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ANGELA MIGUEL CORREA Series Originais Netflix e Binge Publishing
ANGELA MIGUEL CORREA Series Originais Netflix e Binge Publishing
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Esta dissertação não seria possível sem o apoio e os questionamentos do Rafael, meu
marido e grande parceiro intelectual. Obrigada por ter me incentivado a embarcar nessa jornada
de conhecimento e (UFA!) por ajudar com a digitação deste trabalho quando quebrei o ombro
a 60 dias da entrega final. Agradeço também minha família e amigos por dividirem suas séries
queridas comigo e acreditarem em mim!
Agradeço ainda aos colegas que fizeram desta trajetória uma das mais desafiadoras e
satisfatórias. Danusa, Rogério, Arthur, Carlos Eduardo, Pamella, Tássia, Jéssica, Keila, Luis,
Taynah e tantos outros que foram fundamentais para o amadurecimento deste trabalho e para
muitas conversas sobre nossas séries favoritas. Ao pessoal da Cátedra UNESCO/UMESP de
Comunicação para o Desenvolvimento Regional, obrigada por todos os convites e pela troca
constante.
Ao meu orientador Prof. Dr. Herom Vargas Silva, pela parceria, por confiar no meu
trabalho, por indicar caminhos e por todas as palavras reconfortantes. Tudo vai dar certo!
Gostaria também de lembrar os professores que foram desligados do programa em 2017 e
deixaram grande inspiração para a vida acadêmica. Prof. Dra. Magali Cunha, Prof. Dr. Salvador
Faro, Prof. Dr. Sebastião Squirra e Prof. Dra. Cicilia Peruzzo, sua atenção e carinho não serão
esquecidos.
Aos integrantes da banca de qualificação e também de defesa, Prof. Dr. Mateus Yuri
Passos e Prof. Dr. Rogério Ferraraz, suas indicações e inquietações foram essenciais para a
forma final desta dissertação.
Não menos importante, gostaria de agradecer ao CNPq pelo subsídio para esta pesquisa.
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo identificar possíveis alterações na estrutura narrativa das
séries Originais Netflix, produções disponibilizadas aos assinantes por meio do binge-
publishing, modelo de distribuição da plataforma de streaming em que todos os episódios são
lançados de uma só vez. Para tanto, o estudo apoia-se em autores dos estudos de televisão, como
Raymond Williams, Arlindo Machado, Amanda Lotz, Jason Mittell e Esther Van Ede. Visa
traçar a evolução da televisão e suas transformações mediante a adoção de tecnologias como o
videocassete e o streaming, identificar recursos narrativos, ou que incidam sobre a narrativa,
presentes nas ficções seriadas contemporâneas feitas pela e para a TV, e contextualizar a Netflix
como caso paradigmático na indústria audiovisual. Como proposta metodológica, a pesquisa
parte da análise de conteúdo e da categorização de recursos narrativos para analisar possíveis
alterações presentes nas séries Originais Netflix de ficção científica Sense8 (EUA, 2015), 3%
(Brasil, 2016) e Dark (Alemanha, 2017). Dentre as seis categorias analisadas (narração
erotética, multiplicidade de tramas, concepção espaço-temporal, formato episódico-serial,
ganchos e recapitulações), foram encontradas alterações na utilização de ganchos e de
recapitulações narrativas.
This dissertation aims to identify possible changes in the narrative structure of Netflix Originals
series, productions available to subscribers through binge-publishing, a distribution model of
the streaming platform in which all episodes are released at once. For this purpose, this essay
is based on authors such as Raymond Williams, Arlindo Machado, Amanda Lotz, Jason Mittell
and Esther Van Ede to map the evolution of television and its transformations by adopting
technologies such as VCR and streaming, identifying narrative elements present in
contemporary serial fictions made by and for TV, and contextualize Netflix as a paradigmatic
case in the audiovisual industry. As a methodological proposal, this research starts from a
content analysis and the categorization of narrative elements to indicate possible changes
present in the science fiction series Netflix Originals Sense8 (USA, 2015), 3% (Brazil, 2016)
and Dark (Germany, 2017 ). Among the six analyzed categories (erotetic narration, multiplicity
of plots, space-time conception, episodic-serial format, gaps and recaps), we found alterations
in the use of narrative gaps and recaps.
INTRODUÇÃO
Principal mídia da segunda metade do século XX, a televisão se transforma, desde sua
origem, a partir da adoção das constantes novidades tecnológicas, como videoteipe, controle
remoto, videocassete, digitalização, streaming1, entre muitas outras ao longo de sua história. A
noção clássica (e ainda predominante) do meio apoia-se em duas grandes características: o fluxo
e a programação. A respeito do fluxo, Raymond Williams (2016) explica que o sistema de
broadcasting (radiodifusão) encontrou na publicidade sua principal forma de organização e
fonte de financiamento. A televisão segue um fluxo contínuo e planejado em que são
intercalados programas produzidos por ela, como telejornais, telenovelas, séries e transmissões
esportivas, e intervalos comerciais. A programação, por sua vez, é montada de maneira a
organizar todas essas produções em uma sequência equilibrada durante o dia e durante a
semana. Assim, toda produção televisiva é pensada e desenvolvida a partir da lógica do fluxo e
da programação, adaptadas do rádio e do folhetim. O espectador, portanto, para acompanhar
uma telenovela ou uma série, precisa se acostumar com esse fluxo, percebido como natural,
consequentemente obedecendo ao dia, horário e formato estabelecido pelo canal de TV. Devido
a esse fluxo, a audiência precisa se adaptar, incorporar um ritual de consumo de televisão
horizontal e estar disponível naquele dia, horário e duração para acompanhar com plenitude as
produções televisivas.
Mas o fluxo não determina apenas quando uma narrativa seriada ficcional é exibida
dentro da programação, ele também tem relação direta com a construção narrativa dessas
produções. Devido à necessidade da inserção de publicidade na programação, os produtos
televisivos também são pensados pela lógica da fragmentação, isto é, toda produção é concebida
a partir de blocos, utilizados para encaixar as inserções publicitárias que mantêm o broadcasting
vivo e, consequentemente, interrompem periodicamente a fruição da audiência. Isso faz com
que essa narrativa seriada de ficção seja estruturada sob a forma de capítulos ou episódios,
“cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e subdividido, por sua vez, em blocos
menores, separados uns dos outros por breaks para a entrada de comerciais ou de chamadas
para outros programas” (MACHADO, 2000, p. 83). Como consequência, seus criadores
projetam a priori a história a ser contada com a inserção de interrupções e utilizam uma série
de recursos narrativos, ou que incidem sobre a narrativa, com o objetivo de manter o interesse
do espectador até o próximo bloco ou próximo episódio. Como exemplo de um desses recursos
1
Forma de transmissão de dados de vídeo e áudio por meio de uma conexão via internet.
16
está o gancho, elemento narrativo que deixa em suspenso algum momento de grande
curiosidade ou mistério da história.
No entanto, com o desenvolvimento da televisão digital e com a criação de plataformas
pagas de vídeos sob demanda, essa concepção clássica do ritual de assistir à TV tem se
modificado. O mercado audiovisual passa por mudanças quanto à produção, distribuição,
exibição e consumo de conteúdo. A tecnologia streaming possibilitou a aproximação entre
empresas de tecnologia e a indústria do audiovisual para, juntas, ampliarem o acesso a
produções por meio de plataformas de distribuição on-line. Permitiu ainda que seu usuário tenha
controle e poder de escolha sobre o que deseja assistir, quando e como deseja fazê-lo, fora do
tradicional fluxo televisivo. Nesse cenário de transformações surge a Netflix2, fundada em 1997
como um serviço de aluguel de DVDs e que migrou para o on-line em 2007. Desde 2010, a
empresa atua somente no streaming e passou a disponibilizar filmes, séries e outros produtos
audiovisuais por um modelo de assinatura mensal. Seu grande diferencial estava no vasto
catálogo de produções, especialmente de obras completas de séries, o que só estava ao alcance
no passado por meio da compra de coletâneas de DVDs ou da gravação de episódios
transmitidos pela televisão.
Em 2018, a Netflix alcançou 139 milhões de assinantes em todo o planeta3 (NETFLIX...,
2019), conseguindo 29 milhões de assinantes novos somente no ano em questão. Nos Estados
Unidos, uma pesquisa da RBC Capital Markets4, de 2015, indicou que 51% dos usuários de
internet norte-americanos a utilizam para assistir a vídeos sob demanda pela Netflix, escolhida
como plataforma favorita por 60% dos entrevistados. No ano seguinte, analistas de mercado
norte-americanos também concluíram que a Netflix ultrapassou a audiência das maiores redes
de TV daquele país: ABC, NBC, CBS e Fox5.
Em 2012, a empresa passa a atuar também como produtora audiovisual e lança sua
primeira série com conteúdo original, rotulada como Netflix Original, com Lilyhammer (NRK
TV e Netflix, 2012-2014). Um ano depois, apresenta o drama político House of Cards (2013-
2018), com o ator Kevin Spacey como protagonista. Com o sucesso de House of Cards, outros
artistas de Hollywood embarcaram em projetos da plataforma que hoje possui títulos como
Gypsy (2017), com Naomi Wats, Grace and Frankie (2015-presente), com Jane Fonda e Lily
2
A autora optou por utilizar “a” Netflix, no gênero feminino, pois a empresa assim se autodenomina.
3
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/netflix-tem-recorde-de-assinantes-mas-receita-cresce-menos-
que-o-esperado.shtml Acesso em 18 jun. 2019.
4
http://qz.com/555723/more-than-half-of-americans-now-watch-netflix/ Acesso em 07 jun. 2017.
5
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/06/1647642-netflix-deve-ultrapassar-audiencia-de-maiores-redes-
de-tv-dos-eua-em-2016.shtml Acesso em 06 jun. 2017.
17
Tomlin, The Kominsky Method (O Método Kominsky, 2018-presente), com Michael Douglas e
Alan Arkin e Stranger Things (2016-presente), com Winona Ryder.
Embora disponibilize produtos feitos por empresas do ramo da televisão, a Netflix não
é um negócio pertencente à rede de broadcasting, o que lhe possibilita romper com a lógica de
exibição e distribuição realizada pelos canais de televisão. Presente no streaming, ela não possui
grade de programação e não respeita o fluxo televisivo. Seu catálogo pode ser acessado a
qualquer momento, hora ou dia pelo usuário de sua plataforma. A Netflix também não admite
intervalos publicitários, portanto, o catálogo pode ser visualizado sem interrupções, e possibilita
que o espectador decida quando pausar, retornar ou avançar na narrativa. E, finalmente, no caso
de suas produções originais, a empresa inaugurou o binge-publishing6, estratégia de distribuição
de produções em que todos os episódios das temporadas de suas séries são disponibilizados de
uma só vez. Em termos de construção narrativa, essas produções originais são estruturadas sem
a necessidade da inserção de breaks comerciais, sejam aqueles que separam os blocos de um
mesmo episódio ou aqueles colocados entre episódios, o que pode promover alterações em sua
estrutura, caso, por exemplo, dos ganchos ou da criação de episódios piloto7, prática tradicional
das séries televisivas convencionais.
Sobre esse tipo de distribuição e exibição de narrativas seriadas, a possibilidade de
assistência de produções sem interrupções é uma prática que ganhou o nome de binge-watching
nos estudos recentes de televisão (MATRIX, 2014; JENNER, 2015; VAN EDE, 2015;
MASSAROLO e MESQUITA, 2016; SACCOMORI, 2016). No Brasil, a prática é conhecida
como maratonas de vídeo, isto é, a visualização em sequência de episódios de narrativas
seriadas devido à disponibilidade das temporadas completas. Contudo, é importante ressaltar
que esse tipo de imersão não surgiu com o streaming ou com a Netflix, pois já era presente
entre fãs de séries nos anos 1980 após a invenção das fitas VHS e, posteriormente, das
coletâneas de DVDs e do download de episódios. Massarolo e Mesquita (2016) destacam
também o time-shifting (ou de reassistência), hábito desenvolvido com as tecnologias DVR
(Digital Video Recorder) e TiVo que permitiram a gravação de programas televisivos e, por
consequência, sua reassistência no momento desejado pelo espectador, ignorando os intervalos.
6
O termo binge-publishing é utilizado pela autora Esther Van Ede, mas também pode ser encontrado na literatura
inglesa de outras maneiras como the Netflix model, binge-releasing, publishing all episodes at once, straight-to-
series model e all-at-once (VAN EDE, 2015, p. 2).
7
Segundo Pallottini (2012, p. 45), o piloto é capital: “nele se deve apresentar clara e eficientemente todas as
personagens principais, identifica-las, dizer o que são e como são; mostrar suas relações com as demais, seu modo
de ser, suas crenças, seus desejos, seus objetivos de vida, o estágio em que estão. Deve-se dar a situação básica da
comunidade ou do grupo que se quer tratar e, provavelmente, o problema inicial que deu origem ao estado atual
de vida de todos”.
18
videocassete, o DVR (Digital Video Recorder) e o VOD (vídeo sob demanda), fundamentais
para ampliar as possibilidades de experiências televisivas para a audiência. Após apresentar
uma revisão sobre como as teorias comunicacionais entendem o meio, o capítulo aborda noções
sobre a recepção televisiva clássica, os conceitos de fluxo e de programação, a criação da TV
por assinatura e sua programação diagonal e, finalmente, o surgimento das plataformas de OTT8
(Over the top) e de streaming no século XXI, dentre elas a Netflix, responsáveis por fornecer
ao público uma experiência televisiva ainda mais fragmentada, personalizada e individual.
O segundo capítulo discute como as narrativas seriadas ficcionais se configuram na
televisão, herdeiras de formas anteriores como as narrativas oral, literária, fílmica e teatral, entre
outras. A partir de reflexões sobre o folhetim, a literatura e o cinema, as narrativas seriadas de
ficção na TV baseiam-se na repetição e na fragmentação intrínsecas do meio. O capítulo ainda
mostra a evolução dessas narrativas na televisão norte-americana, país onde esse tipo de
produção ganhou maior projeção, e indica como a complexidade tornou-se característica
determinante para o sucesso desses produtos a partir do final do século XX e primeiras décadas
do século XXI. Por fim, são identificados alguns dos recursos narrativos presentes na estrutura
narrativa dessas produções, como narração, tempo, espaço, formatos episódico e serial, ganchos
e recapitulações.
A era contemporânea do on-demand é tema do terceiro capítulo, em que são listadas
algumas plataformas de streaming de produções ficcionais no Brasil e no mundo e a história da
Netflix é apresentada, assim como suas funcionalidades e algoritmos de recomendação. O
capítulo também aprofunda o modelo de produção e distribuição único da Netflix, o binge-
publishing, e como a plataforma é símbolo da forma com que parte da audiência assiste a
narrativas seriadas hoje, o fenômeno de assistência em maratona denominado binge-watching.
Finalmente, o quarto e último capítulo se debruça sobre a proposta metodológica e faz
a análise de três séries originais da Netflix – Sense8 (2015-2018), 3% (2016-presente) e Dark
(2017-presente) –, com o objetivo de identificar possíveis alterações na estrutura narrativa
dessas produções distribuídas no formato binge-publishing. Diante do extenso universo de
produções seriadas Originais Netflix presentes no serviço, esta investigação optou por realizar
uma análise de conteúdo, seguindo os preceitos de Laurence Bardin (2011), para a escolha das
três séries, tratadas para a criação das categorias de análise da estrutura narrativa das produções
e, consequentemente, para as inferências e interpretações realizadas.
8
São as plataformas que transmitem produções via streaming por meio de diversos aparatos tecnológicos com
acesso à internet. Há plataformas OTT pagas como Netflix e Hulu e OTTs gratuitas ou que também oferecem
conteúdo pago, caso do YouTube.
20
Nas Considerações Finais, são apresentados os resultados (ou pistas) obtidos a partir da
análise das séries originais da Netflix e também outras reflexões acerca do meio televisão diante
das transformações promovidas pelas tecnologias contemporâneas.
21
Definir o que é televisão ou quais são os programas feitos para ou por ela tem sido um
trabalho cada vez mais complexo pelos estudiosos de mídia. A evolução – ou até revolução, de
acordo com teóricos como Amanda Lotz (2014) – da televisão tem promovido mudanças sobre
a concepção do que é o meio, uma vez que hoje é possível “assistir TV” não apenas pelo
aparelho muitas vezes localizado nas salas de estar das residências, mas também via
smartphones, tablets, computadores e videogames. O tipo de audiência dos anos 1960, por
exemplo, já não é a única a desfrutar das produções do meio – os telespectadores hoje se
dividem entre diversas possibilidades de assistência, migrando para nichos específicos.
O meio como tradicionalmente projetado – a ser acompanhado por meio de imagens em
movimento com som dispostas em televisores instalados em residências e voltado para atingir
grande público – ganhou definições desde seus primórdios, algumas que continuam a
caracterizá-lo, mesmo diante de transformações. Para Raymond Williams (2016), em sua obra
Televisão, escrita em 1974, nenhuma tecnologia surge por si só ou se configura como um evento
isolado, pois é inseparável de um conjunto de demandas, impulsos e práticas da sociedade. Para
o autor, televisão alterou o mundo e deve ser entendida enquanto tecnologia e forma cultural,
resultado de uma série de invenções (eletricidade, telegrafia, fotografia, cinema, rádio) e de
demandas da sociedade. Para Williams, a televisão pode ser pensada a partir de diversos
ângulos, mas sempre como um meio que atende demandas sociais, políticas e econômicas.
A compreensão de Williams de que televisão é também cultura foi corroborada por John
Fiske (2011), na obra Television culture, de 1987. O autor inicia o primeiro capítulo ressaltando
que entende a televisão como um apoiador/provocador de sentidos, prazeres e de cultura:
“Televisão como cultura é parte crucial da dinâmica social pela qual a estrutura social se
mantém em um constante processo de produção e reprodução9” (FISKE, 2011, p. 1). Dominique
Wolton (1996), por sua vez, também defendeu que a televisão constituiu uma mudança radical
na comunicação e funciona como instrumento para a democracia. Contudo, o autor vai além e
destaca que esse meio, ao atingir todos os públicos, segundo ele, constitui ainda um laço forte
9
“Television-as-culture is a crucial part of the social dynamics by which the social structure maintains itself in a
constant process of production and reproduction”. (Todas as citações em língua estrangeira nesta dissertação foram
traduzidas pela autora e terão o texto original em nota de rodapé.)
22
10
“The U.S. television audience now can rarely be categorized as a mass audience and is instead more accurately
understood as a collection of niche audiences”.
23
A atenção sobre o emissor levou os estudiosos da Teoria dos Efeitos Limitados ou dos
Efeitos da Mídia refletirem a respeito da influência exercida pela televisão sobre os
telespectadores, indagando sobre sua capacidade para potencializar efeitos negativos ou
“desmascarar seu impacto negativo” sobre a sociedade (OROZCO GÓMEZ, 2005, p. 28). Os
Estudos de Mídia, por sua vez, deram início a pesquisas para além do foco exclusivo nos efeitos
e abordaram o conjunto de relações que se desenvolvem em torno dos meios de comunicação
de massa. Após a divulgação dos estudos de Marshall McLuhan sobre como os meios eram
extensões dos sentidos e das potencialidades do corpo humano, a investigação sobre as mídias
tornou sua atenção para as tecnologias e hoje reúne pesquisas sobre as configurações dos meios,
suas materialidades, suas linguagens e processos de apropriação social e cultural que estejam
relacionados, entre outros temas. A emergência das novas mídias (ou das mídias digitais)
promoveu uma nova guinada nos Estudos de Mídia, fazendo com que teóricos revisassem os
modelos tradicionais de massa e se voltassem para as interações entre os meios de comunicação
e seus usuários na contemporaneidade e para a complexidade das relações postas entre mídia e
sociedade. No caso da televisão especificamente, autores como Henry Jenkins (2009, 2014,
2015) passaram a observá-la e analisá-la não só como um único aparelho e suas relações, mas
também como fenômeno integrado a outros suportes ou dispositivos tecnológicos como
smartphones, videogames e internet (CITELLI et al., 2014).
O campo dos Estudos Culturais, que surge com o Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos (CCCS), fundado por Richard Hoggart, em 1964, na Universidade de
Birmingham, Inglaterra, introduz outra noção sobre os estudos acerca dos meios de
comunicação de massa ao atentar-se para a recepção e as audiências e as estruturas de produção.
A partir da formação marxista de grande parte de seus pesquisadores – o que atribuiu ao grupo
a classificação de New Left – e o trabalho com educação da classe trabalhadora inglesa, essa
corrente se distancia do entendimento do público como passivo e alienado e coloca a recepção
como elemento ativo nos processos de significação. Uma vez que a cultura é entendida pelos
pesquisadores como um processo sociohistórico dinâmico que cria e assimila sentidos e que se
constitui como um espaço de disputas porque está sempre relacionado às questões do poder,
Douglas Kellner (2001) vê como grande diferencial dos Estudos Culturais a questão da falta de
distinção entre cultura alta e baixa e valorização de formas culturais como o cinema, a televisão
e a música popular. Ao analisar as esferas da produção, da distribuição e da recepção televisiva,
os teóricos apresentam como a experiência televisiva pode ser lida e ressignificada de diferentes
formas.
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Por fim, a já citada emergência das mídias digitais não só trouxe entendimentos inéditos
para os Estudos de Mídia, mas também abriu possibilidades para novos formatos midiáticos,
um dos objetos de estudo da Cibercultura, corrente originária no final do século XX interessada
em investigar as transformações proporcionadas pelas tecnologias digitais da informação e da
comunicação e a cultura “que surge a partir dessas transformações, tendo na comunicação
mediada por computadores seu centro” (CITELLI et al., 2014, p. 412). Com o surgimento das
concepções de ciberespaço na década de 1990 e de sociedade em rede, as práticas de criação,
produção, transmissão e recepção da televisão estão em plena transformação e se tornaram
também objeto desta linha teórica. Mais uma vez, as reflexões de Jenkins (2009, 2014, 2015)
sobre a cultura da convergência e da conexão, transmidiática e crossmídia estão circunscritas
nos estudos de televisão.
Criada após o teatro, a literatura, o cinema e o rádio, a televisão foi desenvolvida a partir
de diversos elementos de todas as linguagens anteriores, sendo categorizada (assim como o
cinema) como um meio híbrido (WOLTON, 1996; MARTÍN-BARBERO, 2015; MACHADO,
2000; WILLIAMS, 2016). Ainda assim, desenvolveu particularidades que, para Wolton (1996),
são a razão de seu sucesso, pois é capaz de dar sentido e continuidade à mistura diversificada
de imagens através de uma linguagem híbrida.
A partir do cinema, a televisão organizou-se sua forma e estilo por planos, cenas e
sequências para trabalhar as imagens em movimento, e aproveitou o estudo de ângulos e
profundidade de câmera para dar sentido às histórias que conta – pesquisas de nomes como
Jeremy Butler (2010) e Simone Maria Rocha (2014) dão sequência a esse tipo de abordagem.
No entanto, enquanto o cinema incentiva a imersão completa do público na narrativa por meio
da exibição na “caixa preta”, a recepção televisiva clássica pode ser realizada simultaneamente
a outras atividades diárias, como cozinhar ou conversar, o que pode atrapalhar a imersão do
espectador – condição que assemelha a recepção televisiva à do rádio. Diante da popularização
do meio a partir da década de 1950 nos Estados Unidos, diversos teóricos passaram a pesquisar
a recepção televisiva, de forma a entender suas especificidades e conjuntas, caso de nomes
como Hall (2003), Orozco Gómez (2005), Wolton (1996) e Fiske (2011), para citarmos alguns.
Sobre essa perspectiva, Wolton diz que
26
11
“Sometimes the act of watching television and of choosing what is watched can itself play an important role in
the culture of the home, which is, as we have seen, generally patriarchal”.
27
12
Embora seja um estudo importante para a comunicação, o modelo de codificação/decodificação estabelecido
por Hall é criticado por ser um modelo que se assemelha à linearidade de anteriores e por entender a decodificação
como um ato único, entre outros pontos. Hall reconheceu que “o modelo descrito no artigo, realmente, faz com
que as instituições de comunicação pareçam bastante homogêneas no seu caráter ideológico, mas elas não o são”
(HALL, 2003, p. 368).
28
da TV mostra-se como a negociada. Wolton ressalta que a mesma mensagem, ainda que vista
por todos, não tem o mesmo sentido para todos. “Essa dupla função de identificação e de
representação não é passiva e resulta de uma espécie de interação constante entre os
espectadores e aquilo que a televisão mostra sobre o mundo” (WOLTON, 1996, p. 69).
O entendimento do espectador televisivo como um receptor ativo é também o de Fiske
(2011), que categorizou três níveis de códigos que compõem o texto televisivo e que se inter-
relacionam: a realidade, composta por códigos de convenções culturais como aparência,
vestuário, ambiente, fala, gesto etc.; a representação, composta por códigos técnicos como
câmera, iluminação, edição, som etc.; e a ideologia; que orienta a organização dos códigos
técnicos dentro de um entendimento social e que são transformados em códigos ideológicos,
como individualismo, raça, patriarcado etc. Esses níveis ajudam a entender como o texto produz
sentidos, promove associações e trabalha a polissemia para atingir diversas audiências. A
polissemia também é lembrada por Wolton como uma das razões para a força da televisão: “o
milagre da televisão é esse encontro entre imagens estandardizadas, apesar de polissêmicas, e
de condições de recepção que criam uma outra polissemia, ligadas ao contexto cultural e
político da recepção” (WOLTON, 1996, p. 77).
Entretanto, a ideia de receptor ativo apresentada pelos teóricos acima passa por uma
nova revisão com a chegada de tecnologias como o videocassete, os boxes de DVD e a banda
larga, que possibilita o download de programas televisivos e, mais tarde, impulsiona o
surgimento das plataformas de streaming. Especialmente com a revolução digital e,
consequentemente, tecnologias como OTT, os telespectadores têm mais opções de consumir os
conteúdos televisivos, escolhendo onde, quando e a quais produtos desejam assistir, e passam
até mesmo a interagir e exercer papéis importantes no desenvolvimento e transmissão de
programas da TV – exemplos disso são os reality shows e programas em que o público é
convidado a participar das transmissões via redes sociais. Conforme aponta Lotz (2014), os
telespectadores seguem assistindo TV, mas o fazem de diferentes maneiras, seguindo rituais
quase que personalizados – escolhendo o aparelho que desejam usar (TV, tablet, computador,
smartphone), o local em que possam assistir (no quarto, no ônibus, na sala de espera do
consultório médico, no restaurante durante o almoço etc) e o conteúdo favorito no momento
mais propício do dia (ou da madrugada).
seguinte. De acordo com Wolton (1996), a televisão como “meio de massa” foi fundamental
nesse período de 1950 como mediação comunicativa para que a população entendesse as
mudanças econômicas e sociais, as mutações do trabalho e do consumo.
Teóricos que buscam categorizar a evolução da televisão dos Estados Unidos como Lotz
(2014) e Reeves, Rogers e Epstein (2006, 2007)13 entendem que os primeiros 30 a 40 anos do
meio foram caracterizados pela presença dominante das redes de TV (networks), época em que
as grandes emissoras institucionalizaram práticas de criação, produção, distribuição e recepção
televisivos. Como as redes NBC, CBS e ABC já haviam se consolidado no rádio, elas possuíam
condições financeiras de alcançar o público por meio de emissoras locais afiliadas e vendiam
espaços publicitários. Durante as décadas de 1940 e 1950, de acordo com Esquenazi (2011) e
Lotz (2014), essas emissoras sustentaram seu modelo de negócio da mesma forma que no rádio,
possibilitando que cada anunciante patrocinasse uma atração específica. A prática da venda de
intervalos comerciais de 30 segundos para diversos anunciantes, modelo predominante ainda
hoje na televisão aberta e fechada, foi iniciado apenas nos anos 1960. Nesses primeiros anos,
os produtores de conteúdo independentes e os estúdios de cinema só possuíam três
competidores para a comercialização de seus produtos e eram obrigados a respeitar as práticas
do oligopólio.
Segundo Williams (2016), o broadcasting (ou a radiodifusão), tanto do rádio quanto da
TV, encontrou na publicidade sua principal forma de organização e fonte de financiamento.
Desse modo, sua presença na exibição televisiva diária se tornou fundamental para o
desenvolvimento do meio – e seu formato foi sendo criado para encaixar-se na sequência de
programas “culturais” e comerciais” do modelo proposto pela TV (WILLIAMS, 2016, p. 96).
Essa sequência foi atribuída por Williams como fluxo:
A ideia de fluxo foi defendida por Williams quando ele percebeu a dificuldade em
descrever o ato de assistir televisão. Segundo ele, ler um livro, participar de um encontro ou
assistir a uma peça de teatro eram eventos isolados, único e temporais. Com a radiodifusão, ao
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Enquanto Lotz (2014) categoriza esse período como Network Era, delimitado dos anos 1950 até 1980, Reeves,
Rogers e Epstein (2006, 2007) o denominam como TV I, compreendido entre o fim dos anos 1940 e meados da
década de 1970.
31
14
“least objectionable programing”.
33
com o que o público desejava. Em suma, Wolton entende que a televisão generalista aposta no
tradicional e na fácil identificação coletiva, mas a TV fragmentada ou temática oferta ao público
inovação e liberdade individual.
Quanto mais sabemos quem assiste a quê, a que horas e, talvez futuramente,
por que razão, e com qual “grau de satisfação”, como dizem os
psicossociólogos, mais temos a sensação de que televisão de massa era a
forma arcaica de uma técnica de comunicação que com o tempo sofisticou-se,
surgindo o reino da individualização e da fragmentação perfeitamente
sincrônicos com a afinação do ideal democrático (WOLTON, 1996, p. 110).
Ainda nesse sentido, Lotz (2014) corrobora a ideia de Wolton ao falar da fragmentação
da audiência, mas destaca também sua polarização – a autora apresenta o conceito de
polarização como a “capacidade de diferentes grupos de espectadores consumirem
substancialmente diferentes programações e ideias, ao invés de simplesmente dispersar as
audiências”15 (LOTZ, 2014, pos. 704).
Todavia, as novas emissoras e redes não estão isoladas como grandes características
desse período temporal para a televisão. Além da popularização do controle remoto, a Multi-
channel Transition Era foi representada ainda pelo videocassete. Embora inventado na década
de 1950, o controle remoto se consolidou como tecnologia acessível e transformadora de fato a
partir do fim dos anos 1970. Seu uso pelos telespectadores criou o chamado efeito zapping.
Segundo Machado (2000), esse fenômeno ajudou a promover uma recepção seja cada vez mais
fragmentada e heterogênea. Com a criação do controle remoto, esse embaralhamento dos canais
fez com que nenhum programa fosse visto de maneira completa, que as histórias não fossem
acompanhadas da mesma maneira e que, de certa maneira, realidade e ficção podiam se
misturar. A partir desse fenômeno, autores como Machado (2000) e Esquenazi (2011)
questionam a recepção televisiva fora desse tal fluxo planejado descrito por Williams (2016).
Para Esquenazi (2011), o contexto descontínuo da televisão permite que o espectador escolha
o que deseja ver, produzindo cortes na programação. No entanto, o próprio Williams pontuou
que essa liberdade de escolha era irreal, pois o espectador, ainda assim, era obrigado a respeitar
a programação.
O videocassete, também conhecido como VCR (Video Cassette Recorder), foi
introduzido no mercado em 1971 com o modelo U-matic da empresa Sony, mas se tornou
popular quando a marca japonesa JVC lançou em 1976 o Video Home System, o VHS, com
15
“[…] polarization refers to the ability of different groups of viewers to consume substantially different
programming and ideas, rather than simply to the dispersal of audiences”.
35
16
Para Lucia Santaella (2003), o surgimento de novas formas de consumo cultural propiciadas por tecnologias
como videocassetes, fotocopiadoras, videoclipes, controle remoto e TV a cabo, por exemplo, acabou por dificultar
as distinções claras entre a cultura popular, a cultura erudita e a cultura de massa. Segundo Santaella (2003, p. 52),
são “as tecnologias do disponível e do descartável”, que ajudam a instaurar a chamada cultura das mídias, distinta
da cultura de massa tradicional.
36
A Internet tem tido um índice de penetração mais veloz do que qualquer outro
meio de comunicação na história: nos Estados Unidos, o rádio levou 30 anos
para chegar até 60 milhões de pessoas; a TV alcançou esse índice de difusão
em 15 anos; a Internet o fez apenas três anos após a criação da teia mundial
(CASTELLS, 1999, p. 439).
(SANTOS, 2018)17 –, o país possui 59% de usuários conectados, segundo os dados da União
Internacional de Telecomunicações (UIT) (AGÊNCIA BRASIL, 2017)18. O mesmo estudo
mostrou que esse número passa para 76% quando são considerados os usuários conectados nos
Estados Unidos.
A expansão da internet foi uma das principais razões para que as tecnologias streaming,
Over the top (OTT) e VOD (vídeo on demand) fossem desenvolvidas, possibilitando a
distribuição e o consumo de produções audiovisuais fora da linearidade do fluxo televisivo. O
streaming permitiu que fosse iniciada uma aproximação entre a indústria do audiovisual e as
empresas de tecnologia para ampliação do acesso a esses conteúdos por meio de plataformas
de distribuição on-line. Ao refletir sobre a importância do horário nobre para a televisão norte-
americana, em especial do ponto de vista econômico, Nicholas Negroponte (1995) já alertava
para as consequências de conteúdo televisivo “transmitido sob a forma de dados e contendo
uma descrição de si próprio que um computador possa ler. Você poderia gravar tais programas
orientando-se por seu conteúdo, e não pela hora, dia ou canal em que eles passam"
(NEGROPONTE, 1995, p. 23). Essa é a premissa apresentada pelo vídeo sob demanda,
representante do que Negroponte chama de modelo narrowcasting (difusão restrita), um
contraponto ao broadcasting.
A possibilidade de se assistir a conteúdos sob demanda por diversos aparatos
tecnológicos também promoveu que os produtos televisivos pudessem ser consumidos fora das
residências – a mobilidade é também uma forte característica desse período. O espectador do
século XXI não quer apenas múltiplas opções e controle sobre suas escolhas, mas também
mobilidade, transitando entre multitelas, conforme detalham Lipovetsky e Serroy (2009).
Por muito tempo a tela de cinema foi a única e a incomparável; agora ela se
funde numa galáxia cujas dimensões são infinitas: chegamos à época da tela
global. Tela em todo lugar e a todo momento, nas lojas e nos aeroportos, nos
restaurantes e bares, no metrô, nos carros e nos aviões; tela de todas as
dimensões, tela plana, tela cheia e mini-tela portátil; tela sobre nós, tela que
carregamos conosco; tela para ver e fazer tudo. Tela de vídeo, tela em
miniatura, tela gráfica, tela nômade, tela tátil: o século que começa é o da tela
onipresente e multiforme, planetária e multi-midiática (LIPOVETSKY;
SERROY, 2009, p. 12).
17
https://exame.abril.com.br/brasil/apesar-de-expansao-acesso-a-internet-no-brasil-ainda-e-baixo/ Acesso em: 20
out. 2018.
18
https://exame.abril.com.br/tecnologia/brasil-e-o-4o-pais-em-numero-de-usuarios-de-internet/ Acesso em: 20
out. 2018.
38
19
“The increased fractionalization of the audience among shows, channels, and distribution devices has diminished
the ability of an individual television network or television show to reinforce a certain set of beliefs to a broad
audience in the manner we long believed to occur. Although television can still function as a mass medium, in
most cases it does so by aggregating a collection of niche audiences”.
39
O ato de narrar faz parte do ser humano. Contar histórias vai além da pura comunicação,
é uma das formas que o ser humano tem para se encontrar e se reconhecer no outro (MARTINO,
2016), desde que os enunciados façam sentido tanto para o narrador quanto para o interlocutor.
No mesmo sentido, Lúcia Moreira (2005) ressalta que o homem possui uma “necessidade
atávica de organizar os acontecimentos relativos à sua trajetória (coletiva e individual)”, e,
assim, “passa a ‘editar’ esses eventos, dando origem então a narrativas organizadas e
posteriormente concretizadas pela linguagem” (MOREIRA, 2005, p. 9).
Sendo também cultura, como colocado no primeiro capítulo, a televisão é um ambiente
composto essencialmente por histórias, reais e ficcionais, transmitidas em formato audiovisual.
Sobre o que nos interessa nesta pesquisa, a ficção televisual, assim como a própria TV, se
formou e é herdeira de um “vasto caudal de formas narrativas e dramatúrgicas prévias: a
narrativa oral, a literária, a radiofônica, a teatral, a pictórica, a fílmica, a mítica, entre outras”
(BALOGH, 2002, p. 32). E, atualmente, são as narrativas ficcionais seriadas televisuais que
têm atraído a atenção dos espectadores, afirmação corroborada por Jost (2012, p. 24) ao dizer
que, nas últimas décadas, “a seriefilia substituiu a cinefilia e, embora dela se distinguiu, ela se
apropriou de alguns de seus traços”.
Neste capítulo, visando entender a evolução das narrativas seriadas ficcionais da
televisão e como seus recursos narrativos são utilizados para prender a atenção do público,
abordamos como são constituídas essas histórias a partir do seu encontro, em especial, com a
literatura e o cinema, e como elas se modificaram desde a década de 1950 na televisão norte-
americana – principal país produtor e exportador de excelência desse produto. Outro tema
abordado neste capítulo é a complexidade presente nas narrativas contemporâneas, um dos
aspectos marcantes e determinantes para o sucesso das séries a partir do final do século XX.
Por fim, apresentamos alguns dos recursos narrativos presentes nessas histórias e que servem
de ponto de partida para os recursos escolhidos para a análise que será realizada no capítulo 4.
aspectos são importantes para a criação da narrativa seriada ficcional televisual, uma vez que o
processo de produção da narrativa passa a ser ligada à periodicidade e à pressão salarial, além
de romper com o anterior distanciamento do escritor e do leitor, que passa a interpelar pelos
rumos da história.
Martín-Barbero (2015) ainda destaca o surgimento da dialética entre escritura e leitura,
que ajuda a compreender o novo gênero literário. Segundo ele, o universo do leitor acaba sendo
incorporado ao processo de produção do folhetim, deixando traços do popular no texto. Em um
primeiro nível, o autor ressalta que a organização material do texto, as escolhas de composição
tipográficas, fazem com que o leitor tenha vontade de ler a narrativa. Em segundo, terceiro e
quarto níveis, os quais nos interessam aqui, há um sistema de dispositivos de fragmentação da
leitura e de sedução, além do suspense. Quanto aos dispositivos de sedução, o autor ressalta a
estrutura que ele chama de aberta.
estabelece três noções de repetição – “modo de produção de uma série a partir de uma matriz
única”, “como mecanismo estrutural de generalizações de texto” e como condição de consumo
(CALABRESE, 1987, p. 43). Essas noções fazem com que Calabrese entenda a repetição como
geradora de dois tipos de obras que seguem fórmulas repetitivas, mas opostas: variação de um
idêntico, caso de séries como Rin-tin-tin e Lassie, isto é, narrativas seriadas ficcionais que se
iniciam de uma mesma ideia e são replicadas em inúmeras situações, e identidades das mais
diferentes, caso da soap operas Dallas e Dinastia, obras que nascem de ideias diferentes, mas
que desenvolvem as mesmas histórias, gerando material idêntico.
As reflexões de Calabrese foram importantes para que Eco pensasse sobre o produto
seriado e se, a partir de uma produção repetitiva que segue fórmulas com objetivo de lucro, é
possível encontrar alguma inovação nessa ideia de repetição. Para Eco (1989, p. 122), as
narrativas seriadas televisivas recebem a característica de uma “tipologia da repetição” porque
são prolongadas além do necessário, visando aumentar o lucro ao máximo, mas fazendo com
que a própria história que está sendo contada se repita, tirando, portanto, toda a possibilidade
de inovação sobre o texto. No entanto, buscando uma definição mais adequada para o termo
repetição nos estudos de serialidade, Eco compara a serialidade dos meios de comunicação de
massa com a estética moderna a respeito das obras de arte e de como, para serem reconhecidas
como tais, apresentam-se como “únicas (isto é, não repetíveis) e ‘originais’” (ECO, 1989, p.
120). Para o autor, a noção de originalidade ou de inovação das obras de arte entende-se por
“um modo de fazer que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem
do mundo, que renova as nossas experiências” (ECO, 1989, p. 120).
No caso das narrativas seriadas ficcionais na TV, Eco passa a ver o conceito de
repetitividade e serialidade desses produtos como “alguma coisa que à primeira vista não parece
igual a qualquer outra coisa” (ECO, 1989, p. 122), e elenca gêneros dessas narrativas ficcionais
que podem apresentar elementos repetidos, mas que também são mostradas como originais e
diferentes – retomada (continuação ou nova história de um tema de sucesso), decalque
(reformulação de uma história de sucesso, também conhecido como remake), série (história
com o mesmo número de personagens que rodam e apresentam as mesmas tramas – retorno do
idêntico), saga (sucessão de eventos que seguem um tempo histórico e mostram o crescimento
e envelhecimento dos personagens), e dialogismo intertextual (citações indiretas ou explícitas
de histórias ou textos do passado).
Assim, para encontrar elementos de inovação na serialidade televisiva, Eco esclarece
que o espectador pode fazer duas leituras de um mesmo produto: o leitor de primeiro nível é o
leitor ingênuo, que se satisfaz apenas com a história que lhe é contada; o leitor de segundo nível
45
é o mais exigente, aquele que vai além da simples decodificação e que permite ser provocado
pelas entrelinhas do texto audiovisual – é esse espectador que busca (e até exige) alguma
inovação na serialidade.
Por fim, a serialidade televisiva é marcada também pela fragmentação. Com base no
conceito de fluxo e de programação para estabelecer a presença da publicidade na televisão,
Machado (2000) explica que
como recursos para apreender a atenção dos espectadores. Os ganchos são comparáveis ao
suspense citado por Martín-Barbero (2015) a respeito do folhetim, ou seja, situações cruciais
que serão resolvidas somente no capítulo seguinte ou que preparam uma ação ou um conflito.
De acordo com Flavio de Campos (2009, p. 243), “se suspense é a expectativa de um incidente,
o gancho é a interrupção da narrativa na expectativa de um incidente”. Já Pallottini (2012, p.
103) entende o gancho como um “truque usado, geralmente, para criar suspense ou expectativa
sobre uma revelação, o fim de uma dúvida, a resolução de um dilema: enfim, a novidade”.
Ainda segundo Machado, há três tipos de narrativas seriadas na televisão: as narrativas
teleológicas ou seriais, em que há uma ou várias narrativas entrelaçadas que se sucedem ao
longo dos capítulos (caso das telenovelas, alguns tipos de séries ou minisséries); narrativas
episódicas, em que “o que se repete no episódio seguinte são apenas os mesmos personagens
principais e uma mesma situação narrativa” (MACHADO, 2000, p. 84) – caso dos seriados
como CSI ou Law & Order; e narrativas em que a única coisa que se mantém é a temática da
narrativa, porém, utilizando personagens e cenários distintos – caso da série Além da
Imaginação.20
Para entendermos como as narrativas seriadas ficcionais televisivas ganharam um papel
de destaque entre as produções da televisão, vamos analisar a evolução desses produtos na
cultura norte-americana, uma vez que as narrativas produzidas naquele país, conforme reforça
Esquenazi (2011, p. 11), “continuam à frente das outras produções nacionais que, em muitos
casos, as copiam”.
Estudiosos como Robert Thompson (1997), Cássio Starling Carlos (2006), Jean-Pierre
Esquenazi (2011) e Brett Martin (2015) observam a narrativa ficcional seriada televisiva dos
Estados Unidos a partir da noção de eras de ouro – a primeira, marcada pelas produções das
três grandes redes dos EUA (NBC, CBS e ABC); a segunda, com o surgimento dos primeiros
canais de TV a cabo; e a terceira (e atual), com a chegada de narrativas complexas e personagens
difíceis. Embora se diferenciem ao atribuir as eras de ouro a períodos distintos, usaremos essas
20
Faz-se importante tratar de uma diferenciação nesse tema. Além de Machado, autores como Aronchi de Souza
(2004) e Pallottini (2012) atribuem nomenclaturas diferentes para caracterizar essas narrativas. A autora escolheu
por designar a narrativa teleológica apresentada por Machado como série e a narrativa que é estruturada em
episódios e que apresenta começo, meio e fim como seriado. Para esta dissertação, serão analisadas, portanto,
séries. Esta pesquisa não diferencia a nomenclatura de episódio e capítulo, utilizando ambos os termos para
classificar as unidades que compõem uma série.
47
21
Termo abreviado para “comédia de situações” em inglês, gênero fundador dos seriados na TV.
22
Na primeira aparição das séries nessa pesquisa, o nome do programa é acompanhado, entre parênteses, de seu
nome na versão brasileira caso tenha tido tradução, o canal norte-americano em que foi exibido e os anos de
exibição.
48
televisão daquele país a focar em uma personagem feminina, solteira e independente, relatando
suas lutas no mercado de trabalho e quebrando paradigmas ao colocar a mulher no centro do
ramo profissional (CARLOS, 2006). A MTM Enterprises também se torna local de talentosos
roteiristas, responsáveis pelo surgimento da próxima geração de séries da TV, nos anos 1980,
como Steven Bochco, Dick Wolf, Tom Fontana, David Milch, John Tinker e Marshall
Herskovitz. Esses nomes estão ligados a séries como Hill Street Blues (Chumbo Grosso; NBC,
1981-1987), NYPD Blue (Nova York Contra o Crime; ABC, 1993-2005), Law & Order (Lei &
Ordem; NBC, 1990-2010), Oz (HBO, 1997-2003) e Friends (NBC, 1994-2004). Brett Martin
(2015) ressalta que a MTM funcionou como uma inspiração para a HBO e sua importância
adquirida no final da década de 1990 e anos 2000.
Antes de introduzirmos a próxima geração de séries com a chegada dos anos 1980, é
importante abrir espaço para Dallas. Criada por David Jacobs em 1978, a série transmitida pela
CBS trata de uma rica família do Texas, os Ewing, e explora a trajetória do magnata do petróleo,
J.R. Ewing. Sua primeira temporada foi composta por cinco episódios sobre a família Ewing
em formato semelhante ao das soap operas radiofônicas. Contudo, o emaranhado de linhas
narrativas fez com que sua segunda temporada ganhasse 20 episódios. O ápice da trama se deu
na terceira temporada, finalizada com um dos mais famosos ganchos da história da TV norte-
americana – “quem atirou em J.R.?” –, recurso narrativo parodiado no final da primeira
temporada da série Twin Peaks (ABC, 1990-1991). Esquenazi (2011, p. 64) afirma que “a
América esperou fervorosamente durante o verão pelo início da temporada seguinte e pela
solução do enigma. Dallas prova que uma soap opera, a custo de intrigas múltiplas e de
suspenses quase policiais, pode impor-se no horário nobre”. O sucesso de sua estrutura fez com
que a saga terminasse apenas em 1991, após 14 temporadas e 357 episódios.
O surgimento da TV a cabo e do videocassete, aparelhos chamados de VCR nos EUA,
são determinantes para a criação de uma nova geração de narrativas seriadas ficcionais no país,
a “terceira era”, conforme os autores citados no início deste item. Segundo Carlos (2006), em
1981, a presença de videocassetes em lares americanos salta de 1% para 68%, permitindo que
os espectadores gravem os programas e assistam posteriormente, fora do fluxo descrito por
Williams (2016). Em paralelo, cerca de 23% das residências dos EUA assinam canais a cabo,
número que seria duplicado até 1985. A princípio, a HBO e outros canais a cabo transmitem
apenas filmes; sua produção de conteúdo ficcional próprio surge somente em meados da década
de 1980. Fundada em 1972, a HBO trabalha inicialmente com eventos esportivos e programas
eróticos e lança sua primeira série dramática de longa duração apenas em 1997, Oz, que
permanece no ar até 2003. Brett Martin (2015, pos. 618) ressalta que, na década de 1980, a
50
televisão funciona como uma espécie de praça de alimentação, “composta de muitos quiosques
vendendo cada qual uma culinária específica, em vez de uma lanchonete com cardápio
universal, despejando refeições genéricas e menos passíveis de objeção”. Os canais a cabo
ajudam a promover o início da fragmentação da audiência, o que impulsiona a produção original
diferenciada de canais como a HBO, reconhecida por trabalhar temas em voga23.
Outra característica das narrativas seriadas ficcionais dessa nova geração é a criação dos
chamados “dramas de qualidade”, iniciada com Hill Street Blues. Apesar de transmitida pela
NBC a partir de 1981, a série é criada na MTM Enterprises por Steven Bochco e Michael Kozoll
e acompanha dois detetives de uma delegacia de polícia de uma grande cidade da costa leste
norte-americana. Durante sete temporadas, mescla conflitos das vidas profissional e pessoal dos
personagens centrais, crítica social, humor e intriga policial. Hill Street Blues foi responsável
por iniciar um novo estilo de estrutura narrativa na TV norte-americana, os ensemble shows,
em que o enfoque passa a ser sobre diversos personagens, não apenas em um.
Essa fórmula narrativa também é destacada por Esquenazi (2011), uma vez que Hill
Street Blues encontra no trabalho coletivo dos roteiristas a forma para trabalhar o
aperfeiçoamento das múltiplas linhas narrativas, ou arcos narrativos. A série encontra ainda o
equilíbrio entre as cop stories, feitas de narrativas lineares sobre investigações presididas por
um herói forte que espera restituir a ordem, e as soap operas, caracterizadas em torno de uma
comunidade/família e seus conflitos emocionais e sexuais, o que parecia inconciliável até então.
23
Na esteira da HBO surgiram outros canais a cabo interessados em abordar temas até então inexistentes na
televisão como a homossexualidade, caso do canal Showtime com as séries Queer as Folk (2000-2005) e The L
Word (2004-2009); o humor controverso, presente no desenho South Park (1997-presente) do Comedy Central; e
de temas de “alta voltagem” do FX, adjetivo atribuído pelo próprio canal, com The Shield (2002-2008), Nip/Tuck
(2003-2010) e Rescue Me (2004-2011).
51
Os ensemble shows iniciados por Hill Street Blues também são tratados por François
Jost (2012). Segundo ele, a ideia do herói único e excepcional é substituída por personagens
com dimensões humanas e, assim, os ensemble shows promovem duas consequências nos temas
abordados pelas séries norte-americanas. A primeira delas é que a atenção de roteiristas e
espectadores passa a ser sobre as instituições e seu modus operandi, como por exemplo, o
trabalho das delegacias de polícia ou da equipe médica de um hospital, e não mais sobre uma
personalidade fora do comum ou dotada de poderes. A segunda é o surgimento de personagens
dotados de fraquezas e contradições. “Esse modo mimético baixo, que se identifica rapidamente
com o realismo, permite que cada um de nós se reconheça neste ou naquele personagem e que
imagine suas relações à imagem de nossa família” (JOST, 2012, p. 38).
Aos poucos, o público passa a acompanhar a série que recebe oito prêmios Emmy em
1981, recorde batido apenas por The West Wing (NBC, 1999-2006) em 2000. Hill Street Blues
atrai um público majoritariamente adulto, dos 18 aos 49 anos, e começa a ser imitada, colocando
a década de 1980 como símbolo das séries realistas (CARLOS, 2006). Após Hill Street Blues,
outras produções ganham esse título de “dramas de qualidade” como Cagney & Lacey (CBS,
1981-1988), St. Elsewhere (NBC, 1982-1988), Moonlighting (A Gata e o Rato; ABC, 1985-
1989) e Thirtysomething (ABC, 1987-1991).
Assim que os produtores percebem que o sucesso dessas séries decorria de suas
inovações (especialmente narrativas), as redes iniciam uma corrida por novidades, o que leva à
participação de cineastas na produção de TV – caso de Steven Spielberg, Robert Altmann,
Michael Mann e, principalmente, David Lynch. Junto de Mark Frost, roteirista de Hill Street
Blues, Lynch apresenta Twin Peaks (ABC, 1990-1991; Showtime, 2017)24 e o mistério sobre
quem matou Laura Palmer. Segundo Carlos (2006, p. 31), “...a série de Lynch/Frost soube
aproveitar de fórmulas e limites do formato para levar às telas de TV um universo instigante,
repleto de anormalidades, de perversões e baixos instintos mal dominados”.
Após algumas ousadias narrativas da década de 1980, a década de 1990 é marcada por
apresentar um novo momento das narrativas seriadas ficcionais televisivas, caracterizado pelos
os personagens difíceis e pela complexidade25. Em seu livro Homens difíceis (2015), Brett
24
Após a criação e exibição das duas primeiras temporadas de Twin Peaks pelo canal ABC, os criadores e
produtores David Lynch e Mark Frost criaram uma nova temporada para a história com o nome Twin Peaks: The
Return, veiculada pelo Showtime e posteriormente pela Netflix.
25
Jason Mittell é autor do livro Complex TV (2015), em que defende a complexidade narrativa como o termo
definidor das séries de qualidade a partir dos anos 1990 até hoje. No entanto, ele salienta que esse termo já era
conhecido anteriormente e propõe uma série de características para renová-lo, além de apontar que rotular uma
série como “complexa” indica julgamento de valor, assim como termos como “convencional”, “primitivo” ou
“clássico”. “Complexidade e valor não se implicam mutuamente” (MITTELL, 2012, p. 31).
52
Martin dá destaque para personagens populares presentes em séries das décadas de 1990 e 2000
que encantam as audiências, caso de Tony Soprano, protagonista da série The Sopranos
(Família Soprano; HBO, 1999-2007) e Don Draper, de Mad Men (AMC, 2007-2015). Para
Brett Martin (2015), a ideia de trabalhar personagens que lutam para aprisionar ou para liberar
seu lado mais selvagem sempre foi atrativa para a dramaturgia norte-americana. Por isso, o
faroeste, os gângsteres e detetives particulares solitários sempre foram temas de produções não
só televisivas, mas também cinematográficas, como Chinatown (1974) e The Godfather (O
Poderoso Chefão, 1972).
É, portanto, a partir da década de 1990 que esses personagens controversos passam a
ganhar o protagonismo das narrativas. Se na literatura o anti-herói já havia sido explorado por
diversos autores, a narrativa ficcional passa a explorar o caráter e as ações desse protagonista
com mais intensidade. Para tentar entender o porquê desses personagens conquistarem as
audiências, Brett Martin (2015) descreve o clima cultural após os anos 2000 nos Estados
Unidos, um país rachado entre democratas e republicanos após a eleição daquele ano que
assistiu à duas guerras, viu a morte de Osama Bin Laden e assistiu à exposição de escândalos
de tortura. O perfil de redes como HBO, FX e AMC, segundo o autor, era constituído por
cidadãos liberais, instruídos e de estados pró-democratas. No entanto, essa geração de séries
que abordam temas controversos mostrou a esse público um estado republicano humanizado,
repleto de policiais, bombeiros, mórmons e eleitores de Nixon como Don Draper.
Para Brett Martin (2015, pos. 1600-1608), The Sopranos conseguiu criar um subúrbio
norte-americano inspirado em romances de Richard Yates e Joseph Heller para apresentar o
protagonista Tony Soprano, o mafioso em terapia, repleto de contradições e buscando equilíbrio
entre a crueldade e o remorso. Mittell (2015, pos. 1608) caracteriza Tony como um híbrido
“muito moderno e passível de ser narrado: um sujeito velha guarda – bronco, corporal, capaz
de conseguir o que quisesse; uma fantasia sedutora ainda que desconfortável tanto para homens
como para mulheres – num mundo pós-feminista”. Soprano inspirou outros personagens tão
complexos quanto ele, como Tommy Gavin, de Rescue Me (FX, 2004-2011), Vic Mackey, de
The Shield (FX, 2002-2008), Don Draper, de Mad Men e Walter White, de Breaking Bad
(AMC, 2008-2013).
acontecida com os homens de ficção que povoavam o lado certinho das coisas
no mundo de Família Soprano – homens que eram atraídos para a chama que
Tony representava, com resultados consistentemente desastrosos [...] É a
mesma coisa que acontece com os telespectadores para quem uma existência
de assassinatos, usurpação e experiências sexuais com quem e o que se quiser
exerce um fascínio inegável, ainda que repleto de conflitos (MARTIN, 2015,
pos. 1683-1689).
Mittell (2012) aponta ainda que essa complexidade já está suficientemente difundida e
popularizada nas séries de televisão a partir dos anos 1990, embora não tenha tomado o lugar
das sitcoms e dos dramas convencionais. Ele ressalta que características de narrativas
complexas podem ser encontradas a partir dos “dramas de qualidade” da década de 1980 e até
em soap operas, como Dallas – as múltiplas linhas narrativas, os personagens com histórias
próprias etc –, mas de outra forma.
Diferente das novelas, essas séries [Hill Street Blues, St. Elsewhere, Cheers]
veiculadas no horário nobre não adotavam uniformemente a prática de adiar o
desfecho narrativo, já que normalmente tais programas apresentavam tramas
episódicas combinadas a arcos narrativos multiepisódicos e dramas contínuos
de relacionamento. Estes primeiros programas tendiam a atrelar estórias
episódicas e seriadas a regras genéricas típicas – estórias de relacionamento
atravessavam episódios, como nas novelas, mas nos casos policial e médico
normalmente a ligação se fazia dentro de um episódio ou de forma seriada,
dividido em duas partes. Assim, diferente das novelas, episódios isolados
eram mais diferenciados em sua identidade e representavam mais do que
apenas um passo numa jornada narrativa mais ampla (MITTELL, 2012, p. 37).
Narrativas seriadas ficcionais dos anos 1990, como The X-Files (Arquivo X; FOX, 1993-
2002 e 2016-2018), são exemplos de como a interação dos arcos episódicos e seriais se
equilibra, de maneira a aumentar a curiosidade do espectador – os episódios sempre traziam um
“mistério ou monstro da semana” e a continuação das conspirações do governo e imbricações
da relação entre os personagens Mulder e Scully. Para Carlos (2006, p. 35), o parentesco dessas
produções televisivas com a literatura possibilita “a seus autores desdobrar, recuar, multiplicar,
replicar linhas narrativas, personagens e características e, desse modo, alcançar o tal segredo da
complexidade”.
A telenovela, considerada por muitos estudiosos da TV o gênero de excelência de
produtos brasileiros, é entendida como uma narrativa complexa devido à sua estrutura.
Conforme Pallottini (2012, p. 187), sua concepção aberta faz com que seja uma narrativa mais
imprevisível e, por conseguinte, mais elaborada, “enfocando grande quantidade de assuntos, de
26
“At its most basic level, narrative complexity redefines episodic forms under the influence of serial narration
— not necessarily a complete merger of episodic and serial forms but a shifting balance. Rejecting the need for
plot closure within every episode that typifies conventional episodic form, narrative complexity foregrounds
ongoing stories across a range of genres. Complex television employs a range of serial techniques, with the
underlying assumption that a series is a cumulative narrative that builds over time, rather than resetting back to a
steady-state equilibrium at the end of every episode. While today’s complex narratives can be markedly different
from their 20th-century predecessors, they built on numerous innovators from the 1970s forward”.
56
histórias e personagens, ela complica seus conflitos, multiplica suas ações, diversifica suas
tramas”.
Porém, essa mescla entre formatos não é a única característica presente em narrativas
complexas. Mittell (2015) atribui à complexidade narrativa das séries contemporâneas outros
pontos como a multiplicidade de linhas narrativas (que podem ser convergentes) e concepção
espaço-temporal intrincada. O primeiro ponto é notado por meio da quantidade extensa de
personagens, gêneros e de tramas narrativas presentes em uma mesma história, diferente do
modelo convencional que obedece a um formato mais linear. Já a concepção espaço-temporal
intrincada desafia a compreensão da audiência com diversos “pulos” de tempo e de espaço na
narrativa. Para Mittell, a complexidade narrativa é “uma verdadeira inovação estética única em
seu meio, um modelo singular” (MITTELL, 2012, p. 32). O público torna-se inclinado a se
envolver muito mais com programas complexos, inclusive de uma forma mais apaixonada e
comprometida, do que à programação convencional.
Elemento essencial para a complexificação das narrativas contemporâneas, o tempo
também é apresentado por Paul Booth (2011), que indica o deslocamento temporal, o uso de
recursos para a descontinuidade do tempo narrativo, como uma dimensão popular para as
narrativas seriadas televisuais complexas. De acordo com Capanema (2017, p. 579-580), Booth
defende que o uso de recursos narrativos como flashbacks (retorno ao passado), flashforwards
(cenas do futuro) e flashsides27, além de falsas memórias, causam uma “recepção esquizofrênica
por parte do público”. Essa manipulação do tempo também chama a atenção para a imersão
diegética da narrativa por parte do espectador. No início da narrativa ficcional seriada
televisual, o público geralmente era avisado quando havia a utilização de recursos como
alterações cronológicas (flaskbacks, elipses etc.). Com a evolução narrativa das séries, esses
recursos passaram a ser utilizados com mais frequência, de forma a explicar outros cenários,
temporalidades ou aprofundar as histórias de personagens, mas todos sempre marcados por
artifícios estilísticos28 (mudança de câmera, de luz ou fotografia, de som etc). Nas narrativas
27
O que Booth (2011) entende por flashsides e Mittell (2015) denomina flash-sideways significa um recurso
narrativo usado para apresentar uma nova versão para um fato ou uma realidade ou universo paralelo que
aparentemente não parece conectado ao fato ou realidade original. Como exemplo mais popular do uso de flash-
sideways está o percurso narrativo da sexta temporada de Lost (ABC, 2004-2010).
28
O estudo das formas textuais é considerado por muitos estudiosos da TV a mais negligenciada entre as análises
existentes (BUTLER, 2010; MITTELL, 2010b; BORGES, PUCCI JR, SELIGMAN, 2011; ROCHA, 2014), como
a recepção dos espectadores, a produção de programas, o fluxo televisivo, a conformação de sentidos e a
construção das narrativas ficcionais e também jornalísticas. Para realizar esse tipo de análise, os pesquisadores
colocaram em diálogo a teoria fílmica e a teoria crítica (ROCHA, 2014, p. 1086), sugerindo o estudo, portanto, do
chamado estilo televisivo. Butler (2010) inspirou-se na concepção de estilo cinematográfico de David Bordwell
para determinar sua ideia de estilo televisivo, o estudo de padrões técnicos de som e imagem que cumprem uma
57
complexas, essas estratégias são colocadas de maneira mais sutil, sem medo de chocar ou causar
confusão nos espectadores – por isso, Booth fala sobre a recepção esquizofrênica das
audiências.
Mittell exemplifica com as séries Veronica Mars (UPN, 2004-2006; The CW, 2006-
2007), Six Feet Under (A Sete Palmos; HBO, 2001-2005), Buffy, the Vampire Slayer (Buffy: a
Caça-Vampiros; The WB, 1997-2001; UPN, 2001-2003) e, especialmente, Lost (ABC, 2004-
2010). Sobre esta última, o autor destaca o uso de elementos narrativos para promover “pulos”
temporais, de forma a engajar a audiência, e a habilidade dos roteiristas em mesclar gêneros e
utilizar alegorias para que o público crie conexões emocionais sinceras com os personagens
ilhados, “tudo articulado numa estrutura narrativa elaborada, muito mais complexa do que
qualquer coisa que se tenha visto antes na televisão americana” (MITTELL, 2012, p. 50). Para
ele, as produções acima mostram “perspectivas sobre eventos que oscilam entre a subjetividade
da personagem e a realidade diegética, jogando com as fronteiras ambíguas com o objetivo de
conseguir profundidade de personagem, suspense e efeito cômico” (MITTELL, 2012, p. 46).
Ainda sobre isso, o autor ressalta que programas que utilizam narrativas complexas costumam
flertar com a desorientação temporária e com a confusão, fazendo com que os espectadores
articulem acontecimentos por meio do engajamento ativo e na assistência gradual da narrativa
(MITTELL, 2012, p. 46-48).
Henry Jenkins (2009, pos. 2336), por sua vez, oferece outro olhar para a complexidade
nas narrativas seriadas televisivas por meio da concepção da narrativa transmídia, aquela que
“desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de
maneira distinta e valiosa para o todo”. Dessa forma, a complexificação se dá a partir de uma
narrativa que ganha diversas versões e olhares em cada meio em que é veiculada – na TV, na
internet, no videogame etc.
Também debruçado sobre a criação narrativa, Jost (2012) destaca que a construção das
personagens é peça fundamental na complexificação desses produtos televisivos, especialmente
os norte-americanos. Ao analisar por que as séries dos Estados Unidos fazem tanto sucesso na
França, Jost ressalta a familiaridade dos temas abordados, que alinham as realidades norte-
americana e francesa, e a transformação do olhar sobre o herói típico das narrativas. Segundo
o autor, o herói das narrativas contemporâneas ficcionais complexas não é mais aquele da
mitologia grega, o intermediário entre deuses e homens, mas um herói em erosão e fragmentado
em diversas figuras dentro de uma mesma narrativa, o que ele chama de herói coletivo. Além
função dentro do texto da TV. Para Butler, o estilo não é apenas uma escolha técnica para decorar a narrativa, mas
escolhas que têm e dão sentido ao produto televisivo.
58
disso, Jost aponta que as barreiras que separavam herói e vilão estão borradas nessas narrativas
contemporâneas, oferecendo ao espectador personagens múltiplos e muito mais profundos e
próximos da realidade humana – realidade social, emocional e psicológica. Essa multiplicidade
de personagens e a volatilidade do caráter e de suas ações também são apontadas por Mittell
(2015) como recursos presentes nas narrativas complexas. Em resumo, portanto, esta pesquisa
identifica uma narrativa ficcional complexa quando apresenta uma mescla dos formatos
episódico e serial, trabalha tramas principais e secundárias múltiplas, explora o caráter e ações
ambíguas dos personagens e preza por uma concepção espaço-temporal intrincada, que pode
incluir múltiplas temporalidades ou deslocamentos temporais.
Todas essas facetas das narrativas ficcionais seriadas televisuais podem não ser
completamente compreendidas pelos espectadores, mas são incorporadas quase intuitivamente
ao modo de assistir das séries – especialmente no caso das produções contemporâneas
complexas que exigem uma imersão diegética ainda maior do público.
2.3.1 Narração
59
Narrar pode ser considerada uma ação que consiste no relato de um acontecimento real
ou imaginário, e é possível narrar por meio das palavras, das ações e até da música. Segundo
Marc Vernet (1995), o ato de narrar implica em duas situações. A primeira delas é que o
desenrolar da história contada deve estar plenamente à disposição de quem a conta, do seu
narrador; a segunda é que essa história precisa seguir o desenvolvimento organizado por quem
a conta e pelos modelos aos quais se adapta. Isso significa que a narração deve dar um
desenvolvimento lógico para a história que está sendo contada e deve encerrar em uma solução.
Em produções audiovisuais, essa ação pode ser exercida de diversas maneiras e por formas
distintas, não só por um personagem da história. O roteirista e o diretor também são
considerados narradores, ao imprimirem sua visão ao construir o roteiro e as cenas.
Para Campos (2009), o narrador é um recurso da narrativa que ama se disfarçar. Essa
ideia é corroborada por Pallottini (2012), ao ressaltar que o narrador, em última instância,
assume o papel onisciente daquele que tudo sabe e tudo vê sobre a narrativa. Segunda a autora,
“a narração total, o conjunto formado por áudio e vídeo (criados a partir do ponto de vista do
narrador onisciente) é o que produz, afinal, toda a história” (PALLOTTINI, 2012, p. 147). Na
narração clássica cinematográfica, segundo David Bordwell (2005, p. 285), o narrador “tende
a ser onisciente, com alto grau de comunicabilidade e tende a ser apenas moderadamente
autoconsciente”, ou seja, o narrador que sabe mais do que os personagens, esconde pouco e
quase nunca se dirige ao público. Como cronista da história contada, o narrador deve englobar
a ação, o movimento e a passagem de tempo da narrativa, podendo se integrar à história como
personagem ou tomar parte dela como observador (COMPARATO, 2016).
Sendo aquele que conta a história, o narrador é um recurso da narrativa que, “a partir de
um ponto de vista, recebe, interpreta, seleciona, organiza e, por fim, narra os pontos de foco
que selecionou” (CAMPOS, 2009, p. 47). Ainda de acordo com Campos (2009), dessa maneira,
o narrador pode assumir seis pontos de vista da história que está contando: acima da história,
do lado do personagem principal, do lado do personagem secundário, dentro do personagem
principal, dentro do personagem secundário e voltado para dentro dele mesmo.
No primeiro caso, acima da história, o narrador assume a postura onisciente e
onipresente, aquele que sabe tudo sobre os personagens e que transita entre todos eles. Quando
está do lado do personagem, o narrador não tem acesso a toda história e não consegue
estabelecer, a priori, todos os fios da narrativa. Dentro do personagem, por sua vez, o narrador
conta apenas o que o personagem sabe ou percebe e mergulha na essência dessa figura,
causando identificação entre narrador, personagem e espectador. Por fim, dentro dele mesmo,
o narrador conta o que sabe e percebe da história sem a visão de um personagem, promovendo
60
identificação apenas entre narrador e espectador. Para Campos (2009, p. 62), quando o objetivo
do narrador é criar ou aumentar “simpatia, empatia ou identificação do espectador com o
personagem, ou grifar uma emoção, o narrador desce do ponto de vista de cima e vai para o
lado ou para dentro do personagem que quer focalizar”.
Ao estudar a lógica das narrativas populares, Noël Carroll (1994) notou uma
característica comum a grande parte delas, que chamou de narração erotética. Segundo ele,
cenas, situações e acontecimentos que aparecem no início das narrativas estão relacionadas a
cenas posteriores. Carroll entende que toda série, especialmente as de suspense ou horror, são
iniciadas por questões em forma de cenas e respondidas somente no fim. Para o autor, “tal
narração, que está no coração da narração popular, gera uma série de perguntas que o enredo
vai em seguida responder” (1994, p. 187). Em histórias de mistério, por exemplo, Carroll
lembra que o assassinato sempre gera uma questão – quem cometeu o assassinato? –, resposta
que será dada ao espectador por meio de pistas ou da perspicácia do detetive. Já em um thriller
de espionagem, deseja-se saber quem executou o roubo ou por quais razões. Carroll (1994, p.
188) afirma também que nas ficções populares não só os grandes arcos do enredo são ligados
pela narração erotética, mas ela também “tende a fornecer o elo retórico para unidades de
narração menores”.
Para exemplificar como a narração erotética funciona, Mittell (2015) analisa o piloto da
série Veronica Mars, que utiliza o voice-over29 em primeira pessoa para estabelecer uma série
de perguntas (e, automaticamente, respostas) que dirigem não só aquele episódio, mas toda a
temporada. Esse recurso é, segundo o autor, “um aspecto vital da estrutura narrativa do
programa, uma dimensão temática que se repete ao longo do episódio” (MITTELL, 2015, p.
75). Mittell destaca ainda que a mescla do voice-over com a narração erotética serve para
direcionar o público sobre como assistir à série. Sobre um dos episódios da primeira temporada,
Mittell descreve que a personagem-título Veronica faz diversos questionamentos sobre o
assassinato de Lily Kane, a relação de sua mãe com Jane Kane e por que seu pai tem mentido
para ela. Ao final, ela afirma ao público que descobrirá a verdade.
29
Narração realizada em off.
61
satisfatórias, pelo menos enquanto a rede permitir que a série continue no ar30
(MITTEL, 2015, p. 82-83).
Sobre o tempo nas narrativas audiovisuais, autores como Marcel Martin (2003) e André
Gaudreault (2009) ponderam que elas lidam com mais de uma temporalidade, pois há sempre
três camadas de tempo: um relativo à diegese ou da ação, isto é, da história que está sendo
contada; o da projeção, correspondente à duração do produto audiovisual (que difere, claro, da
temporalidade da diegese); e o tempo da percepção do público, que é arbitrário e subjetivo
porque depende de cada espectador. Para Gaudreault (2009, p. 139), como a narrativa
cinematográfica é considerada uma dupla narrativa, pois trabalha imagens e falas, sua ordem
temporal é complexa, combinando o que os atores representam visualmente e o que o narrador
relata verbalmente. Com o objetivo de trabalhar essa noção complexa, segundo Marcel Martin
(2003), de posse da câmera, o cineasta passa a dominar o tempo, podendo retardá-lo ou acelerá-
lo, assim como invertê-lo ou paralisá-lo durante a narrativa.
Marcel Martin (2003) explica que o conceito de tempo nas narrativas audiovisuais
implica a noção de data e de duração. A data pode ser indicada por meio de letreiros colocados
durante o vídeo, pela presença de calendários, pelo aparecimento de eventos sociais ou até
mesmo pela estação do ano ou maneira de vestir dos personagens. A duração, no entanto, exige
um processo mais sutil, podendo indicar o escoamento do tempo, ou seja, o tempo que passa,
ou uma duração indeterminada, em que o diretor não explicita o tempo transcorrido da narrativa.
O autor ressalta ainda que o tempo tem como função, dentre outras, a de estruturar a narrativa
cinematográfica, enquanto o espaço funciona como um “quadro de referência, secundário e
anexo” (MARTIN, 2003, p. 221). Porém, mesmo assim, o espaço e o tempo acabam por se
interligar nas narrativas e “se encontram intimamente ligados num continuum” (MARTIN,
30The narrative logic of this sequence sets up the key season-long story arcs, establishes the program’s erotetic narration, and
guarantees that these arcs will not dangle unanswered. As Veronica’s final monologue asserts, “I promise this: I will find out
what really happened, and I will bring this family back together again,” a statement that serves also to assure viewers that these
questions do have answers that will be revealed in due time and will deliver emotionally satisfying resolutions, at least as long
as the network allows the series to continue to air.
62
2003, p. 220). Mittell (2012, 2015) aponta que a complexidade narrativa das séries
contemporâneas caracteriza-se também pela presença de temporalidades e dimensões paralelas
durante a mesma trama, o que configura uma concepção espaço-temporal não convencional e
intrincada. Twin Peaks, por exemplo, é um dos primeiros modelos desse tipo de concepção na
TV ao unir universos paralelos, mundo onírico/sobrenatural e viagens no tempo junto com o
“tempo real” da diegese.
O tempo é empregado de diversas formas para a construção narrativa audiovisual. O
“tempo condensado”, explica Marcel Martin (2003), é o mais utilizado na programação textual
do cinema pois é necessário quase sempre espremer os acontecimentos da história para produzir
um longa-metragem. Já o “tempo respeitado” é escolhido quando o desenrolar cronológico da
narrativa é o mesmo da realidade, como ações de um produto audiovisual que apresentam
duração idêntica se ocorridas no real. “O tempo abolido”, por sua vez, aposta em concepções
audaciosas da temporalidade, podendo explorar múltiplas temporalidades (ou dimensões de
tempo) em uma mesma narrativa ou investir na coexistência de realidades diferentes em um
mesmo espaço. Finalmente, o “tempo revertido” é baseado no retorno ao passado, técnica
bastante utilizada na literatura.
Com o uso de flashbacks, o tempo revertido costuma, de acordo com Marcel Martin
(2003), representar razões estéticas, dramáticas, psicológicas ou sociais na narrativa. Já para
Bordwell (2005), a versão clássica do flashback é sempre reveladora, pois seu uso costuma
evidenciar o que os personagens sabem. Por ser um recurso que interrompe a ordem cronológica
da narrativa, deve ser utilizado com cuidado, pois pode confundir a audiência. Para Campos
(2009), uma trama que não explica devidamente que está inserindo um flashback pode fazer
com que o espectador se disperse e desista da narrativa.
Lost é um dos mais frequentes exemplos usados por estudiosos para representação do uso
complexo de flashbacks e flashforwards, além de flash-sideways, em sua estrutura narrativa.
No último episódio da terceira temporada (“Through the looking glass”), o espectador acredita
estar acompanhando um flashback da história do personagem Jack até que, na última cena,
descobre-se que todo o capítulo se trata de um flashforward. Para Mittell (2010a, p. 97), essa
estratégia temporal complexa funciona por conta das normas intrínsecas da série que já estão
ativadas em nossas mentes, “estabelecidas ao longo de dezenas de episódios ao longo de três
temporadas, destacando o importante papel que a memória formal possui dentro da narrativa
serial”31.
Marcel Martin (2003) ressalta que alguns aspectos técnicos são usuais para denunciar o
flashback. Esse recurso pode ser acionado por meio do travelling para frente, que indica a
passagem para o interior do personagem, e pela fusão, em que imagens do presente se fundem
com imagens do passado. Nesse último caso, é comum que as narrativas escolham gatilhos para
desencadear o uso do flashback, como quando os personagens entram em contato com espelhos,
retratos, fotografias ou objetos que tenham alguma relação com sua história. Essa transição
visual geralmente é acompanhada por uma trilha sonora, seja uma música, uma multiplicação
de sons ou uma distorção do som. Algumas dessas mesmas técnicas visuais podem ser aplicadas
à introdução do flashforward.
“[...] established over dozens of episodes throughout three seasons, highlighting the important role that formal
31
Brasil, as telenovelas são o exemplo mais clássico. Para acompanhar, o espectador precisa estar
a par de todos os episódios, pois cada capítulo insere novas informações pertinentes à trama.
Para estudiosos como Newcomb, Feuer e Mittell, a serialização é o recurso central da
produção televisiva, e a mescla desses dois formatos é uma das principais características que
fazem da ficção na televisão o que ela é. Para Newcomb e Feuer (apud CAPANEMA, 2016), o
ideal é que as narrativas televisivas sejam capazes de unir as macroestruturas e as
microestruturas em um só produto. Newcomb chama essa união de narrativa cumulativa,
promovendo o equilíbrio perfeito entre “o formato episódico autossuficiente e o formato
capitular contínuo” (CAPANEMA, 2017, p. 40).
Para Mittell (2012; 2015), essa mescla é razão pela qual podemos chamar as narrativas
seriadas contemporâneas de complexas, uma vez que “recusando a necessidade de fechamento
da trama em cada episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade
narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por diversos gêneros” (2012, p. 36).
Isso significa que os capítulos de uma temporada buscam a resolução do conflito central
(formato serial), mas também avançam e finalizam arcos menores que ajudam na coerência da
trama maior (formato episódico).
Esse tipo de narrativa mista é explorado nos ensemble shows, também já citado, geração
de séries que deixou de focar em apenas um protagonista e passou a trabalhar diversos
personagens principais, cada um com sua própria trama e relacionamentos. Ainda sobre a
complexidade nas narrativas contemporâneas, Mittell (2015) explica que essa multiplicidade
de tramas possibilita que as histórias não só deem voz a diversas versões de um enredo, mas
também exercitem a construção dos personagens, fazendo com que múltiplas facetas de ação e
de caráter sejam exploradas, assim como a figura do herói coletivo (JOST, 2012). Em geral,
essas tramas se colidem e coincidem, mas há casos em que as histórias (em teoria) paralelas
sequer chegam a encontrar com as tramas principais e ficam sem resolução clara, despertando
a imaginação do espectador. A série Game of Thrones (HBO, 2011-presente) é um exemplo de
como uma narrativa pode ser construída a partir de diversos protagonistas, cada qual com sua
trama e inter-relações.
2.3.4 Ganchos
Para entender a importância do gancho narrativo, Van Ede (2015) explica que há três
tipos de intervalos comerciais que são respeitados na narrativa seriada ficcional televisiva: os
intervalos dentro dos episódios, os intervalos entre episódios e os intervalos entre temporadas.
65
Os intervalos entre episódios podem ser diários, semanais, quinzenais ou até mensais e, segundo
a autora, “são ontologicamente vinculados à forma serial e sua narrativa [...] A presença desses
intervalos temporais entre episódios automaticamente significa que narrativas televisivas, em
oposição aos filmes, não são feitas de uma unidade narrativa única32” (VAN EDE, 2015, p. 10-
11). Os intervalos entre temporadas, por sua vez, podem durar semanas, meses ou até anos.
Também conhecido como hiato, esse tipo de intervalo encaixa-se especialmente na organização
da programação televisiva norte-americana, que costuma acompanhar as férias de inverno, por
exemplo (VAN EDE, 2015, p. 12). Por fim, os intervalos dentro dos episódios são reconhecidos
como as inserções comerciais, produtos essenciais para a sustentação econômica das redes
televisivas. Esses intervalos costumam ser decisivos para a estruturação das narrativas seriadas,
pois precisam ter sua duração respeitada de maneira rígida.
A partir desses três tipos de intervalos presentes na narrativa seriada televisual, os
ganchos narrativos são recursos comumente utilizados pelos roteiristas para garantir o suspense,
a emoção e a curiosidade do espectador, fazendo com que ele continue acompanhando a
história. Para que a narrativa seja bem-sucedida, é de responsabilidade dos roteiristas apostar
em ganchos para que o espectador retorne à narrativa após os comerciais que interrompem o
episódio, assim como após os dias que separam um episódio de outro e depois da longa parada
que determina o fim da temporada. Nas narrativas seriadas tradicionais, isto é, distribuídas
dentro da programação televisiva, um episódio tem início com uma breve contextualização do
que aconteceu no episódio anterior (MACHADO, 2000), como os resumos “no capítulo
anterior”, seguido de uma introdução à situação inicial e de seu desenvolvimento, da
complicação, do clímax e da conclusão. Em geral, há ao menos dois intervalos comerciais que
interrompem a fruição do episódio, o que exige que roteiristas encaixem ganchos de tensão
menos fortes antes dos breaks, de forma que o espectador retorne à narrativa. Ao fim do
capítulo, o recurso do gancho é utilizado mais uma vez, agora de forma mais intensa.
Nas telenovelas, Pallottini (2012, p. 49) aponta que o “gancho está presente, em menor
escala, ao fim de cada bloco, e costuma ser maior no fim do capítulo levado ao ar no último dia
útil de cada semana”. Como, ainda segundo a autora, o que importa ao espectador de produtos
televisivos é o amanhã, se faz necessário que o público acredite no amanhã, ao menos o da
novela. “É para isso que se cria o gancho, é para isso que se criaram todas as velhíssimas
técnicas de despertar suspense, expectativa” (PALLOTTINI, 2012, p. 105). Para referir-se aos
32
“[...] gaps between installments are ontologically tied to the serial form and its narrative [...] Having these
temporal spaces between episodes automatically means that television serials, as opposed to films, are not made
up of a single narrative unit”.
66
ganchos colocados antes da inserção de blocos publicitárias, esta pesquisa utiliza o termo
“ganchos de menor tensão”, pois, como Machado (2000) e Pallottini (2012) afirmam, esse
recurso costuma ter menos intensidade do que quando é inserido no fim de um episódio ou ao
final de uma temporada.
Maria Cristina Castilho Costa (2000, p. 58) explica que o gancho, ao produzir
curiosidade e avivar o desejo do espectador, “exige a continuidade e trabalha no sentido da
constância e da infinitude do narrar”. A autora continua ao emendar que a promessa de
satisfação do espectador com a resolução de um conflito, portanto, faz com que a fragmentação
natural das narrativas seriadas ficcionais televisivas desapareça. Enquanto a narrativa faz com
que a audiência mergulhe no universo diegético, o gancho provoca a desestabilização desse
mergulho na narrativa, fazendo com que o público retorne ao mundo real, mas que se mantenha
interessado no que pode acontecer.
Há uma dialética no uso desse recurso: a ação só pode ser suspensa, gerando
ansiedade, angústia ou desejo, quando todos os elementos da ação estão dados
e o seu desfecho pode ser previsto e esperado. Assim, o gancho resulta
justamente da previsibilidade e não do desejo de desvio, ruptura ou inovação.
Nesse sentido, ele é tão mais eficiente quanto mais conhecida é a trama e
quanto mais os ouvintes são informados sobre o seu desenrolar. Ou seja,
quanto mais previsível for a narrativa, mais o gancho se transforma em
elemento de captação da atenção do ouvinte (COSTA, 2000, p. 61).
Umberto Eco (1994) reconhece o gancho como elemento que obriga o leitor ou
espectador a refletir sobre a narrativa proposta e também, de certa forma, sobre a própria vida.
Na obra Seis passeios pelos bosques da ficção, Eco defende que o ritmo da narrativa diminui
por meio do uso de suspenses ou passeios inferenciais, e a cada diminuição, o autor convida o
público a continuar a narrativa proposta. Eco (1994, p. 58) também reconhece no gancho um
“aspecto emocional necessário da leitura que coloca em jogo esperanças e medos, bem como a
pensão resultantes de nossa identificação com o destino dos personagens”, explicitando que o
gancho tem papel importante como evocador da memória do leitor ou espectador. Nesse
sentido, Costa (2000) argumenta que esse recurso narrativo pode ser ligado a temporalidades,
desejo, memória e projeção.
Pallottini (2012) lembra que o gancho, ainda que seja um elemento de expectativa,
funciona diferente na literatura, principalmente no folhetim, no romance policial e no romance
do século XIX, e em produtos como a telenovela e a radionovela. Na literatura, o leitor tem ao
seu alcance a totalidade da narrativa, enquanto que nos outros produtos, é necessário aguardar
a exibição do dia ou semana seguinte ou a chegada do jornal para acompanhar o
67
A elipse, por sua vez, é um recurso muito popular para trabalhar a noção do tempo
diegético nas narrativas audiovisuais (BORDWELL, 1996; MARTIN, 2003; CAMPOS, 2009;
GERBASE, 2014; VAN EDE, 2015; COMPARATO, 2016). Para Gerbase (2014, p. 42), é um
“buraco temporal na trama”, um elemento que simboliza a passagem de tempo na história que
está sendo contada, seja de minutos, horas, dias, anos e até séculos. Para que a elipse funcione,
em geral, é preciso que ela faça sentido em relação ao que acontece antes e depois de sua
exibição, fazendo com que o espectador possa presumir o que ocorrera durante esse buraco.
Um exemplo clássico (e sofisticado) de seu emprego está no filme 2001, Uma Odisseia no
Espaço (1968), do diretor Stanley Kubrick, em que um macaco lança um osso para cima,
imagem seguida pelo aparecimento de uma nave espacial – essa elipse marca a passagem da
idade da pedra para o século XXI.
33
“Cliffhangers at the end of a season often entail indeterminate story elements that can lead to more severe
consequences than the ones at the end of an episode, because there is a larger gap between seasons than between
episodes”.
68
É comum que a elipse seja marcada pela sucessão rápida de imagens, cobertas por trilha
sonora, ou por paisagens paradisíacas durante o dia e a noite (progressão popular nas
telenovelas que se passam no Rio de Janeiro), ou por vagões de metrô ou ônibus sendo tomados
pelo público e depois deixados pelos passageiros. Contudo, por ser uma omissão da história
(CAMPOS, 2009) utilizada massivamente nas narrativas televisivas, a elipse tornou-se um
recurso compreendido com clareza pelo espectador. Para Comparato (2016, p. 154), visto que
a audiência já se habituou com sua utilização, criou-se uma espécie de cumplicidade entre
produto e público, “de que forma que não é necessário que essas indicações sejam tão claras ou
evidentes. A passagem de tempo é incorporada nos diálogos e nos acontecimentos”.
Marcel Martin (2003), no entanto, aponta que a elipse vai além da necessidade primeira
de suprimir tempos aparentemente desnecessários da trama, pois também pode ser empregado
como efeito dramático ou significação simbólica (MARTIN, 2003, p. 77). A fim de entender
essas caracterizações, o autor tipifica as elipses como “estruturais” e “de conteúdo”. As
estruturais são motivadas pela construção do enredo, por ações dramáticas, e são divididas por
ele em objetivas e subjetivas. Dentre as elipses objetivas, Martin (2003, p. 78) explica que “mais
comumente […] tem por objetivo dissimular um instante decisivo da ação para suscitar no
espectador um sentimento de espera ansiosa, o chamado suspense”. Além de suspender um
instante decisivo da ação, outra forma da elipse objetiva aparecer é como sustentação dramática,
de maneira a quebrar ou intensificar o tom dramático da ação. Já as elipses subjetivas
apresentam uma função simbólica, emergindo significações mais profundas à ação. Esse tipo
costuma focar na visão, audição ou nas emoções de um dos personagens, garantindo
profundidade e interpretações para o sentido de tal cena – caso de personagens que,
apaixonados, ignoram o caos em que vivem.
Por sua vez, as elipses de conteúdo são motivadas por razões de censura social, de forma
a disfarçar acontecimentos consideradas tabu ou contra os “bons costumes”, como cenas de
violência, homoafetividade ou sexo. Ações, gestos e atitudes podem ser ocultados por completo
ou em parte, substituídos por closes em personagens, em objetos presentes na cena ou
construídos a partir de sombras ou reflexos. Para Marcel Martin (2003, p. 85), a vocação da
elipse “não é tanto suprimir os tempos fracos e os momentos vazios quanto sugerir o sólido e o
pleno, deixando fora de cena o que a mente do espectador pode suprir sem dificuldade”.
Portanto, podemos afirmar que as elipses não são apenas pulos temporais, mas também podem
69
Essa afirmação ganha força quando a elipse é conectada a ganchos, ainda que essa seja
uma estratégia pouco utilizada. Gerbase (2014) lembra de ganchos mais sofisticados presentes
em narrativas complexas da geração mais atual das séries contemporâneas, como nas narrativas
seriadas ficcionais televisivas Downton Abbey (ITV, 2010-2015) e Homeland (Showtime,
2011-presente). No primeiro caso, ao final da terceira temporada, o personagem Matthew sofre
grave acidente nos últimos minutos da narrativa; contudo, a quarta temporada tem início meses
depois, quando a família já seguia com suas vidas após o baque de sua morte. Em Homeland,
no final de sua segunda temporada, o ex-fuzileiro Nicholas Brody, que pode (ou não) ser um
terrorista disfarçado, deve concorrer a uma vaga de deputado no Congresso. A quarta temporada
inicia, contudo, com Brody já estabelecido em seu gabinete, sem que o espectador tenha
conhecimento de como fora o processo eleitoral. Para Gerbase (2014, p. 46), “uma elipse desse
tipo, ao solicitar a imaginação criativa do espectador, faz com que ele se sinta ‘inteligente’, o
que é uma estratégia eficaz para fidelizá-lo à trama”.
2.3.5 Recapitulações
34
“Obviamente, las elipsis dejan lagunas que pueden ser permanentes o temporales, enfocadas o difusas,
destacadas o suprimidas. Las elipsis, frecuentemente, funcionan en contra de la dilación – se salta sobre el tiempo
para llegar al siguiente momento importante –, y así una narración altamente elíptica podría requerir complicadas
líneas argumentales para retrasar la acción. Si el período omitido contiene información significativa, la elipsis
puede crear una narración supresiva que configure nuestra actividad de formación de hipótesis”.
70
35
“...recaps in serial narrative television have to accommodate new or sporadic viewers, in addition to regular
viewers”.
71
Mittell (2010a) defende ainda que as vinhetas podem ser estratégias interessantes para
acionar a memória do público, compostas apenas pelo nome da série (caso de Lost e Breaking
Bad) ou por uma sequência de cenas já transmitidas (Friends). Sobre vinhetas, costumeiramente
há três tipos de inserções: a de abertura, descritas anteriores, as de passagem e as de
encerramento. As vinhetas de passagem, ou conhecidas por “estamos apresentando” e
“voltamos a apresentar”, são inseridas para segmentar o episódio em blocos e, portanto, são
consequências do fluxo televisivo. Elas estão lá para lembrar que o espectador deve retornar à
narrativa após o intervalo comercial ou pode se manter no canal para continuar a narrativa. Já
a vinheta de encerramento, em que são descritos os créditos de produção e execução das séries,
assim como a vinheta de abertura, funciona para separar a produção da programação televisiva.
Para Jaqueline Schiavoni (2015, p. 85), o uso da vinheta como evento estético tem como missão
o encantamento, não a tensão, “recondicionando o sujeito diante da tela, dando-lhe condições
para que, ao retornar desse momento de suspensão, possa enfrentar novamente a
sequencialidade do fluxo”.
As recapitulações diegéticas, no entanto, apostam em gatilhos mais sutis para acionar a
memória da audiência. Para que o público compreenda a narrativa e mantenha na memória
personagens e ações importantes da trama, autores utilizam diálogos quase didáticos, em que
personagens relembram acontecimentos e repetem as ligações e conclusões da história
(MITTELL, 2010a). A utilização de sugestões visuais como objetos específicos e cenários
também é popular, mas podem depender de um olhar mais apurado do espectador – um exemplo
é a trompa azul que liga os personagens Ted e Robin na comédia How I Met Your Mother (CBS,
2005-2014). A técnica de voice-over, recurso encarado como preguiçoso por parte dos
roteiristas por dar as informações facilmente ao espectador, também pode ser usada como uma
recapitulação diegética em narrativas complexas. Em primeira pessoa, caso da série Veronica
Mars, a audiência acompanha as deduções e impressões da detetive e personagem principal. Já
nas séries The Twilight Zone e Pushing Daisies (Um Toque de Vida; ABC, 2007-2009), o voice-
over funciona como um narrador em terceira pessoa, onisciente. Por fim, a sitcom Arrested
Development (Caindo na Real; FOX, 2003-2006; Netflix, 2013-presente) recorre a essa técnica
para preencher buracos da narrativa, fazendo com que a história avance.
O flashback, como já indicado no item 2.3.2, é o retorno ao passado. Na narrativa
audiovisual, pode ser usado para repetir alguma cena já exibida, com o objetivo de ativar a
memória do público, ou para apresentar uma informação do passado interessante para a história
(MARTIN, 2003; BORDWELL, 2005; CAMPOS, 2009; GAUDREAULT, 2009; MITTELL,
2010a; VAN EDE, 2015; COMPARATO, 2016). Em geral, liga-se à narrativa por meio do
72
narrador ou de um personagem que tem uma lembrança ou faz uma associação de ideias.
Mittell (2010a) e Comparato (2016) atribuem tipificações para o flashback como
elemento agregador do universo diegético. O flashback evocado (COMPARATO, 2016) ou o
subjetivo em primeira pessoa (MITTELL, 2010a) é aquele em que um personagem recorda o
passado para explicar o presente; o tipo solicitado é usado quando um personagem percebe um
acontecimento da história ao resgatar o passado, por exemplo, um crime; o tipo atípico mescla
o evocado e o solicitado, utilizado geralmente como elemento surpresa; e o flashback dentro do
flashback, técnica mais ousada e complexa, pois pode promover confusão no espectador. Há
ainda o flashback usado como replay, muito comum nas transmissões de realities shows para
que o público acompanhe a cronologia dos acontecimentos.
No próximo capítulo, a pesquisa introduz a era do on-demand, em que plataformas de
conteúdo como a Netflix passam a disputar a atenção da audiência com a criação de narrativas
seriadas de qualidade e, no caso do serviço em questão, lançadas de uma só vez e produzidas
para que o público assista aos episódios um atrás do outro.
73
12), as novas “ferramentas de distribuição, circulação e exibição não estão apenas mudando as
maneiras pelas quais as indústrias de mídia buscam criar novas formas de lucratividade. Elas
também alteram a própria natureza da vida cotidiana36”. Atualmente, é comum ver pessoas
assistindo a produtos audiovisuais em seus celulares durante o trajeto de ônibus ou metrô para
o trabalho, ou famílias que se sentam em um mesmo ambiente, mas cada integrante acompanha
seu programa favorito em um dispositivo diferente, seja no celular, no computador ou na
televisão, como se vivessem separados e em seus mundos individualizados. Ou então, a prática
de assistir à TV e compartilhar comentários nas redes sociais com o smartphone, promovendo
a assistência multitela, uma geração que experimenta o audiovisual simultaneamente a partir de
dois ou até três dispositivos. Ainda segundo Tryon (2013), essas formas múltiplas de se
produzir, acessar e distribuir produções audiovisuais impulsiona o que ele chama de uma cultura
sob demanda (on-demand culture), marcada pela individualização do consumidor, pela
mobilidade de plataformas e pela ubiquidade de conteúdo.
[...] distribuição digital levanta novas questões sobre como, quando e onde
acessamos os filmes e o que esse modelo significa para a cultura do
entretenimento. A mídia digital parece prometer que os textos de mídia
circulam mais rápido, mais barato e mais amplamente do que nunca, levando
a relatos utópicos que imaginam o potencial de programas de televisão ou
filmes estarem disponíveis em qualquer lugar37 (TRYON, 2013, p. 3).
Ainda de acordo com Tryon (2013), essas novas formas de consumo individualizado e
móvel são constantemente reforçadas pela própria cultura de entretenimento
[...] não apenas pelas próprias tecnologias, mas também em anúncios para uma
ampla gama de dispositivos móveis e ferramentas de entrega digital. Esses
anúncios, que muitas vezes mostram consumidores individuais liberados das
restrições de tempo e espaço, não apenas vendem os produtos representados,
mas também modos específicos de consumo liberado38 (TRYON, 2013, p. 12).
36
“[...] these new distribution, circulation, and exhibition tools are not merely changing the ways in which the
media industries seek to create new forms of profitability. They also alter the very nature of everyday life”.
37
“[...] digital distribution raises new questions about how, when, and where we access movies and what this
model means for entertainment culture. Digital media seem to promise that media texts circulate faster, more
cheaply, and more broadly than ever before, leading to utopian accounts that imagine the potential for television
shows or movies to be available anywhere”.
38
“[...] not just through the technologies themselves but also in advertisements for a wide range of mobile devices
and digital delivery tools. These advertisements, which often show individual consumers liberated from the
constraints of time and space, not only sell the products depicted but also specific modes of liberated consumption”.
75
Mesmo no Brasil, em que a conexão via banda larga ainda deixa a desejar em muitas
cidades, a pesquisa PNAD Contínua TIC 201739 (PNAD, 2018) revela que o percentual de
domicílios com acesso à internet subiu de 69,3% em 2016 para 74,9% em 2017, um aumento
de 5,6 pontos percentuais. Sobre o uso da internet no celular, o percentual aumentou de 94,6%
para 97% no mesmo período. A respeito da banda larga, por sua vez, o percentual dos que
utilizam o serviço móvel passou de 77,3% para 78,5%, enquanto a banda larga fixa subiu de
71,4% para 76,5%. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta ainda que,
em 2017, a TV passou a ser usada por 16,1% dos domicílios para a internet, avanço considerável
na comparação com 2016, quando essa porção era de 11,7%. No total, são 8,5 milhões de
domicílios que utilizam a televisão como um dispositivo de conexão à internet. Ainda segundo
a pesquisa, 81,8% dos que acessaram a internet em 2017 disseram que uma das finalidades foi
para assistir a vídeos, prática mais comum do que o uso do e-mail, apontada por 66% dos
entrevistados. Todos esses dados mostram que, embora o Brasil apresente problemas em relação
à conectividade quando comparado a outros países, a população busca estar cada vez mais
conectada e no controle do que deseja ter acesso, especialmente quando se trata de
entretenimento.
Grande impulsionador da cultura on-demand é a tecnologia streaming. A transmissão
instantânea de dados digitais, áudio e/ou vídeo, por meio da internet desenvolve-se a partir da
década de 1990, mas demora a popularizar-se, uma vez que depende da velocidade das
conexões com a web para realizar uma transmissão de qualidade. Como os dados ficam
armazenados temporariamente no computador e, então, são exibidos ao usuário em velocidade
quase instantânea, até os anos 2000, devido à baixa conexão de internet, assistir a vídeos ou
ouvir músicas por essa tecnologia exigia muita paciência do usuário. Atualmente, há duas
modalidades de streaming disponíveis – o streaming on-demand (sob demanda), em que a
produção fica salva em um servidor e pode ser acessada por meio de um aplicativo ou site, e o
live streaming, que é a transmissão em tempo real de um produto.
39
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-
continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais Acesso em 10 jan. 2019.
76
A primeira transmissão via tecnologia streaming foi realizada pela emissora esportiva
ESPN (Entertainment and Sports Programming Network), em setembro de 1995. Segundo
Ferreira Junior (2015), a emissora transmitiu sua programação de rádio ao vivo pela internet,
um jogo entre Seattle Mariners e New York Yankees pela Major League Baseball, a liga norte-
americana de beisebol. Dois anos depois surge o Real Player, primeiro software que comportava
streaming de vídeo em tempo real, sem necessidade de download, todavia, a conexão de internet
era requisito, ainda muito aquém do que existe hoje.
Somente dez anos após a primeira transmissão via streaming surge um marco histórico
para a tecnologia, o lançamento do YouTube, em fevereiro de 2005, muito embora um ano antes
já houvesse o Vimeo, plataforma de compartilhamento de vídeo bastante semelhante. Serviço
de vídeo sob demanda de classificação OTT, o YouTube é um FVOD (Free Video On Demand)
e tem como maior característica exibir conteúdo gratuito gerado por seus usuários. Há uma
variedade quase infinita de conteúdos no YouTube, fazendo com que dividam espaço materiais
amadores, ficcionais e jornalísticos, pessoais ou de interesse público, produções de fãs e até
divulgação de materiais analógicos que foram transformados para o formato digital. Em 2013,
a plataforma cria canais pagos, alterando seu modelo de negócio para um misto entre produções
gratuitas e acesso a conteúdos pagos, mas a iniciativa é descontinuada em janeiro de 2018 e
substituída pelo também pago YouTube Premium (antigo YouTube Red), que oferece
produções originais (como a Netflix), vídeos sem anúncio e com modo off-line, além do uso
ilimitado do YouTube Music, seu streaming de música. Segundo Massarolo e Mesquita (2016,
p. 112), o YouTube é uma empresa de tecnologia “que se aproximou do mercado audiovisual,
num constante processo de inovação, em busca de um modelo de negócio experimental, além
de uma curadoria de conteúdo livre”.
Em 2006, a Amazon inicia as operações do Amazon Unbox, hoje chamado Amazon
Prime Video, e disponibiliza produções televisivas e filmes mediante assinatura mensal. A
plataforma é criada a partir de testes realizados com usuários de TiVo40 e, inicialmente, os
usuários locam episódios de seriados por um valor fechado (US$ 1,99 cada). O funcionamento
40
Marca popular de gravador de vídeo digital (DVR). Ele possibilita a gravação de programação televisiva para
armazenamento em drive de disco rígido.
77
41
https://tecnoblog.net/270477/globoplay-streaming-video-brasil/ Acesso em 15 jan. 2019.
78
A criação da Netflix tem início com o encontro dos co-fundadores Reed Hastings, atual
presidente e CEO da Netflix, e Marc Randolph. Hastings fundou sua primeira empresa, Pure
Software, em 1991, e produzia serviços para solucionar problemas de softwares. Em 1996, a
Pure Software passou por um processo de fusão com a Atria Software, fundando a Pure Atria,
especializada em gestão e detecção de erros de softwares complexos. Foi na Pure Atria que
Hastings e Randolph se conheceram. Ambos dotados de espíritos empreendedores, deixam a
Pure Atria para desenvolver uma startup voltada para o aluguel de DVDs de filmes, fundada
em 1997, em Los Gatos, Califórnia. Randolph verbalizava há alguns anos seu desejo de replicar
o modelo de negócios de e-commerce iniciado pela Amazon.com, de Jeff Bezos.
Em 1997, a gigante Blockbuster é o principal nome dentre as corporações dedicadas ao
aluguel de VHS, dividindo as atenções de clientes com pequenas locadoras de bairro. Com a
criação do DVD, a Blockbuster cogita uma possível transição do VHS para o novo formato e
sua entrada na World Wide Web, ofertando o aluguel de vídeos pela internet. Em paralelo,
segundo Gina Keating (2013), os fundadores da Netflix têm a ideia de criar uma empresa de
aluguel e venda de vídeos que providenciasse um serviço diferenciado ao existente. Porém, não
seria fácil fazer a clientela trocar serviços estabelecidos e de confiança por algo novo. Para
encontrar um diferencial, vasculharam o mercado em busca de pontos negativos sobre o modelo
de locação de vídeos e identificaram que o formato VHS era muito frágil e que as multas por
atraso na devolução era uma prática que aborrecia grande parte dos consumidores. Assim surge
a ideia de um modelo de aluguel único, um serviço de assinatura mensal que possibilitaria a
locação ilimitada de DVDs e que daria fim às multas por atraso. Entretanto, demorou cerca de
um ano até que a Netflix conseguisse apresentar esse modelo por completo de maneira
financeiramente viável. A princípio, os clientes acessavam o site netflix.com, conheciam o
catálogo de títulos e solicitavam a entrega dos vídeos em sua residência via mensageiro,
pagando separadamente um valor fixo por cada filme.
Contudo, “os clientes tinham que esperar uma semana para receber os filmes. Parecia
ridículo imaginar que eles poderiam desafiar a Blockbuster manipulando seu próprio modelo42”
(KEATING, 2013, p. 21). Para isso, Hastings e Randolph buscam profissionais que conhecem
como funcionam os ramos de entretenimento doméstico (setor de atuação da Blockbuster e de
42
“Customers would also have to wait a week to receive their movies. It seemed ludicrous to imagine that they
could challenge Blockbuster by manipulating its own model”.
80
outras locadoras) e do serviço postal norte-americano, uma vez que é necessário encontrar uma
solução para a entrega mais rápida dos vídeos na residência dos assinantes. Esses profissionais
são responsáveis por três características importantes do sucesso da Netflix em seu início: o
envio dos vídeos aos clientes via sistema postal do país, os modelos de busca da plataforma
(por filmes, atores e diretores) e as listas de vídeos disponíveis no inventário, agrupados por
gênero, tema, ou título semelhantes. Em resumo, Keating (2013) explica que o plano de
negócios inicial da Netflix consiste no aluguel e venda de DVDs de forma à la carte, isto é, o
cliente pode alugar vídeos e devolvê-los após sete dias por um mensageiro já pago pela Netflix
ou adquirir algum dos filmes por um preço menor que do mercado.
43
“The company would charge the video stores’ going rate for VHS rental – four dollars plus two dollars shipping
for a single disc, and three dollars for each additional one. Renters could keep movies for seven days and return
them in a postage-paid mailer. If costumers liked a particular title, they could buy it for 30% below the retail price.
Their hook would be something that retail stores could not offer – a selection that included almost every DVD
ever released”.
81
sonho de uma empresa orientada ao cliente que refletia seus ideais e carregava
seus DNAs intelectuais44 (KEATING, 2013, p. 31).
44
“They all had a lot at stake, and it started to show in arguments that often escalated to shouting matches. They
were not a typical start up staff of kids just out of college – most had had seniority at big software names, and all
had taken big pay cuts to work at Netflix. They had done so gladly to realize a shared dream of a consumer-oriented
company that reflected their ideals and carried their intellectual DNA”.
45
“By nightfall, they had received more than one hundred orders to ship more than five hundred disks”.
46
“[...] opened doors to Hewlett-Packard and Apple, whose new internet-ready HP Pavillion and Apple Powerbook
featured DVD-Roms drivers”.
82
(KEATING, 2013, p. 39). Essas parcerias ajudam a movimentar o comércio de DVDs, ainda
pouco acessível ao público.
47
“Manufacturers quickly discovered that Netflix offered a way out of a dilemma that was holding down sales:
consumers did not want to buy DVD players because DVDs were not widely available at stores. Retailers did not
want to stock DVDs because no one had DVD players. By including a Netflix coupon in the box a DVD player
manufacturer could promise consumers access to a library of more than one thousand titles. [...] by the end of 1998
customers were beginning to claim the free rentals that came with their DVD players”.
48
“[…] became the fastest-selling electronic product in history”.
83
Dillon usou dados que ele extraiu de um programa dos correios que continha
informações de entrega de todos os CEPs norte-americanos e criou um
software que apontava quais as melhores localidades para os centros de
distribuição da Netflix. O programa conectava endereços de clientes e os
organizava dentro do alcance de entregas noturnas da agência de correios mais
próxima. Em seguida, Dillon instalou os centros de distribuição o mais
próximo possível desses centros dos correios, onde cada CEP era organizado
e enviado49 (KEATING, 2013, p. 56).
49
“Dillon used data he hacked from a post office compact disc that contained delivery data for all US Zip Codes
and designed a software program that pinpointed the best locations for Netflix distribution centers. The program
plugged in customer addresses and arranged them all within the overnight delivery radios of the closest post office.
Then Dillon sited the distribution center as close as possible to the post office´s Area Distribution Centers, where
each zip codes mail was sorted and sent out”.
50
“Only a fraction of the consumers who visited the Netflix page saw the offer, but the role of sign-ups or
conversions to the new plan, told Randolph and Hastings they had a winner”.
84
51
“It took one mouse click to load it and about 20 seconds to begin playing a movie at DVD quality resolution”.
52
O set-top box é um conversor/decodificador que transforma o sinal recebido de uma fonte externa em um formato
que possa ser reproduzido em uma tela.
85
videogame Xbox 360. Na época, o catálogo contava com cerca de 12 mil títulos. A Blockbuster
também tentou entrar no mercado de set-top box ao introduzir, em novembro do mesmo ano,
“um aparelho digital de mídia, de apenas US$ 99, que baixava conteúdo em alta definição via
banda larga53” (KEATING, 2013, p. 227). Assim surge o Blockbuster OnDemand, dotado de
um catálogo menor que o da Netflix, mas repleto de lançamentos do cinema. Entretanto, é
preciso pagar quase dois dólares por cada título e assisti-lo em até 24 horas, o que afasta muitos
usuários que preferem a liberdade de assistência garantida pela Netflix.
Quando a crise financeira de 2008 atinge os Estados Unidos, os consumidores cortam
gastos e se voltam para a Netflix, fazendo com que a plataforma atinja 10 milhões de
assinaturas. Nesse momento também surgem os primeiros rumores de falência da Blockbuster,
confirmada em 2013, especialmente após a chegada de um novo CEO que preferiu investir na
revitalização das lojas e não no plano digital. A crise também impulsiona, por outro lado, a
adoção do instant streaming pelos assinantes da Netflix. Após 18 meses de seu lançamento,
metade dos usuários já utilizavam o serviço, assim como conheciam outros serviços como
YouTube, iTunes e Hulu em busca dos títulos que não estavam no catálogo da Netflix.
Entre 2009 e 2010, a plataforma busca parcerias com estúdios para transmissão de
conteúdo televisivo, conquistando títulos como South Park (Comedy Central, 1997-presente) e
séries de sucesso da Disney-ABC Television Group, como Lost, Grey’s Anatomy (ABC, 2005-
presente) e Desperate Housewives (ABC, 2004-2012). Hastings mostra aos estúdios que possui
dinheiro para gastar com produções televisivas, mas suas propostas passam despercebidas até
o acordo de US$ 800 milhões com a EPIX, combinado com duração de cinco anos que permite
a transmissão de produções da Paramount Pictures, Lionsgate e Metro-Goldwyn-Mayer. De
acordo com Michael Wolff (2015, p. 89), ceder licenças para Hastings foi vantajoso para as
emissoras de televisão, visto que “a maior, senão única, preocupação da televisão – procurar
por mercados alternativos para o seu produto, agora tinha outra saída”. Ainda segundo Wolff,
a Netflix passou de um “site de locação de filmes (poucos milhões de pessoas por dia vão aos
cinemas) para uma rede de reprises de televisão (40 milhões a 50 milhões de pessoas assistem
à televisão todas as noites)” (WOLFF, 2015, p. 89).
O crescimento constante de assinaturas e os acordos com os estúdios possibilitam o
início da expansão internacional da Netflix. Em 2010, após aderir completamente ao on-line e
encerrar o aluguel físico de DVDs, a empresa chega ao Canadá e, em menos de um ano,
conquista seu primeiro milhão de assinantes. Um ano depois, a plataforma alcança 25 milhões
53
“Introduced a ninety-nine dollar digital media player that downloaded high definition quality movies to
customers´ televisions via broadband lines”.
86
De posse de inúmeros dados gerados pelos assinantes, a Netflix dá um passo ainda maior
e, em 2012, passa a atuar também como produtora audiovisual. De acordo com Keating,
Hastings percebe que há um círculo virtuoso à sua disposição: “conteúdo de qualidade significa
mais assinantes; mais assinantes significam mais dinheiro para conteúdo de qualidade55”
(KEATING, 2013, p. 262). Assim, lança sua primeira série com conteúdo original, rotulada
como Netflix Original (Originais Netflix no Brasil), com Lilyhammer. Um ano depois,
apresenta o drama político House of Cards, com o ator Kevin Spacey como protagonista. Com
o sucesso de House of Cards, outros artistas de Hollywood embarcaram em projetos da
plataforma que hoje contém títulos como Gypsy, com Naomi Wats, Grace and Frankie, com
54
“[...] the top US online seller of movies and TV shows – its signature subscription service claiming 44 percent
of total online movie business to 32 percent for Apple”.
55
“[...] better content meant more subscribers; more subscribers meant more money for better content”.
87
Jane Fonda e Lily Tomlin, Stranger Things, com Winona Ryder, e The Kominsky Method, com
Michael Douglas e Alan Arkin.
A plataforma também se dedica a criação de longas-metragens e documentários. No
entanto, sua política de distribuição de conteúdos cinematográficos entra em colisão com a
indústria. Ladeira (2013) explica que dentre as principais estratégias do ramo audiovisual está
o intervalo artificial criado entre o lançamento de um filme no cinema e seu licenciamento em
outras versões, como para a TV por assinatura e aberta, para DVD etc. Dessa forma, quanto
maior o espaço de tempo entre o lançamento do filme na sala de cinema para o início de sua
comercialização em DVD, licenciamento de veiculação na televisão fechada e, finalmente,
transmissão em televisão aberta, maior será o valor atribuído a cada uma dessas versões
(LADEIRA, 2013, p. 149). A partir desse esquema, as plataformas de streaming precisam se
encaixar em um desses períodos para realizar o lançamento de um longa – no entanto, devido à
própria concepção do streaming, o ideal é que se lance um filme o mais rápido possível na
plataforma. A Netflix, portanto, tem diminuído ao máximo esse tempo de espera para
fidelização de seu usuário, e ignora o período padrão de 13 a 17 semanas costumeiramente
atribuídas entre a estreia de um filme nas salas de cinema e sua divulgação em formato DVD.
Além disso, apresentou longas-metragens em sua plataforma antes mesmo de colocá-los à
disposição em salas de cinema.
Contrariados com a movimentação da Netflix, em 2015 e 2016, grandes redes norte-
americanas de cinema iniciam um boicote aos longas produzidos pela plataforma, Beasts of No
Nation (2015) e O Tigre e o Dragão: a lenda verde (2016), e impedem sua exibição em grandes
salas do país. Contudo, a queda de público nos cinemas, a baixa venda de DVDs e Blu-ray e o
crescimento do download ilegal das produções cinematográficas em geral passaram a ser
inimigos mais sérios para os grandes estúdios do que a ameaça causada pela Netflix. Conforme
Angela Miguel Corrêa (2017, p. 134), “parte da indústria cinematográfica passou a cogitar o
streaming como uma valorosa estratégia de lançamento, diminuindo os custos com distribuição
e com o combate à pirataria”. Como prova desse movimento, estúdios de Hollywood pretendem
lançar seus longas-metragens na Netflix 45 dias após estrearem nas salas de cinema, e não 90
dias após, segundo o The Wall Street Journal56 (FRITZ, 2017), como forma de evitar a pirataria
e proteger os proprietários das redes de cinemas.
56
https://www.wsj.com/articles/from-multiplex-to-living-room-in-45-days-or-less-1490532001 Acesso em 12
jun. 2017.
88
57
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/cinema/noticia/2017/06/okja-que-disputou-palma-de-ouro-em-
cannes-estreia-na-netflix-veja-mais-filmes-do-servico-de-streaming-9826427.html Acesso em 28 jun. 2017
58
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/com-roma-netflix-emplaca-primeira-indicacao-ao-oscar-de-
melhor-filme.shtml Acesso em 22 jan. 2019
59
https://oglobo.globo.com/cultura/oscar-2019-roma-ganha-premio-de-melhor-filme-estrangeiro-23478579
Acesso em 25 fev. 2019.
60
http://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2017/01/19/netflix-fechou-o-ano-com-938-
milhoes-de-assinantes.html Acesso em 04 jun. 2017.
61
http://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2016/01/11/netflix-fatura-r-11-bi-no-brasil-e-ultrapassa-o-sbt.htm
Acesso em 06 jun. 2017.
62
https://www.valor.com.br/brasil/6033853/ibge-tv-por-assinatura-perde-espaco-com-crise-e-servico-de-
streaming Acesso em 15 jan. 2019.
89
por assinatura, número que vem caindo desde 2016, quando eram 18,80 milhões, e 2015, que
registrou 19,11 milhões (LOPES, GÓMEZ, 2018, p. 110).
No balanço do último trimestre de 201863 (NETFLIX..., 2019), o serviço encerrou o ano
com 139 milhões de assinantes em todo o planeta, sendo que somente nos últimos três meses
do ano ganhou 8,8 milhões de assinantes, um aumento de 33% em relação ao mesmo período
de 2017. Segundo a empresa, desse total de novos usuários, 7,3 milhões são originários de fora
dos Estados Unidos. Somente em 2018, a Netflix angariou 29 milhões de novos assinantes.
Ao acessar a Netflix pela primeira vez, o usuário deve escolher o plano de assinatura
que mais se adequa às suas necessidades. Todo novo assinante tem direito a um mês grátis para
experimentar a plataforma, proposta que pode ser encerrada a qualquer momento. Somente a
partir do segundo mês a assinatura escolhida é cobrada. No Brasil, os planos em vigor
atualmente são: Básico, que permite o uso de uma tela por R$ 19,90 mensal para assistência
ilimitada de filmes e séries via notebook, TV, smartphone ou tablet; Padrão, com duas telas
simultâneas pelo preço de R$ 27,90 e imagens HD; Premium, com direito a quatro telas
simultâneas e Ultra HD disponível por R$ 37,9064.
Após a escolha do plano, o usuário utiliza seu e-mail e senha para criar uma conta
exclusiva na plataforma. Em seguida, a página apresenta uma série de títulos divididos por
gênero, tipo de produção (série, filme, documentário, animação etc.) e recomendações da
própria plataforma, geralmente compostas pelas produções originais da empresa. Há ainda listas
como Adicionados Recentemente, Populares na Netflix e Em Alta, que trazem novidades e os
títulos mais visualizados, além do Continue Assistindo, que apresenta os últimos títulos
assistidos pelo usuário. Todo assinante também pode montar sua lista de produções favoritas.
Para maior personalização, a Netflix permite que diferentes perfis sejam criados para que a
experiência de recomendação de títulos da plataforma seja individualizada – é possível ter até
cinco perfis diferentes em uma única conta, possibilitando a individualização de títulos
assistidos recentemente, classificação etária, configurações de produção e sugestões
personalizadas de produções.
63
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/netflix-tem-recorde-de-assinantes-mas-receita-cresce-menos-
que-o-esperado.shtml Acesso em 18 jun. 2019.
64
Dados coletados em janeiro de 2019.
90
Fonte: Netflix.com
Fonte: Netflix.com
91
Fonte: Netflix.com
novamente, ele pode continuar do mesmo ponto que parou anteriormente. Essa memorização
funciona em todos os dispositivos, por conseguinte, é possível iniciar um título no smartphone
e depois continuá-lo horas depois no computador. Desde 2016, é possível baixar títulos
disponíveis na plataforma e assisti-los sem necessitar de conexão com a internet. Dessa forma,
o usuário pode continuar a assistir conteúdo off-line, sem utilizar os dados de seu plano de
internet ou em locais em que a conexão é limitada. O recurso está disponível para smartphones,
tablets e computadores. No caso dos celulares Apple, o serviço está disponível a partir do
sistema iOS 9.0; para celulares Android, o sistema precisa ser 4.4.2 ou superior. No caso de
notebooks, esse recurso está presente apenas para Windows 10. Não estão disponíveis para
download, no entanto, todos os títulos do catálogo e é possível armazenar atualmente até 100
títulos simultaneamente em um único aparelho. Em 2017, o serviço lançou o botão “pular
abertura”, em que o usuário pode pular os créditos iniciais para ir direto ao episódio.
A maior parte dessas funcionalidades da Netflix está ligada à inteligência algorítmica
da plataforma, que sugere uma navegação personalizada e amigável e uma divisão de conteúdo
que segue gêneros e avaliações de usuários. Para Massarolo e Mesquita (2016), os algoritmos
sugerem produções compatíveis com o gosto do assinante devido à dedicação da plataforma
para a criação de um sistema que faz recomendações a partir da geração de palavras-chave
atribuídas manualmente aos títulos. O sistema de algoritmos também entende e analisa as
“pegadas digitais” deixadas por cada assinante – é por conta dessa inteligência que, em muitos
casos, o sistema automaticamente “pula” vinhetas ou recapitulações do tipo “no capítulo
anterior”, uma vez que percebe que o assinante está assistindo um episódio atrás do outro e se
lembra com clareza do que acabou de acontecer.
Em 2015, Carlos Gomez-Uribe, ex-vice-presidente de Product Innovation da Netflix, e
Neil Hunt, ex-Chief Product Officer da companhia, produzem um artigo e explicam que a
plataforma utiliza uma série de algoritmos de recomendação com o objetivo de ajudar os
assinantes a encontrarem produções seguindo suas preferências. Em um catálogo extenso como
o da Netflix, pesquisas de mercado indicam que um assinante costuma perder o interesse após
usar 60 a 90 segundos para escolher um título. Calcula-se que durante esse período o usuário
olhou entre 10 e 20 títulos. Assim, para impedi-lo de abandonar o serviço e escolher outra
alternativa de entretenimento, esse conjunto de algoritmos que compõe o sistema de
recomendação deve oferecer títulos interessantes ao usuário na primeira tela da plataforma.
Desde a fundação da Netflix, Hastings confia em equipes de matemáticos para desenhar
os algoritmos, e essa equipe chegou a ter até mais importância do que o time editorial
(KEATING, 2013, p. 61). Até 2015, a avaliação dos usuários sobre cada título era representada
93
por estrelas, e o sistema de recomendação confiava nesses ratings para sugerir títulos
semelhantes e personalizar a experiência do assinante. Porém, em busca de mudanças e
individualizações ainda mais profundas, a plataforma cria, em outubro de 2006, o Netflix Prize
(KEATING, 2013; HALLINAN, STRIPHAS, 2014). O desafio convidava grupos e startups a
auxiliar o entendimento dos algoritmos de recomendação no momento da migração das vendas
de DVDs para o instant streaming. Para aquele que conseguisse melhorar os resultados dos
algoritmos em 10%, o prêmio prometia US$ 1 milhão. Um ano depois, o prêmio foi dado ao
time BellKor’s Pragmatic Chaos, que aprimorou o sistema em 10,06%. Atualmente, a Netflix
realiza a coleta e o processamento de todo tipo de informação a respeito da navegação e da
interação dos usuários com a plataforma, possibilitando a oferta de séries e filmes totalmente
personalizados para cada perfil.
65
“These data and our resulting experiences improving the Netflix product have taught us that there are much
better ways to help people find videos to watch than focusing only on those with a high predicted star rating. Now,
our recommender system consists of a variety of algorithms that collectively define the Netflix experience, most
of which come together on the Netflix homepage. This is the first page that a Netflix member sees upon logging
onto one’s Netflix profile on any device (TV, tablet, phone, or browser) — it is the main presentation of
recommendations, where 2 of every 3 hours streamed on Netflix are discovered”.
94
Conforme Keating ressalta, todo esse cruzamento de dados indica o que pode ser
produzido, mas não se o título se tornará um sucesso. Nesse caso específico, “em menos de um
mês após sua estreia, House of Cards se tornou a série mais vista na plataforma” (KEATING,
2013, p. 263). A Netflix também não está de olho apenas no comportamento da audiência dentro
da plataforma. Em entrevista à Folha de S. Paulo em maio de 2013, Reed Hastings afirmou que
a empresa tem grande interesse no conteúdo que é mal distribuído. “Com muita frequência, nós
vamos atrás daquilo que as pessoas procuram nas redes de pirataria, como o BitTorrent. A
pirataria é um indicador de demandas não atendidas”67, disse o CEO da plataforma.
66
“[...] using its algorithms to decompose the property to determine whether an audience might exist for some
combination of “David Fincher,” his “style,” the collection of genres across which he has worked, “Kevin Spacey,”
the specific genre of political thriller, and so forth. [...] Netflix moving away from an undifferentiated mass toward
an aggregation of highly differentiated micro-audiences”.
67
http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/01/1220698-pirataria-de-filmes-e-termometro-para-formar-catalogo-
diz-executivo-chefe-do-netflix.shtml Acesso em 07 jun. 2017
95
A estratégia de lançar todos os episódios da primeira temporada de uma só vez faz com
que House of Cards se torne a maior audiência da Netflix em menos de um mês após sua estreia.
Comprovado o sucesso da distribuição, a companhia passa a lançar todos os seus produtos
seriados originais dessa maneira, o que pesquisadores de língua inglesa denominam
posteriormente como binge-publishing, the Netflix model, binge-releasing, publishing all
episodes at once, straight-to-series model e all-at-once. Apresentado por Van Ede (2015, p. 3),
o binge-publishing, termo adotado nesta dissertação, é atribuído pela autora como uma prática
em que “se libera simultaneamente todos os episódios de uma temporada de uma série de
68
Entendido como “assistir em tempo real” ou “televisão com hora marcada”.
69
“In a move that defied television industry wisdom of building audiences – and ratings – through “appointment
television”, Netflix release all thirteen first-season episodes at once, believing more in data that showed subscribers
would excitedly ‘binge’ on the show and evangelize it to their friends”.
96
televisão sem intervalos comerciais por meio de um serviço de streaming de vídeo sob
demanda. Todos os episódios têm de ser lançados e, portanto, não publicados anteriormente70”.
Esse tipo de estratégia faz com que a Netflix proponha uma nova maneira de distribuir
narrativas seriadas que rompem com o fluxo tradicional televisivo estabelecido até então.
Conforme descrito por Williams (2016) e Machado (2000), a distribuição televisiva para
produções seriadas segue um fluxo contínuo que as intercala com intervalos comerciais. A
reunião de programas (ficcionais, jornalísticos etc.) e breaks comerciais, por conseguinte,
formam a grade de programação e compõem esse fluxo contínuo, em que o telespectador, para
acompanhar um programa de sua escolha, precisa respeitar dia, horário e formato estabelecido
pela emissora. Para Corrêa (2017, p. 135-136), devido a esse fluxo, já naturalizado pela
audiência, “o espectador precisa se adaptar, incorporar um ritual de consumo de televisão
horizontal e estar disponível naquele dia, horário e duração para acompanhar com plenitude as
produções televisivas”.
Por ser um negócio que não pertence à rede de broadcasting, a Netflix inaugura o binge-
publishing para suas produções originais seriadas e rompe com a lógica da televisão; não há
horário preestabelecido ou intervalos comerciais para interromper ou fragmentar a assistência.
Assim, usuários acessam o conteúdo desejado disponível no catálogo da plataforma a qualquer
momento, hora ou dia, e a ele assiste pelo tempo desejado – um episódio a cada dia, vários
episódios de uma só vez ou até a temporada completa sem pausa. Ao funcionar como um grande
arquivo audiovisual e não um fluxo televisivo contínuo, a Netflix se torna uma alternativa
atraente para fãs de produtos seriados e amplia as possibilidades de imersão na narrativa.
Segundo Squirra (2013, p. 26), “no modelo digital pleno, as pessoas ficam livres da ‘camisa de
força’ da programação, que hoje obriga todos a ficar sentados esperando a decisão do
programador da rede, que colocou aquele programa naquele horário”. A duração de cada
episódio também muda, já que as séries originais da Netflix não precisam respeitar o tempo
atribuído ao programa em uma grade de programação ou encaixar intervalos publicitários, como
explicam Mayka Castellano e Melina Meimaridis (2016).
O modelo da Netflix, por sua vez, ainda é nebuloso, visto que suas produções
originais não seguem regras e formatos tão rígidos quanto os da televisão, o
que se deve, em parte, ao fato de não estarem fixos em uma grade de exibição.
Encontramos na Netflix séries de ficção cômicas com 8, 10 e 13 episódios por
temporada, como Wet Hot American Summer (2015), Master of None (2015-
70
“[...] simultaneously releasing all episodes of a season of a television serial without commercial breaks via a
video on demand streaming service. Additionally, all episodes have to premiere and thus be previously
unpublished”.
97
É importante esclarecer que nem todas as séries que ganham o rótulo de Originais
Netflix são propriamente originais da plataforma. O serviço produz dois tipos de conteúdos
anunciados como originais: há produções “parcialmente originais”, realizadas pela Netflix em
parceria com canais de TV, caso de Designated Survivor, (2016-presente), e há produções
“originais”, exclusivamente encomendadas, financiadas e produzidas pela companhia sem
ligações com outros canais, como House of Cards e Orange Is The New Black (2013-presente).
No caso das séries parcialmente originais, a Netflix paga aos outros parceiros para divulgar o
produto com o seu rótulo, e ao contrário do que acontece com as “originais”, seu conteúdo
costuma ser apresentado na plataforma fora da estratégia de binge-publishing. A já citada
Designated Survivor, por exemplo, a série estrelada por Kiefer Sutherland teve suas duas
primeiras temporadas transmitidas pelo canal ABC e, em 2018, a Netflix encomendou uma
terceira temporada com o rótulo de original. No entanto, os episódios eram disponibilizados na
plataforma um a cada semana.
Além de ser atrativo para o fã que deseja logo saber o que acontecerá nos próximos
episódios de sua narrativa seriada favorita, o binge-publishing se mostra interessante para quem
está do outro lado, os produtores, roteiristas e diretores. Atual vice-presidente de Content
Aquisition/Original Series da Netflix, Cindy Holland afirmou ao The Hollywood Reporter71,
em 2014, que o binge-publishing nasceu de uma série de ocorrências dentro da companhia
(ROSE, 2014). Além das informações geradas pelo banco de dados da empresa, a Netflix
apostou nessa estratégia como uma forma de mostrar que olhava seriamente para o negócio de
produções seriadas e que, por não pertencer a esse mercado, a empresa foi capaz de identificar
as melhores práticas e tentar métodos diferentes para conquistar a audiência. O binge-
publishing é importante, principalmente, porque ao depender de temporadas completas, faz com
que o trabalho dos roteiristas funcione de forma diferente.
Uma das principais mudanças diz respeito ao piloto, o primeiro episódio de uma
narrativa seriada que tem o objetivo de apresentar a principal premissa da história e seus
personagens. No caso de redes tradicionais de TV, é o piloto que determinará o sucesso de um
produto (principalmente a viabilidade comercial) e se vale a pena continuar com sua produção.
71
https://www.hollywoodreporter.com/news/netflixs-original-content-vp-development-712293 Acesso em 10 jan.
2019.
98
Já o espectador espera do piloto um produto interessante o suficiente para que ele volte a assistir
o produto na próxima semana. Para Brett Martin (2015),
O piloto é uma besta estranha. Deve realizar várias coisas ao mesmo tempo.
Antes de mais nada, obviamente, precisa conter suficiente impacto em si
mesmo como opção de entretenimento para convencer, primeiro, os
executivos da rede de que vale a pena fazer uma temporada toda em cima
daquele material, e, depois, os espectadores de que eles devem continuar
assistindo ao programa. Ao mesmo tempo, tem de se basear em uma dose
pesada de ambientações e cenários – essencialmente construindo um mundo
– sem, todavia, se deixar consumir por essas exposições. (...) O piloto de uma
série dramática já em andamento tem mais outro imperativo. Por meio da
combinação entre uma deliberada competência e algo menos facilmente
definível, esse piloto deve deixar implícito um futuro em geral ainda não
imaginado nem mesmo por seus criadores. Praticamente únicos entre as artes
narrativas, esses programas são compostos sem um fim em mente – e, de fato,
com a esperança de que assim permaneçam de maneira indefinida (MARTIN,
2015, pos. 1176).
Portanto, ao lançar suas temporadas de uma só vez, a Netflix aposta em uma narrativa
completa e, assim, encomenda aos roteiristas uma estrutura completa, anulando a necessidade
de um episódio piloto, visto que personagens e enredos poderão ser apresentados e
aprofundados durante toda a temporada e a partir de conexões mais complexas. Em agosto de
2013, durante o Festival de TV de Edimburgo72, na Escócia, Kevin Spacey fez um discurso a
respeito do serviço e sobre esse novo momento das produções seriadas. Segundo Spacey, tanto
ele quanto David Fincher estavam insatisfeitos com a ideia de levar um piloto de House of
Cards para avaliação da audiência: “a obrigação de um piloto é que você precisa gastar cerca
de 45 minutos estabelecendo todos os personagens, criando ‘ganchos’ arbitrários e, geralmente,
provando que o que você está disposto a fazer vai funcionar” (SPACEY, 2013). Diante de uma
narrativa complexa como a do personagem principal de House of Cards e os bastidores da
política norte-americana, entregar todas as estratégias em um só episódio faria parte do encanto
pela trama se perder.
Mas como saber se o público foi fisgado pela narrativa apresentada já que não há mais
um piloto feito para conquistar o público? Em resposta, a Netflix buscou entender em qual
episódio das séries o público se engaja de fato, denominado episódio-gancho73. Segundo a
pesquisa da empresa, 70% das pessoas que assistem ao episódio-gancho de uma série continua
72
https://www.theguardian.com/media/video/2013/aug/23/kevin-spacey-mactaggart-lecture-video Acesso em 12
jun. 2017.
73
https://media.netflix.com/pt_br/press-releases/voc%C3%AA-sabe-quando-voc%C3%AA-foi-fisgado-a-
netflix-sabe Acesso em 12 dez. 2018.
99
a narrativa até o final, ou até o último capítulo disponibilizado. Abaixo, a figura indica os
episódios-ganchos de séries Originais Netflix como Orange Is The New Black e Sense8, mas
também de produções de outras emissoras como Breaking Bad, Dexter e Gossip Girl (The CW,
2007-2012).
Esse estudo gerou especulações a respeito da audiência necessária para que uma série
original seja renovada na plataforma, uma vez que a Netflix não deixa claro porque uma série
ganha uma nova temporada. Seria, então, o quarto episódio o mais forte ou interessante da
narrativa, de modo a conquistar de vez o público? Nesse sentido, Gloria Calderón Kellet,
roteirista da série Original Netflix One Day At a Time (Netflix, 2017-presente) fez um apelo
em sua conta do Twitter74 para que seus seguidores recomendassem a produção aos amigos e
parentes, pois, segundo ela, “se você quer apoia a série e a mim, por favor, assista ao menos
quatro episódios nos próximos dias. A Netflix decide qual série será renovada com base em
visualizações...” (APÓS..., 2018).
Ainda sobre o modelo da Netflix, em entrevista ao Business Insider75, em 2014, Raphael
Bob-Waksberg, criado da animação BoJack Horseman (Netflix; 2014-presente) afirma que a
74
https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/apos-apelo-da-imprensa-e-de-roteirista-comedia-one-day-time-e-
renovada-19707 Acesso em 20 dez. 2018.
75
https://www.businessinsider.com/why-bojack-horseman-went-to-netflix-2014-9 Acesso em 10 jan. 2019.
100
A coisa mais legal sobre o modelo deles para mim, mais ainda do que a ideia
de pessoas assistindo todos os episódios juntos, é a ideia de que as pessoas
vão assistir a todos os episódios em sequência. Isso é algo que acho que o
público assume como certo, mas você não pode dar por certo quando está
trabalhando em um programa para uma rede mais tradicional.
Tradicionalmente, cada episódio precisa funcionar como entrada para a série,
mesmo que você nunca tenha visto o programa antes. Mas aqui, ficamos
sabendo que ninguém vai assistir o episódio 7, a menos que já tenham visto
os episódios 1 a 6, então não tivemos que reintroduzir constantemente os
personagens e a premissa, e nós poderíamos modificar os personagens e a
premissa. Isso influenciou tudo que fizemos76 [...] (LUBIN, 2014).
Em linha com a ideia da exploração de arcos mais longos, Mittell (2015) defende que a
ideia de lançar produtos seriados de uma só vez, sem a necessidade de inserção de intervalos
comerciais ou de pausas semanais de um episódio para o outro, pode amplificar a complexidade
das narrativas. Segundo o autor, quando a audiência tem o controle total de quando pausar,
voltar e avançar na história (e, assim, reassistir algo que passou despercebido), os roteiristas
podem incluir arcos mais longos e linhas narrativas mais complexas, que exijam mais atenção
do público.
Outra consequência da distribuição binge-publishing e também do modo de assistência
em maratona, de acordo com Van Ede (2015), é que a função dos ganchos e das recapitulações
perde sentido, aparentemente, pois não é preciso manter o suspense, pois a solução do gancho
será apresentada no próximo episódio, que está ao alcance de um botão, ou recapitular
momentos da série, uma vez que esses acontecimentos acabaram de ser assistidos. Em outras
palavras, como não há intervalos entre um episódio e outro, sejam esses intervalos diários ou
semanais, o público pode assistir aos episódios de uma vez só e descobrir logo o que acontecerá,
além de não precisar ser constantemente lembrado do que acabou de assistir. Dessa forma, para
os roteiristas, a consequência direta seria encerrar com a necessidade dos ganchos de menor
tensão (aqueles posicionados durante o episódio, antes dos intervalos comerciais, com a função
76
“The coolest thing about their model to me, moreso even than the idea of people watching all the episodes
together, is the idea that people are going to watch all the episodes in order. This is something I think we as
audiences take for granted, but you can't take it for granted when you're working on a show for a more traditional
network. Traditionally, every episode needs to work as an entrance to the series even if you've never seen the show
before. But here, we got to know that nobody's going to watch episode 7 unless they've already seen episodes 1-6,
so we didn't have to constantly reintroduce the characters and the premise, e we could have the characters and the
premise change. This influenced everything we did [...]”
101
77
https://www.tertulianarrativa.com/single-post/2016/11/28/3-Um-bate-papo-com-o-criador-Pedro-Aguilera
Acesso em 20 out. 2017.
78
https://www.turner.com/pressroom/united-states/tbs/angie-tribeca/tbs-launch-angie-tribeca-25-hour-marathon-
season-1-orders Acesso em 10 jan. 2019.
102
exibição79 (ANTES..., 2016). Em 2018, a produção Assédio, por sua vez, foi disponibilizada
por completo na plataforma antes da estreia na TV80 (GLOBO..., 2018).
79
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/tv/noticia/2016/08/antes-da-estreia-minisserie-justica-da-globo-tera-
capitulos-iniciais-divulgados-na-internet-7295392.html Acesso em 15 jan. 2019.
80
https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2018/10/globo-exibira-primeiro-capitulo-da-serie-assedio-na-
segunda.shtml Acesso em 15 jan. 2019.
81
https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/shortlist-2013 Acesso em 24 out. 2017.
103
de décadas anteriores, por volta dos anos 1980 com a popularização do videocassete, seguido
pelos boxes de temporadas de séries em DVD e, então, por meio do download de episódios via
internet. A partir da criação e do acesso a essas tecnologias e de seu crescente uso, a prática da
recuperação de conteúdos audiovisuais possibilita que fãs possam gravar seus materiais
favoritos para visualização posterior. Uma das primeiras ocorrências do termo binge é feita por
Jenkins (2015) na obra Invasores do texto, de 1992. Ao falar sobre o comportamento de um
grupo de fãs da série A Bela e a Fera (Beauty and the Beast; CBS, 1987-1990), Jenkins lembra
que, ao se encontrarem para assistir a episódios da série em sequência após gravação em VHS,
apelidaram a atividade de “Beastasthon” [“Feratona”]. “Outra reunião do clube foi uma
maratona na qual os fãs traziam episódios de seriados prediletos que outros integrantes talvez
não conhecessem” (JENKINS, 2015, p. 87, grifo nosso). Em 2005, Mittell também utiliza a
expressão ao explicar que baixara a temporada da série Veronica Mars e assistira todos os
episódios sem pausa.
De certa forma, podemos entender a prática do binge-watching semelhante ao que
Pallottini (2012) atribui aos leitores de romances policiais. Segundo ela, a literatura policial
apresenta “a totalidade da narrativa ao alcance do leitor. É ele quem dosa a quantidade de
ansiedade que pode suportar. Se quiser, o fruidor de um romance policial pode lê-lo de uma
sentada e ficar sabendo logo que o assassino é o mordomo” (PALLOTTINI, 2012, p. 51). No
caso do binge-publishing, por exemplo, a Netflix possibilita que, da mesma forma, o
consumidor mergulhe o tempo que desejar na narrativa ao maratonar aquele conteúdo e
descobrir o final da história proposta em um curto espaço de tempo, o que é impossível no
formato de fluxo televisivo tradicional.
Além de esse comportamento ser, portanto, ampliado e rotinizado com a existência das
plataformas de streaming e de estratégias como a do binge-publishing, o hábito de assistência
sequencial de narrativas seriadas também é atribuído à comunidade de fãs. Uma das referências
no estudo desse grupo, Jenkins (2015) lembra que já na década de 1980 havia uma espécie de
intercâmbio underground de fitas VHS entre fãs de séries, em especial para com seriados
britânicos que não eram exibidos nos Estados Unidos. Segundo o autor, em um ano, a esposa e
ele assistiram à primeira temporada da série Blake’s 7 (BBC1, 1978-1981) e buscaram fãs que
possuíam outras temporadas da produção para negociação. Dessa forma, construíram uma rede
de fãs que trocavam cópias de VHS de diversas produções e, posteriormente, os consumiam de
forma vertiginosa.
Para Jenkins (2015, p. 84), “releitura é central ao prazer estético do fã. Boa parte da
cultura fã predispõe a encontros recorrentes com textos queridos”. Consequentemente, o acesso
facilitado às cópias em VHS possibilitou a criação de novos fandoms, tornando o intercâmbio
dessas um ritual essencial do funcionamento do grupo como uma comunidade. Ao estudar a
cultura das séries, Marcel Vieira Barreto Silva (2014) afirma que a emergência do fandom é
essencial para se entender o sucesso das narrativas seriadas hoje e que a imersão nas séries é
importante para que se fortaleça esse tipo de consumo. Uma vez que a sociedade em rede
possibilitou quebrar barreiras físicas e até mesmo culturais, os fãs costumam trocar opiniões,
reflexões e até mesmo produções próprias (fanfictions, fan-arts ou fanfilms) sobre suas obras
favoritas. Para Silva (2014, p. 248), a era digital ajudou com que os fãs passassem a mergulhar
em séries de uma maneira mais profunda, para além do tradicional fluxo televisivo,
demonstrando “um conhecimento amplo sobre os modos de encenação, os diálogos, a
caracterização dos personagens, o desenvolvimento das tramas e a montagem das cenas”. Com
o binge-watching, portanto, o fã alcança uma imersão completa com o objetivo de buscar a
105
máxima fruição, fazer novas conexões, encontrar pontas soltas e até solucionar tramas e
mistérios.
Para autores como Jenkins (2014; 2015), Mittell (2012), Jenner (2015) e Matrix (2014),
essa relação dos fãs com o material audiovisual pode ser ainda mais forte quando se está diante
de uma narrativa complexa – o que, consequentemente, também reforça a interação e o
engajamento das comunidades com o produto. Para eles, o fã envolve-se profundamente com a
trama proposta, com o mundo ficcional e com os personagens. Segundo Steven Johnson (2005),
esse tipo de narrativa exige da audiência uma quantidade maior de esforço cognitivo, o que ele
chama de ginástica cognitiva. Somente com atenção e esforço é possível que o público entenda
a complexidade da narrativa, resolva mistérios e conflitos e organize as tramas propostas. Para
Corrêa (2017), esse esforço cognitivo torna-se ainda prazeroso e desafiador quando se pode
dividi-lo com outros fãs pelo mundo. E no caso do binge-publishing, em que os episódios são
disponíveis para o prazer rápido e total do fã, “a prática da reassistência dos episódios faz com
que o fã se torne um detetive, busque novos fatos, diferentes pontos de vista e formem novos
quebra-cabeças” (CORRÊA, 2017, p. 147). Massarolo (2015, p. 53) também entende que a
narrativa complexa exige dos fãs habilidades de detetive para resolver os enigmas da trama e,
assim, “passam a tecer comentários, em tempo real, via postagens em blogs ou tweets, sobre as
séries. Os esforços cognitivos, introduzem novas formas de assistir televisão, como rever
inúmeras vezes a mesma cena para capturar seu significado”.
Assim, a participação, o engajamento e até mesmo o ativismo dos fãs são não só peças-
chave para o sucesso das séries, mas também para o sucesso do binge-publishing. Essa mudança
na distribuição proposta pela Netflix é um exemplo do que Jenkins, Green e Ford (2014)
afirmam ser uma remodelagem do próprio cenário da mídia atual:
de 1,5 mil usuários da plataforma foram entrevistados a respeito de como assistiam os produtos
no serviço. Intitulado Netflix declares binge watching is the new normal82 (Netflix declara que
binge-watching é o novo normal, em tradução livre), o estudo aponta que maratonar já era um
comportamento comum para 61% dos entrevistados. Do total, 75% definiram que o binge-
watching se configura a partir do momento em que se é assistido de dois a seis episódios de
uma mesma produção de uma só vez. Amanda Lotz (2014) reflete sobre como seu próprio
consumo de produções audiovisuais seriadas mudou nos últimos anos com o streaming.
82
https://media.netflix.com/en/press-releases/netflix-declares-binge-watching-is-the-new-normal-migration-1
Acesso em 20 mar. 2018.
83
“In many ways, I find the novel the best analogy. I've come to view episodes of fictional series in consecutive
installments whenever possible, like chapters in a book. Sometimes I'll interrupt the stream if I'm just in a mood
for something else, as I would choose to read a magazine instead of continuing with a book from time to time. The
greater portability that allows me to start a show on my living room set, then watch an episode on my commute
the next morning or in a waiting room also reminds me of how I consume novels”.
84
https://media.netflix.com/en/press-releases/ready-set-binge-more-than-8-million-viewers-binge-race-their-
favorite-series Acesso em 20 mar. 2018.
107
dos assinantes da plataforma pode prejudicar o lucro da empresa. Isso porque, para a autora, o
serviço se beneficiaria muito mais a partir dos usuários que não realizam maratonas.
85
“The reason for this has to do with Netflix’ subscription model. Netflix subscribers pay a monthly fee and can
cancel their subscription anytime they would like. Since binge-watching gives viewers the option to watch a season
of the binge-published serial in one month, week, or even day, some viewers might opt for that. This means that
these types of viewers only pay for one month – or not even pay at all, since Netflix offers a free trial month to
new subscribers. Consequently, when viewers do not binge‐watch the binge-published serial because they pace
the episodes over multiple months, Netflix profits more. Even though plenty of viewers will not do so, the
segmentation into episodes by means of non‐temporal gaps at least facilitates the possibility for viewers to
“recreate this gap by self-pacing a series” (“Serial Boxes”)”.
108
109
86
https://media.netflix.com/pt_br/only-on-netflix Acesso em 18 fev.2018.
87
Dado coletado em 18 fev.2018 e que inclui títulos a serem lançados durante o decorrer de 2018.
110
e produzida por Lilly e Lana Wachowski (as criadoras de Matrix) e J. Michael Straczynksi; 3%
(2016-presente), lançada globalmente em 2016 no formato binge-publishing e atualmente em
sua segunda temporada, produzida no Brasil, do gênero ficção científica dramática, escrita e
desenvolvida por Pedro Aguilera; e Dark (2017-presente), lançada globalmente em 2017 no
formato binge-publishing e com segunda temporada prevista para 2019, produzida na
Alemanha, do gênero ficção científica dramática, criada por Baran bo Odar e Jantje Friese.
Determinou também que apenas as primeiras temporadas das séries em questão seriam
analisadas, ignorando, portanto, as temporadas seguintes de Sense8 e 3%.
Após o fechamento do corpus, esta pesquisa dedicou-se à observação minuciosa da
estrutura narrativa das três narrativas seriadas ficcionais para o cumprimento dos objetivos e a
confirmação (ou refutação) da hipótese proposta. Foram realizadas as descrições de todas as
cenas de cada episódio da primeira temporada das três produções para, então, a identificação
de sua estrutura narrativa de acordo com um novo momento do processo metodológico, a
categorização, “uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por
diferenciação e, em seguida, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os critérios
previamente definidos” (BARDIN, 2011, p. 147). Conforme indica a autora, a categorização é
um procedimento estruturalista que se divide em duas etapas: o inventário, quando os elementos
de análise são isolados, e a classificação, quando os elementos são repartidos e, logo, o estudo
se dedica a procurar ou impor uma organização às mensagens.
Diante da hipótese de que a Netflix promove alterações na estrutura narrativa das ficções
seriadas contemporâneas quando produz e distribui esses produtos de uma só vez (no regime
binge-publishing), foram determinadas seis categorias narrativas ou que incidem sobre a
narrativa para análise posterior, todas criadas a partir de elementos narrativos tradicionais das
narrativas seriadas ficcionais da televisão, apresentadas e descritas no capítulo 2. São elas:
narração erotética, formato episódico-serial, concepção espaço-temporal, multiplicidade de
tramas, ganchos e recapitulações. Para a codificação, foram construídas tabelas correspondentes
à primeira temporada de cada série, onde estão assinaladas a presença (ou ausência) das
categorias estabelecidas. Finalmente, para concretizar a análise de conteúdo, as inferências e as
interpretações, foram construídas novas tabelas que aprofundam cada categoria, com o objetivo
de identificar, analisar e interpretar a escolha por certos elementos narrativos e se eles se
apresentam de forma diferente nas séries originais da Netflix escolhidas.
111
4.1 Categorização
Esse modelo misto ganhou força em meados da década de 1970 e nos anos 1980, época
em que surgiram os ensemble shows (ESQUENAZI, 2011), séries em que não há apenas um
protagonista, mas vários personagens principais que ganham a mesma atenção da narrativa e
estão presentes nos arcos dramáticos autoconclusivos (episódico) e nos arcos maiores (serial).
acontecimentos no futuro. O espaço, por sua vez, funciona como um quadro de referência para
posicionar os personagens na narrativa. Ambos os conceitos se interligam e atuam em um
contínuo. De acordo com Mittell (2012, 2015), uma narrativa complexa pode ser caracterizada
por uma concepção espaço-temporal intrincada, em que trabalha com diferentes
temporalidades, dimensões e espaços durante uma única trama, o que exige do espectador mais
atenção durante a assistência.
5) Ganchos: De acordo com Costa (2000), Pallottini (2012) e Van Ede (2015), o elemento
gancho é usualmente utilizado para manter a expectativa e a curiosidade da audiência em
relação a algum acontecimento em uma trama quando há alguma interrupção da narrativa. É
um momento de grande suspense, emoção ou mistério. Esse recurso assume duas funções
importantes: a de delinear os intervalos existentes na narrativa (sejam intervalos dentro do
episódio, intervalos entre episódios ou entre temporadas) e também de ser um catalisador para
que a audiência queira assistir mais daquela história. É possível trabalhar ganchos aqui
nomeados de “menor tensão”, posicionados antes dos blocos que dividem um episódio devido
aos intervalos comerciais, e os cliffhangers, de grande intensidade e geralmente posicionados
no fim de episódios ou na pausa entre temporadas. Para Van Ede, como o suspense ainda é uma
das razões mais fortes que fazem o público continuar a assistir a uma série sem parar, e os
114
“cliffhangers são a epítome do suspense” (VAN EDE, 2015, p. 39), os ganchos continuam com
sua importância para a estrutura narrativa, ainda que não sejam inseridos a todo o tempo (como
entre os intervalos comerciais dentro dos episódios) ou com tanta intensidade. No caso da
Netflix, esse recurso tem de ser algo que aguce a curiosidade do público para assista ao próximo
capítulo logo em seguida. Mas também é necessário que esse gancho seja, de alguma maneira,
retomado em um capítulo seguinte para que o espectador continue retendo a atenção. Além de
ganchos de tensão menor, cliffhangers e retomadas, outro tipo de gancho popular é a elipse,
voltada para passagens de tempo diegéticas e com a função de preencher um buraco temporal
na narrativa, ligando uma ponta a outra. Em geral, a elipse é identificada pela sucessão de
imagens, cobertas por trilha sonora. Para Van Ede (2015), no entanto, esse recurso é bem menos
presente nas produções originais da Netflix, visto que a distribuição de uma só vez e o consumo
em maratona fazem com que a noção de tempo na narrativa se transforme em um borrão, em
que não é mais necessário marcar tão bem as passagens de tempo. Ao mesmo tempo, é possível
identificar que parte das séries Originais Netflix são criadas em cima de um período diegético
mais comprimido e, assim, sem a necessidade da inserção de elipses. Essa categoria, portanto,
exige uma tabela própria, em que são identificadas a presença (ou a ausência) dos quatro tipos
de ganchos: “ganchos de menor tensão”, “cliffhangers”, “retomada de ganchos” e “elipses”.
também exige uma tabela própria, em que são identificadas as presenças (ou ausências) das
“recapitulações paratextuais”, divididas em “no capítulo anterior”, “vinheta” e “episódios de
recapitulação”, e das “recapitulações diegéticas”, divididas em “diálogos”, “sugestões visuais”,
“voice-over” e “flashbacks”.
4.2 Sense8
Sense8 (2015-2018) é uma série Original Netflix produzida nos Estados Unidos e
escrita, produzida e dirigida por Lilly e Lana Wachowski e por J. Michael Straczynski. Também
identificadas como o coletivo The Wachowskis, as irmãs Lilly e Lana são as roteiristas,
produtoras e diretoras da trilogia cinematográfica Matrix. Straczynski, por sua vez, é autor,
produtor e roteirista da série de TV Babylon 5 (PTEN, 1994-1997; TNT, 1998), além de
roteirista de HQs do Homem-Aranha e do Quarteto Fantástico. Em 2016, a produção foi
escolhida como “melhor série dramática” pelo 27º GLAAD Media Awards88, premiação que
destaca produções de cinema e TV que retratam pessoas LGBTQ+ (DELCOLLI, 2016). Após
o lançamento de um episódio especial de Natal em 23 de dezembro de 2016, a estreia da
segunda temporada aconteceu em 5 de maio de 2017. No entanto, em 1º de junho do mesmo
ano, a Netflix cancelou a produção89 com a declaração de Cindy Holland: “após 23 episódios,
16 cidades e 13 países, a história de Sense8 está chegando ao fim. Ela foi tudo o que nós e os
fãs sonhamos que seria: ousada, emocional, deslumbrante e muito inesquecível” (GONZAGA,
2017). A grande mobilização dos fãs pelo mundo, porém, fez com que a plataforma produzisse
um episódio final especial, com duração de duas horas, lançado em 8 de junho de 2018.
Segundo a página oficial da produção na plataforma90, a série é classificada entre os
gêneros drama, ficção científica e fantasia. Na mesma página, a Netflix considera Sense8
“alucinante” e “adrenalina pura” (ao clicar sobre uma dessas palavras determinadas pelo
serviço, a plataforma sugere outros títulos que apresentam essas mesmas características). Sua
primeira temporada apresenta 12 episódios sem duração rígida ou fixa – os capítulos têm
duração entre 45 e 67 minutos, e a classificação indicativa é de 18 anos. Indica a sinopse: “das
criadoras de ‘Matrix’ e ‘Babylon 5’, esta série segue oito desconhecidos que passam a
compartilhar sentimentos e habilidades enquanto tentam evitar seu extermínio”. Denominados
88
https://www.huffpostbrasil.com/2016/04/05/lilly-wachowski-vence-premio-por-sense8-e-faz-discurso-sobre-
t_a_21690542/ Acesso em 15 jan. 2019.
89
https://www.omelete.com.br/series-tv/sense8-e-cancelada-pela-netflix Acesso em 15 jan. 2019.
90
https://www.netflix.com/br/title/80025744 Acesso em 10 jan. 2019.
116
sensates, os oito personagens são Will Gorski, Riley Blue, Nomi Marks, Capheus “Van
Damme” Onyongo, Sun Bak, Lito Rodriguez, Kala Dandekar e Wolfgang Bogdanow, que
vivem em países diferentes do planeta, exceto por Will e Nomi que estão nos Estados Unidos.
No primeiro episódio, “Ressonância límbica”, os oito personagens têm a mesma visão:
uma mulher tira a própria vida diante de seus olhos. A partir de aparições dessa mulher em seu
cotidiano, cada personagem descobre uma ligação emocional e mental com os outros, um dom
que é conhecido por sensate. Esse vínculo involuntário, semelhante a uma conexão telepática,
faz com que todos dividam sentimentos e habilidades, o que os ajuda a superar dificuldades em
suas rotinas. Will é policial em Chicago, Nomi é ativista hacker em São Francisco, Riley é DJ
em Londres, Lito é ator na Cidade do México, Sun é diretora financeira em Seul, Kala é cientista
farmacêutica em Mumbai, Capheus é motorista de van em Nairóbi e Wolfgang é ladrão em
Berlim. Enquanto tentam entender o que sentem, um homem os persegue. Reconhecido por
diversos nomes durante a primeira temporada (Dr. Matheson, Dr. Ellison, Dr. Friedmann e,
finalmente, Sussurros), o vilão, também um sensate, lidera uma organização que deseja
capturar, estudar e acabar com essa espécie de “evolução” humana. Durante a primeira
temporada, portanto, os personagens exploram as sensações e as habilidades adquiridas a partir
desse vínculo, enquanto tentam escapar de Sussurros.
Em paralelo à narrativa sobrenatural, Sense8 articula uma série de temas pertinentes à
sociedade contemporânea, como a diversidade (sexual, étnica, religiosa, social, econômica), a
intolerância, as relações familiares, o hedonismo e os transtornos mentais. Como não há um
narrador onisciente, a história é contada por meio dos personagens, sua construção e suas
interações. Todos eles estão, de alguma forma, deslocados ou lutando contra algo, carregam
histórias de vida difíceis ou estigmatizadas. Sun, por exemplo, toma uma importante decisão
porque foi criada em uma cultura patriarcal. Por mais que deseje receber o respeito que merece,
Sun foi ensinada a ser submissa ao pai e ao irmão corrupto. Já Kala pertence a uma parcela
religiosa na Índia que está diminuindo e, ainda que tenha realizado o sonho de ter uma carreira
estável e bem-sucedida, deve seguir as tradições e se casar, pois a mulher indiana é criada para
constituir uma família. Lito, por sua vez, é um ator de sucesso, reconhecido por encenar heróis
violentos e sedutores, no entanto, esconde sua homossexualidade, pois teme que a verdade
acabe com a carreira. Nomi nasce Michael, torna-se uma mulher transexual e lésbica, encontra
uma parceira em Neets, mas é alvo de ataques e do preconceito da mãe e também de integrantes
da comunidade LGBTQ+, que ainda a veem como um homem tentando tomar o espaço das
mulheres.
117
Recurso que garante a origem da coerência de uma história, a narração erotética ajuda a
traçar as principais questões acerca da narrativa apresentada. Em Sense8, no primeiro episódio
(“Ressonância límbica”), as principais perguntas que surgem dão o tom das tramas principais
que compõem a série: 1) Quem são Angelica, Jonas e o terceiro homem, que parece estar à
procura de Angelica? Por que Angelica comete suicídio? (Figura 5); 2) Por que Angelica
aparece para os oito personagens? Qual sua ligação com cada um deles?; 3) O que é essa
conexão que parece unir os oito personagens?; e 4) O que acontecerá com cada personagem?
Eles serão encontrados por Jonas ou pelo homem misterioso?
118
Nos episódios seguintes, Sense8 dá pistas das respostas para as perguntas estabelecidas
no primeiro capítulo, mas em pequenas doses. No episódio 2 (“Eu também sou nós”), enquanto
Will é informado que Jonas é procurado pelo FBI por terrorismo, Jonas vai ao seu encontro
para falar sobre ser um sensate, a primeira menção a essa expressão na narrativa. No capítulo 4
(“O que está acontecendo?”), Jonas explica a Will sobre as diferenças entre “visitar” e
“partilhar” entre sensates e que, ao despertar, um sensate jamais estará sozinho. O perigo
representado por Sussurros chega próximo de Nomi e Neets por meio da figura de Niles Bolger,
que se mata após assassinar o Dr. Metzger no episódio 7 (“O poder da literatura”). Quando, no
capítulo 9 (“A morte não permite despedidas”), Will consegue contato novamente com Jonas,
descobre que sua conexão com ele está sendo monitorada por Sussurros e que eles não podem
manter contato visual com o vilão, pois essa é a maneira na qual ele manipula os sensates. No
capítulo 10 (“O que é humano?”), Will e Jonas discutem sobre as conexões entre os sensates,
sobre os testes realizados para identificá-los e que Angelica morreu para proteger o grupo.
Em paralelo a essas respostas, a série desenvolve as histórias de cada personagem e abre
novas perguntas relacionadas aos arcos menores: Kala se casará com Rajan? Wolfgang fugirá
do tio e do primo? Capheus conseguirá os remédios para sua mãe soropositiva? Sun assumirá a
culpa pelos roubos realizados pelo irmão na empresa do pai? Nomi será lobotomizada? Riley
arrastará consigo sua “maldição”?
119
No fim da primeira temporada, algumas das questões estabelecidas até então são
respondidas, mas outras são deixadas no ar para a criação de uma segunda temporada, como 1)
O que acontecerá com os sensates, uma vez que Sussurros está na cabeça de Will?; 2) Como
Will conseguirá manter-se afastado de Sussurros e impedir que ele encontre os outros sensates?;
3) O que Sussurros fará para destruir o grupo de sensates? Além disso, o último episódio
também deixa em aberto as narrativas de cada protagonista – Kala se casará? Sun sairá da
cadeira? Wolfgang conseguirá ajudar na recuperação de Felix? A carreira de Lito será destruída
quando ele assumir sua homossexualidade à imprensa?
o enterro de um parente. Após a morte do pai, Wolfgang é criado pelo tio Sergei e junto do
primo Steiner, a quem ressente, e confia apenas no amigo Felix. Junto dele, Wolfgang consegue
roubar diamantes que estão em um cofre, considerado o mais seguro do mundo, antes da
chegada do bando de Steiner. Ao passar a perna no primo, Wolfgang inicia uma trama de
vingança que se alonga pelo restante da temporada.
No segundo episódio (“Eu também sou nós”), o norte-americano Will busca
informações sobre Angelica e descobre que Jonas, o homem que viu ao lado da suicida, é
procurado pelo FBI. Quando ele encontra Jonas em uma loja de conveniência, Will segue seu
instinto policial e tenta capturar Jonas, ainda que o homem fale sobre Angelica, sobre as
sensações que Will tem passado e sobre ajudar uma garota chamada Nomi Marks. O capítulo
encerra com uma perseguição de carro bastante reveladora entre Will e Jonas, e o espectador
só descobre no episódio seguinte que Jonas foi capturado pelo FBI devido a Will. No terceiro
episódio, “Aposte tudo na magrela”, o queniano Capheus “Van Damme” precisa comprar os
remédios para o tratamento da mãe soropositiva e, quando é roubado, caça os ladrões por
Nairóbi e os enfrenta em uma luta corporal. Motorista de van, Capheus não possui qualquer
habilidade para luta, mas ele consegue trocar de corpo com Sun, a coreana lutadora de
kickboxing, que derrota a gangue e devolve os medicamentos à Capheus (Figura 6). Nos
capítulos seguintes, a fama de “Van Damme” se espalha pela cidade e ele passa a trabalhar para
Silas Kabaka, um mafioso famoso da região, trazendo-lhe uma série de problemas.
No episódio 5 (“Arte é como religião”), a indecisão da indiana Kala sobre seu casamento
atinge o pico quando ela desmaia durante a cerimônia ao ter uma visão de Wolfgang, nu, no
meio da festa. Contudo, as dúvidas de Kala já se apresentavam desde o primeiro episódio, em
que ela procura o templo de Ganesha para solicitar clareza. O arco narrativo de Nomi Marks,
por sua vez, também se estende por diversos capítulos até que alcança o ápice no episódio 7,
“O poder da literatura”, quando ela utiliza sua experiência e conexões como hacker para
espionar Dr. Metzger, que tentou lobotomizá-la nos primeiros episódios, e descobre que a
prática já fora realizada anteriormente. No fim do capítulo, Nomi e a namorada Neets fogem de
Metzger e de Nigel, um ex-lobotomizado, que mata o médico diante delas e comete suicídio em
seguida. No espelho, Nomi vê a imagem de Sussurros como Nigel atirando em si mesmo. Nesse
caso, o formato episódico é usado para que Nomi consiga fechar o cerco a respeito de Metzger,
mas também abre novas questões sobre quem é Sussurros e quais são seus planos.
ringue, na madrugada, na Coreia do Sul. Quando Capheus pede ajuda à Sun e ela luta contra a
gangue, eles estão ocupando o mesmo tempo na diegese.
Quanto ao espaço, uma vez que Sense8 se propõe a trabalhar oito protagonistas de sete
nações, o espectador precisa estar atento para seguir onde a narrativa acontece em cada cena.
Para auxiliar o olhar da audiência, nos dois primeiros episódios, a produção insere letreiros que
indicam o nome das cidades onde as cenas se dão (Figura 7). Depois, a ideia é que quem assiste
já está familiarizado com a nacionalidade e a localização de cada personagem. Will e Nomi
vivem em cidades diferentes dos EUA, Chicago e São Francisco, respectivamente. Riley Blue,
nascida Gunnarsdóttir, inicia sua história em Londres, Inglaterra, mas retorna à cidade natal,
Reykjavík, capital da Islândia, no capítulo 6 (“Demônios”). Lito está na Cidade do México;
Sun, em Seul, Coreia do Norte; Capheus é residente de Nairóbi, capital do Quênia; Wolfgang
está em Berlim, na Alemanha; e Kala, em Mumbai, Índia.
Outra forma de Sense8 explorar o espaço diegético está nas locações. Gravada em todos
os países em que a história se passa, a série apresenta diversos pontos conhecidos das cidades.
Em Chicago, foram locações o Superdawg, famoso pelo seu cachorro-quente, o bar de jazz
Green Mill e o rio Chicago, que atravessa o centro da cidade e é onde Will e seu pai comemoram
o Quatro de Julho. Em Londres, Primrose Hill é o morro em que Riley tem vista de toda a
123
cidade e encontra paz. Em Berlim, Wolfgang toma banho nu na piscina pública de Stadtbad
Neukölln, aberta desde 1914. As visitas de Kala ao templo de Ganesha são feitas, por sua vez,
no Templo de Babulnath, um dos mais antigos de Mumbai. Em Seul, Sun encontra seu mestre
de luta no Templo Bongeunsa e treina no Parque Namsan. Com sua van, Capheus passeia pelo
santuário para rinocerontes e elefantes The David Sheldrick Wildlife Trust e pelo Giraffe
Centre, que protege as girafas da extinção. Já na Cidade do México, grande parte da narrativa
do episódio 9 (“A morte não permite despedidas”) se passa no Museu de Diego Rivera
Anahuacalli, em que Lito conta para Nomi sobre sua história com Hernando.
Posto isso, Sense8 exige que o público acompanhe a narrativa atentamente, de forma a
entender onde e quando as ações acontecem. Fora as marcações da Parada Pride e do Quatro de
Julho, não há como ter certeza quanto tempo se passou entre as cenas ou se todas as ações
acontecem ao mesmo tempo. Porém, como a perseguição de Sussurros não é uma “corrida
contra o tempo”, mas sim o quanto ele consegue dominar Jonas e se aproximar dos sensates
para descobrir sua localização, a passagem do tempo não é determinante para a compreensão
da série. Depois que o espectador entende as habilidades dos sensates e sua capacidade de
assumir habilidades dos outros, a questão temporal fica em segundo plano. A questão espacial,
no entanto, se mostra mais importante para o acompanhamento da narrativa. Depois do segundo
episódio, Sense8 não faz mais indicações claras sobre onde a narrativa ocorre e é preciso estar
atento para “viajar no tempo e no espaço” com os protagonistas, de forma a acompanhar os
avanços da trama principal.
A trama principal se dá a partir da história de cada sensate (Figura 8), o que os fazem
ser assim, como funciona essa conexão e como podem usá-la para seu benefício. Ao mesmo
tempo, a série indica que a existência deles é vista como uma ameaça para alguns. Com a morte
de Angelica Turing e as explicações de Jonas Maliki, o espectador descobre que há um homem
(Sussurros) que lidera uma organização com o objetivo de capturar, estudar e dizimar os
sensates. Logo, essa segunda grande trama está relacionada à primeira – por que os sensates
são perseguidos, quem é Sussurros e o que ele será capaz de fazer para acabar com essa tal
ameaça.
125
Para sustentar os dois arcos maiores – que, por sua vez, se encarregam de parte do
formato serial bem-sucedido de Sense8 – a narrativa trabalha consistentemente tramas que aqui
são classificadas como secundárias. Como protagonistas, é desejável que a audiência se engaje
com a trajetória de cada personagem. Assim, a cada capítulo, a série trabalha um pedaço da
história de cada sensates. Dentre os arcos menores, portanto, podemos destacar: 1) a
transexualidade de Nomi e o sofrimento que ela abriga devido ao preconceito da mãe; 2) a
homossexualidade de Lito e seu medo de ter a carreira encerrada por viver em uma sociedade
machista como a mexicana; 3) e a indecisão de Kala entre respeitar a tradição social e religiosa
hindu, casando-se com um homem que não ama, e seu desejo de viver uma vida independente
e encontrar um amor.
Também são arcos menores: 4) a história da executiva e lutadora de kickboxing Sun,
que se sente presa à uma promessa feita à mãe de cuidar de seu irmão e do pai e decide assumir
a culpa por um crime que não cometeu; 5) a luta constante de Capheus “Van Damme” para
conseguir os remédios para a mãe enquanto não se deixa abater pela realidade pobre e violenta
em seu país; 6) o tormento de Riley, que se culpa por ter sobrevivido ao acidente que resultou
na morte do marido e de sua filha recém-nascida e ainda precisa lidar com a perseguição de
traficantes na Inglaterra; 7) as visões que Will tem de uma menina que presenciou ter sido
assassinada e sua relação com o pai aposentado e alcoólatra; 8) o histórico familiar violento de
126
Wolfgang que o impede de ter uma vida feliz e sua amizade fiel com Felix, o qual sempre o
protegeu do bullying quando criança; 9) quem são Angelica e Jonas e qual sua importância para
os sensates; e 10) o romance entre Will e Riley, que ajuda a concluir a primeira temporada.
O capítulo 8 (“Seremos julgados pela coragem dos nossos corações”) retoma os ganchos
de Wolfgang (que sofre ao ver Felix hospitalizado, sentindo-se culpado por tentar mudar o
passado), Capheus (que vai até a casa do amigo Jela, diz que não pode continuar fazendo o
trabalho sujo de Silas e que pretende retomar as viagens com a van ao lado dele) e Lito (Daniela
vai atrás de Joaquin para pegar seu celular de volta). Nos últimos dez minutos da série, a
narrativa entrega todos os cliffhangers para o próximo episódio: 1) Will é suspenso sem
pagamento; 2) Capheus é ameaçado por uma gangue para que entregue a filha de Silas ou
matarão ele e sua mãe; 3) Sussurros descobre o paradeiro de Nomi, que consegue fugir; 4)
Hernando termina com Lito porque ele se recusa a ajudar Daniela, que está sendo agredida por
Joaquin; 5) O futuro sogro de Kala a aborda no templo de Ganesha para que ela desista do
casamento e eles são atacados por diversos homens do templo, que o esfaqueiam.
Embora o capítulo 9 (“A morte não permite despedidas”) inicie com um flashback de
Riley, a cena seguinte mostra a retomada do gancho de Lito, que está deprimido em um bar
após o término do namoro com Hernando. É nesse episódio também que um gancho
apresentado no episódio 3 é retomado: Will descobre que Jonas está sendo mantido refém por
Sussurros e que está sendo monitorado. A tentativa de assassinato do sogro de Kala também é
retomada, assim como o gancho de Sun, quando ela recebe uma visita de seu pai que promete
contar toda a verdade e tirá-la da cadeia. Dessa vez, a narrativa deixa em suspenso as histórias,
sem uma clara proposta para o episódio seguinte: Nomi avisa Neets que ela usou Will para
130
emitir uma nota falsa de que está indo para a Austrália; Riley relembra seu passado em uma
conversa com Capheus; Lito sofre diante de seu apartamento vazio. A curiosidade da audiência,
portanto, se mantêm em alta a respeito do que acontecerá a Lito e Hernando, a Nomi, a Sun, a
Jonas ou se Kala contará a última conversa com seu sogro para o noivo Rajan.
Os ganchos de Sun, Kala e Lito são retomadas durante o episódio 10, assim como a
narrativa de Wolfgang, estática no capítulo anterior. Algumas resoluções começam a ser
encaminhadas, a começar por Lito salvar Daniela de Joaquin e retomar seu relacionamento com
Hernando, ou quando Wolfgang arma para Steiner e consegue matá-lo, vingando Felix e
ficando com os diamantes. A sequência final, no entanto, mostra Riley e os outros sensates na
sinfônica de seu pai, na Islândia, enquanto todos lembram de seus nascimentos. O espectador,
então, descobre que Riley também deu à luz um filho e sofreu um acidente, perdendo o marido.
Ao lembrar-se do ocorrido, Riley surge com as narinas cheias de sangue em meio à plateia,
desmaiando em seguida (Figura 10).
O episódio 11, “Pisando fundo e mudando o futuro”, retoma as memórias de Riley para
explicar seu ataque no capítulo anterior e relembra a linha narrativa de Capheus, deixada em
suspenso desde o capítulo 9, ao mostrá-lo enfrentando a gangue que desejava sequestrar a filha
de Silas. Como cliffhangers, Sussurros descobre a localização de Riley, Sun descobre que o
irmão matou seu pai para que não contasse a verdade sobre o roubo e Wolfgang está pronto
131
para matar o tio. Em seu último capítulo (12 – “Não vou abandoná-la”), a trama de Riley é
retomada para que Will possa ajudá-la a se livrar de Sussurros. O episódio também mostra
Wolfgang assassinar o tio diante de Kala, pois não consegue fugir de seu histórico familiar.
Jonas é torturado e Will recebe a ajuda dos outros sensates para salvar Riley, mas é encontrado
por Sussurros.
Ainda que Will e Riley consigam fugir ao final do episódio, a narrativa deixa uma série
de cliffhangers e questões em aberto para a segunda temporada: o que acontecerá com os
sensates agora que Sussurros já está na cabeça de Will? Como Will sobreviverá consciente aos
ataques mentais de Sussuros? Nomi e Neets conseguirão viver em paz, sem a perseguição de
sua mãe? Felix irá se recuperar e Wolfgang conseguirá deixar seu passado violento para trás?
Kala irá adiante com seu casamento? Seu sogro irá sobreviver? Sun conseguirá sair da cadeia e
se vingar de seu irmão? Capheus terá uma vida sossegada ou as gangues continuarão o
perseguindo? Lito terá sua carreira destruída ao assumir sua homossexualidade?
Sem a utilização de ganchos de menor tensão ou de elipses, Sense8 posiciona ganchos
de maior intensidade nos minutos finais dos episódios para incentivar que o público siga
assistindo à produção em maratona, uma vez que, em tese, a resolução daquele gancho está
disponível a menos de 20 segundos. A ideia também de usar não apenas um, mas vários
ganchos, ajuda a manter o espectador engajado na narrativa, assim como a estratégia de deixar
todas essas pontas soltas no último episódio faz com que a curiosidade e a expectativa da
audiência se mantenham em alta pelos próximos meses até a produção e distribuição da nova
temporada. A respeito das retomadas, os cliffhangers nem sempre são relembrados logo no
episódio seguinte, alguns voltam à narrativa depois de dois ou mais episódios, uma estratégia
que também estimula a assistência da temporada completa rapidamente.
91
Técnica cinematográfica que registra os quadros do vídeo em uma velocidade abaixo do normal. Ao ser rodado
na velocidade normal, a imagem apresenta-se acelerada.
133
pai gargalhando diante de sua apresentação no colégio quando criança, mesmo flashback
inserido no primeiro capítulo da série. No episódio 5, o único flashback mostra a mãe de
Capheus defendendo-o quando criança dos inimigos do marido, que desejam levar Capheus
embora, história que é retomada em um novo flashback no capítulo 7. Em “Demônios” (capítulo
6), enquanto cede entrevista a uma TV, Lito lembra de seu romance com Hernando. No episódio
7, a infância de Kala ganha um flashback próprio quando ela se recorda de perder-se da mãe
durante um festival religioso e assistir a multidão pelos olhos de uma escultura gigante de
Ganesha.
A amizade de Wolfgang e Felix é explicada por meio de dois flashbacks no episódio 8,
indicando que Felix sempre o protegeu do ataque de outras crianças e até mesmo do abuso físico
do pai. Em “A morte não permite despedidas”, cenas da infância e adolescência de Riley
mostram que ela foi cuidada por uma mulher, Ysra, também uma sensate, que teve um
namorado chamado Magnus e que sofreu algum tipo de acidente, pois foi resgatada das
montanhas geladas da Islândia por um helicóptero. Nesse capítulo também ganham espaço as
linhas narrativas de Nomi e Lito. Flashbacks mostram o relacionamento de Lito e Hernando no
Museu Diego Rivera e todos os abusos físicos que Nomi sofreu quando ainda era um menino.
Ao final, Capheus recorda quando ele e a mãe precisaram entregar a irmã recém-nascido para
um orfanato, pois eles não tinham comida.
As cenas finais do capítulo 10 são flashbacks dos nascimentos de cada sensate e também
servem como explicações para o que se tornam cada personagem. A mãe de Wolfgang tem o
filho em uma banheira, e ele aparece nadando em alguns episódios. O pai de Riley toca piano
enquanto sua esposa dá à luz e Riley torna-se DJ. Will nasce em meio ao trânsito e seu pai faz
seu parto dentro da viatura – Will também segue carreira como policial. Kala nasce em um dia
de chuva torrencial, sua mãe rodeada de estátuas de Ganesha, e a indiana se torna cientista, mas
não deixa sua fé de lado. Sun lembra a mãe dar à luz em um cemitério, como um paralelo entre
a vida e a morte que tanto marca sua narrativa. Duas mulheres ajudam no parto de Capheus,
que dedica seu esforço diário no tratamento daquela que sempre o amou. A mãe de Nomi tem
a filha por meio de uma cesariana, o que deixa explícito a falta de ligação emocional entre elas.
No caso de Lito, sua mãe o dá à luz em casa, rodeada de familiares que assistem a uma novela,
gênero muito celebrado no México – e ele torna-se ator (Figura 12).
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Ao final, o espectador descobre que a própria Riley teve um filho, mas sua história
completa só é apresentada nos dois capítulos seguintes. A caminho do hospital, ela e o marido
sofrem um acidente, o marido morreu e ela tem a criança dentro do carro acidentado, em meio
à neve. Também é no último episódio da série que o espectador descobre que Wolfgang é o
assassino de seu pai.
O uso de retomada de acontecimentos por meio de diálogos entre os personagens, por
sua vez, tem início no segundo episódio e é feita até o fim da temporada, não sendo usada
apenas no episódio 3. No capítulo 2, a primeira cena já recorre à recapitulação diegética em
formato diálogo quando Nomi fala sobre suas visões de Angelica e seu suicídio para Neets.
Logo depois, Will está em um leito de hospital ao lado do menino que salvou de um bairro
perigoso de Chicago e eles retomam a conversa que tiveram durante o resgate. Por fim, Will
também fala sobre Angelica com seu parceiro de polícia Diego, que apelida a visão de Will
como “a fantasma loura de pijama”.
Já no episódio 4, a recapitulação como diálogo só ganha espaço quando Lito conta a
Hernando e Daniela sobre um acontecimento do capítulo anterior, a abordagem e a ameaça feita
a ele por Joaquin, ex-amante de Daniela. No capítulo seguinte, a estratégia é usada para unir
um acontecimento da narrativa e um flashback do personagem Wolfgang: o tio de Wolfgang
relembra o roubo dos diamantes e a derrota do pai de Wolfgang diante de um cofre S&D, o
mais difícil de ser roubado do mundo (o espectador já havia sido informado disso no primeiro
136
episódio da série). Outra recapitulação de diálogo acontece quando Will pede informações
sobre Nomi para a mãe dela e a personagem faz um resumo sobre Nomi, sua atuação como
hacker e seu uso de medicamentos para fazer a transição para mulher, ambos assuntos já
tratados até então e que precisaram ser retomados à audiência. O recurso narrativo retorna no
capítulo 6, a cena inicial mostra uma interação entre Will e Riley, que retomam as imagens de
Angelica, a primeira vez que se viram e, de forma sutil, o tiroteio que Riley presenciou entre
seus amigos e os seguranças do traficante Nyx, ocorrido no primeiro episódio. Em “O poder da
literatura” (capítulo 7), Kala está no templo de Ganesha e relembra rapidamente sua linha
narrativa até o momento – as visões do suicídio de Angelica, o encontro com Sun e Wolfgang
nu em seu casamento.
Já no episódio 8, a presença do elemento se dá de duas maneiras, para retomar
acontecimentos e também para ativar a memória do espectador sobre flashbacks dos
personagens. No primeiro caso, Capheus fala com a mãe sobre ser um homem de sorte e Nomi
e Will repassam os ocorridos entre Nomi, Metzger e Sussurros. No segundo caso, Riley conta
a Will sobre sua infância, retomando para o espectador imagens de seu flashback quando
passava os dias debaixo do piano do pai ouvindo-o tocar. Já com Kala, ela pede aos
cerimonialistas que seu casamento seja realizado no templo de Ganesha, pois “desde pequena
sempre tive uma ligação com Ganesha, ela vê através dos meus olhos e eu vejo através dos
dele” – a frase funciona como uma recapitulação do flashback dela mostrado no episódio 7.
No episódio 9, o tio de Wolfgang cita a mesma frase que o pai do protagonista utilizou
em um de seus flashbacks, a respeito das cinco coisas importantes na vida: “comer, beber, cagar,
foder e lutar por mais”. Em “O que é humano?” (episódio 10), Wolfgang está no Museu do
Holocausto e relembra as palavras ditas por Abraham no capítulo 2 sobre aquele ser um local
que fornece clareza. No capítulo 11, Wolfgang entrega Felix aos cuidados de uma clínica
particular e pede que ele seja chamado de Conan, também referência a um flashback do capítulo
8, e Capheus salva Silas de ser morto, que passa a dizer que é um homem de sorte. Finalmente,
no último episódio, há duas recapitulações de diálogo quando Wolfgang enfrenta seu tio, eles
retomam a ameaça feita pelo tio e também o assassinato do pai de Wolfgang. Depois, quando
Lito ajuda Will na Islândia para recuperar Riley de Sussurros, Will pergunta a Lito se eles já se
conhecem e o mexicano responde: “nós transamos”, em referência à cena do episódio 6.
A análise das recapitulações de Sense8 indica que, por se tratar de um formato serial que
precisa dar conta de, ao menos, oito linhas narrativas secundárias consistentes (a história de
vida de cada protagonista), a estratégia privilegia o uso de diálogos e de flashbacks para fazer
com que a audiência se mantenha ligada em cada trama e também se engaje com cada
137
personagem pouco a pouco, entendendo como nasceram, cresceram e vivem, cada um com sua
luta particular. Com exceção do capítulo 8, em que muitas recapitulações são feitas para que o
público esteja encaminhado para o fim da primeira temporada, as recapitulações de diálogo são
feitas com pouca frequência e como uma forma de manter a memória do espectador afiada. Já
os flashbacks são sempre do tipo evocados ou em primeira pessoa (aquele em que o personagem
recorda o passado para explicar um fato ou algo do presente), com exceção dos capítulos 11 e
12 para que o espectador entenda a linha narrativa de Riley, a morte do marido e o nascimento
e morte de sua filha recém-nascida. Os flashbacks evocados, por sua vez, são sempre
posicionados de forma a contar quem são aqueles protagonistas e como eles chegaram ali, o
que já enfrentaram em suas trajetórias e como também desenvolveram algumas de suas
habilidades que são emprestadas pelos outros sensates – caso, por exemplo, da habilidade de
Will em retirar algemas sem a chave, técnica que aprendeu quando criança rebelde para fugir
do pai policial e utilizada para salvar Nomi da lobotomia.
4.3 3%
92
https://www.omelete.com.br/series-tv/3-serie-brasileira-e-producao-de-lingua-nao-inglesa-da-netflix-mais-
vista-nos-eua Acesso em 10 jan. 2019.
93
http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-140681/ Acesso em 10 jan. 2019.
94
https://www.netflix.com/br/title/80074220 Acesso em 10 jan. 2019.
138
seguinte: Em um futuro em que a elite vive no conforto do Maralto, todos os jovens de 20 anos
passam por um processo seletivo para viver lá. Mas só 3% serão aprovados. Inspirado pelo
período do vestibular, Pedro Aguilera criou uma narrativa distópica e pós-apocalíptica em que
jovens são submetidos a uma série de provas para provar que são “merecedores” de integrarem
o seleto grupo dos 3% daquele Processo. O primeiro episódio, intitulado “Cubos”, mostra a
chegada dos jovens que acabaram de completar 20 anos para mais uma edição do Processo,
nome dado a esse conjunto de provas que testam habilidades físicas, motoras, mentais e
emocionais dos candidatos. O Processo é comandado por Ezequiel, que, por sua vez, é
observado por um Conselho que avalia constantemente os procedimentos adotados. Ezequiel
recebe os candidatos e repete o mantra “você é o criador do seu próprio destino”. Michele,
Fernando, Joana, Rafael e Marco são os candidatos que a narrativa acompanha na batalha para
se tornarem parte dos 3%. Logo no capítulo 1, são submetidos a uma entrevista e a uma prova
que testa suas habilidades espaciais para a montagem de nove cubos. Ao final, Michele revela-
se uma infiltrada da Causa, um grupo que atua às escondidas para acabar com o Processo e toda
a desigualdade que deriva dele.
Ao retratar uma sociedade dividida entre uma pequena parcela com acesso a todo tipo
de tecnologia e privilégios e o restante, abandonado e desprovido de comida, luz ou água, 3%
funciona como uma alegoria “do modelo econômico globalizado, fundamentado na
desigualdade e que se justifica pela noção de meritocracia” (MASSAROLO et al., 2017, p.
251). Inicialmente colocado como algo que apenas a Causa luta para acabar, o Processo logo é
visto por candidatos como Fernando como uma criação absurda que aumenta as injustiças e
elimina todo tipo de resistência ou oferece uma oportunidade legítima de recuperação daqueles
que ficam “do lado de lá”, no Continente. Aqueles que vencem o Processo e passam a fazer
parte do seleto grupo dos 3% são obrigados a deixar toda a família para trás e renunciar,
inclusive, à sua capacidade reprodutiva, como uma prova de que a meritocracia realmente
funciona. Os que chegam a tal ponto e se recusam a tomar a tal “vacina”, que elimina a chance
de procriação, são enviados de volta.
De modo a encontrar possíveis alterações na estrutura narrativa da série, o quadro abaixo
apresenta a lista dos oito episódios da primeira temporada de 3% e as categorias descritas
anteriormente, como realizado na análise de Sense8. Em seguida, cada categoria é analisada.
139
O primeiro episódio de 3% (“Cubos”) tem início com um letreiro que diz: “O mundo
dividido em dois lados, um farto e um escasso. Entre eles, um processo de seleção. Aos 20 anos
de idade, uma única chance. Os escolhidos nunca retornam. Eles são os 3%”. De cara, a
principal pergunta proposta pelo recurso de narração erotética é colocada à audiência: quais
candidatos passarão pelo Processo? Quem serão os 3%? (Figura 13) Essa é a questão principal
de toda a narrativa, a pergunta que é respondida somente no último capítulo da produção,
“Botão”. Mas outras perguntas também são sugeridas durante o episódio 1: 1) Michele será
bem-sucedida em sua missão como uma infiltrada da Causa?; 2) Fernando conseguirá passar
pelo Processo mesmo sendo cadeirante? E se chegar em Maralto, conseguirá voltar a andar?;
3) Como comandante do Processo, Ezequiel será capaz de tudo para selecionar os 3%? Ele
também conseguirá descobrir quem é o infiltrado da Causa e desviar as dúvidas sobre sua
posição como líder do Processo?; 4) Rafael seguirá ao final do Processo trapaceando?; 5) Joana
e Rafael atuarão juntos para se tornarem dois dos 3%?
140
com um ponto de virada como gancho final do capítulo 7, a audiência tem suas respostas
somente no último episódio (“Botão”), em que se revela quais ficam para trás no Processo e
quais têm a chance de ir para Maralto.
O capítulo também deixa pistas para a condução da segunda temporada da série: 1) O
que acontecerá com Michele no Centro de Recuperação & Tratamento (CRT), uma vez que
Ezequiel sabe quem ela é?; 2) O que acontecerá com a Causa, visto que o Líder foi preso após
a delação de Michele?; 3) Rafael será descoberto por Ezequiel como integrante da Causa? Ele
conseguirá manter sua luta em Maralto?; 4) Aline será condenada pela morte de César ou terá
a ajuda de Luciana para provar que foi incriminada por Ezequiel?; 5) Como Fernando e Joana
sobreviverão no Continente? Fernando reencontrará o pai ou Joana será perseguida pela morte
do filho de Gerson? Eles se unirão à Causa?; 6) Ezequiel seguirá comandando o Processo de
que maneira? O que ele fará para destruir por completo a ameaça da Causa?
Com a proposta de apresentar ao espectador todo o Processo até que sejam escolhidos
os 3% da vez, a série equilibra os formatos serial e episódico em quase toda a primeira
temporada, com exceção do episódio 5 (Figura 14). O formato serial está presente no
desenvolvimento de todo o Processo e também nos arcos dramáticos de cada personagem,
explorados paralelamente às provas. Enquanto a temporada constrói pouco a pouco como os
candidatos Michele, Fernando, Joana, Rafael e Marco superam (ou não) cada etapa do Processo
para chegar à Maralto, suas relações são entrelaçadas e cada narrativa é somada às outras,
aprofundando os conflitos. Ao mesmo tempo, o formato episódico é utilizado para em que a
cada episódio sejam apresentadas uma ou duas provas do Processo e como elas são encaradas
por cada um dos personagens principais. Em cada capítulo, a prova é apresentada no início,
depois é mostrado seu desenvolvimento e, finalmente, quem são os que vencem a etapa, um
modelo de “começo, meio e fim” característico desse formato.
142
No primeiro episódio, os candidatos precisam passar por uma entrevista, em que são
avaliadas suas habilidades emocionais como autocontrole, e também por outra etapa em que
precisam montar nove cubos a partir de peças soltas. Ao final, os resultados de ambas as provas
são mostrados, de forma a concluir aquele arco. Outro capítulo emblemático é “Portão”
(episódio 4), em que os candidatos que sobreviveram até aquela etapa são trancados em um
alojamento e precisam pensar e atuar em conjunto para escapar. Em paralelo, a história de
Marco é foco da narrativa. Enquanto os candidatos precisam usar memorização, tempo, força e
racionar comida para vencer a prova, Marco assume a liderança de toda a ação, usando simpatia
para se dirigir aos candidatos. Entretanto, quando Ezequiel muda as regras da prova, Marco
revela uma faceta violenta, criando uma gangue que rouba a comida dos outros candidatos e
agride quem age contra suas ordens. Ainda que o Processo continue sendo o fio condutor da
série, o capítulo dá espaço para o formato episódico ao mostrar a ascensão de Marco como líder
e também sua morte, quando é espancado pelos outros participantes e, então, prensado por uma
porta metálica – assim, há o fim tanto da prova quanto do arco de Marco.
O único episódio em toda a temporada que foge a esse equilíbrio presente nas narrativas
complexas (MITTELL, 2015) é o quinto. Montado sobre um flashback de Ezequiel, aborda a
relação do comandante do Processo e sua esposa, Júlia. Ela é o braço direito de Ezequiel quando
ele assume o controle do Processo, mas a relação se deteriora quando Júlia presencia uma ação
da segurança de Maralto no Continente que mata um homem. O espectador descobre que o
143
homem era responsável por cuidar do filho que Júlia teve antes de ingressar no Processo e se
tornar uma moradora de Maralto, deixando o filho para trás. Emocionalmente abalada ao rever
seu filho pelas imagens e saber que ele agora está sozinho, Júlia tenta retornar ao Continente
para ajudá-lo e acaba internada no Centro de Recuperação & Tratamento (CRT), em Maralto,
a mando de Ezequiel. Lá, comete suicídio ao afogar-se no mar. Exceto a primeira cena, que
mostra uma interação entre Aline e Ezequiel, nenhum personagem do presente é retratado
durante o capítulo, nem mesmo provas do Processo são mostradas. Dessa forma, “Água” é
autoconclusivo e criado de acordo com o formato episódico.
novo letreiro é inserido, “1 ano depois, 101º Processo”, e Ezequiel descobre que Júlia deu à luz
um menino antes de ingressar no Processo. Frustrada com as leis do Processo, Júlia tenta voltar
ao Continente para encontrar seu filho abandonado, mas Ezequiel a impede. Na sequência, dois
letreiros são inseridos: 1) “Transporte para Maralto”, quando Ezequiel se despede de Júlia
enquanto ela é escoltada por médicos até o transporte submarino; 2) “Centro de Recuperação
& Tratamento (Maralto)” aparece quando Júlia está deitada em sua cama e observa a foto que
imprimiu do filho. Em seguida, Júlia é vista em uma praia, dirigindo-se ao mar até desaparecer.
A produção não indica quando, mas algumas cenas adiante, Ezequiel desce até a comunidade
do Continente e encontra Augusto, que o manda embora. O capítulo em questão é uma
interrupção ao arco maior sobre o Processo atual, mas funciona como a explicação para
Ezequiel agir de certa maneira ou sua ligação com a água.
Presente durante toda a primeira temporada, a seleção dos novos 3% é a trama principal
que funciona como o fio condutor das tramas secundárias (Figura 16). Essa escolha, claro,
depende do encadeamento e da superação (ou do insucesso) das provas e conflitos
proporcionados pelo Processo, com o objetivo de testar as competências emocionais e físicas
dos participantes. Michele, Fernando, Rafael, Joana e Marco são submetidos a diversos testes
individuais e em grupo do primeiro ao último episódio, cada etapa criada e comandada pela
figura máxima e onipotente de Ezequiel.
146
Essas duas tramas principais são sustentadas pelas tramas secundárias, que têm a função
de apresentar, explorar e desenvolver os personagens e seus conflitos. Como contraponto para
o Processo, a série introduz a luta travada pelo grupo underground Causa, que infiltra dois
agentes na seleção atual, Michele e Rafael. Como justificativa, o arco dramático secundário de
Michele revela que ela busca vingança pela morte do seu irmão, morto durante o Processo
realizado há cinco anos. O arco de Rafael demora a explicar quais as razões pelas quais o levam
a trapacear, mas se descobre que ele deseja iniciar uma vida do outro lado para criar filhos
prontos para a batalha e, assim, promover alguma diferença.
A série trabalha ainda outros quatro protagonistas. Joana carrega um registro falso após
assassinar uma criança e deseja ir à Maralto para refazer sua história; Fernando é cadeirante e
filho de pai pastor que acredita cegamente no Processo, mas espera apenas ter uma vida
diferente em Maralto; Marco vem de uma família reconhecida por ser bem-sucedida no
Processo e inicia a história como um rapaz solícito e justo, porém, sua faceta arrogante é
revelada no capítulo 4, o que acaba o levando à morte. Por fim, a trama de Ezequiel mostra que,
embora bem-sucedido, é questionado por alguns membros do Conselho e passa a ser vigiado
por Aline, uma auditora que deseja encontrar erros seus a fim de retirá-lo do cargo. Apoiado
incondicionalmente por Cássia, chefe da segurança da instalação, Ezequiel luta para equilibrar
147
suas funções como comandante do Processo e suas atividades fora dali, no Continente,
reveladas no episódio 5 – ele tenta cuidar do filho da esposa Júlia. Sobre esse episódio, “Água”
foge à ideia da multiplicidade, visto que a narrativa se desdobra somente sobre o passado de
Ezequiel e seu relacionamento com Júlia. Criado a partir de uma estrutura episódica e, portanto,
autoconclusiva, o capítulo recorre às linhas narrativas dos dois personagens, com pequenas
intervenções de membros do Conselho como Nair, ou de Cássia. Desse modo, a relação dos
personagens tem início e fim, ainda que dela se origine, por exemplo, a razão pela qual Ezequiel
coloca a cabeça debaixo d’água na pia de seu escritório.
Para efeito de análise, a multiplicidade de tramas é fundamental para que a narrativa de
3% se sustente e se apresente completa e encerrada (em parte) para o início da segunda
temporada. A produção é bem-sucedida em entrelaçar e equilibrar as tramas principais e
secundárias, de forma que o arco maior representado pela seleção dos 3% e o Processo se arraste
por toda a temporada, enquanto os arcos menores destinados ao desenvolvimento do caráter e
da história de vida dos personagens sejam apresentados no início de episódios por meio de
flashbacks e encerrados após dois ou mais capítulos – mantendo o interesse da audiência a
respeito do desenrolar não só da seleção dos 3%, mas também da trajetória de cada personagem.
4.3.5 Ganchos em 3%
Na tabela abaixo estão os tipos de ganchos presentes em 3%. É possível adiantar que
não há ocorrência de ganchos de tensão menor para a introdução de breaks comerciais, como
já apontado em Sense8.
mostra que Michele está infiltrada devido à morte de seu irmão. O gancho final suspende a
dúvida: Michele será bem-sucedida como uma infiltrada da Causa e conseguirá causar algum
dano ao Processo? Ou ela será desmascarada? No episódio 2, há a retomada dos ganchos
anteriores quando Michele ouve candidatos falando do desaparecimento de Bruna e Fernando
se oferece para conversar com a jovem. Há dois cliffhangers propostos nesse episódio: Joana
trapaceia na prova das moedas, levantando a suspeita dos outros candidatos, e Aline descobre
que Ezequiel deixa o Processo para andar pelo Continente, todo vestido em trapos, e apaga as
imagens das câmeras de segurança. Ambos são retomados no episódio seguinte, 3 – “Corredor”,
quando a narrativa usa flashbacks para apresentar a história de Joana e, depois, quando a
conselheira Nair avisa que Aline está ali a serviço do conselheiro Mateus. Como cliffhanger
final, os candidatos descobrem que estão trancados em um alojamento, sem comida ou água
(Figura 17).
do Processo e colocou mais uma vez a cabeça na pia, mesmo sem a inserção de uma elipse
tradicional. Ao final do episódio, quando Rafael, Joana, Fernando e Michele parecem ter
passado por todas as provas, Michele recolhe cacos de vidro do chão e os utiliza para cortar sua
pele e retirar de dentro do corpo uma cápsula – o cliffhanger da vez (Figura 18).
deve acabar, enquanto Rafael e Michele passaram pelo ritual de purificação, mas estão cientes
de que Ezequiel está atrás de todos os infiltrados e pretender extirpar todos aqueles que
pertençam à Causa. Como imagem final, a ilha de Maralto.
Sem a necessidade de inserir ganchos de tensão menor para que o espectador retorne à
narrativa após os intervalos, 3% trabalha capítulos que terminam com um ou mais cliffhangers,
de modo a atrair a audiência a continuar assistindo à história sem pausas. Com exceção do
episódio 5, em que o cliffhanger não está posicionado no final do capítulo, todos os segmentos
apresentam ganchos que despertam e mantêm a expectativa e a curiosidade do usuário da
plataforma em relação ao próximo episódio. O uso de elipses é pontual e não é inserido para
preencher buracos na trama, mas para simbolizar a longa duração das provas ou o estado
emocional dos personagens. Conforme Marcel Martin (2003), o uso da elipse em 3% tem o
objetivo de efeito dramático e podem ser classificadas como elipses subjetivas, com função
simbólica e que assumem a missão de dar significações mais profundas à ação.
4.3.6 Recapitulações em 3%
Assim como em Sense8, 3% também não utiliza recapitulações paratextuais do tipo “no
capítulo anterior” ou “episódios de recapitulação”, recorrendo apenas ao uso de uma vinheta.
Já em relação às recapitulações diegéticas, a série também recusa a utilização de “voice-over”,
como indicado na tabela abaixo.
Sobre sua veiculação, ela é colocada sempre após uma introdução do episódio,
interrompendo a fruição da narrativa, com exceção do capítulo 5, em que a vinheta aparece logo
no começo. Como o episódio em questão mostra apenas uma cena do presente e seu restante
veicula um longo flashback de Ezequiel e sua esposa, a escolha pelo posicionamento da vinheta
no início serve para orientar o espectador na linha temporal.
Dentre os recursos de recapitulação diegética, 3% apoia-se nas recapitulações de
diálogos e na utilização de flashbacks, mas também insere algumas sugestões visuais que
despertam a atenção do público. Como exemplos, é possível citar a marca da vacina nos braços
dos moradores de Maralto e o corte nas mangas de suas roupas para que esta marca fique visível,
153
No caso dos flashbacks, 3% inicia seu uso logo no primeiro episódio para explicar o
passado dos protagonistas e justificar suas atitudes. O espectador sabe que um flashback será
apresentado porque, segundos antes de sua inserção, um som semelhante a uma corrente de
vento é inserido na trilha. No primeiro capítulo, o flashback aparece apenas no final para
mostrar que Michele é a infiltrada da Causa no Processo. Ela aceita participar do movimento
porque deseja vingar a morte de seu irmão. O episódio seguinte tem início com um flashback,
dessa vez sobre a infância de Fernando, em que ele treina para a entrevista do Processo diante
de um espelho. Mais adiante, um novo flashback mostra o pai de Fernando consertando sua
cadeira e dizendo que a coisa mais importante é passar no Processo, que ele precisa ter fé.
Joana é foco do flashback inserido no episódio 3. Inserido por diversas ocasiões na linha
temporal do capítulo, o recurso mostra que Joana tenta juntar moedas para sobreviver, mas é
agredida e roubada. Em busca de sua bolsa de moedas, ela invade um local e, ao encontrar uma
arma, dispara sem querer contra uma criança, matando-a. Em pânico, ela consegue um novo
registro, mas é expulsa por ser considerada uma assassina de crianças. No capítulo seguinte, a
154
vez é de Marco, e seu flashback mostra que o herdeiro da família Alvares (Figura 21), que
sempre conquista um lugar dentre os 3%, deixou uma mulher grávida para trás e escreveu uma
carta para seu futuro filho, dizendo que ele deveria pegar “o que é seu de direito”, frase que
simboliza sua mudança de postura durante o episódio 4.
Figura 21: Flashback de Marco mostra seus familiares que já passaram no Processo
No fim do capítulo 4, o flashback de Rafael mostra que seu nome real é Tiago e ele
embriaga um rapaz que está prestes a entrar no Processo. Rafael rouba o registro do rapaz e se
apresenta para uma moça da Causa, prometendo que não decepcionará a Causa – somente no
episódio 6 o espectador descobre que o rapaz é seu irmão mais novo, chamado Rafael.
Toda a narrativa do episódio 5 é baseada no flashback de Ezequiel a respeito de seu
relacionamento com Júlia, a esposa que era seu braço-direito quando ele ingressou como
comandante do Processo e finalizou a narrativa cometendo suicídio, impossibilitada de viver
sabendo que não pode estar ao lado do filho que ficou no Continente. Há um momento ainda
em que a série mostra um flashback da própria Júlia, dentro do flashback de Ezequiel. No
episódio 6, flashbacks de Michele retornam à narrativa, mostrando sua relação estreita com o
irmão mais velho. Em “Cápsula” (capítulo 7), Michele ainda é o foco do recurso quando ela
recorda que o Líder da Causa cedeu a cápsula de veneno para ela, caso ela fosse descoberta e
não precisasse delatar seus companheiros da Causa – Michele, porém, despeja seu conteúdo
venenoso no copo de Ezequiel, mas é César que toma o líquido e morre. Finalmente, episódio
155
8, Joana recorre às suas memórias para recursar cometer outro assassinato, o do homem que a
agrediu no passado.
As recapitulações de diálogo, por sua vez, também estão presentes a partir do segundo
episódio. A retomada de gancho do episódio 2, por exemplo, é feita por meio de uma
recapitulação de diálogo, quando os candidatos perguntam à Michele sobre Bruna, a quem
Michele viu ser assassinada (e por sua causa) no capítulo anterior. Aline também usa a
recapitulação de diálogo para acusar Ezequiel de proteger Rafael na prova de cubos. No
episódio 3, a prova do túnel faz com que os candidatos sofram alucinações ao inalarem um gás
inodoro. Por meio de recapitulações, Fernando pergunta se Michele matou Bruna, Joana vê a
criança que matou e Michele vê Ezequiel, que pergunta se ela está lá para matá-lo. No capítulo
4, quando Joana escapa do alojamento e é encontrada por Ezequiel, ele dá a entender que sabe
do que aconteceu com Joana, uma recapitulação de diálogo do flashback da personagem.
Na única cena do episódio 5 que se dá no presente, há uma recapitulação de diálogo
quando Aline diz a Ezequiel que encontrou as digitais de um menino no cubo amarelo e
pergunta quem é a criança – o espectador sabe que a criança se chama Augusto, mas quem ele
é só fica claro mais adiante no capítulo, durante o flashback de Ezequiel. Como o episódio 5
apresenta estrutura episódica e funciona para explicar apenas a linha narrativa de Ezequiel, sem
mostrar novidades da trama do presente, o capítulo 6 é o que mais utiliza recapitulações de
diálogo em toda a temporada. Com o objetivo de acionar a memória do espectador mais vezes,
uma vez que os últimos acontecimentos sobre a trama principal se deram no episódio 4, o
recurso é usado em 15 ocasiões, como, por exemplo, quando o pai de Fernando diz que a coisa
mais importante é passar no processo, que Rafael roubou o registro de seu irmão mais novo,
que Joana assassinou uma criança ou que Aline quer ocupar o cargo de Ezequiel e o está
ameaçando. A recapitulação de diálogo também é usada para que Rafael tenha dificuldades para
completar sua prova final, pois ninguém quer ajudá-lo depois que destratou tantos outros.
Nos últimos dois episódios da narrativa, “Cápsula” e “Botão”, as recapitulações são
menos presentes e são utilizadas para antecipar algum acontecimento que está para se
desenvolver na trama. Por exemplo, no episódio 7, enquanto Michele é interrogada por Ezequiel
sobre a morte de César, ele lembra que ela estava diferente quando foi cumprimentá-lo mais
cedo e dá a entender que sabe que ela é da Causa; porém, ele a dispensa, para depois reaparecer
no fim do capítulo e mostrar que sabe sobre ela ser a infiltrada. No mesmo episódio, Fernando
reforça a Michele que só se preocupa em estar com ela; no capítulo seguinte, quando Ezequiel
diz a ele que Michele foi eliminada, Fernando opta por deixar o Processo, ainda que Michele
esteja sob tortura e seja, posteriormente, “purificada” por Ezequiel e aceita no Processo.
156
4.4 Dark
95
https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,gosta-de-stranger-things-entao-conheca-dark-nova-serie-da-
netflix,70002101648 Acesso em 15 jan. 2019.
96
http://blogs.correiobraziliense.com.br/proximocapitulo/dark-e-stranger-things/ Acesso em 15 jan. 2019.
97
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/filmes/2018/10/apos-sucesso-de-dark-netflix-anuncia-cinco-
novas-series-alemas Acesso em 15 jan. 2019
98
https://www.netflix.com/br/title/80100172 Acesso em 1 dez. 2017.
157
de Freiburg, porém, a Winden de Dark é fictícia99, criada a partir da infância dos showrunners.
Essas memórias também se misturam, segundo eles, com o acidente nuclear de Chernobil, que
aconteceu na cidade ucraniana em 26 de abril de 1986. Para o The New York Times, Baran bo
Odar cita recordações de sua mãe a respeito da chuva naquela época, devido aos altos níveis de
radioatividade por conta do ocorrido. A chuvosa Winden de Dark também abriga uma usina
nuclear e o acidente de Chernobil assombra os chefes da usina e a população local.
O primeiro episódio, “Segredos”, inicia com uma epígrafe de Albert Einstein sobre o
tempo: “A diferença entre passado, presente e futuro é somente uma persistente ilusão”. Em
geral, citações são utilizadas para direcionar a percepção do espectador sobre a história a ser
contada, ainda que não pareça tão óbvia à primeira vista. Há um narrador onisciente que aparece
em alguns dos episódios e parece estar à frente da narrativa, além de apresentar conceitos e
ideias sobre tempo, sobre a existência de Deus e se os seres humanos estão destinados a algo,
três discussões que permeiam a diegese. O enredo mostra que, em 21 de junho de 2019, Michael
Kahnwald comete suicídio e deixa uma carta que só deve ser aberta após “4 de novembro de
2019, às 22h13”. Em seguida, o filho de Michael, Jonas, retorna ao colégio após afastamento
psiquiátrico e percebe a cidade agitada pelo desaparecimento de Erik Obendorf que já dura 13
dias. Quando Jonas e os colegas Bartosz Tiedemann, Franziska Dopper e os irmãos Magnus,
Martha e Mikkel Nielsen vão à floresta para encontrar as drogas escondidas por Erik,
interferências em suas lanternas e sons estranhos vindos das cavernas os assustam, culminando
no desaparecimento do garoto Mikkel Nielsen. A busca por ele mobiliza ainda mais a polícia,
pois seu pai, Ulrich, é um dos detetives da cidade. Sua família também já passara por outro
desaparecimento há mais de 30 anos, o desaparecimento do irmão mais novo de Ulrich, Mads
Nielsen. A história, portanto, se delineia a partir das buscas e dos encontros e desencontros das
quatro famílias citadas na sinopse: os Kahnwald, os Nielsen, os Tiedemann e os Doppler.
Ainda que não seja o foco desta pesquisa, faz-se necessário apontar alguns elementos
que ajudam na construção simbólica da narrativa em questão. Além da já citada inspiração de
Chernobil para Winden, a cidade é composta por florestas e por um sistema de cavernas, um
labirinto escolhido para abrigar a fenda temporal entre os anos de 1953, 1986 e 2019. É possível
que a opção pela caverna seja relacionada ao Mito da Caverna, de Platão, em que os homens
precisam sair da caverna para conhecer o mundo real. As passagens entre os tempos são
delineadas por portas maciças que levam a inscrição em latim “SIC MVNDVS CREATVS
EST” (traduzida na série como “assim o mundo é criado”) e o desenho de uma triquetra.
99
https://www.nytimes.com/2017/11/23/arts/television/dark-a-german-netflix-series.html Acesso em 10 jan.
2019.
158
Símbolo presente na simbologia cristã, na magia e até no ocultismo, a triquetra tem origem celta
e representa as três faces da Grande Mãe: a Virgem, a Mãe e a Anciã. Na série, está ligada à
intersecção entre passado, presente e futuro. A Tábua de Esmeralda, um conjunto de textos
escrito por Hermes Trimegisto e que deu origem à alquimia, também aparece em dois
momentos da série, acompanhada da triquetra, em um quadro no hospital de Winden em 1986
e como tatuagem nas costas de Noah. Ganham espaço ainda citações à história de Ariadne,
pertencente à mitologia grega, ao conceito filosófico do eterno retorno de Nietzsche, ao
ilusionista Harry Houdini e às pontes Einstein-Rosen.
De modo a encontrar possíveis alterações na estrutura narrativa da série, o quadro abaixo
apresenta a lista dos 10 episódios da primeira temporada de Dark e as categorias descritas
anteriormente, como já realizado nas análises de Sense8 e 3%. Em seguida, cada categoria é
analisada.
No mesmo capítulo, descobre-se que algo acontece na usina nuclear de Winden, pois
Aleksander Köhler, chefe da usina, pede que escondam algo na floresta, em um caminhão. Ao
mesmo tempo, Jonas Kahnwald encontra um grande mapa das cavernas de Winden, com a
inscrição “onde fica o cruzamento?”. O episódio é encerrado quando Mikkel sai da caverna e
descobre que viajou no tempo, pois há estranhos em sua casa e o jornal data de 5 de novembro
de 1986. Dessa forma, o público tem o primeiro contato com a ideia de viagem de tempo.
No quarto episódio (“Vidas duplas”), o espectador tem contato pela primeira vez com o
personagem Noah, mas só conhecemos seu rosto no quinto episódio (“Verdades”), o que
desperta uma nova questão: quem é Noah? É também no quinto episódio que as primeiras pistas
sobre viagens no tempo são apresentadas, como a teoria dos 33 anos de Charlotte, e a revelação
de que o pai de Jonas, na verdade, é Mikkel. No sexto episódio (“Assim foi criado o mundo”),
o público vê que Peter Doppler e Tronte Nielsen aparentemente sabem das viagens no tempo,
enquanto Jonas faz o caminho da caverna até encontrar uma porta e atravessar o túnel, chegando
160
Embora seja possível considerar Dark como uma narrativa seriada complexa, ela não
obedece ao equilíbrio esperado entre os formatos episódico e serial. Cada capítulo da série está
encadeado com o anterior e dá pistas do próximo, fazendo com que seja impossível assistir a
episódios separados e compreender na totalidade do que tratam as linhas narrativas propostas.
Os episódios não possuem o que chamamos de um claro “começo, meio e fim”, como se espera
o formato episódico, pois não apresentam fechamentos para os arcos menores, uma estratégia
que costuma auxiliar na coerência no conflito central. Por isso, podemos dizer que Dark é uma
série essencialmente serial, que exige do espectador atenção em todos os 10 episódios para
assistir à resolução dos conflitos propostos – e, como dito na categoria anterior, até mesmo não
encontrar todas as respostas para as perguntas apresentadas.
Cada um dos capítulos tem título que dá pistas do que será apresentado. No episódio 2,
“Mentiras”, as linhas narrativas mostram personagens ocultando informações, mentindo ou
enganando outros, como Peter Doppler (que sofre por um motivo desconhecido), Tronte
Nielsen (que se ausenta em momentos importantes e esconde um casaco manchado de sangue),
Aleksander Köhler (que esconde da polícia algum segredo perigoso sobre a usina nuclear) e
Ulrich Nielsen e Hannah Kahnwald (que estão vivendo um caso extraconjugal). Já no episódio
3, “Passado e presente”, a série apresenta os paralelos dos dois tempos, 1986 e 2019, de
personagens, como Mads Nielsen (que viaja para 1986 e lá fica preso), Claudia Tiedemann (que
se torna a presidente da usina em 1986 e lida com a filha, Regina, que sofre com depressão) e
Ulrich e Katharina (apaixonados quando adolescentes, mas que vivem uma crise no casamento
33 anos depois). Em ambos os exemplos, o espectador se depara com linhas narrativas diversas
durante a duração do episódio, mas nenhum dos conflitos é apresentado em sua totalidade ou
mesmo concluído, pois a ideia é que eles se arrastem até o final da temporada, de forma a
desencadear explicações pouco a pouco, forçando a audiência a acompanhar todos os capítulos.
O formato episódico é introduzido apenas uma vez em toda a série – e com um motivo
importante. No episódio 4, “Vidas duplas”, é apresentada a filha mais jovem de Charlotte
Doppler, Elizabeth (Figura 23). Elizabeth é surda e desaparece durante algumas horas, fazendo
162
com que seus pais, Charlotte e Peter, acreditem que ela é mais uma criança desaparecida em
Winden.
No entanto, no fim do capítulo, Elizabeth volta para casa em segurança e explica que
desapareceu porque voltou a pé depois que seus pais demoraram para buscá-la. Mesmo que
tranquilos com seu retorno, Charlotte e Peter descobrem que a menina foi abordada por um
homem que a ajudou a retornar para casa e lhe deu um relógio para entregar à Charlotte. Esse
homem é Noah. Até o fim da 1ª temporada, Elizabeth é acionada novamente apenas no episódio
seguinte (5 – “Verdades”), pois ela é quem consegue dar informações para a produção de um
retrato falado de Noah. Elizabeth também é a ponte entre o personagem Yasin Friese, seu
namorado, e os desaparecimentos de Winden. A linha narrativa de Elizabeth, portanto, obedece
às características do formato episódico, além de ser a única linha que pode ser entendida por
um espectador novo na série.
a epígrafe de Einstein é seguida por um discurso declamado pelo narrador onisciente, discurso
que deixa claro a importância do tempo para a série e que a há uma junção espaço-temporal que
vale ser guardada na memória.
Nós acreditamos que o tempo decorre de forma linear. Que ele avança
uniformemente para sempre. Até o infinito. Mas a diferenciação entre
presente, passado e futuro não passa de uma ilusão. O ontem, o hoje e o
amanhã não se sucedem, mas estão conectados em um círculo infinito. Tudo
está conectado (Dark, Episódio 1, 2017).
Enquanto esse trecho ganha a tela, a introdução visual mostra todos os personagens
presentes na série e suas imagens em todos os tempos em que atuam (1953, 1986 e 2019). Essa
escolha aparentemente aleatória das fotos combina com o texto e reforça a ideia de que tudo
está ligado e que o tempo proposto é sempre o mesmo, circular. Ao final da apresentação das
fotos, o mural se abre e é possível ver que todas as imagens estão interligadas por fios de lã
(Figura 29). Essa introdução não-linear ajuda a garantir o ar de mistério à narrativa.
O conflito central da história parece estar relacionado ao desaparecimento de Erik
Obendorf e Mikkel Nielsen, ambos ocorridos nos meses de outubro e novembro de 2019.
Porém, há outros elementos que despertam a atenção do espectador para a temática do
tempo/espaço. Além da epígrafe de Einstein e do discurso acima, após a vinheta, a data “21 de
junho de 2019” é inserida, em formato de letreiro na tela, para que o público se localize no
tempo presente da história. A cena que segue mostra um homem (Michael Kahnwald) que se
enforca, deixando uma carta com a inscrição: “não abrir antes de 4 de novembro de 2019, às
22h13”, recurso que cria expectativa na audiência. Em seguida, Jonas acorda de um pesadelo e
uma nova data é inserida, “4 de novembro de 2019”. Essa escolha pela inserção clara de datas
faz com que o público acompanhe o tempo diegético e sinta que algo está prestes a acontecer.
O tema tempo é sugestionado de outra maneira, quando Mikkel faz uma brincadeira de
ilusionismo com o pai Ulrich e diz: “a questão não é onde. Mas quando”. Toda a ação do
primeiro episódio ocorre em 2019, o que muda a partir do fim do episódio 2.
No segundo capítulo, a audiência descobre que Mikkel Nielsen está vivo, mas que viajou
no tempo. A última cena do episódio mostra Mikkel saindo das cavernas de Winden,
percorrendo a cidade até chegar em sua casa. Entretanto, ele vê uma moto de modelo antigo,
assim como um carro que não é o de seus pais. Ao ser recebido por um jovem desconhecido,
ele diz que esta é sua casa e que ele mora ali; o jovem diz que Mikkel está enganado e que seu
nome é Ulrich, e ele é morador da casa. Sozinho, Mikkel percebe um jornal na soleira de sua
residência. A notícia principal aborda o desastre de Chernobil, ocorrido em 1986 na cidade
164
ucraniana: “Chernobyl, um ano depois”. Em seguida, a câmera guia o olhar de Mikkel para a
data do jornal, 5 de novembro de 1986 (Figura 24). Essa pista obriga o espectador a
compreender duas temporalidades, a do presente, em 2019, e a do passado, em 1986.
Figura 25: Katharina e Hannah nos anos 1986, as roupas condizentes com a época
Há também induções mais sutis nos diálogos, como quando Katharina diz a Mikkel que
ele deve tomar ácido por falar coisas tão desconexas (o uso do ácido foi potencializado na
década de 1980) ou quando Bernd Doppler fala a Claudia Tiedemann que, após “o acidente”,
ela deve escolher qual história contar sobre o que acontece na usina nuclear de Winden, uma
forma enrustida de abordar o vazamento nuclear de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986.
É somente com a inserção desses recursos que o espectador começa a questionar alguns dos
pontos soltos deixados no fim do primeiro episódio, como o corpo desconhecido encontrado na
floresta (ele carregava um walkman que tocava a música “Irgendwie Irgendwo Irgendwann”
(Em algum lugar, algum dia, em tradução livre), da cantora Nena, lançada em 1984) ou onde
está Erik Obendorf. Erik é mostrado em um quarto azul e preso em uma espécie de cadeira
elétrica, enquanto a TV transmite o videoclipe da música “You Spin Me Round (Like a
Record)”, da banda Dead or Alive.
Até o episódio 6, “Assim foi criado o mundo”, o espectador entende que precisa seguir
as duas temporalidades propostas (presente e passado). Contudo, no fim do episódio 7, a última
cena mostra um homem lavando o chão do bunker, suas costas cobertas com uma tatuagem da
Tábua de Esmeralda – é Noah. Ele, então, escreve na parede a data 9 de novembro de 1953,
logo abaixo de outra data, 5 de novembro de 1953. Abre-se a possibilidade, portanto, de uma
terceira temporalidade na série, o que se confirma no episódio seguinte. Aparentemente, o
capítulo 8 acontece inteiramente no ano de 1953, uma vez que os carros são antigos e os
166
personagens usam roupas das décadas de 1940-50, como vestidos rodados e cinturas que
começam a ser marcadas nas mulheres e roupas sociais para meninos e homens. Egon
Tiedemann é apresentado na segunda cena do episódio, ele está bem mais novo do que quando
aparece na temporalidade de 1986, e seu carro de polícia é um Volkswagen Fusca. A usina
nuclear de Winden também está sendo construída. O ano de 1953 é confirmado quando Ulrich
Nielsen de 2019 chega ao outro lado da caverna e é interceptado por uma mulher e seu filho em
uma estrada, ela confirma que estão em 1953. Ulrich também se choca ao descobrir que a
mulher e rapaz que o interrompem são sua avó, Agnes Nielsen, e seu pai, Tronte, ainda
adolescente (Figura 26). Tronte, inclusive, possui um visual muito semelhante ao do ator James
Dean, muito famoso nas décadas de 1940-50. A terceira temporalidade também apresenta ao
público Helge Doppler quando criança.
Figura 26: Ulrich de 2019 viaja para 1953 e encontra sua avó, Agnes, e pai, Tronte
possível perceber que Claudia Tiedemann é capaz de viajar além das duas temporalidades
apresentadas, 1953 e 2019, sendo ela de 1986. Ela também aparece na floresta de Winden,
carregando uma espécie de arma, envolta por uma poeira. Esse mesmo ambiente é repetido
quando Jonas adolescente viaja pelo buraco de minhoca e vai parar, aparentemente, no futuro.
Em relação ao espaço, a história se passa em Winden, município da Alemanha. Dentre
as locações da série, destacam-se a floresta e as cavernas de Winden, a usina nuclear, o asilo, o
colégio, o hotel e o hospital da cidade, as residências das famílias Nielsen, Kahnwald, Doppler
e Tiedemann, além da cabana e do bunker misterioso dos Doppler. Todas as locações aparecem
nas três temporalidades da narrativa seriada, com sutis mudanças, como, por exemplo, a mansão
dos Doppler em 1953 que se torna o Waldhotel em 2019, propriedade dos Tiedemann, ou o
bunker dos Doppler que passa por transformações em 1986, enquanto parece abandonado tanto
em 1953 quanto em 2019. Nesse sentido, as locações também são importantes para o desenrolar
da trama e para situar e direcionar a audiência sobre os acontecimentos nas temporalidades.
Embora a série deixe claro em diversos momentos (por meio de datas e recursos
audiovisuais já sinalizados) em que ano os personagens estão, acompanhá-los nas três
temporalidades facilmente confunde o espectador e exige que sua atenção seja muito maior para
buscar a solução para os mistérios, entender as ligações e consequências das ações de cada
personagem para a progressão da história.
100
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/um-mapa-das-familias-de-dark-da-netflix-para-voce-nao-se-perder/
Acesso em 10 jan. 2019.
171
Além de entregar dados sobre a história dos personagens vagarosamente, o que engaja
a audiência a acompanhar muito além do primeiro episódio, Dark também constrói linhas
narrativas que se cruzam e colidem por diversas vezes e nas três temporalidades apresentadas,
o que exige do espectador uma grande atenção para entender quem é qual personagem em qual
tempo. Logo no episódio 1 (Figura 29), a imagem de uma parede repleta de fotos ligadas por
fios de lã não dá (ainda) a dimensão de quantos personagens serão apresentados na série. A
mesma parede volta a aparecer somente no episódio 8, quando o público tem uma noção
bastante clara de quem são as fotos apresentadas.
Figura 29: Mural com fotos de todos os personagens nas três temporalidades
No total, a série trabalha com 27 personagens, sendo que cinco destes transitam pelas
três temporalidades (Ines, Tronte, Jana, Helge e Claudia) porque possuem idade equivalente às
décadas, além de Jonas, Ulrich e Noah, que conseguem viajar no tempo. Há ainda personagens
que o público só conhece em uma temporalidade, caso de Agnes Nielsen, Greta Doppler e Dora
Tiedemann, de 1953, e as crianças e adolescentes Jonas Kahnwald, Magnus e Martha Nielsen,
Bartosz Tiedemann, Franziska e Elizabeth Doppler, de 2019. Todos os rostos são mostrados
com clareza, um após o outro, os personagens em todas as temporalidades, no início do episódio
8, enquanto um narrador em voice-over fala sobre as dúvidas que os seres humanos têm sobre
sua criação, evolução e existência de Deus – são 46 rostos em sequência. Portanto, seguimos
172
Dark utiliza ganchos do tipo cliffhanger de forma clássica, para aguçar o suspense e a
curiosidade na audiência. Ligado à principal trama apresentada no capítulo, o desaparecimento
de Erik Obendorf e Mikkel Nielsen, está localizado na penúltima cena do episódio 1
(“Segredos”). Ulrich Nielsen é chamado, pois encontraram um corpo de criança na floresta de
Winden. Desesperado, Ulrich se dirige ao local, acreditando ser Mikkel, desaparecido desde a
noite anterior. No entanto, ao observar o corpo, Mikkel repete: “não é Mikkel”. O gancho
proposto pela narrativa sugere dois suspenses: de quem é o corpo encontrado na floresta e, se
173
aquele não é Mikkel, onde ele está? Já o segundo cliffhanger proposto diz respeito à Erik
Obendorf, pois ele é visto sendo colocado em uma espécie de cadeira elétrica e uma máquina
sendo fechada em seus olhos. Essa cena dá certa continuidade à anterior, uma vez que o corpo
encontrado na floresta possui os olhos queimados, porém este gancho trabalha com
imprevisibilidade e desperta confusão no espectador, que, por um lado, sabe que Erik está vivo,
mas não tem a menor ideia do que está acontecendo com ele ou onde ele está.
O segundo episódio não é iniciado do mesmo ponto em que o primeiro é finalizado, mas
tem início com o letreiro “9 horas após desaparecimento de Mikkel”, com o objetivo de localizar
a audiência no tempo diegético. Em seguida, é mostrada a chegada do Estranho/Andarilho em
Winden e um pesadelo de Jonas com seu pai. Ulrich só é visto procurando o filho após a vinheta.
Portanto, sobre esse cliffhanger, não há retomada direta. No entanto, no caso do segundo
cliffhanger deixado no primeiro episódio, a respeito da localização de Erik Obendorf, no meio
do capítulo a cena é retomada. Erik está novamente sentado sobre a cadeira, o corpo todo
amarrado e uma figura encapuzada fechando uma máquina ao redor de seus olhos. Ao mesmo
tempo, na TV de tubo à sua frente, um homem fala sobre dobras no espaço e tempo e teorias
sobre viagens por buracos negros. Esse cientista só é descoberto capítulos adiante, é H.G.
Tannhaus. Também não há elipse nesse episódio, uma vez que a narrativa acontece em sua
totalidade durante um dia e acompanhamos cenas emendadas umas nas outras, sem a passagem
temporal demarcada. Já a respeito do gancho final do capítulo 2, ainda voltado para a trama
principal sobre o desaparecimento das crianças, é possível ver Mikkel sair da caverna e se
descobrir em 1986. A grande dúvida se instala: como ele viajou no tempo?
A chegada de Mikkel em 1986 é o ponto de partida do episódio 3. O gancho do capítulo
anterior é retomado diretamente com uma propaganda de uma barra de chocolate em uma TV
de tubo, assistida por Mikkel ao entrar na sala de sua casa. O menino é surpreendido pela reação
de Jana Nielsen, sua avó, desolada pelo sumiço do filho Mads. Ele se assusta e foge. Quanto ao
cliffhanger da vez, assim como no primeiro episódio, dois ganchos são estabelecidos para o
público ao final do capítulo: um diz respeito às duas temporalidades – Mikkel e Ulrich estão na
caverna de Winden e, ainda que ocupem tempos diferentes, Ulrich ouve Mikkel pedindo
socorro, o que sugere que a linha temporal é uma só, tudo acontece ao mesmo tempo (Figura
30); o segundo gancho mostra o mesmo cientista da TV que Erik assistia e diversos relógios à
sua volta. É H.G. Tannhaus e ele está mexendo em algo que uma máquina do tempo.
174
Figura 30: Mikkel (em 1986) e Ulrich (em 2019) saem da caverna
O quarto episódio não faz qualquer retomada dos ganchos passados; a trama de Mikkel
só é retomada no capítulo 5. Quanto aos cliffhangers, desta vez há três: 1) Elizabeth retorna
para casa com a ajuda de Noah, que pede que ela entregue à Charlotte um relógio de bolso; 2)
Yasin Friese é interceptado ao caminhar sozinho pela floresta para chegar ao colégio por uma
figura encapuzada que diz ter sido enviada por Noah; 3) O Estranho/Andarilho que tem
passeado por Winden invade o quarto de Jonas enquanto ele dorme e escreve “siga o sinal” no
mapa que Jonas encontrou no ateliê de seu pai.
Alguns ganchos apresentados até então na história são retomados a partir do capítulo 5,
como a narrativa de Mikkel em 1986 e a confirmação do desaparecimento de Yasin. Dentre os
ganchos propostos no episódio estão a interação entre Noah e Bartosz, inacessível à audiência
durante todo o restante da temporada, e o encontro entre o Estranho/Andarilho e o cientista
H.G. Tannhaus, visto que o primeiro deseja “falar sobre o tempo”. Nesse episódio também há
uma indução a respeito do suicídio de Michael. Jonas descobre que seu pai é Mikkel e, por meio
de sua carta, entende que o pai nunca soube a que tempo pertencia.
O episódio 6 não retoma ganchos do capítulo anterior, e sim um deixado no episódio 4
– a anotação do mapa de Jonas feita pelo Estranho/Andarilho. Assim, vemos Jonas encontrar o
“sinal” nas cavernas, um fio de lã vermelha, e viajar no tempo para 1986, quando encontra sua
mãe, Hannah, com 15 anos. Posteriormente, esse é um dos ganchos deixados pela narrativa: o
que Jonas encontrará no passado? Ele será capaz de voltar? Outro cliffhanger apresentado é a
175
confronta Hannah pelo caso com Ulrich, Hannah chantageia Aleksander e Regina entra no
quarto do Estranho/Andarilho e se assusta. Por fim, Bartosz se reencontra com Noah e aceita a
proposta dele, o Estranho/Andarilho invade o caminhão com os barris radioativos e Tannhaus
recebe Claudia, que pede para que ele construa uma máquina que consertará a linha do tempo.
O episódio final retoma “o dia do desaparecimento de Mikkel”, poucas horas antes do
ocorrido, inscrição que também é apontada por meio de um letreiro visual. Todos os ganchos
apresentados até então também são abordados e fazem ponte para os cliffhangers do final da
temporada, os que devem apresentar maior impacto para criar expectativa suficiente que faça a
audiência retornar após uma lacuna temporal maior, até o lançamento da segunda temporada.
Podemos destacar Ulrich preso em 1953 como um assassino de crianças, a dúvida sobre como
Helge retorna à 1953 após ser transportado para o bunker em 1986 ainda criança, o que acontece
com Winden e seus moradores após o Estranho/Andarilho abrir o buraco de minhoca em 2019
e para onde foi Jonas, que futuro é esse em que ele se vê preso (Figura 31).
Assim como apresentado nas análises de Sense8 e 3%, o uso do gancho se torna
importante para a Netflix manter a audiência praticando o binge-watching e também para
aqueles que não “maratonam” continuem a narrativa após o intervalo que desejarem. Embora
não existam mais ganchos de tensão menor, visto que não há intervalos comerciais que forcem
a interrupção da fruição, o uso de cliffhangers, de ganchos de tensão maior, são posicionados
177
em Dark sempre nos dez minutos finais de cada episódio, para aguçar a curiosidade e adiar o
prazer do espectador, assim como para incentivar o uso da função post-play para os
maratonistas. Por se tratar de mais uma narrativa considerada complexa, a série costuma usar
mais do que apenas um forte gancho para amarrar todas as linhas narrativas. Também é possível
ver que a retomada de ganchos é bastante usada, mas nem sempre de forma direta ou imediata
– isto é, o próximo episódio não inicia exatamente na mesma cena que o capítulo anterior foi
encerrado ou o gancho pode ser retomado depois de dois ou mais capítulos, forçando o formato
serial da narrativa. Por fim, conforme Van Ede (2015), o uso de elipses perde parte de seu
sentido nas séries lançadas em binge-publishing e feitas para serem consumidas de uma só vez.
Em Dark, datas ou outras informações sobre tempo são inseridas de forma objetiva em parte
dos episódios e são necessárias para que o espectador se situe na narrativa. Como todos os
episódios seguem a dinâmica de representarem um dia na vida dos personagens, a necessidade
de preenchimento de buracos temporais na narrativa é desnecessária. A passagem de um dia
para o outro é feita, de forma quase inconsciente, de um episódio para o outro – e como a ideia
é a assistência em binge-watching, não é preciso mostrar o dia amanhecendo ou a madrugada.
Utilizadas para ativar a memória do público sobre detalhes da narrativa e para acomodar
novos espectadores que não acompanham a série por completo ou com tanto afinco, as
recapitulações costumam dar sentido aos ganchos e ajudam a explicar questões colocadas pela
narração erotética, os pontos de virada e as resoluções propostas. A seguir, a tabela apresenta a
identificação de cada tipo de recapitulação na primeira temporada de Dark.
Outro ponto a ser destacado da vinheta é que sua concepção caleidoscópica remete ainda
aos três tempos diegéticos. Mas é importante lembrar que a Netflix adicionou um recurso que
possibilita que o espectador “pule” a abertura da série, uma escolha popular para aqueles que
estão praticando o binge-watching e não precisam ver a mesma vinheta a cada episódio,
interrompendo o fluxo narrativo. Em contrapartida, no caso de Dark, o interessante de sua
vinheta é que só é possível reconhecer todas as imagens quando se assiste à série por completo,
o que pode aguçar a atenção dos fãs da narrativa em busca de pontas ainda soltas.
Sobre as recapitulações diegéticas, as mais populares em Dark são as sugestões visuais,
recurso dependente de um olhar mais atencioso do espectador para fazer as ligações necessárias,
mas há também algumas recapitulações realizadas por meio de diálogos e de flashbacks. Já a
técnica de voice-over só é utilizada pelo narrador onisciente e tem o objetivo de introduzir
conceitos a respeito do tempo. A primeira utilização do voice-over acontece logo na introdução
do episódio 1, narração já explicitada no item 3.4.3 desta dissertação. O narrador fala que a
diferenciação entre temporalidades é uma ilusão e que o ontem, o hoje e o amanhã estão
conectados. Junto da narração, as primeiras imagens da série se sobrepõem: um bunker, armas,
máscaras, bombas e fotos aleatórias dos personagens da série. A técnica retorna na introdução
do episódio 4, em que fala sobre buracos negros como a boca do inferno e novamente sobre a
ideia de que passado, presente e futuro podem acontecer ao mesmo tempo. Enquanto isso,
180
realizada pela série acontece no episódio 5, quando são colocadas lado a lado, com a tela
dividida, os rostos dos personagens nas diferentes temporalidades.
Como a diegese se dá nas três temporalidades, não podemos dizer que as linhas
narrativas de 1953 e 1986 são flashbacks. No caso de Dark, o flashback apontado a seguir é o
retorno ao passado praticado pelos personagens com a função de memória. No episódio 5, ao
ser abandonada por Ulrich em 2019, Hannah lembra quando, em 1986, fez uma falsa acusação
contra Ulrich sobre ele ter estuprado Katharina, com o objetivo de separá-los. Esse flashback
evocado serve para mostrar a verdadeira face de Hannah. O início do capítulo seguinte mostra
Regina Tiedemann acordando de um pesadelo em que, ainda adolescente, fora amarrada a uma
árvore da floresta à noite. Mais tarde no mesmo episódio, descobre-se que o que parecia ser um
sonho de Regina é, na verdade, um flashback, o que explica seu desprezo por Katharina e Ulrich
Nielsen. No mesmo episódio 6, o flashback evocado é usado novamente, agora por Ulrich. Ao
repetir sonoramente o diálogo que teve mais cedo com a mãe sobre a juventude de Mads, Ulrich
vai até o necrotério e percebe no corpo desconhecido achado na floresta traz uma cicatriz em
seu queixo – ele se dá conta que aquele é Mads. No episódio 7, da mesma forma que Regina
lembrou-se do passado, Helge idoso desperta de um flashback e se recorda de quando acordou,
ainda criança, no bunker de 1986. Em seguida, ele diz: “eu me lembro, eu me lembro de tudo”.
182
Ulrich também relembra um diálogo do primeiro episódio com Mikkel, em que ele dizia que “a
pergunta não é como [eu fiz a mágica], mas quando”. Já no fim do episódio 8, após H.G.
Tannhaus receber do Estranho/Andarilho uma máquina do tempo, ele o expulsa e encontra outra
versão da mesma máquina. Então, ele tem um flashback e relembra quando, em 1953, encontrou
um aparelho estranho no bolso do casaco de um homem que passou por sua loja – é o celular
de Ulrich e a máquina do tempo só funciona com a interferência do dispositivo.
Em conclusão, Dark privilegia o uso de recapitulações diegéticas visuais para acomodar
novos espectadores e não irritar os que praticam binge-watching. Apesar de ser uma estratégia
que parece ser mais interessante para aqueles que “maratonam”, pois não há o uso exaustivo de
diálogos repetidos ou de flashbacks óbvios para explicar as ligações da história, as imagens
utilizadas de maneira frequente são bastante marcantes e também ganham novos ângulos e
olhares a cada aparição. O voice-over, por sua vez, só tem valor para jogar reflexões sobre o
tempo e sobre, talvez, algumas das ações dos personagens que estão envolvidos nas viagens do
tempo. Por se tratar de uma narrativa complexa e que se dá em três temporalidades simultâneas,
se estivesse na TV aberta ou na distribuição tradicional semanal do broadcasting, Dark
dificilmente seria uma série de compreensão rápida ou precisaria, sem dúvida, inserir
recapitulações paratextuais como “no capítulo anterior” para que o espectador relembrasse
todas as ações nas três temporalidades ou necessitaria de mais recapitulações diegéticas de
diálogo ou flashbacks para deixar a narrativa mais clara a cada semana. Nesse sentido, sua
escolha pelas sugestões visuais apela para os mais aficionados ou que desejam a fruição em
maratona.
183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa partiu do problema indicado na Introdução, que era investigar se a forma
de distribuição audiovisual da Netflix poderia alterar a construção das ficções seriadas
contemporâneas quanto à sua estrutura narrativa. Para isso, dedicou-se a entender a evolução
da televisão e suas transformações após a adoção de variadas tecnologias, em especial, o
streaming, identificou recursos narrativos comuns à estrutura das ficções seriadas televisivas e
contextualizou o caso da Netflix no cenário audiovisual. Por fim, por meio da análise de
conteúdo como proposta metodológica, analisou três séries Originais Netflix, de três países
distintos, com o objetivo de mostrar como se apresentam os recursos narrativos diante do binge-
publishing, modelo de distribuição da Netflix em que o serviço lança todas as suas produções
originais de uma só vez, possibilitando a assistência em maratona (ou binge-watching) de
temporadas completas.
Ao propor uma nova forma de distribuição de ficções seriadas próprias, a Netflix rompe
com as ideias de fluxo televisivo e de programação, práticas características e determinantes do
conceito de televisão construído, fazendo com que o público tenha a possibilidade de escolha a
que deseja assistir, quando e de que maneira deseja assistir. Com o binge-publishing, além de
disponibilizar temporadas completas de suas produções originais, a Netflix acaba com as
interrupções comerciais que dividem episódios em blocos e que também separam
temporalmente os episódios de uma temporada. Se, no modelo tradicional televisivo, essas
interrupções servem como forma de organização e também de pausa para absorção e reflexão
sobre o conteúdo, no modelo streaming da Netflix, as interrupções que permanecem são apenas
aquelas que dividem temporadas, possibilitando que o público assista aos episódios em
sequência e sem pausas, o que pode promover um envolvimento mais profundo da audiência
com a narrativa apresentada.
Uma vez que a Netflix abole as interrupções comerciais, esta pesquisa debruçou-se
sobre as questões: o binge-publishing faz com que aconteçam alterações nas estruturas
narrativas das produções originais do serviço? E, em caso positivo, quais seriam essas
alterações?
Assim, a partir do estudo de recursos narrativos, ou que incidem sobre a narrativa das
ficções seriadas feitas para e pelas emissoras/estúdios de TV, como tempo, espaço, narração,
formatos episódico e serial, ganchos e recapitulações, esta dissertação analisou três séries
Originais Netflix: Sense8, 3% e Dark. Como proposta metodológica, a análise de conteúdo foi
184
fundamental para a seleção do corpus (séries Originais Netflix, produzidas nos anos de 2015,
2016 e 2017, de países diferentes, de mesmo gênero) e também para a categorização dos
elementos a serem analisados. Os recursos selecionados para a análise foram: narração
erotética, formato episódico-serial, concepção espaço-temporal, multiplicidade de tramas,
ganchos e recapitulações.
Após as análises das três séries, podemos indicar algumas considerações a respeito de
alterações na estrutura narrativa das ficções contemporâneas lançadas em sistema binge-
publishing. Dentre os seis recursos analisados, os que apresentam alterações são os ganchos e
as recapitulações. No caso dos ganchos, recurso utilizado para manter o suspense e a
curiosidade da audiência durante as interrupções comerciais e pausas temporais, a Netflix
remodela sua aplicação. Se nas narrativas seriadas lançadas na TV havia a inserção de ganchos
de menor tensão a cada bloco comercial e de cliffhangers ao final de cada episódio, nas séries
Originais Netflix, por sua vez, não são inseridos ganchos de menor tensão, pois a narrativa não
permite interrupções, e há a utilização de mais de um cliffhanger nos dez minutos finais de cada
episódio, fazendo com que o usuário da plataforma se sinta inclinado a assistir a um novo
capítulo da série em formato maratona.
Outra alteração identificada a respeito dos ganchos diz respeito às elipses. O recurso só
é utilizado pela série 3%, mas menos como preenchimento de buracos temporais na trama e
mais como forma de simbolizar a longa duração das provas ou o estado emocional dos
personagens. Podemos concluir que, assim como afirmado por Van Ede (2015), as elipses
perdem grande parte de sua função nessas produções, pois tanto a distribuição de uma só vez
quanto o consumo em maratona fazem com que o tempo se transforme em uma espécie de
borrão, um acontecimento seguido do outro, sem buracos temporais. Ao mesmo tempo, o tempo
diegético nas três séries parece comprimido e, portanto, não há necessidade de elipses.
No caso das recapitulações, a alteração pode ser tratada de duas maneiras. Em primeiro
lugar, como a Netflix lança os episódios de uma só vez e presume que seu conteúdo seja
assistido em maratona, a estrutura narrativa recorre menos às recapitulações para acionar a
memória do público, visto que ele assiste aos episódios em sequência e se lembra do que
“acabou de ver”. Dessa forma, o único tipo de recapitulação paratextual utilizado pela Netflix
é a vinheta, que pode ou não reunir imagens ou cenas da série em questão. Episódios de
recapitulação ou resumos como “no capítulo anterior” não são realizados. Em segundo lugar, o
uso das recapitulações pode ser analisado de forma evolutiva, pois vem sendo alterado
conforme o método de distribuição da Netflix se consolida entre seus produtores/roteiristas. Em
2015, ano de lançamento de Sense8, o sistema binge-publishing tinha apenas dois anos e estava
185
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