedor
começar a derreter sua camisa endurecida e suspira, agradecido.
A dona da casa o aguarda depois da cozinha num cômodo em penumbra.
Embora seu marido já tenha falecido há muitos anos, a viúva Fröman ainda usa
preto da barra do vestido até a touca. Deve ter quase sessenta anos. Cardell tem
a impressão de que o casal não teve filhos, e que a falta de uma família fez do
luto uma presença constante na casa. Apesar das dimensões modestas do
recinto, a viúva sentada junto à lareira passa uma impressão formidável. Suas
costas são retas como uma tábua. Em seu rosto anguloso Cardell não vê
qualquer indício de autopiedade, apenas uma dignidade contida, uma
expressão que diz a um mundo cruel que ela está pronta e disposta a responder
na mesma moeda. Cardell vê o próprio pescoço, que mal se curvava um
centímetro para seus oficiais na artilharia, inclinar-se em direção ao piso como
se por vontade própria. Ele pigarreia.
— Bom dia.
Tem a sensação de que a Sra. Fröman o examina da cabeça aos pés sem
sequer mover os olhos, e que lê na sua pessoa tudo que precisa saber. Ela deixa
passar alguns segundos antes de responder.
— Me disseram que seu nome é Cardell e que o senhor é sentinela. O que o
senhor pode ter a tratar comigo vai além da minha capacidade de imaginação,
e é apenas o fato de a minha vida raramente apresentar surpresas que o faz estar
aqui dentro em vez de enxotado porta afora. Sendo assim, o que o senhor
deseja?
Cardell sente as orelhas — pouco antes tão geladas — arderem subitamente
de calor, e remexe-se pouco à vontade. Percebe que se equivocou em relação ao
olhar firme da mulher. Ela é cega. À medida que seus próprios olhos se
acostumam ao escuro, vê que os dela são recobertos por uma membrana
leitosa. Sente um calafrio involuntário e tenta encontrar as palavras certas.
— Desculpe-me vir sem avisar, e permita-me expressar os meus mais
humildes pêsames pela partida tão precoce do seu marido...
Ela o silencia levantando uma das mãos.
— Cale-se, sentinela. O melhor que as gralhas fazem é grasnar, não tentar
cantar como rouxinóis. Arne Fröman, o pastor da Paróquia de Catarina,
descanse em paz, já partiu faz muitos anos, ainda que o seu cadáver com
certeza estivesse tão encharcado de conhaque que qualquer verme ousado o
bastante para tentar penetrá-lo deva ter morrido na hora. O fato de eu ainda
estar de luto diz mais sobre mim mesma do que sobre o nosso abençoado
pastor. Vamos, sentinela, pare de fazer rodeios e vá direto ao assunto.
Cardell aquiesce antes de se lembrar que ela não consegue ver. Procura
coragem dentro de si e se espanta quando encontra.
— Parece que a senhora vive nesta casa com grande modéstia, considerando
a importância do pastor Fröman.
Ele sente certa satisfação ao vê-a se retrair um pouco antes de recuperar a
compostura. Continua depressa:
— Bem, por acaso a senhora reconhece o nome Ullholm? Primeiro nome
Magnus.
Ele sente algo se mover no recinto, tão palpável quanto uma corrente de ar
gelado passando por uma vidraça recém-quebrada. Quando ela responde, todos
os indícios de sarcasmo desapareceram:
— Sim. Eu me lembro de Magnus Ullholm.
— Eu soube que ele fugiu para a Noruega com o fundo das viúvas da igreja
alguns anos atrás. Nesse fundo talvez houvesse algum dinheiro que pudesse lhe
ter sido útil, Sra. Fröman, após a morte do seu marido.
Cardell se pergunta se é possível uma pessoa que está sentada imóvel ficar
mais imóvel ainda, mas observa que, caso afirmativo, esse alguém é a Sra.
Fröman.
— Não precisa me lembrar quem é Ullholm nem o que ele fez. Eu sei
muito bem.
— Com certeza existem outras mulheres na mesma situação, Sra. Fröman,
que também recordam o nome de Ullholm. Elas provavelmente têm filhos e
netos a quem uma infância segura foi negada por causa do que ele fez. Imagino
que a senhora deva conhecer o nome de todas.
— Suponho que sim.
— Diga-me, Sra. Fröman: já que a senhora passou tantos anos como esposa
de um homem temente a Deus, lembra-se da expressão “olho por olho, dente
por dente”?
A Sra. Fröman retrai os lábios e revela uma fileira de dentes afiados. Cardell
leva alguns segundos para perceber que ela está sorrindo.
58

A PRAÇA NORTE está deserta e coberta por um manto de neve. Bem no centro
fica a estátua de Gustav Adolf, ainda inacabada e escondida sob sua proteção
congelada, à espera de uma inauguração já com dois anos de atraso. Dizem que
será a primeira estátua equestre do reino. Winge para na sua frente e estuda o
contorno sem forma, uma silhueta fantasmagórica que paira ameaçadora acima
da praça como se pertencesse à ceifadora que Johannes Balk deseja liberar na
Cidade-entre-as-Pontes. À direita de Winge fica o palácio da princesa Sofia
Albertina, e à esquerda a Ópera. Os dois prédios são idênticos, um iluminado
pela luz suave da manhã, o outro ainda envolto em sombras. Ele fica ali um
pouco mais, alternando o olhar entre as duas, então se vira e entra pelo portão
da prisão. Após chegar à porta certa e encontrá-la destrancada à sua espera, é
forçado a se apoiar no batente antes de passar pela soleira. Não é a cela de
Johannes Balk.
Esta fica apenas algumas portas adiante, e não se distingue em nada da de
Balk a não ser pelo seu ocupante, que se retrai quando a porta é destrancada e
Winge entra.
— Meu Deus do céu, o que aconteceu? O senhor me dá medo. Está
parecendo um fantasma, um esqueleto ambulante. Seria a morte vindo me
buscar?
— O senhor não tem nada a temer. Muito pelo contrário. Meu nome é
Cecil Winge e eu trabalho para a polícia. Quero dizer, de certo modo, embora
não seja pela autoridade da polícia que eu tenha vindo procurá-lo aqui hoje.
— Eu já vi o senhor antes. Vi seu rosto pálido passando algumas vezes em
frente à minha porta. Todas as vezes eu pensei que fosse uma caveira flutuando.
— Posso me sentar? Minhas pernas já não são mais tão firmes quanto antes.
O homem, que subiu em seu catre no canto mais afastado da cela, dá de
ombros. Winge se senta no banquinho exatamente igual ao que fica ao lado da
cama de Balk. Olha com mais atenção para o condenado. Um homem normal,
com um rosto corriqueiro, que agora começa a ficar sombreado por uma barba
por fazer. Está usando uma camisa de linho simples, suja pelos dias passados na
cela, e calças de couro gastas, desamarradas nos joelhos. Enrolou-se em seu
cobertor e num casaco marrom. Winge precisa recuperar o fôlego antes de
voltar a falar.
— Lorentz Johansson, certo?
— Não escondo que sim.
— E a sua profissão?
— Eu fabricava barris.
— E amanhã a carroça virá levá-lo para o cadafalso em Hammarby.
O homem dá um suspiro e estremece.
— Sim, virá. Mestre Höss vai cortar minha cabeça. O máximo que posso
fazer é torcer para ele estar sóbrio o bastante para afiar a espada hoje, e firme o
bastante para acertar com o primeiro golpe quando amanhecer.
— O pastor já esteve aqui?
— Sim, veio cedo. Estava vestido com elegância, o maldito. Não é preciso
ser mais inteligente do que eu para perceber que estava a caminho de coisas
mais agradáveis numa sexta-feira à noite. Não poderia ter encomendado minha
alma ao outro mundo com mais rapidez. Mal entrou e já estava saindo. Ouvi o
desgraçado cantarolar ao passar debaixo da minha janela a caminho do Jardim
Real.
— O senhor poderia me dizer como veio parar aqui?
— O que eu poderia dizer que todos já não saibam?
— Acho mais interessante ouvir nas suas próprias palavras, por favor.
Johansson torna a encolher os ombros.
— Pois não. Minha história é tão curta quanto triste, e as horas já estão
passando devagar o suficiente. Eu matei minha esposa, Sr. Winge. É só isso.
Nosso casamento era mais infeliz a cada ano e eu tinha tomado umas e outras
naquela noite. Começamos uma daquelas mesmas brigas que nos
atormentavam desde sempre. Então eu me descontrolei.
— Vocês tiveram filhos?
— Nenhum que tenha vivido mais do que um ano.
Winge assente, compreensivo.
— Na minha opinião existem assassinos e assassinos, Lorentz Johansson. O
que o senhor tem a dizer em relação a isso?
— Não entendo a que o senhor está se referindo.
— Eu acho que uma pessoa que comete um crime numa determinada
situação não o faz necessariamente em outra. O senhor teria matado sua esposa
se ela fosse uma pessoa desconhecida que nunca tivesse encontrado antes?
— Por que teria feito isso? E se ela tivesse tido mais bom senso para
desposar um homem melhor do que eu, ainda estaria viva e livre como um
passarinho.
— O senhor se arrepende do que fez?
Johansson reflete a respeito.
— Ela era uma mulher cheia de ódio, Sr. Winge, sempre discutindo e
brigando. Passei a detestá-la ao longo dos anos. Mas ao mesmo tempo também
a amava. O fato de eu me arrepender não muda nada. Vou pagar pelo que fiz
no bloco de execução e no fio cego da espada de Mestre Höss, e a questão se
resume a isso. Se minha morte pudesse trazer de volta a vida dela eu ficaria
feliz, mas não é assim que as coisas são.
Winge passa muito tempo encarando Lorentz Johansson.
— O senhor era bom na fabricação de barris, Lorentz Johansson?
— Um dos melhores. Faltava apenas um ano para entrar para a guilda,
menos talvez.
— E se pudesse escolher entre o celibato e a morte, o que escolheria?
59

A FÁBRICA DE sabão está silenciosa e imóvel, e a escuridão é permeada por um


cheiro ruim que não deixa de lembrar a putrefação, só que mais intenso e
penetrante. Anna Stina sente a atmosfera tensa que com tanta facilidade se
apodera dos lugares acostumados com vida e movimento quando subitamente
desertados. Aos poucos seus olhos se acostumam à escuridão, e o aleijado se
move com desenvoltura entre barris e tonéis de água. As paredes de madeira
são simples e estão tão mal-remendadas que Anna Stina vê pelas frestas atrás de
si os últimos raios vermelhos do poente. Pode ouvir o homem se mover pelas
sombras, e de vez em quando o vê. Vai seguindo-o pelos cômodos até uma área
de armazenagem cheia de frascos. Ali, ele escolhe um, depois outro, e leva
ambos até uma mesa manchada onde encontra um funil e uma garrafinha.
Pega um par de luvas de couro grossas penduradas num gancho, calça nelas as
mãos e retira um pouco de pó de ambos os frascos. Lacra a garrafa e se vira.
— Você viu minhas mãos e ouviu minha história, então não preciso dizer o
quanto este pó é perigoso. Peço que manuseie com o mesmo cuidado com que
faria se Satã em pessoa tivesse se deixado engarrafar.
Ele lhe estende a garrafa, mas a puxa de volta quando Anna Stina faz
menção de pegá-la.
— E o meu pagamento?
Anna Stina leva a mão até o forro da saia para pegar o pedaço de tecido no
qual enrolou todas as moedas que ganhou de gorjeta no Patife. Bem devagar,
desfaz o pequeno embrulho na palma da mão esquerda para que ele veja a
quantia total. O aleijado suspira e balança a cabeça.
— Não é muito. Você sabe quantas toras é preciso para produzir meio quilo
de potassa que seja? O trabalho que é preciso por parte dos madeireiros, dos
carregadores que arrastam as toras até aqui e de quem as corta para caber nos
fornos? Isto não é dinheiro suficiente para compensar esse trabalho.
— Eu tenho isto aqui também.
Anna Stina estende uma garrafa cheia de um conhaque forte feito dos restos
que os clientes deixaram no fundo de seus copos. O homem ri.
— Eu não sou de recusar uma boa bebida, mas considerando o que poderia
conseguir com isso aqui, eu poderia comprar muitas garrafas do que você está
oferecendo.
Ele parece pensar. Ela vê o rosto dele com clareza suficiente para discernir os
pensamentos que estão lhe passando pela cabeça.
— Para que você quer isso, afinal?
Ela hesita, cansada de mentiras e fingimentos, e não vê o que tem a perder
lhe dizendo a verdade.
— Preciso mudar meu rosto para ninguém me reconhecer mais.
Sente-o se sobressaltar, e ele leva alguns instantes para falar.
— Mas, minha menina, por que você faria uma coisa dessas?
— É uma longa história, e é assunto meu. Para você basta saber que é um
caso de vida ou morte.
E não só a minha, pensa ela. O sujeito começa a andar de um lado para o
outro. Sua respiração se acelerou, e ele esfrega as mãos mutiladas uma na outra.
Por fim, para e volta a se virar para ela.
— Você é linda, minha menina. É antinatural deixar que uma beleza assim
seja desperdiçada, e ainda por cima com a minha ajuda. O que você tem não
basta para pagar pelo que eu tenho a oferecer. Me deixe mostrar o valor que a
sua beleza merece uma última vez, então estaremos quites. Há pilhas de sacos
de aniagem aqui e sei que não é grande coisa, mas como nossa cama para a
noite de hoje vai servir.
Anna Stina congela. Seu silêncio deixa o mendigo pouco à vontade, e ele
transfere o peso do corpo de um pé para o outro. Ela sente a vergonha que não
chega a bastar para superar sua luxúria.
— Eu na verdade não sou esse tipo de homem, entende, mas as
circunstâncias...
— Eu não sabia que existia outro tipo.
Ela estende a mão.
Ele dá de ombros e lhe entrega. Ela sopesa a garrafa, leve demais para
ocultar um poder tão atroz. Ela tira a rolha e cheira, mas não há odor nenhum.
Assente, e seu acordo é selado. O mendigo começa a puxar sacos para o chão
de modo a preparar sua cama para a noite enquanto ela espera parada. Quando
fica satisfeito, mostra com um gesto que tudo está pronto e a convida para se
deitar. Ela faz que não com a cabeça.
— Você primeiro, eu fico por cima.
Ele responde com um sorriso lascivo e desamarra as calças ao mesmo tempo
em que se deita sobre os sacos. Então arranca o casaco e puxa a camisa por
cima da cabeça. Por baixo da imundície, seu corpo está faminto e maltratado.
Ele ergue as mãos deformadas para recebê-la num abraço, e ela então vira a
garrafa de cabeça para baixo e despeja o pó em cima dele. A surpresa do
homem logo se transforma em raiva, em seguida numa risada zombeteira.
— Eu não disse que o pó precisa de líquido para causar danos, sua putinha
burra? A única coisa que você conseguiu foi aumentar mais ainda o meu preço!
Anna Stina então remove a rolha da garrafa de conhaque e derrama o
líquido em cima dele. Na mesma hora o recinto é tomado pelo cheiro de carne
queimada. O homem começa a soltar uma fumaça branca ardida à medida que
a pele do seu peito, barriga e rosto borbulha, contorcendo-se até criar novas e
fantásticas formas. Ela não sabe se ele ainda consegue ouvir seu sussurro
tamanho o barulho dos próprios gritos, mas ela fala mesmo assim.
— Que isso seja um aperitivo do inferno para o qual você com certeza está
indo.
Ela o deixa e volta pelo mesmo caminho por onde veio. Sacode a pequena
garrafa de pó para se certificar de que ainda resta o suficiente.
60

ATRÁS DO PATIFE, o pátio interno está deserto. A neve que acabou de cair ainda
está branca, não amarela como logo ficará quando a fila para a latrina ficar
maior do que a necessidade permite. A camada mais recente farfalha quando
Anna Stina a coloca numa tigela que, em seguida, leva para derreter junto ao
fogão. Quando ela despeja a água no pó, a mistura chia na tigela durante
algum tempo e preenche o recinto com um cheiro estranho, mas então se
acalma. Não é fácil entender como o líquido pode ter tanto poder sem de
algum modo dar sinais disso.
Ela pega um pedaço de carne na cozinha, uma pequena tira cortada de um
presunto seco que fica pendurado na viga do telhado. Deixa o pedaço cair na
tigela e a mistura não decepciona. O pedaço começa chiar como um gato, e
por todos os lados é atacado por dentes e garras invisíveis que puxam e rasgam,
consumindo-o sem mostrar para onde ele foi. A carne fumega e borbulha, e
quando a fumaça se dissipa é como se nada tivesse acontecido. A carne
desapareceu sem deixar vestígio.
Ainda assim, Anna Stina hesita. Inclina-se para a frente, e de um mundo
invertido do outro lado da superfície do líquido, outra moça a encara,
exatamente igual a ela. Sua respiração encrespa a superfície e distorce o reflexo.
Ela fecha os olhos e inspira fundo.

O ar frio faz sua garganta e seu nariz arderem, mas Mickel Cardell fica feliz em
ter trocado aquilo pela sala bolorenta da viúva Fröman. O encontro correu
melhor do que ele poderia ter esperado. As coisas já estão em andamento.
Ouvir falar em Magnus Ullholm e receber a notícia de seu retorno a Estocolmo
pareceu tirar anos das costas dela, e a centelha de vida acesa por antigas mágoas
trouxe à tona o vigor de uma sede de sangue. Cardell mal teve tempo de sair da
casa quando criadas e garotos de recado passaram correndo por ele, tão
aliviados quanto ele próprio por ter escapado ao olhar cego da Sra. Fröman.
Precisa de um pouco de conhaque para lavar a viúva de seus olhos, então dá
uma parada na praça antes de chegar à Eclusa. Passa cerca de uma hora sentado
ali, até decidir checar se a Cidade-entre-as-Pontes tem algo melhor para
oferecer. Enquanto passa em revista seu rol de bares, lembra-se de um assunto
inacabado, dobra à esquerda na Praça do Ferrageiro e segue na direção do
Patife.
Cardell vê o reconhecimento nos olhos de Karl Tulip na mesma hora em
que vem recebê-lo com as mãos erguidas num gesto de quem se desculpa.
Cardell se coça sob a aba do chapéu e faz uma cara contrariada.
— Devo supor que a srta. Lovisa Ulrika continua ocupada com outros
assuntos?
Tulip assente.
— Sim, exatamente. Resta-me apenas apresentar minhas desculpas. Posso
oferecer uma bebida para amenizar a decepção?
Algo está diferente, e Cardell estreita os olhos.
— Vejo que os clientes começam a chegar... Se a moça é sua ajudante, não
faz sentido ela estar em outro lugar, certo?
— Ela... Lovisa não está se sentindo bem, chegou em casa com um pouco
de febre e eu não tive coragem de ir chamá-la no quarto.
— Ah, quer dizer que ela agora está em casa, é? Quem sabe eu terei mais
sorte do que o senhor.
Cardell começa a andar em direção à escada atrás do balcão.
— Ficou louco? O senhor não pode ir entrando sem ser convidado. E, além
do mais, está bêbado, consigo sentir o cheiro daqui. Vá embora antes que eu
chame a polícia para mandá-lo curar a bebedeira numa cela.
Cardell o empurra de lado com a mesma facilidade com que se ele fosse um
enxame de mosquitos.
— Sai da minha frente.

Anna Stina ouve a confusão na escada, as objeções inúteis de Karl Tulip, e


percebe que a sua indecisão fez o instante de oportunidade lhe escapar das
mãos. A oportunidade que ela vinha procurando e que tinha ao seu alcance
estava agora perdida. Sua vontade é gritar, mas tudo que passa por seus lábios é
um ganido. Ela pega a tigela com as mãos trêmulas e vai se postar atrás da
porta fechada, pronta para despejar o conteúdo inteiro no sentinela assim que
ele cruzar a soleira.

Mickel Cardell possui sentidos que ele próprio não sabe ao certo como
adquiriu, capacidades que advém de seus anos passados à sombra da morte. Em
meio à névoa da sua embriaguez, pressente um perigo, vê uma sombra no
canto, e instintivamente se encolhe e coloca o braço de madeira em frente ao
rosto. A tigela se espatifa ali. Ele ouve o sibilo do tecido e da madeira, e por
puro instinto arranca a roupa depressa o suficiente para arrebentar as costuras.
O vapor faz seus olhos lacrimejarem. Ele não sente dor, acredita estar ileso, e
enquanto fica ali parado, piscando os olhos de espanto com o que acabou de
acontecer, uma silhueta esguia passa por baixo de seu braço direito esticado e
desce correndo a escada. Cardell derruba Tulip pela segunda vez e sai no
encalço de Anna Stina.

Anna Stina não sabe por que, mas dobra à esquerda em vez de à direita e entra
na cozinha, onde a janela minúscula não vai funcionar como saída. Ali só existe
uma fuga de outro tipo. Ela fica à sua espera no canto mais afastado do recinto,
e ele não a faz esperar muito.

Cardell dobra a quina e vê no rosto dela uma expressão que conhece muito
bem. Lembra-se de tê-la visto na guerra. Para algumas pessoas, era doloroso
demais ter esperança quando as condições pareciam tão impossíveis. Em vez de
nutri-la, essas pessoas se lançavam voluntariamente rumo à morte. Talvez com
isso experimentassem nos derradeiros instantes uma nesga de satisfação, a
sensação de terem recuperado o controle do próprio destino. Tudo que isso
lhes custava era a vida. A moça está segurando uma faca com as duas mãos.
Não o escuta quando ele chama. Cardell a vê virar a ponta para a própria
garganta, fechar os olhos e empurrar com a maior força de que é capaz contra a
pele desprotegida.
61

— O SENHOR VEIO bem mais tarde hoje. Já é noite. E está muito pálido, Sr.
Winge.
— Tenho dormido mal ultimamente.
— A última coisa que eu quero é colocar sua saúde em risco. O que posso
fazer pelo senhor? Gostaria de pedir ao guarda para trazer um cobertor e um
café?
Winge descarta a oferta com um gesto e, com algum esforço, senta-se no
banquinho da cela junto com Johannes Balk.
— Consegui três informações desde a última vez em que nos vimos,
Johannes. A primeira delas confirmou que você não me disse toda a verdade.
Os olhos de Balk se estreitam, mas ele permanece calado enquanto aguarda
o resto.
— Havia na sua história alguns detalhes que soavam falsos aos meus
ouvidos. Como você mesmo comentou, foi só depois de ficado sabendo de
mim que se deu conta do efeito que sua confissão iria ter. O crime já era um
fait accompli. Devall estava mutilado e morto. Isso me fez buscar outro motivo
pelo qual você fez o que fez, e meu instinto me diz que o motivo é pessoal, e
que o objetivo deve ter sido o sofrimento. A semente de um ódio assim precisa
ter sido plantada por outras emoções.
A voz de Balk é um sibilo quando ele responde.
— De que importa? O que está feito está feito.
Winge balança a cabeça.
— Minha ambição sempre foi entender os crimes sobre os quais me
debruço. O que escutei desde o nosso último encontro me faz pensar que eu
agora entendo você mais claramente, Johannes. Fui até o Lote Queimado fazer
perguntas, e por acaso acabei encontrando um condutor que se lembrava de ter
levado dois homens de Karlskrona até Estocolmo na primavera passada. A
história dele diferia da sua em poucos aspectos, porém fundamentais. Vocês
não dividiram o valor do trajeto em partes iguais, certo? Você pagou por
ambos. O condutor me disse que a conversa que entreouviu rapidamente se
tornou mais íntima do que se poderia esperar entre duas pessoas que tinham
acabado de se conhecer. Disse que, ao chegar a Estocolmo, quando você
desembarcou, viu Daniel segurar sua mão e a pressionar dentro da sua
enquanto vocês iam embora.
Balk decidiu fechar os olhos em vez de encarar Winge.
— Creio que a sua criação moldou seu temperamento, Johannes. Assim
como mãos que passam o dia inteiro no ofício ficam calejadas, acho que sua
infância fez com que você desenvolvesse uma casca. Creio também que Daniel
Devall mudou tudo isso. Acho que, por um breve instante, você foi algo
diferente do monstro que descreve de forma tão vívida, e que foi justamente
isso que selou o destino de Daniel Devall.
Johannes Balk não diz nada.
— Há mais uma coisa, Johannes, e me pergunto se você percebe isso ou
não... Quando fala em Daniel Devall, você não gagueja.
Balk se vira para ele.
— O que o senhor está tentando dizer?
— Era amor, Johannes? Você o amava?
— Isso o deixaria surpreso? Um monstro poder encontrar essas coisas
escondidas dentro de si, mesmo que uma grande parte de sua vida já tenha
passado?
— Não. Nem um pouco.
— O senhor já amou alguém, Sr. Winge?
— Sim.
— Então talvez possa entender a sensação que um sentimento como esse
pode provocar em alguém que nunca sequer soube que tal coisa existia. Eu não
sou uma pessoa especial, não como o senhor; o mundo nunca encontrou
motivo para demonstrar qualquer afeto por mim. Passei a vida inteira sem
encontrar um só motivo que me impedisse de retribuir a humanidade com a
mesma repugnância que ela demonstrou por mim... quero dizer, até pensar que
Daniel tivesse me dado um.
Ele faz uma pausa.
— Daniel era muito descontraído, muito afável. Qualquer coisa, por menor
que fosse, podia lhe arrancar uma risada. Para mim ele era como um espírito
alienígena vindo de uma esfera mais elevada para abençoar a nós, meros
mortais. Às vezes, quando estávamos conversando a sós, ele segurava minha
mão e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, a mantinha
afetuosamente presa entre as dele, às vezes levando-a até o peito para que eu
sentisse seu coração bater.
A boca de Balk se contorceu num esgar. Ele se vira como para buscar alívio
nas sombras.
— Fomos de Estocolmo para o Canto do Pássaro quando as árvores
estavam em flor. A casa estava em péssimo estado. Tinha sido fechada pelos
membros do conselho, que não perderam tempo algum para se apropriar da
minha herança assim que notícias minhas pararam de chegar da França. Mas
foi como se a própria natureza nos desse as boas-vindas com guirlandas de
folhas e buquês de flores perfumadas. Na despensa ainda havia algumas coisas
para comer, e os arbustos transbordavam de frutinhas silvestres. Daniel e eu
passávamos o tempo todo juntos, sempre na melhor disposição possível. Por
um tempo.
— Até você encontrar a carta.
— Sim. No fim das contas aquilo tudo tinha sido um ardil para conquistar
minha confiança e promover seus próprios interesses. Se eu tivesse confirmado
algumas de suas suspeitas, ele teria me vendido na mesma hora para
Liljensparre.
Balk inspira profundamente, e Winge estremece ao testemunhar seu
autocontrole mesmo com toda dor que aquelas lembranças evocam. Balk abre
os olhos e torna a se virar para ele.
— O senhor é um homem inteligente, e foi tolice pensar que eu poderia ter
lhe escondido alguma coisa. Agora conhece o segredo que não o revelei por
vergonha. Não do amor, mas da facilidade com que fui enganado. Mas as
minhas intenções permanecem as mesmas, e, quando o senhor me der voz no
tribunal, Estocolmo se transformará em um banho de sangue que fará o
primeiro empalidecer em comparação. Isso não muda nada.
— Eu mencionei três coisas que tinha conseguido desde a última vez em
que nos vimos. Talvez a segunda possa impedir exatamente isso.
Winge vasculha o bolso do casaco e pega um fino maço de papéis.
Desdobra-os e estende-os para Balk, que os deixa pendurados no ar entre os
dois, com a desconfiança estampada nos traços.
— O que é isso?
— Depois de conversar com o condutor, eu voltei à Casa Indebetou, à
mesma sala na qual meu amigo e eu tínhamos recentemente encontrado as
cartas que nos conduziram ao Canto do Pássaro, escritas por Daniel Devall
mas até então nunca abertas. Eu queria saber o que estava escrito ali e levei
muitas horas para destrinchar seu método de codificação. Acabei conseguindo.
— Eu já conheço as fantasias extravagantes de Daniel sobre conspirações
jacobinas. Que diferença essa carta poderia fazer?
— Primeiro e mais importante de tudo, a data. A carta que você encontrou
nas cinzas no Canto do Pássaro não foi a última que ele escreveu. A última
carta a sair do Canto do Pássaro foi a que eu li ontem à noite.
Uma sombra atravessa o semblante de Johannes Balk, e ele estremece como
se alguém tivesse acabado de andar sobre o seu túmulo.
— Não há menção alguma a conspirações. Daniel Devall está apresentando
sua demissão. Ele escreve que você é inocente de todas as suspeitas que
pairavam sobre a sua pessoa. Escreve que encontrou o amor e que ele é
correspondido. Aqui está a carta que ele escreveu, com a chave para decodificá-
la e o rascunho. Leia você mesmo.
Uma mão branca como osso se estende e remove os papéis da mão de
Winge com todo cuidado, como se o mais leve toque fosse suficiente para fazê-
los se desintegrar e virar cinzas e pó. Na escuridão da cela, as lágrimas de
Johannes Balk escorrem pelas páginas trêmulas e transformam a tinta em riscos
negros. Winge fica atento aos sons de uma alma se dilacerando, mas tudo que
consegue ouvir são soluços. Vira-se e deixa passar um tempo antes de tornar a
falar.
— Você poderia ter sido feliz, Johannes, bastaria ter tido paciência para
confirmar a verdade. Você amava Daniel. E ele amava você. Foi uma vida
inocente que encontrou seu fim de um modo terrível. Há outros como ele,
Johannes, entre as pessoas que você diz odiar tanto e cuja destruição você
busca. Todas essas pessoas são tão merecedoras de vida e felicidade quanto
Daniel Devall era. O que nos faz chegar à terceira coisa. Eu tenho algo a lhe
propor.
62

ANNA STINA KNAPP se espanta que a morte não traga sensação alguma, então
abre os olhos e constata ainda estar viva. Seus dois braços continuam
imobilizados e tremem ao tentar pressionar a faca no próprio pescoço. Cardell
— mais veloz do que seu corpo grande poderia sugerir — segurou a lâmina
com a mão direita e está apertando com tanta força que os nós dos dedos ficam
brancos. O esforço o deixa ofegante, mas ele não consegue arrancar a faca da
mão dela. Sua voz emana por trás dos dentes trincados de esforço.
— Pelo amor de Deus, pode soltar, por favor? Eu não vou machucá-la. Vim
falar sobre Kristofer Blix.
Toda a força se esvai de seus músculos trêmulos, e Anna Stina obedece.
Cardell deixa a faca cair no chão e fecha a mão para estancar o sangue.

Ele conta sua história enquanto ela lava a mão dele e enrola uns trapos em
volta da ferida. E então ela conta a própria história. Cardell escuta sentindo o
coração se contorcer dentro do peito.
— Meu Deus, menina, nunca fiquei tão aliviado por ter abandonado a vida
de sentinela.
Ele cospe por cima do ombro.
— E Kristofer Blix? Ele a enganou antes de tirar a própria vida. Ainda está
brava com ele?
Anna Stina faz que não com a cabeça.
— No início eu fiquei. Ele tinha prometido me ajudar a me livrar de um
bebê gerado contra a minha vontade, e pensei que fosse isso que ele quisesse
mais do que tudo. Quando comecei a beber as decocções dele, o bebê ficava
tranquilo e não se mexia. Agora sinto sua presença o tempo todo. A princípio,
me pareceu impossível conseguir amar uma criança e odiar o pai, mas hoje sei
que não é assim. Toda vez que me distraio, me pego com as mãos na barriga
tentando sentir os batimentos. Blix salvou a vida do bebê e a minha também.
Agora, além de gratidão, sinto arrependimento por ele não estar aqui para eu
poder agradecer.
Cardell aquiesce, compreensivo.
— A senhorita está falando de coisas sobre as quais eu não sei quase nada,
mas fico feliz que Blix tenha conseguido realizar alguma coisa ao fim de uma
vida repleta de tanta tragédia. Eu mesmo não cheguei a conhecê-lo, mas o que
ele escreveu me abalou, e sem a ajuda dele, meu amigo e eu teríamos nos
esforçado em vão. Nós também devemos gratidão a Blix.
— O que o traz aqui hoje? O que o senhor quer comigo? Ele pode ter sido
meu marido no nome, mas eu não sei mais nada sobre Kristofer Blix além do
que já contei. Ele era um desconhecido que me fez uma boa ação contra a
minha própria vontade.
— Vim trazer um presente de casamento atrasado. Blix foi trapaceado e
perdeu uma quantia de dinheiro considerável numa partida de cartas que
marcou o início da sua má sorte. Eu por acaso cruzei o caminho de um dos
outros jogadores e, depois de ter aplicado uma punição que julguei adequada,
vi também a chance de cobrar a dívida. Blix queria que a senhorita e seu filho
tivessem um futuro, então, no que me diz respeito, estas moedas são suas.
Cardell tira o porta-moedas do bolso do casaco e torce para que Kristofer
Blix — esteja ele onde estiver, no céu ou no inferno — possa vê-lo naquele
momento e saber que a dívida devida por ele e Winge está paga. Coloca o
mealheiro sobre a mesa, pesado o suficiente para fazer a madeira vibrar. Anna
Stina o abre com dedos hesitantes e fica sem fôlego. Cardell é obrigado a sorrir.
— Aí tem cem dalers e um pouco mais. Deve dar à criança ainda o melhor
começo de vida que se poderia imaginar. O dinheiro vai ser sua garantia. Os
sentinelas poderiam vir aqui e fazer acusações contra uma moça indefesa, mas
não contra uma rica viúva. Pare de se vestir como criada e mostre que a
senhorita agora está em uma posição diferente, está bem? É a melhor defesa
que pode dar a si mesma e ao seu filho.
Enquanto o sangue pinga de sua mão cortada, Mickel Cardell sente outra
ferida, mais antiga e mais profunda, se fechar dentro de si. Da próxima vez que
o afogamento de Johan Hjelm vier assombrá-lo em seus sonhos, quando sentir
a âncora do Ingeborg pesar sobre o braço que perdeu, quando o terror fechar as
garras em seu pescoço e lhe tirar o ar, a lembrança do rosto da moça nesse
instante será o consolo de que ele precisa. E Anna Stina Knapp, que um dia
jurou para si mesma nunca mais chorar, sente as lágrimas rolarem pelo rosto.
— O senhor vai voltar?
Cardell morde o lábio inferior enquanto pensa na resposta.
— Depende se a senhorita pretende ou não jogar leite de bruxa em cima de
mim da próxima vez, e do quanto seu pai cobra pelo conhaque. Mas primeiro
preciso cuidar de um ou dois assuntos.
63

É DE TARDE quando Mickel Cardell olha pela janela para as pessoas reunidas na
Adega Hamburg. Vê Cecil Winge em sua cadeira junto a uma janela coberta
de gelo, mais emaciado do que nunca e tão branco quanto a neve lá fora,
segurando o lenço junto à boca. Na rua, o frio corta carne e osso, mas lá dentro
há um fogo na lareira. O calor é aumentado pelo fato de cada centímetro do
recinto estar abarrotado. Cardell segura o braço de madeira diante do corpo e
abre caminho até a mesa. Com um suspiro, deixa-se cair sentado em frente a
Winge, aliviado por tirar o peso de cima das pernas. Repara com um largo
sorriso que Winge já tem um copo na mesa à sua frente, e acena por sua vez
para pedir um ponche quente. Está animado.
— Quanta gente aqui hoje, não? Mas acho que já era esperado. Acabaram
de cortar lá no morro a cabeça de um homem que matou a esposa, e as pessoas
estão aqui para tomar um trago da sorte no copo do assassino. Ouvi o pessoal
conversando na porta. Dizem que ninguém nunca viu Mårten Höss tão
bêbado quando hoje, e que vai ser difícil ele conseguir permanecer no cargo
depois do estrago que fez no pobre coitado em cima do bloco. Não entendo
por que você quis me encontrar no Hamburgo, de todos os lugares possíveis.
Sabe que era justamente aqui que eu estava sentado na noite em que pesquei
Karl Johan no lago? Hoje parece que faz uma eternidade.
Cardell assopra a bebida quente, então a vira de uma vez só com tanta
energia que é obrigado a fazer uma pausa em seus comentários. Está sorrindo
de orelha a orelha, tanto que o fumo que masca corre o risco de cair da sua
boca.
— Você deveria ter visto. A viúva Fröman reuniu umas vinte viúvas, seus
filhos crescidos e muitos netos, todos levados às raias da ruína pelo modo como
nosso futuro chefe de polícia administrou o fundo de pensão das viúvas.
Colocamos todos numa carroça e fomos até o Morro do Carvalho na Ilhota da
Serrapilheira onde, segundo Blom, Ullholm planejava dormir sua última noite
antes de passar pela alfândega. Você sabe que eu já estive na guerra, mas juro
que nunca vi nenhum grupo com mais sede de sangue. Saímos no meio da
noite para chegar antes que alguém acordasse, e quando Magnus Ullholm, feio
como um sapo, devo acrescentar, saiu pela porta da frente, pronto para partir,
eles já tinham afugentado seus cavalos e tirado as rodas da carruagem.
Deixaram-no chegar à metade do pátio antes que percebesse que havia algo
errado. Nem acreditei quando foi a própria Sra. Fröman quem sentiu o cheiro
da pilha de excrementos e percebeu que não estava congelada. Ela o acertou
bem no meio da cara com sua primeira saraivada e arrancou a peruca dele,
mesmo sendo cega. Ele estava vestido para a ocasião, devo acrescentar, com
uma gola de pele de arminho e um relógio pendurado sobre a coxa. Mas
conseguiu sair correndo a uma velocidade da qual eu não o teria considerado
capaz, coberto de excrementos da cabeça aos pés. Então conseguiu se abrigar
por um triz atrás da porta da hospedaria. Só que não havia como fugir. As
mulheres e seus filhos formaram um círculo ao redor da casa inteira. O cerco
durou boa parte da noite, até alguém conseguir fazer com que um recado fosse
levado até a guarda da cidade. Assim, posso declarar orgulhosamente que a
minha missão foi cumprida. Bem, e você? Conseguiu o que esperava com seu
dia extra?
— Sim, Jean Michael. Obrigado por tudo que você fez. Eu não poderia ter
esperado mais.
— Suas conversas terminaram?
— Sim.
Cardell se recosta e esfrega os olhos sonolentos.
— E um coração partido é a solução do nosso mistério?
— É o motivo mais antigo de todos, não é mesmo? Johannes tinha razão
naquilo que me disse da primeira vez. Ele foi criado para se tornar um monstro
e de fato foi o que se tornou. Só que o amor é capaz de curar o ódio, e na
companhia de Daniel Devall ele recuperou sua humanidade. Até que descobriu
que o amor era uma mentira, e o monstro então voltou pior do que nunca.
Eles passam algum tempo sentados sem dizer nada. Quem fala primeiro é
Winge.
— O que você vai fazer agora, Jean Michael?
— Sobraram alguns fios soltos para amarrar, o suficiente para me manter
ocupado até 1794. Tenho contas a ajustar com Madame Sachs, se conseguir
encontrá-la. E também gostaria de dar uma palavrinha com um ou outro
sujeito. Não ficaria surpreso se aquele feitor de escravos Dülitz fosse acordado
numa noite com o ruído de madeira batendo em madeira. E, se me sobrar
energia, a Ordem das Eumênides se revelaria um desafio razoável para alguém
que conseguiu atrapalhar o próprio chefe de polícia.
Ele esvazia o copo que tornou a ser enchido.
— Quer dizer, contanto que eu não me deixe distrair pelo conhaque, certo?
Encontrei um bar do qual acho que vou gostar e onde me têm em boa conta.
Chama-se Patife. E você? Como vai ser o julgamento de Balk?
Winge não responde. Com preocupação, Cardell observa como a respiração
do outro está curta e acelerada, como suas bochechas se encovaram e cavaram
dois buracos em sua face, como os olhos afundaram nas órbitas e como algo
em Winge mudou. Sente um arrepio gelado lhe descer pelas costas.
— Você está diferente, Cecil. E não é a doença. Alguma coisa aconteceu.
Tem alguma coisa errada.
A voz de Winge sai tão baixa que Cardell precisa chegar mais perto para
ouvir o que ele está dizendo.
— Quando penso na vida que tive, Jean Michael, vejo uma corda trançada
de causa e efeito. Os ideais aos quais me agarrei na juventude guiaram meus
atos quando adoeci e decidi aliviar o sofrimento da minha esposa. Para aliviar o
meu próprio, procurei Norlin e pedi um emprego. Ele me fez um favor, e,
quando me pediu outro em troca, eu não pude recusar. Então nos conhecemos,
você e eu, junto ao corpo morto de Karl Johan, e começamos a trilhar o
caminho que seguimos até chegar onde estamos agora.
Ele abafa uma tosse. Cardell se inclina por cima da mesa.
— O que você fez?
— A vida é como duas estradas seguindo em direções opostas. Uma segue a
emoção, a outra a razão, e tomei o caminho da segunda. Johannes conhecia
meu nome e minha reputação e supôs que eu fosse continuar no caminho da
razão indiscriminadamente, como sempre foi. Tenho certeza de que ele teria
tido sucesso em seus esforços caso eu não houvesse decidido romper o padrão
que segui a vida inteira.
Diante daquele fluxo de palavras, Cardell balança a cabeça sem entender.
— Me diga o que você fez.
— Eu mostrei a Johannes a carta de Daniel Devall que encontramos entre a
correspondência de Liljensparre, aquela na qual Devall renunciava aos seus
deveres e expressava o seu amor. Johannes matou um homem inocente. O
mostro descobriu que tinha uma consciência, que merecia ser punido, e que os
pensamentos que o tinham levado a querer amaldiçoar nossa raça inteira eram
infundados. Então propus a ele um arranjo que me era possível executar. Na
cela ao lado da dele havia um prisioneiro chamado Lorentz Johansson,
condenado por ter matado a esposa e que deveria ter sido conduzido ao
cadafalso hoje de manhã. Como você sabe, o nome de Balk não estava em
lugar nenhum dos registros de prisões, algo de que me certifiquei quando o
levamos para Kastenhof. Ontem à noite, eu ofereci a Johannes o lugar no bloco
de execução que deveria ter sido de Lorentz Johansson. E ele aceitou. Penhorei
meu relógio de bolso, e as últimas moedas que tinha dei ao guarda para ele me
ajudar e jurar silêncio. Quando a carroça do carrasco chegou, pusemos
Johannes Balk em cima dela e o mandamos para a morte no lugar de
Johansson.
— Mas a carta de Devall estava escrita em código. Como você conseguiu
decodificá-la?
— Eu não consegui.
Cardell precisou se recostar para conseguir respirar um pouco. Winge
continua.
— Usei o tempo que você me deu para inventar um código que fizesse a
carta de Daniel Devall dizer o que Johannes precisava ler para aceitar minha
proposta. Não foi fácil, Jean Michael, e me custou muito, mas eu consegui.
Tudo que precisei fazer depois foi colocar na carta uma data posterior. Não sou
um grande falsário, mas esse detalhe era insignificante demais para Johannes
perceber qualquer diferença na caligrafia.
Cecil Winge empurra lentamente pela mesa um copo de conhaque cheio até
a borda.
— Esse copo na sua frente é o mesmo ofertado a Johannes hoje de manhã
no caminho da sua execução, o derradeiro trago oferecido a cada prisioneiro
levado para além dos muros da cidade. Ele o esvaziou a menos de dez passos de
onde nós estamos sentados agora. Eu estava aqui, ele me viu no meio da
multidão, e quando nossos olhares se cruzaram só vi gratidão. Com a minha
mentira, eu havia mostrado a ele que o mundo não era o inferno que ele tanto
odiava. Ele confiava em mim, e não teve como saber que na verdade eu acabara
de provar que a depravação da nossa espécie é uma regra sem exceção. Eu tirei a
vida dele com meus papéis, Jean Michael, de modo tão certeiro quanto se os
tivesse usado para separar a cabeça do corpo. Ele me lançou um último olhar
por cima do ombro enquanto a carroça seguia em direção ao Portão do Fortim,
e então eu o perdi de vista. A Sra. Norström gravou o nome no copo com um
prego. O copo agora tem inscritos a data e o nome Johansson, muito embora o
verdadeiro Johansson esteja sentado numa carroça a caminho da Noruega,
onde irá trabalhar nas cervejarias sob o nome de solteira de sua mãe. Este copo
pertence a Johannes Balk. E agora eu lhe pergunto, Jean Michael: você beberia
à minha saúde uma última vez?
Cardell passa um tempo sentado em silêncio antes de estender por cima da
mesa a mão envolta em trapos. Está trêmula quando ele empunha o pequeno
copo com sua inscrição malfeita e sorve todo o conteúdo num só gole. O
líquido faz sua garganta arder e transforma sua expiração num sibilo sob o
olhar de Winge.
— Você me perguntou outro dia sobre o bebê, se é meu ou do praça. Bem...
Até hoje eu não sei, mas torço de todo coração para ser dele.
Winge se levanta, apoiado pesadamente nas costas da cadeira, e começa a se
encaminhar para a porta. Não chega nem à metade do caminho quando
Cardell o chama com uma voz que força tanto a ponto de quase fazê-la falhar.
— Você um dia me disse que estava diante de um abismo, mas que
encontrava conforto numa chama que segurava em suas mãos. Agora só vai
haver escuridão?
Cecil Winge lhe sorri de volta um sorriso cheio de tristeza, mas livre de
remorso, onde tanto a vitória quanto a derrota têm lugar. A noite começa a cair
e a se acomodar sobre Estocolmo, uma das últimas do ano. Ela se ergue acima
das baterias que protegem a cidade do mar, sobe pelos muros do palácio e pelas
flechas das torres das igrejas. A noite vai cobrindo as ondas para os lados do
Cais e da Cidade-entre-as-Pontes, para lá da Eclusa de Polhem e mais além.
Nas ruas da cidade, as sombras se levantam em resposta.
À medida que as horas passam, os acessos de tosse acometem Cecil Winge
com frequência cada vez maior. Ele não consegue mais contê-los nem vê
motivo para tal. Quando ri para Mickel Cardell à luz do fogo, seus dentes estão
tingidos de sangue.
SOBRE O AUTOR

© GABRIEL LILJEVA

Niklas Natt och Dag, nascido em 1979, tem forte conexão com a história de
seu país, sendo descendente da mais antiga família da nobreza sueca viva.
1793, seu romance de estreia, foi vendido para 35 países e ganhou prêmios
importantes como o de melhor ficção estreante da Academia Sueca de
Escritores de Ficção Policial, em 2017, e o Livro do Ano da Suécia, no ano
seguinte. O autor mora em Estocolmo com a esposa e dois filhos.
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