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2
Revista Discente
Programa de Pós-Graduação em História,
Política e Bens Culturais (PPHPBC)
CPDOC | FGV
Sumário
Apresentação 02
Artigos
Entrevista
Resenha
A revista Mosaico em sua edição nº2 traz à luz um debate sobre construção de
memórias e cidadania. Em uma avaliação que perpassa as preocupações lançadas pelos
artigos, a compreensão da memória construída como instrumento de mobilização
cidadã em vista a um projeto democrático aparece na discussão sobre a Revolta
Constitucionalista de 1932, bem como na análise do sincretismo religioso brasileiro,
passando, é claro, pela influência de uma instituição militar na vida cotidiana e no
desenvolvimento de um bairro carioca.
Resumo:
Este artigo procura analisar as ações de
mobilização na cidade de Fortaleza, capital do
estado do Ceará, durante a Guerra de 1932. Nos
dias de conflito, nesta cidade houve uma forte
campanha de mobilização para estimular a
participação da população na guerra. Esta
campanha teve diversos articuladores, como a
Interventoria local, Igreja Católica cearense,
setores significativos da imprensa, vários
cidadãos sensibilizados com a defesa do Governo
A cidade e a
Vargas, além de diversos grupos civis, militares e
políticos. Destacaram-se, como estratégias
significativas presentes em Fortaleza, meetings,
cotidiano de Abstract:
This article attempts to analyze what happened in
Fortaleza durante the city of Fortaleza, the capital of the state of
Ceará, during the War of 1932. During the
a Guerra de 1932
conflict, the city saw a strong campaign to
mobilize the population to participate in the war
effort. This campaign had several articulators,
such as the “Interventor”, the Catholic Church,
Raimundo Helio Lopes1 significant sectors of the press, several people
that moved into the defense of the Vargas
government, plus various civil, military and
political groups. Several strategies to organize this
mobilization were significant in Fortaleza, such as
meetings, marches, campaigns to collect money
for soldiers, intense newspaper campaing and
public parades.
2As relações entre o Ceará e a Guerra de 1932 foram analisadas na pesquisa que desenvolvi durante o
mestrado: LOPES, Raimundo Helio. Os Batalhões Provisórios: legitimação, mobilização e alistamento
para uma guerra nacional. (Ceará, 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2009.
II
Desde o início da Guerra de 1932, ficou claro para o Governo Provisório que a forma
de apoio mais efetiva dos Estados do Norte seria o envio de batalhões provisórios. Para
tanto, a busca por uma legitimação do combate contra os inimigos foi intensa, articulada por
pessoas e setores políticos que apoiavam Getúlio Vargas e sua nova, e de certo modo ainda
pouco definida, proposta de governo. Contudo, o envolvimento com a guerra não poderia
ser restrito apenas aos aliados e ao Exército. A situação era de guerra e toda a população
deveria se envolver na causa revolucionária, até mesmo os que não partiriam para o front de
batalhas:
A proclamação acima foi assinada por 3ºs sargentos ligados a um dos batalhões
provisórios cearenses que partiram para a luta em São Paulo 5 e tinha como título o mesmo
público ao qual era destinada: “Aos que ficam”. É notório que para os construtores da defesa
3 Vale destacar que toda a região Norte do Brasil, entendida, nesse momento, pelos estados de
Amazonas, Pará, Piauí, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Bahia e Espírito Santo, foi fortemente mobilizada e envolvida na Guerra de 1932. Para este
artigo, a análise se concentrará em Fortaleza, visto a pesquisa que desenvolvi para o curso de
Mestrado em História Social da Universidade Federal do Ceará. Sobre o envolvimento desses outros
estados ver: PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In: GOMES,
Angela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980 e HILTON, Stanley. A Guerra civil brasileira: história da
Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
4 Jornal O Povo, 09 de setembro de 1932.
5 Saíram do Ceará seis tropas, sendo duas delas escalões oficiais do 23º Batalhões de Caçadores (23º
do Governo Vargas, além do embarque de tropas para a luta armada, era necessário o apoio
da população à causa governista. Dessa forma, concomitantemente ao processo fervoroso de
legitimação da Guerra de 1932, várias manifestações que buscavam mobilizar a população
para a guerra foram produzidas pelo governo e seus apoiadores. Esta mobilização visava
construir um ambiente de beligerância no Estado e na sua capital Fortaleza, em que todos
deveriam estar a postos para defender o Governo Provisório, mesmo que sem partir para o
combate.6 Buscava-se assim consolidar o apoio e conquistar aliados que, sem dúvidas,
deveriam ser mais numerosos que os alistados nas tropas. Ao mesmo tempo em que a
campanha de mobilização ganhava força, alimentavam-se cada vez mais as fileiras de
alistamento.
6 Analisando a mobilização e o cotidiano da cidade de São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial,
Roney Cytrynowicz defende a idéia de front interno: “Não se trata apenas de oferecer toda a
retaguarda e a infra-estrutura econômica e militar para os exércitos, mas de se preparar militarmente
para bombardeios contra alvos claramente civis e, essencialmente, de manter todas as esferas da vida
privada e pública em permanente estado de mobilização a serviço do Estado, submetidas a uma lógica
e a um controle que escapavam inteiramente à compreensão do indivíduo.” Cytrynowicz, Roney.
Guerra sem guerra: mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São
Paulo: Geração Editorial, 2002. p. 15. Nesse estudo, o autor argumenta sobre a importância da
participação da população no momento de guerra, e como o Estado atua para conseguir esse objetivo.
Durante períodos de guerra, o cotidiano das cidades envolvidas no conflito alterava-se, a partir da
atuação de diversos setores sociais que dialogavam com essas ações.
7 Jornal O Nordeste, 20 de julho de 1932.
No dia 22 de julho, outro comício foi anunciado à população, que era convidada a
participar “com o máximo respeito durante esta manifestação”. Neste discursaram, além do
militar-professor articulador dos eventos, jovens e representantes de Iguatu e
Quixeramobim.9 Esses eventos públicos marcaram a paisagem urbana fortalezense durante a
Guerra de 1932, construindo um clima de guerra que se propagava, levando o conflito, os
inimigos, os medos e as esperanças relacionados à luta armada para perto da população
cearense.
A primeira delas foi uma procissão, em que ele próprio convocou “todas as
associações operarias, Ordem Terceira, Congregações Marianas masculinas, União de Moços
Catholicos, Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cathedral, Conferencias Vicentinas e mais
associações religiosas masculinas” para participarem da procissão de penitência, composta
só de homens, encarada como uma “tocante manifestação piedosa”. 11 Apesar da exigência
da participação exclusiva de homens nessa grande manifestação contra a guerra, a força do
pedido do Arcebispo não pode ser minimizada, sendo plausível imaginarmos que a grande
maioria dos católicos ficou sabendo claramente de suas medidas oficiais sobre o conflito e do
seu posicionamento diante do momento político. Pela amplitude do catolicismo no Estado, e
no Brasil, é possível perceber o peso e a importância desse aliado.12 Nesse sentido, a
Associação das Senhoras de Caridade convocava para a sua reunião ordinária, mas não
deixava de alertar que, além da pauta normal, também discutiriam para “tomarem parte no
Triduo pela paz no nosso Brasil (...) em seguida à reunião”. 13 Assim, voltando à procissão:
12 Sobre as ligações entre a Igreja Católica e o Governo Vargas ver LEVINE, Robert. Pai dos pobres? O
Brasil na era Vargas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. pp. 61-62.
13 Jornal O Nordeste, 10 de agosto de 1932.
Com essa medida, todos os dias, a população de Fortaleza era convidada a pensar
sobre a guerra a partir das badaladas dos sinos que ecoavam pela cidade. Nessa
proclamação, os ideais políticos e patrióticos superavam a doutrinação religiosa, já que a
Igreja pedia a atenção de todos e não apenas a seus fiéis. A estes clamavam orações pela paz,
enquanto dos não católicos esperava-se que, mesmo sem rezar, refletissem sobre a luta. A
Igreja Católica e a Interventoria estavam unidas e envolvidas na defesa da nação,
promovendo em toda a cidade manifestações que estimulavam a participação da população
no conflito. A determinação do tríduo mostra uma ação planejada e executada fora da
liturgia comum da Igreja para envolver-se com as questões políticas nacionais que estavam
presentes no Estado, pois a outorga desse tríduo, sem dúvidas, estava mais relacionada ao
contexto político do que ao calendário religioso. Tanta para o Clero cearense como para a
Interventoria, a guerra era assunto de todos e sem o envolvimento da população a vitória
não seria alcançada.
15 Jornal O Nordeste, 17 de agosto de 1932. No dia 26 de julho, o jornal O Povo publicou uma nota,
datada de 19 de julho, com “Novas instruções do Cardeal D. Sebastião Leme aos fieis” em que “Além
das costumadas AVES MARIAS, os sinos das igrejas, ás 21 horas, darão, todas as noites, nove
badaladas compassadas, como um convite a todos os homens de fé onde quer que se achem, para que
durante alguns instantes se recolham em oração pelos que, longe da familia, estão sofrendo os
horrores e perigos da guerra”. A partir de 15 de Setembro, o Governo Arquidiocesano informava que
as badaladas foram transferidas para as 21 horas “para acompanhar a hora da paz estabelecida em
outras dioceses”.
16 Jornal O Nordeste, 17 de agosto de 1932.
seu produto ligavam-se à defesa que estava sendo construída, podendo ser mais aceito pelo
comércio local. A própria chamada da matéria sugere isso: “O ‘Itá-Irá’ foi para as linhas de
frentes”. Destacam-se mais o produto e a guerra do que o ato voluntário de doação motivado
por envolvimento político.
foi a própria organização que pagou o transporte de ambas, algo que dificilmente
aconteceria com um espectador comum. Entretanto, não se poderia esquecer que a festa era
um ato político em prol dos batalhões cearenses, o que justificava a impressão do Hino
Patriótico, que sem dúvidas remetia à defesa da nação diante a guerra, e que provavelmente
foi proclamado pelo público presente no evento.
Esse espetáculo rendeu 625$000 e, tirando os custos citados, lucrou 257$000, sendo
toda renda entregue aos batalhões. Maria Amélia Caminha, no dia seguinte, escreve ao
jornal comentando o espetáculo. Assinando como “humilde e insignificante presidente da
Comissão Angariadora de Donativos em prol dos bravos e valorosos soldados cearenses”, ela
relatou que:
Na sua missiva, Maria Amélia pediu que o jornal destacasse o festival por ela
organizado e, da mesma forma, as várias pessoas que contribuíram na campanha com
donativos para os soldados. É possível perceber detalhes da organização, como o auxílio de
amigas e pessoas ligadas a três colégios da cidade, revelando que a coordenação não era
isolada, fazendo crer que as notícias envolvendo as organizações locais referentes à guerra
espalhavam-se pelo Ceará. Por último, informou que não é possível mais trabalhar nessas
atividades, pois partirá em breve para o campo de batalhas, juntamente com seu irmão Levy.
As várias ações mobilizantes que ocorreram em Fortaleza não foram exclusivamente atos da
Interventoria. Diversos apoiadores do Governo Provisório no Ceará entenderam a
importância do momento político e partiram para a luta, mesmo ficando na cidade, como é o
caso de Maria Amélia. Logo nos primeiros dias de guerra, ela enviou um telegrama à
Interventoria afirmando que:
Outros comerciantes da cidade também entenderam que a guerra poderia ser uma
forte aliada para favorecer seus negócios. As Lojas Brasileiras veicularam, um mês depois do
início do conflito, uma propaganda na imprensa local que dizia: “Revolução... no comercio de
louças: - pratos, chicaras, tijelas, boiões, leiteiras, saleiros, canecas, mantegueiras,
etc”. 27 Muito semelhante a essa, outra propagando anunciava “Revolução na Casa
Maranhense – Assucar Branco Quilo $800”. 28 Vale notar que a primeira palavra dos anúncios
(“Revolução”) vinha em forte negrito e com letras maiúsculas. Sem dúvidas, leitores
interessados nas agitações políticas e bélicas do país atentariam para tais chamadas. A
mesma idéia tiveram os anunciantes do Café Brasil: “Alto!... Café? Só Brasil”. 29 Ao invés de
uma palavra clara sobre o momento político, utilizaram agora um jargão referente a cessar
marchas e artilharias de tropas militares, revelando o forte ambiente bélico e de preparação
militar presente na cidade. Mais enfático e direto do que todos esses foi o Café Brasileira:
A mobilização, todavia, em Fortaleza atingia seu ponto mais alto nos embarques das
tropas para o front de batalhas, pois nesses momentos, mais do que nunca, a Interventoria e
os diversos apoiadores do Governo Provisório construíam um clima favorável à causa
governista, fortalecendo mais ainda a relação entre os citadinos e a guerra. A primeira das
forças a partir foi o 1º escalão dessa unidade militar, momento emblemático para perceber
toda a força de mobilização envolvendo os embarques.
Além de ter publicado a nota, um dos jornais foi além: “O POVO fez distribuir pelas
ruas e bairros da cidade milhares de boletins transmitidos ao publico o entusiastico apêlo do
sr. capitão Carneiro de Mendonça”. 32 No convite, reafirmava-se a luta contra o inimigo
impatriótico que promovia a guerra em busca de um retorno a um passado em que
dominava o cenário político nacional, prejudicando o restante do país. Apesar disso, as forças
cearenses iriam lutar a favor do novo governo em nome do Estado, merecendo assim todo o
apoio. Não à toa, o convite foi geral, buscando congregar a população e as entidades políticas
locais. Entendendo a importância da participação da população no evento, um dos mais
fortes aliados do Governo Provisório no Ceará, o jornal O Povo e seu fundador Demócrito
Rocha, um dos jornalistas mais combativos ao modelo político da Primeira República no
Ceará, distribuíram várias cópias do comunicado oficial por Fortaleza, buscando assegurar a
maciça participação popular. Assim:
entusiasmo. 34
No dia do embarque, sem dúvidas, a cidade era outra. Mais uma vez as atividades
da Interventoria em relação à mobilização durante a guerra tomam a área central da urbe e
alteram o cotidiano de seus citadinos. Saindo do Quartel, ao som do Hino Nacional 35, optou-
se em não ir direto ao local de embarque, passando as tropas por importantes ruas,
desfilando juntamente com bandas de músicas e representantes estudantis, políticos e de
trabalhadores. A paralisação da atividade comercial era um sinal de importância que a
manifestação tinha: “um grupo de revolucionarios civis, tendo a frente o coronel Francisco
Pires de Holanda, percorreu o comercio concitando os estabelecimentos a fecharem o mais
cedo possivel a fim de prestar o maior brilhantismo ás homenagens do povo aos nossos
denodados soldados”. 36 Pela ação desse grupo, claramente se percebe o interesse dos
apoiadores na participação da população, sendo assim fundamental que nenhuma outra
atividade concorresse com o embarque, nem mesmo o comércio.
37 Idem.
38 Fundada em 1931, a Legião Cearense do Trabalho foi uma organização de natureza corporativista,
No dia dos embarques, como já era de se esperar, as rua centrais de Fortaleza foram
tomadas pelo desfile das tropas. No dia 15 de agosto, o 1º Batalhão Provisório desfilou, e
“em varios pontos da cidade, a massa esperava a passagem do Batalhão. Quando fez alto na
praia, ficaram inteiramente congestionadas toda a avenida Atlantica desde o edificio da
Alfandega até a ponte e as imediações”. 42 Pouco menos de um mês, outros dois batalhões
provisórios embarcaram, no dia 13 de setembro. A chegada do navio que transportaria as
tropas, O “Paconé”, foi anunciada pela sirene do Majestic, importante cinema da cidade.
Mesmo partindo juntas, as unidades realizaram desfiles distintos, ressaltando a importância
que essa manifestação tinha para os aliados:
Com as duas últimas tropas que partiram o ânimo não foi diferente. Quando do
embarque do 2º escalão do 23º B.C., três dias depois dos dois batalhões, “o escalão
percorreu diversas ruas, marchando garbosamente, sob applausos do povo”. 44 Além disso, no
dia da partida dessa força, “um grupo de senhoras e senhorinhas filiadas à Igreja Evangelica
de Fortaleza” distribuiu para os soldados uma oração que pedia proteção aos oficiais e
praças. 45 A última força provisória, composta por 300 voluntários, partiu no dia 29 do mesmo
mês, e também desfilou pela cidade, tendo o embarque sido prestigiado pelas autoridades
políticas e população, sendo também marcado pela banda de música do Corpo de Segurança
e por discurso de um dos voluntários. 46
A partir das diversas ações que aconteciam ligadas ao embarque das tropas para a
guerra, é possível perceber o claro interesse dos articuladores da causa governista em unir a
cidade com a força militar local para a defesa do governo. Mesmo sem partir para o campo
de batalhas, a população deveria estar em constante estado de mobilização para a defesa do
Governo Provisório, pois o inimigo poderia estar mais próximo do que se imaginava. Durante
a partida das tropas, as várias manifestações deixavam claro aos inimigos a força que eles
enfrentariam, solidificando todo o apoio que o governo de Getúlio Vargas tinha no Ceará.
Mesmo tendo nesses dias fortes agitações na cidade, a mobilização estava sendo
construída cotidianamente, e a imprensa foi um dos principais agentes nesse processo. Em
praticamente todos os dias, desde 10 de julho, a Guerra de 1932 foi o assunto de capa dos
jornais locais. Manchetes como “A rebelião no Sul do pais”, “A rebeldia paulista”, “As armas
que se levantam contra a legalidade”, “Mais uma vitória das forças do General Valdomiro
Lima”, “O General Gois Monteiro confirma a tomada do Tunel”, “A aviação e artilharia das
tropas federais bombardeiam Cruzeiro”, “O maior combate da America do Sul”, “Continua a
ofensiva na frente mineira”, “Novas conquistas das armas federais”, “De vitoria em vitoria, as
colunas do General Rabelo ocupam sete cidades ao Norte de S. Paulo”, “A marcha vitoriosa
das tropas da dictadura em territorio paulista” e muitas outras, sempre destacavam
positivamente os efeitos das tropas do Governo Provisório sem fazer referência a qualquer
derrota séria. Essas chamadas construíam um quadro em que o moral das tropas era
elevado, mostrando à população a força do governo e de suas tropas nos campos de batalha,
sempre deixando evidente qual seria o lado vencedor. 47
47 “Quanto à apresentação do jornal, cabe dizer ainda que a técnica e o conteúdo do título são muito
as prisões e mortes dos soldados, as rendições dos inimigos e o avanço das forças federais,
além da publicação dos boletins oficiais vindos diretamente do Palácio do Catete.
Dessa forma, a intensa campanha jornalística dos aliados do governo não pode ser
vista como inocente e de pouca valia, pois, ao mesmo tempo em que a imprensa estampava
em suas páginas o clima de guerra, ajudava a construi-lo no Ceará. A informação sobre a
guerra e a ampla divulgação dos acontecimentos, quase sempre vitoriosos na imprensa
aliada, tinham uma importante força política para mobilizar a população nesse momento de
instabilidade.
São Paulo em que aparecem os “limites, localidades, estradas de ferro, de rodagem, rios,
zonas bloqueadas, etc, tudo cirscumstanciado alem das legendas descriminativas das
distancias, populações, posições, etc”. Dois dias depois, o mesmo jornal avisa aos seus
leitores que “tendo-se esgotado nossa edição de 22 deste, e chegando-nos varios pedidos de
exemplares da mesma, daqui e do interior, reproduziremos, amanhã, o cliché de S. Paulo,
publicado naquela edição”. 50 Pelo que parece, o número de leitores interessados em
informações mais precisas em relação à geografia da guerra superou as expectativas dos
editores do jornal, sendo necessária uma nova publicação do mapa para atender à demanda.
Uma semana depois, o jornal O Povo fez o mesmo tipo de publicação, sendo este “uma copia
aproximada do que foi publicado recentemente pelo ‘O Cruzeiro’ e foi gravado em madeira
pelo competente artista conterraneo Raimundo Paula Moreira”. 51 O interesse na geografia
do Estado beligerante abriu espaço também para o envolvimento comercial de alguns
habitantes da cidade:
Ceará na época, por sua importância política e por sua circulação. O primeiro era ligado às forças
tenentistas do estado enquanto o segundo era o porta-voz do clero católico cearense. Mesmo com
posições divergentes, declararam apoio ao Governo Provisório, motivados pelas proximidades que
construíram com o novo governo desde a campanha de 1930. Sobre isso ver: MONTENEGRO, João
Alfredo de Souza e CAMPOS, Moreira. Demócrito Rocha – O poeta e o jornalista. Fortaleza: Imprensa
Universitária, 1989 e PINTO, José Aloísio Martins. Serventuários das trevas: os bolcheviques na
imprensa católica (Fortaleza/CE, 1922 – 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2005.
50 Jornal O Nordeste, 24 de agosto de 1932.
53 Severino Sombra, nos primeiros anos da década de 1930, era um respeitado líder político-sindical
cearense e um dos articuladores da Legião Cearense do trabalho. Durante a Guerra de 1932, quando
trabalhava no Ministério do Trabalho, veio a Fortaleza organizar um movimento contrário ao Governo
Provisório, tendo tido grande repercussão na imprensa e no cenário político local. Ao término da
guerra, foi exilado em Portugal juntamente com outros líderes do lado paulista.
III
54 COSTA, José Raimundo. Memória de um Jornal. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1988. p. 35.
55 Jornal O Nordeste, 14 de setembro de 1932.
Bibliografia
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988.
CASTRO, Celso, IZECKSOHN, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs.). Nova história militar brasileira.
Rio de Janeiro: Editora FGV/Bom Texto, 2004.
CERRI, Luis Fernando. 1932 e as histórias oficiais. In: Tempos Históricos/ Universidade Federal
do Oeste do Paraná, vol.2, nº1, 2000.
CORDEIRO JR., Raimundo Barroso. A Legião Cearense de Trabalho. In: SOUSA, Simone de
(org.). Uma Nova História do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.
COSTA, José Raimundo. Memória de um Jornal. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1988.
CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-
1915. São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.
Cytrynowicz, Roney. Guerra sem guerra: mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a
Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LEVINE, Robert. Pai dos pobres? O Brasil na era Vargas. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
PINTO, José Aloísio Martins. Serventuários das trevas: os bolcheviques na imprensa católica
(Fortaleza/CE, 1922 – 1932). Dissertação de Mestrado. UFC, 2005.
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In: GOMES,
Angela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos
anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980.
RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação
de Mestrado. PUC-SP, 1982.
Diálogo
de encontrar referentes éticos mínimos. Isso
torna urgente o reconhecimento universal que
o diálogo entre as diversas tradições culturais
interreligioso e deve receber. O diálogo interreligioso, em
especial, é fundamental neste processo. Esse
construção da
artigo defende a ideia que o sincretismo
religioso brasileiro tem muito a aportar para
concretização desta utopia.
cidadania em um
mundo globalizado: Palavras-chave: diálogo interreligioso,
ética, globalização, sincretismo
a contribuição do
Abstract:
sincretismo A global ethic based on dialogue must admit
that our culture is just one among others and
1 IBMEC-MG e FUMEC.
26 Diálogo interreligioso e construção da cidadania em um mundo globalizado:
a contribuição do sincretismo religioso brasileiro
A hegemonia econômica, sem controle político, não tem sido capaz de evitar o caos
das turbulências monetárias. Muito menos, tem sido capaz de evitar o aprofundamento das
desigualdades sociais internacionais ou dentro dos estados nacionais. O efeito deste
processo de ruptura entre funcionalidade e sentido da vida, entre mercado e comunidade,
entre papel do Estado e direitos do indivíduo, é uma crise de identidade que talvez seja a
grande patologia social da modernidade. Paradoxalmente, o mundo globalizado tem
produzido uma reação que se consubstancia na busca da diferença, da identidade. É o
renascimento do movimento comunitário e local que busca a identidade em oposição ao
global. Se por um lado estes movimentos tem o efeito benéfico de garantir a sobrevivência
de identidades particulares, por outro, ele pode ser gerador de atritos interculturais.
mundos culturais diferentes. A questão que se coloca é como garantir os direitos individuais
aliado a um autêntico diálogo entre culturas.
A nova fase da política mundial tem gerado uma profusão de visões sobre o futuro:
predizem o fim da história, preveem o retorno das rivalidades entre nações-estados ou,
ainda, falam do declínio da nação-estado decorrente do conflito entre tribalismo e
globalização. Uma das mais interessantes visões sobre o futuro é a do cientista político
Samuel Huntington. Ele sustenta a tese de que a humanidade está em rota de colisão entre
as civilizações: “Nesse mundo novo, a política local é a política da etnia e a política mundial é
a política das civilizações. A rivalidade das superpotências é substituída pelo choque das
civilizações" (HUNTINGTON, 1997: 21). Huntington afirma que as grandes divisões da
humanidade e a fonte predominante de conflitos serão de ordem cultural. Apesar da
continuidade das nações-estados como sujeitos centrais dos acontecimentos globais, os
principais conflitos se darão entre diferentes civilizações.
O foco central dos conflitos do século XXI, ainda segundo Huntington, será entre a
civilização ocidental e as não ocidentais e destas últimas entre si. Em primeiro lugar porque
possuem concepções diferentes da relações entre Deus e os homens, entre cidadãos e
Estado, entre pais e filhos, entre liberdade e autoridade, entre igualdade e hierarquia. Em
segundo lugar, o mundo está ficando cada vez menor e a consciência da diferença entre as
civilizações cada vez maior. Em terceiro lugar, e principalmente, o fundamentalismo religioso
presente em as todas as religiões é um fator marcante neste início de século XXI.
As tradições não são, em si, más. Através delas construímos nossas identidades.
Como afirma Riesgo (2006: 42), o fundamentalismo cai em um mau uso da tradição, que
impede a recriação, exigência mestra de nossa condição histórica. Em outras palavras, a
tradição não pode impedir as mudanças que às vezes são necessárias, ela deve servir como
mediadora para que nos recoloquemos frente aos desafios do presente. Afirmações
ahistóricas das tradições pelos fundamentalistas impedem o progresso e violentam a
capacidade cognitiva do ser humano malogrando suas possibilidades. A proclamação de
respostas definitivas para as perguntas últimas da humanidade coloca o fundamentalismo
Esta não parece ser a tônica dominante do final do século XX e início do XXI, onde
tendências fundamentalistas crescem em todas as grandes religiões do mundo. Estes
fundamentalismos religiosos têm se destacado no cenário internacional sendo promotores
de vários atos terroristas. A reação ao terrorismo, por sua vez, também tem adquirido um
caráter irracional de nova cruzada que coloca em risco a economia mundial e os direitos
civis. Uma das grandes questões que a humanidade hoje se defronta é justamente essa:
existe alternativa ao fundamentalismo?
Deste ponto de vista, a dignidade humana deveria ser a exigência mínima de toda
verdadeira religião.
A formação do caráter que torna uma pessoa identificável deve, segundo Ricoeur,
se articular com um segundo pólo, a ética. No pólo da ética a pessoa garante a manutenção
de si, o que permite ao outro contar com ela. Existe, portanto, uma dimensão ética
naipseidade, pois alguém conta comigo e eu sou responsável por minhas ações perante o
outro. A partir da dialética tradição versus construção é possível refletir o diálogo inter-
religioso.
identidade ipse). A integração destas identidades, ao contrário, nos mantém como somos,
nos deixa abertos à construção do novo.
Alguns teólogos ainda tendem a uma visão dialética destas correntes caminhando
rumo ao inclusivismo aberto. A presença transcendente de cada religião não é excluída,
porém, considera-se a encarnação como ponto máximo da revelação do amor de Deus à
humanidade, o que torna necessário uma escolha histórica. Panasiewicz (1997:57-58) utiliza
a terminologia de Ricoeur (1991) para analisar a proposta inclusivista aberta. O exclusivismo
e o inclusivismo fixar-se-iam na identidade idem por defender a própria identidade cristã no
ato de dialogar. O relativismo se relaciona com a identidade ipse ao focalizar a atenção no
vir-a-ser. O inclusivismo aberto procura a articulação das identidades ipse-idem, pois pontua
a identidade e, ao mesmo tempo, abre perspectivas para aprender com o outro. A posição
inclusivista aberta, como posição intermediária, permitiria que cada religião salvaguardasse
sua identidade e se abrisse para aprender com as demais através do diálogo.
Democracia e ética
As diferenças religiosas podem inspirar muitos conflitos mas, por outro lado,
também podem pacificá-los. As religiões são, em si, fenômenos ambivalentes. Elas podem
despertar sentimentos intensos e comportamentos radicais. Nada desperta tanto amor e
ódio como a religião. Convenientemente amadurecidas, a religião se converte em fonte de
confiança, abertura e aceitação do outro, de atitudes de compreensão e perdão. Por outro
lado, o não amadurecimento destas experiências primeiras pode cumprir uma função
regressiva que se consubstancia em conflitos e angústia. A religião torna-se, então, uma
defesa frente à realidade vivida, um escudo protetor para a ansiedade cotidiana. A
ambivalência da experiência religiosa está justamente no fato de proporcionar uma abertura
de esperança para a vida ao mesmo tempo em que pode nutrir o delírio. Ela pode ser fonte
de confiança e de perigosa regressão à infância.
O poder ambíguo do elemento religioso nas diferentes sociedades faz com que
muitos o temam: de um lado, ele é capaz de sacudir a ordem estabelecida promovendo a
revolução; de outro pode entorpecer a população tornando-a subserviente aos poderosos
de plantão. A consciência desta ambivalência é fundamental para se buscar, nos aspectos
positivos das religiões, um caminho que promova o diálogo intercultural e contribua para
construção de uma nova ética para a humanidade. A paz hoje só é possível com um diálogo
entre civilizações que busque uma ética universal. Esta ética pode e deve ser construída
através do diálogo inter-religioso. Não se trata de um código objetivo; estamos nos referindo
a um consenso básico sobre valores e atitudes firmados por todas as religiões e
compartilhados pelos crentes.
As religiões às quais este artigo se refere – as “boas” religiões – são aquelas que
proclamam a dignidade humana, a autonomia pessoal e a solidariedade entre os povos;
religiões humanizadoras. O cardeal Arns (2004: 341-352), ao constatar a existência no
mundo contemporâneo de religiões autênticas e distorcidas, afirma que as verdadeiras
religiões são voltadas para a paz, pois são nascidas de um mesmo ser supremo. Esse ser se
comunica de diferentes formas com a humanidade, está presente em todos os seus
relacionamentos e impulsiona o diálogo. As autênticas religiões despertam a consciência,
fazendo seus adeptos serem críticos frente às guerras e lutarem pela paz mundial. Elas
estimulam o amor fraterno e o perdão, promovendo a comunicação entre culturas
diferentes. As falsas religiões, ao contrário, fazem a consciência adormecer. Somente as
verdadeiras religiões, continua o cardeal Arns, oferecem propostas de uma prática ética e
baseada na solidariedade, o que pode ser a fonte para se estabelecer um código mínimo de
ética para a convivência humana. “De fato, a promoção da paz no mundo é intrinsecamente
ecumênica e inter-religiosa” (ARNS, 2004: 345).
Uma ética construída a partir do diálogo inter-religioso não pode aceitar projetos
religiosos excludentes e intolerantes, que são a marca registrada das experiências
Tendo em mente o que foi dito nos itens anteriores, este artigo vem defender a
validade do sincretismo religioso brasileiro como possível referencial positivo para a questão
do diálogo inter-religioso. O sincretismo é uma prática de inovações e invenções de
tradições. Não existe um caráter universal que estabeleça seus limites ou possibilidades, o
que implica que sua análise racional só pode ser dada caso a caso. A cultura religiosa
brasileira é constituída da articulação de vários segmentos, populares e eruditos, o que
resulta no estabelecimento de toda a sua diversidade.
A harmonia dessa feira mística serve para indicar caminhos para a construção de
um projeto humano que supere a atual racionalidade fragmentada. No Brasil, as religiões
conseguiram se harmonizar de forma eficiente. Cada qual no seu lugar adequado,
contribuindo de forma cooperativa para o comportamento coletivo. No caos de desejos,
emoções e ideias que compõem a sociedade brasileira, a harmonia religiosa brasileira – sua
coordenação intuitiva eficiente – conseguiu evitar, ao menos na maioria das vezes, os rumos
do fanatismo e do excesso de racionalidade, dando contorno à nossa identidade.
A Religião Católica brasileira viveu e vive cercada de práticas mágicas. Santos, Nossa
Senhora, sacramentos, ritos funerários, promessas, romarias aos santuários, festas religiosas
e procissões fazem parte do cotidiano e asseguram aos fiéis vantagens terrenas. As práticas
cristãs estão intimamente associadas às tradições indígenas, africanas e orientais. Ao mesmo
tempo em que são católicos, os brasileiros frequentam sessões espíritas, encomendam
“trabalhos”, pedem proteção aos Orixás e meditam em busca do nirvana. Todas as culturas
convivem de forma pacífica, apesar de suas contradições. O monoteísmo cristão, o animismo
e totemismo indígena e o fetichismo africano convivem em harmonia nos trópicos, pois “não
existe pecado abaixo do Equador”.
intimidade desconcertante com Deus, que é tratado como alguém da família. Esse Deus pai
não é punitivo nem trágico, transformando as religiões brasileiras em algo doce.
Enfim, cada sujeito muda de religião, faz sincretismos ou pertence a mais de uma
corrente religiosa, em uma verdadeira insubordinação à autoridade e à instituição. Esse
exercício da criatividade brasileira, acentuada em tempos de globalização e democracia, se
originou no passado colonial e tem obrigado as instituições religiosas a se adaptarem, ao
longo da história, ao jeito brasileiro de ser.
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VAZ, Henrique Cláudio Lima. 1999. Escritos de Filosofia IV: à ética filosófica 1. São Paulo:
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urbano
the Military School, who worked there
between 1913 and 1944. The material
patrimony of the school and reports of it
members and neighborhood residents to
support the analysis of the establishment of
military areas in the region, taken as points of
Claudius Gomes de articulation of issues related to heritage and
memory. The spaces studied illustrate the
Aragão Viana1 concept of memory places, considering the
environment in support of the collective
memory.
2 No original: "o grande campo do Realengo, (...), representa um paralelograma de 465 braças de
comprido sobre 275 de largo...".
3 "Realengo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2009,
http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx?pal=realengo [consultado em 2009-04-16].
4 Regime jurídico de doação de terras para cultivo, em vigor durante o Período Colonial. Para uma
1857, para estabelecimento de uma escola militar. 6 Os amplos espaços disponíveis, próprios
para a realização de exercícios de tiro, e a então recente chegada da estrada de ferro D.
Pedro II foram alguns dos fatores considerados pelos militares para a escolha do local. Ainda
no ano de 1857, iniciaram-se as obras para abertura de um campo de tiro e adaptações de
um prédio para servir como aquartelamento da Escola Geral de Tiro do Campo Grande,
inaugurada em 1859 7.
10 Cf. Decreto n o 9.259, de 9 de agosto de 1884. Aprova o Regulamento para a Escola Geral de Tiro do
Campo Grande; e também o Relatório do Ministro da Guerra Franklin Américo de Menezes Doria,
1881.
No início da década de 1890, a Escola Geral de Tiro do Campo Grande foi extinta,
cedendo o prédio onde funcionava à Escola Preparatória do Exército na Capital Federal. Em
1897, foi introduzida uma inovação considerável para a época, principalmente naquela
região: a instalação da iluminação elétrica, aproveitando a energia produzida pelos geradores
da fábrica de cartuchos.
ensino.
14 Como pode ser observado nas sucessivas destinações de crédito realizadas a partir da época da
criação da Escola de Tiro, que incluíram a construção e melhoria de instalações militares, medições de
terrenos e ruas, canalização de água e iluminação na localidade: - Decreto nº 4.308, de 30 de dezembro
de 1868. Orça a receita e fixa a despesa da Câmara Municipal da Corte para o ano de 1869. - Decreto nº
4.661-A, de 31 de dezembro de 1870. Orça a receita e fixa a despesa da Câmara Municipal da Corte
para o ano de 1871. - Decreto nº 474-C, de 7 de junho de 1890. Abre ao Ministério dos Negócios da
Guerra um crédito extraordinário de 701:807$468. - Lei nº 126-B, de 21 de novembro de 1892. Fixa a
despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1893, e dá outras
providências. - Lei nº 191-B, de 30 de setembro de 1893. Fixa a despesa geral da República dos Estados
Unidos do Brasil para o exercício de 1894, e dá outras providências. - Lei nº 490, de 16 de dezembro de
1897. Fixa a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1898, e dá
outras providências. - Decreto nº 2.815, de 8 de fevereiro de 1898. Abre ao Ministério da Guerra um
Em 1905, a Escola Militar, até então sediada na Praia Vermelha, foi parcialmente
transferida para o Realengo. O funcionamento pleno de seus cursos na localidade ocorreu
entre 1913 e 1944, período no qual foram construídas novas edificações e reformadas as já
existentes, adaptando-as para atender às necessidades da instrução militar, que atravessava
uma fase de modernização. O antigo prédio foi acrescido de mais dois grandes pátios,
compostos de alojamentos, refeitórios e novas salas de aula. Ao longo da estrada de Santa
Cruz e ao redor da escola foram construídos novos quartéis, residências para a moradia dos
oficiais, depósitos para materiais, um picadeiro, cavalariças e um estádio esportivo.
A Escola Militar
A relevância da Escola Militar pode ser compreendida por sua trajetória histórica. A
instituição tem como antecedente a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho,
criada em 1792, e considerada por alguns autores como o mais antigo estabelecimento de
ensino militar nas Américas (Telles, 1984). Tendo sofrido uma série de mudanças, 16 tanto em
crédito especial de 490:419$330, para as despesas com a instalação das escolas preparatórias e de
tática, no Distrito Federal e no Estado do Rio Grande do Sul. - Decreto nº 2.933, de 4 de julho de 1898.
Abre ao Ministério da Guerra o crédito especial de 63:494$900 para as despesas com a instalação da
Escola Preparatória e de Tática do Realengo. - Decreto nº 2.986, de 30 de agosto de 1898. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito especial de 24:150$, para despesas com a substituição de um fogão e
construção de uma chaminé no edifício da Escola Preparatória e de Tática do Realengo. - Lei nº 560, de
31 de dezembro de 1898. Fixa a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o
exercício de 1899, e dá outras providências.
15 Os créditos para aquisição de áreas e construção de instalações foram concedidos por meio dos
seguintes instrumentos legais, entre outros: - Decreto nº 6.386, de 28 de fevereiro de 1907. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito extraordinário de 700:000$ para execução do disposto no art. 23, letra f,
da Lei nº 1.617, de 30 de dezembro de 1906. - Decreto nº 7.205, de 3 de dezembro de 1908. Abre ao
Ministério da Guerra o crédito extraordinário de 600:488$460 para execução do disposto no art. 23,
alínea f da Lei nº 1.617, de 30 de dezembro de 1906, revigorado pelo art. 17, alínea d, de nº 1.841, de 31
de dezembro de 1907. - Decreto-Lei nº 3.440, de 18 de julho de 1941. Autoriza a aquisição do terreno
denominado "Sítio Dendê", em Ricardo de Albuquerque, Distrito Federal, para serventia das unidades
aquarteladas na Vila Militar e Deodoro.
16 Para uma compreensão mais aprofundada das condicionantes e dos objetivos das reformas
realizadas na Escola Militar ver Motta (1976), Castro (1994), Grunennvaldt (2006) e Rodrigues (2008).
termos organizacionais quanto em relação à sua localização geográfica, chegou aos dias de
hoje com a denominação de Academia Militar das Agulhas Negras, estabelecimento de
ensino atualmente responsável pela formação de oficiais do Exército Brasileiro. Em relação a
essas mudanças, destacam-se as seguintes transformações, considerando as instituições que
funcionaram no Rio de Janeiro: 17
17 Escolas de formação de oficiais do Exército também funcionaram nos estados do Rio Grande do Sul
e Ceára, antes da reunião dos cursos e consolidação do ensino na EMR.
18 Regulamento para as Escolas do Exército, Decreto nº 5.698, de 2 de outubro de 1905. No período, os
diversidade do seu quadro de pessoal, oriundo das várias classes sociais e de diferentes
regiões do país. A formação nessa instituição fez parte da experiência acadêmica e
influenciou a orientação ideológica de diversos personagens da história brasileira (Svartman,
2006), tendo sido frequentada, em diferentes épocas, por personagens tais como Luís Carlos
Prestes, Arthur da Costa e Silva, Apolônio de Carvalho, João Batista de Oliveira Figueiredo,
Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva, Juarez Távora, Siqueira Campos, Cordeiro de Farias,
Eduardo Gomes e outros.
As pesquisas sobre a Escola Militar contam com uma diversidade de fontes, como
documentos, registros históricos e acervos de história oral. Entre outras referências, podem
ser relacionados os livros de memória escritos por ex-alunos, como as obras Cadete do
Realengo (Aragão, 1959), Cadetes em desfile (Pedroso, 1969), Recordações de uma velha
escola (Bley, 1974), Memórias do Realengo (Lins, 1981) e A última noite da Escola Militar da
Praia Vermelha (Lobato Filho, 1992); e, ainda, os arquivos da Escola Militar e de outras
organizações militares já extintas que funcionaram na localidade, pertencentes ao acervo do
Arquivo Histórico do Exército; acervos de legislações do Senado Federal, da Câmara dos
Deputados e da Imprensa Nacional e as coleções de leis do Império e da República; a
documentação histórica referente ao Exército Brasileiro, como as Ordens do Dia do século
XIX e o atual Boletim do Exército.
Certas ligações entre memórias e espaço material podem ser observadas nos
trechos destacados em seguida, registros deixados por antigos alunos e moradores do bairro.
O primeiro deles, traduzido na fala do general Antônio Carlos da Silva Muricy, aluno da Escola
Militar no início da década de 1920. Em depoimento, 19 ele descreve que na sua visão
sobressaía, sobretudo, a precariedade das condições materiais da Escola Militar.
Essa opinião é compartilhada por Jehovah Motta, aluno da turma que se formou em
1927. Em Formação do oficial do Exército Brasileiro: currículos e regimes na Academia Militar
19Entrevista concedida à Aspásia Alcântara de Camargo, Ignez Cordeiro de Farias e Lucia Hippólito,
no contexto da pesquisa "Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras", parte integrante do
projeto institucional do Programa de História Oral do CPDOC.
/ 1810-1944 (1976), obra que permanece como uma das principais referências em grande
parte dos estudos sobre a Escola Militar, Motta analisou as modificações no funcionamento e
nos currículos escolares da instituição, desde a criação da Real Academia até a implantação
da Academia Militar em Resende. Refere-se também, ainda que secundariamente, às suas
sedes. No capítulo denominado A era do Realengo, afirma logo de início:
II
Uma visita ao bairro apresenta um cenário que permite perceber apenas resquícios
de sua história. As invasões de terrenos e ocupações irregulares se multiplicaram a partir das
décadas de 1970 e 1980. Aceleradamente, perderam-se as referências materiais ao seu
passado, uma vez que, nos últimos anos, demolições e reformas desfiguraram a arquitetura
dos antigos prédios, alguns construídos no século XIX. O fracionamento dos terrenos das
antigas residências e a venda de diversas propriedades da União também descaracterizaram
o bairro, e poucas ações foram realizadas para a preservação da memória das origens e da
presença da Escola Militar e da Fábrica de Cartuchos na localidade. Antigas construções, que
indicavam a presença e os investimentos do poder público na região, passaram por acelerado
processo de deterioração ou foram demolidas, não restando nem mesmo vestígios de sua
presença. Entre essas estruturas, poderiam ser enumerados: o Departamento de Equitação e
de Educação Física da Escola Militar do Realengo, ocupado pela Escola de Equitação do
Exército após a extinção da EMR, vendido para particulares e demolido em 2007; a área da
antiga Fábrica de Cartuchos do Realengo e as residências dos funcionários, também em
grande parte já demolidas; o Parque de Material da Escola Militar, vendido na década de
1970 para construção de um condomínio residencial; a residência funcional do comandante
da escola, construída em arquitetura neoclássica no início do século XX e demolida em 2004,
para construção de um supermercado.
III
Um fator central nesse processo foi a reforma urbana promovida pelo prefeito
Pereira Passos, na primeira década do século XX. Nessa ação, a região central da cidade foi
Esses pontos coincidem com as observações de Rodrigues (2008), que assinala como
resultado desse processo o deslocamento da massa popular do Centro para os morros e
subúrbios do Rio de Janeiro, ao longo da estrada de ferro. Essa “limpeza social”, conforme o
autor denomina, incrementou a valorização imobiliária das áreas do Centro e da Zona Sul,
beneficiadas também pela preferência no recebimento de investimentos públicos. Nesse
contexto, a transferência da Escola Militar e de outros efetivos militares para a região do
Realengo mostrou-se conveniente tanto ao atendimento da necessidade de sediar os efetivos
militares em espaços apropriados para a realização de manobras, marchas, exercícios de tiro
e outras atividades, quanto adequada para atender a objetivos políticos, incluindo o
afastamento das tropas militares da região politicamente instável - e comercialmente
valorizada - do Centro da cidade. Reforçou, ainda, o processo de inclusão dos militares das
classes subalternas nas categorias representadas pela camada operária e a população de
baixa renda, do qual o projeto de transferência da Escola Militar para Resende pretendeu
desviar-se.
Fontes
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1 PPHPBC/CPDOC/FGV
Entrevista Concedida a Aline Portilho 61
Célio, conte quais foram os caminhos – intelectuais e políticos – que levaram você até
a Secretaria de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura [hoje,
Secretaria de Cidadania Cultural].
Em 2004, o Ministro Gil [Gilberto Gil, Ministro da Cultura entre 2003 e 2008] me
convidou para trabalhar no Ministério da Cultura e formular um programa que se
gestava com uma série de problemas. Era um programa de acesso a cultura e que não
tinha dado muito certo. Isso porque ele tinha o foco muito voltado pra estrutura, pra
construção de centros culturais em periferias e favelas no Brasil e não tinha muito
substrato em termos de conteúdo, do uso e da ação permanente. E cultura é,
sobretudo, isso. Muito mais que prédio, cultura são pessoas. Cultura é um processo
contínuo. O próprio nome, a própria etimologia da palavra cultura vem daí. Cultura
vem de colere, do latim colere que é cultivo. E a mudança que eu propus foi simples:
nós deixamos de colocar o foco na estrutura pra jogar o foco naquilo que é o próprio
fazer cultural.
Pode-se dizer que seus caminhos individuais, intelectuais confluíram com uma ideia
do Ministro Gil e daí surgiu o Cultura Viva?
É. Você veja bem, joguei aqui pra você trinta anos! Sobretudo no início da nossa
vida, nossa militância social e política ela determina muito do que nós seremos. Tem
gente que diz que, quando a pessoa envelhece, ela tem que mudar de opinião. Dizem
que quem não foi comunista na juventude está errado, mas quem continua depois dos
quarenta é burro. Eu te digo o contrário. Inclusive as minhas convicções ideológicas em
defesa do comunismo enquanto uma filosofia, enquanto entendimento de construção
de uma sociedade ela só se reforçou, sobretudo nesses últimos anos, nessas minhas
andanças aí pelo Brasil a fora. Com o trabalho dos Pontos de Cultura eu percorro
muitos cantos do Brasil: aldeias indígenas, cidades muito pequenas do interior do
Nordeste e desse Brasil todo, assentamentos rurais, favelas e ao fazer esse percurso eu
diria inclusive que a minha convicção de comunista se consolidou muito mais. Isso
depois dos quarenta, quase que cinqüenta.
Quem lida com cultura sabe que entre o planejado e o feito há um desnível. Como
não parece o seu caso, em que se reforçaram suas convicções, muitas vezes entre o
planejado e o feito há mesmo uma decepção. A próxima pergunta é exatamente
sobre isso. Esse processo que você vem pensando e planejando ao longo do tempo e
o que é realizado no Cultura Viva. Como você enxerga essa transição entre o
planejado e o feito?
Então, é muito doloroso. Porque a sociedade ela não se coloca aberta a esse
protagonismo da própria sociedade. O sistema econômico e político, a mídia, todos
eles trabalham num sentido unidirecional. O que nós fazemos com o Ponto de Cultura
é o oposto disso. É incentivar uma polifonia, como falava o Milton Santos – aliás eu uso
ainda pra se fazer. Sobretudo porque eles caminham nessa ideia da liberdade, da
capacidade da iniciativa, da capacidade criadora das pessoas. Acho que isso acaba
superando as dificuldades de estrutura, de concentração. Enquanto paradigma, a
maioria das políticas públicas atua a partir da carência, da falta. Então, as pessoas não
leem, é preciso oferecer livro para elas. As pessoas não têm acesso ao serviço de
saúde, é preciso oferecer um serviço de saúde a elas e assim por diante. O Cultura Viva
trabalha no oposto disso, ele desenvolve uma política a partir da potência das próprias
pessoas. É uma lógica invertida. Que resultado isso pode dar? Não sei... E ainda há
muito a ser cultivado. Mas nós acreditamos e é isso que nos faz ficar aqui. É muito
difícil a estrutura burocrática, a dificuldade de recursos humanos e tudo mais. Mas é
acreditar que é possível transformar a realidade e que essa realidade só pode ser
transformada através das pessoas. Somente a partir das pessoas, das pessoas
organizadas em grupos, em conjunto, da forma que elas acharem melhor, que dá muita
força pra continuar enfrentando as dificuldades.
Sem dúvida essa inversão é uma das coisas mais interessantes do Programa Cultura
Viva. De ser um Estado menos impositivo, isso é bastante inovador. Mas isso dentro
de uma burocracia estatal que enrijecesse, deve ser bastante complicado. Tem
inclusive uma ideia de transformar o Cultura Viva em lei pra que não se perca no
processo... Como você enxerga essa relação dentro da burocracia e essa necessidade
de transformar em lei?
Houve uma etapa: era necessário iniciar o programa e o aparato legal e jurídico
para amparar isso estava muito limitado, além das dificuldades materiais de governo.
Pouca gente, pouca estrutura de funcionamento, de trabalho. Mas, se o programa não
fosse pra rua ele também não se efetivaria. Pra você ter uma ideia, eu tomei posse aqui
[na SPPC do MinC, hoje SCC] no dia 31 de maio de 2004. No dia 14 de julho nós já
estávamos com o edital na rua. Em novembro a gente já havia feito o primeiro
convênio com um Ponto de Cultura. Foi um Ponto de Cultura de Arcoverde, no agreste
pernambucano. Então o elemento surpresa, o elemento do movimento ele é
importante porque as instituições são muito pesadas e aí não só o Estado até a UNE ou
um sindicato, ela tem o peso de uma cultura institucional muito carregado, o que acaba
engessando muitas vezes uma série de ideias que a gente por ventura tenha. Então, foi
a partir um pouco dessa convicção também que a gente deu uma driblada nesse
processo com esse movimento de agir rápido. Ocorre, porém, que depois do processo
de implantação do programa nós enfrentamos problemas muito duros. Prestação de
contas, normas bastante rígidas, não adequadas ao processo da vida. Isso trouxe
dificuldades sobretudo para os primeiros Pontos de Cultura. Agora, nós estamos com
dois movimentos: o primeiro é da descentralização do Programa. Nós já chegamos a
850 Pontos de Cultura, não há condições de fazer a administração disso diretamente de
Brasília. Ao longo desse ano que passou, nós fechamos uma série de acordos com
governos estaduais e algumas prefeituras para que eles lancem seus próprios editais.
Mas enormes problemas vão surgir. A tentativa, às vezes a tentação, de aparelhar o
programa, de instrumentalizar. Então, há uma outra supervisão, um outro
acompanhamento que nós vamos fazer. Mas inevitável porque é necessário que a
gestão das redes dos Pontos de Cultura fique mais próxima de onde acontece a ação. E
aí o Ministério da Cultura fica na supervisão. Esse é o caminho que a gente está
fazendo dentro do marco legal atual.
Agora, a solução mais efetiva envolve a criação de uma lei que a gente está
chamando Lei da Autonomia e do Protagonismo Cultural, uma lei que fosse muito
simples, mas que reconhecesse alguns pontos que estão sendo um grande acúmulo na
definição da política cultural. Alguns gestores de política de cultura confundem cultura
com evento ou com atividades pontuais, quando você faz um acordo com um grupo
cultural a preocupação é excessivamente voltada para o resultado, quando cultura não
é produto. Cultura, como disse no começo, cultura é processo. Então, o primeiro ponto
a ser apresentado nessa lei é o entendimento de cultura enquanto processo. O
segundo de que ela é produzida pelas pessoas, pela sociedade. Então, a autonomia no
fazer cultural é essencial. Sempre quando houve tentativa de ingerência profunda, seja
ela de ordem econômica, que aí joga cultura para o mercado e fica uma cultura
pasteurizada; ou político-ideologica, como houve inclusive no período do realismo
A gente trabalha muito com cultura popular e ao mesmo tempo trabalha com
uma cultura de vanguarda estética tecnológica, cultura digital. Tem vários Pontos de
Cultura, ali o Ponto de Cultura de Folia de Reis e, do lado da Folia de Reis, com aquele
velhinho desenvolvendo todo um trabalho de cultura tradicional, tem um menino
com dread, cheio de tatuagem trabalhando ali no estúdio multimídia que grava as
músicas daqueles senhores... Então, são outros processos de integração política e social
que vão se gestando.
Eu acho que, talvez – e aí a gente precisa de mais alguns anos – a gente esteja
vendo a ebulição de um novo movimento social que pode estar para o processo de
transformação do Brasil agora no começo do século XXI, da mesma forma que o
movimento popular, mais no sentido stricto, daquelas lutas de moradia, de saúde, do
movimento sindical estiveram na construção do Brasil do final do século XX. Então toda
aquele movimento sindical dos anos 70 e 80 resultou também em um desenho que é o
que a gente vivencia hoje. Talvez por esse movimento mais diverso da cultura a gente
esteja vendo o nascimento de um outro processo de mudança. E o que vai dar? Aí eu
não sei... Espero que dê em algo bom porque são as pessoas fazendo para as pessoas,
que pessoas consigam cuidar bem. A gente só consegue mudar as coisas se a gente
cuida bem de nós mesmos e dos outros.
Eu fiquei bem feliz por vocês terem tido essa percepção. É algo que até eu
coloco pouco às vezes nas minhas falas sobre o Programa. Eu diria o seguinte: a grande
fronteira da luta de classes, e aí dessa disputa de poder, está na conquista do direito à
narrativa. Quem consegue apresentar sua versão tem condições de se legitimar
enquanto poder. Isso eu percebi no meu trabalho como historiador, em museus.
Sempre há uma disputa pelo direito à fala, e pelo não direito à fala. E isso não no Brasil
só, no mundo todo. Eu diria que o que a gente fez com o Ponto de Cultura tem muito
por base essa percepção. O estúdio multimídia tem um papel essencial, é o único
elemento comum a todos os Pontos. Para quê? Para que as pessoas tenham condição
de conseguir apresentar a sua versão e pela sua própria voz. Muitas vezes a gente tem
acesso à situação de vários povos, e até a partir de narrativas muito comprometidas
como os povos indígenas, pessoas mais exploradas, quilombolas, trabalhadores e tudo
mais... Mas, ainda assim, é um olhar externo, um olhar que vem de fora. O que a gente
tenta praticar com o Ponto de Cultura é o exercício do olhar interno. O Machado de
Assis tem um conto que eu gosto muito que é O Espelho. Ele fala de um alferes. O
conto é assim: Um novo tratado sobre a alma humana. Ele fala que as pessoas têm na
verdade duas almas, a alma de dentro e a alma de fora. A de dentro que é aquela que
faz e a de fora que diz quem nós somos, que determina nossa personalidade. Esse
alferes, de repente, os escravos fugiram e não tinha ninguém e também não tinha mais
a família... Não tinha mais ninguém pra dizer: “olha só como você é bonito, olha como
você é nobre”. Aí, ele foi descobrindo que a personalidade dele foi definhando e que
ela dependia do que falavam dele. Mas também dependia do que saia de dentro dele.
mesmo tempo em que é uma grande nação com um único idioma, nós também somos
uma nação em que sobrevivem vários outros idiomas. O idioma que eu digo tem
extrema importância porque não é só o jeito de falar. É o jeito de pensar. Ou melhor: o
jeito de falar reflete o jeito de pensar. Esse jeito mais suavizado de falar brasileiro, meio
como onda. Quem viaja para o exterior percebe isso, o pessoal até pede para que a
gente fale só para ouvir a musicalidade do português do Brasil, que é diferente do
português de Portugal. Então há uma necessidade enquanto expressão dessa
identidade. Quem somos nós? A gente busca isso também com os Pontos de Cultura.
Agora estamos chegando a algumas ideias. Primeiro: construção de identidade por si
não resolve. É preciso que haja uma convivência dialética. A identidade ao lado da
alteridade. Alteridade é a capacidade de você se ver no outro. Eu até estou
trabalhando um texto que é um pouco sobre isso: identidade mais alteridade é que
resulta a solidariedade. Inclusive resgatar o sentido da compaixão. A política ela é uma
disputa de interesses e ela foi se desvinculando de valores, muito ligada só à ideologia.
A ideologia é a construção de ideias a partir de grupos, de relações sociais e é
fundamental, ideologia é essencial. Mas eu queria me preocupar com a construção de
valores. E alguns valores são esses. Não há ideologia de transformação social que
resista com a falta de solidariedade, com a falta de sentimento de compaixão, de se
compadecer pelo outro. Um pouco o que a gente vai fazendo com o Ponto de Cultura.
Por exemplo, agora, com aquela situação lá de Santa Catarina, um grupo de Pontos de
Cultura foi lá passar o Natal em abrigos. São pequenos exercícios, mas a ideia do Ponto
de Cultura sempre é essa, de pequenas ações que vão acontecendo e vão criando
sentido.
Balanços e
perspectivas sobre
os primórdios do
Sport em terras
brasileiras
Cleber Augusto
Gonçalves Dias1
Obra:
Cidade sportiva:
primórdios do esporte no
Rio de Janeiro
Victor Melo
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
2 BROHM, Jean-Marie. Sociología política del deporte. Ciudad del México: Fondo de Cultura
Econômica, 1982.
3 PRONI, Marcelo W. Brohm e a organização capitalista do esporte. In: PRONI, Marcelo W.; LUCENA,
Ricardo (Orgs.). Esporte: história e sociedade. Campinas, SP: Autores Associados, 2002, p. 31-61.
4 GUTTMAN, Allen. From ritual to record: the nature of modern sports. New York: Columbia
University Press, 1978.
5 TOLEDO, Luiz H. de. Futebol e teoria social: aspectos da produção científica brasileira (1982-2002).
Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 52, São Paulo, 2001.
6 MAGNANE, Georges. Sociologia do esporte. São Paulo: Perspectiva, 1969.
7 LYRA FILHO, João. Introdução à sociologia dos desportos. Rio de Janeiro / Brasília: Bloch / MEC,
1973.
8 SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981. Ver
também, DIAS, Cleber. Resenha do livro História política do futebol brasileiro, de Joel Rufino dos
Santos (São Paulo: Brasiliense, 1981). Recorde, ano 1, n. 1. Disponível em:
http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde.
9 DA MATTA, Roberto [et al.]. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1982.
10 HELAL, Ronaldo. Sociologia do Esporte. São Paulo: Brasiliense, 1990.
inicial, sobre a história do futebol brasileiro entre 1893 e 1933, de Waldenyr Caldas11, que
“inauguraram” uma fase de aceleração das publicações nesse sentido, cujos números só
fariam se multiplicar até o final do período.
A partir do ano 2000 ter-se-á o primeiro grupo de trabalho sobre esporte na Reunião
Brasileira de Antropologia, o mesmo acontecendo na Reunião Anual da Anpocs em 2002 e
em 2003 também no Seminário Nacional de História da Anpuh.12 Do mesmo modo, veremos
o aparecimento de novos grupos de pesquisa dedicados ao assunto, como o Grupo de
Estudos Futebol e Sociedade, liderado pelo professor Luiz Carlos Ribeiro e sediado na
Universidade Federal do Paraná, em Curitiba; do Núcleo de Estudo sobre Esporte e
Sociedade, da Universidade Federal Fluminense e coordenado pelo professor Marcos Alvito;
ou ainda o Laboratório de História do Esporte e do Lazer, coordenado pelo professor Victor
Melo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 2005 temos a aparição da revista
Esporte e Sociedade (http://www.esportesociedade.com) e ainda mais hodiernamente
teremos a partir de junho do ano passado a Recorde: Revista Brasileira de História do Esporte
(http://www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde).
De certo modo, o livro Cidadesportiva: primórdios do esporte no Rio de Janeiro, bem
como seu autor, Victor Andrade de Melo se articulam profundamente com esses últimos
desdobramentos. Publicado em 2001, trata-se, na verdade, do resultado de uma pesquisa de
doutoramento desenvolvida entre 1995 e 1999. Dividido em cinco partes, o livro pretende,
basicamente, identificar os primórdios do esporte no Rio de Janeiro, como o próprio
subtítulo anuncia. Sua principal motivação, apresentada logo no início, é o de tentar saber
“como teria começado a prática esportiva em terras brasileiras?” (p. 13).
Não por acaso, o trabalho começa com uma discussão sobre as “principais práticas
reunidas em torno da denominação esporte” (p. 19), a fim de “identificar a partir de que
momento podemos falar de esporte” (p. 20). Diante das questões, um conceito de esporte é
então definido preliminarmente, qual seja, “um campo relativamente autônomo, com uma
lógica interna específica” (ibid.).
A partir daí, a incorporação do esporte em terras brasileiras será pensada a partir de
uma dupla e complexa circularidade, que tenta superar dicotomias e oposições exageradas e
pouco matizadas entre o nacional e o internacional ou os dirigentes e os subalternos. Então,
em primeiro lugar, destaca-se que o esporte representou no Brasil inegavelmente uma
prática cultural importada, cujo nexo se encontrava, principalmente, na possibilidade de
demonstrar proximidade e similitude com o universo cultural europeu. Não por acaso,
11 CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro (1894-1933). São Paulo: Ibrasa,
1990.
12 GUEDES, Simoni L. Resenha do livro Lógicas no futebol, de Luiz Henrique de Toledo (São Paulo:
Hucitec/FAPESP, 2002). Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, n. 51, p. 178-183, 2003.