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ISSN: 2176-8943

Vol. 1 | nº. 2 | 2009

2
Revista Discente
Programa de Pós-Graduação em História,
Política e Bens Culturais (PPHPBC)
CPDOC | FGV
Sumário

Apresentação 02

Artigos

A cidade e a guerra: a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a


Guerra de 1932 03
Raimundo Helio Lopes

Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado: a


contribuição do sincretismo religioso brasileiro 25
Renato Somberg Pfeffer

Realengo e a Escola Militar: um estudo sobre memória e patrimônio urbano 39


Claudius Gomes de Aragão Viana

Entrevista

Arte, Educação e Cidadania: o Programa Cultura Viva 60


Aline Portilho entrevista de Célio Turino

Resenha

Balanços e perspectivas sobre os primórdios do Sport em terras brasileiras 71


Cleber Augusto Gonçalves Dias
Apresentação

A revista Mosaico em sua edição nº2 traz à luz um debate sobre construção de
memórias e cidadania. Em uma avaliação que perpassa as preocupações lançadas pelos
artigos, a compreensão da memória construída como instrumento de mobilização
cidadã em vista a um projeto democrático aparece na discussão sobre a Revolta
Constitucionalista de 1932, bem como na análise do sincretismo religioso brasileiro,
passando, é claro, pela influência de uma instituição militar na vida cotidiana e no
desenvolvimento de um bairro carioca.
Resumo:
Este artigo procura analisar as ações de
mobilização na cidade de Fortaleza, capital do
estado do Ceará, durante a Guerra de 1932. Nos
dias de conflito, nesta cidade houve uma forte
campanha de mobilização para estimular a
participação da população na guerra. Esta
campanha teve diversos articuladores, como a
Interventoria local, Igreja Católica cearense,
setores significativos da imprensa, vários
cidadãos sensibilizados com a defesa do Governo

A cidade e a
Vargas, além de diversos grupos civis, militares e
políticos. Destacaram-se, como estratégias
significativas presentes em Fortaleza, meetings,

guerra: a passeatas, campanhas de arrecadação de


dinheiro para os soldados, intensa campanha nos
jornais fortalezenses e desfiles públicos.

campanha de Palavras-chave: cidade de Fortaleza,

mobilização e o Governo Vargas, Guerra de 1932, mobilização.

cotidiano de Abstract:
This article attempts to analyze what happened in
Fortaleza durante the city of Fortaleza, the capital of the state of
Ceará, during the War of 1932. During the

a Guerra de 1932
conflict, the city saw a strong campaign to
mobilize the population to participate in the war
effort. This campaign had several articulators,
such as the “Interventor”, the Catholic Church,
Raimundo Helio Lopes1 significant sectors of the press, several people
that moved into the defense of the Vargas
government, plus various civil, military and
political groups. Several strategies to organize this
mobilization were significant in Fortaleza, such as
meetings, marches, campaigns to collect money
for soldiers, intense newspaper campaing and
public parades.

1 Universidade Federal do Ceará.


4 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

Há vasta bibliografia que aborda o conflito armado conhecido como Revolução


Constitucionalista de 32. A maior parte dessas obras tem como eixo principal de análise os
aspectos ligados ao Estado de São Paulo (De PAULA, 1998: 29), tido como grande “sujeito”
promotor da guerra e campo dos principais desdobramentos e acontecimentos relacionados
a ela. Acreditando em outras possibilidades de olhar esse conflito e a fim de entendê-lo a
partir de outras perspectivas, buscamos estudar essa guerra civil tirando o foco de São Paulo
e concentrando a análise no Estado do Ceará, averiguando o impacto da guerra neste Estado
e as diversas relações estabelecidas e construídas com a população local.

Nesse sentindo, é importante destacar que a terminologia para designar esse


conflito muda de acordo com a corrente que o interpreta, sendo construídas, assim, diversas
denominações como “A guerra paulista”, “Movimento constitucionalista”, “Revolução de
1932”, “Epopéia Bandeirante” ou até mesmo “Contra revolução de São Paulo” (De PAULA,
1998: 23). Acreditamos que esses nomes estão impregnados de sentidos políticos que
margeiam as análises ou são pensados dentro de concepções sobre a guerra que destacam
exclusivamente São Paulo. Procurando fugir disso, e analisando-a a partir de outro ângulo,
preferimos denominá-la Guerra de 1932.

A Guerra de 1932 foi o maior movimento de oposição ao governo de Getúlio Vargas,


assim como um conflito bélico de enormes proporções ocorrido dentro do território
nacional, elementos de relevância para entender o impacto que teve no cenário político
brasileiro. Mesmo tendo o palco bélico praticamente limitado a São Paulo, todo o país foi
convocado a participar, reafirmando o apoio ao ainda recente Governo Provisório tanto
quanto enviando soldados ao combate, fossem esses efetivos militares ou forças irregulares
(HILTON, 1982).

Analisando o Estado do Ceará durante o conflito 2, além do envio de tropas,


constatamos intensas discussões e campanhas políticas sobre a Guerra de 1932 que
buscavam angariar apoio para a luta ao lado do Palácio do Catete. Essa complexa teia de
apoio pode ser percebida a partir das diversas pessoas que atuaram na sua construção. Além
das instâncias governamentais envolvidas com o conflito, como a Interventoria cearense,
tendo à frente Roberto Carneiro de Mendonça, vários sujeitos e grupos sociais articularam
ações que procuraram legitimar a guerra, tendo como base o significado da “Revolução de
30” para a nação, em contraposição às primeiras décadas republicanas, justamente
entendidas como o período no qual os revoltosos de então controlavam a política nacional.
Assim, se a chegada de Vargas propunha uma nova República que beneficiaria o Norte, nada
mais urgente que o posicionamento favorável junto ao lado federal (SOUZA, 1982)
(PANDOLFI, 1980).

2As relações entre o Ceará e a Guerra de 1932 foram analisadas na pesquisa que desenvolvi durante o
mestrado: LOPES, Raimundo Helio. Os Batalhões Provisórios: legitimação, mobilização e alistamento
para uma guerra nacional. (Ceará, 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2009.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Raimundo Helio Lopes 5

Concomitante a este intenso debate político que legitimava a luta contra os


insurgentes, os dias de conflito eram vividos em Fortaleza 3 não pelas trincheiras ou bombas
inimigas, mas nas diversas manifestações que buscavam mobilizar a população,
aproximando-a da Guerra de 1932 e alertando-a para as ações rivais. Havia um conflito
nacional e a população não poderia esquecer que sem a sua participação, mesmo sem partir
para o front, a vitória seria mais difícil e distante.

II

Desde o início da Guerra de 1932, ficou claro para o Governo Provisório que a forma
de apoio mais efetiva dos Estados do Norte seria o envio de batalhões provisórios. Para
tanto, a busca por uma legitimação do combate contra os inimigos foi intensa, articulada por
pessoas e setores políticos que apoiavam Getúlio Vargas e sua nova, e de certo modo ainda
pouco definida, proposta de governo. Contudo, o envolvimento com a guerra não poderia
ser restrito apenas aos aliados e ao Exército. A situação era de guerra e toda a população
deveria se envolver na causa revolucionária, até mesmo os que não partiriam para o front de
batalhas:

Encorporados ao 2 Batalhão Provisorio do Ceará para combater aos


sediciosos paulistas, temos a satisfação de apresentar ao Povo Cearense,
principalmente aos nossos amigos, as nossas despedidas, no momento em
que encetamos a marcha contra os inimigos do Brasil. Resolvidos a oferecer à
Patria, por sua integridade, o maximo de nossas energias, senão a propria
vida, lamentamos que não estejam ao nosso lado todos os camaradas moços
que ficam, embora estejamos certos de que nenhum cearense deixará de
contribuir para que esta terra pague em parte os benefícios recebidos
daqueles que dirigem a nação no momento atual. 4

A proclamação acima foi assinada por 3ºs sargentos ligados a um dos batalhões
provisórios cearenses que partiram para a luta em São Paulo 5 e tinha como título o mesmo
público ao qual era destinada: “Aos que ficam”. É notório que para os construtores da defesa

3 Vale destacar que toda a região Norte do Brasil, entendida, nesse momento, pelos estados de
Amazonas, Pará, Piauí, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia e Espírito Santo, foi fortemente mobilizada e envolvida na Guerra de 1932. Para este
artigo, a análise se concentrará em Fortaleza, visto a pesquisa que desenvolvi para o curso de
Mestrado em História Social da Universidade Federal do Ceará. Sobre o envolvimento desses outros
estados ver: PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In: GOMES,
Angela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980 e HILTON, Stanley. A Guerra civil brasileira: história da
Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
4 Jornal O Povo, 09 de setembro de 1932.

5 Saíram do Ceará seis tropas, sendo duas delas escalões oficiais do 23º Batalhões de Caçadores (23º

B.C.) e quatro compostas por alistamentos voluntários.

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6 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

do Governo Vargas, além do embarque de tropas para a luta armada, era necessário o apoio
da população à causa governista. Dessa forma, concomitantemente ao processo fervoroso de
legitimação da Guerra de 1932, várias manifestações que buscavam mobilizar a população
para a guerra foram produzidas pelo governo e seus apoiadores. Esta mobilização visava
construir um ambiente de beligerância no Estado e na sua capital Fortaleza, em que todos
deveriam estar a postos para defender o Governo Provisório, mesmo que sem partir para o
combate.6 Buscava-se assim consolidar o apoio e conquistar aliados que, sem dúvidas,
deveriam ser mais numerosos que os alistados nas tropas. Ao mesmo tempo em que a
campanha de mobilização ganhava força, alimentavam-se cada vez mais as fileiras de
alistamento.

Muitas cidades interioranas do Ceará tiveram intensas ações de mobilização, mas a


capital cearense foi o centro de toda a articulação e organização governamental. Em
Fortaleza, o impacto da guerra e as manifestações de mobilização foram de grandes
proporções. Durante três dias, a Praça do Ferreira, uma das mais importantes áreas públicas
do centro da cidade, foi palco de comícios a favor do Governo Provisório. O primeiro deles
iniciou-se às 22 horas do dia 19 de julho e teve como principal articulador o professor do
Colégio Militar Tenente-Coronel Humberto Pimentel, que discursou para os presentes. No dia
seguinte, os jornais já estampavam o convite para o novo evento.7 Assim, a partir da sete da
noite, já era visível a aglomeração das pessoas no local marcado, tendo a atividade se
iniciado com o mesmo articulador do dia anterior:

O orador terminou convidando o povo para ir ao palacio do governo


manifestar a sua integral solidariedade ao exmo. sr. Interventor Federal nesse
momento de grande provações para a patria brasileira. A massa popular
dirigiu se, em seguida, para a Praça General Tiburcio, aparecendo nesse
momento, em uma das janelas do palacio, o exmo. sr. Carneiro de Mendonça,
que foi muito aclamado, ouvindo-se também, vivas unisomos aos nomes dos
drs. Getulio Vargas e José Americo. Ali falou novamente o sr. tenente-coronel
Humberto Pimentel, que após uma rapida digressão sobre o movimento
rebelionario de S. Paulo explicou ao chefe do governo cearense o que
significava aquela manifestação. Entre calorosas salvas de palmas o exmo. sr.

6 Analisando a mobilização e o cotidiano da cidade de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial,
Roney Cytrynowicz defende a idéia de front interno: “Não se trata apenas de oferecer toda a
retaguarda e a infra-estrutura econômica e militar para os exércitos, mas de se preparar militarmente
para bombardeios contra alvos claramente civis e, essencialmente, de manter todas as esferas da vida
privada e pública em permanente estado de mobilização a serviço do Estado, submetidas a uma lógica
e a um controle que escapavam inteiramente à compreensão do indivíduo.” Cytrynowicz, Roney.
Guerra sem guerra: mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São
Paulo: Geração Editorial, 2002. p. 15. Nesse estudo, o autor argumenta sobre a importância da
participação da população no momento de guerra, e como o Estado atua para conseguir esse objetivo.
Durante períodos de guerra, o cotidiano das cidades envolvidas no conflito alterava-se, a partir da
atuação de diversos setores sociais que dialogavam com essas ações.
7 Jornal O Nordeste, 20 de julho de 1932.

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Artigos Raimundo Helio Lopes 7

capitão Carneiro de Mendonça, agradeceu aquela prova de solidariedade do


povo cearense, pronunciando incisiva oração sobre os acontecimentos
verificados ultimamente no sul do pais. 8

No dia 22 de julho, outro comício foi anunciado à população, que era convidada a
participar “com o máximo respeito durante esta manifestação”. Neste discursaram, além do
militar-professor articulador dos eventos, jovens e representantes de Iguatu e
Quixeramobim.9 Esses eventos públicos marcaram a paisagem urbana fortalezense durante a
Guerra de 1932, construindo um clima de guerra que se propagava, levando o conflito, os
inimigos, os medos e as esperanças relacionados à luta armada para perto da população
cearense.

Essas não foram as únicas ações e agentes envolvidos na mobilização. A Igreja


Católica atuou nesse processo, reforçado o envolvimento dos fiéis com a guerra. Em uma
proclamação assinada pelo Arcebispo de Fortaleza, D. Manoel da Silva Gomes, além de
deixar clara sua crítica ao mundo cada vez menos cristão, determinou, “a exemplo do que fez
o Exmo. Snr. Cardeal para a sua Archidiocese” 10, um tríduo pela paz, que em Fortaleza
realizou-se entre os dias 12, 13 e 14 de agosto. Além das orações nas matrizes, igrejas,
capelas e colégios cristãos, nesses três dias de grande fervor religioso, o respeitado clérigo
determinou algumas medidas ligadas à luta em que o Ceará estava envolvido.

A primeira delas foi uma procissão, em que ele próprio convocou “todas as
associações operarias, Ordem Terceira, Congregações Marianas masculinas, União de Moços
Catholicos, Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cathedral, Conferencias Vicentinas e mais
associações religiosas masculinas” para participarem da procissão de penitência, composta
só de homens, encarada como uma “tocante manifestação piedosa”. 11 Apesar da exigência
da participação exclusiva de homens nessa grande manifestação contra a guerra, a força do
pedido do Arcebispo não pode ser minimizada, sendo plausível imaginarmos que a grande
maioria dos católicos ficou sabendo claramente de suas medidas oficiais sobre o conflito e do
seu posicionamento diante do momento político. Pela amplitude do catolicismo no Estado, e
no Brasil, é possível perceber o peso e a importância desse aliado.12 Nesse sentido, a
Associação das Senhoras de Caridade convocava para a sua reunião ordinária, mas não
deixava de alertar que, além da pauta normal, também discutiriam para “tomarem parte no
Triduo pela paz no nosso Brasil (...) em seguida à reunião”. 13 Assim, voltando à procissão:

Constituiu cerimonia innegavelmente majestosa a grande procissão

8 Jornal O Povo, 21 de julho de 1932.


9 Jornal O Nordeste, 22 de julho de 1932.
10 Jornal O Nordeste, 06 de agosto de 1932.

11 Jornal O Nordeste, 12 de agosto de 1932.

12 Sobre as ligações entre a Igreja Católica e o Governo Vargas ver LEVINE, Robert. Pai dos pobres? O

Brasil na era Vargas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. pp. 61-62.
13 Jornal O Nordeste, 10 de agosto de 1932.

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8 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

de penitencia pelo Brasil (...). Não só a enorme e compacta multidão de


homens que nella tomou parte, mas, sobretudo, os sentimentos do mais alto
respeito e convicção religiosa que todos demonstraram deixou Fortaleza sob
a impressão de que, realmente, Nosso Senhor terá piedade do Brasil, sob o
penhor da crença penitente dos nossos homens, em favor da Nação. (...)
Extendia-se o cortejo da porta da Cathedral pela rua Castro e Silva a fóra,
numa reunião de milhares de homens de todas as classes sociaes, de cujos
peitos una voce, irrompeu a intonação grave e commovente do “Senhor
Deus, misericórdia!” Fechando o prestito, vinha o exmo. e revdmo. sr.
Arcebispo Metropolitano, dom Manuel da Silva Gomes, acompanhado por
membros do clero e autoridades, entre as quaes, conseguimos annotar o
major Francisco Ribeiro Montenegro, representando o sr. Interventor Federal;
dr. Francisco Matos, procurador geral da Republica; desembargadores Pedro
Paulo da Silva Moura, presidente do Superior Tribunal de Justiça, e Abner de
Vasconcellos, procurador geral do Estado; dr. Ubirajara Coelho de Negreiros, e
sr. Franklin Gondim, delegados da capital; dr. Bernardo Café Filho, director
regional dos Correios e Telegraphos e outros. O prestito movimentou-se pela
rua Castro e Silva, tomando pela Senador Pompeu e encaminhando-se para a
Praça José de Alencar, onde, em frente à matriz do Patrocinio, assistiram os
penitentes à benção do S. S. Sacramento. A seguir contornou a procissão a
referida praça adeantando-se pela rua 24 de Maio até encontrar o boul.
[boulevard] Duque de Caxias e surgir na Praça Gonçalves Ledo, em frente à
matriz do Carmo. (...) Dispersou-se, ahi o grandioso prestito, podendo-se,
então, mais bem avaliar o incomputavel numero dos homens de Fortaleza
que nella tomaram parte, pedindo a Nosso Senhor pela paz do Brasil. 14

Nessa longa citação, há muitos elementos interessantes sobre a mobilização em


Fortaleza. A manifestação articulada no seio católico congregou intimamente aspectos
religiosos e cívicos, tendo na oração e na penitência armas para combater o mal, ou seja, a
guerra. Juntamente com várias organizações religiosas e de trabalhadores, estavam presentes
importantes autoridades civis, militares, jurídicas e políticas, ao lado do maior líder católico
do Estado, o Arcebispo. Esta significativa imagem simbolizava a íntima ligação desses
poderes, que estavam unidos em prol da luta contra o inimigo político e pela paz. Além disso,
o clero cearense entendia que esse momento conturbado era favorável para reafirmar seus
valores junto à sociedade e consolidar seu prestígio junto ao novo governo. Vale notar
também que a manifestação deveria ser exclusiva de homens, possivelmente futuros
soldados da defesa política e da fé católica. Esse movimento político-religioso, também como
sinal de prestígio, tomou a cidade caminhando nas principais ruas, praças e igrejas,
convidando a população a participar do momento que tanto atormentava o país, alastrando
pelas vias públicas a força cearense na defesa do Governo Provisório.

Outra medida do Arcebispo, ligada ao tríduo e declarada juntamente com a


procissão, passou a agitar a cidade todas as noites, mais uma vez tendo a guerra como mote,

14 Jornal O Nordeste, 16 de agosto de 1932.

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Artigos Raimundo Helio Lopes 9

construindo uma atmosfera favorável à defesa e ao combate. A partir do dia 17 de agosto, a


imprensa católica publicou, diariamente, a seguinte nota:

Enquanto perdurar a luta armada no Sul, os sinos da capital, todos


os dias, ás 19 horas, tocarão nove badaladas, em grupos de três, para lembrar
aos fieis, a S. S. Trindade e convidá-los a orar a Deus Trino e Uno, pedindo
misericordia para o Brasil. Todos, mesmo os que não praticam a religião, mas
são brasileiros e crêem em Deus devem guardar silencio profundo durante
esse toque, si não de alarma, pelo menos de sentido e attenção ao que se
está passando em nossa pátria. 15

Com essa medida, todos os dias, a população de Fortaleza era convidada a pensar
sobre a guerra a partir das badaladas dos sinos que ecoavam pela cidade. Nessa
proclamação, os ideais políticos e patrióticos superavam a doutrinação religiosa, já que a
Igreja pedia a atenção de todos e não apenas a seus fiéis. A estes clamavam orações pela paz,
enquanto dos não católicos esperava-se que, mesmo sem rezar, refletissem sobre a luta. A
Igreja Católica e a Interventoria estavam unidas e envolvidas na defesa da nação,
promovendo em toda a cidade manifestações que estimulavam a participação da população
no conflito. A determinação do tríduo mostra uma ação planejada e executada fora da
liturgia comum da Igreja para envolver-se com as questões políticas nacionais que estavam
presentes no Estado, pois a outorga desse tríduo, sem dúvidas, estava mais relacionada ao
contexto político do que ao calendário religioso. Tanta para o Clero cearense como para a
Interventoria, a guerra era assunto de todos e sem o envolvimento da população a vitória
não seria alcançada.

Concomitante a essas manifestações, os batalhões provisórios também motivaram


outras pessoas a organizarem ações de apoio, já que o seu embarque consolidava a forma
mais direta e concreta de envolvimento cearense na defesa do Governo Provisório. Um
comerciante da cidade, José Julio Barbosa, com o objetivo de ajudar as forças cearenses,
doou “ao Batalhão Provisorio que hontem partiu para o sul, varios pacotes do pó limpa
metaes ‘Itá-Irá’, com o emprego do qual, os nossos soldados farão reluzir as suas
armas”. 16 Tal atitude revela o envolvimento do comerciante com as forças locais, fazendo ele
próprio uma doação que visava auxiliar as tropas em luta. Mesmo assim, pode-se pensar que
tal ato pode ter sido também motivado por interesses financeiros, já que o seu nome e do

15 Jornal O Nordeste, 17 de agosto de 1932. No dia 26 de julho, o jornal O Povo publicou uma nota,
datada de 19 de julho, com “Novas instruções do Cardeal D. Sebastião Leme aos fieis” em que “Além
das costumadas AVES MARIAS, os sinos das igrejas, ás 21 horas, darão, todas as noites, nove
badaladas compassadas, como um convite a todos os homens de fé onde quer que se achem, para que
durante alguns instantes se recolham em oração pelos que, longe da familia, estão sofrendo os
horrores e perigos da guerra”. A partir de 15 de Setembro, o Governo Arquidiocesano informava que
as badaladas foram transferidas para as 21 horas “para acompanhar a hora da paz estabelecida em
outras dioceses”.
16 Jornal O Nordeste, 17 de agosto de 1932.

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10 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

seu produto ligavam-se à defesa que estava sendo construída, podendo ser mais aceito pelo
comércio local. A própria chamada da matéria sugere isso: “O ‘Itá-Irá’ foi para as linhas de
frentes”. Destacam-se mais o produto e a guerra do que o ato voluntário de doação motivado
por envolvimento político.

Ainda nesse entusiasmo de participação política, a intensa campanha jornalística


ligada à guerra parece ter motivado alunas e professoras da cidade:

Attendendo ao apello da “Legião 5 de Julho”, do Rio, à mulher


nordestina, afim de prestar conforto aos soldados legalistas, a “Liga
Bondade”, formada das alumnas do 3.º anno A e 3.º anno B, do Grupo Norte
da Cidade, angariou donativos nesse sentido, sobresaindo-se as intelligentes
pequenas Simone Fontenelle, Nair Gomes, Aila Nogueira e Eunice Britto. A
importancia angariada, 180$000, foi entregue a esta redacção por distincta
commissão de professoras daquelle Grupo, e será enviada ao sr.
commandante das forças provisorias, que seguirão nestes poucos dias para o
sul. 17

A conquista desses recursos para os soldados foi iniciativa de um pequeno grupo


colegial, que sensibilizou-se diante dos constantes apelos envolvendo a participação e
mobilização na guerra, oriundos dos diversos grupos políticos, locais ou não, que estavam
ligados à defesa do Governo Provisório. É o caso da Legião Cívica 5 Julho, que aparece
diversas vezes na imprensa cearense como sendo uma organização ligada às forças federais
que auxiliavam às tropas. 18 Outro aspecto interessante é que o dinheiro conseguido foi
entregue à redação do periódico e não diretamente ao Exército ou à Interventoria,
mostrando que diversas pessoas na cidade entendiam que havia uma íntima ligação entre a
imprensa cearense e a formação dos batalhões.

Também com o intuito de ajudar os batalhões financeiramente, outras


manifestações aconteceram:

Amanhã, ás 8 horas, um grupo de senhorinhas da nossa sociedade


percorrerá o commercio desta capital, num bando precatorio de auxilio ao
Soldado Cearense, que segue para o front. Essa iniciativa partiu da comissão
promotora do ultimo festival que, com mesma finalidade, foi levado a effeito
ha pouco no ‘José de Alencar’. 19

Esse grupo de senhoras percorreu as ruas centrais da cidade buscando angariar

17 Jornal O Nordeste, 19 de setembro de 1932.


18 Vale registrar que era a essa Legião que deveriam ser enviadas as correspondências aos soldados em
combate, destinando-as a Rua Rodrigo Silva, 8 – Rio de Janeiro.
19 Jornal O Nordeste, 15 de setembro de 1932.

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Artigos Raimundo Helio Lopes 11

fundos, em uma tentativa de atrair os comerciantes e citadinos para participarem da luta,


contribuindo de diversas formas. Além disso, essa não era a primeira iniciativa deste
movimentado grupo. Na casa de espetáculos mais tradicional do Estado, realizaram-se
festivais para aproximar cada vez mais a cidade das tropas, já que era no referido teatro que
a maioria das tropas voluntárias estava aquartelada. “A noitada de hontem no Teatro oficial”,
que aconteceu cerca de quinze dias antes da comitiva no comércio local, foi assim noticiada:

Como estava anunciado, efetuou se hontem, no “Teatro José de


Alencar”, com seleta assistencia, da qual se destacavam o exmo. sr. capitão
Carneiro de Mendonça, interventor federal, e altas autoridades, o festival
promovido por um grupo de gentis senhorinhas, em pról dos bravos soldados
cearenses que se encontram no ‘front’, e dedicado ao chefe do estado. O
programa organizado foi fielmente interpretado, tendo agradado
geralmente. 20

O jornal noticiou o agrado geral dos espectadores e a presença de autoridades


estaduais, tendo o Interventor como a figura a quem foi dedicada o evento, o que sugere a
ligação com à Inteventoria. No segundo festival, que aconteceu no mesmo local e foi
promovido pelo mesmo grupo, houve uma cobertura maior. Na prestação de contas
publicada, é possível perceber com mais detalhes como eles aconteciam, a partir dos custos
envolvidos:

Avulsos de propaganda, entradas e programmas...................................50$000


Afinação e transporte de piano............................................55$000
Automoveis que fizeram o transporte da commisão............................170$000
Orquestra Silva Novo...............................................................................24$000
Serviço prestado pelo carro 44, para o transporte das irmãs Gasparinas.5$000
Despesas com o Dr. Leonardo Mota........................................................14$000
Transporte de caminhão com palmeiras para o theatro.........................15$000
Carretos diversos e gratificações aos empregados do theatro................25$000
Impressão do himno
patriotico.............................................................10$000 21

É possível imaginar que o Teatro José de Alencar estava significativamente


ornamentado para a festa, com ativa participação de funcionários da própria casa, tendo
uma ampla divulgação da propaganda do evento pela cidade, convidando a população a
participar desse ato. Aliados com a beleza do local, outros equipamentos eram necessários
para atrair o público, como sugere o aluguel do piano e da orquestra. Além das músicas, o
espetáculo foi composto com a participação de Leonardo Mota, conhecido poeta, escritor,
artista e folclorista de grande influência nos meios jornalísticos e políticos cearenses e
também com a presença das irmãs Gasparinas, possivelmente outra atração artística, já que

20 Jornal O Povo, 25 de agosto de 1932.


21 Jornal O Nordeste, 27 de setembro de 1932.

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12 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

foi a própria organização que pagou o transporte de ambas, algo que dificilmente
aconteceria com um espectador comum. Entretanto, não se poderia esquecer que a festa era
um ato político em prol dos batalhões cearenses, o que justificava a impressão do Hino
Patriótico, que sem dúvidas remetia à defesa da nação diante a guerra, e que provavelmente
foi proclamado pelo público presente no evento.

Esse espetáculo rendeu 625$000 e, tirando os custos citados, lucrou 257$000, sendo
toda renda entregue aos batalhões. Maria Amélia Caminha, no dia seguinte, escreve ao
jornal comentando o espetáculo. Assinando como “humilde e insignificante presidente da
Comissão Angariadora de Donativos em prol dos bravos e valorosos soldados cearenses”, ela
relatou que:

Venho por intermedio dessas desvaliosas linhas pedir vos dar


publicidade no vosso vibrante e conceituado jornal o resultado dos festival
por mim organizado (...) e bem assim inserir á medida que for podendo os
nomes constantes das inclusas listas das pessoas generosas que se dignaram
de concorrer com obulos para aquelles valentes e ousados irmãos
combatentes. Aproveito a oportunidade para agradecer do intimo d’almas as
queridas e dedicadas auxiliares senhorinhas – Icléa de Sá Roriz, Maria Kilda
Cavalvante, Thais Malmann e bem assim as distinctas comissões dos collegios
– Militar, Cearense e S. Luis – á sua coadjuvação esforçada auxiliando me na
ardua incumbencia que tomei a hombros. Dando hoje por terminada nossa
nobre e patriotica missão por ter de seguir brevemente, em companhia do
extremoso irmãozinho Levy, para o campo da luta em defesa da causa
nacional, sirvo me ainda do ensejo para apresentar a todos os filhos desta
heroica e gloriosa terra, que tanto amo, as minhas saudosas despedidas. 22

Na sua missiva, Maria Amélia pediu que o jornal destacasse o festival por ela
organizado e, da mesma forma, as várias pessoas que contribuíram na campanha com
donativos para os soldados. É possível perceber detalhes da organização, como o auxílio de
amigas e pessoas ligadas a três colégios da cidade, revelando que a coordenação não era
isolada, fazendo crer que as notícias envolvendo as organizações locais referentes à guerra
espalhavam-se pelo Ceará. Por último, informou que não é possível mais trabalhar nessas
atividades, pois partirá em breve para o campo de batalhas, juntamente com seu irmão Levy.
As várias ações mobilizantes que ocorreram em Fortaleza não foram exclusivamente atos da
Interventoria. Diversos apoiadores do Governo Provisório no Ceará entenderam a
importância do momento político e partiram para a luta, mesmo ficando na cidade, como é o
caso de Maria Amélia. Logo nos primeiros dias de guerra, ela enviou um telegrama à
Interventoria afirmando que:

Idealista ardorosa e sincera, acostumada a render homenagens aos


grandes e incansaveis batalhadores da nossa liberdade política, queira v.

22 Jornal O Nordeste, 28 de setembro de 1932.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Raimundo Helio Lopes 13

excia. aceitar em meu nome e no do meu irmão Leví (soldado da revolução


de 24 e 30), os nossos desvaliosos serviços qualquer hora do dia ou da noite
neste Estado, ou mesmo em S. Paulo, o que faremos com maximo ardor e
verdadeiro entusiasmo em defesa querida e estremecida Patria. Aguardo
vossas honrosas ordens apresento a v. excia. as minhas respeitosas
saudações. (...) Maria Amélia Caminha, estudante 23

A estudante era irmã de um tenentista que participou de movimentos políticos


significativos na trajetória dessa corrente, o que deve ter influenciado-a, pois desde o início
da Guerra de 1932 ela parece estar interessada na luta e, mais do que isso, cogita a
possibilidade de participar das batalhas no front, algo que parece ter se concretizado, como
foi visto em sua carta noticiando o último festival. Antes da possível partida, a militante
organizou várias ações em Fortaleza que visavam ajudar os batalhões provisórios, e para isso
era fundamental mobilizar a população em torno da guerra. Essas iniciativas, por mais que
fossem particulares, não aconteciam descoladas do interesse governamental, estando elas
também em diálogo com as ações da Interventoria, tendo inclusive a participação do
Interventor em muitos desses momentos. Assim, a mobilização que envolveu Fortaleza
durante a guerra não pode ser entendida sem a participação de diversos agentes e setores
sociais que estavam diretamente envolvidos no conflito, mesmo sem partir para o campo
bélico.

Entretanto, não só comícios políticos que aglomeravam a população na via pública e


em locais importantes da cidade modificavam a paisagem urbana e o cotidiano da cidade. O
comércio local também sofreu alterações durante a guerra. Um leitor, pouco mais de dez dias
depois do início da guerra, já percebia mudanças:

A situação em que nos achamos é deveras horripilante. Quando


houve a greve do pessoal da “Light” o primeiro que se verificou foi o
augmento nos preços dos cereaes. Agora, com esse movimento subversivo de
S. Paulo, estão se passando as mesmas scenas. Emquanto os paulistas estão
em revolução nos é que estamos sendo os prejudicados (...). Os donos de
armazens da nossa praça que se acham com seus “stocks” cheios, agora, já
vão se aproveitando da occasião. Estão subindo os preços dos generos de
primeira necessidade, como sejam: o feijão, a farinha, o arroz, a carne do sul,
etc. Como se fosse mercadoria chegada agora. Pode se dizer que a “fuzarca”
legalista no sul começou hontem. Mas, em tão pouco tempo, já está nos
attingindo de perto. De perto porque de effeito da rebellião sulista, foi que
elevaram o preço da mercadoria aqui. (...) A mercadoria que até sabbado se
comprava por um preço, hoje, já se compra com accrescismo de $200 ou
$300 por kilo. 24

23 Jornal O Povo, 25 de julho de 1932.


24 Jornal O Nordeste, 20 de julho de 1932.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


14 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

O leitor que escreveu a carta, endereçada ao redator do jornal, percebeu com


sensibilidade o estratagema adotado pelos donos de armazéns para aumentar o preço de
seus produtos. Assim como ocorreu na greve dos lighteanos, que agitou a cidade poucos
meses antes 25, os preços dos gêneros básicos de alimentação vinham aumentando, mesmo
tendo sido os estoques formados antes do início do conflito. Certamente, influenciados pelos
constantes e enfáticos discursos sobre a guerra que tomavam conta de Fortaleza, os
comerciantes acharam uma justificativa facilmente compreendida por parcela significativa da
população para aumentar seus lucros: a luta armada prejudicava o comércio e, sendo assim,
os produtos se encareciam. A guerra estava presente, mas a rapidez com que os preços
aumentaram levantou a suspeita do leitor, que no final de sua missiva adverte que “é bom
que as autoridades verifiquem taes ocorrências”. De fato, o conflito aumentou o custo de
vida da cidade, com o passar dos dias e a continuidade da guerra: “Segundo nos consta, os
stocks da praça estão bastante reduzidos, sem que o mercado possa ser abastecido
efficientemente, em face das circumstancias anormaes das praças exportadoras do sul do
pais”. Essa impossibilidade de repor as mercadorias assustava, pois “nessas condições, a
situação se tornará insustentavel, não apenas para a pobreza, que de ha muito vem
soffrendo privações innenarraveis, mas para a collectividade em geral”.26

Outros comerciantes da cidade também entenderam que a guerra poderia ser uma
forte aliada para favorecer seus negócios. As Lojas Brasileiras veicularam, um mês depois do
início do conflito, uma propaganda na imprensa local que dizia: “Revolução... no comercio de
louças: - pratos, chicaras, tijelas, boiões, leiteiras, saleiros, canecas, mantegueiras,
etc”. 27 Muito semelhante a essa, outra propagando anunciava “Revolução na Casa
Maranhense – Assucar Branco Quilo $800”. 28 Vale notar que a primeira palavra dos anúncios
(“Revolução”) vinha em forte negrito e com letras maiúsculas. Sem dúvidas, leitores
interessados nas agitações políticas e bélicas do país atentariam para tais chamadas. A
mesma idéia tiveram os anunciantes do Café Brasil: “Alto!... Café? Só Brasil”. 29 Ao invés de
uma palavra clara sobre o momento político, utilizaram agora um jargão referente a cessar
marchas e artilharias de tropas militares, revelando o forte ambiente bélico e de preparação
militar presente na cidade. Mais enfático e direto do que todos esses foi o Café Brasileira:

25 Durante essa greve, “a subsistência da população da capital e, principalmente, dos sertanejos


retirantes assolados por uma nova crise climatérica estavam ameaçadas frente à paralisação das
atividades do porto. Argumentava-se, por exemplo, que os estoques ‘de gêneros na praça são
pequenos, sendo o mercado freqüentemente reabastecido’ pelos navios ‘de fora do Estado por via
marítima’, sendo, inclusive, pelo porto de Fortaleza que se abastece ‘todo o interior do Estado,
servindo pela Estrada de Ferro de Baturité, não havendo recursos no sertão em vista da secca’. Assim,
‘o fechamento do porto’ causaria prejuízos ‘que não são fáceis de avaliar’ e o comercio varejista da
capital já teria começado a ‘elevar os preços da farinha e de outros gêneros alimenticios’”. PARENTE,
Eduardo Oliveira. Operários em movimento: a trajetória de luta dos trabalhadores da Ceará Light.
(Fortaleza, 1917 – 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2008. p. 183.
26 Jornal O Nordeste, 09 de agosto de 1932.

27 Jornal O Povo, 10 de agosto de 1932.

28 Jornal O Povo, 11 de agosto de 1932.

29 Jornal O Povo, 23 de setembro de 1932.

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Artigos Raimundo Helio Lopes 15

Contra São Paulo


Para combater S. Paulo temos o delicioso “Café Baturité”, que é o
melhor do mundo. Muido a vista do freguez, na “Brasileira” – é o café de
confiança, purissimo. Acabemos com o bairrismo paulista. O “Café Baturité”
garante a supremacia do norte. Se não, dirija-se a “A Brasileira” 30

O título da propaganda já é taxativo: lutar contra São Paulo e seu bairrismo é


também comprar os produtos locais, favorecendo a supremacia da região, diante do
conturbado momento político o qual a nação atravessava. O estabelecimento chamava-se “A
Brasileira”, talvez uma feliz coincidência com os constantes discursos patrióticos presentes na
cidade, e o nome do café remetia à cidade cearense onde esse produto teve uma significativa
produção a partir do final do século XIX. Era o momento de se opor a São Paulo e sua guerra,
inclusive através da compra de produtos que eram contra o Estado beligerante, em especial o
principal promotor de sua riqueza conquistada na Primeira República: o café. Como se
percebe, os comerciantes fortalezenses procuram dialogar com a situação política do
momento para conquistar mais consumidores e lucros, adotando medidas que relacionavam
sua atividade com a luta a favor do Governo Provisório e pela paz da nação.

A mobilização, todavia, em Fortaleza atingia seu ponto mais alto nos embarques das
tropas para o front de batalhas, pois nesses momentos, mais do que nunca, a Interventoria e
os diversos apoiadores do Governo Provisório construíam um clima favorável à causa
governista, fortalecendo mais ainda a relação entre os citadinos e a guerra. A primeira das
forças a partir foi o 1º escalão dessa unidade militar, momento emblemático para perceber
toda a força de mobilização envolvendo os embarques.

Dois dias antes, os jornais já noticiavam a partida do escalão, publicando a data e a


hora do evento, além dos nomes dos oficiais. No dia 1º de agosto, a Interventoria enviou aos
jornais da cidade um convite oficial:

O sr. Interventor Federal convida as autoridade federaes, estaduaes


e municipaes e ao povo, em geral, para assistirem, hoje, ás 11 horas, ao
embarque do valoroso 23.º B.C., que, a bordo do “Paconé”, segue para a
capital da Republica, onde se apresentará para cooperar na defesa do
Governo Provisorio contra o impatriotico levante paulista, chefiado por máos
brasileiros, cujo passado bem define a ambição de que estão possuidos. O sr.
Interventor está certo de que as exmas. familias cearenses não faltarão com
sua brilhante presença, cobrindo de flores os bravos que, no campo de luta,
certamente saberão bater-se com denodo, mais elevando o glorioso nome do
Estado do Ceará 31.

30 Jornal O Povo, 05 de agosto de 1932.


31 Jornal O Nordeste, 01 de agosto de 1932 e jornal O Povo, 01 de agosto de 1932.

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16 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

Além de ter publicado a nota, um dos jornais foi além: “O POVO fez distribuir pelas
ruas e bairros da cidade milhares de boletins transmitidos ao publico o entusiastico apêlo do
sr. capitão Carneiro de Mendonça”. 32 No convite, reafirmava-se a luta contra o inimigo
impatriótico que promovia a guerra em busca de um retorno a um passado em que
dominava o cenário político nacional, prejudicando o restante do país. Apesar disso, as forças
cearenses iriam lutar a favor do novo governo em nome do Estado, merecendo assim todo o
apoio. Não à toa, o convite foi geral, buscando congregar a população e as entidades políticas
locais. Entendendo a importância da participação da população no evento, um dos mais
fortes aliados do Governo Provisório no Ceará, o jornal O Povo e seu fundador Demócrito
Rocha, um dos jornalistas mais combativos ao modelo político da Primeira República no
Ceará, distribuíram várias cópias do comunicado oficial por Fortaleza, buscando assegurar a
maciça participação popular. Assim:

Desde cedinho o movimento na frente do quartel era intenso,


avolumando-se de 9 horas em deante, quando o commercio cerrou as portas.
Pela Avenida Alberto Nepomuceno, rua Pessoa Anta e Avenida Epitacio
Pessoa, a multidão se estendia até a ponte metallica, onde estavam postados
um pelotão do Collegio Cearense, o Tiro de Guerra da “Phenix Caixeral” e a
banda de musica do Regimento Militar. Bondes, autos e “auto-omnibus”
trafegavam repletos. Desde a partida do quartel, cerca de 11 horas, o
batalhão, que marchava garbosamente, puxado pelas suas bandas de musica
e de corneta, foi acompanhado de compacta massa popular, calculando-se,
sem exagero, em 10.000 pessoas a assistirem ao desfile e embarque. No
trajecto, agitavam-se lenços em adeuses e erguiam-se vivas enthusiasticos,
simultaneamente. Ao defrontar a estação telegraphica do porto, um grupo de
senhorinhas atirou flores e pétalas sobre a tropa. E os soldados, animo forte e
alevantado moral, seguiam, altivos para a defesa da ordem e da legalidade. 33

Ainda descrevendo o ambiente durante o desfile e o embarque:

Ao envez de rumar logo destino á ponte de embarque, o 23 B.C. (...)


subiu pela rua Sena Madureira, passando em frente ao Palacio da
Interventoria, onde se achava o cap. Carneiro de Mendonça, dobrou junto ao
Parque da Independencia e, pela ruas S. Bernardo, Major Facundo e Praça do
Ferreira desceu novamente para a Praia de Iracema, acompanhado de
incomputavel multidão e sob aclamações das famílias que atiravam flores nos
soldados. (...) Quando a tropa chegou ao Pavilhão Atlantico era quasi meio
dia e seria impossivel ao menos calcular a extraordinaria concentração do
povo que ali espera os nossos soldados, aclamando os com vivo

32 Jornal O Povo, 01 de agosto de 1932.


33 Jornal O Nordeste, 01 de agosto de 1932.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Raimundo Helio Lopes 17

entusiasmo. 34

No dia do embarque, sem dúvidas, a cidade era outra. Mais uma vez as atividades
da Interventoria em relação à mobilização durante a guerra tomam a área central da urbe e
alteram o cotidiano de seus citadinos. Saindo do Quartel, ao som do Hino Nacional 35, optou-
se em não ir direto ao local de embarque, passando as tropas por importantes ruas,
desfilando juntamente com bandas de músicas e representantes estudantis, políticos e de
trabalhadores. A paralisação da atividade comercial era um sinal de importância que a
manifestação tinha: “um grupo de revolucionarios civis, tendo a frente o coronel Francisco
Pires de Holanda, percorreu o comercio concitando os estabelecimentos a fecharem o mais
cedo possivel a fim de prestar o maior brilhantismo ás homenagens do povo aos nossos
denodados soldados”. 36 Pela ação desse grupo, claramente se percebe o interesse dos
apoiadores na participação da população, sendo assim fundamental que nenhuma outra
atividade concorresse com o embarque, nem mesmo o comércio.

A estratégia de investir no convite à população parece ter surtido efeito, pois o


trânsito de pessoas foi intenso: “Os bonde e automnibus despejavam, continuadamente, á
praça da Sé inumeras familias e os automoveis cruzavam se levando passageiros ansiosos de
saudar a tropa”. 37 Dessa forma, destacou-se a quantidade de pessoas que estavam presentes
no embarque, mesmo com os exageros da imprensa aliada. Esse expressivo número, sendo
“10.000” ou uma “incomputavel multidão”, mostra a força que a mobilização ligada à luta e
defesa do Governo Provisório teve em Fortaleza. É importante perceber que, mais uma vez
tendo em mente os “excessos jornalísticos” presentes nessas fontes, os participantes não
estavam apenas assistindo ao espetáculo, mas manifestando-se intensamente durante todo o
percurso, sugerindo que para muitos a luta contra o inimigo começava ainda no Ceará,
exaltando os soldados.

Os outros embarques ocorreram com a mesma festa política e envolvimento. Na


partida dos três primeiros batalhões provisórios, a cidade também foi tomada por convites
oficiais, homenagens e distribuição de boletins por apoiadores. A Legião Cearense do
Trabalho 38 (L.C.T.) promoveu uma manifestação pública para saudar os líderes militares do 1º
Batalhão Provisório e alistados que faziam parte dos seus quadros. Assim, “cerca de 60

34 Jornal O Povo, 01 de agosto de 1932.


35 Idem.
36 Idem.

37 Idem.

38 Fundada em 1931, a Legião Cearense do Trabalho foi uma organização de natureza corporativista,

integralista e católica de aparelhamento e mobilização de trabalhadores que conseguiu grande


notoriedade no campo político e operário do Ceará. Surgida antes da Ação Integralista Brasileira de
Plínio Salgado, manteve-se em atuação até 1937, quando Getúlio Vargas decretou o Estado Novo,
dissolvendo as entidades de representação de classe. Mais sobre a Legião Cearense do Trabalho em
CORDEIRO JR., Raimundo Barroso. A legião Cearense de Trabalho. In: SOUSA, Simone de (org.).
Uma Nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


18 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

legionarios, todos uniformizados, em dois auto-omnibus” 39, visitaram Olímpio Falconière,


Jeová Mota, Porfirio Lima Filho e Simphronio Ferreira Lima, expoentes dessa organização de
trabalhadores que integraram-se às forças voluntárias, em suas casas, prestando-lhes
homenagem pela brava atitude e importante ato patriótico. Na partida do 2º Batalhão
Provisório, realizaram o mesmo ato com o tenente João Lima 40, também ligado à L.C.T.. Com
isso, a prestigiosa organização de trabalhadores aliava-se aos batalhões e ao Governo
Provisório, declarando publicamente seu envolvimento com a causa.

O clero cearense continuou ativo na mobilização durante as festividades do


embarque, promovendo missas de comunhão coletiva das tropas. Em uma delas:

Monsenhor Tabosa celebrou missa em acção de graças na matriz do


Patrocinio, pelos soldados que seguiram para o front, no 1º batalhão
provisorio que o Ceará para ali envia. (...) Ao evangelho monsenhor Tabosa
dirigiu a sua palavra aos soldados, resaltando a grandeza daquelle acto de fé e
patriotismo. Estiveram presentes á solennidade o major Ribeiro Montenegro,
representante do snr. interventor federal, e demais autoridades. (...)
Ajudaram o santo officio dois soldados gesto esse que demonstrou o espirito
de fé do militar cearense. 41

No dia dos embarques, como já era de se esperar, as rua centrais de Fortaleza foram
tomadas pelo desfile das tropas. No dia 15 de agosto, o 1º Batalhão Provisório desfilou, e
“em varios pontos da cidade, a massa esperava a passagem do Batalhão. Quando fez alto na
praia, ficaram inteiramente congestionadas toda a avenida Atlantica desde o edificio da
Alfandega até a ponte e as imediações”. 42 Pouco menos de um mês, outros dois batalhões
provisórios embarcaram, no dia 13 de setembro. A chegada do navio que transportaria as
tropas, O “Paconé”, foi anunciada pela sirene do Majestic, importante cinema da cidade.
Mesmo partindo juntas, as unidades realizaram desfiles distintos, ressaltando a importância
que essa manifestação tinha para os aliados:

O 2º Batalhão Provisorio (...) foi o primeiro a se dirigir ao ponto de


embarque, (...) puxado pela harmoniosa banda de musica do Colegio Militar
do Ceará. (...) Sendo, durante todo o percurso, muito aclamado pela multidão
que enchia as ruas. Cerca de uma hora depois, desfilava pelas ruas da cidade
o 3º Batalhão Provisorio que, como a outra unidade, foi entusiasticamente
ovacionado por milhares de pessôas. 43

Com as duas últimas tropas que partiram o ânimo não foi diferente. Quando do

39 Jornal O Nordeste, 08 de agosto de 1932.


40 Jornal O Nordeste, 10 de setembro de 1932.
41 Jornal O Nordeste, 16 de agosto de 1932.

42 Jornal O Povo, 16 de agosto de 1932.

43 Jornal O Povo, 14 de setembro de 1932.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Raimundo Helio Lopes 19

embarque do 2º escalão do 23º B.C., três dias depois dos dois batalhões, “o escalão
percorreu diversas ruas, marchando garbosamente, sob applausos do povo”. 44 Além disso, no
dia da partida dessa força, “um grupo de senhoras e senhorinhas filiadas à Igreja Evangelica
de Fortaleza” distribuiu para os soldados uma oração que pedia proteção aos oficiais e
praças. 45 A última força provisória, composta por 300 voluntários, partiu no dia 29 do mesmo
mês, e também desfilou pela cidade, tendo o embarque sido prestigiado pelas autoridades
políticas e população, sendo também marcado pela banda de música do Corpo de Segurança
e por discurso de um dos voluntários. 46

A partir das diversas ações que aconteciam ligadas ao embarque das tropas para a
guerra, é possível perceber o claro interesse dos articuladores da causa governista em unir a
cidade com a força militar local para a defesa do governo. Mesmo sem partir para o campo
de batalhas, a população deveria estar em constante estado de mobilização para a defesa do
Governo Provisório, pois o inimigo poderia estar mais próximo do que se imaginava. Durante
a partida das tropas, as várias manifestações deixavam claro aos inimigos a força que eles
enfrentariam, solidificando todo o apoio que o governo de Getúlio Vargas tinha no Ceará.

Mesmo tendo nesses dias fortes agitações na cidade, a mobilização estava sendo
construída cotidianamente, e a imprensa foi um dos principais agentes nesse processo. Em
praticamente todos os dias, desde 10 de julho, a Guerra de 1932 foi o assunto de capa dos
jornais locais. Manchetes como “A rebelião no Sul do pais”, “A rebeldia paulista”, “As armas
que se levantam contra a legalidade”, “Mais uma vitória das forças do General Valdomiro
Lima”, “O General Gois Monteiro confirma a tomada do Tunel”, “A aviação e artilharia das
tropas federais bombardeiam Cruzeiro”, “O maior combate da America do Sul”, “Continua a
ofensiva na frente mineira”, “Novas conquistas das armas federais”, “De vitoria em vitoria, as
colunas do General Rabelo ocupam sete cidades ao Norte de S. Paulo”, “A marcha vitoriosa
das tropas da dictadura em territorio paulista” e muitas outras, sempre destacavam
positivamente os efeitos das tropas do Governo Provisório sem fazer referência a qualquer
derrota séria. Essas chamadas construíam um quadro em que o moral das tropas era
elevado, mostrando à população a força do governo e de suas tropas nos campos de batalha,
sempre deixando evidente qual seria o lado vencedor. 47

É possível perceber, portanto, uma nova reconfiguração na imprensa cearense


durante a guerra. Nos jornais, além da cobertura em relação aos batalhões e à política
estatal, eram frequentes diversas notícias que mostravam as formações militares de outros
Estados, as agitações políticas em todo o Brasil, a viagem das forças em direção ao front, a
correspondência das tropas do campo de luta em São Paulo, o cotidiano bélico das batalhas,

44 Jornal O Nordeste, 17 de setembro de 1932.


45 Jornal O Povo, 19 de setembro de 1932.
46 Jornal O Nordeste, 29 de setembro de 1932 e jornal O Povo, 29 de setembro de 1932.

47 “Quanto à apresentação do jornal, cabe dizer ainda que a técnica e o conteúdo do título são muito

importantes. Na feitura da manchete, os vocábulos são escolhidos cuidadosamente para deles se


extrair o máximo de efeito. Ela é uma arma de persuasão muito eficaz”. CAPELATO, Maria Helena.
Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. p. 17.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


20 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

as prisões e mortes dos soldados, as rendições dos inimigos e o avanço das forças federais,
além da publicação dos boletins oficiais vindos diretamente do Palácio do Catete.

Muitas dessas informações que estavam na imprensa local eram produzidas em


outros Estados – principalmente Rio de Janeiro, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do
Sul – e oriundas de jornais como a Folha do Norte, O Jornal, Diário da Manhã, Estrella do Sul,
Correio do Povo, Jornal do Brasil, Estado do Pará, Correio da Manhã, Diário da Noite, O
Radical, Jornal da Manhã, A Noite e O Globo. Em uma dessas matérias, intitulada “Como luta
o soldado mineiro na zona do túnel” e estampada no jornal Minas Geraes, foi publicada uma
carta que dizia:

É uma verdadeira epopéa o que estão fazendo. As trincheiras


situadas a 1.800 metros de altura, sob uma temperatura siberiana, envoltas
sempre num espesso nevoeiro, que impede a visão a cinco metros, pela
manhã e pela tarde e que só se deixam aquecer um pouco do meio dia ás 3,
repousam num terreno encharcado e humido. De qualquer dellas avistam-se
com clareza as trincheiras inimigas e, com auxilio de binoculo, vêem-se
perfeitamente os paulistas a conversar lá dentro. (...) O abastecimento é feito
de uma maneira dificílima, as costas dos pobres soldados, que sobem por
verdadeiras paredes. Em muitos lugares foi necessario fazer escadinhas para
que se pudesse galgar as rampas. O transporte dos feridos, mais difficil ainda,
é feito nos braços dos companheiros, porque nem padiola trafêga nos
ingremes e tortuosos trilhos, varados através de espessos tabocal, cheio de
cipó. E, si os paulistas, inclementes como sempre, percebem rajadas sobre
rajadas de metralhadoras, ainda mais dificultam o transporte. 48

O texto descrevia o cotidiano da luta e as dificuldades da região da batalha, o relevo


acidentado e o frio, além da proximidade do inimigo e os constantes confrontos na linha de
frente, aproximando cada vez mais a guerra da população cearense. Vale registrar que a
carta era assinada pelo capitão-médico da Força Pública Mineira Juscelino Kubitschek de
Oliveira.

Dessa forma, a intensa campanha jornalística dos aliados do governo não pode ser
vista como inocente e de pouca valia, pois, ao mesmo tempo em que a imprensa estampava
em suas páginas o clima de guerra, ajudava a construi-lo no Ceará. A informação sobre a
guerra e a ampla divulgação dos acontecimentos, quase sempre vitoriosos na imprensa
aliada, tinham uma importante força política para mobilizar a população nesse momento de
instabilidade.

Esses periódicos parecem ter conseguido dialogar bem com o ambiente de


mobilização em Fortaleza. 49 O jornal O Nordeste, no dia 22 de agosto, publicou um mapa de

48 Jornal O Nordeste, 13 de setembro de 1932.


49 Os jornais que utilizo nesse artigo – O Povo e O Nordeste – eram os dois principais periódicos do

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Raimundo Helio Lopes 21

São Paulo em que aparecem os “limites, localidades, estradas de ferro, de rodagem, rios,
zonas bloqueadas, etc, tudo cirscumstanciado alem das legendas descriminativas das
distancias, populações, posições, etc”. Dois dias depois, o mesmo jornal avisa aos seus
leitores que “tendo-se esgotado nossa edição de 22 deste, e chegando-nos varios pedidos de
exemplares da mesma, daqui e do interior, reproduziremos, amanhã, o cliché de S. Paulo,
publicado naquela edição”. 50 Pelo que parece, o número de leitores interessados em
informações mais precisas em relação à geografia da guerra superou as expectativas dos
editores do jornal, sendo necessária uma nova publicação do mapa para atender à demanda.
Uma semana depois, o jornal O Povo fez o mesmo tipo de publicação, sendo este “uma copia
aproximada do que foi publicado recentemente pelo ‘O Cruzeiro’ e foi gravado em madeira
pelo competente artista conterraneo Raimundo Paula Moreira”. 51 O interesse na geografia
do Estado beligerante abriu espaço também para o envolvimento comercial de alguns
habitantes da cidade:

Tivemos hoje a visita do sr. Americo Laszlo identificado como


jornalista e de nacionalidade hungara, o qual nos veio oferecer um exemplar
do folheto e mapa de sua criação destinado a vulgarizar a situação geografica
das localidades do Estado de S. Paulo. Trata se de uma engenhosa e util
curiosidade cartografica que está sendo vendida ao preço de R$ 3$000 na
Livraria Comercial. 52

Ainda no caso do O Povo, durante todo o conflito ocorreram quatro segundas


edições, com uma quantidade menor de folhas, de seus números diários relacionados à
guerra: a primeira, no dia 19 de julho, quando foi noticiada com pormenores uma batalha
que envolveu grande número de tropas nas linhas de frente; a segunda, em 21 de setembro,
sobre a prisão de Severino Sombra e a respeito de seu movimento contra o Governo
Provisório 53; a terceira, no último dia deste mesmo mês, noticiando que o fim da guerra era

Ceará na época, por sua importância política e por sua circulação. O primeiro era ligado às forças
tenentistas do estado enquanto o segundo era o porta-voz do clero católico cearense. Mesmo com
posições divergentes, declararam apoio ao Governo Provisório, motivados pelas proximidades que
construíram com o novo governo desde a campanha de 1930. Sobre isso ver: MONTENEGRO, João
Alfredo de Souza e CAMPOS, Moreira. Demócrito Rocha – O poeta e o jornalista. Fortaleza: Imprensa
Universitária, 1989 e PINTO, José Aloísio Martins. Serventuários das trevas: os bolcheviques na
imprensa católica (Fortaleza/CE, 1922 – 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2005.
50 Jornal O Nordeste, 24 de agosto de 1932.

51 Jornal O Povo, 29 de agosto de 1932.

52 Jornal O Povo, 29 de setembro de 1932.

53 Severino Sombra, nos primeiros anos da década de 1930, era um respeitado líder político-sindical

cearense e um dos articuladores da Legião Cearense do trabalho. Durante a Guerra de 1932, quando
trabalhava no Ministério do Trabalho, veio a Fortaleza organizar um movimento contrário ao Governo
Provisório, tendo tido grande repercussão na imprensa e no cenário político local. Ao término da
guerra, foi exilado em Portugal juntamente com outros líderes do lado paulista.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


22 A cidade e a guerra:
a campanha de mobilização e o cotidiano de Fortaleza durante a Guerra de 1932

eminente; e a última, no dia primeiro de outubro, comentando as condições para o


armistício. Anos depois, estes meses foram assim lembrados por uma publicação oficial do
mesmo jornal: “Claro que as tiragens de O POVO já eram grandes, as maiores da imprensa
cearense. Mas os acontecimentos de São Paulo vieram dobrá-las”. 54

Todo esse papel cotidiano da imprensa em torno da mobilização para a guerra


parece ter sido eficiente, fazendo com que os ideais de defesa do Governo Provisório
circulassem em Fortaleza e no interior do Ceará. É plausível pensar que, a partir de suas
páginas, a guerra era discutida na cidade tanto no que se refere ao Ceará como ao restante
do país, pois seu envolvimento com a luta não se limitava às fronteiras locais. Em momentos
de grande importância, era necessário aumentar a tiragem ou repetir alguma publicação
especial, ficando claro que grande parte da população dialogava com as informações nela
veiculadas, constituindo e consolidando o clima de guerra. Além do interesse político claro
dos jornais, não se pode esquecer que ambos eram concorrentes e, paralelo ao conflito
armado no sul do país, acontecia uma guerra local em busca de mais compradores e leitores
de suas páginas. A Interventoria esteve colada nesse processo, conseguindo espaço para suas
publicações e estratégias de mobilização, ratificando ainda mais o poder político dos
periódicos nesse momento.

III

Estas ações de mobilização estavam presentes no cotidiano de Fortaleza devido à


árdua atuação de grupos envolvidos com a Guerra de 1932 no Ceará, como a Interventoria, a
Igreja Católica, a imprensa, o Exército e os cidadãos diversos que apoiavam o Governo
Provisório. Neste processo, várias ações foram promovidas para conseguir mobilizar o maior
número possível de pessoas em torno da causa governista, sendo possível acreditar que a
maioria dos habitantes teve alguma ligação, mesmo que mínima, com a mobilização para o
movimento e com as discussões políticas em torno dele.

Na partida de uma das tropas, um jornalista escreveu que “a cidade apresentava


movimento incommum, vibrando de enthusiasmo” 55, percebendo as transformações por que
Fortaleza passava durante a despedidas dos soldados. Sem dúvidas, o “enthusiasmo” não era
exclusividade da capital nem dos dias de embarque. Todo o Estado esteve envolvido com a
formação dos batalhões provisórios cearenses, e a mobilização foi construída no decorrer da
guerra, atraindo e seduzindo a população a participar do conflito de diversas formas. Não
menos importantes do que de armas em punho.

54 COSTA, José Raimundo. Memória de um Jornal. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1988. p. 35.
55 Jornal O Nordeste, 14 de setembro de 1932.

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Resumo:
Uma ética planetária inspirada no diálogo deve
admitir que nossa cultura é apenas uma entre
outras e desistir de qualquer obsessão
imperialista. Isto implica em assumirmos a
democracia como única alternativa possível
para a humanidade. O sucesso de um projeto
democrático depende da capacidade humana

Diálogo
de encontrar referentes éticos mínimos. Isso
torna urgente o reconhecimento universal que
o diálogo entre as diversas tradições culturais
interreligioso e deve receber. O diálogo interreligioso, em
especial, é fundamental neste processo. Esse

construção da
artigo defende a ideia que o sincretismo
religioso brasileiro tem muito a aportar para
concretização desta utopia.
cidadania em um
mundo globalizado: Palavras-chave: diálogo interreligioso,
ética, globalização, sincretismo

a contribuição do
Abstract:
sincretismo A global ethic based on dialogue must admit
that our culture is just one among others and

religioso brasileiro refrain from any imperialist obsession. This


implies to take democracy as the only possible
alternative to the humanity. Democratic project
success depends on the human capacity to find
ethical minimums referring. This becomes
Renato Somberg urgent the universal recognition that the
Pfeffer1 dialogue between the diverse cultural
traditions should receive. Inter-religious
dialogue, in particular, is crucial in this process.
This article defends the idea that the Brazilian
religious syncretism has much to contribute to
achieving this utopia.

1 IBMEC-MG e FUMEC.
26 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

As incertezas geradas pelas relações interculturais em um mundo globalizado

O sonho ilustrado de uma sociedade emancipada baseava-se em uma tríplice


racionalidade: a economia de livre mercado, a teoria contratualista através da participação
democrática e da vida moral baseada na razão prática e no utilitarismo. Esse sonho acabou
malogrando em grande parte devido à hegemonia da razão instrumental que se pôs a
serviço da lógica e do capital. O progresso passou a ser identificado apenas como
produtividade. O estado do bem estar social, no século XX, deu ao projeto ilustrado uma
sobrevida ao corrigir algumas de suas distorções. A rearticulação do projeto liberal, aliada ao
fracasso do socialismo real, permitiu o fenômeno da globalização econômica. As fronteiras
de mercado e produção, capital e tecnologia vão se tornando cada vez menos importantes.
O livre mercado é bastante eficaz na sua tarefa de ordenar a economia, mas por outro lado,
provoca distorções ao promover a acumulação da mais valia nas mãos de uma minoria
proprietária. Esta concentração de poder econômico é o grande inimigo da democracia.

A hegemonia econômica, sem controle político, não tem sido capaz de evitar o caos
das turbulências monetárias. Muito menos, tem sido capaz de evitar o aprofundamento das
desigualdades sociais internacionais ou dentro dos estados nacionais. O efeito deste
processo de ruptura entre funcionalidade e sentido da vida, entre mercado e comunidade,
entre papel do Estado e direitos do indivíduo, é uma crise de identidade que talvez seja a
grande patologia social da modernidade. Paradoxalmente, o mundo globalizado tem
produzido uma reação que se consubstancia na busca da diferença, da identidade. É o
renascimento do movimento comunitário e local que busca a identidade em oposição ao
global. Se por um lado estes movimentos tem o efeito benéfico de garantir a sobrevivência
de identidades particulares, por outro, ele pode ser gerador de atritos interculturais.

Neste novo cenário internacional destacam-se a crescente internacionalização,


integração e complexidade de nossas sociedades. Destes fatos resultam uma série de
incertezas em relação aos caminhos a seguir. Vivemos em uma época de anomia. Este
conceito foi utilizado pela Sociologia (DURKHEIM, 2000: 311) para caracterizar a crise moral
pela qual passava a sociedade industrial europeia no século XIX. A passagem da
solidariedade mecânica, baseada na tradição, para solidariedade orgânica, baseada na
racionalidade, teria ocorrido tão rapidamente que as bases da ordem social teriam se
perdido. O fenômeno da anomia é típico de sociedades que passam por mudanças
aceleradas e pode ser utilizado como paradigma para o mundo atual. A anomia, inclusive,
tem se agravado em uma realidade onde a condição humana é marcada pela
multiculturalidade gerada pela globalização capitalista.

A multiculturalidade não é um fato novo na história da humanidade, na verdade, ela


é uma constante histórica. O novo é a tomada de consciência da importância deste
fenômeno. Isto nos obriga a interrogar o desenvolvimento de uma dinâmica social marcada
por relações interculturais. Uma nova ética de convivência entre estas culturas tem que ser
construída. Uma ética que renuncie à lógica da imposição para garantir a sobrevivência de

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Renato Somberg Pfeffer 27

mundos culturais diferentes. A questão que se coloca é como garantir os direitos individuais
aliado a um autêntico diálogo entre culturas.

Combatendo o fundamentalismo: uma defesa do pluralismo e do diálogo

A nova fase da política mundial tem gerado uma profusão de visões sobre o futuro:
predizem o fim da história, preveem o retorno das rivalidades entre nações-estados ou,
ainda, falam do declínio da nação-estado decorrente do conflito entre tribalismo e
globalização. Uma das mais interessantes visões sobre o futuro é a do cientista político
Samuel Huntington. Ele sustenta a tese de que a humanidade está em rota de colisão entre
as civilizações: “Nesse mundo novo, a política local é a política da etnia e a política mundial é
a política das civilizações. A rivalidade das superpotências é substituída pelo choque das
civilizações" (HUNTINGTON, 1997: 21). Huntington afirma que as grandes divisões da
humanidade e a fonte predominante de conflitos serão de ordem cultural. Apesar da
continuidade das nações-estados como sujeitos centrais dos acontecimentos globais, os
principais conflitos se darão entre diferentes civilizações.

O foco central dos conflitos do século XXI, ainda segundo Huntington, será entre a
civilização ocidental e as não ocidentais e destas últimas entre si. Em primeiro lugar porque
possuem concepções diferentes da relações entre Deus e os homens, entre cidadãos e
Estado, entre pais e filhos, entre liberdade e autoridade, entre igualdade e hierarquia. Em
segundo lugar, o mundo está ficando cada vez menor e a consciência da diferença entre as
civilizações cada vez maior. Em terceiro lugar, e principalmente, o fundamentalismo religioso
presente em as todas as religiões é um fator marcante neste início de século XXI.

A questão do fundamentalismo religioso é essencial para melhor compreensão do


mundo contemporâneo. O fundamentalismo oferece aos seus seguidores certezas absolutas
e orientações inquestionáveis permitindo-lhes viver em segurança. Ocorre nestas correntes
uma renúncia da hermenêutica como mediação entre os textos sagrados. O resultado disto é
a negação do método histórico-crítico e a crença na aplicabilidade literal destes textos às
situações concretas da vida. O desenvolvimento desta onda fundamentalista religiosa se
associa às transformações ocorridas na modernidade. Frente ao pluralismo e às mudanças
constantes provocadas pelo avanço capitalista, segmentos religiosos tradicionalistas reagem
retornando aos fundamentos mais profundos de sua religião.

As tradições não são, em si, más. Através delas construímos nossas identidades.
Como afirma Riesgo (2006: 42), o fundamentalismo cai em um mau uso da tradição, que
impede a recriação, exigência mestra de nossa condição histórica. Em outras palavras, a
tradição não pode impedir as mudanças que às vezes são necessárias, ela deve servir como
mediadora para que nos recoloquemos frente aos desafios do presente. Afirmações
ahistóricas das tradições pelos fundamentalistas impedem o progresso e violentam a
capacidade cognitiva do ser humano malogrando suas possibilidades. A proclamação de
respostas definitivas para as perguntas últimas da humanidade coloca o fundamentalismo

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


28 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

em clara contradição com o pluralismo de respostas promovido pela infinidade de religiões


do planeta. No entanto, é importante ressaltar, o fenômeno fundamentalista constitui uma
“zona marginal” (KIENZLER, 2000: 11), a cara obscura das diversas religiões.

O pluralismo religioso, ao contrário do que advoga o fundamentalismo, é legítimo e


necessário dado a distância infinita entre criador e criatura. Esquecer a insuficiência das
linguagens religiosas para cobrir esta distância nos leva a atitudes etnocêntricas e racistas,
típicas do fundamentalismo. A visão mais plausível para entender a relação do homem com
Deus seria admitir que todos os povos são escolhidos e que Deus se manifesta de diferentes
formas para cada um. Esta visão permite legitimar o pluralismo e propiciar uma relação
harmoniosa entre os povos.

Esta não parece ser a tônica dominante do final do século XX e início do XXI, onde
tendências fundamentalistas crescem em todas as grandes religiões do mundo. Estes
fundamentalismos religiosos têm se destacado no cenário internacional sendo promotores
de vários atos terroristas. A reação ao terrorismo, por sua vez, também tem adquirido um
caráter irracional de nova cruzada que coloca em risco a economia mundial e os direitos
civis. Uma das grandes questões que a humanidade hoje se defronta é justamente essa:
existe alternativa ao fundamentalismo?

A única alternativa ao fundamentalismo é o diálogo intercultural. Somente através


dele poderemos encontrar igualdades na diferença, abrindo espaço para a convivência
harmoniosa e frutífera. Este parece ser o único caminho para superar os extremos de uma
sociedade desumanizada, injusta e com tendências fundamentalistas. Uma filosofia
intercultural deve ser entendida como possibilidade de diálogo e interação entre culturas,
desafiando a perspectiva meramente econômica da globalização. A interculturalidade busca
o diálogo que negue qualquer noção de superioridade e, portanto, não admite as certezas
absolutas do fundamentalismo. Podemos através dela descobrir intuições e convicções
compartidas por grande parte da humanidade e o Estado democrático tem um papel
fundamental neste processo.

A necessidade do diálogo intercultural em um mundo globalizado pode ajudar a


confirmar a universalidade dos direitos humanos que servem como norma e limite para
outros direitos. Não se deverão permitir diferenças culturais que vão contra estes direitos e
contra o bem comum. Por outro lado, as diferenças que enriquecem o acervo cultural como
meio humanizador devem ser estimuladas. Os direitos humanos, portanto, devem servir
como critério para decidir o que é aceitável ou não em determinada cultura. Neste contexto,
os invariantes humanos, encontrados nas diversas culturas, devem se transformar em
transculturais garantindo a possibilidade de diálogo. Do contrário, não haverá solução senão
aceitar modelos políticos excludentes.

Os direitos humanos estão acima de qualquer tradição cultural específica, como se


fosse algo transcendente a elas; eles são patrimônio de toda a humanidade por serem
memória de sua luta por liberdade. O diálogo intercultural, por sua vez, possibilitaria o

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Renato Somberg Pfeffer 29

encontro de tradições culturais que vivenciaram histórias de libertação. As culturas


trocariam assim experiências, enriquecendo-se mutuamente.

Respeitando a pluralidade cultural, estar-se-ia caminhando para uma cultura


universal de liberação humana. A universalidade seria garantida da participação solidária de
todas as culturas neste projeto (FORNET-BETANCOURT, 2001: 293). A transcendência
anteriormente referida possibilitaria uma crítica ética das culturas a partir da universalidade
dos direitos humanos. Não há, ainda segundo Fornet-Betancourt, ideia melhor que o ethos
humanizador dos direitos humanos para orientar nossa práxis no mundo de hoje.

O reconhecimento dos direitos humanos e a reivindicação da dignidade humana são


fenômenos cada vez mais universais. Tais direitos são valores transculturais proclamados por
todas as pessoas de “boa vontade”. No mundo atual, as religiões se veem forçadas a aceitar
estes valores se querem ser legitimadas.

Somente uma religiosidade que conjugue abertura ao mistério do sagrado ou divino


com a com a paixão solidária efetiva pelo ser humano e tudo o que existe, como por uma
visão universal e fraterna da espécie humana e que assuma profundamente a racionalidade,
merece denominar-se humana. Humanismo e religião se pertencem (MARDONES apud
AMIGO FERNÁNDEZ DE ARROYABE 2003:445-446).

Deste ponto de vista, a dignidade humana deveria ser a exigência mínima de toda
verdadeira religião.

Em tempos de globalização, cada tradição religiosa tem sido desafiada a se situar


frente a si mesma no debate com as demais, o que implica a necessidade de se pensar a
questão da igualdade entre todos os que se reúnem. Esta igualdade é facilitada pelo
reconhecimento, pela maioria das tradições religiosas, da regra de ouro segundo a qual não
devemos fazer aos demais aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco. Por outro
lado, os diferentes textos, mitos e ritos dificultam a questão da igualdade e algumas religiões
acabam por optar por uma postura fundamentalista. Ou seja, enquanto algumas religiões se
abrem ao diálogo, outras se fecham e se colocam como donas absolutas da verdade.

Igualdade e o diálogo são elementos fundamentais em mundo democrático. Tal


posição torna necessária uma profunda reavaliação das tradições centrais de todas as
religiões, que parta do princípio que nenhuma delas é totalmente verdadeira nem falsa. Ao
obrigar as tradições religiosas a repensar seus parâmetros, o diálogo inter-religioso faz com
que elas se abram ao mundo. As religiões não são fins em si mesmas, são, na verdade,
tentativas de orientar e dar sentido à vida de seus fiéis através de doutrinas que pretendem
interpretar o mundo. Estas tradições estão sendo forçadas pelo diálogo a serem mais
modestas frente aos desafios que o mundo contemporâneo está lançando.

Acima das divergências doutrinais ou das práticas religiosas, o diálogo incita os


teólogos a assumir a dimensão incompreensível de Deus e da realidade e aos fiéis

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


30 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

desenvolverem uma solidariedade aberta intercambiando e reafirmando sua própria fé


(BASSET, 1999: 426).

Este cenário transforma a dimensão absoluta da fé no núcleo do encontro dos


crentes no diálogo inter-religioso, levando-se em conta a verdade que cada fiel leva. O
diálogo abre novas percepções da verdade e do absoluto nas diferentes tradições religiosas,
sendo incompatível, portanto, com todo tipo de fundamentalismo que pretende ser
possuidor de verdades absolutas. No plano das doutrinas, o diálogo não pode ir além das
confrontações onde cada crente se esconde; no plano da fé, o diálogo faz com que os
crentes se encontrem em suas convicções mais profundas, naquelas que dão sentido a suas
vidas. Somente a fé, por ser opção pessoal e não um algo que foi recebido para ser
transmitido, pode ser revisada e enriquecida através do diálogo com outras pessoas
orientadas por um caminho diferente.

Fugindo do fundamentalismo: a articulação entre a identidade ipse e idem

Frente à despersonalização provocada pela globalização é legítima a busca da


identidade entre os povos que habitam o planeta. Um dos caminhos possíveis nessa busca
pode ser orientada por invariantes religiosos que permitam à humanidade um modo de vida
digno e uma vida solidária com comunidades distintas.

O diferente pode ser uma ameaça à identidade estabelecida ou pode ajudar a


construir uma nova identidade sem deixar de ser ela mesma. Para analisar esta questão,
Ricoeur (1991) pontua uma distinção entre dois tipos de identidade que acabam se
articulando dialeticamente. A identidade idem é aquela que permanece no tempo, é fixa. A
identidade ipse, por sua vez, refere-se à identidade como um processo em construção. A
identidade pessoal se constitui em uma dimensão temporal a partir da
dialética ipseidade emesmidade. Não podemos pensar o idem de uma pessoa sem o ipse e,
no cotidiano, eles tendem a se recobrir e se confundir. Neste processo, forma-se o caráter,
ou seja, o conjunto de marcas que permite reconhecer uma pessoa.

A formação do caráter que torna uma pessoa identificável deve, segundo Ricoeur,
se articular com um segundo pólo, a ética. No pólo da ética a pessoa garante a manutenção
de si, o que permite ao outro contar com ela. Existe, portanto, uma dimensão ética
naipseidade, pois alguém conta comigo e eu sou responsável por minhas ações perante o
outro. A partir da dialética tradição versus construção é possível refletir o diálogo inter-
religioso.

O processo de internacionalização exige a integração entre globalização e


universalização. Este é um pressuposto ético. Esta integração passa pela articulação das
identidades ipsee idem das culturas envolvidas. A polarização em um das identidades pode
gerar o fundamentalismo (fixação na identidade idem) ou perda da mesmidade (fixação na

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Renato Somberg Pfeffer 31

identidade ipse). A integração destas identidades, ao contrário, nos mantém como somos,
nos deixa abertos à construção do novo.

As religiões podem facilitar ou dificultar este processo. Se optarem pela articulação


das identidades ipse e idem, afirmarão a necessidade do diálogo. De um lado, estarão
definindo sua identidade, de outro, abrirão perspectivas para aprender com o outro
ampliando sua identidade. O princípio ético que fundamenta o caráter deverá nortear o
diálogo.

A análise de Ricoeur pode ser melhor explicitada se nos detivermos no debate


teológico entre as diversas religiões. Os cristãos, por exemplo, foram forçados a renunciar à
pretensão de donos da verdade frente ao pluralismo religioso contemporâneo. Três linhas
básicas acerca da legitimidade salvífica de cada religião se destacam entre os teólogos
cristãos e comprovam esta evolução de uma postura fundamentalista para a pluralista
(NOGUEIRA, 1997: 44-56):

- O exclusivismo condiciona a salvação ao conhecimento de um Jesus Cristo


pertencente à igreja. O eclesiocentrismo radical desta corrente foi superado pelo Concílio do
Vaticano II.

- O inclusivismo afirma que a salvação ocorre nas diversas religiões devido à


presença misteriosa de Jesus nelas. O corte cristocêntrico aqui presente nega a autonomia
salvífica das demais religiões tentando nelas imprimir o selo de Cristo.

- O pluralismo sustenta a autonomia salvífica de cada religião retirando o caráter


absoluto do cristianismo em favor do mistério de Deus enquanto realidade última. O
cristocentrimo é substituído pelo teocentrismo. Knitter (1986: 103), por exemplo, propõe
uma abordagem de Cristo junto com as religiões e não contra, acima ou nas religiões.

Alguns teólogos ainda tendem a uma visão dialética destas correntes caminhando
rumo ao inclusivismo aberto. A presença transcendente de cada religião não é excluída,
porém, considera-se a encarnação como ponto máximo da revelação do amor de Deus à
humanidade, o que torna necessário uma escolha histórica. Panasiewicz (1997:57-58) utiliza
a terminologia de Ricoeur (1991) para analisar a proposta inclusivista aberta. O exclusivismo
e o inclusivismo fixar-se-iam na identidade idem por defender a própria identidade cristã no
ato de dialogar. O relativismo se relaciona com a identidade ipse ao focalizar a atenção no
vir-a-ser. O inclusivismo aberto procura a articulação das identidades ipse-idem, pois pontua
a identidade e, ao mesmo tempo, abre perspectivas para aprender com o outro. A posição
inclusivista aberta, como posição intermediária, permitiria que cada religião salvaguardasse
sua identidade e se abrisse para aprender com as demais através do diálogo.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


32 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

Democracia e ética

Se realmente estamos em busca de uma ética planetária inspirada no diálogo


devemos admitir que nossa cultura é apenas uma entre outras e desistir de qualquer
obsessão imperialista. Isto implica em assumirmos a democracia como única alternativa
possível para a humanidade. A democracia não é um regime político perfeito, porém, é o
que melhor serve às exigências da dignidade humana. Ao longo de sua história, os projetos
democráticos nacionais tentaram conciliar liberdades políticas, direito social e certo controle
social da economia. Estes projetos muitas vezes malograram devido a incapacidade humana
de aliar razão e tolerância na busca do bem comum. O desafio da humanidade hoje é muito
mais complexo na medida em que ultrapassa os limites dos estados nacionais. O sucesso de
um projeto democrático mundial depende da capacidade humana de encontrar referentes
éticos mínimos entre as diferentes culturas (RIESGO, 2003: 5). Como encontrar estes
referentes numa sociedade plural?

O diálogo entre as diversas tradições culturais e históricas deve receber um


reconhecimento universal. Invariantes humanos devem ser encontrados a partir deste
diálogo e, então, uma ética dos mínimos será construída. Esta ética dos mínimos deverá
nascer de uma ética dos máximos. Esta última refere-se às exigências dos distintos grupos
humanos de viver suas diversas experiências religiosas e morais. A ética dos mínimos deverá
decantar-se do diálogo entre a ética dos máximos para tornar possível o projeto
democrático. A interculturalidade é, portanto, uma aliada da democracia.

Já no século XV, os grandes descobrimentos trouxeram a consciência de um mundo


unitário. Vive-se em uma aldeia global graças a convivência cada vez mais íntima entre os
povos. Participa-se das mesmas esperanças e as necessidades alheias são bem conhecidas.
Apesar disto, ainda persistem a falta de solidariedade, a exploração e as guerras. Graças à
integração planetária, no entanto, já não é possível fugir de tais problemas e fingir que não
existem. A consciência humana tem despertado para a necessidade de uma fraternidade
pura, acima dos interesses particulares. Neste contexto, as religiões têm um papel de
destaque: elas devem aprender a olhar as diferenças reconhecendo a origem divina de cada
uma. Hegel já havia afirmado que a diferença é o que une (VAZ, 1999: 365).

As diferenças religiosas podem inspirar muitos conflitos mas, por outro lado,
também podem pacificá-los. As religiões são, em si, fenômenos ambivalentes. Elas podem
despertar sentimentos intensos e comportamentos radicais. Nada desperta tanto amor e
ódio como a religião. Convenientemente amadurecidas, a religião se converte em fonte de
confiança, abertura e aceitação do outro, de atitudes de compreensão e perdão. Por outro
lado, o não amadurecimento destas experiências primeiras pode cumprir uma função
regressiva que se consubstancia em conflitos e angústia. A religião torna-se, então, uma
defesa frente à realidade vivida, um escudo protetor para a ansiedade cotidiana. A
ambivalência da experiência religiosa está justamente no fato de proporcionar uma abertura
de esperança para a vida ao mesmo tempo em que pode nutrir o delírio. Ela pode ser fonte
de confiança e de perigosa regressão à infância.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Renato Somberg Pfeffer 33

Sob outra perspectiva, pode-se encarar a experiência religiosa a partir de seu


potencial positivo para construção de um mundo melhor. O ideal ético constitui-se aqui uma
das grandes vertentes da experiência religiosa ao lado da confiança gerada pela vivência
mística. Toda experiência religiosa se articula com o desejo de união entre Deus e a
exigência ética. Os modos como se levam a cabo a integração das dimensões éticas, porém,
podem também determinar o caráter destrutivo da experiência religiosa para o próprio ser
humano. Ou seja, segundo Morano (2002:80), as crenças religiosas podem converter-se em
fator de equilíbrio e desenvolvimento pessoal e social ou, por outro lado, a fé pode se aliar a
forças destrutivas e potencializar conflitos. Isto faz parte da ambiguidade essencial e
inerente à vivência religiosa.

O poder ambíguo do elemento religioso nas diferentes sociedades faz com que
muitos o temam: de um lado, ele é capaz de sacudir a ordem estabelecida promovendo a
revolução; de outro pode entorpecer a população tornando-a subserviente aos poderosos
de plantão. A consciência desta ambivalência é fundamental para se buscar, nos aspectos
positivos das religiões, um caminho que promova o diálogo intercultural e contribua para
construção de uma nova ética para a humanidade. A paz hoje só é possível com um diálogo
entre civilizações que busque uma ética universal. Esta ética pode e deve ser construída
através do diálogo inter-religioso. Não se trata de um código objetivo; estamos nos referindo
a um consenso básico sobre valores e atitudes firmados por todas as religiões e
compartilhados pelos crentes.

As religiões compatíveis com a democracia e que podem contribuir com a realização


deste projeto são as religiões humanizadoras: religiões capazes de superar os excessos da
espiritualidade evasiva e ajudar formar sujeitos livres, dotados de consciência na luta contra
o sofrimento, a injustiça e a opressão. São religiões que proclamam a dignidade humana
baseada na solidariedade entre os povos e nos direitos humanos.

As religiões às quais este artigo se refere – as “boas” religiões – são aquelas que
proclamam a dignidade humana, a autonomia pessoal e a solidariedade entre os povos;
religiões humanizadoras. O cardeal Arns (2004: 341-352), ao constatar a existência no
mundo contemporâneo de religiões autênticas e distorcidas, afirma que as verdadeiras
religiões são voltadas para a paz, pois são nascidas de um mesmo ser supremo. Esse ser se
comunica de diferentes formas com a humanidade, está presente em todos os seus
relacionamentos e impulsiona o diálogo. As autênticas religiões despertam a consciência,
fazendo seus adeptos serem críticos frente às guerras e lutarem pela paz mundial. Elas
estimulam o amor fraterno e o perdão, promovendo a comunicação entre culturas
diferentes. As falsas religiões, ao contrário, fazem a consciência adormecer. Somente as
verdadeiras religiões, continua o cardeal Arns, oferecem propostas de uma prática ética e
baseada na solidariedade, o que pode ser a fonte para se estabelecer um código mínimo de
ética para a convivência humana. “De fato, a promoção da paz no mundo é intrinsecamente
ecumênica e inter-religiosa” (ARNS, 2004: 345).

Uma ética construída a partir do diálogo inter-religioso não pode aceitar projetos
religiosos excludentes e intolerantes, que são a marca registrada das experiências

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


34 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

fundamentalistas. Muito menos “religiões particulares”, típicas da pós-modernidade, que


examinam as diversas vertentes da fé e escolhem os componentes que lhe parecem
apropriados. É certo que muitas das atuais religiões banalizam Deus e acabam se tornando
um produto de consumo imediato. Nessas “religiões”, o fiel escolhe “uma religião como opta
por uma marca de sabão em pó” (PRANDI apud WEISS, 2000: 86), ou como muda de canal na
televisão. Essas “religiões” pós-modernas, surgidas nos supermercados da fé, fornecem uma
espiritualidade evasiva e carecem de conteúdo e profundidade.

O sincretismo religioso brasileiro para a construção de uma ética global

Tendo em mente o que foi dito nos itens anteriores, este artigo vem defender a
validade do sincretismo religioso brasileiro como possível referencial positivo para a questão
do diálogo inter-religioso. O sincretismo é uma prática de inovações e invenções de
tradições. Não existe um caráter universal que estabeleça seus limites ou possibilidades, o
que implica que sua análise racional só pode ser dada caso a caso. A cultura religiosa
brasileira é constituída da articulação de vários segmentos, populares e eruditos, o que
resulta no estabelecimento de toda a sua diversidade.

Ao contrário do supermercado religioso pós-moderno, onde as pessoas adquirem


ensinamentos e rituais de diversas crenças para compor uma forma personalizada de
venerar o sagrado, o sincretismo religioso da feira mística brasileira é marcado pela fusão
dos cultos. É lógico que o Brasil não esteve imune ao comércio com o transcendente, típico
da pós-modernidade. Mesmo esse processo, no entanto, se fez com as cores do País: foi um
comércio sem culpa, sem medo de sanção, público e festivo. As expressões religiosas
brasileiras sempre se caracterizaram pela falta de contornos rígidos, mas, ao contrário das
religiões pós-modernas que não possuem o rompimento de nível que caracteriza as
verdadeiras religiões, conseguiram manter seu encantamento.

A harmonia dessa feira mística serve para indicar caminhos para a construção de
um projeto humano que supere a atual racionalidade fragmentada. No Brasil, as religiões
conseguiram se harmonizar de forma eficiente. Cada qual no seu lugar adequado,
contribuindo de forma cooperativa para o comportamento coletivo. No caos de desejos,
emoções e ideias que compõem a sociedade brasileira, a harmonia religiosa brasileira – sua
coordenação intuitiva eficiente – conseguiu evitar, ao menos na maioria das vezes, os rumos
do fanatismo e do excesso de racionalidade, dando contorno à nossa identidade.

A mestiçagem cultural foi a marca do Brasil desde a descoberta e o fator


fundamental constitutivo de sua identidade cultural. Culturas interagiram, conviveram e se
fundiram. Historicamente, esse processo não foi democrático e os brancos tentaram
eliminar a cultura negra e indígena. O hibridismo cultural resultante dessa relação foi a
maneira pela qual as culturas dominadas sobreviveram. Elas se fizeram presentes na nova
cultura por meio da mestiçagem.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Renato Somberg Pfeffer 35

A colonização do Brasil por Portugal foi permeada por aspectos religiosos e


mercantilistas. A colonização foi, em si, uma hibridação entre tradição e modernidade, entre
ação racional e crença religiosa. A metrópole tentou impor sua cultura aos nativos e
africanos. O projeto metropolitano quase se concretizou, no entanto, as culturas dominadas
persistiram. Com a mestiçagem cultural, criaram uma identidade autônoma baseada na
crença e na emoção. Essa identidade cultural surgiu a partir do processo de liberação das
imposições externas e da mútua influência entre a cultura ocidental, indígena e africana.
Esse espírito, fruto da resistência à opressão, pode constituir-se em um caminho para
integração da raça humana na sua busca de verdades profundas e formas de vida que
tragam felicidade individual e social.

A identidade espiritual brasileira sobreviveu a partir do mundo simbólico da


mestiçagem religiosa. O caminho seguido pelo povo brasileiro deve ser alvo de reflexão para
o presente e o futuro. Estamos aqui nos referindo a um sujeito histórico, comunitário e
integrado simbolicamente. Esse sujeito formatou um sentimento ético a partir do religioso.
Essa experiência de Deus leva a uma dimensão horizontal de convivência entre os membros
da sociedade e a uma dimensão vertical marcada pelo mistério. O mundo simbólico
brasileiro é marcado pela integração dessas dimensões, em que os elementos materiais
assumem dimensões transcendentais. A partir da compreensão dessa experiência religiosa é
possível ir a fundo em nossa identidade e aportar caminhos para a humanidade.

As religiões brasileiras trilharam na sua história muitos caminhos. Uma história


sempre marcada pelo pluralismo e sincretismo, apesar da predominância católica.
Elementos culturais estrangeiros foram recebidos, reinterpretados e mesclados com a
cultura local nos últimos 500 anos, originando novas formas religiosas. Nossa história foi
caracterizada por uma pluralidade de vozes que se mesclaram e essa mestiçagem tornou-se
o principal mecanismo de orientação social no Brasil. As expressões religiosas, em especial,
trouxeram uma abundância de sentimentos, paixões e sensualidade, o que torna possível,
com delas, falar de nossa estrutura sincrética.

A Religião Católica brasileira viveu e vive cercada de práticas mágicas. Santos, Nossa
Senhora, sacramentos, ritos funerários, promessas, romarias aos santuários, festas religiosas
e procissões fazem parte do cotidiano e asseguram aos fiéis vantagens terrenas. As práticas
cristãs estão intimamente associadas às tradições indígenas, africanas e orientais. Ao mesmo
tempo em que são católicos, os brasileiros frequentam sessões espíritas, encomendam
“trabalhos”, pedem proteção aos Orixás e meditam em busca do nirvana. Todas as culturas
convivem de forma pacífica, apesar de suas contradições. O monoteísmo cristão, o animismo
e totemismo indígena e o fetichismo africano convivem em harmonia nos trópicos, pois “não
existe pecado abaixo do Equador”.

O brasileiro busca no sagrado manipular as normas que regem o mundo a partir da


magia propiciada pelo sincretismo. A invocação de forças ocultas substitui a racionalidade e
dá sentido ao nosso mundo fragmentado. O povo, profundamente religioso, vive uma
religião sem traumas, obsessão pela morte ou sem paixão exagerada. Existe no País uma

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


36 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro

intimidade desconcertante com Deus, que é tratado como alguém da família. Esse Deus pai
não é punitivo nem trágico, transformando as religiões brasileiras em algo doce.

Enfim, cada sujeito muda de religião, faz sincretismos ou pertence a mais de uma
corrente religiosa, em uma verdadeira insubordinação à autoridade e à instituição. Esse
exercício da criatividade brasileira, acentuada em tempos de globalização e democracia, se
originou no passado colonial e tem obrigado as instituições religiosas a se adaptarem, ao
longo da história, ao jeito brasileiro de ser.

Existe no processo de adaptação dessas manifestações religiosas elementos de


homogeneização originados no confronto de matrizes que povoa o universo brasileiro de
sagrado e define modelos de conduta. O caldeirão mistura e processa as diferenças,
permitindo a intercomunicação de universos simbólicos por meio do sincretismo e a
relativização dos dogmas institucionais, que são substituídas por emoções. Apesar da
existência de surtos modernizantes que defendem a purificação das tendências sincréticas,
elas estão por demais enraizadas, e tais surtos acabam sucumbindo frente à porosidade da
religiosidade brasileira. Discursos modernizantes nunca impediram que o povo brasileiro
continuasse a adotar sua conduta híbrida característica, que traz, cada vez mais, diversidade
e complexidade religiosa. E é justamente a superposição, essa fusão entre o pré-moderno e
o moderno de nossas religiões, que pode inspirar o mundo no caminho da paz.

A mestiçagem no Brasil tornou-se agente da civilização. Somos um País híbrido, o


que nos dá identidade e o que pode ser nossa contribuição específica para o mundo.
Aprendemos a fundir códigos de uma maneira alegre e festiva, o que gerou uma profunda
confraternização de valores e sentimentos das culturas religiosas que compuseram o País.
Uma mistura de códigos e pessoas que criou um mundo propício à troca generalizada. A
carnavalização da vida favorece o diálogo, já que nos torna abertos a acordos e conciliações.
O Brasil está longe da utopia proposta pela filosofia intercultual, porém, o sonho de um
mundo harmônico parece produzir alguns resultados concretos neste País. Mesmo que
apenas indícios de um mundo melhor sejam aqui encontrados, eles poderão servir de
esperança para aqueles que sonham com um mundo baseado no respeito intercultural.

Aceitar a contribuição da feira mística brasileira significa, na prática, uma autocrítica


radical da filosofia, um des-filosofar, que liberte a filosofia da hegemonia da tradição
ocidental europeia e da institucionalização acadêmica segundo o cânon dessa tradição.
Significa romper com a monoculturalidade reinante na filosofia, fazendo o caminho inverso
ao de Heidegger, que possuía uma “concepción esotérica de la filosofía”, reclamando seu
caráter extemporâneo (FORNET-BETANCOURT, 2001: 296). Esta tese aceita as filosofias
contextuais e se deixa seduzir pelas diversas tradições culturais, seus universos simbólicos,
seus imaginários, suas memórias e ritos. Eles não seriam objetos de estudo, e sim palavras
vivas de sujeitos que podem aprender e ensinar em conjunto.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


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Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Resumo:
Descreve-se o desenvolvimento de Realengo,
subúrbio do Rio de Janeiro, e suas
referências à Escola Militar, que lá funcionou
entre 1913 e 1944. O patrimônio material da
escola e os relatos de antigos integrantes e
de moradores do bairro sustentam a análise
da constituição dos espaços militares na
região, tomados como pontos de articulação

Realengo e a de questões relacionadas à patrimônio e


memória. Observa-se que os espaços
estudados ilustram o conceito de lugares de

Escola Militar: memória, considerando o ambiente como


suporte da memória coletiva.

um estudo Palavras-chave: Escola Militar, memória,


Realengo, representação
sobre memória
Abstract:
e patrimônio It describes the development of Realengo,
suburb of Rio de Janeiro, and its references to

urbano
the Military School, who worked there
between 1913 and 1944. The material
patrimony of the school and reports of it
members and neighborhood residents to
support the analysis of the establishment of
military areas in the region, taken as points of
Claudius Gomes de articulation of issues related to heritage and
memory. The spaces studied illustrate the
Aragão Viana1 concept of memory places, considering the
environment in support of the collective
memory.

1Programa de Pós-Graduação em História,


Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio
Vargas (RJ).
40 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

A sociedade da metade do século XX, com os problemas que se


colocam diante de nós, como a atitude diante da vida, a atitude diante da
morte, os contraceptivos, etc., são para mim fontes históricas. Não posso
fazer abstrações das observações que faço quando saio na rua. A vida de
todos os dias é apaixonante, e quanto mais ela for cotidiana mais ela é
apaixonante. Talvez seja essa, para mim, a maneira de entrar na História. Não
digo que seja o fundamental. O fundamental é mais, como já disse, o desejo
de encontrar um mistério central, mas nunca estamos diante do mistério
central, estamos no meio da rua. Então eu caminho por um mundo que é um
mundo de curiosidade, excitando constantemente a minha curiosidade,
algumas vezes maravilhando-me: por que tal ou qual coisa? E é isso que me
faz pular para o passado: eu penso que nunca segui um comportamento
histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo
presente. (Phillippe Ariès)

Entre os anos de 1913 e 1944, o bairro de Realengo, no subúrbio da Zona Oeste do


Rio de Janeiro, sediou a Escola Militar do Realengo, instituição destinada à formação
acadêmica de oficiais do Exército Brasileiro. Juntamente com a Fábrica de Cartuchos do
Realengo, fundada no final do século XIX, a Escola Militar exerceu influência no processo de
desenvolvimento e na configuração urbana da região, formando um patrimônio material
ligado à memória, não apenas de sua própria história, mas também das origens do bairro.
Esse patrimônio, embora hoje decadente, conferiu outrora à região um valor paisagístico e
simbólico, representativo de diversos estilos arquitetônicos e períodos históricos. Neste
ensaio, a constituição dos espaços militares no bairro de Realengo será pensada como ponto
de articulação de questões relacionadas a patrimônio e memória. Para isso, buscaremos (1)
descrever o desenvolvimento urbano da área e suas referências materiais e simbólicas à
presença da Escola Militar e (2) refletir sobre o conceito de lugares de memória,
considerando o espaço físico, carregado de sentidos, como suporte para a formação de uma
memória coletiva.

A Zona Oeste do Rio de Janeiro é, ainda hoje, a sede de vários aquartelamentos do


Exército Brasileiro. A criação da Escola Geral de Tiro do Campo Grande, na segunda metade
do século XIX, assinalou o início da ocupação de extensas áreas dessa região da cidade pelos
efetivos militares. Posteriormente, o processo de modernização e profissionalização do
Exército, particularmente no aspecto do ensino, foi um dos fatores que determinaram a
transferência da Escola Militar para Realengo, sendo possível considerar que essa instituição
exerceu influência no desenvolvimento e na configuração do espaço urbano do bairro. Para
contextualizar essa situação, narraremos dois percursos históricos: a ocupação fundiária das
terras de Realengo e a trajetória da Escola Militar.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 41

As terras realengas do Campo Grande

Noronha Santos (1934) relata a existência de quatro pontos de hospedagem que


atendiam aos viajantes ao longo da antiga estrada Real de Santa Cruz, que atravessava a
cidade do Rio de Janeiro ligando duas propriedades imperiais - a Quinta da Boa Vista e o
Palácio Imperial de Santa Cruz. O primeiro, na localidade denominada Campinho, próximo ao
atual bairro de Madureira; o segundo, no Realengo do Campo Grande; o terceiro, na Venda
do Santíssimo; o quarto na Fazenda do Mato da Paciência. Essas localidades adquiriram, ao
longo dos séculos XIX e XX, as características urbanas que apresentam nos dias atuais:
Madureira assumiu uma função predominantemente comercial, enquanto Santíssimo e
Paciência transformaram-se em localidades tipicamente residenciais.

Por sua vez, a região de Realengo passou por um processo de desenvolvimento


singular, que a transformou, em curto tempo, de um povoado agrícola em uma localidade
militar, residencial e industrial (Fridman, 1999). Na antiga divisão administrativa da cidade,
seus terrenos faziam parte da Freguesia de Nossa Senhora do Desterro do Campo Grande,
formando, segundo Noronha Santos (1965: 14), um grande campo de 850 por 503 metros.2 A
questão da origem da denominação da localidade já foi explorada por alguns autores, e
convém retomar essa discussão. Existem duas versões correntes. A primeira, atribuída à
tradição popular, sustenta que o nome resultaria da abreviação da expressão Real
Engenho (Real Engº), grafada nas placas que indicavam os caminhos para a região. Uma
segunda versão compreende que a palavra é um adjetivo, tendo como significado: 3 “1. Real,
régio. 2. Digno de rei. 3. Sem dono, público; abandonado, em desordem”. Há uma aparente
contradição, que pode ser desfeita, em aplicar esses sentidos opostos para a mesma palavra.
As terras realengas eram, simultaneamente, “reais” e “sem dono”, por pertencerem à coroa
portuguesa e constituírem uma categoria que seria, atualmente, apreendida como "de
domínio público". Este mesmo uso do termo pode ser encontrado em referências a outras
áreas de possessões portuguesas e espanholas. Constituíam campos destinados à serventia
pública, reservados para descanso (Noronha Santos, 1965), depósito e pastagem do gado
daqueles que não possuíam terras próprias.

Os terrenos da região foram cedidos em sesmaria 4 a Ildefonso de Oliveira Caldeira,


em 1805, sendo, porém, retomados pelo poder público em 1814 e reservados para criação
de gado,5 até serem negociados entre a Câmara Municipal e o Ministério da Guerra, em

2 No original: "o grande campo do Realengo, (...), representa um paralelograma de 465 braças de
comprido sobre 275 de largo...".
3 "Realengo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2009,
http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx?pal=realengo [consultado em 2009-04-16].
4 Regime jurídico de doação de terras para cultivo, em vigor durante o Período Colonial. Para uma

definição mais extensa do conceito, ver Nozoe (2006).


5 Annaes do Rio de Janeiro, Tomo V, Resolução de 27 de junho de 1814.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


42 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

1857, para estabelecimento de uma escola militar. 6 Os amplos espaços disponíveis, próprios
para a realização de exercícios de tiro, e a então recente chegada da estrada de ferro D.
Pedro II foram alguns dos fatores considerados pelos militares para a escolha do local. Ainda
no ano de 1857, iniciaram-se as obras para abertura de um campo de tiro e adaptações de
um prédio para servir como aquartelamento da Escola Geral de Tiro do Campo Grande,
inaugurada em 1859 7.

As maiores frações dos efetivos militares brasileiros, tanto durante o Período


Colonial quanto no Império e na República, estiveram concentradas no Rio de Janeiro, devido
ao destaque da cidade no cenário político nacional até a inauguração de Brasília, em 1961.
Os aquartelamentos, até a segunda metade do século XIX, encontravam-se distribuídos entre
a região do Centro e as fortificações construídas na entrada da baía de Guanabara, com a
exceção do antigo forte de Nossa Senhora da Conceição do Campinho, localizado no
desfiladeiro do Irajá, nos limites das Freguesias de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá e
de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepaguá. 8 O deslocamento das tropas para o Realengo
exigiu a execução de diversas obras de interesse direto da instrução militar, como a
construção de quartéis e linhas de tiro, mas também o incremento de uma infraestrutura
para residências, alojamentos e outras acomodações, o que atraiu para a localidade uma
população crescente. Em 1863 já havia na região moradores em número suficiente para que
fosse encaminhada uma representação à comissão de assembleias provinciais da Câmara
Municipal, requerendo a criação de uma nova freguesia, por meio do desmembramento de
seu território das freguesias de Irajá e do Campo Grande, 9 o que, entretanto, não chegou a
ser concretizado.

Em 1874, a Câmara Municipal dividiu os terrenos em ruas, praças e lotes,


canalizando água e melhorando as condições de urbanização da região (Fridman, 1997). A
estação de trens foi aberta ao público em 1878. Consta que em 1884 as instalações da Escola
de Tiro já eram compostas de salas de aula e estudo, biblioteca, sala d'armas e oficina de
armamentos, armazéns para guarda de canhões, metralhadoras e viaturas, um museu de
artefatos, depósitos de alvos, oficinas de carpintaria, marcenaria, serralheria, torneiro e forja,
paióis para pólvora e munições, cavalariças, enfermaria, farmácia e gabinete de cirurgia. E,
ainda, o polígono de tiro e a área principal de instrução prática, os edifícios da administração,
composta pelo comando, fiscalização e secretaria da escola, além dos alojamentos para os
alunos e quartéis para os destacamentos.10

6 Relatório do Ministro da Guerra Manoel Felizardo de Souza e Mello, 1857.


7 Decreto nº 2.422, de 18 de maio de 1859. Aprova o Regulamento para a Escola Geral de Tiro do
Campo Grande.
8 Atualmente, regiões administrativas de Jacarepágua e Irajá.

9 Anais do Parlamento, sessão de 13 de maio de 1862.

10 Cf. Decreto n o 9.259, de 9 de agosto de 1884. Aprova o Regulamento para a Escola Geral de Tiro do

Campo Grande; e também o Relatório do Ministro da Guerra Franklin Américo de Menezes Doria,
1881.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 43

Desde 1863 já era cogitada a construção de uma fábrica de pólvora na região, 11 o


que, efetivamente, concretizou-se em 1898, já na República, com a criação da Fábrica do
Realengo. 12 Também sob administração militar, esse estabelecimento destinava-se à
fabricação de pólvora e cartuchos de pequeno calibre. Em 1900, a fábrica fundiu-se com o
Laboratório Pirotécnico do Campinho, recebendo a denominação de Fábrica de Cartuchos e
Artifícios de Guerra. Sucessivamente, essa denominação foi alterada para Fábrica de
Cartuchos e Artefactos de Guerra (1911), Fábrica de Cartuchos de Infantaria (1933) e
novamente Fábrica do Realengo (1940). O prédio em que esteve instalada foi projetado
originalmente para sediar o Arsenal de Guerra da Corte. Sua construção iniciou-se em 1874,
em cerimônia que contou com a presença do Imperador D. Pedro II. Porém, em seguida, a
crise econômica do Segundo Reinado fez com que as obras ficassem paradas por mais de
quinze anos, até serem retomadas e concluídas em 1897.

No início da década de 1890, a Escola Geral de Tiro do Campo Grande foi extinta,
cedendo o prédio onde funcionava à Escola Preparatória do Exército na Capital Federal. Em
1897, foi introduzida uma inovação considerável para a época, principalmente naquela
região: a instalação da iluminação elétrica, aproveitando a energia produzida pelos geradores
da fábrica de cartuchos.

Em 1898, a Escola Preparatória do Exército na Capital Federal passou a denominar-


se Escola Preparatória e de Tática do Realengo 13, funcionando com a finalidade de ministrar
o ensino de nível secundário, que deveria ser cumprido como requisito pelos candidatos para
matrícula na Escola Militar, até então localizada na Praia Vermelha. O funcionamento da
Escola de Tiro e, posteriormente, da Escola Preparatória, pode ser associado a diversas
iniciativas que objetivaram o desenvolvimento da localidade, considerando-se os recursos
públicos destinados às obras realizadas nos quartéis, na fábrica e na urbanização de seus
arredores. 14

11 Relatório do Ministro da Guerra Antonio Manoel de Mello, 1863.


12 Decreto nº 2.956, de 27 de julho de 1898. Aprova o regulamento para a Fábrica de Cartuchos do
Realengo.
13 Lei nº 463, de 25 de novembro de 1897. Autoriza a reorganização dos estabelecimentos militares de

ensino.
14 Como pode ser observado nas sucessivas destinações de crédito realizadas a partir da época da

criação da Escola de Tiro, que incluíram a construção e melhoria de instalações militares, medições de
terrenos e ruas, canalização de água e iluminação na localidade: - Decreto nº 4.308, de 30 de dezembro
de 1868. Orça a receita e fixa a despesa da Câmara Municipal da Corte para o ano de 1869. - Decreto nº
4.661-A, de 31 de dezembro de 1870. Orça a receita e fixa a despesa da Câmara Municipal da Corte
para o ano de 1871. - Decreto nº 474-C, de 7 de junho de 1890. Abre ao Ministério dos Negócios da
Guerra um crédito extraordinário de 701:807$468. - Lei nº 126-B, de 21 de novembro de 1892. Fixa a
despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1893, e dá outras
providências. - Lei nº 191-B, de 30 de setembro de 1893. Fixa a despesa geral da República dos Estados
Unidos do Brasil para o exercício de 1894, e dá outras providências. - Lei nº 490, de 16 de dezembro de
1897. Fixa a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1898, e dá
outras providências. - Decreto nº 2.815, de 8 de fevereiro de 1898. Abre ao Ministério da Guerra um

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


44 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

Em 1905, a Escola Militar, até então sediada na Praia Vermelha, foi parcialmente
transferida para o Realengo. O funcionamento pleno de seus cursos na localidade ocorreu
entre 1913 e 1944, período no qual foram construídas novas edificações e reformadas as já
existentes, adaptando-as para atender às necessidades da instrução militar, que atravessava
uma fase de modernização. O antigo prédio foi acrescido de mais dois grandes pátios,
compostos de alojamentos, refeitórios e novas salas de aula. Ao longo da estrada de Santa
Cruz e ao redor da escola foram construídos novos quartéis, residências para a moradia dos
oficiais, depósitos para materiais, um picadeiro, cavalariças e um estádio esportivo.

Para as áreas próximas também foram deslocados grandes efetivos militares. A


partir de 1908, foi iniciada a construção das instalações da Vila Militar de Deodoro, nas terras
da antiga Fazenda Sapopemba. 15 O desenvolvimento da aviação na década de 1910 levou o
Ministério da Guerra a expandir as aquisições de terrenos nas regiões próximas, adquirindo,
em 1913, grande parte da antiga Fazenda dos Afonsos, onde foram realizados trabalhos de
terraplenagem para a construção de uma pista de pouso e hangares para a Escola de Aviação
Militar, núcleo de criação da Força Aérea Brasileira.

A Escola Militar

A relevância da Escola Militar pode ser compreendida por sua trajetória histórica. A
instituição tem como antecedente a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho,
criada em 1792, e considerada por alguns autores como o mais antigo estabelecimento de
ensino militar nas Américas (Telles, 1984). Tendo sofrido uma série de mudanças, 16 tanto em

crédito especial de 490:419$330, para as despesas com a instalação das escolas preparatórias e de
tática, no Distrito Federal e no Estado do Rio Grande do Sul. - Decreto nº 2.933, de 4 de julho de 1898.
Abre ao Ministério da Guerra o crédito especial de 63:494$900 para as despesas com a instalação da
Escola Preparatória e de Tática do Realengo. - Decreto nº 2.986, de 30 de agosto de 1898. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito especial de 24:150$, para despesas com a substituição de um fogão e
construção de uma chaminé no edifício da Escola Preparatória e de Tática do Realengo. - Lei nº 560, de
31 de dezembro de 1898. Fixa a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o
exercício de 1899, e dá outras providências.
15 Os créditos para aquisição de áreas e construção de instalações foram concedidos por meio dos

seguintes instrumentos legais, entre outros: - Decreto nº 6.386, de 28 de fevereiro de 1907. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito extraordinário de 700:000$ para execução do disposto no art. 23, letra f,
da Lei nº 1.617, de 30 de dezembro de 1906. - Decreto nº 7.205, de 3 de dezembro de 1908. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito extraordinário de 600:488$460 para execução do disposto no art. 23,
alínea f da Lei nº 1.617, de 30 de dezembro de 1906, revigorado pelo art. 17, alínea d, de nº 1.841, de 31
de dezembro de 1907. - Decreto-Lei nº 3.440, de 18 de julho de 1941. Autoriza a aquisição do terreno
denominado "Sítio Dendê", em Ricardo de Albuquerque, Distrito Federal, para serventia das unidades
aquarteladas na Vila Militar e Deodoro.
16 Para uma compreensão mais aprofundada das condicionantes e dos objetivos das reformas

realizadas na Escola Militar ver Motta (1976), Castro (1994), Grunennvaldt (2006) e Rodrigues (2008).

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 45

termos organizacionais quanto em relação à sua localização geográfica, chegou aos dias de
hoje com a denominação de Academia Militar das Agulhas Negras, estabelecimento de
ensino atualmente responsável pela formação de oficiais do Exército Brasileiro. Em relação a
essas mudanças, destacam-se as seguintes transformações, considerando as instituições que
funcionaram no Rio de Janeiro: 17

1) A Casa do Trem de Artilharia, um dos prédios que fazem parte do conjunto


arquitetônico do atual Museu Histórico Nacional, foi construída em 1762 para abrigar
material militar (“trens”, na linguagem da época). Ali foi instalada a Real Academia de
Artilharia, Fortificação e Desenho, criada em 17 de dezembro de 1792 e destinada à
formação de oficiais de Infantaria, Cavalaria, Artilharia e Engenheiros no Brasil Colônia.

2) Em 4 de dezembro de 1810, foi criada a Academia Real Militar, destinada,


segundo seus estatutos, à formação de oficiais do Brasil e das demais partes do Reino de
Portugal. A Academia funcionou no prédio ainda hoje existente, sede do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Largo de São Francisco de
Paula (anteriormente denominado Largo Real da Sé Nova). Os cursos de formação de oficiais
do Exército foram realizados nesse local até 1874, com as sucessivas denominações
de Academia Real Militar (1812-31), Academia Imperial Militar (1832), Academia Militar da
Corte (1832-38) e Escola Militar (1839-58).

3) A partir de 1855, os cursos da Escola Militar foram progressivamente sendo


transferidos para a Praia Vermelha, no atual bairro da Urca. As seguintes denominações
foram utilizadas: Escola Militar de Aplicação (1855-59), Escola Militar (1860-80), Escola
Militar da Corte (1881-88), Escola Militar da Capital Federal (1889-97) e Escola Militar do
Brasil(1898-1904). Diversos autores (Motta, 1976; Filho, 1992; Rodrigues, 2008) relacionam o
fechamento da Escola Militar da Praia Vermelha à participação de seus alunos no episódio da
Revolta da Vacina, em 1904.

4) A Escola Militar foi parcialmente transferida para Realengo em 1905, ocupando,


além do edifício da Escola Preparatória, outras instalações militares já existentes na região.
Essa transferência também foi progressiva: entre 1905 e 1912 funcionaram em Realengo os
cursos de Artilharia e Engenharia. 18 A partir de 1913, foram incorporados os cursos de
Cavalaria e Infantaria, estabelecendo-se a configuração mais próxima daquela com a qual a
escola funcionou até sua extinção, em 1944. Nesse ano, foi fundada a Escola Militar de
Resende, no município de Resende, no estado do Rio de Janeiro. A denominação foi alterada
ainda uma vez, em 1951, para Academia Militar das Agulhas Negras, que permanece até os
dias atuais.

A história da Escola Militar apresenta características peculiares. Destaca-se a

17 Escolas de formação de oficiais do Exército também funcionaram nos estados do Rio Grande do Sul
e Ceára, antes da reunião dos cursos e consolidação do ensino na EMR.
18 Regulamento para as Escolas do Exército, Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905. No período, os

cursos de Infantaria e Cavalaria funcionaram no Rio Grande do Sul.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


46 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

diversidade do seu quadro de pessoal, oriundo das várias classes sociais e de diferentes
regiões do país. A formação nessa instituição fez parte da experiência acadêmica e
influenciou a orientação ideológica de diversos personagens da história brasileira (Svartman,
2006), tendo sido frequentada, em diferentes épocas, por personagens tais como Luís Carlos
Prestes, Arthur da Costa e Silva, Apolônio de Carvalho, João Batista de Oliveira Figueiredo,
Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva, Juarez Távora, Siqueira Campos, Cordeiro de Farias,
Eduardo Gomes e outros.

A importância da escola também pode ser avaliada pela crescente participação de


seus integrantes na vida política brasileira, em episódios como o movimento tenentista da
década de 1920; a Revolução de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder; a Revolução
Constitucionalista de 1932; a implantação do Estado Novo em 1937 e sua derrubada, em
1945; a Segunda Guerra Mundial; e o golpe militar de 31 de março de 1964.

As pesquisas sobre a Escola Militar contam com uma diversidade de fontes, como
documentos, registros históricos e acervos de história oral. Entre outras referências, podem
ser relacionados os livros de memória escritos por ex-alunos, como as obras Cadete do
Realengo (Aragão, 1959), Cadetes em desfile (Pedroso, 1969), Recordações de uma velha
escola (Bley, 1974), Memórias do Realengo (Lins, 1981) e A última noite da Escola Militar da
Praia Vermelha (Lobato Filho, 1992); e, ainda, os arquivos da Escola Militar e de outras
organizações militares já extintas que funcionaram na localidade, pertencentes ao acervo do
Arquivo Histórico do Exército; acervos de legislações do Senado Federal, da Câmara dos
Deputados e da Imprensa Nacional e as coleções de leis do Império e da República; a
documentação histórica referente ao Exército Brasileiro, como as Ordens do Dia do século
XIX e o atual Boletim do Exército.

Baseadas nessas fontes, encontram-se pesquisas sobre a história da Escola Militar


que privilegiam a questão da evolução técnica e pedagógica do ensino militar, como, por
exemplo, Motta (1976), Franco (2004), Alves (2006) e Grunennvaldt (2006). Também
observa-se a existência de análises a respeito da evolução interna do Exército e do seu papel
na sociedade brasileira, entre as quais destacam-se Castro (1994, 1995, 2002 e 2004) e
Rodrigues (2008).

Lugar de memória, lugar de história

Há outra classe de referências à história da Escola Militar do Realengo que merece


uma atenção até hoje pouco concedida pelos pesquisadores: seus registros materiais -
prédios, ruas, praças - que se constituem no que Freitas & Moreira (2005) denominam
monumentos: sinais que perpetuam, voluntariamente ou não, os testemunhos das
sociedades passadas. A eles, em grande parte, ligam-se as memórias da existência e do
funcionamento da escola. Por possuírem sentidos históricos e políticos, os monumentos
podem ser compreendidos não apenas por seus componentes materiais, mas como

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 47

representações simbólicas distintas, já que são traduções do pensamento e dos projetos de


personagens históricos, distintos em seus papéis sociais.

Para compreender a ligação entre as representações na memória, os sentidos


atribuídos a essas representações e o espaço físico que as evoca é particularmente adequado
recorrermos ao conceito de lugares de memória, cunhado por Pierre Nora, para quem “a
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (Nora, 1993: 9)
e assim constitui pontos de referência que são simultaneamente: materiais, onde a memória
social se ancora e pode ser apreendida; funcionais, porque possuem a função de sustentar as
lembranças coletivas e permitir sua transmissão; e simbólicos, pois caracterizam
acontecimentos ou experiências vividos por um pequeno número de pessoas, mas que fazem
parte da memória de muitas. Segundo Neves (2004), os lugares de memória referem-se a
construções historicamente datadas, que revelam processos sociais, conflitos, paixões e
interesses. Para a autora, a observação da coletividade a que esses lugares se referem leva à
formulação de questões que podem ser colocadas nos seguintes termos: “são lugares de que
memória ou de que memórias? São lugares de memória de quem e para a construção de que
identidades e de que projetos?” (Neves, 2004). Não seria, portanto, estranho aos
fundamentos do conceito utilizá-lo para identificar a correspondência entre os objetivos, as
finalidades, as ações e o papel da Escola Militar, relacionando-os com o processo de
ocupação e modulação do espaço urbano. Essa ideia guia nossa busca da compreensão das
motivações que levaram o poder público, a partir da segunda metade do século XIX, a
selecionar um lugar específico - o Realengo do Campo Grande - para atribuir-lhe
determinados significados e funções, e, após a transferência da Escola Militar, esvaziar esses
investimentos.

Certas ligações entre memórias e espaço material podem ser observadas nos
trechos destacados em seguida, registros deixados por antigos alunos e moradores do bairro.
O primeiro deles, traduzido na fala do general Antônio Carlos da Silva Muricy, aluno da Escola
Militar no início da década de 1920. Em depoimento, 19 ele descreve que na sua visão
sobressaía, sobretudo, a precariedade das condições materiais da Escola Militar.

Nós chegamos na Escola Militar e havia um ambiente de imensidão


vazia. A escola de Realengo era uma escola fria. Escola tipo quartel. Uma
escola em que o conforto era considerado depois dos aspectos de aula, do
funcionamento da vida militar. A Escola Militar tinha passado por uma
transição. Ela tinha uma tradição antiga de desorganização.

Essa opinião é compartilhada por Jehovah Motta, aluno da turma que se formou em
1927. Em Formação do oficial do Exército Brasileiro: currículos e regimes na Academia Militar

19Entrevista concedida à Aspásia Alcântara de Camargo, Ignez Cordeiro de Farias e Lucia Hippólito,
no contexto da pesquisa "Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras", parte integrante do
projeto institucional do Programa de História Oral do CPDOC.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


48 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

/ 1810-1944 (1976), obra que permanece como uma das principais referências em grande
parte dos estudos sobre a Escola Militar, Motta analisou as modificações no funcionamento e
nos currículos escolares da instituição, desde a criação da Real Academia até a implantação
da Academia Militar em Resende. Refere-se também, ainda que secundariamente, às suas
sedes. No capítulo denominado A era do Realengo, afirma logo de início:

O Realengo não conheceu o fausto nem a grandiosidade. Suas


instalações, embora ampliadas no decorrer do período, mantiveram-se
adstritas a um quadro de sobriedade por vezes vizinho da pobreza. Tudo nele
era modesto: salas, alojamentos, refeitórios, meios auxiliares de ensino.
Modestos eram seus cadetes, oriundos em sua quase totalidade de famílias
pobres, e muito ligados ao povo pela origem e pelo estilo de vida. (Motta,
1976: 213).

Não são surpreendentes essas queixas. O estado de desorganização e as deficiências


relatados pelos alunos da Escola Militar constituíam marcas, heranças das antigas instituições
do Realengo, e não se referiam apenas ao aspecto da administração e do ensino, mas,
sobretudo, à precariedade material dos alojamentos, dos refeitórios, das salas de aula, e até
mesmo as condições de urbanização e saneamento nos arredores da escola. Com frequência,
já se encontravam descrições desses problemas nos relatórios do Ministério da Guerra,
desde a época da Escola de Tiro, ainda no século XIX. Os projetos para a rápida ocupação da
localidade não parecem ter levado em conta as necessidades de implantação de uma
infraestrutura adequada para a chegada dos militares, funcionários da fábrica e seus
familiares, somada ao acelerado crescimento da população local.

Apesar dessas dificuldades, o desenvolvimento do bairro, na primeira metade do


século XX, seguiu impulsionado pela presença da escola e da fábrica. O comércio concentrou-
se na região central, principalmente no entorno da praça da igreja de Nossa Senhora da
Conceição. Diversas atividades econômicas relacionavam-se com as necessidades dos alunos
militares, tais como restaurantes, pensões, alfaiatarias, lavanderias e locações de domicílios.

Ainda que a visão dos militares apresentem representações sobre a precariedade do


bairro e das instalações da escola, um outro ponto de vista revela a consolidação da
urbanização local, do ponto de vista social, econômico e cultural. É a visão presente no
trabalho da professora Ermelinda Azevedo Paz, que, na obra As pastorinhas de
Realengo )1987), resgata o desenvolvimento e a preservação de determinadas tradições do
bairro, particularmente a encenação de autos pastoris. Ermelinda é generosa na descrição do
ambiente urbano:

Não havia um esquema de diversões implantado e estas giravam em


torno das quermesses da igreja, do grupo de Escoteiros e Bandeirantes, dos
passeios à noitinha andando em grupos ao redor da pracinha local, dos
parques de diversões temporários, do cinema que tinha sessões às terças,

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 49

quintas e domingos, com programa duplo, filmes já bem antigos e quase


sempre repetidos, das festinhas e reuniões pela vizinhança, dos bailes, jogos
e teatrinhos que as pessoas realizavam nos pequenos clubes locais com o fim
de se distraírem. Até então, os jogos infantis, danças, brinquedos de roda,
adivinhações e toda sorte de manifestações folclóricas fluíram
abundantemente de geração em geração e era ali naquele meio que todos
cresciam. No mês de junho eram comuns as festas juninas, com barraquinhas
com comidas típicas, jogos diversos, fogueira para saltar e assar cana e
batata, muitas simpatias típicas da época, feitas para descobrir com quem se
casaria e para ajudar principalmente as mocinhas a encontrarem seus
maridos, quadrilhas e outras danças juninas, realizadas nas escolas, igrejas e
na vizinhança. (...) O contato humano era muito valorizado e era um hábito as
pessoas à noite colocarem as cadeiras nas calçadas para tomar fresquinho,
bater papo e ver a criançada brincar. E todo mundo se conhecia! E foi neste
espírito isento de influências estrangeiras, mais lírico, poético, que se deu a
conservação dessas tradições. (Paz, 1987: 11).

É significativo que o mesmo ambiente seja percebido e descrito de maneira


bastante diversa pelo coronel José Pessoa, comandante da Escola Militar no início da década
de 1930. Com o intuito de transferir a sede da escola para o município de Resende, Pessoa,
em um de seus relatórios, informou aos seus superiores militares:

Ali tudo é impróprio à formação do corpo de oficiais. O clima é


exaustivo; os campos empantanados facultam a proliferação dos mosquitos e,
pois, os surtos de impaludismo; a paisagem, por toda parte, é cansativa e
monótona; as condições da localidade, qualquer que seja o ponto de vista por
que sejam encaradas, estão abaixo das exigências necessárias. E pela
localização dentro da capital federal, ainda está sujeita a ser presa de
agitações políticas que, periodicamente, inflamam a capital do país, como
freqüentemente tem acontecido. (JP/ag 36.04.12, doc. 14. Citado em Castro
(1994: 237).

Os objetivos e as motivações que levaram à elaboração do trecho citado acima são


interpretados por Celso Castro (1994) no artigo Inventando tradições no Exército Brasileiro:
José Pessoa e a reforma da Escola Militar. Analisando rituais e símbolos do Exército, Castro
destaca o período em que José Pessoa foi comandante da Escola Militar, e as ações desse
personagem na implantação de projetos para modificações nos modelos de formação
acadêmica dos oficiais do Exército, de modo a operar a constituição de uma elite social. Na
concepção de Pessoa, um ponto central desse projeto era a transferência da Escola Militar,
cuja localização lhe desagradava.

Coerentemente com esse pensamento, Fernando Rodrigues (2008) demonstra em


seu recente trabalho, Uma carreira: as formas de acesso à escola de formação de oficiais do
Exército brasileiro no período de 1905 a 1946, que durante certo período do funcionamento

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


50 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

da Escola Militar em Realengo os critérios de seleção de candidatos possuíram um caráter


discriminatório, principalmente de caráter racista e antissemita, com vistas à construção de
uma elite na instituição. Em sua pesquisa, o autor destaca os mecanismos institucionais que
conduziram esse processo, e denuncia também a presença da ideia da promoção de uma
"purificação" do ambiente de formação militar, em relação ao entorno social.

A existência desses diferentes discursos e sua ligação aos interesses particulares


indica a necessidade de considerar os atores que os produzem, e não apenas a estrutura
física real a que se referem. Os lugares de memória, portanto, podem estar ancorados no
espaço físico, mas o investimento simbólico, sempre subjetivo, demonstra o peso da
significação atribuída pelos objetivos de grupos específicos.

A diversidade de discursos e de possibilidades para sua interpretação, se por um


lado pode estabelecer dificuldades metodológicas, por outro revela que a memória também
pode se constituir em objeto de disputa, e permite perceber que a variabilidade das
percepções tem origem em sua ligação a interesses distintos. Essas diferenças remetem ao
conceito de representação, possibilidade de pensar os fenômenos sociais evocando imagens
às quais são atribuídos sentidos e que tornam presente aquilo que está ausente (Pesavento,
1995). Os conjuntos de representações, formando os sistemas que constituem o imaginário
social, possibilitam a captação de sentidos, constituindo uma história construída como uma
possibilidade, entre outras, de captar o passado (Idem) e formando a rede de significados
sociais denominada cultura. Assim, o ambiente urbano típico - as cidades - reunindo imagens
reais (cenários e paisagens) e metafóricas (suas interpretações nos discursos), constitui
espaços apropriados para a construção de significados, isto é, é passível de ser entendido
como um acúmulo de bens culturais.

Como esses significados se manifestam e são percebidos no ambiente urbano? Para


Moser, “nas ciências sociais, o ambiente é geralmente considerado como uma construção
daquele que o percebe. De modo evidente, a dimensão cultural está presente na relação
com o ambiente. O enquadramento ambiental não é um espaço neutro e isento de valores,
ele é culturalmente marcado” (Moser, 2005: 282). E, mais adiante: "O ambiente, enquanto
tal, veicula significações; nossa visão da natureza humana se exprime na maneira como nós
moldamos o espaço construído; e este espaço construído retorna a nós, re-significando
quem nós somos e o que devemos fazer” (Moser, 2005: 282). Assim, é reconhecido o efeito
do ambiente nas ações dos indivíduos, pela sua possibilidade de propiciar sentido,
identidade, situação social, econômica e cultural. Acrescenta-se, ainda, a dimensão temporal,
conforme afirmam Moser & Uzzell (2003): “Os lugares têm um passado que contribui para a
sua interpretação atual, e um futuro que é suscetível de nos guiar em nossas ações por meio
de nossas representações antecipatórias”.

Evocamos duas observações a respeito dos espaços constituídos sob a influência da


presença militar no Realengo. Em primeiro lugar, os logradouros, monumentos e memoriais,
que no bairro foram abundantemente batizados com nomes de personagens ligados ao
estabelecimento da República e ao funcionamento da Escola Militar. Entre praças, ruas, vilas,

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 51

encontram-se os nomes general Sezefredo, marechal Joaquim Inácio, general Raposo,


capitão Teixeira, marechal Soares Andrea, marechal Agrícola e diversos outros. A própria
região sofreu influências nesse sentido: a antiga Fazenda dos Afonsos tornou-se o bairro
Marechal Mallet; as terras da Fazenda Sapopemba foram transformadas nos bairros de
Marechal Deodoro e Coronel Magalhães Bastos; nos limites da área urbana um novo bairro
proletário surgiu com o nome do marechal Hermes da Fonseca. Esses casos podem ser
interpretados como processos de perpetuação da memória de personagens históricos,
manifestações da coerção política exercida sobre a sociedade brasileira do início do século XX
para o incremento de práticas de natureza patriótica, visando à consolidação da República.

A segunda observação se refere ao Cine-Teatro Realengo, localizado no centro do


bairro, próximo ao antigo prédio da Escola Militar. Construído em estilo arquitetônico art-
déco, foi inaugurado no final da década de 1930 e as paredes de seu saguão principal exibem
dois afrescos que reproduzem os quadros A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, e O
grito do Ipiranga, de Pedro Américo, obras com forte apelo ao sentimento de nacionalidade.
Nesse contexto, pode-se pensar no controle desses espaços e em sua utilização no
mecanismo de propaganda do Estado-Novo (a criação do Departamento de Imprensa e
Propaganda, DIP, é de dezembro de 1939) 20 dentro do seu projeto de construção de um
sentimento de nacionalidade brasileira através do “enaltecimento das belezas naturais, dos
símbolos nacionais e do patriotismo” (Heber, 2006).

II

O desenvolvimento de Realengo pode ser considerado singular dentro do processo


de urbanização da Zona Oeste carioca, com um espaço ocupado segundo uma lógica de
integração às funções das instituições militares. Além da importância de seus prédios como
marcos históricos, ressalta-se seu valor paisagístico e arquitetônico, que representava
diversos estilos e períodos. Hoje, no entanto, as antigas instalações da Escola Militar e da
Fábrica do Realengo, os imóveis destinados à residência de seus integrantes e outros espaços
que permaneceram sob jurisdição militar encontram-se em precário estado de conservação.
Após a transferência da escola para Resende, as edificações foram ocupadas sucessivamente
por organizações militares diversas, que visando ao atendimento de necessidades imediatas
promoveram uma série de alterações em sua estrutura, sem a observação de quaisquer
critérios de preservação. Atualmente, o aquartelamento encontra-se ocupado pelo Comando
da 9ª Brigada de Infantaria Motorizada. A Fábrica do Realengo foi desativada no ano de
1977.21 Sua área principal, após décadas de abandono, transformou-se em ruínas. Apesar de
tombada pela Lei Municipal nº 1.962/93, de 4 de maio de 1993, apenas recentemente teve
uma pequena extensão restaurada para abrigar uma unidade do Colégio Pedro II. Uma

20 Verbete “Estado Novo”, disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5863_4.asp,


acesso em 21 de julho de 2008.
21 Decreto nº 79.659, de 5 de maio de 1977. Extingue estabelecimentos fabris do Ministério do Exército,

transfere bens para a IMBEL e dá outras providências.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


52 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

segunda área da fábrica, também protegida pelo tombamento, encontra-se abandonada e


também em ruínas, sendo alvo constante de invasões e depredações.

Uma visita ao bairro apresenta um cenário que permite perceber apenas resquícios
de sua história. As invasões de terrenos e ocupações irregulares se multiplicaram a partir das
décadas de 1970 e 1980. Aceleradamente, perderam-se as referências materiais ao seu
passado, uma vez que, nos últimos anos, demolições e reformas desfiguraram a arquitetura
dos antigos prédios, alguns construídos no século XIX. O fracionamento dos terrenos das
antigas residências e a venda de diversas propriedades da União também descaracterizaram
o bairro, e poucas ações foram realizadas para a preservação da memória das origens e da
presença da Escola Militar e da Fábrica de Cartuchos na localidade. Antigas construções, que
indicavam a presença e os investimentos do poder público na região, passaram por acelerado
processo de deterioração ou foram demolidas, não restando nem mesmo vestígios de sua
presença. Entre essas estruturas, poderiam ser enumerados: o Departamento de Equitação e
de Educação Física da Escola Militar do Realengo, ocupado pela Escola de Equitação do
Exército após a extinção da EMR, vendido para particulares e demolido em 2007; a área da
antiga Fábrica de Cartuchos do Realengo e as residências dos funcionários, também em
grande parte já demolidas; o Parque de Material da Escola Militar, vendido na década de
1970 para construção de um condomínio residencial; a residência funcional do comandante
da escola, construída em arquitetura neoclássica no início do século XX e demolida em 2004,
para construção de um supermercado.

Certamente, faz parte da dinâmica das cidades - e, consequentemente, dos lugares


de memória - a constante adaptação e readaptação de seus equipamentos a novos usos,
novos tempos, a necessidades e desejos constantemente renovados e reinventados.
Desafortunadamente, porém, esse processo leva consigo memórias, lembranças, bens
culturais, conhecimentos e registros do passado. Como assinala Pesavento (1995):

Naturalmente, a forma de uma cidade, seus prédios e movimentos


contam uma história não verbal do que a urbe vivenciou um dia, mas, por
mais que este patrimônio tenha sido preservado, os espaços e sociabilidades
se alteraram inexoravelmente, seja enquanto forma, função ou significado.
No caso das cidades modernas, metrópoles de fato ou por atribuição de seus
habitantes, que a vêem e sentem como tal, a complexidade da vida e as
sucessivas intervenções urbanísticas são agentes de descaracterização e
mesmo de degradação da cidade. Ocorre muitas vezes o que se poderia
chamar uma "pasteurização" ou uniformidade do urbano no pior dos
sentidos: a destruição da memória, a substituição do "velho" pelo novo, a
uniformização das construções e a generalização do caráter de
impessoalidade ao contexto urbano (Pesavento, 1995: 11).

Assim, paralelamente à destruição do objeto físico, ocorre a destruição das


memórias e da história, às quais ficam faltando alicerces construídos justamente sobre a

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 53

existência, a conservação e as possibilidades de acesso às referências materiais que a


fundamentam. Como consequência, somam-se prejuízos para a compreensão de aspectos
culturais e históricos do desenvolvimento das sociedades. Essas são premissas que podem
ser generalizadas para casos mais diversos, ao se tratar da questão da preservação de bens
culturais urbanos. No caso particular em estudo - a relação entre Realengo e a Escola Militar
- também representam a perda de possibilidades de compreensão de processos sociais mais
amplos, como percebe Fernandes (2006):

Estudar os processos que envolvem as forças armadas como uma


instituição, em seu processo de constituição multifacetado, justifica
amplamente a pesquisa sobre as suas dimensões espacial, geográfica,
política, social e paisagística da cidade do Rio de Janeiro. E tanto o tempo
como o espaço do Rio de Janeiro estão se revelando um universo riquíssimo
para se desenvolver tal proposta, porque aqui se concentrou um dos aspectos
mais marcantes da história das forças armadas no século XX, ou seja, a sua
modernização, cuja complexidade faz parte das transformações da sociedade
e do Estado brasileiro. (Fernandes, 2006).

O funcionamento da Escola Militar em Realengo ilustra os experimentos para


administração do Exército nacional em um contexto que confrontou as constantes restrições
orçamentárias com a crescente diversidade e complexidade na doutrina, no emprego de
materiais bélicos modernos e, principalmente, na formação de recursos humanos. Ilustra
como as experiências de modernização, profissionalização e preparação para a guerra, em
nosso país, privilegiaram a instrução militar como meio para alcançar esses objetivos. Mas os
eventos descritos acima permitem também reflexões sobre aspectos das mudanças da
sociedade brasileira durante os séculos XIX e XX. Assim, como conclusão, procuraremos
compreender certas condicionantes de caráter econômico e geopolítico que atuaram na
transferência da Escola Militar para o Realengo, bem como certas consequências da saída da
escola da região.

III

Visualizamos a inserção da Escola Militar no bairro de Realengo, refletindo sobre


sua presença nos diversos discursos e na sua (des)caracterização como um patrimônio
urbano. Nesse trajeto, fomos conduzidos a induções sobre determinados processos
históricos, os quais podem ser reconhecidos como representativos de aspectos do
desenvolvimento da sociedade brasileira na primeira metade do século XX. Como conclusão,
observaremos como a situação do bairro permite outras inferências, relativas aos planos
geográfico e de distribuição social da cidade do Rio de Janeiro.

Os acontecimentos que envolveram a ampla participação dos militares da Escola


Militar no episódio da Revolta da Vacina são frequentemente apontados como causa do

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


54 Realengo e a Escola Militar:
um estudo sobre memória e patrimônio urbano

fechamento daquele estabelecimento e sua posterior reabertura no Realengo. Instituída a lei


de vacinação obrigatória, a população, insuficientemente esclarecida, revoltou-se e
promoveu violentos protestos durante a semana de 10 a 16 de novembro de 1904. Após a
situação ser contida pelas forças públicas, foi decretado estado de sítio por 30 dias,
abrangendo o Distrito Federal, a Comarca de Niterói e o Estado do Rio de Janeiro.22 Como
consequência da adesão de seus alunos ao movimento, a escola militar foi fechada, após o
que as autoridades civis e militares concordaram com a transferência de sua sede para o
Realengo e para as cidades de Rio Pardo e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em que pese a
importância desses fatos, destacaremos alguns fatores que indicam a existência de outras
condicionantes na decisão de transferência da escola, entre os quais destacam-se as
condições geográficas da região do Realengo, que, por sua situação de relativa proximidade
do Centro da cidade e baixa taxa de ocupação urbana à época, mostrava-se propícia para a
implantação do modelo de instrução desejado pelos militares.

Para isso, é necessário retroceder algumas décadas em relação à chegada da escola


no Realengo. Observe-se que até meados do século XIX a cidade do Rio de Janeiro ainda era
modesta, fato atribuído em grande parte à inexistência de transportes coletivos (Abreu,
1997). Apenas em 1868 foi inaugurada a primeira linha de bondes, inicialmente à tração
animal, e depois movidos à eletricidade. Com a chegada dos meios de transporte sobre
trilhos, bondes e trens, tornou-se possível, após 1870, a expansão da cidade. Assim, a região
do Centro e seu entorno imediato, no final do século XIX, estavam saturados pela rápida e
desordenada ocupação.

Nesse ambiente urbano, já consolidado, foram realizadas pelo Ministério da Guerra,


em 1886, manobras militares em Botafogo.23 A escolha desse local atendia à conveniência da
redução de despesas com os serviços de fornecimento de suprimentos e transportes,
necessários para a realização do exercício, devido à sua proximidade da Praia Vermelha, onde
estava localizada a Escola Militar, e da região do Centro, sede de outros contingentes de
tropas. Entretanto, alguns fatos demonstraram a necessidade de que manobras dessa
natureza fossem realizadas em pontos afastados da cidade. Foram registrados diversos
acidentes, inclusive fatais, devido à excessiva aglomeração de populares, atraídos pela
curiosidade de assistir às manobras militares, às muitas edificações urbanas, sensíveis aos
tiros de artilharia e ao intenso trânsito de veículos na região. Assim, foi constatado que a
realização de manobras, batalhas simuladas, exercícios de marchas e acampamentos,
embora atendesse à necessidade da realização de instruções práticas das frações do exército,
teria de ser realizada em pontos afastados da cidade. Cerca de duas décadas depois, essa
incompatibilidade cresceu ainda mais.

Um fator central nesse processo foi a reforma urbana promovida pelo prefeito
Pereira Passos, na primeira década do século XX. Nessa ação, a região central da cidade foi

22 Decreto nº 1.270, de 16 de novembro de 1904. Proclama o estado de sítio no território do Distrito


Federal durante 30 dias.
23 Relatório do Ministro da Guerra Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, 1886.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Artigos Claudius Gomes de Aragão Viana 55

radicalmente modificada, abandonando suas características coloniais, com cortiços e


edificações degradadas que ocupavam ruas estreitas e insalubres. A zona portuária foi
ampliada, abrindo-se avenidas como a Rodrigues Alves, a Central (atual Rio Branco) e a Beira-
Mar; praças antigas foram reformadas e novas áreas criadas. Como uma das consequências
mais diretas da reforma, observou-se a valorização comercial desses espaços.

A reforma Passos conferiu aparência moderna ao Centro, mas a região passou a


servir também como marco da estratificação social, dividindo a cidade em duas partes
distintas: a Zona Sul para as classes favorecidas, e a Zona Norte para a classe operária e a
população de baixa renda. Os habitantes expulsos dos cortiços demolidos no Centro
ocuparam os subúrbios, que tiveram nas ferrovias o fator de impulso da sua expansão, ou os
morros próximos aos locais de trabalho, dando início ao crescimento desordenado das
favelas. Em 1906 a população da cidade elevava-se a 811.443 habitantes.

Esses pontos coincidem com as observações de Rodrigues (2008), que assinala como
resultado desse processo o deslocamento da massa popular do Centro para os morros e
subúrbios do Rio de Janeiro, ao longo da estrada de ferro. Essa “limpeza social”, conforme o
autor denomina, incrementou a valorização imobiliária das áreas do Centro e da Zona Sul,
beneficiadas também pela preferência no recebimento de investimentos públicos. Nesse
contexto, a transferência da Escola Militar e de outros efetivos militares para a região do
Realengo mostrou-se conveniente tanto ao atendimento da necessidade de sediar os efetivos
militares em espaços apropriados para a realização de manobras, marchas, exercícios de tiro
e outras atividades, quanto adequada para atender a objetivos políticos, incluindo o
afastamento das tropas militares da região politicamente instável - e comercialmente
valorizada - do Centro da cidade. Reforçou, ainda, o processo de inclusão dos militares das
classes subalternas nas categorias representadas pela camada operária e a população de
baixa renda, do qual o projeto de transferência da Escola Militar para Resende pretendeu
desviar-se.

As aquisições de áreas, a urbanização e as construções realizadas durante o período


de funcionamento da Escola Militar são testemunhos dos investimentos e projetos na
constituição dos espaços militares do Realengo. Nesses espaços materiais - prédios, praças,
ruas - transitaram grupos que lhes conferiram um caráter simbólico particular, como
expressão da presença do poder público. Presença que se tornou ausência a partir de 1944,
quando a transferência da Escola Militar para Resende deu início a um período de
esvaziamento e decadência da área, também nesses dois sentidos - material e simbólico.

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Entrevista de
Célio Turino
Concedida a
Célio Turino, mestre em História pela
Aline Portilho1 Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), autor de Na trilha de Macunaíma
– ócio e trabalho na cidade (Editora SENAC) é
secretário da Secretaria de Cidadania Cultural
– SCC – antiga Secretaria de Programas e
Projetos Culturais – SPPC – do Ministério da
Cultura. É o responsável pela concepção e
implantação do Programa Nacional de Arte,
Educação e Cidadania Cultura Viva, que tem
como instrumento central os Pontos de
Cultura, núcleos de produção cultural que
são escolhidos por meio de editais para
receber do Ministério da Cultura subsídios
financeiros para execução de suas atividades.
A entrevista foi realizada em janeiro de 2009,
por telefone, inicialmente para ser publicada
pela União Nacional dos Estudantes em
caderno comemorativo dos dez anos da
chamada “retomada cultural” da instituição,
porém, a publicação não foi executada.

1 PPHPBC/CPDOC/FGV
Entrevista Concedida a Aline Portilho 61

Célio, conte quais foram os caminhos – intelectuais e políticos – que levaram você até
a Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura [hoje,
Secretaria de Cidadania Cultural].

Comecei minha militância social e política em 1977 no movimento estudantil


secundarista. Na sequência entrei no PC do B e participei de toda a luta pela
redemocratização do país. Das lutas sindicais, Movimento Contra a Carestia, Comitê
Brasileiro pela Anistia, Movimento de Defesa da Amazônia até a Campanha das Diretas
Já. Sempre tive uma ligação mais direta com a organização da cultura. Mesmo quando
estava na universidade, fazendo História na Unicamp, eu me dedicava muito à
atividades culturais em bairros, em periferias e favelas na região de Campinas, com
cineclubes, feiras de artes em bairros distantes e atividades culturais nessas regiões.
Isso fez com que desde o início eu desenvolvesse meu trabalho profissional. Dirigi
vários museus de história e antropologia até que fui chamado pra trabalhar como
secretário de cultura em Campinas, isso em 1990. Fui secretário de cultura até 1992 –
foi lá que eu desenvolvi o conceito do que hoje são os Pontos de Cultura. É claro que
era algo um pouco menos elaborado do que a gente aplica hoje, mas envolvia as casas
de cultura, com gestão comunitária e uma série de ações mais autônomas e próprias
da comunidade sendo desenvolvidas nesses locais. Depois fiz mestrado em História e
Cidades, escrevi vários ensaios entre eles Na trilha de Macunaíma [Editora SENAC,
2004], que é um livro que trata da relação ócio e trabalho na cidade e da própria
constituição do sentido de identidade a partir de um estudo dos modernistas, da
relação da cidade com seus espaços de lazer, que são sobretudo áreas culturais.

Em 2004, o Ministro Gil [Gilberto Gil, Ministro da Cultura entre 2003 e 2008] me
convidou para trabalhar no Ministério da Cultura e formular um programa que se
gestava com uma série de problemas. Era um programa de acesso a cultura e que não
tinha dado muito certo. Isso porque ele tinha o foco muito voltado pra estrutura, pra
construção de centros culturais em periferias e favelas no Brasil e não tinha muito
substrato em termos de conteúdo, do uso e da ação permanente. E cultura é,
sobretudo, isso. Muito mais que prédio, cultura são pessoas. Cultura é um processo

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


62 Entrevista de Célio Turino

contínuo. O próprio nome, a própria etimologia da palavra cultura vem daí. Cultura
vem de colere, do latim colere que é cultivo. E a mudança que eu propus foi simples:
nós deixamos de colocar o foco na estrutura pra jogar o foco naquilo que é o próprio
fazer cultural.

Pode-se dizer que seus caminhos individuais, intelectuais confluíram com uma ideia
do Ministro Gil e daí surgiu o Cultura Viva?

É. Você veja bem, joguei aqui pra você trinta anos! Sobretudo no início da nossa
vida, nossa militância social e política ela determina muito do que nós seremos. Tem
gente que diz que, quando a pessoa envelhece, ela tem que mudar de opinião. Dizem
que quem não foi comunista na juventude está errado, mas quem continua depois dos
quarenta é burro. Eu te digo o contrário. Inclusive as minhas convicções ideológicas em
defesa do comunismo enquanto uma filosofia, enquanto entendimento de construção
de uma sociedade ela só se reforçou, sobretudo nesses últimos anos, nessas minhas
andanças aí pelo Brasil a fora. Com o trabalho dos Pontos de Cultura eu percorro
muitos cantos do Brasil: aldeias indígenas, cidades muito pequenas do interior do
Nordeste e desse Brasil todo, assentamentos rurais, favelas e ao fazer esse percurso eu
diria inclusive que a minha convicção de comunista se consolidou muito mais. Isso
depois dos quarenta, quase que cinqüenta.

Quem lida com cultura sabe que entre o planejado e o feito há um desnível. Como
não parece o seu caso, em que se reforçaram suas convicções, muitas vezes entre o
planejado e o feito há mesmo uma decepção. A próxima pergunta é exatamente
sobre isso. Esse processo que você vem pensando e planejando ao longo do tempo e
o que é realizado no Cultura Viva. Como você enxerga essa transição entre o
planejado e o feito?

Então, é muito doloroso. Porque a sociedade ela não se coloca aberta a esse
protagonismo da própria sociedade. O sistema econômico e político, a mídia, todos
eles trabalham num sentido unidirecional. O que nós fazemos com o Ponto de Cultura
é o oposto disso. É incentivar uma polifonia, como falava o Milton Santos – aliás eu uso

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Entrevista Concedida a Aline Portilho 63

o Milton Santos na construção teórica do Programa Cultura Viva – e, ao estabelecer


essa polifonia, esse protagonismo efetivo dos agentes sociais, das pessoas, nós
quebramos uma lógica que é uma lógica de dominação, que é uma lógica
concentradora. Que vai desde todo mundo se vestir igual até outras formas de
concentração de poder, de imposição de formas de trabalho e tudo mais. E o que a
gente faz não. É o contrário. O que o Cultura Viva tem de original? Ele segue o fluxo. E
ao seguir o fluxo ele segue a vida. E a vida é inacabada, é contínua. Tem até uma frase
do Paulo Freire que é assim “Onde há vida há inacabamento”. Então o próprio
planejamento, que às vezes a gente imagina que tem que ser um planejamento
estático, todo completinho, onde todas as etapas são previstas, conosco a gente faz de
uma outra forma. É um planejamento no processo. Caótico, mas nesse sentido da física
quântica, que acaba encontrando a ordem nesse caos.

Então, de fato é um caminho difícil, é tortuoso, porque a gente trabalha com


outros paradigmas. Quais são esses: em vez de um Estado que impõe um Estado que
dispõe. Isso parece que é uma pequena diferença semântica, mas ela é muito
significativa. Porque a natureza do Estado desde que ele se constituiu há cinco mil anos
atrás é impositiva e concentradora. O que a gente faz é oposto disso. Como que eu
exemplifico: nós lançamos um edital em que se abre pra receber propostas da
sociedade. E nós dizemos quanto podemos dispor, qual é o recurso, mas não como
aquele grupo social deve agir. Cada um dá uma solução diferente para o recurso que o
Estado dispõe. E assim a gente faz um programa bastante diverso e que encontra
complementaridade exatamente na diversidade. Isso que é a lógica da vida. Se você for
olhar uma floresta, ela é extremamente diversificada e complementar. Tem árvores que
nascem mais rápido pra dar sombra pra outras árvores que precisam de mais tempo
pra crescer. Por exemplo, o mogno, se você plantar o mogno a céu aberto, a pleno sol,
ele não cresce. Precisa ter uma árvore mais frágil sobre ele e ele vai crescendo àquela
sombra e fica aquela árvore esplendorosa e secular. Então, um pouco é esse processo
da complementaridade que a gente vai percebendo com os Pontos de Cultura. De certa
forma eu diria que o programa, ele tem alcançado seus objetivos. Mas, falta muito

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


64 Entrevista de Célio Turino

ainda pra se fazer. Sobretudo porque eles caminham nessa ideia da liberdade, da
capacidade da iniciativa, da capacidade criadora das pessoas. Acho que isso acaba
superando as dificuldades de estrutura, de concentração. Enquanto paradigma, a
maioria das políticas públicas atua a partir da carência, da falta. Então, as pessoas não
leem, é preciso oferecer livro para elas. As pessoas não têm acesso ao serviço de
saúde, é preciso oferecer um serviço de saúde a elas e assim por diante. O Cultura Viva
trabalha no oposto disso, ele desenvolve uma política a partir da potência das próprias
pessoas. É uma lógica invertida. Que resultado isso pode dar? Não sei... E ainda há
muito a ser cultivado. Mas nós acreditamos e é isso que nos faz ficar aqui. É muito
difícil a estrutura burocrática, a dificuldade de recursos humanos e tudo mais. Mas é
acreditar que é possível transformar a realidade e que essa realidade só pode ser
transformada através das pessoas. Somente a partir das pessoas, das pessoas
organizadas em grupos, em conjunto, da forma que elas acharem melhor, que dá muita
força pra continuar enfrentando as dificuldades.

Sem dúvida essa inversão é uma das coisas mais interessantes do Programa Cultura
Viva. De ser um Estado menos impositivo, isso é bastante inovador. Mas isso dentro
de uma burocracia estatal que enrijecesse, deve ser bastante complicado. Tem
inclusive uma ideia de transformar o Cultura Viva em lei pra que não se perca no
processo... Como você enxerga essa relação dentro da burocracia e essa necessidade
de transformar em lei?

Houve uma etapa: era necessário iniciar o programa e o aparato legal e jurídico
para amparar isso estava muito limitado, além das dificuldades materiais de governo.
Pouca gente, pouca estrutura de funcionamento, de trabalho. Mas, se o programa não
fosse pra rua ele também não se efetivaria. Pra você ter uma ideia, eu tomei posse aqui
[na SPPC do MinC, hoje SCC] no dia 31 de maio de 2004. No dia 14 de julho nós já
estávamos com o edital na rua. Em novembro a gente já havia feito o primeiro
convênio com um Ponto de Cultura. Foi um Ponto de Cultura de Arcoverde, no agreste
pernambucano. Então o elemento surpresa, o elemento do movimento ele é
importante porque as instituições são muito pesadas e aí não só o Estado até a UNE ou

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Entrevista Concedida a Aline Portilho 65

um sindicato, ela tem o peso de uma cultura institucional muito carregado, o que acaba
engessando muitas vezes uma série de ideias que a gente por ventura tenha. Então, foi
a partir um pouco dessa convicção também que a gente deu uma driblada nesse
processo com esse movimento de agir rápido. Ocorre, porém, que depois do processo
de implantação do programa nós enfrentamos problemas muito duros. Prestação de
contas, normas bastante rígidas, não adequadas ao processo da vida. Isso trouxe
dificuldades sobretudo para os primeiros Pontos de Cultura. Agora, nós estamos com
dois movimentos: o primeiro é da descentralização do Programa. Nós já chegamos a
850 Pontos de Cultura, não há condições de fazer a administração disso diretamente de
Brasília. Ao longo desse ano que passou, nós fechamos uma série de acordos com
governos estaduais e algumas prefeituras para que eles lancem seus próprios editais.
Mas enormes problemas vão surgir. A tentativa, às vezes a tentação, de aparelhar o
programa, de instrumentalizar. Então, há uma outra supervisão, um outro
acompanhamento que nós vamos fazer. Mas inevitável porque é necessário que a
gestão das redes dos Pontos de Cultura fique mais próxima de onde acontece a ação. E
aí o Ministério da Cultura fica na supervisão. Esse é o caminho que a gente está
fazendo dentro do marco legal atual.

Agora, a solução mais efetiva envolve a criação de uma lei que a gente está
chamando Lei da Autonomia e do Protagonismo Cultural, uma lei que fosse muito
simples, mas que reconhecesse alguns pontos que estão sendo um grande acúmulo na
definição da política cultural. Alguns gestores de política de cultura confundem cultura
com evento ou com atividades pontuais, quando você faz um acordo com um grupo
cultural a preocupação é excessivamente voltada para o resultado, quando cultura não
é produto. Cultura, como disse no começo, cultura é processo. Então, o primeiro ponto
a ser apresentado nessa lei é o entendimento de cultura enquanto processo. O
segundo de que ela é produzida pelas pessoas, pela sociedade. Então, a autonomia no
fazer cultural é essencial. Sempre quando houve tentativa de ingerência profunda, seja
ela de ordem econômica, que aí joga cultura para o mercado e fica uma cultura
pasteurizada; ou político-ideologica, como houve inclusive no período do realismo

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


66 Entrevista de Célio Turino

socialista na União Soviética, os resultados são bastante ruins e empobrecedores da


cultura. Ou seja: a cultura precisa da autonomia, precisa da liberdade, porque ela só se
desenvolve com força a partir de um protagonismo das pessoas. Então essa seria a
essência filosófica dessa leia que a gente está formatando. E nós acreditamos também
que o processo de aprovação dessa lei não deve ser iniciativa do governo e muito
menos de uma emenda parlamentar, de uma proposta de um parlamentar. Porque o
que a gente está tratando é do próprio processo civilizador brasileiro, é da cultura, da
alma das pessoas, da sociedade, do país e da nação. Ou seja, acho que seria incoerente
que nós fizéssemos uma lei que não fosse também dentro desse processo de baixo pra
cima. Então, agora a gente vai trabalhar na elaboração de uma minuta, na consolidação
conceitual dela para em seguida caminhar para uma lei de iniciativa popular. Imagino
que com milhares, ou, quem sabe, pra lá de milhão de assinaturas, a gente estaria
sendo mais coerente e daria mais consistência a essa lei.

O Programa Cultura Viva é também catalisador de um processo de organização


política, cuja referência é o Fórum dos Pontos de Cultura, que já realizou dois
encontros e vem se consolidando. Como você percebe essa relação de uma política
pública impulsionando uma organização da sociedade civil? Isso altera antigas
relações entre Estado e sociedade civil?

É algo assim que eu tenho me debruçado, sabe? Eu mesmo, às vezes, me delicio


em tentar entender o que aconteceu. Olha só que interessante: o programa começou a
partir de um reconhecimento e de uma reverência à iniciativa da sociedade. Então, eu
acredito que esse foi o primeiro ponto positivo do programa. Como resultado disso,
uma vez que ele potencializa essas iniciativas, busca o empoderamento das pessoas e
dos grupos sociais; houve também um empoderamento da rede, até porque o Cultura
Viva e o Ponto de Cultura ele só se realiza quando ele se articula em rede, do contrário
fica só um simples processo de transferência de verbas, que é importante, mas que é
limitado. O que a gente potencializa na articulação em rede e que é visível para quem
participa de encontros como a Teia [evento que reúne os Pontos de Cultura para
apresentações, debates e trocas de experiências], que a gente já fez três, é muito

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Entrevista Concedida a Aline Portilho 67

significativo. E aí, o que eu percebo é que está se gestando um movimento cultural


enquanto movimento social e é uma forma nova de expressão da sociedade. Que junta
a ética com a estética. Ele junta o entendimento de Brasil, uma ideia mais difusa de
planos, de ideário para o país com a expressão artística, com o sentimento, um pouco
razão e sentimento. A gente trabalha numa linha também entre essa sensibilidade, o
sensível e outras formas de inteligência e percepção da vida que não só a racional,
cartesiana. E isso está se expressando em um movimento social. No que pode dar? Eu
não sei... Eu gostaria que desse em muita coisa, mas isso ainda exige um tempo. Mas
eu diria que, talvez, esse novo movimento cultural que vai se gestando, polifônico,
diversificado, mas muito fincado na realidade social.

A gente trabalha muito com cultura popular e ao mesmo tempo trabalha com
uma cultura de vanguarda estética tecnológica, cultura digital. Tem vários Pontos de
Cultura, ali o Ponto de Cultura de Folia de Reis e, do lado da Folia de Reis, com aquele
velhinho desenvolvendo todo um trabalho de cultura tradicional, tem um menino
com dread, cheio de tatuagem trabalhando ali no estúdio multimídia que grava as
músicas daqueles senhores... Então, são outros processos de integração política e social
que vão se gestando.

Eu acho que, talvez – e aí a gente precisa de mais alguns anos – a gente esteja
vendo a ebulição de um novo movimento social que pode estar para o processo de
transformação do Brasil agora no começo do século XXI, da mesma forma que o
movimento popular, mais no sentido stricto, daquelas lutas de moradia, de saúde, do
movimento sindical estiveram na construção do Brasil do final do século XX. Então toda
aquele movimento sindical dos anos 70 e 80 resultou também em um desenho que é o
que a gente vivencia hoje. Talvez por esse movimento mais diverso da cultura a gente
esteja vendo o nascimento de um outro processo de mudança. E o que vai dar? Aí eu
não sei... Espero que dê em algo bom porque são as pessoas fazendo para as pessoas,
que pessoas consigam cuidar bem. A gente só consegue mudar as coisas se a gente
cuida bem de nós mesmos e dos outros.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


68 Entrevista de Célio Turino

Há um texto 2 seu de 2006 sobre narrativa histórica e museus em que é


problematizada a seleção do passado nestes espaços do qual podem ser destacados
elemento interessantes para pensar como o Cultura Viva contribui – ou se ele pode
contribuir, se você acha que contribui – para essa narrativa histórica. Como os
agentes que fazem parte do Programa Cultura Viva lidam com essa ideia de estarem
inserindo-se em uma nova narrativa da nação?

Eu fiquei bem feliz por vocês terem tido essa percepção. É algo que até eu
coloco pouco às vezes nas minhas falas sobre o Programa. Eu diria o seguinte: a grande
fronteira da luta de classes, e aí dessa disputa de poder, está na conquista do direito à
narrativa. Quem consegue apresentar sua versão tem condições de se legitimar
enquanto poder. Isso eu percebi no meu trabalho como historiador, em museus.
Sempre há uma disputa pelo direito à fala, e pelo não direito à fala. E isso não no Brasil
só, no mundo todo. Eu diria que o que a gente fez com o Ponto de Cultura tem muito
por base essa percepção. O estúdio multimídia tem um papel essencial, é o único
elemento comum a todos os Pontos. Para quê? Para que as pessoas tenham condição
de conseguir apresentar a sua versão e pela sua própria voz. Muitas vezes a gente tem
acesso à situação de vários povos, e até a partir de narrativas muito comprometidas
como os povos indígenas, pessoas mais exploradas, quilombolas, trabalhadores e tudo
mais... Mas, ainda assim, é um olhar externo, um olhar que vem de fora. O que a gente
tenta praticar com o Ponto de Cultura é o exercício do olhar interno. O Machado de
Assis tem um conto que eu gosto muito que é O Espelho. Ele fala de um alferes. O
conto é assim: Um novo tratado sobre a alma humana. Ele fala que as pessoas têm na
verdade duas almas, a alma de dentro e a alma de fora. A de dentro que é aquela que
faz e a de fora que diz quem nós somos, que determina nossa personalidade. Esse
alferes, de repente, os escravos fugiram e não tinha ninguém e também não tinha mais
a família... Não tinha mais ninguém pra dizer: “olha só como você é bonito, olha como
você é nobre”. Aí, ele foi descobrindo que a personalidade dele foi definhando e que
ela dependia do que falavam dele. Mas também dependia do que saia de dentro dele.

2 Narrativa histórica e museus, disponível em: http://www.interblogs.com.br/celioturino

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Entrevista Concedida a Aline Portilho 69

Então, na nossa sociedade essa impossibilidade de uma narrativa polifônica ela é


estratégica para manter um sistema de dominação. Então, o que a gente faz é trabalhar
numa contracorrente. Esse ano, nós vamos lançar, provavelmente no Fórum Social
Mundial, um novo edital que é uma premiação para Pontos de Mídia Livre [o edital foi
lançado em 26 de janeiro de 2009 no Fórum Social Mundial, realizado em Belém do
Pará e contemplou 78 iniciativas]. Todo esse movimento que vai se constituindo
demidialivrismo, de sites de articulação de redes, a gente acredita que seja muito
próximo do que a gente vem fazendo com os Pontos de Cultura. E eu acho que esse vai
ser o ano em que a gente vai colocar em prática essa questão da narrativa mais em
pauta.

Nas políticas públicas para cultura, há uma idéia elementar de construção e


fortalecimento da nação. Mas, parece que essa idéia de nação se modificou bastante
e o atual conceito de cultura também não parece o mesmo comparando-se as
primeiras ações do Estado brasileiro nesse sentido - em 1937, com a fundação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e as de 2008. O que você pensa
sobre esse processo? Você concorda que haja uma transformação? Se sim, como você
a entende?

Eu concordo em parte. A ideia de nação, da fundação de nação, que coincidiu


com o governo do Getúlio Vargas, que reconheceu a capoeira, aí vem toda a discussão
sobre o barroco e tudo mais ela foi essencial para criar essa imagem do que nós somos,
mas o que nós somos é um processo de transformação constante. Essa busca veio de
antes. Os modernistas colocaram essa questão de uma forma muito original, de certa
maneira até hoje sobrevive esse pensamento dos modernistas, da antropofagia. Eu
acredito que foi uma contribuição muito essencial assim como, se você joga para antes,
o romantismo foi sempre esse esforço de um Brasil, de a nação se entender como
nação. Nação também é uma abstração, mas ela é uma abstração a partir de
elementos muito efetivos. O Brasil tem um idioma e, ao usar esse idioma - e o Brasil é o
maior país do mundo que tem um idioma só que é o português -, que é entendido de
Norte a Sul do país - se bem que nós temos muitas outras línguas faladas aqui, ao

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


70 Entrevista de Célio Turino

mesmo tempo em que é uma grande nação com um único idioma, nós também somos
uma nação em que sobrevivem vários outros idiomas. O idioma que eu digo tem
extrema importância porque não é só o jeito de falar. É o jeito de pensar. Ou melhor: o
jeito de falar reflete o jeito de pensar. Esse jeito mais suavizado de falar brasileiro, meio
como onda. Quem viaja para o exterior percebe isso, o pessoal até pede para que a
gente fale só para ouvir a musicalidade do português do Brasil, que é diferente do
português de Portugal. Então há uma necessidade enquanto expressão dessa
identidade. Quem somos nós? A gente busca isso também com os Pontos de Cultura.
Agora estamos chegando a algumas ideias. Primeiro: construção de identidade por si
não resolve. É preciso que haja uma convivência dialética. A identidade ao lado da
alteridade. Alteridade é a capacidade de você se ver no outro. Eu até estou
trabalhando um texto que é um pouco sobre isso: identidade mais alteridade é que
resulta a solidariedade. Inclusive resgatar o sentido da compaixão. A política ela é uma
disputa de interesses e ela foi se desvinculando de valores, muito ligada só à ideologia.
A ideologia é a construção de ideias a partir de grupos, de relações sociais e é
fundamental, ideologia é essencial. Mas eu queria me preocupar com a construção de
valores. E alguns valores são esses. Não há ideologia de transformação social que
resista com a falta de solidariedade, com a falta de sentimento de compaixão, de se
compadecer pelo outro. Um pouco o que a gente vai fazendo com o Ponto de Cultura.
Por exemplo, agora, com aquela situação lá de Santa Catarina, um grupo de Pontos de
Cultura foi lá passar o Natal em abrigos. São pequenos exercícios, mas a ideia do Ponto
de Cultura sempre é essa, de pequenas ações que vão acontecendo e vão criando
sentido.

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Resenha

Balanços e
perspectivas sobre
os primórdios do
Sport em terras
brasileiras
Cleber Augusto
Gonçalves Dias1

Obra:
Cidade sportiva:
primórdios do esporte no
Rio de Janeiro
Victor Melo
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

1 Unicamp, Campinas (SP).


72 Resenha Cleber Augusto Gonçalves Dias

Estudos históricos sobre o esporte costumam se apresentar destacando o relativo


preconceito da História diante de determinados objetos de pesquisa, tais como o próprio
esporte. No entanto, desde os meados da década de 1960, re-elaborações teóricas das
ciências sociais, chamadas genericamente de “virada cultural”, criaram um contexto bastante
favorável para uma sutil mudança desse estado de coisas. No campo da História, mais
especificamente, viu-se a materialização dessas repercussões no surgimento de uma Nova
História Cultural. Basicamente, tratava-se de um deslocamento que permitia às pesquisas
históricas se dedicarem, dali em diante, ao estudo de representações tanto quanto de
práticas sociais. Assim, novos objetos se apresentavam à reflexão histórica, entre os quais o
esporte.
No plano internacional, essa época vê a consolidação institucional de esforços
investigativos nessa direção. É o momento em que surgirão associações e publicações
científicas especializadas que se dedicarão, especificamente, ao estudo do esporte na órbita
das ciências sociais. É esse o caso, por exemplo, da Internacionals Sociology of Sport
Association, fundada em 1965 e que passou a editar desde então a International Review for
the Sociology of Sport. Tais iniciativas foram se cristalizando e ao longo da década de 1970
ganharam em escopo e em abrangência, atingindo, a partir daí, outras disciplinas. No campo
da História, mais especificamente, em meados dos anos 1970 cria-se a North American
Society for Sport History, que imediatamente passou a editar o Journal of Sport History, com
o objetivo de “promover o estudo de todos os aspectos da história do esporte”. No mesmo
sentido, em 1982 cria-se a British Society of Sports History, que passa então a editar o
International Journal of the History of Sport. Em 1983 aparece ainda a Australian Society for
Sports History, responsável desde então pela publicação do Sporting Traditions.
Mais ou menos nessa mesma época, ainda no plano internacional, publicações de
novos trabalhos estabeleciam de maneira definitiva a temática no âmbito dos estudos
sociológicos. O livro de Jean Marie-Brohm, de 1976, sobre a sociologia política do esporte é
uma amostra emblemática nesse sentido 2. Suas proposições são reconhecidamente como de
grande alcance e visibilidade 3 e mesmo que suas reflexões não abordassem, direta e
especificamente, a história do esporte propriamente dita, muitas implicações nesse sentido
puderam ser inferidas a partir da obra. Com orientação teórica claramente marxista, Brohm
argumentava, em linhas gerais, que o esporte era o resultado “superestrutural” do
estabelecimento do sistema capitalista industrial moderno. Nesse sentido, apenas sob as
condições inauguradas por e nestas configurações sociais é que o esporte pôde se
desenvolver. Por caminhos diferentes, o trabalho de Allen Guttman intitulado From ritual to

2 BROHM, Jean-Marie. Sociología política del deporte. Ciudad del México: Fondo de Cultura
Econômica, 1982.
3 PRONI, Marcelo W. Brohm e a organização capitalista do esporte. In: PRONI, Marcelo W.; LUCENA,

Ricardo (Orgs.). Esporte: história e sociedade. Campinas, SP: Autores Associados, 2002, p. 31-61.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Resenha Balanços e perspectivas sobre os primórdios 73
do Sport em terras brasileiras

Record e publicado em 1978 também afirmava a singularidade histórica das práticas


esportivas em contraste a dimensão cerimonial e ritualística de jogos e práticas pré-
modernas 4. A despeito das diferenças que separam os dois trabalhos, ambos marcaram
profundamente os futuros encaminhamentos dos estudos do esporte, sobretudo o seu
aspecto e a sua dimensão moderna.
No Brasil, entre o final da década de 1970 e início da de 1980 o tema começa a
receber atenção mais sistemática de alguns analistas sociais5, embora antes disso já
tivéssemos algumas manifestações mais esporádicas e circunscritas, como é a tradução
brasileira de 1969 do livro Sociologia do esporte, de Georges Magnane 6, ou o bem-sucedido
ensaio de João Lyra Filho, de 1973, que no curto período de um ano já alcançava sua terceira
edição.7 Paralelamente, começam a surgir também trabalhos de historiadores profissionais
sob este aspecto. Em 1978, a revista Encontros com a Civilização Brasileira publicava dois
artigos sobre Futebol e História, assinados, respectivamente, pelo jornalista Jacob Klintowitz
e por Joel Rufino dos Santos, que em 1981 publicaria um ensaio intitulado História política
do futebol brasileiro 8.
Ao longo de toda a década de 1980 as discussões acadêmicas em torno do esporte
foram sendo sensivelmente mais sistematizadas e ganhando envergadura. Destacam-se
nesse sentido os primeiros textos de Roberto da Matta sobre o assunto, especialmente um
título de 1982 organizado por ele mesmo sob o título Universo do Futebol. 9 Na década
seguinte, o esporte ganha mais espaço em algumas universidades e aumentam o número de
publicações. Em 1990, no departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, cria-se o Núcleo de Sociologia do Futebol, iniciativa pioneira que entre 1994 e
1997 editaria a revista Pesquisa de Campo. Emblematicamente, vemos ainda no ano de 1990
a aparição de títulos como O que é sociologia do esporte, de Ronaldo Helal 10, ou O pontapé

4 GUTTMAN, Allen. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia
University Press, 1978.
5 TOLEDO, Luiz H. de. Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira (1982-2002).
Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 52, São Paulo, 2001.
6 MAGNANE, Georges. Sociologia do esporte. São Paulo: Perspectiva, 1969.

7 LYRA FILHO, João. Introdução à sociologia dos desportos. Rio de Janeiro / Brasília: Bloch / MEC,

1973.
8 SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981. Ver

também, DIAS, Cleber. Resenha do livro História política do futebol brasileiro, de Joel Rufino dos
Santos (São Paulo: Brasiliense, 1981). Recorde, ano 1, n. 1. Disponível em:
http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde.
9 DA MATTA, Roberto [et al.]. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro:

Pinakotheke, 1982.
10 HELAL, Ronaldo. Sociologia do Esporte. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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74 Resenha Cleber Augusto Gonçalves Dias

inicial, sobre a história do futebol brasileiro entre 1893 e 1933, de Waldenyr Caldas11, que
“inauguraram” uma fase de aceleração das publicações nesse sentido, cujos números só
fariam se multiplicar até o final do período.
A partir do ano 2000 ter-se-á o primeiro grupo de trabalho sobre esporte na Reunião
Brasileira de Antropologia, o mesmo acontecendo na Reunião Anual da Anpocs em 2002 e
em 2003 também no Seminário Nacional de História da Anpuh.12 Do mesmo modo, veremos
o aparecimento de novos grupos de pesquisa dedicados ao assunto, como o Grupo de
Estudos Futebol e Sociedade, liderado pelo professor Luiz Carlos Ribeiro e sediado na
Universidade Federal do Paraná, em Curitiba; do Núcleo de Estudo sobre Esporte e
Sociedade, da Universidade Federal Fluminense e coordenado pelo professor Marcos Alvito;
ou ainda o Laboratório de História do Esporte e do Lazer, coordenado pelo professor Victor
Melo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2005 temos a aparição da revista
Esporte e Sociedade (http://www.esportesociedade.com) e ainda mais hodiernamente
teremos a partir de junho do ano passado a Recorde: Revista Brasileira de História do Esporte
(http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde).
De certo modo, o livro Cidadesportiva: primórdios do esporte no Rio de Janeiro, bem
como seu autor, Victor Andrade de Melo se articulam profundamente com esses últimos
desdobramentos. Publicado em 2001, trata-se, na verdade, do resultado de uma pesquisa de
doutoramento desenvolvida entre 1995 e 1999. Dividido em cinco partes, o livro pretende,
basicamente, identificar os primórdios do esporte no Rio de Janeiro, como o próprio
subtítulo anuncia. Sua principal motivação, apresentada logo no início, é o de tentar saber
“como teria começado a prática esportiva em terras brasileiras?” (p. 13).
Não por acaso, o trabalho começa com uma discussão sobre as “principais práticas
reunidas em torno da denominação esporte” (p. 19), a fim de “identificar a partir de que
momento podemos falar de esporte” (p. 20). Diante das questões, um conceito de esporte é
então definido preliminarmente, qual seja, “um campo relativamente autônomo, com uma
lógica interna específica” (ibid.).
A partir daí, a incorporação do esporte em terras brasileiras será pensada a partir de
uma dupla e complexa circularidade, que tenta superar dicotomias e oposições exageradas e
pouco matizadas entre o nacional e o internacional ou os dirigentes e os subalternos. Então,
em primeiro lugar, destaca-se que o esporte representou no Brasil inegavelmente uma
prática cultural importada, cujo nexo se encontrava, principalmente, na possibilidade de
demonstrar proximidade e similitude com o universo cultural europeu. Não por acaso,

11 CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro (1894-1933). São Paulo: Ibrasa,
1990.
12 GUEDES, Simoni L. Resenha do livro Lógicas no futebol, de Luiz Henrique de Toledo (São Paulo:

Hucitec/FAPESP, 2002). Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, n. 51, p. 178-183, 2003.

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


Resenha Balanços e perspectivas sobre os primórdios 75
do Sport em terras brasileiras

utilizavam-se os termos em inglês, chegando-se até mesmo a copiar o modelo de realização


de competições, regulamentos, bem como uma série de outros simbolismos ao redor das
práticas, tais como o glamour ou a distinção social (p. 32). Por outro lado, destaca-se
também que tal incorporação precisou contar com o apoio e a disponibilidade de um grupo
de atores desejosos em importar esses costumes. Portanto, como afirma o autor, não
estamos diante de uma “passiva acomodação de idéias” (p. 26).
Do mesmo modo, a análise das formas de relacionamento entre as elites nacionais e
as camadas populares empreendida sobretudo no capítulo três – no meu ponto de vista, o
ponto alto do livro – também destaca um imbricado jogo de forças, ou nas suas palavras,
“um complexo de relações”. De um lado, a expectativa dos grupos que detinham o
monopólio simbólico das práticas esportivas, interessados, a um só tempo, em difundi-las e
obstruí-las. Difundi-las por causa das possibilidades potenciais em sua exploração
econômica, além da sua apresentação como um irradiador de códigos que funcionassem
como um substituto moralmente mais adequado para divertimentos populares vistos já
como bárbaros, selvagens e violentos, como as brigas de animais por exemplo. Ao mesmo
tempo, nota-se o interesse de manter sua difusão sempre em termos mais ou menos
restritos e relativos, a fim de assegurar o controle de significados dramatizados pelos
esportes. Nesse sentido, tanto no turfe quanto no remo uma série de mecanismos foram
criados para tentar impedir que a difusão de ambas as práticas pudesse permitir codificações
ou re-adaptações fora dos parâmetros concebidos inicialmente. O empenho das associações
de remo para reforçar sua dimensão amadorística ao longo dos primeiros anos do século XX
é um bom exemplo sob este aspecto.
De outro lado, teremos um relativo desinteresse inicial das camadas populares diante
do esporte, que a princípio não se empolgaram muito diante dos novos hábitos. Nas palavras
de Victor Melo, “o esporte não era uma prioridade para as camadas populares” (p. 113), suas
características não faziam parte dos seus parâmetros e das suas realidades e ele não estava
completamente ajustado ao seu gosto ou às suas tradições culturais. No limite, do ponto de
vista popular, esportes eram apenas mais uma oportunidade de diversão, mas não
necessariamente a prioritária (ibid.). Assim, a exclusão inicial dos populares das arenas
esportivas não é apenas o resultado bem-sucedido de ações de controle entabulada pelas
elites, até porque, no Brasil, “o esporte estava então mais ligado aos desejos das elites de
recriar um mundo europeu, do que propriamente marcar uma posição de classes ou
estratégia de controle corporal” (p. 211). Longe disso, a forma restrita de participação
popular pôde significar também uma recusa voluntária em aceitar os códigos de conduta
inscritos implicitamente nos esportes. Mas claro que isso não é tudo. Inversamente, as
oportunidades de participação para além do aspecto do consumo esportivo eram, de fato,

Revista Mosaico – Volume 1 – Número 2 – 2009


76 Resenha Cleber Augusto Gonçalves Dias

bastante restritas, e a população reconhecia isso, o que só reforçava as suspeitas e a relativa


falta de entusiasmo inicial diante dos esportes que aportavam por aqui. Havia, contudo, um
elemento fundamental naquele momento que dotava os esportes de algum interesse para o
populacho: a possibilidade de ganhos materiais, seja através das apostas, seja através da
possibilidade mais geral de ascensão social. Em suma:
Deve-se pensar o impacto do esporte na sociedade sem considerar as camadas
populares como completamente dispostas a resistir aos sentidos propagados pelas elites,
como também sem se renderem a eles por completo. Tais camadas também incorporaram
muitos dos valores difundidos, até mesmo para deles fazer uso de acordo com seus
interesses (p. 141).
Essas são relações de força bastante complexas e muito difíceis de serem apreendidas
teoricamente ou demonstradas empiricamente. Mas a trilha investigativa escolhida por
Victor Melo mostra-se, no fim, bastante engenhosa e criativa para matizar tais
relacionamentos. A captura da voz das elites em suas preocupações para com a definição e o
controle dos sentidos dramatizados pelas práticas esportivas vai evidenciando os motivos e
as raízes dessas preocupações, que era o receio, justamente, na perda dessa hegemonia. Ao
invés, portanto, de destacar nessas dinâmicas apenas a dimensão simbólica dominante, que
nas leituras mais fáceis e convencionais seriam capazes de exercer uma força coercitiva
supostamente absoluta, Victor inverte o fiel da balança e evidencia o protagonismo e o papel
ativo presente nos códigos de recepção, apreensão e incorporação do esporte entre as
camadas populares. E faz isso, amiúde, através de uma observação das dinâmicas internas às
próprias elites, ou seja, através dos desdobramentos e reagrupamentos nos arranjos das suas
institucionais, como a formulação e reformulação de normas, códigos, estatutos e assim por
diante.
Suas conclusões e suas formas de abordagem, em suma, marcam um importante
momento das elaborações teóricas acerca do esporte. Evidentemente, existem determinadas
questões que precisariam de uma re-avaliação crítica, como as concepções de modernidade,
a natureza e a abrangência das séries documentais disponíveis para a reconstituição histórica
do fenômeno esportivo ou mesmo a periodização mais adequada para a identificação dos
primórdios do esporte no Brasil. Mas isso tudo são questões que deverão ser enfrentadas de
agora em diante, e que serão, por algum tempo ainda, herdeiras dos encaminhamentos
apresentados nessa obra, que certamente é um dos livros mais importantes sobre história do
esporte no Brasil.

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