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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL

ANGELA MIGUEL CORRÊA

SÉRIES ORIGINAIS DA NETFLIX:


ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA NARRATIVA NO CONTEXTO DO
BINGE-PUBLISHING

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2019
ANGELA MIGUEL CORRÊA

SÉRIES ORIGINAIS DA NETFLIX:


ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA NARRATIVA NO CONTEXTO DO
BINGE-PUBLISHING

Dissertação apresentada em cumprimento parcial às


exigências da Universidade Metodista de São Paulo,
Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de
Pós-Graduação em Comunicação Social, área de
concentração “Processos comunicacionais”, linha de
pesquisa “Comunicação midiática, processos e
práticas socioculturais”, para a obtenção do título de
mestre.

Orientação: Prof. Dr. Herom Vargas Silva

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2019
FICHA CATALOGRÁFICA

C817s Corrêa, Angela Miguel


Séries originais da Netflix: alterações na estrutura narrativa no
contexto do binge-publishing / Angela Miguel Corrêa. 2019.
196 p.

Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) --Diretoria de


Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo,
São Bernardo do Campo, 2019.
Orientação de: Herom Vargas Silva.

1. Televisão – Seriados – Narrativa 2. Netflix – Empresa 3.


Televisão – Inovações tecnológicas 4. Tecnologia streaming
(Telecomunicação) I. Título.
CDD 302.2
A dissertação de mestrado intitulada: “SÉRIES ORIGINAIS DA NETFLIX: ALTERAÇÕES
NA ESTRUTURA NARRATIVA NO CONTEXTO DO BINGE-PUBLISHING”, elaborada
por Angela Miguel Corrêa, foi apresentada e aprovada com louvor em 04 de abril de 2019,
perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Herom Vargas Silva (Presidente/UMESP),
Prof. Dr. Mateus Yuri Passos (Titular/UMESP) e Prof. Dr. Rogério Ferraraz
(Titular/Universidade Anhembi Morumbi).

____________________________________________________________

Prof. Dr. Herom Vargas Silva


Orientador e Presidente da Banca Examinadora

____________________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Alberto de Farias


Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social


Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de pesquisa: Linha 1 – Comunicação midiática, processos e práticas socioculturais
Dedico esta pesquisa ao meu irmão. Obrigada
por assistir a tantas séries ao meu lado e brigar
comigo quando preferia ver a novela da vez.
Guardarei nossas memórias para sempre.
AGRADECIMENTOS

Esta dissertação não seria possível sem o apoio e os questionamentos do Rafael, meu
marido e grande parceiro intelectual. Obrigada por ter me incentivado a embarcar nessa jornada
de conhecimento e (UFA!) por ajudar com a digitação deste trabalho quando quebrei o ombro
a 60 dias da entrega final. Agradeço também minha família e amigos por dividirem suas séries
queridas comigo e acreditarem em mim!
Agradeço ainda aos colegas que fizeram desta trajetória uma das mais desafiadoras e
satisfatórias. Danusa, Rogério, Arthur, Carlos Eduardo, Pamella, Tássia, Jéssica, Keila, Luis,
Taynah e tantos outros que foram fundamentais para o amadurecimento deste trabalho e para
muitas conversas sobre nossas séries favoritas. Ao pessoal da Cátedra UNESCO/UMESP de
Comunicação para o Desenvolvimento Regional, obrigada por todos os convites e pela troca
constante.
Ao meu orientador Prof. Dr. Herom Vargas Silva, pela parceria, por confiar no meu
trabalho, por indicar caminhos e por todas as palavras reconfortantes. Tudo vai dar certo!
Gostaria também de lembrar os professores que foram desligados do programa em 2017 e
deixaram grande inspiração para a vida acadêmica. Prof. Dra. Magali Cunha, Prof. Dr. Salvador
Faro, Prof. Dr. Sebastião Squirra e Prof. Dra. Cicilia Peruzzo, sua atenção e carinho não serão
esquecidos.
Aos integrantes da banca de qualificação e também de defesa, Prof. Dr. Mateus Yuri
Passos e Prof. Dr. Rogério Ferraraz, suas indicações e inquietações foram essenciais para a
forma final desta dissertação.
Não menos importante, gostaria de agradecer ao CNPq pelo subsídio para esta pesquisa.
RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo identificar possíveis alterações na estrutura narrativa das
séries Originais Netflix, produções disponibilizadas aos assinantes por meio do binge-
publishing, modelo de distribuição da plataforma de streaming em que todos os episódios são
lançados de uma só vez. Para tanto, o estudo apoia-se em autores dos estudos de televisão, como
Raymond Williams, Arlindo Machado, Amanda Lotz, Jason Mittell e Esther Van Ede. Visa
traçar a evolução da televisão e suas transformações mediante a adoção de tecnologias como o
videocassete e o streaming, identificar recursos narrativos, ou que incidam sobre a narrativa,
presentes nas ficções seriadas contemporâneas feitas pela e para a TV, e contextualizar a Netflix
como caso paradigmático na indústria audiovisual. Como proposta metodológica, a pesquisa
parte da análise de conteúdo e da categorização de recursos narrativos para analisar possíveis
alterações presentes nas séries Originais Netflix de ficção científica Sense8 (EUA, 2015), 3%
(Brasil, 2016) e Dark (Alemanha, 2017). Dentre as seis categorias analisadas (narração
erotética, multiplicidade de tramas, concepção espaço-temporal, formato episódico-serial,
ganchos e recapitulações), foram encontradas alterações na utilização de ganchos e de
recapitulações narrativas.

Palavras-chave: Narrativa. Séries. Netflix. Binge-publishing. Televisão.


ABSTRACT

This dissertation aims to identify possible changes in the narrative structure of Netflix Originals
series, productions available to subscribers through binge-publishing, a distribution model of
the streaming platform in which all episodes are released at once. For this purpose, this essay
is based on authors such as Raymond Williams, Arlindo Machado, Amanda Lotz, Jason Mittell
and Esther Van Ede to map the evolution of television and its transformations by adopting
technologies such as VCR and streaming, identifying narrative elements present in
contemporary serial fictions made by and for TV, and contextualize Netflix as a paradigmatic
case in the audiovisual industry. As a methodological proposal, this research starts from a
content analysis and the categorization of narrative elements to indicate possible changes
present in the science fiction series Netflix Originals Sense8 (USA, 2015), 3% (Brazil, 2016)
and Dark (Germany, 2017 ). Among the six analyzed categories (erotetic narration, multiplicity
of plots, space-time conception, episodic-serial format, gaps and recaps), we found alterations
in the use of narrative gaps and recaps.

Keywords: Narrative. Series. Netflix. Binge-publishing. Television.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Exibição de menu da série Grace and Frankie ......................................................... 90


Figura 2: Lista de episódios da série Grace and Frankie ......................................................... 90
Figura 3: Função post-play ....................................................................................................... 91
Figura 4: Netflix revela o episódio-gancho de séries em sua plataforma ................................. 99
Figura 5: Angelica e Jason em Sense8.................................................................................... 118
Figura 6: Sun toma lugar de Capheus ao lutar contra gangue em Nairóbi ............................. 120
Figura 7: Letreiro indica a cidade de Mumbai ....................................................................... 122
Figura 8: Os oito protagonistas de Sense8 .............................................................................. 125
Figura 9: Nomi vê Niles no espelho e descobre a imagem de Sussurros ............................... 129
Figura 10: Memórias de Riley a destroem ............................................................................. 130
Figura 11: Frames da vinheta de Sense8 ................................................................................ 133
Figura 12: Família de Lito vê novela enquanto ele nasce ...................................................... 135
Figura 13: Ezequiel fala aos candidatos sobre ser um 3% ..................................................... 140
Figura 14: Júlia dirige-se ao mar e comete suicídio ............................................................... 142
Figura 15: Letreiro indica tempo da diegese .......................................................................... 144
Figura 16: Personagens presentes na 1ª temporada de 3% ..................................................... 146
Figura 17: No alojamento, Joana observa um duto ................................................................ 148
Figura 18: Michele retira a cápsula de seu corpo ................................................................... 150
Figura 19: Frames da vinheta da série 3% .............................................................................. 152
Figura 20: Ezequiel dá para Augusto um cubo para ajudá-lo no Processo ............................ 153
Figura 21: Flashback de Marco mostra seus familiares que já passaram no Processo .......... 154
Figura 23: Mads e Ulrich Nielsen, em 1986 ........................................................................... 159
Figura 24: Elizabeth e Charlotte Doppler ............................................................................... 162
Figura 25: Jornal de 1986 sobre desastre de Chernobil .......................................................... 164
Figura 26: Katharina e Hannah nos anos 1986, as roupas condizentes com a época ............. 165
Figura 27: Ulrich de 2019 viaja para 1953 e encontra sua avó, Agnes, e pai, Tronte ............ 166
Figura 28: Ulrich Nielsen preso em 1953 ............................................................................... 167
Figura 29: Árvore genealógica das quatro famílias de Dark .................................................. 170
Figura 30: Mural com fotos de todos os personagens nas três temporalidades...................... 171
Figura 31: Mikkel (em 1986) e Ulrich (em 2019) saem da caverna....................................... 174
Figura 32: Jonas chega a um futuro pós-apocalíptico ............................................................ 176
Figura 34: Frames da vinheta de Dark ................................................................................... 179
Figura 35: Recapitulações diegéticas visuais em Dark .......................................................... 181
LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Identificação das categorias na 1ª temporada de Sense8 ........................................ 117


Tabela 2: Linhas/tramas presentes em Sense8 ........................................................................ 124
Tabela 3: Tipos de ganchos presentes em Sense8 .................................................................. 126
Tabela 4: Tipos de recapitulações em Sense8 ........................................................................ 132
Tabela 5: Identificação das categorias na 1ª temporada de 3% .............................................. 139
Tabela 6: Linhas/tramas presentes em 3% ............................................................................. 145
Tabela 7: Tipos de ganchos presentes em 3% ........................................................................ 147
Tabela 8: Tipos de recapitulações em 3% .............................................................................. 151
Tabela 9: Identificação das categorias na 1ª temporada de Dark ........................................... 158
Tabela 10: Linhas/tramas presentes em Dark......................................................................... 169
Tabela 11: Tipos de ganchos presentes em Dark ................................................................... 172
Tabela 12: Tipos de recapitulações em Dark ......................................................................... 177
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15

CAPÍTULO I – TELEVISÃO: RECEPÇÃO, BROADCASTING E STREAMING ....... 21


1.1 As teorias da comunicação sobre televisão .................................................................... 23
1.2 Noções sobre a recepção televisiva clássica ................................................................... 25
1.3 A supremacia do fluxo televisivo e da programação ...................................................... 28
1.4 TV a cabo, controle remoto e videocassete .................................................................... 32
1.5 Século XXI: streaming e plataformas de OTT ............................................................... 35

CAPÍTULO II – NARRATIVA SERIADA FICCIONAL NA TELEVISÃO .................. 41


2.1 A serialidade na TV: folhetinização, repetição e fragmentação ..................................... 41
2.2 A evolução das narrativas seriadas ficcionais na TV norte-americana .......................... 46
2.3 Recursos narrativos da ficção televisual ......................................................................... 58
2.3.1 Narração................................................................................................................... 58
2.3.2 Tempo e espaço ....................................................................................................... 61
2.3.3 Formatos episódico e serial ..................................................................................... 63
2.3.4 Ganchos ................................................................................................................... 64
2.3.5 Recapitulações ......................................................................................................... 69

CAPÍTULO III – A ERA DO ON-DEMAND ...................................................................... 73


3.1 Streaming e plataformas on-demand .............................................................................. 73
3.2 Netflix: um caso paradigmático ...................................................................................... 79
3.3 Funcionalidades e algoritmos de recomendação ............................................................ 89
3.4 A distribuição binge-publishing: tudo de uma vez só .................................................... 94
3.5 A prática contemporânea do binge-watching ............................................................... 102

CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE PRODUÇÕES ORIGINAIS DA NETFLIX ............... 109


4.1 Categorização ............................................................................................................... 111
4.2 Sense8 ........................................................................................................................... 115
4.2.1 Narração erotética em Sense8 ................................................................................ 117
4.2.2 Formato episódico-serial em Sense8 ..................................................................... 119
4.2.3 Concepção espaço-temporal em Sense8 ................................................................ 121
4.2.4 Multiplicidade de tramas em Sense8 ..................................................................... 123
4.2.5 Ganchos em Sense8 ............................................................................................... 126
4.2.6 Recapitulações em Sense8 ..................................................................................... 131
4.3 3% ................................................................................................................................. 137
4.3.1 Narração erotética em 3%...................................................................................... 139
4.3.2 Formato episódico-serial em 3% ........................................................................... 141
4.3.3 Concepção espaço-temporal em 3% ...................................................................... 143
4.3.4 Multiplicidade de tramas em 3% ........................................................................... 145
4.3.5 Ganchos em 3% ..................................................................................................... 147
4.3.6 Recapitulações em 3% ........................................................................................... 151
4.4 Dark .............................................................................................................................. 156
4.4.1 Narração erotética em Dark................................................................................... 158
4.4.2 Formato episódico-serial em Dark ........................................................................ 161
4.4.3 Concepção espaço-temporal em Dark ................................................................... 162
4.4.4 Multiplicidade de tramas em Dark ........................................................................ 168
4.4.5 Ganchos em Dark .................................................................................................. 172
4.4.6 Recapitulações em Dark ........................................................................................ 177

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 183

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 187


15

INTRODUÇÃO

Principal mídia da segunda metade do século XX, a televisão se transforma, desde sua
origem, a partir da adoção das constantes novidades tecnológicas, como videoteipe, controle
remoto, videocassete, digitalização, streaming1, entre muitas outras ao longo de sua história. A
noção clássica (e ainda predominante) do meio apoia-se em duas grandes características: o fluxo
e a programação. A respeito do fluxo, Raymond Williams (2016) explica que o sistema de
broadcasting (radiodifusão) encontrou na publicidade sua principal forma de organização e
fonte de financiamento. A televisão segue um fluxo contínuo e planejado em que são
intercalados programas produzidos por ela, como telejornais, telenovelas, séries e transmissões
esportivas, e intervalos comerciais. A programação, por sua vez, é montada de maneira a
organizar todas essas produções em uma sequência equilibrada durante o dia e durante a
semana. Assim, toda produção televisiva é pensada e desenvolvida a partir da lógica do fluxo e
da programação, adaptadas do rádio e do folhetim. O espectador, portanto, para acompanhar
uma telenovela ou uma série, precisa se acostumar com esse fluxo, percebido como natural,
consequentemente obedecendo ao dia, horário e formato estabelecido pelo canal de TV. Devido
a esse fluxo, a audiência precisa se adaptar, incorporar um ritual de consumo de televisão
horizontal e estar disponível naquele dia, horário e duração para acompanhar com plenitude as
produções televisivas.
Mas o fluxo não determina apenas quando uma narrativa seriada ficcional é exibida
dentro da programação, ele também tem relação direta com a construção narrativa dessas
produções. Devido à necessidade da inserção de publicidade na programação, os produtos
televisivos também são pensados pela lógica da fragmentação, isto é, toda produção é concebida
a partir de blocos, utilizados para encaixar as inserções publicitárias que mantêm o broadcasting
vivo e, consequentemente, interrompem periodicamente a fruição da audiência. Isso faz com
que essa narrativa seriada de ficção seja estruturada sob a forma de capítulos ou episódios,
“cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e subdividido, por sua vez, em blocos
menores, separados uns dos outros por breaks para a entrada de comerciais ou de chamadas
para outros programas” (MACHADO, 2000, p. 83). Como consequência, seus criadores
projetam a priori a história a ser contada com a inserção de interrupções e utilizam uma série
de recursos narrativos, ou que incidem sobre a narrativa, com o objetivo de manter o interesse
do espectador até o próximo bloco ou próximo episódio. Como exemplo de um desses recursos

1
Forma de transmissão de dados de vídeo e áudio por meio de uma conexão via internet.
16

está o gancho, elemento narrativo que deixa em suspenso algum momento de grande
curiosidade ou mistério da história.
No entanto, com o desenvolvimento da televisão digital e com a criação de plataformas
pagas de vídeos sob demanda, essa concepção clássica do ritual de assistir à TV tem se
modificado. O mercado audiovisual passa por mudanças quanto à produção, distribuição,
exibição e consumo de conteúdo. A tecnologia streaming possibilitou a aproximação entre
empresas de tecnologia e a indústria do audiovisual para, juntas, ampliarem o acesso a
produções por meio de plataformas de distribuição on-line. Permitiu ainda que seu usuário tenha
controle e poder de escolha sobre o que deseja assistir, quando e como deseja fazê-lo, fora do
tradicional fluxo televisivo. Nesse cenário de transformações surge a Netflix2, fundada em 1997
como um serviço de aluguel de DVDs e que migrou para o on-line em 2007. Desde 2010, a
empresa atua somente no streaming e passou a disponibilizar filmes, séries e outros produtos
audiovisuais por um modelo de assinatura mensal. Seu grande diferencial estava no vasto
catálogo de produções, especialmente de obras completas de séries, o que só estava ao alcance
no passado por meio da compra de coletâneas de DVDs ou da gravação de episódios
transmitidos pela televisão.
Em 2018, a Netflix alcançou 139 milhões de assinantes em todo o planeta3 (NETFLIX...,
2019), conseguindo 29 milhões de assinantes novos somente no ano em questão. Nos Estados
Unidos, uma pesquisa da RBC Capital Markets4, de 2015, indicou que 51% dos usuários de
internet norte-americanos a utilizam para assistir a vídeos sob demanda pela Netflix, escolhida
como plataforma favorita por 60% dos entrevistados. No ano seguinte, analistas de mercado
norte-americanos também concluíram que a Netflix ultrapassou a audiência das maiores redes
de TV daquele país: ABC, NBC, CBS e Fox5.
Em 2012, a empresa passa a atuar também como produtora audiovisual e lança sua
primeira série com conteúdo original, rotulada como Netflix Original, com Lilyhammer (NRK
TV e Netflix, 2012-2014). Um ano depois, apresenta o drama político House of Cards (2013-
2018), com o ator Kevin Spacey como protagonista. Com o sucesso de House of Cards, outros
artistas de Hollywood embarcaram em projetos da plataforma que hoje possui títulos como
Gypsy (2017), com Naomi Wats, Grace and Frankie (2015-presente), com Jane Fonda e Lily

2
A autora optou por utilizar “a” Netflix, no gênero feminino, pois a empresa assim se autodenomina.
3
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/netflix-tem-recorde-de-assinantes-mas-receita-cresce-menos-
que-o-esperado.shtml Acesso em 18 jun. 2019.
4
http://qz.com/555723/more-than-half-of-americans-now-watch-netflix/ Acesso em 07 jun. 2017.
5
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/06/1647642-netflix-deve-ultrapassar-audiencia-de-maiores-redes-
de-tv-dos-eua-em-2016.shtml Acesso em 06 jun. 2017.
17

Tomlin, The Kominsky Method (O Método Kominsky, 2018-presente), com Michael Douglas e
Alan Arkin e Stranger Things (2016-presente), com Winona Ryder.
Embora disponibilize produtos feitos por empresas do ramo da televisão, a Netflix não
é um negócio pertencente à rede de broadcasting, o que lhe possibilita romper com a lógica de
exibição e distribuição realizada pelos canais de televisão. Presente no streaming, ela não possui
grade de programação e não respeita o fluxo televisivo. Seu catálogo pode ser acessado a
qualquer momento, hora ou dia pelo usuário de sua plataforma. A Netflix também não admite
intervalos publicitários, portanto, o catálogo pode ser visualizado sem interrupções, e possibilita
que o espectador decida quando pausar, retornar ou avançar na narrativa. E, finalmente, no caso
de suas produções originais, a empresa inaugurou o binge-publishing6, estratégia de distribuição
de produções em que todos os episódios das temporadas de suas séries são disponibilizados de
uma só vez. Em termos de construção narrativa, essas produções originais são estruturadas sem
a necessidade da inserção de breaks comerciais, sejam aqueles que separam os blocos de um
mesmo episódio ou aqueles colocados entre episódios, o que pode promover alterações em sua
estrutura, caso, por exemplo, dos ganchos ou da criação de episódios piloto7, prática tradicional
das séries televisivas convencionais.
Sobre esse tipo de distribuição e exibição de narrativas seriadas, a possibilidade de
assistência de produções sem interrupções é uma prática que ganhou o nome de binge-watching
nos estudos recentes de televisão (MATRIX, 2014; JENNER, 2015; VAN EDE, 2015;
MASSAROLO e MESQUITA, 2016; SACCOMORI, 2016). No Brasil, a prática é conhecida
como maratonas de vídeo, isto é, a visualização em sequência de episódios de narrativas
seriadas devido à disponibilidade das temporadas completas. Contudo, é importante ressaltar
que esse tipo de imersão não surgiu com o streaming ou com a Netflix, pois já era presente
entre fãs de séries nos anos 1980 após a invenção das fitas VHS e, posteriormente, das
coletâneas de DVDs e do download de episódios. Massarolo e Mesquita (2016) destacam
também o time-shifting (ou de reassistência), hábito desenvolvido com as tecnologias DVR
(Digital Video Recorder) e TiVo que permitiram a gravação de programas televisivos e, por
consequência, sua reassistência no momento desejado pelo espectador, ignorando os intervalos.

6
O termo binge-publishing é utilizado pela autora Esther Van Ede, mas também pode ser encontrado na literatura
inglesa de outras maneiras como the Netflix model, binge-releasing, publishing all episodes at once, straight-to-
series model e all-at-once (VAN EDE, 2015, p. 2).
7
Segundo Pallottini (2012, p. 45), o piloto é capital: “nele se deve apresentar clara e eficientemente todas as
personagens principais, identifica-las, dizer o que são e como são; mostrar suas relações com as demais, seu modo
de ser, suas crenças, seus desejos, seus objetivos de vida, o estágio em que estão. Deve-se dar a situação básica da
comunidade ou do grupo que se quer tratar e, provavelmente, o problema inicial que deu origem ao estado atual
de vida de todos”.
18

Diante dessa contextualização, esta pesquisa busca investigar se a forma de distribuição


audiovisual da Netflix pode alterar a construção das ficções seriadas contemporâneas quanto à
sua estrutura narrativa e, em caso positivo, quais são essas possíveis alterações narrativas. Este
estudo parte da hipótese de que, ao se apresentar como caso paradigmático na indústria do
audiovisual por possibilitar a distribuição binge-publishing de suas séries originais, a Netflix
promove alterações na estrutura narrativa das ficções seriadas contemporâneas que,
consequentemente, podem estimular e reforçar a prática do binge-watching entre os usuários
do serviço. Para isso, esta investigação tem como objetivo demonstrar como a narrativa seriada
ficcional se apresenta na TV, contextualizar e estabelecer a Netflix como um caso
paradigmático do cenário audiovisual e, finalmente, identificar possíveis alterações promovidas
na estrutura narrativa de suas produções seriadas de acordo com categorias criadas a partir de
recursos presentes nas estruturas narrativas tradicionais da televisão.
Embora se destaque por seu modelo de negócio disruptivo, a Netflix tornou-se objeto
de estudos científicos apenas após os anos 2010, quando entrou efetivamente no ramo on-line.
Artigos publicados a partir de estudos sobre a Netflix e o binge-watching datam dos anos mais
recentes, como os trabalhos em língua inglesa de Jenner (2015), Matrix (2014) e Van Ede
(2015). Sobre a Netflix especificamente, grande parte dos estudos investigam seus algoritmos
de recomendação, seu método de distribuição e buscam entender como a plataforma funciona,
caso de Keating (2013), Massarolo (2015 e 2016) e Lotz (2014). Quanto a dissertações e teses
em língua portuguesa, até 2016, foram encontrados seis trabalhos em que são abordados os
temas Netflix, binge-watching e complexidade narrativa, porém, os estudos focam na
semiologia discursiva, no estudo de caso da plataforma de streaming e no estudo de recepção
para avaliar o fenômeno binge-watching, caso de Saccomori (2016). Em 2017 e 2018, houve
um considerável aumento de dissertações (de seis para 46 trabalhos) que incluíam revisões
sobre a Netflix nas áreas de Comunicação, Letras, Artes, Tecnologia, Administração, Ciências
da Computação, Tradução e História, mas apenas duas dela citam estrutura ou construção
narrativa como parte de seus interesses. Contudo, utilizam os preceitos da semiótica discursiva
e da análise do discurso de Pierre Bourdieu como proposta metodológica. Assim, para ampliar
o debate sobre o tema, a presente pesquisa se propõe a abrir um novo campo de análise ao partir
dos recursos narrativos, ou que incidem sobre a narrativa, encontrados nas narrativas
tradicionais da TV para identificar possíveis alterações presentes nas produções originais da
Netflix acionadas pelo binge-publishing.
O primeiro capítulo desta dissertação dedica-se a entender a evolução da televisão e suas
transformações diante da adoção de tecnologias variadas como o controle remoto, o
19

videocassete, o DVR (Digital Video Recorder) e o VOD (vídeo sob demanda), fundamentais
para ampliar as possibilidades de experiências televisivas para a audiência. Após apresentar
uma revisão sobre como as teorias comunicacionais entendem o meio, o capítulo aborda noções
sobre a recepção televisiva clássica, os conceitos de fluxo e de programação, a criação da TV
por assinatura e sua programação diagonal e, finalmente, o surgimento das plataformas de OTT8
(Over the top) e de streaming no século XXI, dentre elas a Netflix, responsáveis por fornecer
ao público uma experiência televisiva ainda mais fragmentada, personalizada e individual.
O segundo capítulo discute como as narrativas seriadas ficcionais se configuram na
televisão, herdeiras de formas anteriores como as narrativas oral, literária, fílmica e teatral, entre
outras. A partir de reflexões sobre o folhetim, a literatura e o cinema, as narrativas seriadas de
ficção na TV baseiam-se na repetição e na fragmentação intrínsecas do meio. O capítulo ainda
mostra a evolução dessas narrativas na televisão norte-americana, país onde esse tipo de
produção ganhou maior projeção, e indica como a complexidade tornou-se característica
determinante para o sucesso desses produtos a partir do final do século XX e primeiras décadas
do século XXI. Por fim, são identificados alguns dos recursos narrativos presentes na estrutura
narrativa dessas produções, como narração, tempo, espaço, formatos episódico e serial, ganchos
e recapitulações.
A era contemporânea do on-demand é tema do terceiro capítulo, em que são listadas
algumas plataformas de streaming de produções ficcionais no Brasil e no mundo e a história da
Netflix é apresentada, assim como suas funcionalidades e algoritmos de recomendação. O
capítulo também aprofunda o modelo de produção e distribuição único da Netflix, o binge-
publishing, e como a plataforma é símbolo da forma com que parte da audiência assiste a
narrativas seriadas hoje, o fenômeno de assistência em maratona denominado binge-watching.
Finalmente, o quarto e último capítulo se debruça sobre a proposta metodológica e faz
a análise de três séries originais da Netflix – Sense8 (2015-2018), 3% (2016-presente) e Dark
(2017-presente) –, com o objetivo de identificar possíveis alterações na estrutura narrativa
dessas produções distribuídas no formato binge-publishing. Diante do extenso universo de
produções seriadas Originais Netflix presentes no serviço, esta investigação optou por realizar
uma análise de conteúdo, seguindo os preceitos de Laurence Bardin (2011), para a escolha das
três séries, tratadas para a criação das categorias de análise da estrutura narrativa das produções
e, consequentemente, para as inferências e interpretações realizadas.

8
São as plataformas que transmitem produções via streaming por meio de diversos aparatos tecnológicos com
acesso à internet. Há plataformas OTT pagas como Netflix e Hulu e OTTs gratuitas ou que também oferecem
conteúdo pago, caso do YouTube.
20

Nas Considerações Finais, são apresentados os resultados (ou pistas) obtidos a partir da
análise das séries originais da Netflix e também outras reflexões acerca do meio televisão diante
das transformações promovidas pelas tecnologias contemporâneas.
21

CAPÍTULO I – TELEVISÃO: RECEPÇÃO, BROADCASTING E


STREAMING

Definir o que é televisão ou quais são os programas feitos para ou por ela tem sido um
trabalho cada vez mais complexo pelos estudiosos de mídia. A evolução – ou até revolução, de
acordo com teóricos como Amanda Lotz (2014) – da televisão tem promovido mudanças sobre
a concepção do que é o meio, uma vez que hoje é possível “assistir TV” não apenas pelo
aparelho muitas vezes localizado nas salas de estar das residências, mas também via
smartphones, tablets, computadores e videogames. O tipo de audiência dos anos 1960, por
exemplo, já não é a única a desfrutar das produções do meio – os telespectadores hoje se
dividem entre diversas possibilidades de assistência, migrando para nichos específicos.
O meio como tradicionalmente projetado – a ser acompanhado por meio de imagens em
movimento com som dispostas em televisores instalados em residências e voltado para atingir
grande público – ganhou definições desde seus primórdios, algumas que continuam a
caracterizá-lo, mesmo diante de transformações. Para Raymond Williams (2016), em sua obra
Televisão, escrita em 1974, nenhuma tecnologia surge por si só ou se configura como um evento
isolado, pois é inseparável de um conjunto de demandas, impulsos e práticas da sociedade. Para
o autor, televisão alterou o mundo e deve ser entendida enquanto tecnologia e forma cultural,
resultado de uma série de invenções (eletricidade, telegrafia, fotografia, cinema, rádio) e de
demandas da sociedade. Para Williams, a televisão pode ser pensada a partir de diversos
ângulos, mas sempre como um meio que atende demandas sociais, políticas e econômicas.
A compreensão de Williams de que televisão é também cultura foi corroborada por John
Fiske (2011), na obra Television culture, de 1987. O autor inicia o primeiro capítulo ressaltando
que entende a televisão como um apoiador/provocador de sentidos, prazeres e de cultura:
“Televisão como cultura é parte crucial da dinâmica social pela qual a estrutura social se
mantém em um constante processo de produção e reprodução9” (FISKE, 2011, p. 1). Dominique
Wolton (1996), por sua vez, também defendeu que a televisão constituiu uma mudança radical
na comunicação e funciona como instrumento para a democracia. Contudo, o autor vai além e
destaca que esse meio, ao atingir todos os públicos, segundo ele, constitui ainda um laço forte

9
“Television-as-culture is a crucial part of the social dynamics by which the social structure maintains itself in a
constant process of production and reproduction”. (Todas as citações em língua estrangeira nesta dissertação foram
traduzidas pela autora e terão o texto original em nota de rodapé.)
22

entre democracia e comunicação de massa, um laço social, na concepção formulada por


Durkheim e pela escola francesa de Sociologia. Para Wolton (1996, p. 123), “o espectador, ao
assistir à televisão, agrega-se a esse público potencialmente imenso e anônimo que a assiste
simultaneamente, estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço invisível”.
Porém, conforme afirmam Arlindo Machado (2011) e Lotz (2014), o surgimento de
tecnologias como o videocassete, o DVR (Digital Video Recorder) e o VOD (vídeo sob
demanda ou on demand) ampliou as possibilidades de experiências televisivas para a audiência,
o que tem ocasionado dificuldade maior em conceituar o que é o meio principalmente a partir
da década de 2000. Hoje é possível desfrutar da programação transmitida pelos canais abertos
ou por assinatura ou ainda acompanhar inúmeras alternativas que circulam pela internet e pelas
plataformas de conteúdo e streaming como Netflix, Globoplay e Amazon Prime Video. Para
Machado (2011), essas novas formas de assistência têm impacto direto na audiência, dividida
entre os receptores, aqueles que recebem em sua sala de estar passivamente a programação
estabelecida pelas redes tradicionais, e os interatores, que exigem experiências midiáticas mais
fluídas, individualizadas e que desejam montar suas próprias grades de programas e decidir
como interagirão com esses produtos. Lotz (2014), por sua vez, defende que essas novas formas
de “ver TV” fazem com que a “audiência norte-americana raramente seja categorizada como
uma audiência de massa e, ao contrário, é mais precisamente entendida como uma coleção de
audiências de nicho10” (LOTZ, 2014, pos. 297). Essas reflexões colocam em dúvida a ideia
apresentada pelos teóricos anteriores de que a TV é o meio das massas, é aquele que atinge
todos os públicos.
Com o objetivo de entendermos como a televisão vem se modificando desde sua criação
até a contemporaneidade digital, neste capítulo, serão apresentadas brevemente as teorias da
comunicação sobre este meio, aspectos relacionados à recepção clássica da TV e, finalmente,
um panorama sobre a evolução do meio a partir das primeiras transmissões na década de 1930,
com foco na televisão norte-americana, já que o objeto de estudo desta dissertação são as
alterações presentes na narrativa seriada produzida pela Netflix, empresa fundada e sediada nos
Estados Unidos, portanto, relacionada à sua história e cultura. Ao abordarmos as principais
características da TV quanto a produção e recepção em um espaço temporal de quase um século,
damos início a reflexões posteriores como o caso paradigmático da Netflix no cenário
audiovisual mundial e à prática da maratona de séries (binge-watching), possibilitada pela
emergência de tecnologias como o videocassete, o DVD e a transmissão via streaming.

10
“The U.S. television audience now can rarely be categorized as a mass audience and is instead more accurately
understood as a collection of niche audiences”.
23

1.1 As teorias da comunicação sobre televisão

Criada na década de 1920, a televisão tornou-se um dos meios de comunicação e de


entretenimento mais importantes do século XX – ou o hegemônico por excelência a partir da
segunda metade do século XX ao estar presente em grande parte das residências pelo mundo.
Devido à sua popularização iniciada nos Estados Unidos, nos anos 1940, e na Europa, por volta
da década de 1950, diversos teóricos se debruçaram sobre o veículo para entendê-lo,
inicialmente divididos entre aqueles que atribuíam à televisão uma mídia de manipulação e
outros que acreditavam na recepção livre dos telespectadores.
De acordo com autores como Adorno e Horkheimer (2006), pertencentes à Escola de
Frankfurt, a televisão foi projetada como parte da indústria cultural, criada como um meio
apenas para a reprodução ideológica e para a garantia do modo de dominação de classe.
Pesquisadores dessa corrente teórica também entendiam o processo da televisão como uma
relação direta e unidirecional entre emissor e receptor. O público era visto, sobretudo, como
espectador passivo desta produção alienante (CITELLI et al., 2014).
Reflexões sobre os meios de comunicação de massa como a televisão também foram
realizadas pela Mass Communication Research, interessada em investigar os efeitos da
exposição da sociedade a esses meios. Fundada por Harold Lasswell, que inicialmente se
debruçou sobre a propaganda política após a Primeira Guerra Mundial e criou o modelo da
agulha hipodérmica, a Mass Communication Research abriu caminho para outros modos de se
pensar os meios de comunicação de massa como a Teoria Funcionalista, a Teoria dos Efeitos
Limitados e os Estudos de Mídia (media studies, em inglês) (CITELLI et al., 2014;
MATTELLART e MATTELART, 1999).
Ainda segundo Mattelart e Mattelart (1999) e Citelli et al. (2004), o objetivo da
perspectiva funcionalista era entender as funções exercidas pela comunicação de massa na
sociedade, olhando para os efeitos sempre a partir da emissão. Dentre as funções da mídia estão
a instituição e estabilização do corpo social e dos valores da sociedade. Ao mesmo tempo,
iniciou-se um movimento que visava observar o receptor e retirar da emissão sua dominância e
supremacia. A partir dos estudos de Elihu Katz, a Teoria dos Usos e Gratificações se interessou
pela satisfação dos receptores diante dos meios de comunicação. A evolução dessa teoria
mostrou que o processo emissão-recepção era refratário e, portanto, as necessidades dos
espectadores são cruciais para determinar suas interpretações das mensagens.
24

A atenção sobre o emissor levou os estudiosos da Teoria dos Efeitos Limitados ou dos
Efeitos da Mídia refletirem a respeito da influência exercida pela televisão sobre os
telespectadores, indagando sobre sua capacidade para potencializar efeitos negativos ou
“desmascarar seu impacto negativo” sobre a sociedade (OROZCO GÓMEZ, 2005, p. 28). Os
Estudos de Mídia, por sua vez, deram início a pesquisas para além do foco exclusivo nos efeitos
e abordaram o conjunto de relações que se desenvolvem em torno dos meios de comunicação
de massa. Após a divulgação dos estudos de Marshall McLuhan sobre como os meios eram
extensões dos sentidos e das potencialidades do corpo humano, a investigação sobre as mídias
tornou sua atenção para as tecnologias e hoje reúne pesquisas sobre as configurações dos meios,
suas materialidades, suas linguagens e processos de apropriação social e cultural que estejam
relacionados, entre outros temas. A emergência das novas mídias (ou das mídias digitais)
promoveu uma nova guinada nos Estudos de Mídia, fazendo com que teóricos revisassem os
modelos tradicionais de massa e se voltassem para as interações entre os meios de comunicação
e seus usuários na contemporaneidade e para a complexidade das relações postas entre mídia e
sociedade. No caso da televisão especificamente, autores como Henry Jenkins (2009, 2014,
2015) passaram a observá-la e analisá-la não só como um único aparelho e suas relações, mas
também como fenômeno integrado a outros suportes ou dispositivos tecnológicos como
smartphones, videogames e internet (CITELLI et al., 2014).
O campo dos Estudos Culturais, que surge com o Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos (CCCS), fundado por Richard Hoggart, em 1964, na Universidade de
Birmingham, Inglaterra, introduz outra noção sobre os estudos acerca dos meios de
comunicação de massa ao atentar-se para a recepção e as audiências e as estruturas de produção.
A partir da formação marxista de grande parte de seus pesquisadores – o que atribuiu ao grupo
a classificação de New Left – e o trabalho com educação da classe trabalhadora inglesa, essa
corrente se distancia do entendimento do público como passivo e alienado e coloca a recepção
como elemento ativo nos processos de significação. Uma vez que a cultura é entendida pelos
pesquisadores como um processo sociohistórico dinâmico que cria e assimila sentidos e que se
constitui como um espaço de disputas porque está sempre relacionado às questões do poder,
Douglas Kellner (2001) vê como grande diferencial dos Estudos Culturais a questão da falta de
distinção entre cultura alta e baixa e valorização de formas culturais como o cinema, a televisão
e a música popular. Ao analisar as esferas da produção, da distribuição e da recepção televisiva,
os teóricos apresentam como a experiência televisiva pode ser lida e ressignificada de diferentes
formas.
25

Por fim, a já citada emergência das mídias digitais não só trouxe entendimentos inéditos
para os Estudos de Mídia, mas também abriu possibilidades para novos formatos midiáticos,
um dos objetos de estudo da Cibercultura, corrente originária no final do século XX interessada
em investigar as transformações proporcionadas pelas tecnologias digitais da informação e da
comunicação e a cultura “que surge a partir dessas transformações, tendo na comunicação
mediada por computadores seu centro” (CITELLI et al., 2014, p. 412). Com o surgimento das
concepções de ciberespaço na década de 1990 e de sociedade em rede, as práticas de criação,
produção, transmissão e recepção da televisão estão em plena transformação e se tornaram
também objeto desta linha teórica. Mais uma vez, as reflexões de Jenkins (2009, 2014, 2015)
sobre a cultura da convergência e da conexão, transmidiática e crossmídia estão circunscritas
nos estudos de televisão.

1.2 Noções sobre a recepção televisiva clássica

Criada após o teatro, a literatura, o cinema e o rádio, a televisão foi desenvolvida a partir
de diversos elementos de todas as linguagens anteriores, sendo categorizada (assim como o
cinema) como um meio híbrido (WOLTON, 1996; MARTÍN-BARBERO, 2015; MACHADO,
2000; WILLIAMS, 2016). Ainda assim, desenvolveu particularidades que, para Wolton (1996),
são a razão de seu sucesso, pois é capaz de dar sentido e continuidade à mistura diversificada
de imagens através de uma linguagem híbrida.
A partir do cinema, a televisão organizou-se sua forma e estilo por planos, cenas e
sequências para trabalhar as imagens em movimento, e aproveitou o estudo de ângulos e
profundidade de câmera para dar sentido às histórias que conta – pesquisas de nomes como
Jeremy Butler (2010) e Simone Maria Rocha (2014) dão sequência a esse tipo de abordagem.
No entanto, enquanto o cinema incentiva a imersão completa do público na narrativa por meio
da exibição na “caixa preta”, a recepção televisiva clássica pode ser realizada simultaneamente
a outras atividades diárias, como cozinhar ou conversar, o que pode atrapalhar a imersão do
espectador – condição que assemelha a recepção televisiva à do rádio. Diante da popularização
do meio a partir da década de 1950 nos Estados Unidos, diversos teóricos passaram a pesquisar
a recepção televisiva, de forma a entender suas especificidades e conjuntas, caso de nomes
como Hall (2003), Orozco Gómez (2005), Wolton (1996) e Fiske (2011), para citarmos alguns.
Sobre essa perspectiva, Wolton diz que
26

[...] no cinema os gêneros são mais limitados, a construção mais elaborada, as


condições culturais mais estruturadas e, sobretudo, a recepção em um local
específico por um público limitado confere à obra cinematográfica um estilo
e uma estética bem particulares. [...] Na televisão, a diversidade de gêneros e
o volume de imagens são maiores, mas sobretudo o caráter maciço da
recepção, em domicílio, introduz variante na interpretação de uma imagem,
cujo status se modifica. É difícil analisar em si uma imagem de televisão,
porque as condições de recepção praticamente fazem parte dela: natureza e
uso da imagem são indissociáveis. É por isso que o sentido da imagem
televisiva, mais ainda que o da imagem cinematográfica, exige que se leve em
conta a interação entre o emissor, o difusor e o receptor. Esse sentido é
inseparável de um pragmatismo da imagem, ou seja, a dinâmica resultante das
inevitáveis defasagens entre as condições de emissão (intenção e condições de
produção) e as condições de recepção (WOLTON, 1996, p. 68).

Assim como Wolton, Fiske (2011) investiga os hábitos do norte-americano diante do


aparelho televisivo. Ao observar como uma família se relaciona com o meio, Fiske exemplifica
como a atenção do espectador televisivo pode ser menos concentrada que a do espectador
cinematográfico e lembra ainda que, em certas situações, “o ato de assistir televisão e a escolha
do que é assistido pode desempenhar um importante papel na cultura dos lares, que é vista
geralmente como patriarcal11” (FISKE, 2011, pos. 74).
A noção de que a audiência pode assistir à TV ao mesmo tempo em que executa outras
tarefas evidencia também a outra característica bastante presente nas produções do meio: a
repetição. Exatamente por não ter a atenção total do espectador, o meio precisa repetir
informações e imagens a todo o tempo, de forma a captar todos os públicos. A princípio, a
repetição verbal e visual da televisão foi necessária porque o aparelho apresentava uma tela
pequena demais e com péssima qualidade de imagem. Contudo, com o desenvolvimento do
aparelho em si e das transmissões, a repetição seguiu sendo muito utilizada pelas produções
televisivas seriadas para prolongarem sua história diante do sucesso e visando o lucro ao
máximo – ideia explorada por Umberto Eco (1989, p. 122), entendida por ele como uma
“tipologia da repetição”, conceito que será abordado mais profundamente no capítulo 2.
Wolton (1996, p. 69) aponta que as características de base da TV são o espetáculo, a
identificação, a representação e a racionalização, dado que “a televisão contribui diretamente,
portanto, para retratar e modificar as representações do mundo”. Seu pensamento faz coro com
o de Williams e de outros pesquisadores dos Estudos Culturais no sentido de que a televisão é
uma geradora de sentidos que possui importante papel na mediação e na construção de valores

11
“Sometimes the act of watching television and of choosing what is watched can itself play an important role in
the culture of the home, which is, as we have seen, generally patriarchal”.
27

culturais, simbólicos e ideológicos. Acima de tudo, considera a máxima de que a recepção é


ativa, preparada para ressignificar códigos e mensagens em um processo televisivo.
Esse também é o entendimento de Hall (2003), ao afirmar que a televisão trabalha um
conjunto de textos e, consequentemente, sentidos para a manutenção da ideologia dominante.
É dele o ensaio Codificação/Decodificação12 (2003), em que analisa o processo comunicativo
da televisão e introduz a ideia de que seus textos são relativamente abertos e, assim, lidos e
interpretados de diferentes maneiras por diferentes pessoas. Hall questiona a noção linear de
emissão-mensagem-recepção e entende o processo como uma “complexa estrutura em
dominância, sustentada através da articulação de práticas conectadas, em que cada qual, no
entanto, mantém sua distinção e tem sua modalidade específica, suas próprias formas e
condições de existência” (HALL, 2003, p. 387). Assim sendo, a estrutura é composta por
produção, circulação, distribuição, reprodução e consumo/recepção.
O momento da codificação pode ser entendido pela ideia de que a produção televisiva
constrói a mensagem e constitui um referencial de sentidos e ideias, geralmente influenciada
pelas práticas dos profissionais da mídia. Assim, a produção assume o papel de estrutura
dominante que tem o poder de definir esses sentidos e ideias, de definir uma situação para uma
recepção ativa. A circulação e a recepção também estão ligadas ao processo de produção e à
audiência, configurada como “fonte” e “receptor” da mensagem televisiva (HALL, 2003, p.
390). Todavia, ainda que a estrutura do texto televisivo contenha a ideologia dominante, Hall
defende que as situações sociais do espectador podem fazer com que ele atribua sentido a essa
mensagem de maneira diferente à inicialmente esperada – esse é o momento da decodificação.
Isso significa que, embora a produção possa “sugerir” aspectos da ideologia dominante, ela não
possui controle total sobre como a recepção entenderá a mensagem. Logo, o texto televisivo
torna-se um ambiente de constante negociação entre espectador e texto.
Segundo Hall (2003), o processo de decodificação – e, portanto, de recepção televisiva
– é definido por três tipos de leitura: a preferencial (ou dominante), a negociada e a
oposicionista. A primeira segue os valores hegemônicos contidos no texto, atribuído pela
produção. A leitura de oposição vai contra o texto dominante e descontrói a hegemonia. A
leitura negociada trava um embate entre as leituras anteriores, reconhecendo a legitimidade
hegemônica, mas negociando visões a partir de suas experiências sociais. Deste modo, a leitura

12
Embora seja um estudo importante para a comunicação, o modelo de codificação/decodificação estabelecido
por Hall é criticado por ser um modelo que se assemelha à linearidade de anteriores e por entender a decodificação
como um ato único, entre outros pontos. Hall reconheceu que “o modelo descrito no artigo, realmente, faz com
que as instituições de comunicação pareçam bastante homogêneas no seu caráter ideológico, mas elas não o são”
(HALL, 2003, p. 368).
28

da TV mostra-se como a negociada. Wolton ressalta que a mesma mensagem, ainda que vista
por todos, não tem o mesmo sentido para todos. “Essa dupla função de identificação e de
representação não é passiva e resulta de uma espécie de interação constante entre os
espectadores e aquilo que a televisão mostra sobre o mundo” (WOLTON, 1996, p. 69).
O entendimento do espectador televisivo como um receptor ativo é também o de Fiske
(2011), que categorizou três níveis de códigos que compõem o texto televisivo e que se inter-
relacionam: a realidade, composta por códigos de convenções culturais como aparência,
vestuário, ambiente, fala, gesto etc.; a representação, composta por códigos técnicos como
câmera, iluminação, edição, som etc.; e a ideologia; que orienta a organização dos códigos
técnicos dentro de um entendimento social e que são transformados em códigos ideológicos,
como individualismo, raça, patriarcado etc. Esses níveis ajudam a entender como o texto produz
sentidos, promove associações e trabalha a polissemia para atingir diversas audiências. A
polissemia também é lembrada por Wolton como uma das razões para a força da televisão: “o
milagre da televisão é esse encontro entre imagens estandardizadas, apesar de polissêmicas, e
de condições de recepção que criam uma outra polissemia, ligadas ao contexto cultural e
político da recepção” (WOLTON, 1996, p. 77).
Entretanto, a ideia de receptor ativo apresentada pelos teóricos acima passa por uma
nova revisão com a chegada de tecnologias como o videocassete, os boxes de DVD e a banda
larga, que possibilita o download de programas televisivos e, mais tarde, impulsiona o
surgimento das plataformas de streaming. Especialmente com a revolução digital e,
consequentemente, tecnologias como OTT, os telespectadores têm mais opções de consumir os
conteúdos televisivos, escolhendo onde, quando e a quais produtos desejam assistir, e passam
até mesmo a interagir e exercer papéis importantes no desenvolvimento e transmissão de
programas da TV – exemplos disso são os reality shows e programas em que o público é
convidado a participar das transmissões via redes sociais. Conforme aponta Lotz (2014), os
telespectadores seguem assistindo TV, mas o fazem de diferentes maneiras, seguindo rituais
quase que personalizados – escolhendo o aparelho que desejam usar (TV, tablet, computador,
smartphone), o local em que possam assistir (no quarto, no ônibus, na sala de espera do
consultório médico, no restaurante durante o almoço etc) e o conteúdo favorito no momento
mais propício do dia (ou da madrugada).

1.3 A supremacia do fluxo televisivo e da programação


29

Para entendermos como são os processos de produção e de recepção de produtos


televisivos hoje, culminando nas narrativas seriadas originais propostas pela Netflix, se faz
necessário resgatar a evolução da televisão a partir das primeiras transmissões e implantações
de redes de TV até a atualidade, em que a chegada da banda larga e dos dispositivos móveis
possibilitam que o público assista televisão fora da linearidade e fora das salas de estar das
residências.
Após diversos experimentos de transmissão de imagens em movimento a distância, os
aparelhos televisores começaram a ser produzidos em larga escala na década de 1930, mesmo
que poucas pessoas tivessem acesso a eles devido ao seu preço, principalmente quando
comparado com os jornais e o rádio, meio de comunicação predominante nesse período. Entre
os anos de 1920 e 1930, Inglaterra e Estados Unidos abriram suas primeiras emissoras de TV,
implantando dois modelos distintos: o público, na Inglaterra, e o comercial, nos Estados Unidos.
Na Inglaterra, a British Broadcast Corporation (BBC) foi fundada em 1922 pelo governo como
uma rede televisiva pública que se tornou referência em termos de estrutura considerada
“relativamente independente da ingerência de governos e mercados” (CITELLI et al., 2014, p.
295). Nos Estados Unidos, por sua vez, o modelo comercial deu início às redes NBC (National
Broadcasting Company), fundada em 1926, CBS (Columbia Broadcasting System), de 1927, e
ABC (American Broadcasting Company), criada em 1948, todas já estabelecidas anteriormente
como redes radiofônicas.
Aconteceram ainda nos anos 1930 as primeiras transmissões de televisão aberta na
Europa: a cobertura das Olimpíadas de Berlim, em 1936, e a coroação de George VI, em 1937,
importantes para a disseminação do meio no continente, embora os progressos tecnológicos
locais tenham acontecido de maneira mais lenta em comparação aos norte-americanos devido
às consequências da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, por sua vez, a primeira emissora de
televisão surgiu apenas no ano de 1950, em São Paulo. A TV Tupi, pertencente ao jornalista
Assis Chateaubriand, permaneceu como única rede brasileira até o ano seguinte, momento em
que o grupo de Chateaubriand, Diários Associados, fundou a TV Tupi Rio.
Por mais que as primeiras emissoras norte-americanas tenham sido fundadas em meados
da década de 1920, a televisão local se desenvolveu no pós-guerra. A difusão televisiva e sua
consolidação aconteceu efetivamente nos anos 1950 (CITELLI et al, 2014; ESQUENAZI,
2011), período em que as vendas de televisores explodiram. Em 1955, os aparelhos televisivos
estavam presentes em “dois terços dos lares americanos, ou seja, 36 milhões de receptores;
recorde-se que, na mesma época, havia apenas cinco milhões de televisores em toda a Europa”
(ESQUENAZI, 2011, p. 18). A popularidade da TV na Europa se deu apenas na década
30

seguinte. De acordo com Wolton (1996), a televisão como “meio de massa” foi fundamental
nesse período de 1950 como mediação comunicativa para que a população entendesse as
mudanças econômicas e sociais, as mutações do trabalho e do consumo.
Teóricos que buscam categorizar a evolução da televisão dos Estados Unidos como Lotz
(2014) e Reeves, Rogers e Epstein (2006, 2007)13 entendem que os primeiros 30 a 40 anos do
meio foram caracterizados pela presença dominante das redes de TV (networks), época em que
as grandes emissoras institucionalizaram práticas de criação, produção, distribuição e recepção
televisivos. Como as redes NBC, CBS e ABC já haviam se consolidado no rádio, elas possuíam
condições financeiras de alcançar o público por meio de emissoras locais afiliadas e vendiam
espaços publicitários. Durante as décadas de 1940 e 1950, de acordo com Esquenazi (2011) e
Lotz (2014), essas emissoras sustentaram seu modelo de negócio da mesma forma que no rádio,
possibilitando que cada anunciante patrocinasse uma atração específica. A prática da venda de
intervalos comerciais de 30 segundos para diversos anunciantes, modelo predominante ainda
hoje na televisão aberta e fechada, foi iniciado apenas nos anos 1960. Nesses primeiros anos,
os produtores de conteúdo independentes e os estúdios de cinema só possuíam três
competidores para a comercialização de seus produtos e eram obrigados a respeitar as práticas
do oligopólio.
Segundo Williams (2016), o broadcasting (ou a radiodifusão), tanto do rádio quanto da
TV, encontrou na publicidade sua principal forma de organização e fonte de financiamento.
Desse modo, sua presença na exibição televisiva diária se tornou fundamental para o
desenvolvimento do meio – e seu formato foi sendo criado para encaixar-se na sequência de
programas “culturais” e comerciais” do modelo proposto pela TV (WILLIAMS, 2016, p. 96).
Essa sequência foi atribuída por Williams como fluxo:

Em todos os sistemas de radiodifusão desenvolvidos, a organização


característica – e, portanto, a experiência característica – é a de sequência ou
fluxo. Esse fenômeno de um fluxo planejado talvez seja, então, a característica
que define a radiodifusão simultaneamente como uma tecnologia e uma forma
cultural (WILLIAMS, 2016, p. 96-97).

A ideia de fluxo foi defendida por Williams quando ele percebeu a dificuldade em
descrever o ato de assistir televisão. Segundo ele, ler um livro, participar de um encontro ou
assistir a uma peça de teatro eram eventos isolados, único e temporais. Com a radiodifusão, ao

13
Enquanto Lotz (2014) categoriza esse período como Network Era, delimitado dos anos 1950 até 1980, Reeves,
Rogers e Epstein (2006, 2007) o denominam como TV I, compreendido entre o fim dos anos 1940 e meados da
década de 1970.
31

apresentar uma sequência ininterrupta de diversos programas, o espectador pode acompanhar


diferentes “eventos” em sua casa, em uma única dimensão e operação. O fluxo foi incorporado
pelo espectador na prática televisiva e mostrou não só como os textos televisivos são
constituídos, mas também como a audiência se relacionava com eles. Ainda que compreenda a
ideia de fluxo proposta por Williams, Machado (2000) pontuou que esse conceito coloca a
programação televisiva como um caldo homogêneo e amorfo, podendo impedir a análise de
diferenças e qualidades sobre os programas presente nele. Assim, ao considerar que programas
e gêneros são mais estáveis de serem analisados, Machado acredita que a ideia de programa
leva vantagem ao fluxo ao possibilitar uma abordagem seletiva e qualitativa.
Quando o broadcasting percebeu que a audiência era capaz de assimilar transmissões
de eventos isolados (peças de teatro, jornais, partidas esportivas etc.) no modelo do fluxo, esses
eventos começaram a ser vistos não mais como unidades separadas, mas reunidos em
programas. “À medida que o serviço se expandia, esse ‘programa’ tornou-se, com uma
organização maior, uma série de unidades de tempo definido. Cada unidade podia ser pensada
separadamente, e o trabalho de programação era colocá-las em sequência” (WILLIAMS, 2016,
p. 98). Assim nasceu o conceito de programação, que organiza essa série de unidades de tempo
definido, mas que é concebida como um grande conjunto e que equilibra diferentes tipos de
programas.
A partir do “discurso interrompido” (COMPARATO, 2016, p. 358) e fragmentado da
TV, construído para manter a atenção do espectador antes e depois das interrupções da
publicidade, o desenho da programação é feito no sentido da competitividade em que são
utilizadas duas estratégias: a contraprogramação – canais concorrentes colocam o mesmo tipo
de programa no mesmo horário – e a antiprogramação, em que se contrapõem programas de
forma e conteúdo diferentes (COMPARATO, 2016).
Wolton afirma que a programação televisiva pode ser entendida como uma “construção
da relação com a realidade que ordena tanto os programas como o calendário do tempo
cotidiano. [...] É uma espécie de ‘representação em miniatura’ da sociedade” (WOLTON, 1996,
p. 106). O autor também atribui a ela três funções: a de calendário ou estruturação, pois funciona
como um relógio imutável da vida cotidiana; a de distinção entre informação e o restante dos
programas, porque mobiliza e conscientiza o cidadão diante das informações e o requer como
apenas espectador perante a programas de ficção ou esporte; e de ordenamento da realidade.

Convencional e, por vezes, artificial, a grade de programas (informação,


esportes, documentários, variedades, programas infantis...) oferece uma
32

espécie de modo de usar, de pré-grade de interpretação para esse fluxo de


imagens, sem falar que a “codificação” feita pelo espectador modifica essa
classificação, ou seja, esquece-a totalmente nos seus procederes de mudança
de sentidos. Essa função de ordenamento da realidade não é necessária, a não
ser pelo seu lado antiquado, tradicional e familiar que constitui, na realidade,
uma espécie de proteção. Em outras palavras, imagem e organização – quer
dizer, programação – ligam-se para não deixar o espectador sozinho diante da
descontinuidade de imagens (WOLTON, 1996, p. 70).

Para Williams, o conceito inicial de programação, no entanto, foi sendo gradativamente


alterado. O que ele entendia como uma organização de uma série de unidades de tempo definido
modificou-se com a inserção publicitária de 30 segundos. De acordo com o autor, no início da
grade de programação da Inglaterra, os intervalos só eram inseridos quando havia espaços
óbvios – por exemplo, entre os atos de uma peça. Porém, performances completas passaram a
ser interrompidas pela inserção comercial em momentos, segundo ele, nada convenientes,
modificando até a forma com que os programas eram assistidos. Na grade norte-americana, por
outro lado, Williams ressaltou que os programas patrocinados foram inseridos na programação
desde o início e se tornaram parte até mesmo da concepção da programação daquele país. Para
o autor, não havia mais a exibição da programação de unidades separadas pontuais por inserções
específicas, mas sim um “fluxo planejado, em que a verdadeira série não é a sequência
publicada de programas, mas essa sequência transformada pela inclusão de outro tipo de
sequência, de modo que essas sequências juntas compõem o fluxo real, a real ‘radiodifusão’”
(WILLIAMS, 2016, p. 100).
Por fim, ainda sobre recepção, Lotz (2014) destaca a importância da predominância de
apenas um televisor nas residências norte-americanas, exigindo que a família se reunisse para
acompanhar o mesmo programa – isso fazia com que as emissoras pensassem na programação
com o intuito de abraçar o maior número de espectadores, uma estratégia que o vice-presidente
de programação da CBS, Paul Klein, chamou de “programação menos censurável14” (LOTZ,
2014, pos. 648). Ainda a respeito da programação desse período, a autora destaca que muitas
das práticas de recepção já estabelecidas no rádio foram levadas para a TV como o número
limitado de gêneros de programas, programas projetados para encaixar em horários específicos
e conteúdos de temporada ou reprises.

1.4 TV a cabo, controle remoto e videocassete

14
“least objectionable programing”.
33

As ideias clássicas de fluxo e de grade de programação se mantiveram como norma do


broadcasting até os anos 1970. Porém, a partir da década de 1980, a indústria da televisão norte-
americana deu início a um período de vinte anos de mudanças graduais em relação à produção
e à recepção do meio. Categorizado como TV II por Reeves, Rogers e Epstein (2006, 2007) e
como Multi-channel Transition (transição multicanal, em tradução livre) por Lotz (2014), esse
período temporal entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1990 foi marcado pela
naturalização da lógica televisiva para nichos. Se na Network Era os telespectadores eram
obrigados a selecionar conteúdos distribuídos essencialmente pelas três grandes redes norte-
americanas, já que as emissoras educacionais do país ainda estavam no início, a Multi-channel
Transition Era abriu portas para novas emissoras na TV aberta e para os primeiros canais do
sistema de televisão a cabo como a rede broadcast FOX (1986), os canais de televisão a cabo
USA Network (1971) e TNT (1988) e as redes premium a cabo HBO (1972) e Showtime (1976),
entre outros.
Para a produção de TV, a estrutura multicanal promoveu mudanças no equilíbrio do
oligopólio das três grandes redes norte-americanas e deu impulso para o aumento da
competitividade da indústria, fosse economicamente ou quanto ao conteúdo exibido. Se nos
anos anteriores a grade era montada a partir da programação menos censurável para as famílias
que assistiam aos programas juntos em um mesmo ambiente, o aumento da oferta de emissoras
e canais possibilitou que a programação fosse pensada para satisfazer membros específicos da
audiência – constatação que corrobora com as críticas de Machado (2000) já abordadas aqui
sobre o conceito de fluxo que empastelaria a produção televisiva e olharia a audiência como
um caldo amorfo. Tanto Reeves, Rogers e Epstein (2006, 2007) quanto Lotz (2014) ressaltam
a busca crescente dos canais por audiências de nicho. É nesse cenário que surgem outros canais
como a CNN (Cable News Network), fundada em 1980, especializada em notícias nacionais e
internacionais, e a MTV (Music Television), datada de 1981 e voltada para cultura jovem.
Esse movimento também foi analisado por Wolton (1996) ao contrapor duas ideias: a
televisão generalista, “de massa”, e a televisão fragmentada, que atende aos nichos. Para
Wolton, o conceito de fragmentação é a ideia da programação levada ao limite, pois busca
atender ofertas e demandas diversas, reflexo também da própria individualização da sociedade.
O autor atribuiu à televisão fragmentada quatro causas: a existência de novas tecnologias como
o cabo, os satélites, os receptores e a interatividade; a existência de públicos ou demandas
plurais, em nome do princípio básico da liberdade individual; a existência de uma cultura
audiovisual de massa; e o desgaste da televisão generalista, responsável pelo sucesso do modelo
televisivo, mas que não soube, segundo ele, avançar e diversificar suas propostas de acordo
34

com o que o público desejava. Em suma, Wolton entende que a televisão generalista aposta no
tradicional e na fácil identificação coletiva, mas a TV fragmentada ou temática oferta ao público
inovação e liberdade individual.

Quanto mais sabemos quem assiste a quê, a que horas e, talvez futuramente,
por que razão, e com qual “grau de satisfação”, como dizem os
psicossociólogos, mais temos a sensação de que televisão de massa era a
forma arcaica de uma técnica de comunicação que com o tempo sofisticou-se,
surgindo o reino da individualização e da fragmentação perfeitamente
sincrônicos com a afinação do ideal democrático (WOLTON, 1996, p. 110).

Ainda nesse sentido, Lotz (2014) corrobora a ideia de Wolton ao falar da fragmentação
da audiência, mas destaca também sua polarização – a autora apresenta o conceito de
polarização como a “capacidade de diferentes grupos de espectadores consumirem
substancialmente diferentes programações e ideias, ao invés de simplesmente dispersar as
audiências”15 (LOTZ, 2014, pos. 704).
Todavia, as novas emissoras e redes não estão isoladas como grandes características
desse período temporal para a televisão. Além da popularização do controle remoto, a Multi-
channel Transition Era foi representada ainda pelo videocassete. Embora inventado na década
de 1950, o controle remoto se consolidou como tecnologia acessível e transformadora de fato a
partir do fim dos anos 1970. Seu uso pelos telespectadores criou o chamado efeito zapping.
Segundo Machado (2000), esse fenômeno ajudou a promover uma recepção seja cada vez mais
fragmentada e heterogênea. Com a criação do controle remoto, esse embaralhamento dos canais
fez com que nenhum programa fosse visto de maneira completa, que as histórias não fossem
acompanhadas da mesma maneira e que, de certa maneira, realidade e ficção podiam se
misturar. A partir desse fenômeno, autores como Machado (2000) e Esquenazi (2011)
questionam a recepção televisiva fora desse tal fluxo planejado descrito por Williams (2016).
Para Esquenazi (2011), o contexto descontínuo da televisão permite que o espectador escolha
o que deseja ver, produzindo cortes na programação. No entanto, o próprio Williams pontuou
que essa liberdade de escolha era irreal, pois o espectador, ainda assim, era obrigado a respeitar
a programação.
O videocassete, também conhecido como VCR (Video Cassette Recorder), foi
introduzido no mercado em 1971 com o modelo U-matic da empresa Sony, mas se tornou
popular quando a marca japonesa JVC lançou em 1976 o Video Home System, o VHS, com

15
“[…] polarization refers to the ability of different groups of viewers to consume substantially different
programming and ideas, rather than simply to the dispersal of audiences”.
35

preço acessível ao mercado16. O aparelho começou a ganhar os lares norte-americanos no final


da década de 1970 e possibilitou que o telespectador flexibilizasse a assistência da programação
estabelecida pelos canais, gravando programas e os assistindo posteriormente no momento mais
conveniente, fora do modelo tradicional da linearidade. Essa tecnologia ainda que os
telespectadores modificassem a experiência do “ao vivo” na TV, do tempo presente, uma de
suas grandes características, segundo Machado (2000). O autor ressalta que a TV desenvolveu
seu repertório básico de recursos quando ainda realizava todas as transmissões no ao vivo. “De
fato, a operação em tempo presente constitui a principal novidade introduzida pela televisão
dentro do campo das imagens técnicas” (MACHADO, 2000, p. 125).
Para Lotz (2014), a difusão do controle remoto e do videocassete estavam
complexamente inter-relacionados, visto que os telespectadores não precisavam trocar seus
antigos televisores por novos aparelhos para poderem obter o controle remoto, muitos que
adquiriram receptores a cabo ou videocassetes já recebiam um controle remoto
simultaneamente. Ao mesmo tempo, a quantidade de novos canais e as capacidades do
videocassete expandiram a necessidade dos telespectadores de comprarem um controle remoto.
No Brasil, tanto o controle remoto quanto o videocassete chegaram ao mercado em
período semelhante ao dos Estados Unidos, ganhando popularidade nas residências durante a
década de 1980. Entretanto, a abertura de novos canais para a audiência de nicho somente foi
iniciada na década seguinte com os primeiros serviços de TV por assinatura. No início dos anos
1990, as Organizações Globo criaram a Globosat, enquanto o Grupo Abril criou a TVA.
Contudo, o setor de TV a cabo só pode se desenvolver a partir da aprovação da Lei do Cabo,
de 6 de janeiro de 1995 (BRITTOS, 1999).

1.5 Século XXI: streaming e plataformas de OTT

Se nos primeiros 40 anos da televisão o sistema de broadcast conseguiu levar os mesmos


programas a milhões de pessoas nos Estados Unidos, a proliferação de emissoras e canais a
cabo a partir da década de 1980 deu início às audiências de nicho e à fragmentação da
programação. A fase analógica da televisão, até então, fez com que a grande audiência
permanecesse sob controle das grandes emissoras. Contudo, em meados dos anos 1990, a

16
Para Lucia Santaella (2003), o surgimento de novas formas de consumo cultural propiciadas por tecnologias
como videocassetes, fotocopiadoras, videoclipes, controle remoto e TV a cabo, por exemplo, acabou por dificultar
as distinções claras entre a cultura popular, a cultura erudita e a cultura de massa. Segundo Santaella (2003, p. 52),
são “as tecnologias do disponível e do descartável”, que ajudam a instaurar a chamada cultura das mídias, distinta
da cultura de massa tradicional.
36

evolução digital elevou quase ao infinito as possibilidades de personalização e da assistência


fora da linearidade clássica da grade de programação.
A chamada Post-Network Era por Lotz (2014) ou TV III por Reeves, Rogers e Epstein
(2006, 2007) reconhece a importância de romper com a dominância das grandes redes de TV e
iniciar uma experiência ainda mais fragmentada e ao gosto do público que pode escolher o que
assistir, onde assistir e como assistir. As emissoras tradicionais e os canais a cabo continuam
presentes entre as opções de assistência para a audiência, mas a emergência das tecnologias
digitais possibilita que a sociedade “veja TV” por meio da internet e de plataformas de conteúdo
que funcionam não só como produtoras de conteúdo original, mas também como repositórios
de produtos anteriormente veiculados no broadcasting ou no cinema.
Segundo Lotz (2014), no fim da década de 1990 não havia mais um único modo de se
ver televisão ou da audiência se comportar perante a programação proposta pelas emissoras. As
locadoras de VHS já eram bastante procuradas na década anterior, mas a criação do DVD
(Digital Video Disc) em 1996 impulsionou empresas como a Blockbuster como mais uma fonte
de arquivo de produtos audiovisuais que poderiam ser assistidos a qualquer momento mediante
aluguel. O sucesso dos boxes de DVD de séries também permitia que o público acompanhasse
temporadas completas dessas produções no momento mais conveniente. E com a explosão da
internet e dos aparatos tecnológicos a partir do século XXI como os computadores portáteis, o
smartphone, a smart TV, os videogames conectados à internet e os tablets, a sociedade começa
a ter acesso a novas estruturas e dispositivos, assim como novas possibilidades de circulação
de informações.

A Internet tem tido um índice de penetração mais veloz do que qualquer outro
meio de comunicação na história: nos Estados Unidos, o rádio levou 30 anos
para chegar até 60 milhões de pessoas; a TV alcançou esse índice de difusão
em 15 anos; a Internet o fez apenas três anos após a criação da teia mundial
(CASTELLS, 1999, p. 439).

É importante lembrarmos que essa conclusão de Castells (1999) corrobora com os


panoramas apresentados por Lotz (2014) sobre a Post-Network Era, mas dizem respeito ao
mercado norte-americano. No Brasil, apesar de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) indicarem uma explosão no acesso à internet nos domicílios entre 2005 e
2015 – número que saltou de 7,2 milhões para 39,3 milhões, um crescimento de cerca de 446%
37

(SANTOS, 2018)17 –, o país possui 59% de usuários conectados, segundo os dados da União
Internacional de Telecomunicações (UIT) (AGÊNCIA BRASIL, 2017)18. O mesmo estudo
mostrou que esse número passa para 76% quando são considerados os usuários conectados nos
Estados Unidos.
A expansão da internet foi uma das principais razões para que as tecnologias streaming,
Over the top (OTT) e VOD (vídeo on demand) fossem desenvolvidas, possibilitando a
distribuição e o consumo de produções audiovisuais fora da linearidade do fluxo televisivo. O
streaming permitiu que fosse iniciada uma aproximação entre a indústria do audiovisual e as
empresas de tecnologia para ampliação do acesso a esses conteúdos por meio de plataformas
de distribuição on-line. Ao refletir sobre a importância do horário nobre para a televisão norte-
americana, em especial do ponto de vista econômico, Nicholas Negroponte (1995) já alertava
para as consequências de conteúdo televisivo “transmitido sob a forma de dados e contendo
uma descrição de si próprio que um computador possa ler. Você poderia gravar tais programas
orientando-se por seu conteúdo, e não pela hora, dia ou canal em que eles passam"
(NEGROPONTE, 1995, p. 23). Essa é a premissa apresentada pelo vídeo sob demanda,
representante do que Negroponte chama de modelo narrowcasting (difusão restrita), um
contraponto ao broadcasting.
A possibilidade de se assistir a conteúdos sob demanda por diversos aparatos
tecnológicos também promoveu que os produtos televisivos pudessem ser consumidos fora das
residências – a mobilidade é também uma forte característica desse período. O espectador do
século XXI não quer apenas múltiplas opções e controle sobre suas escolhas, mas também
mobilidade, transitando entre multitelas, conforme detalham Lipovetsky e Serroy (2009).

Por muito tempo a tela de cinema foi a única e a incomparável; agora ela se
funde numa galáxia cujas dimensões são infinitas: chegamos à época da tela
global. Tela em todo lugar e a todo momento, nas lojas e nos aeroportos, nos
restaurantes e bares, no metrô, nos carros e nos aviões; tela de todas as
dimensões, tela plana, tela cheia e mini-tela portátil; tela sobre nós, tela que
carregamos conosco; tela para ver e fazer tudo. Tela de vídeo, tela em
miniatura, tela gráfica, tela nômade, tela tátil: o século que começa é o da tela
onipresente e multiforme, planetária e multi-midiática (LIPOVETSKY;
SERROY, 2009, p. 12).

17
https://exame.abril.com.br/brasil/apesar-de-expansao-acesso-a-internet-no-brasil-ainda-e-baixo/ Acesso em: 20
out. 2018.
18
https://exame.abril.com.br/tecnologia/brasil-e-o-4o-pais-em-numero-de-usuarios-de-internet/ Acesso em: 20
out. 2018.
38

É nesse contexto que assistimos ao desenvolvimento da chamada cultura da


convergência, teorizada por Jenkins (2009), um movimento que vai muito além das mudanças
tecnológicas e altera a relação estabelecida não só entre as tecnologias, mas também entre todos
os atores do sistema, como a indústria, o mercado e o público. “A convergência altera a lógica
pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o
entretenimento” (JENKINS, 2009, p. 43). Como provas dessa alteração, Lotz (2014, pos. 747-
755) cita as tecnologias que permitem controle maior sobre a relação dos telespectadores com
a programação televisiva; múltiplas opções de financiamento para novas produções; mais
oportunidades para o surgimento e distribuição de produções amadoras, em especial o
compartilhamento de vídeo; estratégias de publicidade como o merchandising e o marketing
indireto e novos modelos econômicos como o pagamento de assinaturas (subscription
payment).
A questão da programação exibida em multitelas (e também mini-telas como os
smartphones) também é abordada por Lotz (2014, pos. 1342), que aponta para a significância
da TV mesmo diante das tecnologias digitais. No entanto, a autora reforça que esse novo tipo
de distribuição e exibição exigiu que estúdios e distribuidores pensassem em novos formatos.

O aumento da fracionalização do público entre programas, canais e


dispositivos de distribuição diminuiu a capacidade de uma rede de televisão
ou programa de televisão individual de reforçar um certo conjunto de crenças
para um público amplo da maneira que acreditávamos há tempos. Embora a
televisão ainda possa funcionar como um meio de comunicação de massa, na
maioria dos casos, ela faz isso agregando uma coleção de audiências de
nicho19 (LOTZ, 2014, pos. 864).

Toda essa conjuntura possibilitou e impulsionou a criação de duas das plataformas de


streaming mais populares na contemporaneidade: YouTube e Netflix. Fundado em 2005, o
YouTube é uma plataforma de compartilhamento de vídeos desenvolvida pela Google que
ganhou notoriedade pela divulgação de conteúdos amadores e de curta duração. Embora seu
foco principal esteja na gratuidade, a plataforma oferece canais pagos mediante assinatura
mensal desde 2013.
A Netflix, por sua vez, foi fundada em 1997 como um serviço de aluguel de DVDs e
que migrou para o on-line em 2007. Desde 2010, a empresa atua somente no streaming e passou

19
“The increased fractionalization of the audience among shows, channels, and distribution devices has diminished
the ability of an individual television network or television show to reinforce a certain set of beliefs to a broad
audience in the manner we long believed to occur. Although television can still function as a mass medium, in
most cases it does so by aggregating a collection of niche audiences”.
39

a disponibilizar filmes, séries e outros produtos audiovisuais por um modelo de assinatura


mensal. Seu grande diferencial estava no vasto catálogo de produções, especialmente de obras
completas de seriados, o que só estava ao alcance no passado por meio da compra de coletâneas
de DVDs ou da gravação de episódios transmitidos pela televisão. Desde 2012, atua como
produtora audiovisual de séries, documentários e longas-metragens.
Mesmo que disponibilize produtos feitos por empresas do ramo da televisão, a Netflix
não é um negócio pertencente à rede de broadcasting, o que lhe possibilita romper facilmente
com a lógica de exibição e distribuição realizada pelos canais de televisão. Presente no
streaming, ela não possui grade de programação nem deve respeitar o fluxo televisivo, seu
catálogo pode ser acessado a qualquer momento, hora ou dia pelo usuário de sua plataforma. A
Netflix também não admite intervalos publicitários, portanto, o catálogo pode ser visualizado
sem interrupções. E finalmente, no caso de suas produções originais, a empresa inaugurou o
binge-publishing, estratégia de distribuição de produções em que disponibiliza todos os
episódios das temporadas de suas séries originais de uma só vez. A criação, desenvolvimento e
modos de produção da Netflix serão retomados no capítulo 3.
40
41

CAPÍTULO II – NARRATIVA SERIADA FICCIONAL NA


TELEVISÃO

O ato de narrar faz parte do ser humano. Contar histórias vai além da pura comunicação,
é uma das formas que o ser humano tem para se encontrar e se reconhecer no outro (MARTINO,
2016), desde que os enunciados façam sentido tanto para o narrador quanto para o interlocutor.
No mesmo sentido, Lúcia Moreira (2005) ressalta que o homem possui uma “necessidade
atávica de organizar os acontecimentos relativos à sua trajetória (coletiva e individual)”, e,
assim, “passa a ‘editar’ esses eventos, dando origem então a narrativas organizadas e
posteriormente concretizadas pela linguagem” (MOREIRA, 2005, p. 9).
Sendo também cultura, como colocado no primeiro capítulo, a televisão é um ambiente
composto essencialmente por histórias, reais e ficcionais, transmitidas em formato audiovisual.
Sobre o que nos interessa nesta pesquisa, a ficção televisual, assim como a própria TV, se
formou e é herdeira de um “vasto caudal de formas narrativas e dramatúrgicas prévias: a
narrativa oral, a literária, a radiofônica, a teatral, a pictórica, a fílmica, a mítica, entre outras”
(BALOGH, 2002, p. 32). E, atualmente, são as narrativas ficcionais seriadas televisuais que
têm atraído a atenção dos espectadores, afirmação corroborada por Jost (2012, p. 24) ao dizer
que, nas últimas décadas, “a seriefilia substituiu a cinefilia e, embora dela se distinguiu, ela se
apropriou de alguns de seus traços”.
Neste capítulo, visando entender a evolução das narrativas seriadas ficcionais da
televisão e como seus recursos narrativos são utilizados para prender a atenção do público,
abordamos como são constituídas essas histórias a partir do seu encontro, em especial, com a
literatura e o cinema, e como elas se modificaram desde a década de 1950 na televisão norte-
americana – principal país produtor e exportador de excelência desse produto. Outro tema
abordado neste capítulo é a complexidade presente nas narrativas contemporâneas, um dos
aspectos marcantes e determinantes para o sucesso das séries a partir do final do século XX.
Por fim, apresentamos alguns dos recursos narrativos presentes nessas histórias e que servem
de ponto de partida para os recursos escolhidos para a análise que será realizada no capítulo 4.

2.1 A serialidade na TV: folhetinização, repetição e fragmentação


42

Antes do surgimento da televisão, a ficção era explorada majoritariamente por outras


linguagens, como a literatura, o teatro e a música, ainda que já estivesse presente em outras
mídias como o rádio e o cinema. Como herança de todas as invenções anteriores, a televisão
absorveu e se apropriou de um largo conjunto de processos e de técnicas para fazer da ficção
televisual um de seus principais produtos, em especial a ficção seriada. A ficção televisual
soube acumular a experiência adquirida pelo teatro e pelo cinema, acrescentou recursos do rádio
e mergulhou numa das “mais ricas e permanentes fontes de matéria ficcional, a narrativa pura,
a literatura de gênero épico, escrita ou não” (PALLOTTINI, 2012, p. 24).
A ficção seriada televisual também se inspirou no romance popular, criado na década
de 1830 na França para encantar a burguesia, assim como no melodrama, gênero teatral nascido
a partir do universo do romance popular e que ganhou grande popularidade com a TV e com o
cinema. Caracterizado por combinar sentimentalismo, excessos estéticos, personagens
esquemáticos e emoção, o melodrama encontrou nas narrativas cinematográficas e,
principalmente, nas narrativas seriadas visuais – sendo grande exemplo dessas as telenovelas
brasileiras – uma fórmula de sucesso, arrancando lágrimas do público ou provocando ódio sobre
determinado personagem (ZANETTI, 2009).
Anna Maria Balogh (2002), por sua vez, afirma que a narrativa ficcional na televisão
abriga estruturas antigas e possui certas características da literatura descritas por estudiosos da
Narratologia, como a necessidade de ser finita; possuir um esquema mínimo de personagens;
que esses personagens sigam algum tipo de qualificação ao longo da história (bons ou maus,
por exemplo) e executem ações que garantam o andamento da história; de promover uma
temporalização perceptível entre um momento passado e outro futuro, entre outras. Além disso,
a autora defende que a ficção na TV se apoia e se desenvolve de acordo com uma gama de
padrões que passam “pelos modos de narrar, pela adscrição a formatos e grade horárias
marcadas, pela maior adesão a gêneros consagrados e todo um vasto universo de elementos que
a existência da TV nas últimas décadas tornou codificados” (BALOGH, 2002, p. 52).
Desde seu início, a serialização da ficção na TV apoia-se na estrutura narrativa
tradicional, composta por elementos como narração, personagens, tempo, espaço e
acontecimentos. Mas foi no folhetim que a narrativa seriada de ficção na TV encontrou um
modelo para prender a atenção das audiências. Jesús Martín-Barbero (2015) resgata o histórico
do folhetim e o caracteriza como “fato cultural” ao romper com a literatura tradicional e abrir a
narrativa para a pluralidade e para a heterogeneidade das experiências literárias (MARTÍN-
BARBERO, 2015, p. 176). O autor também posiciona o folhetim como um formato literário
popular publicado em episódios, implicando em diferentes modos de escrever e de leitura. Esses
43

aspectos são importantes para a criação da narrativa seriada ficcional televisual, uma vez que o
processo de produção da narrativa passa a ser ligada à periodicidade e à pressão salarial, além
de romper com o anterior distanciamento do escritor e do leitor, que passa a interpelar pelos
rumos da história.
Martín-Barbero (2015) ainda destaca o surgimento da dialética entre escritura e leitura,
que ajuda a compreender o novo gênero literário. Segundo ele, o universo do leitor acaba sendo
incorporado ao processo de produção do folhetim, deixando traços do popular no texto. Em um
primeiro nível, o autor ressalta que a organização material do texto, as escolhas de composição
tipográficas, fazem com que o leitor tenha vontade de ler a narrativa. Em segundo, terceiro e
quarto níveis, os quais nos interessam aqui, há um sistema de dispositivos de fragmentação da
leitura e de sedução, além do suspense. Quanto aos dispositivos de sedução, o autor ressalta a
estrutura que ele chama de aberta.

É através da duração que o folhetim consegue “confundir-se com a vida”,


predispondo o leitor a penetrar a narração, a ela se incorporando mediante o
envio de cartas individuais ou coletivas e assim interferindo nos
acontecimentos narrados. A abertura aberta, o fato de escrever dia após dia
conforme um plano que, entretanto, é flexível diante da reação dos leitores
também se inscreve na confusão da narrativa com a vida, permitida pela
duração (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 187).

Sobre o quarto nível da organização em episódios, Martín-Barbero aponta que o


suspense é o elemento buscado pelo autor para fazer com que o leitor retorne à narrativa no
próximo dia e desenvolva interrogações que disparem sua curiosidade para o próximo episódio.
Esse elemento precisa captar a atenção do leitor, seja o que acompanha a narrativa há tempos
ou aquele que está chegando naquele episódio. “O suspense introduz assim outro elemento de
ruptura com o formato-romance, já que não terá um eixo, e sim vários, que o mantêm como
narrativa instável, indefinível, interminável” (MARTÍN-BARBERO, 2015, p. 188). Ao
observarmos as narrativas seriadas ficcionais televisuais, todas inspiram-se nesses quatro níveis
colocados por Martín-Barbero sobre o folhetim.
Uma vez que a narrativa seriada ficcional para televisão encontrou no folhetim um
modelo de inspiração para atrair (e conquistar) as audiências, Omar Calabrese (1987) e Umberto
Eco (1989) buscaram entender como a repetição é uma estratégia bem-sucedida para
consagração do produto serializado. Para Calabrese (1987), a repetição na ficção seriada
televisual não significa apenas as continuações das ações e das tramas dos personagens, mas
também os recursos utilizados, como os temas abordados e os cenários apresentados. O autor
44

estabelece três noções de repetição – “modo de produção de uma série a partir de uma matriz
única”, “como mecanismo estrutural de generalizações de texto” e como condição de consumo
(CALABRESE, 1987, p. 43). Essas noções fazem com que Calabrese entenda a repetição como
geradora de dois tipos de obras que seguem fórmulas repetitivas, mas opostas: variação de um
idêntico, caso de séries como Rin-tin-tin e Lassie, isto é, narrativas seriadas ficcionais que se
iniciam de uma mesma ideia e são replicadas em inúmeras situações, e identidades das mais
diferentes, caso da soap operas Dallas e Dinastia, obras que nascem de ideias diferentes, mas
que desenvolvem as mesmas histórias, gerando material idêntico.
As reflexões de Calabrese foram importantes para que Eco pensasse sobre o produto
seriado e se, a partir de uma produção repetitiva que segue fórmulas com objetivo de lucro, é
possível encontrar alguma inovação nessa ideia de repetição. Para Eco (1989, p. 122), as
narrativas seriadas televisivas recebem a característica de uma “tipologia da repetição” porque
são prolongadas além do necessário, visando aumentar o lucro ao máximo, mas fazendo com
que a própria história que está sendo contada se repita, tirando, portanto, toda a possibilidade
de inovação sobre o texto. No entanto, buscando uma definição mais adequada para o termo
repetição nos estudos de serialidade, Eco compara a serialidade dos meios de comunicação de
massa com a estética moderna a respeito das obras de arte e de como, para serem reconhecidas
como tais, apresentam-se como “únicas (isto é, não repetíveis) e ‘originais’” (ECO, 1989, p.
120). Para o autor, a noção de originalidade ou de inovação das obras de arte entende-se por
“um modo de fazer que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem
do mundo, que renova as nossas experiências” (ECO, 1989, p. 120).
No caso das narrativas seriadas ficcionais na TV, Eco passa a ver o conceito de
repetitividade e serialidade desses produtos como “alguma coisa que à primeira vista não parece
igual a qualquer outra coisa” (ECO, 1989, p. 122), e elenca gêneros dessas narrativas ficcionais
que podem apresentar elementos repetidos, mas que também são mostradas como originais e
diferentes – retomada (continuação ou nova história de um tema de sucesso), decalque
(reformulação de uma história de sucesso, também conhecido como remake), série (história
com o mesmo número de personagens que rodam e apresentam as mesmas tramas – retorno do
idêntico), saga (sucessão de eventos que seguem um tempo histórico e mostram o crescimento
e envelhecimento dos personagens), e dialogismo intertextual (citações indiretas ou explícitas
de histórias ou textos do passado).
Assim, para encontrar elementos de inovação na serialidade televisiva, Eco esclarece
que o espectador pode fazer duas leituras de um mesmo produto: o leitor de primeiro nível é o
leitor ingênuo, que se satisfaz apenas com a história que lhe é contada; o leitor de segundo nível
45

é o mais exigente, aquele que vai além da simples decodificação e que permite ser provocado
pelas entrelinhas do texto audiovisual – é esse espectador que busca (e até exige) alguma
inovação na serialidade.
Por fim, a serialidade televisiva é marcada também pela fragmentação. Com base no
conceito de fluxo e de programação para estabelecer a presença da publicidade na televisão,
Machado (2000) explica que

[...] a programação televisual é muito frequentemente concebida em forma de


blocos, cuja duração varia de acordo com cada modelo de televisão. Em geral,
televisões comerciais têm blocos de menor duração que as televisões públicas,
pela razão óbvia de que precisam vender mais intervalos comerciais. Uma
emissão diária de um determinado programa é normalmente constituída por
um conjunto de blocos, mas ela própria também é um segmento de uma
totalidade maior – o programa como um todo – que se espalha ao longo dos
meses, anos, em alguns casos até décadas, sob a forma de edições diárias,
semanais ou mensais. Chamamos de serialidade essa apresentação
descontínua e fragmentada do sintagma televisual. No caso específico das
formas narrativas, o enredo é geralmente estruturado sob a forma de capítulos
ou episódios, cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e
subdivido, por sua vez, em blocos menores, separados uns dos outros por
breaks para a entrada de comerciais ou de chamadas para outros programas
(MACHADO, 2000, p. 83).

Dessa forma, as narrativas seriadas para TV são concebidas de forma segmentada,


escritas e desenvolvidas para que acomodem as interrupções comerciais. Machado (2000, p.
83) destaca ainda que é comum que as narrativas seriadas apresentem, no início, um rápido
resumo dos acontecimentos anteriores e, ao final do episódio, um gancho de tensão, “que visa
manter o interesse do espectador até o retorno da série depois do break ou no dia seguinte”.
Esquenazi (2011) afirma que esse é um dos motivos pelos quais a serialidade televisiva parece
mais rigorosa que outras serialidades, pois os produtos gerados pela TV são criados a partir de
fórmulas que respeitam esse conceito. Esquenazi reforça também a ideia de que as narrativas
seriadas ficcionais televisivas são concebidas de acordo com as interrupções comerciais e que
a duração dos episódios/capítulos obedece com exatidão o tempo destinado na programação e
consideram o período destinado a cada break. Para Machado (2000), respeitar a inserção dos
intervalos comerciais não é apenas uma obrigação de natureza econômica, mas também de
organização, garantindo que o espectador tenha tempo de respiração e de absorção da narrativa.
Porém, ao mesmo tempo, Esther Van Ede (2015) ressalta que o respeito a esses comerciais e
temporalidades pode levar espectadores a esquecer personagens e linhas narrativas do produto.
Por isso, essa condição da narrativa seriada televisiva exige que roteiristas utilizem ganchos
46

como recursos para apreender a atenção dos espectadores. Os ganchos são comparáveis ao
suspense citado por Martín-Barbero (2015) a respeito do folhetim, ou seja, situações cruciais
que serão resolvidas somente no capítulo seguinte ou que preparam uma ação ou um conflito.
De acordo com Flavio de Campos (2009, p. 243), “se suspense é a expectativa de um incidente,
o gancho é a interrupção da narrativa na expectativa de um incidente”. Já Pallottini (2012, p.
103) entende o gancho como um “truque usado, geralmente, para criar suspense ou expectativa
sobre uma revelação, o fim de uma dúvida, a resolução de um dilema: enfim, a novidade”.
Ainda segundo Machado, há três tipos de narrativas seriadas na televisão: as narrativas
teleológicas ou seriais, em que há uma ou várias narrativas entrelaçadas que se sucedem ao
longo dos capítulos (caso das telenovelas, alguns tipos de séries ou minisséries); narrativas
episódicas, em que “o que se repete no episódio seguinte são apenas os mesmos personagens
principais e uma mesma situação narrativa” (MACHADO, 2000, p. 84) – caso dos seriados
como CSI ou Law & Order; e narrativas em que a única coisa que se mantém é a temática da
narrativa, porém, utilizando personagens e cenários distintos – caso da série Além da
Imaginação.20
Para entendermos como as narrativas seriadas ficcionais televisivas ganharam um papel
de destaque entre as produções da televisão, vamos analisar a evolução desses produtos na
cultura norte-americana, uma vez que as narrativas produzidas naquele país, conforme reforça
Esquenazi (2011, p. 11), “continuam à frente das outras produções nacionais que, em muitos
casos, as copiam”.

2.2 A evolução das narrativas seriadas ficcionais na TV norte-americana

Estudiosos como Robert Thompson (1997), Cássio Starling Carlos (2006), Jean-Pierre
Esquenazi (2011) e Brett Martin (2015) observam a narrativa ficcional seriada televisiva dos
Estados Unidos a partir da noção de eras de ouro – a primeira, marcada pelas produções das
três grandes redes dos EUA (NBC, CBS e ABC); a segunda, com o surgimento dos primeiros
canais de TV a cabo; e a terceira (e atual), com a chegada de narrativas complexas e personagens
difíceis. Embora se diferenciem ao atribuir as eras de ouro a períodos distintos, usaremos essas

20
Faz-se importante tratar de uma diferenciação nesse tema. Além de Machado, autores como Aronchi de Souza
(2004) e Pallottini (2012) atribuem nomenclaturas diferentes para caracterizar essas narrativas. A autora escolheu
por designar a narrativa teleológica apresentada por Machado como série e a narrativa que é estruturada em
episódios e que apresenta começo, meio e fim como seriado. Para esta dissertação, serão analisadas, portanto,
séries. Esta pesquisa não diferencia a nomenclatura de episódio e capítulo, utilizando ambos os termos para
classificar as unidades que compõem uma série.
47

temporalidades como ponto de partida para entendermos as mudanças e as características das


férias na televisão norte americana.
A televisão inicia sua presença nos espaços privados norte-americanos somente a partir
de meados dos anos 1950. Esquenazi (2011, p. 18) compara a presença do meio nos Estados
Unidos e na Europa a partir de dados de 1955, época em que havia 36 milhões de televisores
nos lares norte-americanos, enquanto que na Europa, apenas cinco milhões. É nesse período
que o televisor começa a disputar espaço com o rádio nas casas americanas e que grandes redes
radiofônicas, caso da NBC, da CBS e da ABC, voltam-se para a televisão. Para criar um público
cativo, as redes optam por transpor programas populares do rádio para a televisão em versões
adaptadas. Contudo, o formato radiofônico mostra-se muito lento para a TV, o que exige a
criação de novos formatos, propiciando o caminho para a narrativa ficcional televisual cuja
estrutura privilegia articulações da história e dos personagens. Uma das primeiras sitcoms21
norte-americanas, The Ruggles (ABC, 1949-1952)22, “desenrola-se quase totalmente na sala de
estar familiar, imitando assim a situação dos telespectadores” (ESQUENAZI, 2011, p. 19).
Em paralelo, a CBS estreia I Love Lucy (CBS, 1951-1957), que aposta na mescla do
formato radiofônico ficcional com os modos de produções cinematográficas. A série foi criada
a partir do sucesso radiofônico My Favorite Husband, estrelado pela atriz Lucille Ball.
Esquenazi (2011) e Carlos (2006) apontam que a produção revoluciona a narrativa seriada
ficcional televisual ao introduzir um acontecimento real para a ficção.

A inovação veio em parte de um modelo original de produção: registro em


película, o que representava uma qualidade fotográfica acima da média, além
de permitir a edição posterior do material e sua redifusão, ou seja, potencial
incremento de lucros; uso de três câmeras na gravação, o que enriquecia os
pontos de vista com particularidades dos atores e destacava efeitos cômicos
provocados pelas improvisações do elenco; e presença do público nas
gravações, o que introduzia um frescor com a reação sob a forma de risadas.
Contudo, mais do que inovação técnico-dramatúrgica, o que I Love Lucy
inventa é uma nova forma narrativa ao incorporar uma dimensão até então
ausente: o tempo. Num episódio da temporada de 1953, I Love Lucy aboliu
pela primeira vez as fronteiras entre fato e ficção ao transformar a gravidez de
Lucille Ball e o nascimento de Desi Arnaz Jr. em acontecimento da narrativa
(CARLOS, 2006, p. 15).

21
Termo abreviado para “comédia de situações” em inglês, gênero fundador dos seriados na TV.
22
Na primeira aparição das séries nessa pesquisa, o nome do programa é acompanhado, entre parênteses, de seu
nome na versão brasileira caso tenha tido tradução, o canal norte-americano em que foi exibido e os anos de
exibição.
48

Advém da mesma época Dragnet, precursora do formato ficcional policial da TV norte-


americana. Com temporadas espaçadas pelas décadas de 1950 a 2000, a primeira versão é
transmitida pela NBC entre 1951 e 1959 e aborda o cotidiano de investigadores da polícia de
Los Angeles. Como I Love Lucy, o programa também é desenvolvido a partir do homônimo
bem-sucedido no rádio e utiliza modos de produção e equipes cinematográficas de películas B,
segundo Esquenazi. “Dragnet constituirá um exemplo a seguir pelas séries de aventura: fórmula
narrativa precisa, ritmo idêntico em todos os episódios, constituição de personagens
recorrentes” (ESQUENAZI, 2011, p. 21). Data ainda dos anos 1950 outros sucessos, como The
Untouchables (programa transmitido no Brasil como Os Intocáveis; nos EUA, transmitido pelo
canal ABC, de 1959 a 1963), Alfred Hitchcock Presents (Alfred Hitchcock Apresenta; CBS e
NBC, 1955-1965) e The Twilight Zone (Além da Imaginação; CBS, 1959-1964). Na década de
1960 surge Star Trek: The Original Series (Jornada nas Estrelas; NBC, 1966-1969). Apesar
desses expoentes ficcionais, Carlos (2006, p. 18) lembra que a maioria das produções trabalha
temas inofensivos, como os “familiares, domesticados, sem a ambição de incorporar as imensas
mutações sociais e de costumes (raciais, sexuais, de gênero e comportamentais) que daquela
década em diante transformaram o mundo”.
Entre as décadas de 1950 e 1970, a TV norte-americana também é marcada pela
presença dos anunciantes. Esquenazi (2011) afirma que os anunciantes têm a possibilidade de
negociar o conteúdo das grades de programação com as grandes redes norte-americanas, tendo
o poder de decisão sobre quando colocar no ar programas escolhidos de acordo com seus
interesses comerciais. Os próprios anunciantes possuem estúdios e produzem programas nesse
período. No entanto, a organização que controla a televisão daquele país decide que a produção
deveria ser controlada pelas redes, uma atitude que transforma todo o mercado: produtores
independentes ou produtores de grandes estúdios passaram a criar projetos e apresentar às redes.
A rede, por sua vez, buscava anunciantes para financiar o chamado piloto, o primeiro episódio
de uma série, e, consequentemente, uma primeira temporada (ESQUENAZI, 2011). Os
anúncios presentes nos intervalos comerciais eram necessários para pagar a rede. Isso coloca as
redes em um patamar único, tornando-as controladoras totais das produções até o início da
década de 1980.
Em 1971, uma mudança ocorrida com a lei dos direitos audiovisuais possibilita a entrada
dos profissionais independentes no circuito televisivo e permite que produtores efetivamente
ganhem dinheiro. Assim surge a produtora independente MTM Enterprises, sociedade entre o
executivo de TV Grant Tinker e sua esposa, a atriz Mary Tyler Moore, em 1969. Eles são
responsáveis pela criação da sitcom Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970-1977), a primeira da
49

televisão daquele país a focar em uma personagem feminina, solteira e independente, relatando
suas lutas no mercado de trabalho e quebrando paradigmas ao colocar a mulher no centro do
ramo profissional (CARLOS, 2006). A MTM Enterprises também se torna local de talentosos
roteiristas, responsáveis pelo surgimento da próxima geração de séries da TV, nos anos 1980,
como Steven Bochco, Dick Wolf, Tom Fontana, David Milch, John Tinker e Marshall
Herskovitz. Esses nomes estão ligados a séries como Hill Street Blues (Chumbo Grosso; NBC,
1981-1987), NYPD Blue (Nova York Contra o Crime; ABC, 1993-2005), Law & Order (Lei &
Ordem; NBC, 1990-2010), Oz (HBO, 1997-2003) e Friends (NBC, 1994-2004). Brett Martin
(2015) ressalta que a MTM funcionou como uma inspiração para a HBO e sua importância
adquirida no final da década de 1990 e anos 2000.
Antes de introduzirmos a próxima geração de séries com a chegada dos anos 1980, é
importante abrir espaço para Dallas. Criada por David Jacobs em 1978, a série transmitida pela
CBS trata de uma rica família do Texas, os Ewing, e explora a trajetória do magnata do petróleo,
J.R. Ewing. Sua primeira temporada foi composta por cinco episódios sobre a família Ewing
em formato semelhante ao das soap operas radiofônicas. Contudo, o emaranhado de linhas
narrativas fez com que sua segunda temporada ganhasse 20 episódios. O ápice da trama se deu
na terceira temporada, finalizada com um dos mais famosos ganchos da história da TV norte-
americana – “quem atirou em J.R.?” –, recurso narrativo parodiado no final da primeira
temporada da série Twin Peaks (ABC, 1990-1991). Esquenazi (2011, p. 64) afirma que “a
América esperou fervorosamente durante o verão pelo início da temporada seguinte e pela
solução do enigma. Dallas prova que uma soap opera, a custo de intrigas múltiplas e de
suspenses quase policiais, pode impor-se no horário nobre”. O sucesso de sua estrutura fez com
que a saga terminasse apenas em 1991, após 14 temporadas e 357 episódios.
O surgimento da TV a cabo e do videocassete, aparelhos chamados de VCR nos EUA,
são determinantes para a criação de uma nova geração de narrativas seriadas ficcionais no país,
a “terceira era”, conforme os autores citados no início deste item. Segundo Carlos (2006), em
1981, a presença de videocassetes em lares americanos salta de 1% para 68%, permitindo que
os espectadores gravem os programas e assistam posteriormente, fora do fluxo descrito por
Williams (2016). Em paralelo, cerca de 23% das residências dos EUA assinam canais a cabo,
número que seria duplicado até 1985. A princípio, a HBO e outros canais a cabo transmitem
apenas filmes; sua produção de conteúdo ficcional próprio surge somente em meados da década
de 1980. Fundada em 1972, a HBO trabalha inicialmente com eventos esportivos e programas
eróticos e lança sua primeira série dramática de longa duração apenas em 1997, Oz, que
permanece no ar até 2003. Brett Martin (2015, pos. 618) ressalta que, na década de 1980, a
50

televisão funciona como uma espécie de praça de alimentação, “composta de muitos quiosques
vendendo cada qual uma culinária específica, em vez de uma lanchonete com cardápio
universal, despejando refeições genéricas e menos passíveis de objeção”. Os canais a cabo
ajudam a promover o início da fragmentação da audiência, o que impulsiona a produção original
diferenciada de canais como a HBO, reconhecida por trabalhar temas em voga23.
Outra característica das narrativas seriadas ficcionais dessa nova geração é a criação dos
chamados “dramas de qualidade”, iniciada com Hill Street Blues. Apesar de transmitida pela
NBC a partir de 1981, a série é criada na MTM Enterprises por Steven Bochco e Michael Kozoll
e acompanha dois detetives de uma delegacia de polícia de uma grande cidade da costa leste
norte-americana. Durante sete temporadas, mescla conflitos das vidas profissional e pessoal dos
personagens centrais, crítica social, humor e intriga policial. Hill Street Blues foi responsável
por iniciar um novo estilo de estrutura narrativa na TV norte-americana, os ensemble shows,
em que o enfoque passa a ser sobre diversos personagens, não apenas em um.

Para dar conta da profusão de personagens e de histórias que começam, não


terminam no mesmo episódio e serão retomadas no seguinte ou só bem depois,
os roteiristas da série desenvolveram uma estrutura narrativa em dois níveis.
Cada episódio possui uma trama principal completa e uma ou várias tramas
secundárias, que serão desenvolvidas ao longo da temporada ou até mesmo ao
longo da série. A solução permite satisfazer uma tensão de cada episódio em
particular e manter o interesse do espectador, que terá vontade de assistir
episódios seguintes para acompanhar a solução de outras tramas deixadas
pendentes. O artifício muitas vezes é usado para produzir um efeito-surpresa
no público, quando traz à tona personagens ou situações deixadas sem solução
e dos quais podemos até ter esquecido. E permite aos criadores tecer inúmeros
fios de histórias, o que por si garante o efeito de complexidade tão louvados
nas séries contemporâneas (CARLOS, 2006, p. 27-28).

Essa fórmula narrativa também é destacada por Esquenazi (2011), uma vez que Hill
Street Blues encontra no trabalho coletivo dos roteiristas a forma para trabalhar o
aperfeiçoamento das múltiplas linhas narrativas, ou arcos narrativos. A série encontra ainda o
equilíbrio entre as cop stories, feitas de narrativas lineares sobre investigações presididas por
um herói forte que espera restituir a ordem, e as soap operas, caracterizadas em torno de uma
comunidade/família e seus conflitos emocionais e sexuais, o que parecia inconciliável até então.

23
Na esteira da HBO surgiram outros canais a cabo interessados em abordar temas até então inexistentes na
televisão como a homossexualidade, caso do canal Showtime com as séries Queer as Folk (2000-2005) e The L
Word (2004-2009); o humor controverso, presente no desenho South Park (1997-presente) do Comedy Central; e
de temas de “alta voltagem” do FX, adjetivo atribuído pelo próprio canal, com The Shield (2002-2008), Nip/Tuck
(2003-2010) e Rescue Me (2004-2011).
51

Os ensemble shows iniciados por Hill Street Blues também são tratados por François
Jost (2012). Segundo ele, a ideia do herói único e excepcional é substituída por personagens
com dimensões humanas e, assim, os ensemble shows promovem duas consequências nos temas
abordados pelas séries norte-americanas. A primeira delas é que a atenção de roteiristas e
espectadores passa a ser sobre as instituições e seu modus operandi, como por exemplo, o
trabalho das delegacias de polícia ou da equipe médica de um hospital, e não mais sobre uma
personalidade fora do comum ou dotada de poderes. A segunda é o surgimento de personagens
dotados de fraquezas e contradições. “Esse modo mimético baixo, que se identifica rapidamente
com o realismo, permite que cada um de nós se reconheça neste ou naquele personagem e que
imagine suas relações à imagem de nossa família” (JOST, 2012, p. 38).
Aos poucos, o público passa a acompanhar a série que recebe oito prêmios Emmy em
1981, recorde batido apenas por The West Wing (NBC, 1999-2006) em 2000. Hill Street Blues
atrai um público majoritariamente adulto, dos 18 aos 49 anos, e começa a ser imitada, colocando
a década de 1980 como símbolo das séries realistas (CARLOS, 2006). Após Hill Street Blues,
outras produções ganham esse título de “dramas de qualidade” como Cagney & Lacey (CBS,
1981-1988), St. Elsewhere (NBC, 1982-1988), Moonlighting (A Gata e o Rato; ABC, 1985-
1989) e Thirtysomething (ABC, 1987-1991).
Assim que os produtores percebem que o sucesso dessas séries decorria de suas
inovações (especialmente narrativas), as redes iniciam uma corrida por novidades, o que leva à
participação de cineastas na produção de TV – caso de Steven Spielberg, Robert Altmann,
Michael Mann e, principalmente, David Lynch. Junto de Mark Frost, roteirista de Hill Street
Blues, Lynch apresenta Twin Peaks (ABC, 1990-1991; Showtime, 2017)24 e o mistério sobre
quem matou Laura Palmer. Segundo Carlos (2006, p. 31), “...a série de Lynch/Frost soube
aproveitar de fórmulas e limites do formato para levar às telas de TV um universo instigante,
repleto de anormalidades, de perversões e baixos instintos mal dominados”.
Após algumas ousadias narrativas da década de 1980, a década de 1990 é marcada por
apresentar um novo momento das narrativas seriadas ficcionais televisivas, caracterizado pelos
os personagens difíceis e pela complexidade25. Em seu livro Homens difíceis (2015), Brett

24
Após a criação e exibição das duas primeiras temporadas de Twin Peaks pelo canal ABC, os criadores e
produtores David Lynch e Mark Frost criaram uma nova temporada para a história com o nome Twin Peaks: The
Return, veiculada pelo Showtime e posteriormente pela Netflix.
25
Jason Mittell é autor do livro Complex TV (2015), em que defende a complexidade narrativa como o termo
definidor das séries de qualidade a partir dos anos 1990 até hoje. No entanto, ele salienta que esse termo já era
conhecido anteriormente e propõe uma série de características para renová-lo, além de apontar que rotular uma
série como “complexa” indica julgamento de valor, assim como termos como “convencional”, “primitivo” ou
“clássico”. “Complexidade e valor não se implicam mutuamente” (MITTELL, 2012, p. 31).
52

Martin dá destaque para personagens populares presentes em séries das décadas de 1990 e 2000
que encantam as audiências, caso de Tony Soprano, protagonista da série The Sopranos
(Família Soprano; HBO, 1999-2007) e Don Draper, de Mad Men (AMC, 2007-2015). Para
Brett Martin (2015), a ideia de trabalhar personagens que lutam para aprisionar ou para liberar
seu lado mais selvagem sempre foi atrativa para a dramaturgia norte-americana. Por isso, o
faroeste, os gângsteres e detetives particulares solitários sempre foram temas de produções não
só televisivas, mas também cinematográficas, como Chinatown (1974) e The Godfather (O
Poderoso Chefão, 1972).
É, portanto, a partir da década de 1990 que esses personagens controversos passam a
ganhar o protagonismo das narrativas. Se na literatura o anti-herói já havia sido explorado por
diversos autores, a narrativa ficcional passa a explorar o caráter e as ações desse protagonista
com mais intensidade. Para tentar entender o porquê desses personagens conquistarem as
audiências, Brett Martin (2015) descreve o clima cultural após os anos 2000 nos Estados
Unidos, um país rachado entre democratas e republicanos após a eleição daquele ano que
assistiu à duas guerras, viu a morte de Osama Bin Laden e assistiu à exposição de escândalos
de tortura. O perfil de redes como HBO, FX e AMC, segundo o autor, era constituído por
cidadãos liberais, instruídos e de estados pró-democratas. No entanto, essa geração de séries
que abordam temas controversos mostrou a esse público um estado republicano humanizado,
repleto de policiais, bombeiros, mórmons e eleitores de Nixon como Don Draper.
Para Brett Martin (2015, pos. 1600-1608), The Sopranos conseguiu criar um subúrbio
norte-americano inspirado em romances de Richard Yates e Joseph Heller para apresentar o
protagonista Tony Soprano, o mafioso em terapia, repleto de contradições e buscando equilíbrio
entre a crueldade e o remorso. Mittell (2015, pos. 1608) caracteriza Tony como um híbrido
“muito moderno e passível de ser narrado: um sujeito velha guarda – bronco, corporal, capaz
de conseguir o que quisesse; uma fantasia sedutora ainda que desconfortável tanto para homens
como para mulheres – num mundo pós-feminista”. Soprano inspirou outros personagens tão
complexos quanto ele, como Tommy Gavin, de Rescue Me (FX, 2004-2011), Vic Mackey, de
The Shield (FX, 2002-2008), Don Draper, de Mad Men e Walter White, de Breaking Bad
(AMC, 2008-2013).

Essa análise certamente se aplicava às mulheres que fizeram de Tony Soprano


um símbolo sexual improvável, assim como era verdade no caso dos homens
que também o achavam sedutor. A realização de um desejo sempre esteve no
cerne mais enjoativo do gênero mafioso, com seu anseio por uma vida que
ultrapassasse os estreitos limites da convenção, misturado ao anseio
conflitante de que o agressor fosse punido pela mesma transgressão. Era o que
53

acontecida com os homens de ficção que povoavam o lado certinho das coisas
no mundo de Família Soprano – homens que eram atraídos para a chama que
Tony representava, com resultados consistentemente desastrosos [...] É a
mesma coisa que acontece com os telespectadores para quem uma existência
de assassinatos, usurpação e experiências sexuais com quem e o que se quiser
exerce um fascínio inegável, ainda que repleto de conflitos (MARTIN, 2015,
pos. 1683-1689).

Os personagens difíceis dessa geração de narrativas seriadas ficcionais televisivas


também apresentam uma incapacidade de mudança, pois são o que são – vício, psicoterapia,
fracasso e infidelidade, por exemplo, são temas recorrentes nas séries contemporâneas. Nesse
contexto, as mulheres, infelizmente, ainda possuem pouco espaço. O destaque fica por conta da
personagem Patty Hewes, protagonista de Damages (FX, 2007-2010; Audience Network, 2011-
2012), interpretada pela atriz Glenn Close.
Segunda característica presente nas narrativas seriadas ficcionais a partir da década de
1990, a complexidade, é vista como o elemento que “demarca o vigor das séries de TV em
comparação com outras formas de narrativas populares” (CARLOS, 2006, p. 34). Porém,
narrativas complexas não são novidade ou originárias desse período. Capanema (2016)
recupera os conceitos de narrativa complexa na literatura e no cinema para apresentar as
compreensões de complexificação na televisão. Na literatura, segundo Capanema (2016, p.
574), Aristóteles analisou os sistemas narrativos e a forma complexa em sua obra poética,
classificando a complexidade como ações de “peripécia”, quando ocorre uma mudança
contrária ao caminho estabelecido pela narrativa, e de reconhecimento, quando há passagem da
ignorância para o conhecimento. Para o autor, exemplos desse conceito estariam presentes nas
obras Édipo Rei, de Sófocles, e Odisseia, de Homero. Já sobre Todorov (2013), Capanema
lembra que o autor entende narrativas complexas como aquelas que apresentam diversas
histórias, como As Mil e Uma Noites. Os movimentos literários do modernismo tardio
(CAPANEMA, 2016, p. 576) também geraram estratégias narrativas consideradas complexas,
como “reflexividade, incoerência temporal, múltiplos pontos de vista, monólogos interiores,
ambiguidades etc”.
No cinema, Capanema (2016) destaca o Nouveau Cinèma francês de 1960 e alguns
blockbusters do final do século XX e início do século XXI como representantes dessa
complexificação das narrativas. A autora cita o conceito de forking-path de David Bordwell
para filmes como Corra, Lola, Corra (1998), em que se apresenta mais de uma resolução ou
caminho narrativo para a mesma trama. Depois, Capanema (2016, p. 577) destaca a análise de
Warren Buckland sobre o conceito puzzle para narrativas cinematográficas complexas
54

caracterizadas pela “não linearidade, fragmentação espaço-temporal e ambiguidades que geram


estruturas labirínticas e misturas entre níveis da realidade diegética”. Finalmente, a autora
aborda Thomas Elsaesser e a expressão mind game (CAPANEMA, 2016, p. 578) que propõe
filmes que brincam tanto com as percepções das personagens quanto dos espectadores, como
os longas-metragens blockbusters Se7en (1995) e Clube da luta (1999), ambos dirigidos por
David Fincher, e 21 gramas (2003) e Babel (2006), de Alejandro Iñárritu.
Na televisão, diversos autores buscam entender a complexificação das narrativas a partir
de análises estruturais e discursivas. Segundo Capanema (2016, 2017), estudiosos como Kristin
Thompson, Jane Feuer, Horace Newcomb e Jason Mittell entendem a serialização como recurso
central da ficção televisual. Embora recurso presente em outras mídias como o cinema (nas
chamadas cine-séries), no teatro, no rádio e na literatura, “é na televisão que a serialidade ganha
expressão industrial e forma significante, desenvolvendo técnicas arrojadas de exploração da
fragmentação” (CAPANEMA, 2017, p. 9). Essa serialização, inclusive, está relacionada aos
formatos canônicos da teledramaturgia, já citados anteriormente a partir do entendimento de
Machado (2000) – narrativas seriais, narrativas episódicas e narrativas temáticas.
Para Feuer, Newcomb (apud CAPANEMA, 2016, p. 40-41) e Mittell (2015), a narrativa
televisual ganha contornos complexos quando mescla os formatos episódico – aquele que
apresenta começo, meio e fim em apenas um episódio – e o serial, o que exige do espectador
mais atenção e dedicação para acompanhar o produto em questão. Newcomb denomina essa
estratégia de narrativa cumulativa. Feuer, por sua vez, aponta que a união dos formatos
episódico e contínuo (continuing serial drama) é símbolo da tendência do meio em hibridizar
formatos e que a serialização televisiva privilegia os finais abertos, a multiplicidade de histórias
e personagens, além do entrelaçamento de diversas linhas narrativas (CAPANEMA, 2017, p.
5). Mittell (2012, 2015) também vê na hibridização estrutural a característica principal da
complexidade das narrativas seriadas televisivas, o que acaba por valorizar histórias com
continuidade e que passam por diversos gêneros.

Em seu nível mais básico, a complexidade narrativa redefine formas


episódicas sob a influência da narrativa serial – não necessariamente uma
junção completa das formas episódica e serial, mas um equilíbrio pendular.
Rejeitando a necessidade de encerramento da trama dentro de cada episódio
que caracteriza a forma episódica convencional, complexidade narrativa deixa
em segundo plano histórias em curso através de uma série de gêneros. A
televisão complexa emprega um leque de técnicas seriais, com o pressuposto
subjacente que uma série é uma narrativa cumulativa que se constrói com o
tempo, em vez de regressar a um estado de equilíbrio inerte ao final de cada
episódio. Enquanto as narrativas complexas de hoje em dia podem ser
diferenciadas de suas predecessoras do século XX, elas vêm sendo construídas
55

sobre numerosos inovadores desde a década de 1970 (MITTELL, 2015, p.


18,).26

Mittell (2012) aponta ainda que essa complexidade já está suficientemente difundida e
popularizada nas séries de televisão a partir dos anos 1990, embora não tenha tomado o lugar
das sitcoms e dos dramas convencionais. Ele ressalta que características de narrativas
complexas podem ser encontradas a partir dos “dramas de qualidade” da década de 1980 e até
em soap operas, como Dallas – as múltiplas linhas narrativas, os personagens com histórias
próprias etc –, mas de outra forma.

Diferente das novelas, essas séries [Hill Street Blues, St. Elsewhere, Cheers]
veiculadas no horário nobre não adotavam uniformemente a prática de adiar o
desfecho narrativo, já que normalmente tais programas apresentavam tramas
episódicas combinadas a arcos narrativos multiepisódicos e dramas contínuos
de relacionamento. Estes primeiros programas tendiam a atrelar estórias
episódicas e seriadas a regras genéricas típicas – estórias de relacionamento
atravessavam episódios, como nas novelas, mas nos casos policial e médico
normalmente a ligação se fazia dentro de um episódio ou de forma seriada,
dividido em duas partes. Assim, diferente das novelas, episódios isolados
eram mais diferenciados em sua identidade e representavam mais do que
apenas um passo numa jornada narrativa mais ampla (MITTELL, 2012, p. 37).

Narrativas seriadas ficcionais dos anos 1990, como The X-Files (Arquivo X; FOX, 1993-
2002 e 2016-2018), são exemplos de como a interação dos arcos episódicos e seriais se
equilibra, de maneira a aumentar a curiosidade do espectador – os episódios sempre traziam um
“mistério ou monstro da semana” e a continuação das conspirações do governo e imbricações
da relação entre os personagens Mulder e Scully. Para Carlos (2006, p. 35), o parentesco dessas
produções televisivas com a literatura possibilita “a seus autores desdobrar, recuar, multiplicar,
replicar linhas narrativas, personagens e características e, desse modo, alcançar o tal segredo da
complexidade”.
A telenovela, considerada por muitos estudiosos da TV o gênero de excelência de
produtos brasileiros, é entendida como uma narrativa complexa devido à sua estrutura.
Conforme Pallottini (2012, p. 187), sua concepção aberta faz com que seja uma narrativa mais
imprevisível e, por conseguinte, mais elaborada, “enfocando grande quantidade de assuntos, de

26
“At its most basic level, narrative complexity redefines episodic forms under the influence of serial narration
— not necessarily a complete merger of episodic and serial forms but a shifting balance. Rejecting the need for
plot closure within every episode that typifies conventional episodic form, narrative complexity foregrounds
ongoing stories across a range of genres. Complex television employs a range of serial techniques, with the
underlying assumption that a series is a cumulative narrative that builds over time, rather than resetting back to a
steady-state equilibrium at the end of every episode. While today’s complex narratives can be markedly different
from their 20th-century predecessors, they built on numerous innovators from the 1970s forward”.
56

histórias e personagens, ela complica seus conflitos, multiplica suas ações, diversifica suas
tramas”.
Porém, essa mescla entre formatos não é a única característica presente em narrativas
complexas. Mittell (2015) atribui à complexidade narrativa das séries contemporâneas outros
pontos como a multiplicidade de linhas narrativas (que podem ser convergentes) e concepção
espaço-temporal intrincada. O primeiro ponto é notado por meio da quantidade extensa de
personagens, gêneros e de tramas narrativas presentes em uma mesma história, diferente do
modelo convencional que obedece a um formato mais linear. Já a concepção espaço-temporal
intrincada desafia a compreensão da audiência com diversos “pulos” de tempo e de espaço na
narrativa. Para Mittell, a complexidade narrativa é “uma verdadeira inovação estética única em
seu meio, um modelo singular” (MITTELL, 2012, p. 32). O público torna-se inclinado a se
envolver muito mais com programas complexos, inclusive de uma forma mais apaixonada e
comprometida, do que à programação convencional.
Elemento essencial para a complexificação das narrativas contemporâneas, o tempo
também é apresentado por Paul Booth (2011), que indica o deslocamento temporal, o uso de
recursos para a descontinuidade do tempo narrativo, como uma dimensão popular para as
narrativas seriadas televisuais complexas. De acordo com Capanema (2017, p. 579-580), Booth
defende que o uso de recursos narrativos como flashbacks (retorno ao passado), flashforwards
(cenas do futuro) e flashsides27, além de falsas memórias, causam uma “recepção esquizofrênica
por parte do público”. Essa manipulação do tempo também chama a atenção para a imersão
diegética da narrativa por parte do espectador. No início da narrativa ficcional seriada
televisual, o público geralmente era avisado quando havia a utilização de recursos como
alterações cronológicas (flaskbacks, elipses etc.). Com a evolução narrativa das séries, esses
recursos passaram a ser utilizados com mais frequência, de forma a explicar outros cenários,
temporalidades ou aprofundar as histórias de personagens, mas todos sempre marcados por
artifícios estilísticos28 (mudança de câmera, de luz ou fotografia, de som etc). Nas narrativas

27
O que Booth (2011) entende por flashsides e Mittell (2015) denomina flash-sideways significa um recurso
narrativo usado para apresentar uma nova versão para um fato ou uma realidade ou universo paralelo que
aparentemente não parece conectado ao fato ou realidade original. Como exemplo mais popular do uso de flash-
sideways está o percurso narrativo da sexta temporada de Lost (ABC, 2004-2010).
28
O estudo das formas textuais é considerado por muitos estudiosos da TV a mais negligenciada entre as análises
existentes (BUTLER, 2010; MITTELL, 2010b; BORGES, PUCCI JR, SELIGMAN, 2011; ROCHA, 2014), como
a recepção dos espectadores, a produção de programas, o fluxo televisivo, a conformação de sentidos e a
construção das narrativas ficcionais e também jornalísticas. Para realizar esse tipo de análise, os pesquisadores
colocaram em diálogo a teoria fílmica e a teoria crítica (ROCHA, 2014, p. 1086), sugerindo o estudo, portanto, do
chamado estilo televisivo. Butler (2010) inspirou-se na concepção de estilo cinematográfico de David Bordwell
para determinar sua ideia de estilo televisivo, o estudo de padrões técnicos de som e imagem que cumprem uma
57

complexas, essas estratégias são colocadas de maneira mais sutil, sem medo de chocar ou causar
confusão nos espectadores – por isso, Booth fala sobre a recepção esquizofrênica das
audiências.
Mittell exemplifica com as séries Veronica Mars (UPN, 2004-2006; The CW, 2006-
2007), Six Feet Under (A Sete Palmos; HBO, 2001-2005), Buffy, the Vampire Slayer (Buffy: a
Caça-Vampiros; The WB, 1997-2001; UPN, 2001-2003) e, especialmente, Lost (ABC, 2004-
2010). Sobre esta última, o autor destaca o uso de elementos narrativos para promover “pulos”
temporais, de forma a engajar a audiência, e a habilidade dos roteiristas em mesclar gêneros e
utilizar alegorias para que o público crie conexões emocionais sinceras com os personagens
ilhados, “tudo articulado numa estrutura narrativa elaborada, muito mais complexa do que
qualquer coisa que se tenha visto antes na televisão americana” (MITTELL, 2012, p. 50). Para
ele, as produções acima mostram “perspectivas sobre eventos que oscilam entre a subjetividade
da personagem e a realidade diegética, jogando com as fronteiras ambíguas com o objetivo de
conseguir profundidade de personagem, suspense e efeito cômico” (MITTELL, 2012, p. 46).
Ainda sobre isso, o autor ressalta que programas que utilizam narrativas complexas costumam
flertar com a desorientação temporária e com a confusão, fazendo com que os espectadores
articulem acontecimentos por meio do engajamento ativo e na assistência gradual da narrativa
(MITTELL, 2012, p. 46-48).
Henry Jenkins (2009, pos. 2336), por sua vez, oferece outro olhar para a complexidade
nas narrativas seriadas televisivas por meio da concepção da narrativa transmídia, aquela que
“desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de
maneira distinta e valiosa para o todo”. Dessa forma, a complexificação se dá a partir de uma
narrativa que ganha diversas versões e olhares em cada meio em que é veiculada – na TV, na
internet, no videogame etc.
Também debruçado sobre a criação narrativa, Jost (2012) destaca que a construção das
personagens é peça fundamental na complexificação desses produtos televisivos, especialmente
os norte-americanos. Ao analisar por que as séries dos Estados Unidos fazem tanto sucesso na
França, Jost ressalta a familiaridade dos temas abordados, que alinham as realidades norte-
americana e francesa, e a transformação do olhar sobre o herói típico das narrativas. Segundo
o autor, o herói das narrativas contemporâneas ficcionais complexas não é mais aquele da
mitologia grega, o intermediário entre deuses e homens, mas um herói em erosão e fragmentado
em diversas figuras dentro de uma mesma narrativa, o que ele chama de herói coletivo. Além

função dentro do texto da TV. Para Butler, o estilo não é apenas uma escolha técnica para decorar a narrativa, mas
escolhas que têm e dão sentido ao produto televisivo.
58

disso, Jost aponta que as barreiras que separavam herói e vilão estão borradas nessas narrativas
contemporâneas, oferecendo ao espectador personagens múltiplos e muito mais profundos e
próximos da realidade humana – realidade social, emocional e psicológica. Essa multiplicidade
de personagens e a volatilidade do caráter e de suas ações também são apontadas por Mittell
(2015) como recursos presentes nas narrativas complexas. Em resumo, portanto, esta pesquisa
identifica uma narrativa ficcional complexa quando apresenta uma mescla dos formatos
episódico e serial, trabalha tramas principais e secundárias múltiplas, explora o caráter e ações
ambíguas dos personagens e preza por uma concepção espaço-temporal intrincada, que pode
incluir múltiplas temporalidades ou deslocamentos temporais.
Todas essas facetas das narrativas ficcionais seriadas televisuais podem não ser
completamente compreendidas pelos espectadores, mas são incorporadas quase intuitivamente
ao modo de assistir das séries – especialmente no caso das produções contemporâneas
complexas que exigem uma imersão diegética ainda maior do público.

2.3 Recursos narrativos da ficção televisual

O audiovisual “exige de seu criador um exercício articulado de linguagens (verbais e


não-verbais), considerando a complexidade de signos e códigos que devem ser compartilhados
para ‘bem’ contar uma história” (MOREIRA, 2005, p. 20). Para contar uma história ou dar
início a essa articulação de signos e códigos, portanto, a narrativa audiovisual precisa de uma
estrutura escrita, costumeiramente conhecida pelo termo roteiro, material que detalha as
especificidades da história está prestes a ser contada no cinema ou na televisão. Em geral, o
roteiro televisivo de uma narrativa ficcional seriada, assim como o roteiro cinematográfico,
aborda etapas como a ideia central, o principal conflito, os personagens, a ação dramática (como
a história será contada), o tempo da história e a unidade dramática (que contém todas as cenas,
o guia final para a construção do produto audiovisual) (FIELD, 2001; CAMPOS, 2009;
COMPARATO, 2016). Para isso, utiliza recursos de narrativa ou elementos que incidam sobre
a narrativa. Como essa pesquisa busca entender possíveis alterações presentes nas narrativas
seriadas ficcionais produzidas pela Netflix, reunimos seis principais recursos narrativos ou que
incidem sobre a narrativa nas produções seriadas ficcionais televisivas.

2.3.1 Narração
59

Narrar pode ser considerada uma ação que consiste no relato de um acontecimento real
ou imaginário, e é possível narrar por meio das palavras, das ações e até da música. Segundo
Marc Vernet (1995), o ato de narrar implica em duas situações. A primeira delas é que o
desenrolar da história contada deve estar plenamente à disposição de quem a conta, do seu
narrador; a segunda é que essa história precisa seguir o desenvolvimento organizado por quem
a conta e pelos modelos aos quais se adapta. Isso significa que a narração deve dar um
desenvolvimento lógico para a história que está sendo contada e deve encerrar em uma solução.
Em produções audiovisuais, essa ação pode ser exercida de diversas maneiras e por formas
distintas, não só por um personagem da história. O roteirista e o diretor também são
considerados narradores, ao imprimirem sua visão ao construir o roteiro e as cenas.
Para Campos (2009), o narrador é um recurso da narrativa que ama se disfarçar. Essa
ideia é corroborada por Pallottini (2012), ao ressaltar que o narrador, em última instância,
assume o papel onisciente daquele que tudo sabe e tudo vê sobre a narrativa. Segunda a autora,
“a narração total, o conjunto formado por áudio e vídeo (criados a partir do ponto de vista do
narrador onisciente) é o que produz, afinal, toda a história” (PALLOTTINI, 2012, p. 147). Na
narração clássica cinematográfica, segundo David Bordwell (2005, p. 285), o narrador “tende
a ser onisciente, com alto grau de comunicabilidade e tende a ser apenas moderadamente
autoconsciente”, ou seja, o narrador que sabe mais do que os personagens, esconde pouco e
quase nunca se dirige ao público. Como cronista da história contada, o narrador deve englobar
a ação, o movimento e a passagem de tempo da narrativa, podendo se integrar à história como
personagem ou tomar parte dela como observador (COMPARATO, 2016).
Sendo aquele que conta a história, o narrador é um recurso da narrativa que, “a partir de
um ponto de vista, recebe, interpreta, seleciona, organiza e, por fim, narra os pontos de foco
que selecionou” (CAMPOS, 2009, p. 47). Ainda de acordo com Campos (2009), dessa maneira,
o narrador pode assumir seis pontos de vista da história que está contando: acima da história,
do lado do personagem principal, do lado do personagem secundário, dentro do personagem
principal, dentro do personagem secundário e voltado para dentro dele mesmo.
No primeiro caso, acima da história, o narrador assume a postura onisciente e
onipresente, aquele que sabe tudo sobre os personagens e que transita entre todos eles. Quando
está do lado do personagem, o narrador não tem acesso a toda história e não consegue
estabelecer, a priori, todos os fios da narrativa. Dentro do personagem, por sua vez, o narrador
conta apenas o que o personagem sabe ou percebe e mergulha na essência dessa figura,
causando identificação entre narrador, personagem e espectador. Por fim, dentro dele mesmo,
o narrador conta o que sabe e percebe da história sem a visão de um personagem, promovendo
60

identificação apenas entre narrador e espectador. Para Campos (2009, p. 62), quando o objetivo
do narrador é criar ou aumentar “simpatia, empatia ou identificação do espectador com o
personagem, ou grifar uma emoção, o narrador desce do ponto de vista de cima e vai para o
lado ou para dentro do personagem que quer focalizar”.
Ao estudar a lógica das narrativas populares, Noël Carroll (1994) notou uma
característica comum a grande parte delas, que chamou de narração erotética. Segundo ele,
cenas, situações e acontecimentos que aparecem no início das narrativas estão relacionadas a
cenas posteriores. Carroll entende que toda série, especialmente as de suspense ou horror, são
iniciadas por questões em forma de cenas e respondidas somente no fim. Para o autor, “tal
narração, que está no coração da narração popular, gera uma série de perguntas que o enredo
vai em seguida responder” (1994, p. 187). Em histórias de mistério, por exemplo, Carroll
lembra que o assassinato sempre gera uma questão – quem cometeu o assassinato? –, resposta
que será dada ao espectador por meio de pistas ou da perspicácia do detetive. Já em um thriller
de espionagem, deseja-se saber quem executou o roubo ou por quais razões. Carroll (1994, p.
188) afirma também que nas ficções populares não só os grandes arcos do enredo são ligados
pela narração erotética, mas ela também “tende a fornecer o elo retórico para unidades de
narração menores”.
Para exemplificar como a narração erotética funciona, Mittell (2015) analisa o piloto da
série Veronica Mars, que utiliza o voice-over29 em primeira pessoa para estabelecer uma série
de perguntas (e, automaticamente, respostas) que dirigem não só aquele episódio, mas toda a
temporada. Esse recurso é, segundo o autor, “um aspecto vital da estrutura narrativa do
programa, uma dimensão temática que se repete ao longo do episódio” (MITTELL, 2015, p.
75). Mittell destaca ainda que a mescla do voice-over com a narração erotética serve para
direcionar o público sobre como assistir à série. Sobre um dos episódios da primeira temporada,
Mittell descreve que a personagem-título Veronica faz diversos questionamentos sobre o
assassinato de Lily Kane, a relação de sua mãe com Jane Kane e por que seu pai tem mentido
para ela. Ao final, ela afirma ao público que descobrirá a verdade.

A lógica narrativa dessa sequência configura os principais arcos de história da


temporada, estabelece a narração erótica do programa e garante que esses
arcos não fiquem suspensos sem resposta. Como diz o monólogo final de
Veronica: “Eu prometo isto: vou descobrir o que realmente aconteceu, e eu
vou reunir essa família novamente”, uma declaração que serve também para
assegurar aos telespectadores que essas perguntas têm respostas que serão
reveladas no devido tempo e entregará resoluções emocionalmente

29
Narração realizada em off.
61

satisfatórias, pelo menos enquanto a rede permitir que a série continue no ar30
(MITTEL, 2015, p. 82-83).

Também chamada de modelo pergunta/resposta por Carroll, a narração erotética serve


para delimitar as possibilidades do enredo. Para Carroll, “os vínculos que as perguntas
narrativas colocam sobre o que vai acontecer em seguida são a origem da coerência da história”
(CARROLL, 1944, p. 190).

2.3.2 Tempo e espaço

Sobre o tempo nas narrativas audiovisuais, autores como Marcel Martin (2003) e André
Gaudreault (2009) ponderam que elas lidam com mais de uma temporalidade, pois há sempre
três camadas de tempo: um relativo à diegese ou da ação, isto é, da história que está sendo
contada; o da projeção, correspondente à duração do produto audiovisual (que difere, claro, da
temporalidade da diegese); e o tempo da percepção do público, que é arbitrário e subjetivo
porque depende de cada espectador. Para Gaudreault (2009, p. 139), como a narrativa
cinematográfica é considerada uma dupla narrativa, pois trabalha imagens e falas, sua ordem
temporal é complexa, combinando o que os atores representam visualmente e o que o narrador
relata verbalmente. Com o objetivo de trabalhar essa noção complexa, segundo Marcel Martin
(2003), de posse da câmera, o cineasta passa a dominar o tempo, podendo retardá-lo ou acelerá-
lo, assim como invertê-lo ou paralisá-lo durante a narrativa.
Marcel Martin (2003) explica que o conceito de tempo nas narrativas audiovisuais
implica a noção de data e de duração. A data pode ser indicada por meio de letreiros colocados
durante o vídeo, pela presença de calendários, pelo aparecimento de eventos sociais ou até
mesmo pela estação do ano ou maneira de vestir dos personagens. A duração, no entanto, exige
um processo mais sutil, podendo indicar o escoamento do tempo, ou seja, o tempo que passa,
ou uma duração indeterminada, em que o diretor não explicita o tempo transcorrido da narrativa.
O autor ressalta ainda que o tempo tem como função, dentre outras, a de estruturar a narrativa
cinematográfica, enquanto o espaço funciona como um “quadro de referência, secundário e
anexo” (MARTIN, 2003, p. 221). Porém, mesmo assim, o espaço e o tempo acabam por se
interligar nas narrativas e “se encontram intimamente ligados num continuum” (MARTIN,

30The narrative logic of this sequence sets up the key season-long story arcs, establishes the program’s erotetic narration, and
guarantees that these arcs will not dangle unanswered. As Veronica’s final monologue asserts, “I promise this: I will find out
what really happened, and I will bring this family back together again,” a statement that serves also to assure viewers that these
questions do have answers that will be revealed in due time and will deliver emotionally satisfying resolutions, at least as long
as the network allows the series to continue to air.
62

2003, p. 220). Mittell (2012, 2015) aponta que a complexidade narrativa das séries
contemporâneas caracteriza-se também pela presença de temporalidades e dimensões paralelas
durante a mesma trama, o que configura uma concepção espaço-temporal não convencional e
intrincada. Twin Peaks, por exemplo, é um dos primeiros modelos desse tipo de concepção na
TV ao unir universos paralelos, mundo onírico/sobrenatural e viagens no tempo junto com o
“tempo real” da diegese.
O tempo é empregado de diversas formas para a construção narrativa audiovisual. O
“tempo condensado”, explica Marcel Martin (2003), é o mais utilizado na programação textual
do cinema pois é necessário quase sempre espremer os acontecimentos da história para produzir
um longa-metragem. Já o “tempo respeitado” é escolhido quando o desenrolar cronológico da
narrativa é o mesmo da realidade, como ações de um produto audiovisual que apresentam
duração idêntica se ocorridas no real. “O tempo abolido”, por sua vez, aposta em concepções
audaciosas da temporalidade, podendo explorar múltiplas temporalidades (ou dimensões de
tempo) em uma mesma narrativa ou investir na coexistência de realidades diferentes em um
mesmo espaço. Finalmente, o “tempo revertido” é baseado no retorno ao passado, técnica
bastante utilizada na literatura.
Com o uso de flashbacks, o tempo revertido costuma, de acordo com Marcel Martin
(2003), representar razões estéticas, dramáticas, psicológicas ou sociais na narrativa. Já para
Bordwell (2005), a versão clássica do flashback é sempre reveladora, pois seu uso costuma
evidenciar o que os personagens sabem. Por ser um recurso que interrompe a ordem cronológica
da narrativa, deve ser utilizado com cuidado, pois pode confundir a audiência. Para Campos
(2009), uma trama que não explica devidamente que está inserindo um flashback pode fazer
com que o espectador se disperse e desista da narrativa.

O flashback cria, portanto, uma temporalidade autônoma, interior, maleável,


densa e dramatizada, que oferece à ação um acréscimo de unidade de tom e
permite, com a maior naturalidade, a introdução do relato subjetivo em
primeira pessoa, porta de entrada para domínios psicológicos de grande
riqueza e prestígio (MARTIN, 2003, p. 235).

É possível ainda que as produções utilizem o flashforward, ou acontecimentos no futuro,


com o objetivo de mostrar a intuição e/ou um raciocínio indutivo de um personagem. Para
Campos (2009) e Gaudreault (2009), o avanço no tempo costuma expressar a subjetividade de
um personagem, pode antecipar um acontecimento histórico de maneira mais ou menos
explícita e criar expectativa na audiência. Ao explorar imagens antecipadas em relação ao seu
lugar na cronologia, sugere questões sobre como ou o porquê da situação atual da narrativa.
63

Lost é um dos mais frequentes exemplos usados por estudiosos para representação do uso
complexo de flashbacks e flashforwards, além de flash-sideways, em sua estrutura narrativa.
No último episódio da terceira temporada (“Through the looking glass”), o espectador acredita
estar acompanhando um flashback da história do personagem Jack até que, na última cena,
descobre-se que todo o capítulo se trata de um flashforward. Para Mittell (2010a, p. 97), essa
estratégia temporal complexa funciona por conta das normas intrínsecas da série que já estão
ativadas em nossas mentes, “estabelecidas ao longo de dezenas de episódios ao longo de três
temporadas, destacando o importante papel que a memória formal possui dentro da narrativa
serial”31.
Marcel Martin (2003) ressalta que alguns aspectos técnicos são usuais para denunciar o
flashback. Esse recurso pode ser acionado por meio do travelling para frente, que indica a
passagem para o interior do personagem, e pela fusão, em que imagens do presente se fundem
com imagens do passado. Nesse último caso, é comum que as narrativas escolham gatilhos para
desencadear o uso do flashback, como quando os personagens entram em contato com espelhos,
retratos, fotografias ou objetos que tenham alguma relação com sua história. Essa transição
visual geralmente é acompanhada por uma trilha sonora, seja uma música, uma multiplicação
de sons ou uma distorção do som. Algumas dessas mesmas técnicas visuais podem ser aplicadas
à introdução do flashforward.

2.3.3 Formatos episódico e serial

A narrativa serializada pode ser construída de diferentes formas, como já explicado


anteriormente. O formato episódico apresenta uma estrutura bastante delimitada, com começo,
meio e fim. Os arcos dramáticos são trabalhados a partir do início do episódio e são resolvidos
no mesmo capítulo, possibilitando que espectadores esporádicos possam assistir a um episódio
e desfrutar da narrativa completa sem perder informações. Essa estrutura é comum em seriados
policiais, como as franquias de investigação Law & Order e CSI, quando o capítulo sempre é
iniciado com uma “morte ou caso da semana”. Nesse sentido, cada episódio funciona como um
único produto, com clímax e resolução próprios, possibilitando que a audiência reconheça
gênero, trama e essência dos personagens de uma só vez. Quanto ao formato serial, por sua vez,
os arcos dramáticos são desenvolvidos de maneira mais longa, durando por uma ou mais
temporadas. Nos Estados Unidos, esse formato está presente em séries como Twin Peaks. No

“[...] established over dozens of episodes throughout three seasons, highlighting the important role that formal
31

memory plays within serial narrative”.


64

Brasil, as telenovelas são o exemplo mais clássico. Para acompanhar, o espectador precisa estar
a par de todos os episódios, pois cada capítulo insere novas informações pertinentes à trama.
Para estudiosos como Newcomb, Feuer e Mittell, a serialização é o recurso central da
produção televisiva, e a mescla desses dois formatos é uma das principais características que
fazem da ficção na televisão o que ela é. Para Newcomb e Feuer (apud CAPANEMA, 2016), o
ideal é que as narrativas televisivas sejam capazes de unir as macroestruturas e as
microestruturas em um só produto. Newcomb chama essa união de narrativa cumulativa,
promovendo o equilíbrio perfeito entre “o formato episódico autossuficiente e o formato
capitular contínuo” (CAPANEMA, 2017, p. 40).
Para Mittell (2012; 2015), essa mescla é razão pela qual podemos chamar as narrativas
seriadas contemporâneas de complexas, uma vez que “recusando a necessidade de fechamento
da trama em cada episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade
narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por diversos gêneros” (2012, p. 36).
Isso significa que os capítulos de uma temporada buscam a resolução do conflito central
(formato serial), mas também avançam e finalizam arcos menores que ajudam na coerência da
trama maior (formato episódico).
Esse tipo de narrativa mista é explorado nos ensemble shows, também já citado, geração
de séries que deixou de focar em apenas um protagonista e passou a trabalhar diversos
personagens principais, cada um com sua própria trama e relacionamentos. Ainda sobre a
complexidade nas narrativas contemporâneas, Mittell (2015) explica que essa multiplicidade
de tramas possibilita que as histórias não só deem voz a diversas versões de um enredo, mas
também exercitem a construção dos personagens, fazendo com que múltiplas facetas de ação e
de caráter sejam exploradas, assim como a figura do herói coletivo (JOST, 2012). Em geral,
essas tramas se colidem e coincidem, mas há casos em que as histórias (em teoria) paralelas
sequer chegam a encontrar com as tramas principais e ficam sem resolução clara, despertando
a imaginação do espectador. A série Game of Thrones (HBO, 2011-presente) é um exemplo de
como uma narrativa pode ser construída a partir de diversos protagonistas, cada qual com sua
trama e inter-relações.

2.3.4 Ganchos

Para entender a importância do gancho narrativo, Van Ede (2015) explica que há três
tipos de intervalos comerciais que são respeitados na narrativa seriada ficcional televisiva: os
intervalos dentro dos episódios, os intervalos entre episódios e os intervalos entre temporadas.
65

Os intervalos entre episódios podem ser diários, semanais, quinzenais ou até mensais e, segundo
a autora, “são ontologicamente vinculados à forma serial e sua narrativa [...] A presença desses
intervalos temporais entre episódios automaticamente significa que narrativas televisivas, em
oposição aos filmes, não são feitas de uma unidade narrativa única32” (VAN EDE, 2015, p. 10-
11). Os intervalos entre temporadas, por sua vez, podem durar semanas, meses ou até anos.
Também conhecido como hiato, esse tipo de intervalo encaixa-se especialmente na organização
da programação televisiva norte-americana, que costuma acompanhar as férias de inverno, por
exemplo (VAN EDE, 2015, p. 12). Por fim, os intervalos dentro dos episódios são reconhecidos
como as inserções comerciais, produtos essenciais para a sustentação econômica das redes
televisivas. Esses intervalos costumam ser decisivos para a estruturação das narrativas seriadas,
pois precisam ter sua duração respeitada de maneira rígida.
A partir desses três tipos de intervalos presentes na narrativa seriada televisual, os
ganchos narrativos são recursos comumente utilizados pelos roteiristas para garantir o suspense,
a emoção e a curiosidade do espectador, fazendo com que ele continue acompanhando a
história. Para que a narrativa seja bem-sucedida, é de responsabilidade dos roteiristas apostar
em ganchos para que o espectador retorne à narrativa após os comerciais que interrompem o
episódio, assim como após os dias que separam um episódio de outro e depois da longa parada
que determina o fim da temporada. Nas narrativas seriadas tradicionais, isto é, distribuídas
dentro da programação televisiva, um episódio tem início com uma breve contextualização do
que aconteceu no episódio anterior (MACHADO, 2000), como os resumos “no capítulo
anterior”, seguido de uma introdução à situação inicial e de seu desenvolvimento, da
complicação, do clímax e da conclusão. Em geral, há ao menos dois intervalos comerciais que
interrompem a fruição do episódio, o que exige que roteiristas encaixem ganchos de tensão
menos fortes antes dos breaks, de forma que o espectador retorne à narrativa. Ao fim do
capítulo, o recurso do gancho é utilizado mais uma vez, agora de forma mais intensa.
Nas telenovelas, Pallottini (2012, p. 49) aponta que o “gancho está presente, em menor
escala, ao fim de cada bloco, e costuma ser maior no fim do capítulo levado ao ar no último dia
útil de cada semana”. Como, ainda segundo a autora, o que importa ao espectador de produtos
televisivos é o amanhã, se faz necessário que o público acredite no amanhã, ao menos o da
novela. “É para isso que se cria o gancho, é para isso que se criaram todas as velhíssimas
técnicas de despertar suspense, expectativa” (PALLOTTINI, 2012, p. 105). Para referir-se aos

32
“[...] gaps between installments are ontologically tied to the serial form and its narrative [...] Having these
temporal spaces between episodes automatically means that television serials, as opposed to films, are not made
up of a single narrative unit”.
66

ganchos colocados antes da inserção de blocos publicitárias, esta pesquisa utiliza o termo
“ganchos de menor tensão”, pois, como Machado (2000) e Pallottini (2012) afirmam, esse
recurso costuma ter menos intensidade do que quando é inserido no fim de um episódio ou ao
final de uma temporada.
Maria Cristina Castilho Costa (2000, p. 58) explica que o gancho, ao produzir
curiosidade e avivar o desejo do espectador, “exige a continuidade e trabalha no sentido da
constância e da infinitude do narrar”. A autora continua ao emendar que a promessa de
satisfação do espectador com a resolução de um conflito, portanto, faz com que a fragmentação
natural das narrativas seriadas ficcionais televisivas desapareça. Enquanto a narrativa faz com
que a audiência mergulhe no universo diegético, o gancho provoca a desestabilização desse
mergulho na narrativa, fazendo com que o público retorne ao mundo real, mas que se mantenha
interessado no que pode acontecer.

Há uma dialética no uso desse recurso: a ação só pode ser suspensa, gerando
ansiedade, angústia ou desejo, quando todos os elementos da ação estão dados
e o seu desfecho pode ser previsto e esperado. Assim, o gancho resulta
justamente da previsibilidade e não do desejo de desvio, ruptura ou inovação.
Nesse sentido, ele é tão mais eficiente quanto mais conhecida é a trama e
quanto mais os ouvintes são informados sobre o seu desenrolar. Ou seja,
quanto mais previsível for a narrativa, mais o gancho se transforma em
elemento de captação da atenção do ouvinte (COSTA, 2000, p. 61).

Umberto Eco (1994) reconhece o gancho como elemento que obriga o leitor ou
espectador a refletir sobre a narrativa proposta e também, de certa forma, sobre a própria vida.
Na obra Seis passeios pelos bosques da ficção, Eco defende que o ritmo da narrativa diminui
por meio do uso de suspenses ou passeios inferenciais, e a cada diminuição, o autor convida o
público a continuar a narrativa proposta. Eco (1994, p. 58) também reconhece no gancho um
“aspecto emocional necessário da leitura que coloca em jogo esperanças e medos, bem como a
pensão resultantes de nossa identificação com o destino dos personagens”, explicitando que o
gancho tem papel importante como evocador da memória do leitor ou espectador. Nesse
sentido, Costa (2000) argumenta que esse recurso narrativo pode ser ligado a temporalidades,
desejo, memória e projeção.
Pallottini (2012) lembra que o gancho, ainda que seja um elemento de expectativa,
funciona diferente na literatura, principalmente no folhetim, no romance policial e no romance
do século XIX, e em produtos como a telenovela e a radionovela. Na literatura, o leitor tem ao
seu alcance a totalidade da narrativa, enquanto que nos outros produtos, é necessário aguardar
a exibição do dia ou semana seguinte ou a chegada do jornal para acompanhar o
67

desenvolvimento da história. Nesses produtos, portanto, o controle do suspense da ansiedade e


da expectativa está nas mãos do autor.
Sobre os ganchos, há dois tipos bastante marcados nas narrativas televisivas: os
cliffhangers e as elipses. O primeiro tipo, que pode ser entendido como “à beira do precipício”,
em tradução livre, costuma ser usado para reter a atenção do espectador e impedi-lo de deixar
a história, mantendo o suspense ou a emoção em alta, posicionado exatamente antes do
intervalo. Esse é o gancho clássico, aquele que interrompe a ação, que deixa dúvidas e sugere
respostas. Geralmente, o cliffhanger costuma ter menor impacto ao preceder os intervalos
comerciais que dividem um episódio em blocos (intervalos dentro de episódios) e crescem em
importância ao dividirem capítulos e temporadas.

Cliffhangers localizados no fim da temporada costumam vincular elementos


indeterminados da história que podem levar a consequências mais sérias do
que cliffhangers posicionados no fim de um episódio, pois o intervalo entre
temporadas é maior do que entre episódios33 (VAN EDE, 2015, p. 14).

A elipse, por sua vez, é um recurso muito popular para trabalhar a noção do tempo
diegético nas narrativas audiovisuais (BORDWELL, 1996; MARTIN, 2003; CAMPOS, 2009;
GERBASE, 2014; VAN EDE, 2015; COMPARATO, 2016). Para Gerbase (2014, p. 42), é um
“buraco temporal na trama”, um elemento que simboliza a passagem de tempo na história que
está sendo contada, seja de minutos, horas, dias, anos e até séculos. Para que a elipse funcione,
em geral, é preciso que ela faça sentido em relação ao que acontece antes e depois de sua
exibição, fazendo com que o espectador possa presumir o que ocorrera durante esse buraco.
Um exemplo clássico (e sofisticado) de seu emprego está no filme 2001, Uma Odisseia no
Espaço (1968), do diretor Stanley Kubrick, em que um macaco lança um osso para cima,
imagem seguida pelo aparecimento de uma nave espacial – essa elipse marca a passagem da
idade da pedra para o século XXI.

A elipse, portanto, cobre um período que inicia com a descoberta do uso de


ferramentas pela linhagem do homo sapiens, até a representação de uma
ferramenta que, no imaginário do final da década de 60 (o filme é de 1968),
constituía o máximo de sofisticação tecnológica construída por essa mesma
linhagem num futuro não muito distante. Bela elipse, que cumpre três funções.
A primeira é narrativa, ao ligar eventos muito distantes no tempo, mas muito
próximos conceitualmente. A segunda é dramática, permitindo uma
identificação emocional do espectador com a espécie humana como um todo.

33
“Cliffhangers at the end of a season often entail indeterminate story elements that can lead to more severe
consequences than the ones at the end of an episode, because there is a larger gap between seasons than between
episodes”.
68

E a terceira é estética, criando um momento de pura beleza fílmica, logo


depois acentuado pelo uso da valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss
(GERBASE, 2014, p. 42-43).

É comum que a elipse seja marcada pela sucessão rápida de imagens, cobertas por trilha
sonora, ou por paisagens paradisíacas durante o dia e a noite (progressão popular nas
telenovelas que se passam no Rio de Janeiro), ou por vagões de metrô ou ônibus sendo tomados
pelo público e depois deixados pelos passageiros. Contudo, por ser uma omissão da história
(CAMPOS, 2009) utilizada massivamente nas narrativas televisivas, a elipse tornou-se um
recurso compreendido com clareza pelo espectador. Para Comparato (2016, p. 154), visto que
a audiência já se habituou com sua utilização, criou-se uma espécie de cumplicidade entre
produto e público, “de que forma que não é necessário que essas indicações sejam tão claras ou
evidentes. A passagem de tempo é incorporada nos diálogos e nos acontecimentos”.
Marcel Martin (2003), no entanto, aponta que a elipse vai além da necessidade primeira
de suprimir tempos aparentemente desnecessários da trama, pois também pode ser empregado
como efeito dramático ou significação simbólica (MARTIN, 2003, p. 77). A fim de entender
essas caracterizações, o autor tipifica as elipses como “estruturais” e “de conteúdo”. As
estruturais são motivadas pela construção do enredo, por ações dramáticas, e são divididas por
ele em objetivas e subjetivas. Dentre as elipses objetivas, Martin (2003, p. 78) explica que “mais
comumente […] tem por objetivo dissimular um instante decisivo da ação para suscitar no
espectador um sentimento de espera ansiosa, o chamado suspense”. Além de suspender um
instante decisivo da ação, outra forma da elipse objetiva aparecer é como sustentação dramática,
de maneira a quebrar ou intensificar o tom dramático da ação. Já as elipses subjetivas
apresentam uma função simbólica, emergindo significações mais profundas à ação. Esse tipo
costuma focar na visão, audição ou nas emoções de um dos personagens, garantindo
profundidade e interpretações para o sentido de tal cena – caso de personagens que,
apaixonados, ignoram o caos em que vivem.
Por sua vez, as elipses de conteúdo são motivadas por razões de censura social, de forma
a disfarçar acontecimentos consideradas tabu ou contra os “bons costumes”, como cenas de
violência, homoafetividade ou sexo. Ações, gestos e atitudes podem ser ocultados por completo
ou em parte, substituídos por closes em personagens, em objetos presentes na cena ou
construídos a partir de sombras ou reflexos. Para Marcel Martin (2003, p. 85), a vocação da
elipse “não é tanto suprimir os tempos fracos e os momentos vazios quanto sugerir o sólido e o
pleno, deixando fora de cena o que a mente do espectador pode suprir sem dificuldade”.
Portanto, podemos afirmar que as elipses não são apenas pulos temporais, mas também podem
69

concentrar conhecimentos sobre os personagens e levar o público a criar interpretações sobre a


história que está sendo contada, argumento corroborado por Bordwell:

Obviamente, as elipses deixam lacunas que podem ser permanentes ou


temporárias, focadas ou difusas, destacadas ou suprimidas. Frequentemente,
as elipses trabalham contra a procrastinação – salta-se o tempo para chegar ao
próximo momento importante –, e, assim, uma narrativa altamente elíptica
pode exigir enredos complexos para atrasar a ação. Se o período omitido
contém informações significativas, as elipses podem criar supressões na
narrativa que configuram nossa atividade de formação de hipóteses34
(BORDWELL, 1996, p. 83).

Essa afirmação ganha força quando a elipse é conectada a ganchos, ainda que essa seja
uma estratégia pouco utilizada. Gerbase (2014) lembra de ganchos mais sofisticados presentes
em narrativas complexas da geração mais atual das séries contemporâneas, como nas narrativas
seriadas ficcionais televisivas Downton Abbey (ITV, 2010-2015) e Homeland (Showtime,
2011-presente). No primeiro caso, ao final da terceira temporada, o personagem Matthew sofre
grave acidente nos últimos minutos da narrativa; contudo, a quarta temporada tem início meses
depois, quando a família já seguia com suas vidas após o baque de sua morte. Em Homeland,
no final de sua segunda temporada, o ex-fuzileiro Nicholas Brody, que pode (ou não) ser um
terrorista disfarçado, deve concorrer a uma vaga de deputado no Congresso. A quarta temporada
inicia, contudo, com Brody já estabelecido em seu gabinete, sem que o espectador tenha
conhecimento de como fora o processo eleitoral. Para Gerbase (2014, p. 46), “uma elipse desse
tipo, ao solicitar a imaginação criativa do espectador, faz com que ele se sinta ‘inteligente’, o
que é uma estratégia eficaz para fidelizá-lo à trama”.

2.3.5 Recapitulações

Feita para interrupções e para a retomada, a dramaturgia televisiva usa da repetição e


até da redundância para acionar constantemente a memória da audiência, de acordo com
Pallottini (2012). Nesse sentido, a autora destaca que informações importantes não podem ser
dadas apenas uma vez na narrativa televisiva, durante uma única cena. “Essa informação tem
de ser periodicamente representada, resumida ou acrescida de novos detalhes” (PALLOTTINI,

34
“Obviamente, las elipsis dejan lagunas que pueden ser permanentes o temporales, enfocadas o difusas,
destacadas o suprimidas. Las elipsis, frecuentemente, funcionan en contra de la dilación – se salta sobre el tiempo
para llegar al siguiente momento importante –, y así una narración altamente elíptica podría requerir complicadas
líneas argumentales para retrasar la acción. Si el período omitido contiene información significativa, la elipsis
puede crear una narración supresiva que configure nuestra actividad de formación de hipótesis”.
70

2012, p. 57). Assim, a narrativa seriada na TV também é caracterizada pelas recapitulações


(MITTELL, 2010a; VAN EDE, 2015). Segundo Van Ede (2015), elas dão sentido aos ganchos,
questões, mistérios e pontos de virada das ficções seriadas e são essenciais para que o
espectador entenda a narrativa por completo. Van Ede defende que as “recapitulações na
narrativa seriada da televisão precisam acomodar espectadores novos e esporádicos, além dos
espectadores regulares35” (2015, p. 17).
Contudo, é preciso usar esse recurso com cuidado, pois deve-se satisfazer e não
aborrecer espectadores, esclarecendo partes da narrativa, mas não repetindo informações à
exaustão. Mittell (2010a) lembra que os espectadores dificilmente conseguem se dedicar à
programação televisiva para acompanhar todos os episódios exibidos, então, a utilização de
recapitulações é ideal para engajar espectadores erráticos, principalmente aqueles que perdem
um ou mais capítulos da narrativa.
Van Ede explica que há dois tipos de recapitulações: as paratextuais, aquelas que
acabam por repetir informações do texto, como o quadro “no capítulo anterior”, a vinheta de
abertura da série e episódios de recapitulação/compilação; e as diegéticas, que têm a mesma
função, mas costumam ser realizadas por meio de diálogos entre os personagens, uso de
flashbacks, sugestões visuais ou trechos de episódios anteriores no meio do capítulo atual (VAN
EDE, 2015, p. 19-25).
Dentre as recapitulações paratextuais, o uso de breves resumos antes do início da
exibição do novo episódio é bastante comum. O recurso “no capítulo anterior”, em que são
apresentados os principais acontecimentos do último episódio exibido, não é a única técnica de
resumos utilizadas nas narrativas seriadas – há a transmissão também de resumos de diversos
acontecimentos exibidos durante toda a temporada antes da apresentação do último capítulo,
estratégia usada, por exemplo, na série Dexter (Showtime, 2006-2013), em que todos os
assassinatos cometidos pelo personagem principal e pistas do grande mistério da temporada são
resumidos em um breve clipe com curta duração, deixando a audiência inteirada da narrativa
composta por 12 episódios. Mittell (2010a) defende ainda que as vinhetas podem ser estratégias
interessantes para acionar a memória do público, compostas apenas pelo nome da série (caso
de Lost e Breaking Bad) ou por uma sequência de cenas já transmitidas (Friends). As
recapitulações paratextuais podem ser representadas ainda pelas reprises dos episódios,
estratégia popular dos canais de TV por assinatura, ou pelos episódios de compilação, que
reúnem cenas que já fizeram parte de outros episódios da narrativa.

35
“...recaps in serial narrative television have to accommodate new or sporadic viewers, in addition to regular
viewers”.
71

Mittell (2010a) defende ainda que as vinhetas podem ser estratégias interessantes para
acionar a memória do público, compostas apenas pelo nome da série (caso de Lost e Breaking
Bad) ou por uma sequência de cenas já transmitidas (Friends). Sobre vinhetas, costumeiramente
há três tipos de inserções: a de abertura, descritas anteriores, as de passagem e as de
encerramento. As vinhetas de passagem, ou conhecidas por “estamos apresentando” e
“voltamos a apresentar”, são inseridas para segmentar o episódio em blocos e, portanto, são
consequências do fluxo televisivo. Elas estão lá para lembrar que o espectador deve retornar à
narrativa após o intervalo comercial ou pode se manter no canal para continuar a narrativa. Já
a vinheta de encerramento, em que são descritos os créditos de produção e execução das séries,
assim como a vinheta de abertura, funciona para separar a produção da programação televisiva.
Para Jaqueline Schiavoni (2015, p. 85), o uso da vinheta como evento estético tem como missão
o encantamento, não a tensão, “recondicionando o sujeito diante da tela, dando-lhe condições
para que, ao retornar desse momento de suspensão, possa enfrentar novamente a
sequencialidade do fluxo”.
As recapitulações diegéticas, no entanto, apostam em gatilhos mais sutis para acionar a
memória da audiência. Para que o público compreenda a narrativa e mantenha na memória
personagens e ações importantes da trama, autores utilizam diálogos quase didáticos, em que
personagens relembram acontecimentos e repetem as ligações e conclusões da história
(MITTELL, 2010a). A utilização de sugestões visuais como objetos específicos e cenários
também é popular, mas podem depender de um olhar mais apurado do espectador – um exemplo
é a trompa azul que liga os personagens Ted e Robin na comédia How I Met Your Mother (CBS,
2005-2014). A técnica de voice-over, recurso encarado como preguiçoso por parte dos
roteiristas por dar as informações facilmente ao espectador, também pode ser usada como uma
recapitulação diegética em narrativas complexas. Em primeira pessoa, caso da série Veronica
Mars, a audiência acompanha as deduções e impressões da detetive e personagem principal. Já
nas séries The Twilight Zone e Pushing Daisies (Um Toque de Vida; ABC, 2007-2009), o voice-
over funciona como um narrador em terceira pessoa, onisciente. Por fim, a sitcom Arrested
Development (Caindo na Real; FOX, 2003-2006; Netflix, 2013-presente) recorre a essa técnica
para preencher buracos da narrativa, fazendo com que a história avance.
O flashback, como já indicado no item 2.3.2, é o retorno ao passado. Na narrativa
audiovisual, pode ser usado para repetir alguma cena já exibida, com o objetivo de ativar a
memória do público, ou para apresentar uma informação do passado interessante para a história
(MARTIN, 2003; BORDWELL, 2005; CAMPOS, 2009; GAUDREAULT, 2009; MITTELL,
2010a; VAN EDE, 2015; COMPARATO, 2016). Em geral, liga-se à narrativa por meio do
72

narrador ou de um personagem que tem uma lembrança ou faz uma associação de ideias.
Mittell (2010a) e Comparato (2016) atribuem tipificações para o flashback como
elemento agregador do universo diegético. O flashback evocado (COMPARATO, 2016) ou o
subjetivo em primeira pessoa (MITTELL, 2010a) é aquele em que um personagem recorda o
passado para explicar o presente; o tipo solicitado é usado quando um personagem percebe um
acontecimento da história ao resgatar o passado, por exemplo, um crime; o tipo atípico mescla
o evocado e o solicitado, utilizado geralmente como elemento surpresa; e o flashback dentro do
flashback, técnica mais ousada e complexa, pois pode promover confusão no espectador. Há
ainda o flashback usado como replay, muito comum nas transmissões de realities shows para
que o público acompanhe a cronologia dos acontecimentos.
No próximo capítulo, a pesquisa introduz a era do on-demand, em que plataformas de
conteúdo como a Netflix passam a disputar a atenção da audiência com a criação de narrativas
seriadas de qualidade e, no caso do serviço em questão, lançadas de uma só vez e produzidas
para que o público assista aos episódios um atrás do outro.
73

CAPÍTULO III – A ERA DO ON-DEMAND

Desde meados da década de 1990 e início da de 2000, a revolução digital – logo,


tecnologias como IPTV (Internet Protocol Television) e OTT (Over the top) – tem promovido
mudanças na sociedade e na cultura e possibilitado novas formas de acesso, produção,
distribuição e assistência de conteúdo audiovisual antes restritas ao universo da televisão.
Consequentemente, essa revolução também modifica o entendimento sobre o que é o fluxo
televisivo e as interrupções que marcam as narrativas seriadas televisivas desde sua concepção.
Foi nesse cenário de transformações que a Netflix começou a atuar.
Fundada em 1997, a companhia surge nos Estados Unidos como um serviço de aluguel
de DVDs com entrega e devolução via correio, propondo um novo modelo de negócio até então
baseado nas videolocadoras físicas de bairro ou grandes marcas como a Blockbuster. Contudo,
a grande transformação causada pela Netflix se deu a partir de 2010, quando adere
completamente ao streaming e realiza contratos com diversos estúdios de cinema e da televisão
para transmissão de filmes e séries de sucesso de público. Com uma mensalidade bem menor
em comparação com os pacotes das TVs por assinatura, a Netflix abre caminho para a criação
de outros serviços de streaming que conquistam cada vez mais a audiência.
Nesse capítulo, identificamos o surgimento do streaming e as principais plataformas
existentes voltadas para o entretenimento, caso não só da Netflix como também de YouTube,
Amazon Prime Video, Hulu, Looke, Globoplay, entre outras. Também apresentamos a história
da Netflix até seu momento atual, destacando seu modelo de distribuição de produções originais
(o binge-publishing), que modifica a experiência televisiva de narrativas seriadas, e como sua
criação impulsionou o modo com que assistimos às séries atualmente, um episódio atrás do
outro, fenômeno que ganhou a alcunha de binge-watching, ou maratona de vídeos.

3.1 Streaming e plataformas on-demand

A evolução digital (de conexões, hardwares e softwares) promove transformações


constantes no modo com que o público se relaciona com textos que circulam na cultura. Há
novas maneiras de se assistir à televisão, de se produzir e distribuir conteúdo para diferentes
países, de conectar pessoas e culturas por meio de um dispositivo (muitas vezes, móvel e que
cabe na palma da mão) e uma conexão de internet. Conforme afirma Chuck Tryon (2013, p.
74

12), as novas “ferramentas de distribuição, circulação e exibição não estão apenas mudando as
maneiras pelas quais as indústrias de mídia buscam criar novas formas de lucratividade. Elas
também alteram a própria natureza da vida cotidiana36”. Atualmente, é comum ver pessoas
assistindo a produtos audiovisuais em seus celulares durante o trajeto de ônibus ou metrô para
o trabalho, ou famílias que se sentam em um mesmo ambiente, mas cada integrante acompanha
seu programa favorito em um dispositivo diferente, seja no celular, no computador ou na
televisão, como se vivessem separados e em seus mundos individualizados. Ou então, a prática
de assistir à TV e compartilhar comentários nas redes sociais com o smartphone, promovendo
a assistência multitela, uma geração que experimenta o audiovisual simultaneamente a partir de
dois ou até três dispositivos. Ainda segundo Tryon (2013), essas formas múltiplas de se
produzir, acessar e distribuir produções audiovisuais impulsiona o que ele chama de uma cultura
sob demanda (on-demand culture), marcada pela individualização do consumidor, pela
mobilidade de plataformas e pela ubiquidade de conteúdo.

[...] distribuição digital levanta novas questões sobre como, quando e onde
acessamos os filmes e o que esse modelo significa para a cultura do
entretenimento. A mídia digital parece prometer que os textos de mídia
circulam mais rápido, mais barato e mais amplamente do que nunca, levando
a relatos utópicos que imaginam o potencial de programas de televisão ou
filmes estarem disponíveis em qualquer lugar37 (TRYON, 2013, p. 3).

Ainda de acordo com Tryon (2013), essas novas formas de consumo individualizado e
móvel são constantemente reforçadas pela própria cultura de entretenimento

[...] não apenas pelas próprias tecnologias, mas também em anúncios para uma
ampla gama de dispositivos móveis e ferramentas de entrega digital. Esses
anúncios, que muitas vezes mostram consumidores individuais liberados das
restrições de tempo e espaço, não apenas vendem os produtos representados,
mas também modos específicos de consumo liberado38 (TRYON, 2013, p. 12).

36
“[...] these new distribution, circulation, and exhibition tools are not merely changing the ways in which the
media industries seek to create new forms of profitability. They also alter the very nature of everyday life”.
37
“[...] digital distribution raises new questions about how, when, and where we access movies and what this
model means for entertainment culture. Digital media seem to promise that media texts circulate faster, more
cheaply, and more broadly than ever before, leading to utopian accounts that imagine the potential for television
shows or movies to be available anywhere”.
38
“[...] not just through the technologies themselves but also in advertisements for a wide range of mobile devices
and digital delivery tools. These advertisements, which often show individual consumers liberated from the
constraints of time and space, not only sell the products depicted but also specific modes of liberated consumption”.
75

Mesmo no Brasil, em que a conexão via banda larga ainda deixa a desejar em muitas
cidades, a pesquisa PNAD Contínua TIC 201739 (PNAD, 2018) revela que o percentual de
domicílios com acesso à internet subiu de 69,3% em 2016 para 74,9% em 2017, um aumento
de 5,6 pontos percentuais. Sobre o uso da internet no celular, o percentual aumentou de 94,6%
para 97% no mesmo período. A respeito da banda larga, por sua vez, o percentual dos que
utilizam o serviço móvel passou de 77,3% para 78,5%, enquanto a banda larga fixa subiu de
71,4% para 76,5%. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta ainda que,
em 2017, a TV passou a ser usada por 16,1% dos domicílios para a internet, avanço considerável
na comparação com 2016, quando essa porção era de 11,7%. No total, são 8,5 milhões de
domicílios que utilizam a televisão como um dispositivo de conexão à internet. Ainda segundo
a pesquisa, 81,8% dos que acessaram a internet em 2017 disseram que uma das finalidades foi
para assistir a vídeos, prática mais comum do que o uso do e-mail, apontada por 66% dos
entrevistados. Todos esses dados mostram que, embora o Brasil apresente problemas em relação
à conectividade quando comparado a outros países, a população busca estar cada vez mais
conectada e no controle do que deseja ter acesso, especialmente quando se trata de
entretenimento.
Grande impulsionador da cultura on-demand é a tecnologia streaming. A transmissão
instantânea de dados digitais, áudio e/ou vídeo, por meio da internet desenvolve-se a partir da
década de 1990, mas demora a popularizar-se, uma vez que depende da velocidade das
conexões com a web para realizar uma transmissão de qualidade. Como os dados ficam
armazenados temporariamente no computador e, então, são exibidos ao usuário em velocidade
quase instantânea, até os anos 2000, devido à baixa conexão de internet, assistir a vídeos ou
ouvir músicas por essa tecnologia exigia muita paciência do usuário. Atualmente, há duas
modalidades de streaming disponíveis – o streaming on-demand (sob demanda), em que a
produção fica salva em um servidor e pode ser acessada por meio de um aplicativo ou site, e o
live streaming, que é a transmissão em tempo real de um produto.

Entre os serviços de vídeo sob demanda, há uma variedade que atende


diferentes perfis de usuários e conteúdos. Alguns utilizam a infraestrutura de
banda larga para propagar conteúdos por diferentes telas (televisão,
smartphone, computador, etc.) e outros usam aparelhos de recepção de sinal
de TV por assinatura. As modalidades distintas de acesso aos serviços de
vídeo sob demanda podem ser classificadas como OTT (Over the Top),
quando se usa a internet como principal canal de conteúdos, ou Cable VOD,
quando o acesso ocorre por intermédio do set-up box das operadoras a cabo.

39
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/23445-pnad-
continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais Acesso em 10 jan. 2019.
76

Essas formas de acesso ao conteúdo podem seguir distintos modelos de


negócio (assinatura, acesso gratuito, aluguel, etc.), o que caracteriza o
mercado de vídeo sob demanda como um ambiente em constante
transformação e experimentações, o que viabiliza novas possibilidades de
negócios (MASSAROLO, MESQUITA, 2016, p. 110).

A primeira transmissão via tecnologia streaming foi realizada pela emissora esportiva
ESPN (Entertainment and Sports Programming Network), em setembro de 1995. Segundo
Ferreira Junior (2015), a emissora transmitiu sua programação de rádio ao vivo pela internet,
um jogo entre Seattle Mariners e New York Yankees pela Major League Baseball, a liga norte-
americana de beisebol. Dois anos depois surge o Real Player, primeiro software que comportava
streaming de vídeo em tempo real, sem necessidade de download, todavia, a conexão de internet
era requisito, ainda muito aquém do que existe hoje.
Somente dez anos após a primeira transmissão via streaming surge um marco histórico
para a tecnologia, o lançamento do YouTube, em fevereiro de 2005, muito embora um ano antes
já houvesse o Vimeo, plataforma de compartilhamento de vídeo bastante semelhante. Serviço
de vídeo sob demanda de classificação OTT, o YouTube é um FVOD (Free Video On Demand)
e tem como maior característica exibir conteúdo gratuito gerado por seus usuários. Há uma
variedade quase infinita de conteúdos no YouTube, fazendo com que dividam espaço materiais
amadores, ficcionais e jornalísticos, pessoais ou de interesse público, produções de fãs e até
divulgação de materiais analógicos que foram transformados para o formato digital. Em 2013,
a plataforma cria canais pagos, alterando seu modelo de negócio para um misto entre produções
gratuitas e acesso a conteúdos pagos, mas a iniciativa é descontinuada em janeiro de 2018 e
substituída pelo também pago YouTube Premium (antigo YouTube Red), que oferece
produções originais (como a Netflix), vídeos sem anúncio e com modo off-line, além do uso
ilimitado do YouTube Music, seu streaming de música. Segundo Massarolo e Mesquita (2016,
p. 112), o YouTube é uma empresa de tecnologia “que se aproximou do mercado audiovisual,
num constante processo de inovação, em busca de um modelo de negócio experimental, além
de uma curadoria de conteúdo livre”.
Em 2006, a Amazon inicia as operações do Amazon Unbox, hoje chamado Amazon
Prime Video, e disponibiliza produções televisivas e filmes mediante assinatura mensal. A
plataforma é criada a partir de testes realizados com usuários de TiVo40 e, inicialmente, os
usuários locam episódios de seriados por um valor fechado (US$ 1,99 cada). O funcionamento

40
Marca popular de gravador de vídeo digital (DVR). Ele possibilita a gravação de programação televisiva para
armazenamento em drive de disco rígido.
77

do Amazon Prime Video é semelhante ao da Netflix, e se apresenta como um de seus grandes


concorrentes em termos de produções originais, dono de narrativas seriadas de sucesso como
Transparent (2014-presente), The Man in the High Castle (2015-presente) e American Gods
(2017-presente).
Um ano após o lançamento do Amazon Prime Video, as companhias NBC Universal e
News Company apresentam o Hulu, outra opção de agregador de produções de diversos
estúdios disponível apenas nos Estados Unidos. Em 2009, a ABC obtém 29% do Hulu e passa
a disponibilizar conteúdos televisivos próprios na plataforma, ao lado de produções de
emissoras norte-americanas como CW e NBC. Dentre as produções originais do serviço estão
The Handmaid's Tale (O Conto da Aia, 2017-presente) e Castle Rock (2018-presente). Segundo
João Martins Ladeira (2013, p. 154), desde o princípio, o Hulu “surge como uma aliança
estratégica entre corporações tradicionais de audiovisual”.
No Brasil, há opções de agregadores de conteúdo como Netflix, Hulu e Amazon Prime
Video, caso do Looke, do Oldflix e do Globoplay. A plataforma Looke, lançada em 2015,
combina três modalidades de pagamento para acessar o catálogo com mais de 12 mil títulos,
dentre filmes e séries. É possível realizar assinatura mensal por meio do modelo Vídeo Club
(para 1, 3 ou 5 telas), pagar o Aluguel Digital, em que o serviço cobra por cada filme alugado
que deve ser assistido em 48 horas, ou acessar o Compra Digital, em que se compra um filme
por tempo ilimitado. O serviço Oldflix, por sua vez, data de 2016 e traz séries, filmes e
animações antigas para que o público assista mediante assinatura mensal. Ambas as plataformas
oferecem um período grátis de experimentação do serviço com duração de sete dias e podem
ser acessadas de diversos dispositivos como smartphones, smart TVs, tablets e computadores.
Criado em 2015 e pertencente ao Grupo Globo, o Globoplay é a plataforma de vídeos
sob demanda que agrega não só títulos e produções da Rede Globo, como também a transmissão
ao vivo de sua programação e produções internacionais, como as narrativas seriadas The Good
Doctor (ABC, 2017-presente) e Killing Eve (BBC America, 2018-presente). De acordo com
Amanda V. Vieira e Cíntia M. G. Murta (2017), é possível acessar ainda vídeos exclusivos e
lançamentos que antecedem a estreia na grade aberta. “Um mês após o serviço completar um
ano, a plataforma Globo Play contabilizou 10 milhões de downloads e 6,3 bilhões de minutos
em conteúdo consumidos” (VIEIRA e MURTA, 2017, p. 18). Em dezembro de 2018, a
plataforma contava com cerca de 20 milhões de usuários, possuía 15 séries internacionais e
esperava alcançar 100 títulos desse tipo em curto espaço de tempo41 (ALECRIM, 2018).

41
https://tecnoblog.net/270477/globoplay-streaming-video-brasil/ Acesso em 15 jan. 2019.
78

Há ainda outras plataformas de VOD (Video On Demand, ou vídeo sob demanda)


destinadas a nichos específicos. Criada em 2017, a Libreflix (https://libreflix.org/) é uma
plataforma brasileira de código aberto que utiliza software livre para streaming de produções
audiovisuais independentes. Há opções gratuitas de longas, curtas-metragens, documentários e
séries ficcionais e não-ficcionais. Para os apaixonados por animação oriental, o Crunchyroll
(www.crunchyroll.com), criado em 2006, possui acervo voltado exclusivamente para animes,
mangás e dorama (drama televisivo japonês), incluindo produções não lançadas oficialmente
em países ocidentais. Segundo o site oficial, o Crunchyroll está disponível de forma gratuita,
mas é possível acessar a versão premium que possibilita assistência sem propaganda e acesso a
séries disponibilizadas logo após a transmissão nas emissoras japonesas. Já produções sobre
ciência, tecnologia e história têm lugar garantido no norte-americano Curiosity Stream
(https://curiositystream.com), lançado em 2015 e que exige pagamento de uma assinatura
mensal.
Contudo, ao lado do YouTube, a iniciativa de streaming mais bem-sucedido tem sido a
Netflix. Criada por Reed Hastings e Marc Randolph em 1997, a plataforma de SVOD
(Subscription Video On Demand) surge nos Estados Unidos como um serviço de aluguel de
DVDs com entrega e devolução via correio. Sua trajetória contou com duas grandes mudanças:
em 2007, quando iniciou as primeiras transmissões de produções via streaming, e depois em
2010, quando aderiu completamente ao digital. Devido ao seu modelo de negócio, a Netflix
pode ser enquadrada como um serviço disruptivo, termo criado por Joseph Bower e Clayton
Christensen (1995) para caracterizar negócios que rompem com ideias estabelecidas,
geralmente, como uma alternativa de baixo custo, para um público segmentado e que não
atraem a atenção ou são vistos como ameaça pelos grandes players do mercado, mas acabam
por alcançarem o topo, superando os concorrentes.
A Netflix pode ser acessada via smart TVs, aparelhos de Blu-ray, videogames como
PlayStation e Xbox, dispositivos como Apple TV e Chromecast, além de smartphones, tablets
e computadores. A partir de um catálogo vasto de filmes, seriados, documentários, desenhos e
produções originais, o usuário acessa a plataforma e escolhe o que deseja ver, a qualquer hora
e da forma que lhe for mais confortável. Conforme termo cunhado por Stephen Graham, ao
falar sobre a vida urbana e as transformações causadas pelo digital, a Netflix é a expressão ideal
do consumo de “anything, anytime, anywhere” (GRAHAM, 2004, p. 4), isto é, de qualquer
coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar. A seguir, nos aprofundamos na história da Netflix e
em seu modelo de negócio disruptivo.
79

3.2 Netflix: um caso paradigmático

A criação da Netflix tem início com o encontro dos co-fundadores Reed Hastings, atual
presidente e CEO da Netflix, e Marc Randolph. Hastings fundou sua primeira empresa, Pure
Software, em 1991, e produzia serviços para solucionar problemas de softwares. Em 1996, a
Pure Software passou por um processo de fusão com a Atria Software, fundando a Pure Atria,
especializada em gestão e detecção de erros de softwares complexos. Foi na Pure Atria que
Hastings e Randolph se conheceram. Ambos dotados de espíritos empreendedores, deixam a
Pure Atria para desenvolver uma startup voltada para o aluguel de DVDs de filmes, fundada
em 1997, em Los Gatos, Califórnia. Randolph verbalizava há alguns anos seu desejo de replicar
o modelo de negócios de e-commerce iniciado pela Amazon.com, de Jeff Bezos.
Em 1997, a gigante Blockbuster é o principal nome dentre as corporações dedicadas ao
aluguel de VHS, dividindo as atenções de clientes com pequenas locadoras de bairro. Com a
criação do DVD, a Blockbuster cogita uma possível transição do VHS para o novo formato e
sua entrada na World Wide Web, ofertando o aluguel de vídeos pela internet. Em paralelo,
segundo Gina Keating (2013), os fundadores da Netflix têm a ideia de criar uma empresa de
aluguel e venda de vídeos que providenciasse um serviço diferenciado ao existente. Porém, não
seria fácil fazer a clientela trocar serviços estabelecidos e de confiança por algo novo. Para
encontrar um diferencial, vasculharam o mercado em busca de pontos negativos sobre o modelo
de locação de vídeos e identificaram que o formato VHS era muito frágil e que as multas por
atraso na devolução era uma prática que aborrecia grande parte dos consumidores. Assim surge
a ideia de um modelo de aluguel único, um serviço de assinatura mensal que possibilitaria a
locação ilimitada de DVDs e que daria fim às multas por atraso. Entretanto, demorou cerca de
um ano até que a Netflix conseguisse apresentar esse modelo por completo de maneira
financeiramente viável. A princípio, os clientes acessavam o site netflix.com, conheciam o
catálogo de títulos e solicitavam a entrega dos vídeos em sua residência via mensageiro,
pagando separadamente um valor fixo por cada filme.
Contudo, “os clientes tinham que esperar uma semana para receber os filmes. Parecia
ridículo imaginar que eles poderiam desafiar a Blockbuster manipulando seu próprio modelo42”
(KEATING, 2013, p. 21). Para isso, Hastings e Randolph buscam profissionais que conhecem
como funcionam os ramos de entretenimento doméstico (setor de atuação da Blockbuster e de

42
“Customers would also have to wait a week to receive their movies. It seemed ludicrous to imagine that they
could challenge Blockbuster by manipulating its own model”.
80

outras locadoras) e do serviço postal norte-americano, uma vez que é necessário encontrar uma
solução para a entrega mais rápida dos vídeos na residência dos assinantes. Esses profissionais
são responsáveis por três características importantes do sucesso da Netflix em seu início: o
envio dos vídeos aos clientes via sistema postal do país, os modelos de busca da plataforma
(por filmes, atores e diretores) e as listas de vídeos disponíveis no inventário, agrupados por
gênero, tema, ou título semelhantes. Em resumo, Keating (2013) explica que o plano de
negócios inicial da Netflix consiste no aluguel e venda de DVDs de forma à la carte, isto é, o
cliente pode alugar vídeos e devolvê-los após sete dias por um mensageiro já pago pela Netflix
ou adquirir algum dos filmes por um preço menor que do mercado.

A empresa cobrava o mesmo que as locadoras para a entrega de um VHS –


quatro dólares mais dois dólares por um disco, e três dólares por cada disco
adicional. Os clientes podiam ficar com o filme por até sete dias e devolver
por meio de um mensageiro já pago. Se os clientes gostavam de qualquer
filme, eles tinham a opção de comprar por um valor 30% abaixo do preço do
varejo. A grande sacada era algo que as lojas comuns não podiam oferecer –
uma ampla seleção que incluía quase todos os DVDs já lançados43
(KEATING, 2013, p. 27).

Após ajustes nesse plano inicial de negócios – como a substituição do serviço de


mensageiro pelo serviço postal –, a equipe faz uma lista de possíveis nomes para o serviço; ele
deveria conter duas sílabas, sendo uma ligada ao cinema e a outra, à internet. Dentre opções
como Replay.com, eFlix.com, Cinema Center, o nome vencedor é NetFlix, a letra F em
maiúsculo para reforçar a conexão com o universo cinematográfico. Em seguida, o plano de
marketing investe em comunidades virtuais e entusiastas tecnológicos que possuem aparelhos
de DVD para testarem a versão beta da plataforma, com a possibilidade de serem os primeiros
a postarem sobre o lançamento do serviço. Como, à época, o aparelho de DVD ainda é um
produto caro e para poucos, a ideia é atingir cinéfilos e apaixonados por tecnologia. Mesmo
assim, Keating (2013) lembra que a tensão era grande entre o time.

Todos tinham muito em jogo, e isso começava a surgir em discussões que


comumente escalavam para brigas com gritarias. Eles não eram uma startup
típica de jovens recém-saídos da faculdade – a maioria possuía posições
sêniores em grandes empresas de software e todos abriram mão de muito
dinheiro para trabalhar na Netflix. Eles o fizeram, pois compartilhavam o

43
“The company would charge the video stores’ going rate for VHS rental – four dollars plus two dollars shipping
for a single disc, and three dollars for each additional one. Renters could keep movies for seven days and return
them in a postage-paid mailer. If costumers liked a particular title, they could buy it for 30% below the retail price.
Their hook would be something that retail stores could not offer – a selection that included almost every DVD
ever released”.
81

sonho de uma empresa orientada ao cliente que refletia seus ideais e carregava
seus DNAs intelectuais44 (KEATING, 2013, p. 31).

Finalmente, a plataforma é lançada em 14 de abril de 1998, porém, os servidores


alcançam a capacidade máxima em aproximadamente 90 minutos, caindo em seguida.
Enquanto parte da equipe esforça-se para colocar o serviço no ar novamente, o restante anota
os pedidos de aluguel recebidos nos momentos em que o site volta a funcionar. “Ao cair da
noite, eles haviam recebido mais de cem pedidos para enviar mais de quinhentos discos45”
(KEATING, 2013, p. 32). A partir do lançamento, seus idealizadores precisam lidar não só com
o funcionamento do serviço – a instabilidade e a lentidão do sistema, a entrega correta e rápida
dos DVDs –, mas também com a disrupção de dois negócios paradigmáticos no mercado, o
formato VHS e o aluguel físico de filmes. De acordo com Keating (2013), nos primeiros quatro
meses, a Netflix envia e recebe de volta mais de 200 mil cópias de DVDs, atingindo uma receita
de US$ 100 mil mensais.
Embora cautelosos, os estúdios de cinema percebem a movimentação do mercado a
favor do formato DVD e passam a produzir cerca de cem títulos por mês no novo formato,
segundo Keating (2013). Mesmo assim, a Netflix enfrenta dificuldades para convencer os
estúdios a venderem seus títulos pelo preço de atacado, o que a levou a intensificar a procura
por filmes mais antigos, inspirados em datas comemorativas e atores populares, e não por
lançamentos do cinema – seu catálogo apresenta, por exemplo, filmes estrangeiros como
películas da Índia, filmes de artes marciais da China e animes japoneses, o que encanta muitos
de seus clientes que procuravam títulos de nichos. Nesse período, ainda segundo Keating, é
implementado um sistema de recomendação de títulos. Consumidores que alugam os mesmos
filmes são agrupados e recebem indicações de títulos bem ranqueados por clientes de gostos
semelhantes. Em julho do mesmo ano, apenas quatro meses após o lançamento, a equipe passa
a procurar um novo local para abrigar seus escritórios e servidores em crescente expansão.
Em paralelo ao desenvolvimento de melhorias na plataforma, a Netflix consegue uma
reunião com representantes da Toshiba, negociação que, mais tarde, “abriu portas para Hewlett-
Packard e Apple, cujos modelos HP Pavilion e Apple PowerBook traziam drivers de DVD46”

44
“They all had a lot at stake, and it started to show in arguments that often escalated to shouting matches. They
were not a typical start up staff of kids just out of college – most had had seniority at big software names, and all
had taken big pay cuts to work at Netflix. They had done so gladly to realize a shared dream of a consumer-oriented
company that reflected their ideals and carried their intellectual DNA”.
45
“By nightfall, they had received more than one hundred orders to ship more than five hundred disks”.
46
“[...] opened doors to Hewlett-Packard and Apple, whose new internet-ready HP Pavillion and Apple Powerbook
featured DVD-Roms drivers”.
82

(KEATING, 2013, p. 39). Essas parcerias ajudam a movimentar o comércio de DVDs, ainda
pouco acessível ao público.

Os fabricantes rapidamente descobriram que a Netflix oferecia uma saída para


um dilema que impedia as vendas: os consumidores não queriam comprar
aparelhos de DVD porque os DVDs não estavam amplamente disponíveis nas
lojas. Os varejistas não queriam vender DVDs porque nenhum deles tinha
aparelhos de DVD. Ao incluir um cupom Netflix na caixa, um fabricante de
DVD pôde prometer aos consumidores acesso a uma biblioteca de mais de mil
títulos. [...] no final de 1998, os clientes começaram a reivindicar os aluguéis
gratuitos que acompanhavam seus aparelhos de DVD47 (KEATING, 2013, p.
39).

O primeiro estúdio a deixar de produzir filmes em VHS é a Warner, em 2000. Todavia,


mesmo com movimentações interessantes no mercado, a Netflix segue perdendo dinheiro a
cada transação, uma vez que o programa de cupons grátis e a operação de envio pelos correios
são caras demais. A única operação que ainda vale a pena é a venda de DVDs, contudo, o
serviço é visto com cautela, uma vez que que grandes empresas como a Amazon e a própria
Blockbuster começam também a trabalhar com a comercialização do formato. Ao prever a
grande concorrência para esse setor da empresa, Hastings anuncia o encerramento da venda de
DVDs, seguido de um acordo com a Amazon – a Netflix recomendava a compra de DVDs pela
Amazon, enquanto o e-commerce fazia o oposto, anunciava os serviços da Netflix. Parte do
estafe executivo da empresa não concordou com a ação de Hastings, duvidando da inteligência
do fundador ao “ceder” a única operação lucrativa da empresa à concorrência. A chegada do
Natal faz com que as vendas de aparelhos de DVDs cresçam muito acima do esperado,
transformando-o no “produto eletrônico mais vendido na história48” (KEATING, 2013, p. 49),
acompanhado por cupons de assinatura da Netflix.
Em 1999, a autora destaca que Hastings levanta mais de US$ 100 milhões em
investimentos, além do apoio financeiro de US$ 30 milhões de um empresário francês. Com
isso, muitos dos que participaram da criação da Netflix em 1997 e 1998 deixam a empresa,
visto que Hastings os impediu de assumirem cadeiras no estafe executivo. Alguns dos novos
contratados, por sua vez, são responsáveis por grandes mudanças na empresa, caso de Tom
Dillon, novo diretor de operações e criador do sistema de distribuição física da plataforma.

47
“Manufacturers quickly discovered that Netflix offered a way out of a dilemma that was holding down sales:
consumers did not want to buy DVD players because DVDs were not widely available at stores. Retailers did not
want to stock DVDs because no one had DVD players. By including a Netflix coupon in the box a DVD player
manufacturer could promise consumers access to a library of more than one thousand titles. [...] by the end of 1998
customers were beginning to claim the free rentals that came with their DVD players”.
48
“[…] became the fastest-selling electronic product in history”.
83

Dillon usou dados que ele extraiu de um programa dos correios que continha
informações de entrega de todos os CEPs norte-americanos e criou um
software que apontava quais as melhores localidades para os centros de
distribuição da Netflix. O programa conectava endereços de clientes e os
organizava dentro do alcance de entregas noturnas da agência de correios mais
próxima. Em seguida, Dillon instalou os centros de distribuição o mais
próximo possível desses centros dos correios, onde cada CEP era organizado
e enviado49 (KEATING, 2013, p. 56).

No mesmo ano, o time de marketing testa novas formas de capturar os consumidores


até, em setembro de 1999, de acordo com Keating, gerar o modelo de assinatura mensal de US$
19,95 pela locação ilimitada de filmes. “Apenas uma pequena parte dos clientes que visitavam
a página viam a oferta, mas o rol de assinaturas ou de conversões para o novo plano confirmou
a Randolph e Hastings que eles tinham chegado a um modelo vencedor50” (KEATING, 2013,
p. 59). Essa é a primeira vitória da Netflix sobre o modelo da Blockbuster.
Em 2000, com o objetivo de iniciar a oferta pública de ações da Netflix, Hastings encerra
o serviço de aluguel à la carte e aumenta o preço do serviço de assinaturas para US$ 19,95
mensais, permitindo que os clientes tivessem direito a um mês grátis para testar a plataforma.
Ele também contrata Leslie Kilgore, ex-executiva de marketing da Amazon e Proctor &
Gamble, que assume a missão de redesenhar o logo da empresa – a letra F volta a ser em
minúsculo para simetria, o fundo roxo é substituído pela cor vermelha e as letras do nome
ganham contraste com a combinação do preto e do branco.
Após Wall Street olhar com incerteza para organizações originadas na internet, a Netflix
é impedida de concretizar sua entrada na Bolsa de Valores e propõe uma aliança ousada à
Blockbuster: por US$ 50 milhões, a Netflix se tornaria o braço on-line da Blockbuster. A
proposta, no entanto, foi recusada pela Blockbuster, pois não havia uma visão clara sobre a
expansão do serviço de aluguel on-line como real concorrente – mais um movimento que
provou a derrocada da gigante de locação. A Blockbuster já observava o mercado on-line de
aluguel de vídeos, mas os números de usuários de internet ainda eram muito abaixo dos números
de consumidores de seus vídeos físicos. Assim, preferiram investir apenas na troca de todo seu
inventário de VHS por DVD.

49
“Dillon used data he hacked from a post office compact disc that contained delivery data for all US Zip Codes
and designed a software program that pinpointed the best locations for Netflix distribution centers. The program
plugged in customer addresses and arranged them all within the overnight delivery radios of the closest post office.
Then Dillon sited the distribution center as close as possible to the post office´s Area Distribution Centers, where
each zip codes mail was sorted and sent out”.
50
“Only a fraction of the consumers who visited the Netflix page saw the offer, but the role of sign-ups or
conversions to the new plan, told Randolph and Hastings they had a winner”.
84

Antigo desejo de Hastings, a Netflix consegue entrar para a NASDAQ em 23 de maio


de 2002, com uma oferta inicial de US$ 80 milhões. Após sentir que seu ímpeto e ideais iniciais
ficaram para trás, em 2003, Mark Randolph deixa a Netflix, com Hastings assumindo o cargo
de presidente, chairman e porta-voz da empresa, que alcançou um milhão de assinaturas nesse
mesmo ano. Em 2004, a Blockbuster finalmente lança a Blockbuster Online, serviço de aluguel
on-line de vídeos que, segundo Keating (2013), embora trabalhasse com o mesmo esquema de
assinaturas e cupons grátis para aluguel de DVDs, não era integrado com as lojas da rede, que
se sentiam ameaçadas pelo novo serviço. Dessa forma, a Blockbuster Online precisou construir
seu banco de assinaturas do zero. Ainda assim, a marca fez quase uma cópia do modelo bem-
sucedido da Netflix, mesmo que sem a inteligência algorítmica ou seu processo de otimização
de custos. Após uma guerra de preços estabelecida durante 2004 e 2005 entre as organizações,
a Netflix fechou 2005 valendo US$ 1.5 bilhão, enquanto a Blockbuster, enfrentando problemas
com as lojas e dívidas com os estúdios, fechou o mesmo ano valendo US$ 684 milhões.
Com a expansão do serviço de banda larga nos Estados Unidos, estúdios e produtoras
percebem que o on-line pode se tornar uma nova via de divulgação para o cinema. O primeiro
estúdio a disponibilizar esse tipo de conteúdo foi a Disney, em 2006, no iTunes. Hastings já
tinha a ideia de criar uma plataforma que possibilitasse o streaming de vídeos, para qualquer
dispositivo que permitisse a transmissão de vídeo, e a coloca em prática em 2007 ao apresentar
o serviço de instant streaming para jornalistas. Segundo Keating (2013), o site parecia muito
semelhante ao que conhecemos da plataforma hoje: “levava apenas um clique do mouse e 20
segundos para entrar no ar o filme com qualidade e resolução de DVD51” (KEATING, 2013, p.
183). Porém, a seleção pequena de filmes, com apenas mil títulos, a priori, desanima muitos
fãs da plataforma. Em paralelo, a estratégia on-line da Blockbuster, que havia até então
conquistado uma base de assinaturas muito maior do que a da Netflix, começa a enfrentar sérios
problemas após adotar uma mensalidade ousada, bem abaixo do valor da concorrente, mas que
não se sustenta por muito tempo.
Após enfrentar a queda de assinaturas devido à presença da Blockbuster por alguns
balanços, o número de clientes da Netflix volta a crescer em 2008, o que impulsiona o
lançamento do set-top box52 Roku, criado por uma empresa homônima incubada na própria
Netflix e que já vinha com a plataforma pronta para uso. O aumento das assinaturas também
auxilia a parceria entre Netflix e Microsoft, disponibilizando o serviço de streaming direto no

51
“It took one mouse click to load it and about 20 seconds to begin playing a movie at DVD quality resolution”.
52
O set-top box é um conversor/decodificador que transforma o sinal recebido de uma fonte externa em um formato
que possa ser reproduzido em uma tela.
85

videogame Xbox 360. Na época, o catálogo contava com cerca de 12 mil títulos. A Blockbuster
também tentou entrar no mercado de set-top box ao introduzir, em novembro do mesmo ano,
“um aparelho digital de mídia, de apenas US$ 99, que baixava conteúdo em alta definição via
banda larga53” (KEATING, 2013, p. 227). Assim surge o Blockbuster OnDemand, dotado de
um catálogo menor que o da Netflix, mas repleto de lançamentos do cinema. Entretanto, é
preciso pagar quase dois dólares por cada título e assisti-lo em até 24 horas, o que afasta muitos
usuários que preferem a liberdade de assistência garantida pela Netflix.
Quando a crise financeira de 2008 atinge os Estados Unidos, os consumidores cortam
gastos e se voltam para a Netflix, fazendo com que a plataforma atinja 10 milhões de
assinaturas. Nesse momento também surgem os primeiros rumores de falência da Blockbuster,
confirmada em 2013, especialmente após a chegada de um novo CEO que preferiu investir na
revitalização das lojas e não no plano digital. A crise também impulsiona, por outro lado, a
adoção do instant streaming pelos assinantes da Netflix. Após 18 meses de seu lançamento,
metade dos usuários já utilizavam o serviço, assim como conheciam outros serviços como
YouTube, iTunes e Hulu em busca dos títulos que não estavam no catálogo da Netflix.
Entre 2009 e 2010, a plataforma busca parcerias com estúdios para transmissão de
conteúdo televisivo, conquistando títulos como South Park (Comedy Central, 1997-presente) e
séries de sucesso da Disney-ABC Television Group, como Lost, Grey’s Anatomy (ABC, 2005-
presente) e Desperate Housewives (ABC, 2004-2012). Hastings mostra aos estúdios que possui
dinheiro para gastar com produções televisivas, mas suas propostas passam despercebidas até
o acordo de US$ 800 milhões com a EPIX, combinado com duração de cinco anos que permite
a transmissão de produções da Paramount Pictures, Lionsgate e Metro-Goldwyn-Mayer. De
acordo com Michael Wolff (2015, p. 89), ceder licenças para Hastings foi vantajoso para as
emissoras de televisão, visto que “a maior, senão única, preocupação da televisão – procurar
por mercados alternativos para o seu produto, agora tinha outra saída”. Ainda segundo Wolff,
a Netflix passou de um “site de locação de filmes (poucos milhões de pessoas por dia vão aos
cinemas) para uma rede de reprises de televisão (40 milhões a 50 milhões de pessoas assistem
à televisão todas as noites)” (WOLFF, 2015, p. 89).
O crescimento constante de assinaturas e os acordos com os estúdios possibilitam o
início da expansão internacional da Netflix. Em 2010, após aderir completamente ao on-line e
encerrar o aluguel físico de DVDs, a empresa chega ao Canadá e, em menos de um ano,
conquista seu primeiro milhão de assinantes. Um ano depois, a plataforma alcança 25 milhões

53
“Introduced a ninety-nine dollar digital media player that downloaded high definition quality movies to
customers´ televisions via broadband lines”.
86

de assinaturas e se expande em 43 países da América Latina e Caribe. No Brasil, a princípio, a


Netflix enfrenta certa resistência da população devido a dois fatores: a falta de hábito do
brasileiro em pagar por conteúdo televisivo on-line e o impasse tecnológico da época, uma vez
que a banda larga era possível para apenas cerca de 15 milhões de usuários no país
(SACCOMORI, 2015, p. 55). Com a expansão (ainda que abaixo das expectativas) do Plano
Nacional de Banda Larga, essas barreiras começam a cair.
Ainda em 2011, Keating (2013, p. 255) recorda que a plataforma de streaming superou
o iTunes como “o maior vendedor on-line de filmes e programas de TV dos EUA – seu serviço
de assinatura tomando 44% do total do negócio cinematográfico on-line contra 32% da
Apple54”, e seu catálogo tornou-se o maior do mundo, com duzentos mil títulos de diferentes
gêneros e idiomas. Para Chris Anderson (2006), empresas como a própria Netflix, Google e
Apple são exemplos de uma tendência do século XXI, a de converter bens físicos em dados e
transmiti-los para as residências dos consumidores.

Em vídeo, os mercados puramente digitais variam desde serviços de vídeo por


encomenda, prestados por empresas de TV a cabo, até agregadores de vídeo
pela Internet, como a Google Vídeo. As tecnologias de troca de arquivos peer-
to-peer, como a BitTorrent, são os pilares de centenas de mercados de vídeos
digitais não comerciais, enquanto a iTunes está construindo próspero negócio
pay-per-download para seu vídeo iPod. Parte disso é conteúdo de TV,
transformando esses mercados de vídeos digitais baseados em redes numa
espécie de TiVo no céu. Outros agregadores oferecem filmes, mercado que,
um dia, pegará a grande seleção da Netflix e garantirá sua disponibilidade
instantânea, iniciativa que provavelmente será liderada pela própria Netflix
(ANDERSON, 2006, p. 94).

De posse de inúmeros dados gerados pelos assinantes, a Netflix dá um passo ainda maior
e, em 2012, passa a atuar também como produtora audiovisual. De acordo com Keating,
Hastings percebe que há um círculo virtuoso à sua disposição: “conteúdo de qualidade significa
mais assinantes; mais assinantes significam mais dinheiro para conteúdo de qualidade55”
(KEATING, 2013, p. 262). Assim, lança sua primeira série com conteúdo original, rotulada
como Netflix Original (Originais Netflix no Brasil), com Lilyhammer. Um ano depois,
apresenta o drama político House of Cards, com o ator Kevin Spacey como protagonista. Com
o sucesso de House of Cards, outros artistas de Hollywood embarcaram em projetos da
plataforma que hoje contém títulos como Gypsy, com Naomi Wats, Grace and Frankie, com

54
“[...] the top US online seller of movies and TV shows – its signature subscription service claiming 44 percent
of total online movie business to 32 percent for Apple”.
55
“[...] better content meant more subscribers; more subscribers meant more money for better content”.
87

Jane Fonda e Lily Tomlin, Stranger Things, com Winona Ryder, e The Kominsky Method, com
Michael Douglas e Alan Arkin.
A plataforma também se dedica a criação de longas-metragens e documentários. No
entanto, sua política de distribuição de conteúdos cinematográficos entra em colisão com a
indústria. Ladeira (2013) explica que dentre as principais estratégias do ramo audiovisual está
o intervalo artificial criado entre o lançamento de um filme no cinema e seu licenciamento em
outras versões, como para a TV por assinatura e aberta, para DVD etc. Dessa forma, quanto
maior o espaço de tempo entre o lançamento do filme na sala de cinema para o início de sua
comercialização em DVD, licenciamento de veiculação na televisão fechada e, finalmente,
transmissão em televisão aberta, maior será o valor atribuído a cada uma dessas versões
(LADEIRA, 2013, p. 149). A partir desse esquema, as plataformas de streaming precisam se
encaixar em um desses períodos para realizar o lançamento de um longa – no entanto, devido à
própria concepção do streaming, o ideal é que se lance um filme o mais rápido possível na
plataforma. A Netflix, portanto, tem diminuído ao máximo esse tempo de espera para
fidelização de seu usuário, e ignora o período padrão de 13 a 17 semanas costumeiramente
atribuídas entre a estreia de um filme nas salas de cinema e sua divulgação em formato DVD.
Além disso, apresentou longas-metragens em sua plataforma antes mesmo de colocá-los à
disposição em salas de cinema.
Contrariados com a movimentação da Netflix, em 2015 e 2016, grandes redes norte-
americanas de cinema iniciam um boicote aos longas produzidos pela plataforma, Beasts of No
Nation (2015) e O Tigre e o Dragão: a lenda verde (2016), e impedem sua exibição em grandes
salas do país. Contudo, a queda de público nos cinemas, a baixa venda de DVDs e Blu-ray e o
crescimento do download ilegal das produções cinematográficas em geral passaram a ser
inimigos mais sérios para os grandes estúdios do que a ameaça causada pela Netflix. Conforme
Angela Miguel Corrêa (2017, p. 134), “parte da indústria cinematográfica passou a cogitar o
streaming como uma valorosa estratégia de lançamento, diminuindo os custos com distribuição
e com o combate à pirataria”. Como prova desse movimento, estúdios de Hollywood pretendem
lançar seus longas-metragens na Netflix 45 dias após estrearem nas salas de cinema, e não 90
dias após, segundo o The Wall Street Journal56 (FRITZ, 2017), como forma de evitar a pirataria
e proteger os proprietários das redes de cinemas.

56
https://www.wsj.com/articles/from-multiplex-to-living-room-in-45-days-or-less-1490532001 Acesso em 12
jun. 2017.
88

Aos poucos, a Netflix começa a encontrar aceitação em parte do mercado


cinematográfico, como a disputa da Palma de Ouro, do Festival de Cannes 201757, com o filme
Okja, com direção de Bong Joon Ho, e a indicação do longa Roma, do diretor Alfonso Cuarón,
para o Oscar 201958 nas categorias Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro. No caso de Okja,
tanto a película quanto a empresa resistiram às críticas, uma vez que o filme foi lançado direto
na plataforma e não passou pelos cinemas, o que poderia categorizá-lo como um produto para
televisão, visto como um tipo de produção de segunda linha. A Netflix aprendeu com a
repercussão de Cannes e passou a disponibilizar alguns de seus longas nos cinemas, o que
ocorreu com Roma. Cuarón, por sua vez, tornou-se um dos grandes porta-vozes da distribuição
realizada pela Netflix. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o diretor disse: “um filme mexicano,
em preto e branco e falado em espanhol jamais teria a distribuição que ele está tendo agora”
(COM ROMA..., 2019). Roma terminou a noite do Oscar 201959 (OSCAR..., 2019) como
vencedor de três prêmios: Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Diretor e Melhor Fotografia.
Apesar de tropeços e ajustes, ano após ano, a Netflix aumenta sua quantidade de
assinaturas, sua expansão pelo mundo e seus conteúdos originais e feitos em parceria com
grandes estúdios e produtoras independentes. Em 2016, fechou com 93,8 milhões de assinantes
no mundo60, um crescimento de 19 milhões em comparação com 2015. Também em 2016,
expandiu seus serviços para mais de 190 países. No Brasil desde 2011, a empresa não divulga
seu faturamento anual no país, mas estimativas do mercado financeiro apontam que a
plataforma faturou R$ 1,1 bilhão no Brasil em 2015, muito mais do que o canal SBT 61
(FELTRIN, 2016), com faturamento estimado em R$ 850 milhões no mesmo ano. Em relação
ao faturamento da Band, por sua vez, a Netflix ganhou quase o triplo. Paralelamente, a Netflix
também é encarada como uma concorrente de peso para a TV por assinatura no Brasil. Segundo
o IBGE, o percentual de domicílios com TV por assinatura passou de 33,7% em 2016 para
32,8% em 2017, uma queda de 333 mil residências62 (VILLAS BÔAS, 2018). Já de acordo com
a Ancine (Agência Nacional de Cinema), em 2017, havia 17,97 milhões de assinantes de TVs

57
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/cinema/noticia/2017/06/okja-que-disputou-palma-de-ouro-em-
cannes-estreia-na-netflix-veja-mais-filmes-do-servico-de-streaming-9826427.html Acesso em 28 jun. 2017
58
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/com-roma-netflix-emplaca-primeira-indicacao-ao-oscar-de-
melhor-filme.shtml Acesso em 22 jan. 2019
59
https://oglobo.globo.com/cultura/oscar-2019-roma-ganha-premio-de-melhor-filme-estrangeiro-23478579
Acesso em 25 fev. 2019.
60
http://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2017/01/19/netflix-fechou-o-ano-com-938-
milhoes-de-assinantes.html Acesso em 04 jun. 2017.
61
http://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2016/01/11/netflix-fatura-r-11-bi-no-brasil-e-ultrapassa-o-sbt.htm
Acesso em 06 jun. 2017.
62
https://www.valor.com.br/brasil/6033853/ibge-tv-por-assinatura-perde-espaco-com-crise-e-servico-de-
streaming Acesso em 15 jan. 2019.
89

por assinatura, número que vem caindo desde 2016, quando eram 18,80 milhões, e 2015, que
registrou 19,11 milhões (LOPES, GÓMEZ, 2018, p. 110).
No balanço do último trimestre de 201863 (NETFLIX..., 2019), o serviço encerrou o ano
com 139 milhões de assinantes em todo o planeta, sendo que somente nos últimos três meses
do ano ganhou 8,8 milhões de assinantes, um aumento de 33% em relação ao mesmo período
de 2017. Segundo a empresa, desse total de novos usuários, 7,3 milhões são originários de fora
dos Estados Unidos. Somente em 2018, a Netflix angariou 29 milhões de novos assinantes.

3.3 Funcionalidades e algoritmos de recomendação

Ao acessar a Netflix pela primeira vez, o usuário deve escolher o plano de assinatura
que mais se adequa às suas necessidades. Todo novo assinante tem direito a um mês grátis para
experimentar a plataforma, proposta que pode ser encerrada a qualquer momento. Somente a
partir do segundo mês a assinatura escolhida é cobrada. No Brasil, os planos em vigor
atualmente são: Básico, que permite o uso de uma tela por R$ 19,90 mensal para assistência
ilimitada de filmes e séries via notebook, TV, smartphone ou tablet; Padrão, com duas telas
simultâneas pelo preço de R$ 27,90 e imagens HD; Premium, com direito a quatro telas
simultâneas e Ultra HD disponível por R$ 37,9064.
Após a escolha do plano, o usuário utiliza seu e-mail e senha para criar uma conta
exclusiva na plataforma. Em seguida, a página apresenta uma série de títulos divididos por
gênero, tipo de produção (série, filme, documentário, animação etc.) e recomendações da
própria plataforma, geralmente compostas pelas produções originais da empresa. Há ainda listas
como Adicionados Recentemente, Populares na Netflix e Em Alta, que trazem novidades e os
títulos mais visualizados, além do Continue Assistindo, que apresenta os últimos títulos
assistidos pelo usuário. Todo assinante também pode montar sua lista de produções favoritas.
Para maior personalização, a Netflix permite que diferentes perfis sejam criados para que a
experiência de recomendação de títulos da plataforma seja individualizada – é possível ter até
cinco perfis diferentes em uma única conta, possibilitando a individualização de títulos
assistidos recentemente, classificação etária, configurações de produção e sugestões
personalizadas de produções.

63
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/netflix-tem-recorde-de-assinantes-mas-receita-cresce-menos-
que-o-esperado.shtml Acesso em 18 jun. 2019.
64
Dados coletados em janeiro de 2019.
90

Figura 1: Exibição de menu da série Grace and Frankie

Fonte: Netflix.com

No caso de séries, ao escolher um produto, o usuário é levado a uma página exclusiva


da produção que contém cinco opções de visualização: Visão Geral (uma espécie de resumo ou
capa da série, mostrando data de atualização, número de temporadas e episódios, sinopse do
episódio e nomes dos criadores do produto); Episódios (lista de todos os capítulos, com sinopse
e duração); Trailers e Mais (vídeos sobre a série, como resumo de temporadas passadas e trailers
de novas temporadas); Títulos Semelhantes (indicações da plataforma para quem gostou do
gênero/narrativa do produto); e Detalhes (dados gerais da série como nomes dos criadores,
elenco, gêneros e classificação etária).

Figura 2: Lista de episódios da série Grace and Frankie

Fonte: Netflix.com
91

Ao selecionar um episódio da série, imediatamente o usuário é direcionado ao início do


capítulo. Desde 2012, a Netflix criou a função post-play, um recurso voltado para a reprodução
automática de um novo episódio. Assim que o capítulo selecionado é finalizado e se inicia a
exibição dos créditos de produção daquele episódio, um algoritmo determina que aquele
costuma ser o momento em que os usuários anteriores clicaram para sair daquela exibição e
buscaram o próximo capítulo. Há versões da plataforma, como em smart TVs, que o post-play
aparece como um pop-up em que são exibidas imagens do próximo episódio; em notebooks, o
post-play aparece como uma caixa vermelha no canto inferior direito da tela. Automaticamente,
um contador regressivo tem início para a apresentação do próximo episódio, determinando seu
início entre 15 e 5 segundos. Segundo Camila Saccomori (2016, p. 87), o post-play “abrevia
radicalmente o processo decisório de ‘seguir adiante’ na narrativa. Envolvido pela trama, o
espectador conta com a facilidade tecnológica para consumir um conteúdo que, em épocas
anteriores, seria experimentado de outra forma”. Uma das consequências do post-play
apontadas por Saccomori e outros estudiosos da plataforma é que esse recurso é fundamental
para que os espectadores assistam a episódios sem pausa ou realizem o binge-watching (ver
item 3.3).

Figura 3: Função post-play

Fonte: Netflix.com

Outra função da plataforma é o chamado resume playback, em que o usuário pode


paralisar o produto que está assistindo a qualquer momento e o sistema memoriza exatamente
o momento em que o usuário parou de assistir ao vídeo. Quando o mesmo título é acessado
92

novamente, ele pode continuar do mesmo ponto que parou anteriormente. Essa memorização
funciona em todos os dispositivos, por conseguinte, é possível iniciar um título no smartphone
e depois continuá-lo horas depois no computador. Desde 2016, é possível baixar títulos
disponíveis na plataforma e assisti-los sem necessitar de conexão com a internet. Dessa forma,
o usuário pode continuar a assistir conteúdo off-line, sem utilizar os dados de seu plano de
internet ou em locais em que a conexão é limitada. O recurso está disponível para smartphones,
tablets e computadores. No caso dos celulares Apple, o serviço está disponível a partir do
sistema iOS 9.0; para celulares Android, o sistema precisa ser 4.4.2 ou superior. No caso de
notebooks, esse recurso está presente apenas para Windows 10. Não estão disponíveis para
download, no entanto, todos os títulos do catálogo e é possível armazenar atualmente até 100
títulos simultaneamente em um único aparelho. Em 2017, o serviço lançou o botão “pular
abertura”, em que o usuário pode pular os créditos iniciais para ir direto ao episódio.
A maior parte dessas funcionalidades da Netflix está ligada à inteligência algorítmica
da plataforma, que sugere uma navegação personalizada e amigável e uma divisão de conteúdo
que segue gêneros e avaliações de usuários. Para Massarolo e Mesquita (2016), os algoritmos
sugerem produções compatíveis com o gosto do assinante devido à dedicação da plataforma
para a criação de um sistema que faz recomendações a partir da geração de palavras-chave
atribuídas manualmente aos títulos. O sistema de algoritmos também entende e analisa as
“pegadas digitais” deixadas por cada assinante – é por conta dessa inteligência que, em muitos
casos, o sistema automaticamente “pula” vinhetas ou recapitulações do tipo “no capítulo
anterior”, uma vez que percebe que o assinante está assistindo um episódio atrás do outro e se
lembra com clareza do que acabou de acontecer.
Em 2015, Carlos Gomez-Uribe, ex-vice-presidente de Product Innovation da Netflix, e
Neil Hunt, ex-Chief Product Officer da companhia, produzem um artigo e explicam que a
plataforma utiliza uma série de algoritmos de recomendação com o objetivo de ajudar os
assinantes a encontrarem produções seguindo suas preferências. Em um catálogo extenso como
o da Netflix, pesquisas de mercado indicam que um assinante costuma perder o interesse após
usar 60 a 90 segundos para escolher um título. Calcula-se que durante esse período o usuário
olhou entre 10 e 20 títulos. Assim, para impedi-lo de abandonar o serviço e escolher outra
alternativa de entretenimento, esse conjunto de algoritmos que compõe o sistema de
recomendação deve oferecer títulos interessantes ao usuário na primeira tela da plataforma.
Desde a fundação da Netflix, Hastings confia em equipes de matemáticos para desenhar
os algoritmos, e essa equipe chegou a ter até mais importância do que o time editorial
(KEATING, 2013, p. 61). Até 2015, a avaliação dos usuários sobre cada título era representada
93

por estrelas, e o sistema de recomendação confiava nesses ratings para sugerir títulos
semelhantes e personalizar a experiência do assinante. Porém, em busca de mudanças e
individualizações ainda mais profundas, a plataforma cria, em outubro de 2006, o Netflix Prize
(KEATING, 2013; HALLINAN, STRIPHAS, 2014). O desafio convidava grupos e startups a
auxiliar o entendimento dos algoritmos de recomendação no momento da migração das vendas
de DVDs para o instant streaming. Para aquele que conseguisse melhorar os resultados dos
algoritmos em 10%, o prêmio prometia US$ 1 milhão. Um ano depois, o prêmio foi dado ao
time BellKor’s Pragmatic Chaos, que aprimorou o sistema em 10,06%. Atualmente, a Netflix
realiza a coleta e o processamento de todo tipo de informação a respeito da navegação e da
interação dos usuários com a plataforma, possibilitando a oferta de séries e filmes totalmente
personalizados para cada perfil.

Esses dados e as experiências realizadas para melhorar o produto Netflix nos


ensinaram que há formas muito melhores de ajudar as pessoas encontrarem
vídeos para assistir do que focando somente em classificações previsíveis de
estrelas. Agora, nosso sistema de recomendações consiste em uma variedade
de algoritmos que definem em conjunto a experiência Netflix, os quais se
mostram, em sua maioria, em nossa homepage. Essa é a primeira página que
os membros da Netflix veem ao se conectarem aos seus perfis Netflix em
qualquer dispositivo (TV, tablet, telefone ou browser) – e é onde se dá a
principal apresentação de nossas recomendações, onde duas de cada três horas
de conteúdo exibidas na Netflix é descoberta65 (GOMEZ-URIBE, HUNT,
2015, p. 2).

Gomez-Uribe e Hunt (2015) detalham alguns dos algoritmos presentes no sistema de


recomendação: Personalized Video Ranker (PVR), que alinha o catálogo da plataforma de
acordo com as preferências do perfil; Top-N Video Ranker, que exibe os melhores títulos do
catálogo que se encaixam no perfil do usuário; Trending Now, que reúne filmes que a
plataforma sabe que serão assistidos em épocas do ano específicas (como o Natal) ou diante de
acontecimentos particulares (documentários sobre política próximo a eleições, por exemplo);
Continue Watching, que soma os títulos recentemente assistidos, abandonados ou concluídos;
Video-Video Similarity, que traz títulos similares; e outros como Evidence, Related Work e
Search, que compõem o sistema.

65
“These data and our resulting experiences improving the Netflix product have taught us that there are much
better ways to help people find videos to watch than focusing only on those with a high predicted star rating. Now,
our recommender system consists of a variety of algorithms that collectively define the Netflix experience, most
of which come together on the Netflix homepage. This is the first page that a Netflix member sees upon logging
onto one’s Netflix profile on any device (TV, tablet, phone, or browser) — it is the main presentation of
recommendations, where 2 of every 3 hours streamed on Netflix are discovered”.
94

Ainda segundo os autores, a Netflix economiza mais de um bilhão de dólares


anualmente com a combinação de big data, algoritmos de recomendação e, consequentemente,
personalização da plataforma. Para Gomez-Uribe e Hunt (2015), essa economia advém da
queda do número de cancelamentos de assinaturas e também da menor necessidade de captar
novos membros para substituir aqueles que abandonaram o serviço. Segundo Keating (2013) e
Halinan e Striphas (2014), a combinação acima não só ajuda a Netflix a engajar sua audiência
e personalizar o serviço, mas também a escolher o que será produzido ou quais títulos já
conhecidos devem ser adicionados ao catálogo. Assim se deu a produção de uma nova
temporada da série Arrested Development, produto inicialmente feito pela FOX, e da produção
original House of Cards. Halinan e Striphas recordam que a Netflix reuniu as informações
geradas por seu extenso banco há mais de dez anos para sugerir o produto House of Cards.

[...] utilizando seus algoritmos para determinar se há uma audiência presente


para uma combinação de “David Fincher”, seu “estilo”, a coleção de gêneros
com os quais ele já trabalhou, “Kevin Spacey”, o gênero específico de thriller
político, e por aí vai. (...) A Netflix se movimenta de uma massa indiferente
para um aglomerado de microaudiências altamente diferenciadas66
(HALINAN, STRIPHAS, 2014, p. 128).

Conforme Keating ressalta, todo esse cruzamento de dados indica o que pode ser
produzido, mas não se o título se tornará um sucesso. Nesse caso específico, “em menos de um
mês após sua estreia, House of Cards se tornou a série mais vista na plataforma” (KEATING,
2013, p. 263). A Netflix também não está de olho apenas no comportamento da audiência dentro
da plataforma. Em entrevista à Folha de S. Paulo em maio de 2013, Reed Hastings afirmou que
a empresa tem grande interesse no conteúdo que é mal distribuído. “Com muita frequência, nós
vamos atrás daquilo que as pessoas procuram nas redes de pirataria, como o BitTorrent. A
pirataria é um indicador de demandas não atendidas”67, disse o CEO da plataforma.

3.4 A distribuição binge-publishing: tudo de uma vez só

66
“[...] using its algorithms to decompose the property to determine whether an audience might exist for some
combination of “David Fincher,” his “style,” the collection of genres across which he has worked, “Kevin Spacey,”
the specific genre of political thriller, and so forth. [...] Netflix moving away from an undifferentiated mass toward
an aggregation of highly differentiated micro-audiences”.
67
http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/01/1220698-pirataria-de-filmes-e-termometro-para-formar-catalogo-
diz-executivo-chefe-do-netflix.shtml Acesso em 07 jun. 2017
95

A produção de conteúdo audiovisual original representou para a Netflix um grande


passo para que ela atingisse os números apresentados anteriormente, em especial, a partir da
produção de narrativas seriadas próprias. Keating (2013) afirma que os dados recolhidos junto
a audiência após 15 anos revelaram alguns dos hábitos dos usuários da plataforma, um deles
sendo que, embora a Netflix apresentasse uma boa seleção de longas-metragens, a grande
audiência se concentrava nas séries da televisão. Essa descoberta é determinante para que a
companhia reúna, em 2013, o elenco de Arrested Development para a produção de uma quarta
temporada, após a série ser cancelada em 2006 pelo canal FOX. Inspirados pelo conteúdo de
canais como HBO e Showtime, Hastings e seu time iniciam buscas por histórias consideradas
de qualidade altíssima, o que os leva ao diretor David Fincher e ao ator Kevin Spacey, criadores
de House of Cards.
De acordo com Keating (2013), as informações do centro de dados da Netflix mostraram
que os assinantes da plataforma buscavam filmes com Spacey após assistirem algum longa
estrelado pelo ator, além de se interessarem da mesma maneira por obras dirigidas por Fincher.
Diante do potencial de audiência, a empresa investiu US$ 100 milhões para a produção de duas
temporadas da série.

Em um movimento que desafiou a sabedoria da indústria televisiva de


construir audiências – e avaliações – por meio de “appointment television68”,
a Netflix lançou todos os treze episódios da primeira temporada de uma só
vez, acreditando mais em dados que mostravam que os assinantes
animadamente “maratonavam” o programa e o evangelizavam para seus
amigos69 (KEATING, 2013, p. 263).

A estratégia de lançar todos os episódios da primeira temporada de uma só vez faz com
que House of Cards se torne a maior audiência da Netflix em menos de um mês após sua estreia.
Comprovado o sucesso da distribuição, a companhia passa a lançar todos os seus produtos
seriados originais dessa maneira, o que pesquisadores de língua inglesa denominam
posteriormente como binge-publishing, the Netflix model, binge-releasing, publishing all
episodes at once, straight-to-series model e all-at-once. Apresentado por Van Ede (2015, p. 3),
o binge-publishing, termo adotado nesta dissertação, é atribuído pela autora como uma prática
em que “se libera simultaneamente todos os episódios de uma temporada de uma série de

68
Entendido como “assistir em tempo real” ou “televisão com hora marcada”.
69
“In a move that defied television industry wisdom of building audiences – and ratings – through “appointment
television”, Netflix release all thirteen first-season episodes at once, believing more in data that showed subscribers
would excitedly ‘binge’ on the show and evangelize it to their friends”.
96

televisão sem intervalos comerciais por meio de um serviço de streaming de vídeo sob
demanda. Todos os episódios têm de ser lançados e, portanto, não publicados anteriormente70”.
Esse tipo de estratégia faz com que a Netflix proponha uma nova maneira de distribuir
narrativas seriadas que rompem com o fluxo tradicional televisivo estabelecido até então.
Conforme descrito por Williams (2016) e Machado (2000), a distribuição televisiva para
produções seriadas segue um fluxo contínuo que as intercala com intervalos comerciais. A
reunião de programas (ficcionais, jornalísticos etc.) e breaks comerciais, por conseguinte,
formam a grade de programação e compõem esse fluxo contínuo, em que o telespectador, para
acompanhar um programa de sua escolha, precisa respeitar dia, horário e formato estabelecido
pela emissora. Para Corrêa (2017, p. 135-136), devido a esse fluxo, já naturalizado pela
audiência, “o espectador precisa se adaptar, incorporar um ritual de consumo de televisão
horizontal e estar disponível naquele dia, horário e duração para acompanhar com plenitude as
produções televisivas”.
Por ser um negócio que não pertence à rede de broadcasting, a Netflix inaugura o binge-
publishing para suas produções originais seriadas e rompe com a lógica da televisão; não há
horário preestabelecido ou intervalos comerciais para interromper ou fragmentar a assistência.
Assim, usuários acessam o conteúdo desejado disponível no catálogo da plataforma a qualquer
momento, hora ou dia, e a ele assiste pelo tempo desejado – um episódio a cada dia, vários
episódios de uma só vez ou até a temporada completa sem pausa. Ao funcionar como um grande
arquivo audiovisual e não um fluxo televisivo contínuo, a Netflix se torna uma alternativa
atraente para fãs de produtos seriados e amplia as possibilidades de imersão na narrativa.
Segundo Squirra (2013, p. 26), “no modelo digital pleno, as pessoas ficam livres da ‘camisa de
força’ da programação, que hoje obriga todos a ficar sentados esperando a decisão do
programador da rede, que colocou aquele programa naquele horário”. A duração de cada
episódio também muda, já que as séries originais da Netflix não precisam respeitar o tempo
atribuído ao programa em uma grade de programação ou encaixar intervalos publicitários, como
explicam Mayka Castellano e Melina Meimaridis (2016).

O modelo da Netflix, por sua vez, ainda é nebuloso, visto que suas produções
originais não seguem regras e formatos tão rígidos quanto os da televisão, o
que se deve, em parte, ao fato de não estarem fixos em uma grade de exibição.
Encontramos na Netflix séries de ficção cômicas com 8, 10 e 13 episódios por
temporada, como Wet Hot American Summer (2015), Master of None (2015-

70
“[...] simultaneously releasing all episodes of a season of a television serial without commercial breaks via a
video on demand streaming service. Additionally, all episodes have to premiere and thus be previously
unpublished”.
97

presente) e Grace and Frankie (2015-presente) respectivamente. Essa


variação se repete na duração dos episódios, que podem ter de 23 a 36 minutos,
dependendo da produção (CASTELLANO, MEIMARIDIS, 2016, p. 200).

É importante esclarecer que nem todas as séries que ganham o rótulo de Originais
Netflix são propriamente originais da plataforma. O serviço produz dois tipos de conteúdos
anunciados como originais: há produções “parcialmente originais”, realizadas pela Netflix em
parceria com canais de TV, caso de Designated Survivor, (2016-presente), e há produções
“originais”, exclusivamente encomendadas, financiadas e produzidas pela companhia sem
ligações com outros canais, como House of Cards e Orange Is The New Black (2013-presente).
No caso das séries parcialmente originais, a Netflix paga aos outros parceiros para divulgar o
produto com o seu rótulo, e ao contrário do que acontece com as “originais”, seu conteúdo
costuma ser apresentado na plataforma fora da estratégia de binge-publishing. A já citada
Designated Survivor, por exemplo, a série estrelada por Kiefer Sutherland teve suas duas
primeiras temporadas transmitidas pelo canal ABC e, em 2018, a Netflix encomendou uma
terceira temporada com o rótulo de original. No entanto, os episódios eram disponibilizados na
plataforma um a cada semana.
Além de ser atrativo para o fã que deseja logo saber o que acontecerá nos próximos
episódios de sua narrativa seriada favorita, o binge-publishing se mostra interessante para quem
está do outro lado, os produtores, roteiristas e diretores. Atual vice-presidente de Content
Aquisition/Original Series da Netflix, Cindy Holland afirmou ao The Hollywood Reporter71,
em 2014, que o binge-publishing nasceu de uma série de ocorrências dentro da companhia
(ROSE, 2014). Além das informações geradas pelo banco de dados da empresa, a Netflix
apostou nessa estratégia como uma forma de mostrar que olhava seriamente para o negócio de
produções seriadas e que, por não pertencer a esse mercado, a empresa foi capaz de identificar
as melhores práticas e tentar métodos diferentes para conquistar a audiência. O binge-
publishing é importante, principalmente, porque ao depender de temporadas completas, faz com
que o trabalho dos roteiristas funcione de forma diferente.
Uma das principais mudanças diz respeito ao piloto, o primeiro episódio de uma
narrativa seriada que tem o objetivo de apresentar a principal premissa da história e seus
personagens. No caso de redes tradicionais de TV, é o piloto que determinará o sucesso de um
produto (principalmente a viabilidade comercial) e se vale a pena continuar com sua produção.

71
https://www.hollywoodreporter.com/news/netflixs-original-content-vp-development-712293 Acesso em 10 jan.
2019.
98

Já o espectador espera do piloto um produto interessante o suficiente para que ele volte a assistir
o produto na próxima semana. Para Brett Martin (2015),

O piloto é uma besta estranha. Deve realizar várias coisas ao mesmo tempo.
Antes de mais nada, obviamente, precisa conter suficiente impacto em si
mesmo como opção de entretenimento para convencer, primeiro, os
executivos da rede de que vale a pena fazer uma temporada toda em cima
daquele material, e, depois, os espectadores de que eles devem continuar
assistindo ao programa. Ao mesmo tempo, tem de se basear em uma dose
pesada de ambientações e cenários – essencialmente construindo um mundo
– sem, todavia, se deixar consumir por essas exposições. (...) O piloto de uma
série dramática já em andamento tem mais outro imperativo. Por meio da
combinação entre uma deliberada competência e algo menos facilmente
definível, esse piloto deve deixar implícito um futuro em geral ainda não
imaginado nem mesmo por seus criadores. Praticamente únicos entre as artes
narrativas, esses programas são compostos sem um fim em mente – e, de fato,
com a esperança de que assim permaneçam de maneira indefinida (MARTIN,
2015, pos. 1176).

Portanto, ao lançar suas temporadas de uma só vez, a Netflix aposta em uma narrativa
completa e, assim, encomenda aos roteiristas uma estrutura completa, anulando a necessidade
de um episódio piloto, visto que personagens e enredos poderão ser apresentados e
aprofundados durante toda a temporada e a partir de conexões mais complexas. Em agosto de
2013, durante o Festival de TV de Edimburgo72, na Escócia, Kevin Spacey fez um discurso a
respeito do serviço e sobre esse novo momento das produções seriadas. Segundo Spacey, tanto
ele quanto David Fincher estavam insatisfeitos com a ideia de levar um piloto de House of
Cards para avaliação da audiência: “a obrigação de um piloto é que você precisa gastar cerca
de 45 minutos estabelecendo todos os personagens, criando ‘ganchos’ arbitrários e, geralmente,
provando que o que você está disposto a fazer vai funcionar” (SPACEY, 2013). Diante de uma
narrativa complexa como a do personagem principal de House of Cards e os bastidores da
política norte-americana, entregar todas as estratégias em um só episódio faria parte do encanto
pela trama se perder.
Mas como saber se o público foi fisgado pela narrativa apresentada já que não há mais
um piloto feito para conquistar o público? Em resposta, a Netflix buscou entender em qual
episódio das séries o público se engaja de fato, denominado episódio-gancho73. Segundo a
pesquisa da empresa, 70% das pessoas que assistem ao episódio-gancho de uma série continua

72
https://www.theguardian.com/media/video/2013/aug/23/kevin-spacey-mactaggart-lecture-video Acesso em 12
jun. 2017.
73
https://media.netflix.com/pt_br/press-releases/voc%C3%AA-sabe-quando-voc%C3%AA-foi-fisgado-a-
netflix-sabe Acesso em 12 dez. 2018.
99

a narrativa até o final, ou até o último capítulo disponibilizado. Abaixo, a figura indica os
episódios-ganchos de séries Originais Netflix como Orange Is The New Black e Sense8, mas
também de produções de outras emissoras como Breaking Bad, Dexter e Gossip Girl (The CW,
2007-2012).

Figura 4: Netflix revela o episódio-gancho de séries em sua plataforma

Fonte: Netflix Media Center

Esse estudo gerou especulações a respeito da audiência necessária para que uma série
original seja renovada na plataforma, uma vez que a Netflix não deixa claro porque uma série
ganha uma nova temporada. Seria, então, o quarto episódio o mais forte ou interessante da
narrativa, de modo a conquistar de vez o público? Nesse sentido, Gloria Calderón Kellet,
roteirista da série Original Netflix One Day At a Time (Netflix, 2017-presente) fez um apelo
em sua conta do Twitter74 para que seus seguidores recomendassem a produção aos amigos e
parentes, pois, segundo ela, “se você quer apoia a série e a mim, por favor, assista ao menos
quatro episódios nos próximos dias. A Netflix decide qual série será renovada com base em
visualizações...” (APÓS..., 2018).
Ainda sobre o modelo da Netflix, em entrevista ao Business Insider75, em 2014, Raphael
Bob-Waksberg, criado da animação BoJack Horseman (Netflix; 2014-presente) afirma que a

74
https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/apos-apelo-da-imprensa-e-de-roteirista-comedia-one-day-time-e-
renovada-19707 Acesso em 20 dez. 2018.
75
https://www.businessinsider.com/why-bojack-horseman-went-to-netflix-2014-9 Acesso em 10 jan. 2019.
100

série jamais funcionaria em outra plataforma ou emissora de TV devido ao método de exibição


da Netflix, uma vez que é possível trabalhar arcos longos e contar uma história em animação
de forma serializada e linear, o que não costuma ser comum em animações norte-americanas.

A coisa mais legal sobre o modelo deles para mim, mais ainda do que a ideia
de pessoas assistindo todos os episódios juntos, é a ideia de que as pessoas
vão assistir a todos os episódios em sequência. Isso é algo que acho que o
público assume como certo, mas você não pode dar por certo quando está
trabalhando em um programa para uma rede mais tradicional.
Tradicionalmente, cada episódio precisa funcionar como entrada para a série,
mesmo que você nunca tenha visto o programa antes. Mas aqui, ficamos
sabendo que ninguém vai assistir o episódio 7, a menos que já tenham visto
os episódios 1 a 6, então não tivemos que reintroduzir constantemente os
personagens e a premissa, e nós poderíamos modificar os personagens e a
premissa. Isso influenciou tudo que fizemos76 [...] (LUBIN, 2014).

Em linha com a ideia da exploração de arcos mais longos, Mittell (2015) defende que a
ideia de lançar produtos seriados de uma só vez, sem a necessidade de inserção de intervalos
comerciais ou de pausas semanais de um episódio para o outro, pode amplificar a complexidade
das narrativas. Segundo o autor, quando a audiência tem o controle total de quando pausar,
voltar e avançar na história (e, assim, reassistir algo que passou despercebido), os roteiristas
podem incluir arcos mais longos e linhas narrativas mais complexas, que exijam mais atenção
do público.
Outra consequência da distribuição binge-publishing e também do modo de assistência
em maratona, de acordo com Van Ede (2015), é que a função dos ganchos e das recapitulações
perde sentido, aparentemente, pois não é preciso manter o suspense, pois a solução do gancho
será apresentada no próximo episódio, que está ao alcance de um botão, ou recapitular
momentos da série, uma vez que esses acontecimentos acabaram de ser assistidos. Em outras
palavras, como não há intervalos entre um episódio e outro, sejam esses intervalos diários ou
semanais, o público pode assistir aos episódios de uma vez só e descobrir logo o que acontecerá,
além de não precisar ser constantemente lembrado do que acabou de assistir. Dessa forma, para
os roteiristas, a consequência direta seria encerrar com a necessidade dos ganchos de menor
tensão (aqueles posicionados durante o episódio, antes dos intervalos comerciais, com a função

76
“The coolest thing about their model to me, moreso even than the idea of people watching all the episodes
together, is the idea that people are going to watch all the episodes in order. This is something I think we as
audiences take for granted, but you can't take it for granted when you're working on a show for a more traditional
network. Traditionally, every episode needs to work as an entrance to the series even if you've never seen the show
before. But here, we got to know that nobody's going to watch episode 7 unless they've already seen episodes 1-6,
so we didn't have to constantly reintroduce the characters and the premise, e we could have the characters and the
premise change. This influenced everything we did [...]”
101

de fazer a audiência retornar à narrativa), de cliffhangers ou de recapitulações. Além de Van


Ede (2015) e Mittell (2012, 2015), autores como Massarolo et al (2017) e Saccomori (2016)
também passam por essa discussão, ainda que brevemente.
As observações de Van Ede (2015) a respeito de possíveis alterações na estrutura
narrativa dos produtos seriados com a chegada de um novo tipo de distribuição e de assistência
é corroborada por Pedro Aguilera, idealizador e roteirista da série Original Netflix brasileira
3% (a ser analisada no quarto capítulo). Em entrevista ao Tertúlia Narrativa77, Aguilera disse
que as alterações foi uma benção: “não tivemos que nos preocupar com ganchos de intervalo
ou ficar retomando muitos elementos dos episódios passados, porque ainda não passou tanto
tempo que o espectador assistiu ao episódio anterior”.
Devido, possivelmente, ao sucesso das práticas de distribuição da Netflix, outros players
do mercado experimentam o mesmo modelo para testar a reação da audiência. Após os
lançamentos de House of Cards e Orange Is The New Black, a Amazon Prime Video lança
temporadas de algumas de suas séries de uma só vez, movimento iniciado com Transparent,
mas que não se confirma como um ato concretizado para todas as produções. A emissora norte-
americana NBC também apresenta a primeira temporada da série Aquarius (2015-presente) de
uma só vez por meio de plataformas sob demanda após a estreia da produção – o restante dos
episódios é lançado semana a semana pelo canal de TV, ainda que todos já estejam disponíveis
sob demanda. Em 2016, o canal TBS (Turner Broadcasting System) lança a série Angie Tribeca
(2016-presente) como uma Binge-A-Thon, em que todos os episódios da primeira temporada
são exibidos cinco vezes, totalizando uma maratona de 25 horas. Os episódios são apresentados
sem a interrupção para intervalos comerciais, como nas plataformas sob demanda78 (TBS TO...,
2015).
No Brasil, a Globo tem testado diferentes formas de engajar a audiência na plataforma
Globoplay. Com Supermax (2016), a empresa disponibilizou 11 dos 12 episódios que
compunham a narrativa na plataforma antes da estreia na TV aberta, deixando apenas o último
episódio para ser exibido logo após sua transmissão na televisão. Já com Justiça (2016), a Globo
liberou antecipadamente os quatro primeiros capítulos da série e, após a primeira semana,
passou a disponibilizar os episódios horas antes da exibição na TV, seguindo o dia de cada

77
https://www.tertulianarrativa.com/single-post/2016/11/28/3-Um-bate-papo-com-o-criador-Pedro-Aguilera
Acesso em 20 out. 2017.
78
https://www.turner.com/pressroom/united-states/tbs/angie-tribeca/tbs-launch-angie-tribeca-25-hour-marathon-
season-1-orders Acesso em 10 jan. 2019.
102

exibição79 (ANTES..., 2016). Em 2018, a produção Assédio, por sua vez, foi disponibilizada
por completo na plataforma antes da estreia na TV80 (GLOBO..., 2018).

3.5 A prática contemporânea do binge-watching

A possibilidade de se assistir a conteúdo sob demanda e, portanto, fora da linearidade e


por diversos dispositivos ampliou a imersão profunda nas narrativas seriadas pela audiência. A
partir da estratégia do binge-publishing, por exemplo, é comum que usuários da plataforma
assistam mais de um episódio por vez, passando horas e horas à frente da televisão, do
computador, do celular ou do tablet. Esse hábito de assistir horas seguidas a um programa, em
especial séries, é caracterizado como binge-watching pelos estudiosos contemporâneos, caso
de Jenner (2015), Matrix (2014), Saccomori (2016), por exemplo. No Brasil, esse termo é
entendido como “maratona de vídeo”.
Apesar de haver aparições da palavra binge em relação ao consumo de narrativas
televisivas seriadas já na década de 1990, Saccomori (2016) afirma que a expressão binge-
watching popularizou-se na crítica televisiva norte-americana a partir do ano de 2013, período
em que passou a ser adotada na literatura acadêmica. Ainda segundo Saccomori (2016, p. 26),
“não há correspondência exata do termo em português, mas é possível compreender seu sentido
como uma espécie de ‘orgia televisiva’: binge significa ‘farra’, um comportamento de excessos
em um curto período de tempo, enquanto watching significa ‘assistindo’”. O termo foi
adicionado ao dicionário Oxford de língua inglesa no mesmo ano, da maneira a seguir:

A palavra binge-watch tem sido usada em círculos de fãs de televisão desde o


fim dos anos 1990, mas sua explosão para o uso pela cultura de massa se deu
em 2013. O contexto original era assistir a programas em temporadas
completas por caixas de DVD, mas a palavra teve seu próprio (contexto) com
o advento do assistir sob demanda e do streaming. Em 2013, binge-watching
ganhou um novo impulso quando a empresa de videostreaming Netflix
começou a disponibilizar episódios de sua programação seriada toda de uma
vez81 (WORD..., 2013).

Embora o termo seja vinculado inicialmente à era digital recente e ao streaming


(especialmente com o advento da Netflix), o consumo sequencial de produtos audiovisuais data

79
http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/tv/noticia/2016/08/antes-da-estreia-minisserie-justica-da-globo-tera-
capitulos-iniciais-divulgados-na-internet-7295392.html Acesso em 15 jan. 2019.
80
https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2018/10/globo-exibira-primeiro-capitulo-da-serie-assedio-na-
segunda.shtml Acesso em 15 jan. 2019.
81
https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/shortlist-2013 Acesso em 24 out. 2017.
103

de décadas anteriores, por volta dos anos 1980 com a popularização do videocassete, seguido
pelos boxes de temporadas de séries em DVD e, então, por meio do download de episódios via
internet. A partir da criação e do acesso a essas tecnologias e de seu crescente uso, a prática da
recuperação de conteúdos audiovisuais possibilita que fãs possam gravar seus materiais
favoritos para visualização posterior. Uma das primeiras ocorrências do termo binge é feita por
Jenkins (2015) na obra Invasores do texto, de 1992. Ao falar sobre o comportamento de um
grupo de fãs da série A Bela e a Fera (Beauty and the Beast; CBS, 1987-1990), Jenkins lembra
que, ao se encontrarem para assistir a episódios da série em sequência após gravação em VHS,
apelidaram a atividade de “Beastasthon” [“Feratona”]. “Outra reunião do clube foi uma
maratona na qual os fãs traziam episódios de seriados prediletos que outros integrantes talvez
não conhecessem” (JENKINS, 2015, p. 87, grifo nosso). Em 2005, Mittell também utiliza a
expressão ao explicar que baixara a temporada da série Veronica Mars e assistira todos os
episódios sem pausa.
De certa forma, podemos entender a prática do binge-watching semelhante ao que
Pallottini (2012) atribui aos leitores de romances policiais. Segundo ela, a literatura policial
apresenta “a totalidade da narrativa ao alcance do leitor. É ele quem dosa a quantidade de
ansiedade que pode suportar. Se quiser, o fruidor de um romance policial pode lê-lo de uma
sentada e ficar sabendo logo que o assassino é o mordomo” (PALLOTTINI, 2012, p. 51). No
caso do binge-publishing, por exemplo, a Netflix possibilita que, da mesma forma, o
consumidor mergulhe o tempo que desejar na narrativa ao maratonar aquele conteúdo e
descobrir o final da história proposta em um curto espaço de tempo, o que é impossível no
formato de fluxo televisivo tradicional.

Embora não seja o criador do binge-watching, o serviço de streaming


certamente tem contribuído para sua popularização, juntamente com outros
avanços tecnológicos como boxes de DVD e os downloads ilegais de
episódios. Assim, argumentamos que o potencial para a prática do binge-
watching sempre existiu, porém ele era dependente da grade televisiva e de
demais tecnologias de acesso ao conteúdo. Esse potencial, agora, tem
florescido numa prática cada vez mais relevante dentro do circuito de
produção e comercialização da ficção seriada televisiva e a importância dos
serviços de streaming é inegável. A Netflix constantemente incentiva a
prática, liberando episódios de suas produções originais às sextas-feiras, em
vésperas de feriados e durante os “hiatus” das produções televisivas. Nesse
sentido, a empresa se aproxima do modelo econômico hollywoodiano, uma
vez que os grandes blockbusters são estrategicamente espalhadas ao longo do
ano, durante os principais feriados e períodos de férias (CASTELLANO;
MEIMARIDIS, 2016, p. 204).
104

Além de esse comportamento ser, portanto, ampliado e rotinizado com a existência das
plataformas de streaming e de estratégias como a do binge-publishing, o hábito de assistência
sequencial de narrativas seriadas também é atribuído à comunidade de fãs. Uma das referências
no estudo desse grupo, Jenkins (2015) lembra que já na década de 1980 havia uma espécie de
intercâmbio underground de fitas VHS entre fãs de séries, em especial para com seriados
britânicos que não eram exibidos nos Estados Unidos. Segundo o autor, em um ano, a esposa e
ele assistiram à primeira temporada da série Blake’s 7 (BBC1, 1978-1981) e buscaram fãs que
possuíam outras temporadas da produção para negociação. Dessa forma, construíram uma rede
de fãs que trocavam cópias de VHS de diversas produções e, posteriormente, os consumiam de
forma vertiginosa.

A fita de vídeo amplia o controle sobre os programas, permitindo que


assistamos com frequência ou no contexto que se desejar. Os fã-clubes podem
dedicar uma noite inteira a assistir aos episódios prediletos, que se estendem
por várias temporadas ou mesmo décadas na história de exibição. Eu e minha
esposa assistimos à última temporada de Blake’s 7 em menos de uma semana,
tendo às vezes assistido a três ou quatro episódios na sequência; nosso fascínio
com o desenrolar da trama era satisfeito por meio de nosso controle sobre as
fitas, de uma forma que não era possível nas exibições semanais. Quando
enfim chegamos ao episódio climático, assistimos várias vezes seguidas para
ter melhor noção de como as personagens atingiram seus destinos (JENKINS,
2015, p. 87).

Para Jenkins (2015, p. 84), “releitura é central ao prazer estético do fã. Boa parte da
cultura fã predispõe a encontros recorrentes com textos queridos”. Consequentemente, o acesso
facilitado às cópias em VHS possibilitou a criação de novos fandoms, tornando o intercâmbio
dessas um ritual essencial do funcionamento do grupo como uma comunidade. Ao estudar a
cultura das séries, Marcel Vieira Barreto Silva (2014) afirma que a emergência do fandom é
essencial para se entender o sucesso das narrativas seriadas hoje e que a imersão nas séries é
importante para que se fortaleça esse tipo de consumo. Uma vez que a sociedade em rede
possibilitou quebrar barreiras físicas e até mesmo culturais, os fãs costumam trocar opiniões,
reflexões e até mesmo produções próprias (fanfictions, fan-arts ou fanfilms) sobre suas obras
favoritas. Para Silva (2014, p. 248), a era digital ajudou com que os fãs passassem a mergulhar
em séries de uma maneira mais profunda, para além do tradicional fluxo televisivo,
demonstrando “um conhecimento amplo sobre os modos de encenação, os diálogos, a
caracterização dos personagens, o desenvolvimento das tramas e a montagem das cenas”. Com
o binge-watching, portanto, o fã alcança uma imersão completa com o objetivo de buscar a
105

máxima fruição, fazer novas conexões, encontrar pontas soltas e até solucionar tramas e
mistérios.
Para autores como Jenkins (2014; 2015), Mittell (2012), Jenner (2015) e Matrix (2014),
essa relação dos fãs com o material audiovisual pode ser ainda mais forte quando se está diante
de uma narrativa complexa – o que, consequentemente, também reforça a interação e o
engajamento das comunidades com o produto. Para eles, o fã envolve-se profundamente com a
trama proposta, com o mundo ficcional e com os personagens. Segundo Steven Johnson (2005),
esse tipo de narrativa exige da audiência uma quantidade maior de esforço cognitivo, o que ele
chama de ginástica cognitiva. Somente com atenção e esforço é possível que o público entenda
a complexidade da narrativa, resolva mistérios e conflitos e organize as tramas propostas. Para
Corrêa (2017), esse esforço cognitivo torna-se ainda prazeroso e desafiador quando se pode
dividi-lo com outros fãs pelo mundo. E no caso do binge-publishing, em que os episódios são
disponíveis para o prazer rápido e total do fã, “a prática da reassistência dos episódios faz com
que o fã se torne um detetive, busque novos fatos, diferentes pontos de vista e formem novos
quebra-cabeças” (CORRÊA, 2017, p. 147). Massarolo (2015, p. 53) também entende que a
narrativa complexa exige dos fãs habilidades de detetive para resolver os enigmas da trama e,
assim, “passam a tecer comentários, em tempo real, via postagens em blogs ou tweets, sobre as
séries. Os esforços cognitivos, introduzem novas formas de assistir televisão, como rever
inúmeras vezes a mesma cena para capturar seu significado”.
Assim, a participação, o engajamento e até mesmo o ativismo dos fãs são não só peças-
chave para o sucesso das séries, mas também para o sucesso do binge-publishing. Essa mudança
na distribuição proposta pela Netflix é um exemplo do que Jenkins, Green e Ford (2014)
afirmam ser uma remodelagem do próprio cenário da mídia atual:

Essa mudança – de distribuição para circulação – sinaliza um movimento na


direção de um modelo mais participativo de cultura, em que o público não é
mais visto como simplesmente um grupo de consumidores de mensagens pré-
construídas, mas como pessoas que estão moldando, compartilhando,
reconfigurando e remixando conteúdos de mídia de maneiras que não
poderiam ter sido imaginadas antes. E estão fazendo isso não como indivíduos
isolados, mas como integrantes de comunidades mais amplas e de redes que
lhes permitem propagar conteúdos muito além de sua vizinhança geográfica
(JENKINS, GREEN, FORD, 2014, pos. 229).

Sobre o binge-watching, em 2013, a empresa declarou que o consumo de séries em


modo maratona era normal: “nossas produções originais são criadas para visualização
multiepisódica”. Por meio de uma pesquisa realizada pela consultoria Harris Interactive, cerca
106

de 1,5 mil usuários da plataforma foram entrevistados a respeito de como assistiam os produtos
no serviço. Intitulado Netflix declares binge watching is the new normal82 (Netflix declara que
binge-watching é o novo normal, em tradução livre), o estudo aponta que maratonar já era um
comportamento comum para 61% dos entrevistados. Do total, 75% definiram que o binge-
watching se configura a partir do momento em que se é assistido de dois a seis episódios de
uma mesma produção de uma só vez. Amanda Lotz (2014) reflete sobre como seu próprio
consumo de produções audiovisuais seriadas mudou nos últimos anos com o streaming.

Em muitas formas, vejo um romance como a melhor analogia. Tenho passado


a assistir episódios de uma série de ficção de forma consecutiva sempre que
possível, como os capítulos de um livro. Às vezes interrompo o streaming se
não estou mais no clima para tal, enquanto escolho ler uma revista ou
continuar com o livro de tempos em tempos. A grande portabilidade que me
permite começar a ver um seriado na sala da minha casa, depois olhar outro
episódio na manhã seguinte a caminho do trabalho ou na sala de espera, me
recorda da maneira como consumo romances83 (LOTZ, 2014, pos. 6038).

Já em 2017, a companhia divulgou um novo tipo de usuário da plataforma, o binge


racer84, cunhando o termo binge-racing, atribuído àquele que inicia e termina uma temporada
completa em até 24 horas após seu lançamento. Segundo a Netflix, cerca de 8,4 milhões de
pessoas realizaram esse feito em 2017, sendo a série mais “maratonada” Gilmore Girls: um ano
para recordar (Netflix, 2016), revival da série Gilmore Girls (Tal Mãe, Tal Filha; The WB e
The CW, 2000-2007). O país com maior número de binge racers foi o Canadá; o Brasil ficou
na décima posição. Para entender a quantidade de tempo e concentração do usuário que pratica
binge-watching na plataforma, Saccomori (2013) compara a dedicação para assistir à saga O
Poderoso Chefão e à série original Netflix House of Cards: para assistir aos três filmes de O
Poderoso Chefão no modelo binge-watching, a pessoa “dedicaria 488,4 minutos ou 8,14 horas
de visualização contínua” (SACCOMORI, 2016, p. 20). Para fazer o mesmo com a primeira
temporada de House of Cards, a dedicação seria de 650 minutos, equivalente a 10,8 horas.
Ainda assim, segundo Van Ede (2015), mesmo que a Netflix estreite sua relação com
os usuários que praticam binge-watching, a ideia de que esse tipo de usuário seja a maior parte

82
https://media.netflix.com/en/press-releases/netflix-declares-binge-watching-is-the-new-normal-migration-1
Acesso em 20 mar. 2018.
83
“In many ways, I find the novel the best analogy. I've come to view episodes of fictional series in consecutive
installments whenever possible, like chapters in a book. Sometimes I'll interrupt the stream if I'm just in a mood
for something else, as I would choose to read a magazine instead of continuing with a book from time to time. The
greater portability that allows me to start a show on my living room set, then watch an episode on my commute
the next morning or in a waiting room also reminds me of how I consume novels”.
84
https://media.netflix.com/en/press-releases/ready-set-binge-more-than-8-million-viewers-binge-race-their-
favorite-series Acesso em 20 mar. 2018.
107

dos assinantes da plataforma pode prejudicar o lucro da empresa. Isso porque, para a autora, o
serviço se beneficiaria muito mais a partir dos usuários que não realizam maratonas.

A razão para isso tem a ver com o modelo de assinatura da Netflix. Os


assinantes da Netflix pagam uma taxa mensal e podem cancelar sua assinatura
sempre que desejarem. Como o binge-watching oferece aos espectadores a
opção de assistir a uma temporada completa de uma série em um mês, semana
ou mesmo dia, alguns espectadores podem optar por isso. Isso significa que
esses tipos de espectadores pagam apenas um mês - ou não pagam nada, já
que a Netflix oferece um mês de teste gratuito para novos assinantes.
Consequentemente, quando os telespectadores não fazem maratona das séries
publicadas de uma só vez porque acompanham os episódios ao longo de vários
meses, a Netflix lucra mais. Mesmo que muitos espectadores não o façam, a
segmentação em episódios por meio de intervalos não temporais, pelo menos,
facilita a possibilidade de os telespectadores “recriarem esse intervalo em uma
série ao seu próprio tempo” (“Serial Boxes”)85 (VAN EDE, 2015, p. 48).

No próximo capítulo, analisaremos três séries originais da Netflix – a norte-americana


Sense8 (2015-2018), a brasileira 3% (2016-presente) e a alemã Dark (2017-presente) –, com o
objetivo de observarmos como o binge-publishing pode ter influenciado em possíveis alterações
da narrativa desses produtos seriados, de forma a intensificar a prática do binge-watching na
plataforma.

85
“The reason for this has to do with Netflix’ subscription model. Netflix subscribers pay a monthly fee and can
cancel their subscription anytime they would like. Since binge-watching gives viewers the option to watch a season
of the binge-published serial in one month, week, or even day, some viewers might opt for that. This means that
these types of viewers only pay for one month – or not even pay at all, since Netflix offers a free trial month to
new subscribers. Consequently, when viewers do not binge‐watch the binge-published serial because they pace
the episodes over multiple months, Netflix profits more. Even though plenty of viewers will not do so, the
segmentation into episodes by means of non‐temporal gaps at least facilitates the possibility for viewers to
“recreate this gap by self-pacing a series” (“Serial Boxes”)”.
108
109

CAPÍTULO IV – ANÁLISE DE PRODUÇÕES ORIGINAIS DA


NETFLIX

Com o objetivo de investigar possíveis alterações na estrutura narrativa das séries


Originais Netflix, esta pesquisa utiliza como proposta metodológica a análise de conteúdo,
seguindo os preceitos de Laurence Bardin (2011). Segundo a autora, as fases da análise de
conteúdo “organizam-se em torno de três polos cronológicos: 1) a pré-análise; 2) a exploração
do material; 3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação” (BARDIN, 2011, p.
125). A pré-análise, de acordo com Bardin, pode ser dividida em três – a escolha dos
documentos para análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e, por fim, a criação dos
indicadores que auxiliem na interpretação final. Bardin ainda lembra que essas três etapas não
precisam seguir uma ordem cronológica.
Sobre o objeto em questão, a Netflix não apresenta um catálogo homogêneo em todos
os países onde atua, pois respeita contratos nacionais com estúdios e produtoras locais. Dessa
forma, há produções originais disponíveis em certos países e em outros, não. Ainda assim, tem-
se acesso à quantidade de produções originais realizadas até o momento pelo site oficial da
Netflix para informações à imprensa, o Netflix Media Center86. Como essa pesquisa pré-
determinou que seriam filtradas séries Originais Netflix até o ano de 2018, dados coletados no
site em fevereiro de 2018 indicaram 546 títulos originais realizados87, que incluem séries,
filmes, documentários, stand-ups, animes, talk-shows e animações. Desse total, 188 são séries
originais ficcionais produzidas nos países onde a Netflix atua.
Após a reunião desses 188 títulos seriados, esta pesquisa estabeleceu quatro parâmetros
para a categorização dessas séries: 1) país-origem, 2) ano de lançamento, 3) se o lançamento
foi global e 4) gênero. Em resumo, o objetivo dessa pré-categorização foi auxiliar na seleção
de três produções seriadas originais da Netflix oriundas de três países diferentes, lançadas
globalmente em formato binge-publishing nos anos de 2015, 2016 e 2017 e classificadas em
um mesmo gênero – no caso, ficção científica.
Assim sendo, o corpus estabelecido para esta pesquisa são as séries Originais Netflix:
Sense8 (2015-2018), lançada globalmente em 2015 no formato binge-publishing e encerrada
em 2018, produzida nos Estados Unidos, do gênero ficção científica dramática, escrita, dirigida

86
https://media.netflix.com/pt_br/only-on-netflix Acesso em 18 fev.2018.
87
Dado coletado em 18 fev.2018 e que inclui títulos a serem lançados durante o decorrer de 2018.
110

e produzida por Lilly e Lana Wachowski (as criadoras de Matrix) e J. Michael Straczynksi; 3%
(2016-presente), lançada globalmente em 2016 no formato binge-publishing e atualmente em
sua segunda temporada, produzida no Brasil, do gênero ficção científica dramática, escrita e
desenvolvida por Pedro Aguilera; e Dark (2017-presente), lançada globalmente em 2017 no
formato binge-publishing e com segunda temporada prevista para 2019, produzida na
Alemanha, do gênero ficção científica dramática, criada por Baran bo Odar e Jantje Friese.
Determinou também que apenas as primeiras temporadas das séries em questão seriam
analisadas, ignorando, portanto, as temporadas seguintes de Sense8 e 3%.
Após o fechamento do corpus, esta pesquisa dedicou-se à observação minuciosa da
estrutura narrativa das três narrativas seriadas ficcionais para o cumprimento dos objetivos e a
confirmação (ou refutação) da hipótese proposta. Foram realizadas as descrições de todas as
cenas de cada episódio da primeira temporada das três produções para, então, a identificação
de sua estrutura narrativa de acordo com um novo momento do processo metodológico, a
categorização, “uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto por
diferenciação e, em seguida, por reagrupamento segundo o gênero (analogia), com os critérios
previamente definidos” (BARDIN, 2011, p. 147). Conforme indica a autora, a categorização é
um procedimento estruturalista que se divide em duas etapas: o inventário, quando os elementos
de análise são isolados, e a classificação, quando os elementos são repartidos e, logo, o estudo
se dedica a procurar ou impor uma organização às mensagens.
Diante da hipótese de que a Netflix promove alterações na estrutura narrativa das ficções
seriadas contemporâneas quando produz e distribui esses produtos de uma só vez (no regime
binge-publishing), foram determinadas seis categorias narrativas ou que incidem sobre a
narrativa para análise posterior, todas criadas a partir de elementos narrativos tradicionais das
narrativas seriadas ficcionais da televisão, apresentadas e descritas no capítulo 2. São elas:
narração erotética, formato episódico-serial, concepção espaço-temporal, multiplicidade de
tramas, ganchos e recapitulações. Para a codificação, foram construídas tabelas correspondentes
à primeira temporada de cada série, onde estão assinaladas a presença (ou ausência) das
categorias estabelecidas. Finalmente, para concretizar a análise de conteúdo, as inferências e as
interpretações, foram construídas novas tabelas que aprofundam cada categoria, com o objetivo
de identificar, analisar e interpretar a escolha por certos elementos narrativos e se eles se
apresentam de forma diferente nas séries originais da Netflix escolhidas.
111

4.1 Categorização

Conforme descrito no capítulo 3, a distribuição de produtos audiovisuais seriados no


formato binge-publishing tornou-se possível visto que a plataforma Netflix não adota o sistema
de programação e, por conseguinte, intervalos comerciais característicos da televisão. Ao
encomendar temporadas fechadas de narrativas seriadas ficcionais para lançamento de uma só
vez, a Netflix encerra com a assistência fragmentada da TV – acabam-se os intervalos dentro
dos episódios e não há mais intervalos temporais entre episódios, uma vez que esse espaço
temporal entre um capítulo e outro é determinado por quem assiste, acontecendo somente na
hora que convém ao espectador. Sendo assim, como há apenas intervalos entre temporadas, a
hipótese desse trabalho é a de que há alterações na estrutura narrativa dessas séries Originais
Netflix, lançadas no sistema binge-publishing.
No capítulo 2, em que se abordam recursos narrativos da ficção televisual, fica evidente
que a criação narrativa de uma série ficcional para a TV está relacionada à interrupção e à
fragmentação características do meio em questão. Uma vez que o modelo televisivo necessitou
(e ainda necessita) da publicidade para ser o que é, os intervalos comerciais que interrompem a
fruição de narrativas seriadas (e também de outros programas) devem ser respeitados
incondicionalmente, promovendo, assim, a inserção de ganchos – de maior ou menor tensão –
entre intervalos comerciais, entre os intervalos temporais de um episódio a outro e entre
temporadas. Outro elemento narrativo também ligado aos conceitos de interrupção e
fragmentação da TV são as recapitulações, determinantes para que o telespectador acompanhe
todos os desdobramentos da narrativa durante cada pausa inserida, seja ela em um mesmo
episódio, entre episódios ou entre temporadas.
As seis categorias de análise estabelecidas aqui foram criadas a partir dos
recursos/elementos narrativos presentes na ficção televisual e descritos no capítulo 2 (narração,
tempo e espaço, formatos episódico e serial, ganchos e recapitulações). São elas:

1) Narração erotética: A narração é um recurso utilizado para o desenvolvimento lógico da


diegese e pode ser inserida de diversas formas, como por um narrador onisciente ou por um
personagem que conta o que se passa em primeira pessoa. Partindo da ideia desse
desenvolvimento lógico, Noël Carroll (1994) sugeriu o termo narração erotética para
caracterizar a construção em que cenas, situações e acontecimentos que aparecem no início das
narrativas estão relacionadas a cenas posteriores. Como um modelo de pergunta e resposta, a
112

narração erotética funciona para delimitar as possibilidades do enredo e estabelecer questões


acerca da trama que devem ser respondidas até o fim da história proposta.

2) Formato episódico-serial: A narrativa ficcional televisual pode ser construída de formas


diferentes, mas geralmente respeita dois tipos de formatos, o serial e o episódico. O formato
serial é aquele em que os arcos dramáticos são desenvolvidos mais longamente, muitas vezes
por mais de uma temporada, e exige que o espectador assista a todos os episódios para
compreender o desenrolar da série. Já o formato episódico apresenta estrutura autoconclusiva,
com começo, meio e fim, e possibilita que a audiência assista a episódios soltos durante a
temporada sem comprometer o entendimento do todo. Autores como Newcomb, Feuer (apud
CAPANEMA, 2016) e Mittell (2015), no entanto, afirmam que a mescla dos dois formatos é o
que a televisão pode oferecer de mais interessante em termos de serialização. Para Mittell
(2015), uma narrativa pode ser considerada complexa quando une arcos longos (formato serial)
a arcos curtos (formato episódico), satisfazendo ambos os tipos de espectador. Ao analisar o
fenômeno do binge-watching e sua relação com as séries da Netflix lançadas de uma só vez,
Massarolo et al. (2017) reforçam essa ideia.

O modelo da estrutura serial é o elemento diferencial utilizado pela Netflix,


por exemplo, para “fisgar” o telespectador na primeira parte de uma
temporada, funcionando como um gancho para o engajamento das audiências.
Por outro lado, a estrutura narrativa episódica pressupõe uma trama híbrida,
com dilatação dos arcos dramáticos. Trata-se de um modelo de narrativa
autoconclusiva, que começa e termina no mesmo episódio, comum em séries
de temáticas médicas e policiais (MASSAROLO et al., 2017, p. 277).

Esse modelo misto ganhou força em meados da década de 1970 e nos anos 1980, época
em que surgiram os ensemble shows (ESQUENAZI, 2011), séries em que não há apenas um
protagonista, mas vários personagens principais que ganham a mesma atenção da narrativa e
estão presentes nos arcos dramáticos autoconclusivos (episódico) e nos arcos maiores (serial).

3) Concepção espaço-temporal: O tempo e o espaço da diegese são recursos importantes para


o desenvolvimento lógico e para o entendimento das narrativas propostas ao espectador.
Segundo Marcel Martin (2003), o conceito de tempo pode ser identificado pelas noções de data
(indicadas por letreiros, calendários, eventos sociais, figurino etc.) e pela de duração (tempo
transcorrido da narrativa). Sobre a duração, quando há um tempo revertido, a narrativa
apresenta um flashback, o retorno ao passado; há ainda flashforwards, que representam
113

acontecimentos no futuro. O espaço, por sua vez, funciona como um quadro de referência para
posicionar os personagens na narrativa. Ambos os conceitos se interligam e atuam em um
contínuo. De acordo com Mittell (2012, 2015), uma narrativa complexa pode ser caracterizada
por uma concepção espaço-temporal intrincada, em que trabalha com diferentes
temporalidades, dimensões e espaços durante uma única trama, o que exige do espectador mais
atenção durante a assistência.

4) Multiplicidade de tramas: Assim como o formato episódico-serial trabalha arcos maiores


e menores durante uma temporada, a multiplicidade de tramas serve como termômetro para
uma narrativa que exige a dedicação do espectador. Quanto mais personagens (principais ou
não) são apresentados na diegese, mais difícil é acompanhar os desenvolvimentos do enredo –
é preciso não só acompanhar os protagonistas e como eles se envolvem na trama principal, mas
também entender com quais outros personagens se relacionam e têm suas linhas narrativas
envolvidas. Para Mittell (2012, 2015), a complexidade advém do aparecimento de diversos
protagonismos, tramas e perspectivas que se relacionam durante o desenvolvimento da história.
Como exemplo, a série Game of Thrones, da HBO, se desdobra sobre diversas “casas” e
“povos” e introduz novos personagens a cada temporada, que têm suas tramas convergentes (ou
não) em relação a outros já desenvolvidos. É possível também indicar que a multiplicidade de
tramas é um recurso que também se tornou popular após a criação dos ensemble shows,
narrativas que precisam apresentar e desenvolver diversas linhas narrativas de maneira
coerente. Essa categoria exige uma tabela própria, em que são descritas as “tramas principais”
e as “tramas secundárias” de cada série analisada.

5) Ganchos: De acordo com Costa (2000), Pallottini (2012) e Van Ede (2015), o elemento
gancho é usualmente utilizado para manter a expectativa e a curiosidade da audiência em
relação a algum acontecimento em uma trama quando há alguma interrupção da narrativa. É
um momento de grande suspense, emoção ou mistério. Esse recurso assume duas funções
importantes: a de delinear os intervalos existentes na narrativa (sejam intervalos dentro do
episódio, intervalos entre episódios ou entre temporadas) e também de ser um catalisador para
que a audiência queira assistir mais daquela história. É possível trabalhar ganchos aqui
nomeados de “menor tensão”, posicionados antes dos blocos que dividem um episódio devido
aos intervalos comerciais, e os cliffhangers, de grande intensidade e geralmente posicionados
no fim de episódios ou na pausa entre temporadas. Para Van Ede, como o suspense ainda é uma
das razões mais fortes que fazem o público continuar a assistir a uma série sem parar, e os
114

“cliffhangers são a epítome do suspense” (VAN EDE, 2015, p. 39), os ganchos continuam com
sua importância para a estrutura narrativa, ainda que não sejam inseridos a todo o tempo (como
entre os intervalos comerciais dentro dos episódios) ou com tanta intensidade. No caso da
Netflix, esse recurso tem de ser algo que aguce a curiosidade do público para assista ao próximo
capítulo logo em seguida. Mas também é necessário que esse gancho seja, de alguma maneira,
retomado em um capítulo seguinte para que o espectador continue retendo a atenção. Além de
ganchos de tensão menor, cliffhangers e retomadas, outro tipo de gancho popular é a elipse,
voltada para passagens de tempo diegéticas e com a função de preencher um buraco temporal
na narrativa, ligando uma ponta a outra. Em geral, a elipse é identificada pela sucessão de
imagens, cobertas por trilha sonora. Para Van Ede (2015), no entanto, esse recurso é bem menos
presente nas produções originais da Netflix, visto que a distribuição de uma só vez e o consumo
em maratona fazem com que a noção de tempo na narrativa se transforme em um borrão, em
que não é mais necessário marcar tão bem as passagens de tempo. Ao mesmo tempo, é possível
identificar que parte das séries Originais Netflix são criadas em cima de um período diegético
mais comprimido e, assim, sem a necessidade da inserção de elipses. Essa categoria, portanto,
exige uma tabela própria, em que são identificadas a presença (ou a ausência) dos quatro tipos
de ganchos: “ganchos de menor tensão”, “cliffhangers”, “retomada de ganchos” e “elipses”.

6) Recapitulações: Com a missão de repetir informações e acionar a memória da audiência, as


recapitulações dão sentido aos ganchos, às questões e aos pontos de virada inseridos nas
narrativas seriadas ficcionais. Para isso, há dois tipos de recapitulações: as paratextuais, que
repetem informações ou cenas da narrativa (caso do quadro "no capítulo anterior" ou das
vinhetas feitas sobre cenas da série), e as diegéticas, que retomam informações por meio de
diálogos, flashbacks ou sugestões visuais. Com a missão de “tampar buracos” de uma semana
para a outra, a recapitulação tradicional tem passado por alterações diante de novas formas de
distribuição de conteúdo audiovisual. Como os roteiristas criam uma narrativa a ser
experimentada de uma só vez, é possível dizer que a audiência que pratica maratonas apresenta
uma memória mais apurada sobre os acontecimentos da história, pois ela acabou de assisti-los,
e não há uma semana. Porém, ao mesmo tempo, Van Ede (2015) lembra que aqueles que não
assistem a narrativa de uma só vez necessitam da inserção de recapitulações para entender a
complexidade da história proposta. Assim, o ideal é que haja um equilíbrio nas recapitulações
para acomodar tanto aqueles que estão assistindo em maratona (e podem, portanto, avançar na
narrativa e ignorar a recapitulação) quanto os que assistem um episódio de cada vez ou até
perdem algum episódio, mas ainda necessitam entender o que está acontecendo. Essa categoria
115

também exige uma tabela própria, em que são identificadas as presenças (ou ausências) das
“recapitulações paratextuais”, divididas em “no capítulo anterior”, “vinheta” e “episódios de
recapitulação”, e das “recapitulações diegéticas”, divididas em “diálogos”, “sugestões visuais”,
“voice-over” e “flashbacks”.

4.2 Sense8

Sense8 (2015-2018) é uma série Original Netflix produzida nos Estados Unidos e
escrita, produzida e dirigida por Lilly e Lana Wachowski e por J. Michael Straczynski. Também
identificadas como o coletivo The Wachowskis, as irmãs Lilly e Lana são as roteiristas,
produtoras e diretoras da trilogia cinematográfica Matrix. Straczynski, por sua vez, é autor,
produtor e roteirista da série de TV Babylon 5 (PTEN, 1994-1997; TNT, 1998), além de
roteirista de HQs do Homem-Aranha e do Quarteto Fantástico. Em 2016, a produção foi
escolhida como “melhor série dramática” pelo 27º GLAAD Media Awards88, premiação que
destaca produções de cinema e TV que retratam pessoas LGBTQ+ (DELCOLLI, 2016). Após
o lançamento de um episódio especial de Natal em 23 de dezembro de 2016, a estreia da
segunda temporada aconteceu em 5 de maio de 2017. No entanto, em 1º de junho do mesmo
ano, a Netflix cancelou a produção89 com a declaração de Cindy Holland: “após 23 episódios,
16 cidades e 13 países, a história de Sense8 está chegando ao fim. Ela foi tudo o que nós e os
fãs sonhamos que seria: ousada, emocional, deslumbrante e muito inesquecível” (GONZAGA,
2017). A grande mobilização dos fãs pelo mundo, porém, fez com que a plataforma produzisse
um episódio final especial, com duração de duas horas, lançado em 8 de junho de 2018.
Segundo a página oficial da produção na plataforma90, a série é classificada entre os
gêneros drama, ficção científica e fantasia. Na mesma página, a Netflix considera Sense8
“alucinante” e “adrenalina pura” (ao clicar sobre uma dessas palavras determinadas pelo
serviço, a plataforma sugere outros títulos que apresentam essas mesmas características). Sua
primeira temporada apresenta 12 episódios sem duração rígida ou fixa – os capítulos têm
duração entre 45 e 67 minutos, e a classificação indicativa é de 18 anos. Indica a sinopse: “das
criadoras de ‘Matrix’ e ‘Babylon 5’, esta série segue oito desconhecidos que passam a
compartilhar sentimentos e habilidades enquanto tentam evitar seu extermínio”. Denominados

88
https://www.huffpostbrasil.com/2016/04/05/lilly-wachowski-vence-premio-por-sense8-e-faz-discurso-sobre-
t_a_21690542/ Acesso em 15 jan. 2019.
89
https://www.omelete.com.br/series-tv/sense8-e-cancelada-pela-netflix Acesso em 15 jan. 2019.
90
https://www.netflix.com/br/title/80025744 Acesso em 10 jan. 2019.
116

sensates, os oito personagens são Will Gorski, Riley Blue, Nomi Marks, Capheus “Van
Damme” Onyongo, Sun Bak, Lito Rodriguez, Kala Dandekar e Wolfgang Bogdanow, que
vivem em países diferentes do planeta, exceto por Will e Nomi que estão nos Estados Unidos.
No primeiro episódio, “Ressonância límbica”, os oito personagens têm a mesma visão:
uma mulher tira a própria vida diante de seus olhos. A partir de aparições dessa mulher em seu
cotidiano, cada personagem descobre uma ligação emocional e mental com os outros, um dom
que é conhecido por sensate. Esse vínculo involuntário, semelhante a uma conexão telepática,
faz com que todos dividam sentimentos e habilidades, o que os ajuda a superar dificuldades em
suas rotinas. Will é policial em Chicago, Nomi é ativista hacker em São Francisco, Riley é DJ
em Londres, Lito é ator na Cidade do México, Sun é diretora financeira em Seul, Kala é cientista
farmacêutica em Mumbai, Capheus é motorista de van em Nairóbi e Wolfgang é ladrão em
Berlim. Enquanto tentam entender o que sentem, um homem os persegue. Reconhecido por
diversos nomes durante a primeira temporada (Dr. Matheson, Dr. Ellison, Dr. Friedmann e,
finalmente, Sussurros), o vilão, também um sensate, lidera uma organização que deseja
capturar, estudar e acabar com essa espécie de “evolução” humana. Durante a primeira
temporada, portanto, os personagens exploram as sensações e as habilidades adquiridas a partir
desse vínculo, enquanto tentam escapar de Sussurros.
Em paralelo à narrativa sobrenatural, Sense8 articula uma série de temas pertinentes à
sociedade contemporânea, como a diversidade (sexual, étnica, religiosa, social, econômica), a
intolerância, as relações familiares, o hedonismo e os transtornos mentais. Como não há um
narrador onisciente, a história é contada por meio dos personagens, sua construção e suas
interações. Todos eles estão, de alguma forma, deslocados ou lutando contra algo, carregam
histórias de vida difíceis ou estigmatizadas. Sun, por exemplo, toma uma importante decisão
porque foi criada em uma cultura patriarcal. Por mais que deseje receber o respeito que merece,
Sun foi ensinada a ser submissa ao pai e ao irmão corrupto. Já Kala pertence a uma parcela
religiosa na Índia que está diminuindo e, ainda que tenha realizado o sonho de ter uma carreira
estável e bem-sucedida, deve seguir as tradições e se casar, pois a mulher indiana é criada para
constituir uma família. Lito, por sua vez, é um ator de sucesso, reconhecido por encenar heróis
violentos e sedutores, no entanto, esconde sua homossexualidade, pois teme que a verdade
acabe com a carreira. Nomi nasce Michael, torna-se uma mulher transexual e lésbica, encontra
uma parceira em Neets, mas é alvo de ataques e do preconceito da mãe e também de integrantes
da comunidade LGBTQ+, que ainda a veem como um homem tentando tomar o espaço das
mulheres.
117

Para encontrar possíveis alterações na estrutura narrativa da série, o quadro abaixo


apresenta a lista dos 12 episódios da primeira temporada de Sense8 e as categorias descritas
anteriormente. Em seguida, cada categoria é analisada.

Tabela 1: Identificação das categorias na 1ª temporada de Sense8


Formato Concepção
Narração Multiplicidade
Episódios episódico- espaço- Ganchos Recapitulações
erotética de tramas
serial tempo
1 X X X X X X
2 X X X X X X
3 X X X X X
4 X X X X X
5 X X X X X
6 X X X X
7 X X X X X X
8 X X X X
9 X X X X X
10 X X X X X
11 X X X X X
12 X X X X X

4.2.1 Narração erotética em Sense8

Recurso que garante a origem da coerência de uma história, a narração erotética ajuda a
traçar as principais questões acerca da narrativa apresentada. Em Sense8, no primeiro episódio
(“Ressonância límbica”), as principais perguntas que surgem dão o tom das tramas principais
que compõem a série: 1) Quem são Angelica, Jonas e o terceiro homem, que parece estar à
procura de Angelica? Por que Angelica comete suicídio? (Figura 5); 2) Por que Angelica
aparece para os oito personagens? Qual sua ligação com cada um deles?; 3) O que é essa
conexão que parece unir os oito personagens?; e 4) O que acontecerá com cada personagem?
Eles serão encontrados por Jonas ou pelo homem misterioso?
118

Figura 5: Angelica e Jason em Sense8

Fonte: Sense8, Episódio 1, Netflix.com

Nos episódios seguintes, Sense8 dá pistas das respostas para as perguntas estabelecidas
no primeiro capítulo, mas em pequenas doses. No episódio 2 (“Eu também sou nós”), enquanto
Will é informado que Jonas é procurado pelo FBI por terrorismo, Jonas vai ao seu encontro
para falar sobre ser um sensate, a primeira menção a essa expressão na narrativa. No capítulo 4
(“O que está acontecendo?”), Jonas explica a Will sobre as diferenças entre “visitar” e
“partilhar” entre sensates e que, ao despertar, um sensate jamais estará sozinho. O perigo
representado por Sussurros chega próximo de Nomi e Neets por meio da figura de Niles Bolger,
que se mata após assassinar o Dr. Metzger no episódio 7 (“O poder da literatura”). Quando, no
capítulo 9 (“A morte não permite despedidas”), Will consegue contato novamente com Jonas,
descobre que sua conexão com ele está sendo monitorada por Sussurros e que eles não podem
manter contato visual com o vilão, pois essa é a maneira na qual ele manipula os sensates. No
capítulo 10 (“O que é humano?”), Will e Jonas discutem sobre as conexões entre os sensates,
sobre os testes realizados para identificá-los e que Angelica morreu para proteger o grupo.
Em paralelo a essas respostas, a série desenvolve as histórias de cada personagem e abre
novas perguntas relacionadas aos arcos menores: Kala se casará com Rajan? Wolfgang fugirá
do tio e do primo? Capheus conseguirá os remédios para sua mãe soropositiva? Sun assumirá a
culpa pelos roubos realizados pelo irmão na empresa do pai? Nomi será lobotomizada? Riley
arrastará consigo sua “maldição”?
119

No fim da primeira temporada, algumas das questões estabelecidas até então são
respondidas, mas outras são deixadas no ar para a criação de uma segunda temporada, como 1)
O que acontecerá com os sensates, uma vez que Sussurros está na cabeça de Will?; 2) Como
Will conseguirá manter-se afastado de Sussurros e impedir que ele encontre os outros sensates?;
3) O que Sussurros fará para destruir o grupo de sensates? Além disso, o último episódio
também deixa em aberto as narrativas de cada protagonista – Kala se casará? Sun sairá da
cadeira? Wolfgang conseguirá ajudar na recuperação de Felix? A carreira de Lito será destruída
quando ele assumir sua homossexualidade à imprensa?

4.2.2 Formato episódico-serial em Sense8

Como um autêntico ensemble show, em que oito protagonistas dividem a atenção do


espectador, Sense8 explora o equilíbrio entre os formatos episódico e serial em parte de sua
temporada. Enquanto o arco maior explora o despertar dos sensates e a perseguição de
Sussurros, os arcos menores mostram o desenvolvimento das histórias dos protagonistas tanto
no formato serial quanto no episódico, isto é, há tramas que se apresentam no início de um
capítulo e são finalizadas até o fim do mesmo e há outras tramas que vão sendo construídas por
três, quatro e até cinco episódios, forçando o espectador a acompanhar a narrativa por completo.
O formato serial diz respeito à descoberta da conexão entre os oito personagens e à
perseguição de Sussurros e sua organização. Desde a primeira cena da produção, em que
Angelica se mata ao ser encontrada por Sussurros, até a cena que encerra a primeira temporada,
em que Riley e Will escapam do vilão e mantêm seu grupo (ou cluster, como chamam na série)
seguro, a narrativa se constrói pouco a pouco, entregando explicações vagarosamente à
audiência. O formato serial também é usado para o desenvolvimento da história de vida dos
oito protagonistas, apresentando a cada capítulo um pouco mais sobre quem são, o que fazem
e com quem se relacionam. Dessa forma, a cada episódio, a empatia e a curiosidade por cada
protagonista cresce com a narrativa, pois cada cena é uma revelação não só da trama principal,
mas também de cada perfil, caráter e ação dos sensates.
Ao mesmo tempo, contudo, Sense8 utiliza o formato episódico, de estrutura “começo,
meio e fim”, para acelerar a narrativa e entregar acontecimentos de algum arco em particular,
dando uma sensação falsa de conclusão àquele arco. O formato episódico também serve para
explicitar do que os sensates são capazes e como suas interações podem modificar seus
cotidianos. No capítulo 1, o formato episódico é utilizado para contar a história do alemão
Wolfgang. De uma família de ladrões e mafiosos, Wolfgang aparece pela primeira vez durante
120

o enterro de um parente. Após a morte do pai, Wolfgang é criado pelo tio Sergei e junto do
primo Steiner, a quem ressente, e confia apenas no amigo Felix. Junto dele, Wolfgang consegue
roubar diamantes que estão em um cofre, considerado o mais seguro do mundo, antes da
chegada do bando de Steiner. Ao passar a perna no primo, Wolfgang inicia uma trama de
vingança que se alonga pelo restante da temporada.
No segundo episódio (“Eu também sou nós”), o norte-americano Will busca
informações sobre Angelica e descobre que Jonas, o homem que viu ao lado da suicida, é
procurado pelo FBI. Quando ele encontra Jonas em uma loja de conveniência, Will segue seu
instinto policial e tenta capturar Jonas, ainda que o homem fale sobre Angelica, sobre as
sensações que Will tem passado e sobre ajudar uma garota chamada Nomi Marks. O capítulo
encerra com uma perseguição de carro bastante reveladora entre Will e Jonas, e o espectador
só descobre no episódio seguinte que Jonas foi capturado pelo FBI devido a Will. No terceiro
episódio, “Aposte tudo na magrela”, o queniano Capheus “Van Damme” precisa comprar os
remédios para o tratamento da mãe soropositiva e, quando é roubado, caça os ladrões por
Nairóbi e os enfrenta em uma luta corporal. Motorista de van, Capheus não possui qualquer
habilidade para luta, mas ele consegue trocar de corpo com Sun, a coreana lutadora de
kickboxing, que derrota a gangue e devolve os medicamentos à Capheus (Figura 6). Nos
capítulos seguintes, a fama de “Van Damme” se espalha pela cidade e ele passa a trabalhar para
Silas Kabaka, um mafioso famoso da região, trazendo-lhe uma série de problemas.

Figura 6: Sun toma lugar de Capheus ao lutar contra gangue em Nairóbi

Fonte: Sense8, Episódio 3, Netflix.com


121

No episódio 5 (“Arte é como religião”), a indecisão da indiana Kala sobre seu casamento
atinge o pico quando ela desmaia durante a cerimônia ao ter uma visão de Wolfgang, nu, no
meio da festa. Contudo, as dúvidas de Kala já se apresentavam desde o primeiro episódio, em
que ela procura o templo de Ganesha para solicitar clareza. O arco narrativo de Nomi Marks,
por sua vez, também se estende por diversos capítulos até que alcança o ápice no episódio 7,
“O poder da literatura”, quando ela utiliza sua experiência e conexões como hacker para
espionar Dr. Metzger, que tentou lobotomizá-la nos primeiros episódios, e descobre que a
prática já fora realizada anteriormente. No fim do capítulo, Nomi e a namorada Neets fogem de
Metzger e de Nigel, um ex-lobotomizado, que mata o médico diante delas e comete suicídio em
seguida. No espelho, Nomi vê a imagem de Sussurros como Nigel atirando em si mesmo. Nesse
caso, o formato episódico é usado para que Nomi consiga fechar o cerco a respeito de Metzger,
mas também abre novas questões sobre quem é Sussurros e quais são seus planos.

4.2.3 Concepção espaço-temporal em Sense8

Para compreender a concepção espaço-temporal proposta por Sense8, faz-se necessário


observá-las, a priori, separadamente. Em relação ao tempo, a narrativa não usa qualquer letreiro
visual para indicar uma data específica que determine qual é o tempo da série, mas há outros
elementos que posicionam o espectador temporalmente. Por exemplo, nos capítulos 1 e 2, as
personagens Nomi Marks e Neets, moradoras de São Francisco, comemoram a Parada do Dia
da Libertação Gay de São Francisco (Pride), que acontece todos os anos, na última semana de
junho. Já no episódio 3, outra referência ao tempo é feita quando Kala recebe uma mensagem
do noivo Rajan dizendo que faltavam apenas dois dias para o casamento. O tempo é citado
novamente só no capítulo 10, “O que é humano?”, quando Will comemora ao lado do pai o
feriado de Quatro de Julho, data em que se celebra a Independência dos Estados Unidos.
Portanto, é possível presumir que a série tenha uma duração total entre uma ou duas semanas.
Outra questão interessante ao tempo diz respeito aos fusos-horários dos personagens.
Como cada sensate está localizado em um país, é comum que uma cena de Will e Nomi,
residentes dos Estados Unidos, seja realizada pela tarde, enquanto cenas de Riley, em Londres,
e Wolfgang, em Berlim, sejam à noite, garantindo fidedignidade à narrativa. Grande parte das
cenas são simultâneas, pois os personagens “tomam” o lugar dos outros sensates quando
necessário – caso, por exemplo, de Sun e Capheus. Enquanto Capheus, durante o dia, persegue
a gangue que roubou os remédios de sua mãe em Nairóbi, Sun enfrenta um lutador em um
122

ringue, na madrugada, na Coreia do Sul. Quando Capheus pede ajuda à Sun e ela luta contra a
gangue, eles estão ocupando o mesmo tempo na diegese.
Quanto ao espaço, uma vez que Sense8 se propõe a trabalhar oito protagonistas de sete
nações, o espectador precisa estar atento para seguir onde a narrativa acontece em cada cena.
Para auxiliar o olhar da audiência, nos dois primeiros episódios, a produção insere letreiros que
indicam o nome das cidades onde as cenas se dão (Figura 7). Depois, a ideia é que quem assiste
já está familiarizado com a nacionalidade e a localização de cada personagem. Will e Nomi
vivem em cidades diferentes dos EUA, Chicago e São Francisco, respectivamente. Riley Blue,
nascida Gunnarsdóttir, inicia sua história em Londres, Inglaterra, mas retorna à cidade natal,
Reykjavík, capital da Islândia, no capítulo 6 (“Demônios”). Lito está na Cidade do México;
Sun, em Seul, Coreia do Norte; Capheus é residente de Nairóbi, capital do Quênia; Wolfgang
está em Berlim, na Alemanha; e Kala, em Mumbai, Índia.

Figura 7: Letreiro indica a cidade de Mumbai

Fonte: Sense8, Episódio 1, Netflix.com

Outra forma de Sense8 explorar o espaço diegético está nas locações. Gravada em todos
os países em que a história se passa, a série apresenta diversos pontos conhecidos das cidades.
Em Chicago, foram locações o Superdawg, famoso pelo seu cachorro-quente, o bar de jazz
Green Mill e o rio Chicago, que atravessa o centro da cidade e é onde Will e seu pai comemoram
o Quatro de Julho. Em Londres, Primrose Hill é o morro em que Riley tem vista de toda a
123

cidade e encontra paz. Em Berlim, Wolfgang toma banho nu na piscina pública de Stadtbad
Neukölln, aberta desde 1914. As visitas de Kala ao templo de Ganesha são feitas, por sua vez,
no Templo de Babulnath, um dos mais antigos de Mumbai. Em Seul, Sun encontra seu mestre
de luta no Templo Bongeunsa e treina no Parque Namsan. Com sua van, Capheus passeia pelo
santuário para rinocerontes e elefantes The David Sheldrick Wildlife Trust e pelo Giraffe
Centre, que protege as girafas da extinção. Já na Cidade do México, grande parte da narrativa
do episódio 9 (“A morte não permite despedidas”) se passa no Museu de Diego Rivera
Anahuacalli, em que Lito conta para Nomi sobre sua história com Hernando.
Posto isso, Sense8 exige que o público acompanhe a narrativa atentamente, de forma a
entender onde e quando as ações acontecem. Fora as marcações da Parada Pride e do Quatro de
Julho, não há como ter certeza quanto tempo se passou entre as cenas ou se todas as ações
acontecem ao mesmo tempo. Porém, como a perseguição de Sussurros não é uma “corrida
contra o tempo”, mas sim o quanto ele consegue dominar Jonas e se aproximar dos sensates
para descobrir sua localização, a passagem do tempo não é determinante para a compreensão
da série. Depois que o espectador entende as habilidades dos sensates e sua capacidade de
assumir habilidades dos outros, a questão temporal fica em segundo plano. A questão espacial,
no entanto, se mostra mais importante para o acompanhamento da narrativa. Depois do segundo
episódio, Sense8 não faz mais indicações claras sobre onde a narrativa ocorre e é preciso estar
atento para “viajar no tempo e no espaço” com os protagonistas, de forma a acompanhar os
avanços da trama principal.

4.2.4 Multiplicidade de tramas em Sense8

Ao narrar a história de oito protagonistas, Sense8 é definida como um ensemble show


que precisa desenvolver de maneira coerente as tramas de cada personagem. No entanto, para
fazê-lo, aposta em uma multiplicidade de tramas interligadas não só pelo arco principal, mas
também por temas que perpassam todas as narrativas. É como se o elenco dos oito sensates
funcionasse como uma grande família, entrelaçada por seus anseios, medos, desejos, fracassos,
conquistas. A título de análise, podemos indicar duas tramas principais, responsáveis por
sustentar o formato serial, e outras dez secundárias que auxiliam no desenvolvimento e
fechamento dos arcos maiores, além de suportar alguns dos formatos episódicos apresentados
anteriores.
124

Tabela 2: Linhas/tramas presentes em Sense8


Tramas principais (arcos maiores) Tramas secundárias (arcos menores)
1. Quem são Angelica e Jonas e quais são suas relações
com os sensates;
2. Romance entre Will e Riley;
3. Transexualidade de Nomi e perseguição de sua mãe;
4. Depressão/culpa de Riley por ter sobrevivido ao
1. O que são os sensates, do que acidente que matou sua filha e seu marido;
eles são capazes e como funciona 5. Will e a busca por Sara Patrell;
a ligação sensitiva entre eles; 6. Relação conflituosa entre Sun, o pai e o irmão após
morte da mãe;
2. Quem está perseguindo os 7. Indecisão de Kala sobre o casamento com Rajan e seu
sensates (no caso, Sussurros) e amor por Wolfgang;
por quais razões. 8. História familiar violenta de Wolfgang e sua relação
com Felix;
9. Homossexualidade de Lito e temor pelo fim de sua
carreira;
10. Otimismo inabalável de Capheus diante de uma guerra
entre gangues pelo amor à mãe.

A trama principal se dá a partir da história de cada sensate (Figura 8), o que os fazem
ser assim, como funciona essa conexão e como podem usá-la para seu benefício. Ao mesmo
tempo, a série indica que a existência deles é vista como uma ameaça para alguns. Com a morte
de Angelica Turing e as explicações de Jonas Maliki, o espectador descobre que há um homem
(Sussurros) que lidera uma organização com o objetivo de capturar, estudar e dizimar os
sensates. Logo, essa segunda grande trama está relacionada à primeira – por que os sensates
são perseguidos, quem é Sussurros e o que ele será capaz de fazer para acabar com essa tal
ameaça.
125

Figura 8: Os oito protagonistas de Sense8

Fonte: Sense8, Netflix.com

Para sustentar os dois arcos maiores – que, por sua vez, se encarregam de parte do
formato serial bem-sucedido de Sense8 – a narrativa trabalha consistentemente tramas que aqui
são classificadas como secundárias. Como protagonistas, é desejável que a audiência se engaje
com a trajetória de cada personagem. Assim, a cada capítulo, a série trabalha um pedaço da
história de cada sensates. Dentre os arcos menores, portanto, podemos destacar: 1) a
transexualidade de Nomi e o sofrimento que ela abriga devido ao preconceito da mãe; 2) a
homossexualidade de Lito e seu medo de ter a carreira encerrada por viver em uma sociedade
machista como a mexicana; 3) e a indecisão de Kala entre respeitar a tradição social e religiosa
hindu, casando-se com um homem que não ama, e seu desejo de viver uma vida independente
e encontrar um amor.
Também são arcos menores: 4) a história da executiva e lutadora de kickboxing Sun,
que se sente presa à uma promessa feita à mãe de cuidar de seu irmão e do pai e decide assumir
a culpa por um crime que não cometeu; 5) a luta constante de Capheus “Van Damme” para
conseguir os remédios para a mãe enquanto não se deixa abater pela realidade pobre e violenta
em seu país; 6) o tormento de Riley, que se culpa por ter sobrevivido ao acidente que resultou
na morte do marido e de sua filha recém-nascida e ainda precisa lidar com a perseguição de
traficantes na Inglaterra; 7) as visões que Will tem de uma menina que presenciou ter sido
assassinada e sua relação com o pai aposentado e alcoólatra; 8) o histórico familiar violento de
126

Wolfgang que o impede de ter uma vida feliz e sua amizade fiel com Felix, o qual sempre o
protegeu do bullying quando criança; 9) quem são Angelica e Jonas e qual sua importância para
os sensates; e 10) o romance entre Will e Riley, que ajuda a concluir a primeira temporada.

4.2.5 Ganchos em Sense8

Distribuída no modelo binge-publishing da Netflix, Sense8 não tem intervalos


comerciais que interrompam a narrativa. Não há vinhetas de passagem ou ganchos de menor
tensão, pois exige-se que a audiência assista ao episódio completo sem qualquer interrupção.
Como cada capítulo está interligado com o anterior e com o próximo, a série posiciona apenas
ganchos de alta intensidade (os cliffhangers) ao final dos episódios e com as retomadas desses
ganchos nos capítulos seguintes para que o público relembre o que aconteceu antes. Abaixo, a
tabela traz a identificação das quatro subcategorias de ganchos em cada episódio:

Tabela 3: Tipos de ganchos presentes em Sense8


Ganchos de Retomadas de
EPISÓDIOS Cliffhangers Elipses
tensão menor ganchos
1 X
2 X X
3 X X
4 X X
5 X X
6 X X
7 X X
8 X X
9 X X
10 X X
11 X X
12 X X

No primeiro episódio, Sense8 apresenta o suicídio de Angelica e um perfil muito breve


de cada sensate – Nomi, Will, Riley, Sun, Kala, Wolfgang, Capheus e Lito. Como destaque do
episódio, a DJ Riley é apresentada a Nyx, um traficante que fala sobre a ressonância límbica,
expressão que dá nome ao capítulo e também serve como uma explicação para a conexão
existente entre os oito protagonistas. Nesse episódio são propostos dois cliffhangers. No
primeiro, Will e Riley se encontram no local onde Angelica se matou e questionam como
conseguem ver um ao outro. No segundo, Riley retorna à Inglaterra e presencia uma luta entre
seus colegas e os seguranças do traficante Nyx. A cena final mostra um close no rosto de Riley,
chocada com a morte dos seus amigos e com o rosto marcado por gotas de sangue. Com a
127

introdução desses ganchos, o espectador é instigado a entender melhor como se dá a conexão


entre os personagens e o que acontecerá com Riley.
No segundo episódio, o arco de Riley é retomado quase dez minutos após seu início,
quando Riley caminha pelas ruas de Londres abraçada a uma bolsa, a mesma bolsa onde estão
as drogas e o dinheiro de Nyx, seu rosto ainda está sujo de sangue e ela entoa uma canção,
parecendo em estado de choque. São propostos três cliffhangers nesse capítulo: 1) a atriz
Daniela descobre que Lito é gay; 2) Neets avisa que Nomi tirou fotos de Jonas na multidão
antes de desmaiar; 3) Jonas se aproxima de Will, fala sobre ser um sensate, mas é perseguido
pelo policial, que o impede de fugir. A cena final mostra Will chocando seu carro contra o de
Jonas lateralmente.
Os ganchos de Lito e Will são retomados no episódio 3, quando Will desperta em um
hospital e a enfermeira diz que ele é um herói por ter capturado um terrorista e quando Daniela
permanece no apartamento de Lito e mostra que não tem qualquer interesse em prejudicar Lito
ou Hernando. Quando Daniela conta que prefere manter o namoro falso com Lito, pois seu
último namorado não aceitou bem a separação, a série propõe um novo cliffhanger, uma vez
que Lito é abordado pelo ex-amante de Daniela, Joaquin, que o ameaça. Outro gancho proposto
é sobre Nomi, que está prestes a ser lobotomizada pelo Dr. Metzger, mas é salva por um alarme
de incêndio e é colocada em quarentena. O último gancho do episódio mostra Capheus e Sun
trocando de corpo para que Sun vença a gangue que persegue Capheus, deixando em aberto
para a audiência o que os sensates são capazes de fazer.
As linhas narrativas de Sun e Capheus são retomadas no episódio 4 (“O que está
acontecendo?”), pois Sun está cheia de hematomas pelo corpo e Capheus assiste sua mãe bem,
mas sentindo-se culpada pelo filho gastar todo seu dinheiro para obter seu tratamento. Nesse
capítulo foram identificados cinco ganchos: 1) Capheus recebe a proposta de Silas Kabaka, um
dos chefes do crime de Nairóbi, para que entregue uma mala e, em troca, ele receberá
medicamentos verdadeiros para o tratamento da mãe; 2) Sun pode salvar o nome do pai e sua
empresa ao se declarar culpada por ilegalidades financeiras feitas pelo seu irmão, mas se sente
dividida entre cuidar dos homens da família como prometido à sua mãe ou levar a culpa por
algo que não fez; 3) Will tenta usar de sua influência para falar com Jonas, prisioneiro, mas não
pode ajudá-lo a tempo e Jonas é levado a um local desconhecido; 4) Nomi troca de corpo com
Will antes de ser lobotomizada e consegue fugir do hospital com a ajuda de Neets; 5) Enquanto
ouvem e cantam a canção “What’s going on”, da banda 4 Non Blonds, todos os sensates se
perguntam o que está acontecendo.
128

No capítulo 5, todos os ganchos são retomados e outros cinco são apresentados: 1)


Capheus não consegue se livrar de Silas e seguirá trabalhando para o mafioso em troca de
remédios para sua mãe; 2) Sun deixa seu cachorro com seu mestre, o que dá a entender que ela
irá se entregar no lugar do irmão; 3) Will e Riley se encontram novamente; 4) Nomi tem seu
apartamento revirado e destruído; 5) Kala está em seu casamento, mas desmaia durante os votos
ao ver Wolfgang nu no meio da festa. Novamente, todos os ganchos do capítulo anterior são
retomados no episódio 6, (“Demônios”), além de um apresentado no primeiro episódio – Nyx
encontra Riley e ele quase a sufoca em troca de respostas sobre as drogas e o dinheiro que ela
roubou. Como a série está em sua metade, as linhas narrativas ficam mais complexas e há novos
ganchos a cada episódio. Aqui, o gancho final é uma conversa entre Sun e Riley, ambas “presas”
por conta do erro de outros. Enquanto Sun será transferida no dia seguinte para uma prisão
federal, Riley está fugindo de Nyx e tem medo de voltar para a Islândia, onde mora o pai. Na
cena final, Sun encontra a imagem de sua mãe em um local de Seul e a mãe diz que ela precisa
ter cuidado, pois os homens têm medo dela. Sua mãe, então, é substituída pela imagem de
Angelica, que diz a Sun que ela é o futuro. Sun, então, desperta em sua cela.
As histórias de Sun e Riley são retomadas no episódio 7 (“O poder da literatura”),
quando ela é levada para uma prisão federal e Riley é vista em um avião seguindo para a
Islândia. A tensão aumenta nesse episódio, que apresenta quatro cliffhangers: 1) Capheus vê
Silas cortar as mãos de um traidor e, diante da ameaça, precisa decidir se continuará trabalhando
para ele; 2) Daniela tem seu celular roubado pelo ex-amante Joaquin, que encontra as fotos que
ela tirou de Lito e Hernando juntos; 3) Ao descobrir que Wolfgang e Felix roubaram os
diamantes que desejava, Steiner cria uma emboscada e atira em Felix, deixando-o entre a vida
e a morte; 4) Nomi e Neets invadem o apartamento do Dr. Metzger e são perseguidas pelo
lobotomizado Niles Bolger; quando conseguem fugir, Nomi vê Niles matar Metzger e, em
seguida, atirar em si – pelo espelho, Nomi vê que Niles é, na verdade, Sussurros, levando o
espectador a entender que Sussurros é também um sensate (Figura 9).
129

Figura 9: Nomi vê Niles no espelho e descobre a imagem de Sussurros

Fonte: Sense8, Episódio 7, Netflix.com

O capítulo 8 (“Seremos julgados pela coragem dos nossos corações”) retoma os ganchos
de Wolfgang (que sofre ao ver Felix hospitalizado, sentindo-se culpado por tentar mudar o
passado), Capheus (que vai até a casa do amigo Jela, diz que não pode continuar fazendo o
trabalho sujo de Silas e que pretende retomar as viagens com a van ao lado dele) e Lito (Daniela
vai atrás de Joaquin para pegar seu celular de volta). Nos últimos dez minutos da série, a
narrativa entrega todos os cliffhangers para o próximo episódio: 1) Will é suspenso sem
pagamento; 2) Capheus é ameaçado por uma gangue para que entregue a filha de Silas ou
matarão ele e sua mãe; 3) Sussurros descobre o paradeiro de Nomi, que consegue fugir; 4)
Hernando termina com Lito porque ele se recusa a ajudar Daniela, que está sendo agredida por
Joaquin; 5) O futuro sogro de Kala a aborda no templo de Ganesha para que ela desista do
casamento e eles são atacados por diversos homens do templo, que o esfaqueiam.
Embora o capítulo 9 (“A morte não permite despedidas”) inicie com um flashback de
Riley, a cena seguinte mostra a retomada do gancho de Lito, que está deprimido em um bar
após o término do namoro com Hernando. É nesse episódio também que um gancho
apresentado no episódio 3 é retomado: Will descobre que Jonas está sendo mantido refém por
Sussurros e que está sendo monitorado. A tentativa de assassinato do sogro de Kala também é
retomada, assim como o gancho de Sun, quando ela recebe uma visita de seu pai que promete
contar toda a verdade e tirá-la da cadeia. Dessa vez, a narrativa deixa em suspenso as histórias,
sem uma clara proposta para o episódio seguinte: Nomi avisa Neets que ela usou Will para
130

emitir uma nota falsa de que está indo para a Austrália; Riley relembra seu passado em uma
conversa com Capheus; Lito sofre diante de seu apartamento vazio. A curiosidade da audiência,
portanto, se mantêm em alta a respeito do que acontecerá a Lito e Hernando, a Nomi, a Sun, a
Jonas ou se Kala contará a última conversa com seu sogro para o noivo Rajan.
Os ganchos de Sun, Kala e Lito são retomadas durante o episódio 10, assim como a
narrativa de Wolfgang, estática no capítulo anterior. Algumas resoluções começam a ser
encaminhadas, a começar por Lito salvar Daniela de Joaquin e retomar seu relacionamento com
Hernando, ou quando Wolfgang arma para Steiner e consegue matá-lo, vingando Felix e
ficando com os diamantes. A sequência final, no entanto, mostra Riley e os outros sensates na
sinfônica de seu pai, na Islândia, enquanto todos lembram de seus nascimentos. O espectador,
então, descobre que Riley também deu à luz um filho e sofreu um acidente, perdendo o marido.
Ao lembrar-se do ocorrido, Riley surge com as narinas cheias de sangue em meio à plateia,
desmaiando em seguida (Figura 10).

Figura 10: Memórias de Riley a destroem

Fonte: Sense8, Episódio 10, Netflix.com

O episódio 11, “Pisando fundo e mudando o futuro”, retoma as memórias de Riley para
explicar seu ataque no capítulo anterior e relembra a linha narrativa de Capheus, deixada em
suspenso desde o capítulo 9, ao mostrá-lo enfrentando a gangue que desejava sequestrar a filha
de Silas. Como cliffhangers, Sussurros descobre a localização de Riley, Sun descobre que o
irmão matou seu pai para que não contasse a verdade sobre o roubo e Wolfgang está pronto
131

para matar o tio. Em seu último capítulo (12 – “Não vou abandoná-la”), a trama de Riley é
retomada para que Will possa ajudá-la a se livrar de Sussurros. O episódio também mostra
Wolfgang assassinar o tio diante de Kala, pois não consegue fugir de seu histórico familiar.
Jonas é torturado e Will recebe a ajuda dos outros sensates para salvar Riley, mas é encontrado
por Sussurros.
Ainda que Will e Riley consigam fugir ao final do episódio, a narrativa deixa uma série
de cliffhangers e questões em aberto para a segunda temporada: o que acontecerá com os
sensates agora que Sussurros já está na cabeça de Will? Como Will sobreviverá consciente aos
ataques mentais de Sussuros? Nomi e Neets conseguirão viver em paz, sem a perseguição de
sua mãe? Felix irá se recuperar e Wolfgang conseguirá deixar seu passado violento para trás?
Kala irá adiante com seu casamento? Seu sogro irá sobreviver? Sun conseguirá sair da cadeia e
se vingar de seu irmão? Capheus terá uma vida sossegada ou as gangues continuarão o
perseguindo? Lito terá sua carreira destruída ao assumir sua homossexualidade?
Sem a utilização de ganchos de menor tensão ou de elipses, Sense8 posiciona ganchos
de maior intensidade nos minutos finais dos episódios para incentivar que o público siga
assistindo à produção em maratona, uma vez que, em tese, a resolução daquele gancho está
disponível a menos de 20 segundos. A ideia também de usar não apenas um, mas vários
ganchos, ajuda a manter o espectador engajado na narrativa, assim como a estratégia de deixar
todas essas pontas soltas no último episódio faz com que a curiosidade e a expectativa da
audiência se mantenham em alta pelos próximos meses até a produção e distribuição da nova
temporada. A respeito das retomadas, os cliffhangers nem sempre são relembrados logo no
episódio seguinte, alguns voltam à narrativa depois de dois ou mais episódios, uma estratégia
que também estimula a assistência da temporada completa rapidamente.

4.2.6 Recapitulações em Sense8

Com o objetivo de acionar a memória da audiência, as recapitulações observadas nessa


análise estão na tabela abaixo, divididas entre recapitulações paratextuais e diegéticas. A priori,
é possível afirmar que Sense8 não trabalha com quatro das recapitulações seguintes: “no
capítulo anterior”, “episódio de recapitulação”, “sugestões visuais” e “voice-over”. A seguir, a
tabela apresenta a identificação de cada tipo de recapitulação na primeira temporada de Sense8.
132

Tabela 4: Tipos de recapitulações em Sense8


Recapitulações paratextuais Recapitulações diegéticas
No
Episódios Episódio de Sugestões Voice-
capítulo Vinheta Diálogos Flashback
recapitulação visuais over
anterior
1 X X
2 X X X
3 X X
4 X X X
5 X X X
6 X X X
7 X X X
8 X X X
9 X X X
10 X X X
11 X X X
12 X X X

Dentre as recapitulações paratextuais, a única recorrente é a vinheta. Devido à


distribuição binge-publishing, a partir do segundo episódio, o usuário da plataforma pode
acionar o botão “pular abertura” e ir direto para o início do capítulo. Portanto, a vinheta como
recapitulação só funciona quando o espectador desejar. No primeiro episódio, ela é inserida aos
6:50 minutos do episódio, somente após o suicídio de Angelica e a aparição dos oito sensates.
Nos capítulos seguintes, a vinheta sempre marca o início da narrativa, podendo ser ignorada.
A vinheta de Sense8 possui quase dois minutos de duração e reúne 108 cenas gravadas
nos oito países retratados – Estados Unidos, Coreia do Sul, Alemanha, Islândia, Quênia, Índia,
Inglaterra e México. Encarada por roteiristas como uma oportunidade para sintetizar a história
em poucos segundos, a vinheta em questão traz cenas que não fazem parte da narrativa em si
(como o que acontece, por exemplo, na vinheta de Friends, quando são repetidos frames dos
personagens no decorrer da temporada), mas que funcionam como uma introdução ao universo
diegético. Ao selecionar vistas panorâmicas das cidades, símbolos arquitetônicos, movimentos
sociais, culturais e políticos, comportamentos e tribos, algumas dessas cenas apresentadas em
time lapse91, a vinheta é bem-sucedida ao deixar o espectador pronto para a mistura de etnias,
de realidades sociais e econômicas e de costumes que estão presentes na série.
Em sequência, vê-se imagens das pontes Golden Gate (São Francisco) e Hangang
(Seul), da Oktobertfest, na Alemanha, de adereços da celebração do Dia dos Mortos, no México,
de elefantes e girafas na savana de Nairóbi, de uma lavanderia pública de Mumbai, da escultura
Cloud Gate, do artista Anish Kapoor, cartão-postal de Chicago, da cachoeira Gullfoss, a mais

91
Técnica cinematográfica que registra os quadros do vídeo em uma velocidade abaixo do normal. Ao ser rodado
na velocidade normal, a imagem apresenta-se acelerada.
133

volumosa da Europa e localizada na Islândia, de um casal homossexual de São Francisco, do


Portão de Brandenburg (Berlim), do trânsito caótico de Mumbai, da pobreza do Quênia (Figura
11). Embora não reconte (ou recapitule) cenas específicas da série, as imagens aceleradas
intercaladas com outras em slow motion dão o tom do ritmo da narrativa e também das
características de cada protagonista originário de sete regiões distintas do globo (Figura 11).

Figura 11: Frames da vinheta de Sense8

Fonte: Sense8, Netflix.com

Sobre recapitulações diegéticas, Sense8 privilegia o uso de flashbacks e de diálogos que


recontam fatos da série e que explicam as razões pelas quais os personagens são como são. A
respeito dos flashbacks, já no primeiro episódio, a estratégia é utilizada para que o espectador
saiba quem são os personagens apresentados. No caso de Nomi, seu flashback é da Parada Gay
do ano anterior e explica em parte quem é Nomi (transexual e ativista política) e como Neets é
protetora. Já para Wolfgang, seu flashback mostra que, quando criança, sofria abuso psicológico
do pai. O recurso é utilizado dessa maneira nos capítulos 2 e 3 para a apresentação dos
personagens Will, Riley, Capheus e Sun ainda na infância. No episódio 2, o flashback também
é inserido para que Kala relembre um acontecimento recente de sua história, o dia seguinte de
seu primeiro encontro com o noivo Rajan.
A trajetória infantil de Sun com seus pais é retomada no episódio 4, assim como
Wolfgang e o abuso psicológico que sofria do pai – ao cantar em um karaokê, ele relembra do
134

pai gargalhando diante de sua apresentação no colégio quando criança, mesmo flashback
inserido no primeiro capítulo da série. No episódio 5, o único flashback mostra a mãe de
Capheus defendendo-o quando criança dos inimigos do marido, que desejam levar Capheus
embora, história que é retomada em um novo flashback no capítulo 7. Em “Demônios” (capítulo
6), enquanto cede entrevista a uma TV, Lito lembra de seu romance com Hernando. No episódio
7, a infância de Kala ganha um flashback próprio quando ela se recorda de perder-se da mãe
durante um festival religioso e assistir a multidão pelos olhos de uma escultura gigante de
Ganesha.
A amizade de Wolfgang e Felix é explicada por meio de dois flashbacks no episódio 8,
indicando que Felix sempre o protegeu do ataque de outras crianças e até mesmo do abuso físico
do pai. Em “A morte não permite despedidas”, cenas da infância e adolescência de Riley
mostram que ela foi cuidada por uma mulher, Ysra, também uma sensate, que teve um
namorado chamado Magnus e que sofreu algum tipo de acidente, pois foi resgatada das
montanhas geladas da Islândia por um helicóptero. Nesse capítulo também ganham espaço as
linhas narrativas de Nomi e Lito. Flashbacks mostram o relacionamento de Lito e Hernando no
Museu Diego Rivera e todos os abusos físicos que Nomi sofreu quando ainda era um menino.
Ao final, Capheus recorda quando ele e a mãe precisaram entregar a irmã recém-nascido para
um orfanato, pois eles não tinham comida.
As cenas finais do capítulo 10 são flashbacks dos nascimentos de cada sensate e também
servem como explicações para o que se tornam cada personagem. A mãe de Wolfgang tem o
filho em uma banheira, e ele aparece nadando em alguns episódios. O pai de Riley toca piano
enquanto sua esposa dá à luz e Riley torna-se DJ. Will nasce em meio ao trânsito e seu pai faz
seu parto dentro da viatura – Will também segue carreira como policial. Kala nasce em um dia
de chuva torrencial, sua mãe rodeada de estátuas de Ganesha, e a indiana se torna cientista, mas
não deixa sua fé de lado. Sun lembra a mãe dar à luz em um cemitério, como um paralelo entre
a vida e a morte que tanto marca sua narrativa. Duas mulheres ajudam no parto de Capheus,
que dedica seu esforço diário no tratamento daquela que sempre o amou. A mãe de Nomi tem
a filha por meio de uma cesariana, o que deixa explícito a falta de ligação emocional entre elas.
No caso de Lito, sua mãe o dá à luz em casa, rodeada de familiares que assistem a uma novela,
gênero muito celebrado no México – e ele torna-se ator (Figura 12).
135

Figura 12: Família de Lito vê novela enquanto ele nasce

Fonte: Sense8, Episódio 10, Netflix.com

Ao final, o espectador descobre que a própria Riley teve um filho, mas sua história
completa só é apresentada nos dois capítulos seguintes. A caminho do hospital, ela e o marido
sofrem um acidente, o marido morreu e ela tem a criança dentro do carro acidentado, em meio
à neve. Também é no último episódio da série que o espectador descobre que Wolfgang é o
assassino de seu pai.
O uso de retomada de acontecimentos por meio de diálogos entre os personagens, por
sua vez, tem início no segundo episódio e é feita até o fim da temporada, não sendo usada
apenas no episódio 3. No capítulo 2, a primeira cena já recorre à recapitulação diegética em
formato diálogo quando Nomi fala sobre suas visões de Angelica e seu suicídio para Neets.
Logo depois, Will está em um leito de hospital ao lado do menino que salvou de um bairro
perigoso de Chicago e eles retomam a conversa que tiveram durante o resgate. Por fim, Will
também fala sobre Angelica com seu parceiro de polícia Diego, que apelida a visão de Will
como “a fantasma loura de pijama”.
Já no episódio 4, a recapitulação como diálogo só ganha espaço quando Lito conta a
Hernando e Daniela sobre um acontecimento do capítulo anterior, a abordagem e a ameaça feita
a ele por Joaquin, ex-amante de Daniela. No capítulo seguinte, a estratégia é usada para unir
um acontecimento da narrativa e um flashback do personagem Wolfgang: o tio de Wolfgang
relembra o roubo dos diamantes e a derrota do pai de Wolfgang diante de um cofre S&D, o
mais difícil de ser roubado do mundo (o espectador já havia sido informado disso no primeiro
136

episódio da série). Outra recapitulação de diálogo acontece quando Will pede informações
sobre Nomi para a mãe dela e a personagem faz um resumo sobre Nomi, sua atuação como
hacker e seu uso de medicamentos para fazer a transição para mulher, ambos assuntos já
tratados até então e que precisaram ser retomados à audiência. O recurso narrativo retorna no
capítulo 6, a cena inicial mostra uma interação entre Will e Riley, que retomam as imagens de
Angelica, a primeira vez que se viram e, de forma sutil, o tiroteio que Riley presenciou entre
seus amigos e os seguranças do traficante Nyx, ocorrido no primeiro episódio. Em “O poder da
literatura” (capítulo 7), Kala está no templo de Ganesha e relembra rapidamente sua linha
narrativa até o momento – as visões do suicídio de Angelica, o encontro com Sun e Wolfgang
nu em seu casamento.
Já no episódio 8, a presença do elemento se dá de duas maneiras, para retomar
acontecimentos e também para ativar a memória do espectador sobre flashbacks dos
personagens. No primeiro caso, Capheus fala com a mãe sobre ser um homem de sorte e Nomi
e Will repassam os ocorridos entre Nomi, Metzger e Sussurros. No segundo caso, Riley conta
a Will sobre sua infância, retomando para o espectador imagens de seu flashback quando
passava os dias debaixo do piano do pai ouvindo-o tocar. Já com Kala, ela pede aos
cerimonialistas que seu casamento seja realizado no templo de Ganesha, pois “desde pequena
sempre tive uma ligação com Ganesha, ela vê através dos meus olhos e eu vejo através dos
dele” – a frase funciona como uma recapitulação do flashback dela mostrado no episódio 7.
No episódio 9, o tio de Wolfgang cita a mesma frase que o pai do protagonista utilizou
em um de seus flashbacks, a respeito das cinco coisas importantes na vida: “comer, beber, cagar,
foder e lutar por mais”. Em “O que é humano?” (episódio 10), Wolfgang está no Museu do
Holocausto e relembra as palavras ditas por Abraham no capítulo 2 sobre aquele ser um local
que fornece clareza. No capítulo 11, Wolfgang entrega Felix aos cuidados de uma clínica
particular e pede que ele seja chamado de Conan, também referência a um flashback do capítulo
8, e Capheus salva Silas de ser morto, que passa a dizer que é um homem de sorte. Finalmente,
no último episódio, há duas recapitulações de diálogo quando Wolfgang enfrenta seu tio, eles
retomam a ameaça feita pelo tio e também o assassinato do pai de Wolfgang. Depois, quando
Lito ajuda Will na Islândia para recuperar Riley de Sussurros, Will pergunta a Lito se eles já se
conhecem e o mexicano responde: “nós transamos”, em referência à cena do episódio 6.
A análise das recapitulações de Sense8 indica que, por se tratar de um formato serial que
precisa dar conta de, ao menos, oito linhas narrativas secundárias consistentes (a história de
vida de cada protagonista), a estratégia privilegia o uso de diálogos e de flashbacks para fazer
com que a audiência se mantenha ligada em cada trama e também se engaje com cada
137

personagem pouco a pouco, entendendo como nasceram, cresceram e vivem, cada um com sua
luta particular. Com exceção do capítulo 8, em que muitas recapitulações são feitas para que o
público esteja encaminhado para o fim da primeira temporada, as recapitulações de diálogo são
feitas com pouca frequência e como uma forma de manter a memória do espectador afiada. Já
os flashbacks são sempre do tipo evocados ou em primeira pessoa (aquele em que o personagem
recorda o passado para explicar um fato ou algo do presente), com exceção dos capítulos 11 e
12 para que o espectador entenda a linha narrativa de Riley, a morte do marido e o nascimento
e morte de sua filha recém-nascida. Os flashbacks evocados, por sua vez, são sempre
posicionados de forma a contar quem são aqueles protagonistas e como eles chegaram ali, o
que já enfrentaram em suas trajetórias e como também desenvolveram algumas de suas
habilidades que são emprestadas pelos outros sensates – caso, por exemplo, da habilidade de
Will em retirar algemas sem a chave, técnica que aprendeu quando criança rebelde para fugir
do pai policial e utilizada para salvar Nomi da lobotomia.

4.3 3%

3% (2016-presente) é a primeira série Original Netflix produzida no Brasil, realizada


em parceria com a produtora Boutique Filmes. Criada por Pedro Aguilera e com direção geral
de César Charlone, indicado ao Oscar de Fotografia pelo longa-metragem Cidade de Deus, 3%
surgiu primeiro no YouTube, em 2011, quando foi liberado o episódio-piloto, feito a partir de
recursos do edital do FICTV/Mais Cultura e com produção da Maria Bonita Filmes. Cinco anos
depois, a ideia de Aguilera foi comprada pela Netflix. A série teve lançamento global em 25 de
novembro de 2016 e, no ano seguinte, a Netflix anunciou que 3% é a série original de língua
não-inglesa mais assistida nos Estados Unidos desde seu lançamento92 (GONZAGA, 2017).
Sua primeira temporada conta com oito episódios, com durações distintas que variam entre 38
e 49 minutos, e sua classificação etária é de 16 anos. Após o lançamento da segunda temporada
em 27 de abril de 2018, a Netflix já confirmou a renovação para uma terceira temporada93
(VIANNA, 2018), a ser lançada ainda em 2019.
Segundo a página oficial da série94 na Netflix, a produção é classificada entre os gêneros
drama, ficção científica e fantasia, teen e programa e série brasileira. A sinopse encontrada é a

92
https://www.omelete.com.br/series-tv/3-serie-brasileira-e-producao-de-lingua-nao-inglesa-da-netflix-mais-
vista-nos-eua Acesso em 10 jan. 2019.
93
http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-140681/ Acesso em 10 jan. 2019.
94
https://www.netflix.com/br/title/80074220 Acesso em 10 jan. 2019.
138

seguinte: Em um futuro em que a elite vive no conforto do Maralto, todos os jovens de 20 anos
passam por um processo seletivo para viver lá. Mas só 3% serão aprovados. Inspirado pelo
período do vestibular, Pedro Aguilera criou uma narrativa distópica e pós-apocalíptica em que
jovens são submetidos a uma série de provas para provar que são “merecedores” de integrarem
o seleto grupo dos 3% daquele Processo. O primeiro episódio, intitulado “Cubos”, mostra a
chegada dos jovens que acabaram de completar 20 anos para mais uma edição do Processo,
nome dado a esse conjunto de provas que testam habilidades físicas, motoras, mentais e
emocionais dos candidatos. O Processo é comandado por Ezequiel, que, por sua vez, é
observado por um Conselho que avalia constantemente os procedimentos adotados. Ezequiel
recebe os candidatos e repete o mantra “você é o criador do seu próprio destino”. Michele,
Fernando, Joana, Rafael e Marco são os candidatos que a narrativa acompanha na batalha para
se tornarem parte dos 3%. Logo no capítulo 1, são submetidos a uma entrevista e a uma prova
que testa suas habilidades espaciais para a montagem de nove cubos. Ao final, Michele revela-
se uma infiltrada da Causa, um grupo que atua às escondidas para acabar com o Processo e toda
a desigualdade que deriva dele.
Ao retratar uma sociedade dividida entre uma pequena parcela com acesso a todo tipo
de tecnologia e privilégios e o restante, abandonado e desprovido de comida, luz ou água, 3%
funciona como uma alegoria “do modelo econômico globalizado, fundamentado na
desigualdade e que se justifica pela noção de meritocracia” (MASSAROLO et al., 2017, p.
251). Inicialmente colocado como algo que apenas a Causa luta para acabar, o Processo logo é
visto por candidatos como Fernando como uma criação absurda que aumenta as injustiças e
elimina todo tipo de resistência ou oferece uma oportunidade legítima de recuperação daqueles
que ficam “do lado de lá”, no Continente. Aqueles que vencem o Processo e passam a fazer
parte do seleto grupo dos 3% são obrigados a deixar toda a família para trás e renunciar,
inclusive, à sua capacidade reprodutiva, como uma prova de que a meritocracia realmente
funciona. Os que chegam a tal ponto e se recusam a tomar a tal “vacina”, que elimina a chance
de procriação, são enviados de volta.
De modo a encontrar possíveis alterações na estrutura narrativa da série, o quadro abaixo
apresenta a lista dos oito episódios da primeira temporada de 3% e as categorias descritas
anteriormente, como realizado na análise de Sense8. Em seguida, cada categoria é analisada.
139

Tabela 5: Identificação das categorias na 1ª temporada de 3%


Formato Concepção
Narração Multiplicidade
Episódios episódico- espaço- Ganchos Recapitulações
erotética de tramas
serial tempo
1 X X X X X
2 X X X X X
3 X X X X
4 X X X X
5 X X X X
6 X X X X X
7 X X X X X
8 X X X X X X

4.3.1 Narração erotética em 3%

O primeiro episódio de 3% (“Cubos”) tem início com um letreiro que diz: “O mundo
dividido em dois lados, um farto e um escasso. Entre eles, um processo de seleção. Aos 20 anos
de idade, uma única chance. Os escolhidos nunca retornam. Eles são os 3%”. De cara, a
principal pergunta proposta pelo recurso de narração erotética é colocada à audiência: quais
candidatos passarão pelo Processo? Quem serão os 3%? (Figura 13) Essa é a questão principal
de toda a narrativa, a pergunta que é respondida somente no último capítulo da produção,
“Botão”. Mas outras perguntas também são sugeridas durante o episódio 1: 1) Michele será
bem-sucedida em sua missão como uma infiltrada da Causa?; 2) Fernando conseguirá passar
pelo Processo mesmo sendo cadeirante? E se chegar em Maralto, conseguirá voltar a andar?;
3) Como comandante do Processo, Ezequiel será capaz de tudo para selecionar os 3%? Ele
também conseguirá descobrir quem é o infiltrado da Causa e desviar as dúvidas sobre sua
posição como líder do Processo?; 4) Rafael seguirá ao final do Processo trapaceando?; 5) Joana
e Rafael atuarão juntos para se tornarem dois dos 3%?
140

Figura 13: Ezequiel fala aos candidatos sobre ser um 3%

Fonte: 3%, Episódio 1, Netflix.com

O arco a respeito das desconfianças de Ezequiel cresce no episódio 2 (“Moedas”),


quando Aline conversa com o conselheiro Matheus a respeito da postura de Ezequiel durante o
Processo e Matheus pede que ela encontre algo comprometedor, gerando uma nova questão
para a narrativa: Aline conseguirá encontrar algo que force a saída de Ezequiel do Processo? É
também no segundo capítulo que Fernando se vê diante da real possibilidade de andar em
Maralto, mas ele não quer isso como objetivo final para se tornar um dos 3%. Rafael também
se mostra inteligente quando alcança a resposta correta da primeira prova que os candidatos
fazem em grupo. Joana mostra que é capaz de trapacear tanto quanto Rafael, o que desperta a
seguinte questão: será que eles atuarão juntos para chegar ao final do Processo ou se tornarão
competidores? Finalmente, Ezequiel sai do edifício onde o Processo acontece, dando algo para
Aline investigar: aonde Ezequiel vai, o que ele faz e por que ele apaga os registros?
A cada episódio, os candidatos passam por testes individuais e em grupo para provar
seu mérito, enquanto as histórias de Michele, Fernando, Rafael, Joana e Marco são
apresentadas. Já Ezequiel, constante em toda a narrativa por ser o comandante do Processo,
ganha um capítulo para si em “Água” (capítulo 5), em que algumas respostas sobre ele são
fornecidas pela narrativa, em especial sobre sua relação com a esposa, Júlia, e com o elemento
água. O espectador acredita que parte das respostas do primeiro episódio são respondidas até o
penúltimo episódio (7 – “Cápsula”), uma vez que Michele, Fernando, Rafael e Joana passaram
por todas as provas e estão prestes a realizar a última etapa, o ritual de purificação. No entanto,
141

com um ponto de virada como gancho final do capítulo 7, a audiência tem suas respostas
somente no último episódio (“Botão”), em que se revela quais ficam para trás no Processo e
quais têm a chance de ir para Maralto.
O capítulo também deixa pistas para a condução da segunda temporada da série: 1) O
que acontecerá com Michele no Centro de Recuperação & Tratamento (CRT), uma vez que
Ezequiel sabe quem ela é?; 2) O que acontecerá com a Causa, visto que o Líder foi preso após
a delação de Michele?; 3) Rafael será descoberto por Ezequiel como integrante da Causa? Ele
conseguirá manter sua luta em Maralto?; 4) Aline será condenada pela morte de César ou terá
a ajuda de Luciana para provar que foi incriminada por Ezequiel?; 5) Como Fernando e Joana
sobreviverão no Continente? Fernando reencontrará o pai ou Joana será perseguida pela morte
do filho de Gerson? Eles se unirão à Causa?; 6) Ezequiel seguirá comandando o Processo de
que maneira? O que ele fará para destruir por completo a ameaça da Causa?

4.3.2 Formato episódico-serial em 3%

Com a proposta de apresentar ao espectador todo o Processo até que sejam escolhidos
os 3% da vez, a série equilibra os formatos serial e episódico em quase toda a primeira
temporada, com exceção do episódio 5 (Figura 14). O formato serial está presente no
desenvolvimento de todo o Processo e também nos arcos dramáticos de cada personagem,
explorados paralelamente às provas. Enquanto a temporada constrói pouco a pouco como os
candidatos Michele, Fernando, Joana, Rafael e Marco superam (ou não) cada etapa do Processo
para chegar à Maralto, suas relações são entrelaçadas e cada narrativa é somada às outras,
aprofundando os conflitos. Ao mesmo tempo, o formato episódico é utilizado para em que a
cada episódio sejam apresentadas uma ou duas provas do Processo e como elas são encaradas
por cada um dos personagens principais. Em cada capítulo, a prova é apresentada no início,
depois é mostrado seu desenvolvimento e, finalmente, quem são os que vencem a etapa, um
modelo de “começo, meio e fim” característico desse formato.
142

Figura 14: Júlia dirige-se ao mar e comete suicídio

Fonte: 3%, Episódio 5, Netflix.com

No primeiro episódio, os candidatos precisam passar por uma entrevista, em que são
avaliadas suas habilidades emocionais como autocontrole, e também por outra etapa em que
precisam montar nove cubos a partir de peças soltas. Ao final, os resultados de ambas as provas
são mostrados, de forma a concluir aquele arco. Outro capítulo emblemático é “Portão”
(episódio 4), em que os candidatos que sobreviveram até aquela etapa são trancados em um
alojamento e precisam pensar e atuar em conjunto para escapar. Em paralelo, a história de
Marco é foco da narrativa. Enquanto os candidatos precisam usar memorização, tempo, força e
racionar comida para vencer a prova, Marco assume a liderança de toda a ação, usando simpatia
para se dirigir aos candidatos. Entretanto, quando Ezequiel muda as regras da prova, Marco
revela uma faceta violenta, criando uma gangue que rouba a comida dos outros candidatos e
agride quem age contra suas ordens. Ainda que o Processo continue sendo o fio condutor da
série, o capítulo dá espaço para o formato episódico ao mostrar a ascensão de Marco como líder
e também sua morte, quando é espancado pelos outros participantes e, então, prensado por uma
porta metálica – assim, há o fim tanto da prova quanto do arco de Marco.
O único episódio em toda a temporada que foge a esse equilíbrio presente nas narrativas
complexas (MITTELL, 2015) é o quinto. Montado sobre um flashback de Ezequiel, aborda a
relação do comandante do Processo e sua esposa, Júlia. Ela é o braço direito de Ezequiel quando
ele assume o controle do Processo, mas a relação se deteriora quando Júlia presencia uma ação
da segurança de Maralto no Continente que mata um homem. O espectador descobre que o
143

homem era responsável por cuidar do filho que Júlia teve antes de ingressar no Processo e se
tornar uma moradora de Maralto, deixando o filho para trás. Emocionalmente abalada ao rever
seu filho pelas imagens e saber que ele agora está sozinho, Júlia tenta retornar ao Continente
para ajudá-lo e acaba internada no Centro de Recuperação & Tratamento (CRT), em Maralto,
a mando de Ezequiel. Lá, comete suicídio ao afogar-se no mar. Exceto a primeira cena, que
mostra uma interação entre Aline e Ezequiel, nenhum personagem do presente é retratado
durante o capítulo, nem mesmo provas do Processo são mostradas. Dessa forma, “Água” é
autoconclusivo e criado de acordo com o formato episódico.

4.3.3 Concepção espaço-temporal em 3%

De forma a direcionar o olhar e posicionar a audiência nas linhas temporal e espacial, a


narrativa de 3% utiliza no primeiro episódio letreiros em que identificam esses elementos. Em
relação ao tempo, o letreiro indica no início a inscrição “Ano 104 do Processo”, mostrando que
a realidade diegética meritocrática já completa mais de um século de aplicação (Figura 15). A
personagem Michele é apresentada como moradora de um local muito pobre. Acompanhada de
uma amiga (Bruna), elas começam a subir um caminho paralelo a um morro. Um novo letreiro
é inserido: “Amazônia Subequatorial”, que indica o local em que a narrativa se passa. Esse é o
chamado Continente, onde vive a sociedade descrita como “escassa” no letreiro inicial da série.
Quando todos os jovens chegam a uma instalação no alto do morro e são recebidos por Ezequiel,
o comandante do Processo, a audiência acompanha rostos em um telão e outro letreiro indica:
“Conselho Superior (Maralto)”. Aqueles são os que observam e avaliam o Processo como forma
de garantir sua qualidade. Com exceção do episódio 5, a narrativa se divide entre
acontecimentos no Continente e na instalação onde o Processo ocorre, ainda que não fique
exatamente claro quanto tempo se passou do primeiro até o último episódio. No entanto, essa
imprecisão não tem impacto no entendimento da diegese.
144

Figura 15: Letreiro indica tempo da diegese

Fonte: 3%, Episódio 1, Netflix.com

No último capítulo, a concepção temporal é manipulada pela narrativa quando o enfoque


está nos arcos de Michele e Rafael – enquanto ele precisa decidir se passará pelo ritual da
purificação, ela acaba de sobreviver à tortura e é pressionada por Ezequiel a contar a localização
do Líder da Causa. À primeira vista, as cenas parecem acontecer ao mesmo tempo, mas quando
Michele revela o local onde a Causa se esconde, imagens do Líder sendo preso são mostradas,
levando o espectador a entender que as linhas narrativas dela e de Rafael não aconteceram ao
mesmo tempo.
A série arrisca na complexificação da concepção espaço-temporal somente no episódio
5, apresentado quase em sua totalidade como um flashback de Ezequiel. Ao contrário dos
flashbacks inseridos na história para os outros personagens, a produção utilizou letreiros para
indicar o tempo das memórias de Ezequiel para que o espectador acompanhe o desenrolar do
arco dramático episódico com clareza. A primeira cena do flashback mostra Ezequiel
preparando seu primeiro discurso como comandante do Processo e sendo amparado por Júlia.
Um letreiro indica “5 anos atrás, 99º Processo”, posicionando a audiência na linha do tempo
em relação ao tempo presente da diegese. Algumas cenas demonstram o bom relacionamento
do casal, inclusive a influência de Júlia no discurso de Ezequiel, mas indicam que a mulher
possui alguma questão não resolvida a respeito de filhos, pois elimina uma candidata por ser
mãe. Um novo letreiro aparece com as inscrições “1 ano depois, 100º Processo” e cenas a seguir
abordam o descontrole emocional de Júlia diante de uma operação ocorrida no Continente. Um
145

novo letreiro é inserido, “1 ano depois, 101º Processo”, e Ezequiel descobre que Júlia deu à luz
um menino antes de ingressar no Processo. Frustrada com as leis do Processo, Júlia tenta voltar
ao Continente para encontrar seu filho abandonado, mas Ezequiel a impede. Na sequência, dois
letreiros são inseridos: 1) “Transporte para Maralto”, quando Ezequiel se despede de Júlia
enquanto ela é escoltada por médicos até o transporte submarino; 2) “Centro de Recuperação
& Tratamento (Maralto)” aparece quando Júlia está deitada em sua cama e observa a foto que
imprimiu do filho. Em seguida, Júlia é vista em uma praia, dirigindo-se ao mar até desaparecer.
A produção não indica quando, mas algumas cenas adiante, Ezequiel desce até a comunidade
do Continente e encontra Augusto, que o manda embora. O capítulo em questão é uma
interrupção ao arco maior sobre o Processo atual, mas funciona como a explicação para
Ezequiel agir de certa maneira ou sua ligação com a água.

4.3.4 Multiplicidade de tramas em 3%

De forma a equilibrar os formatos serial e episódico, 3% trabalha com múltiplas tramas,


compostas por arcos dramáticos maiores e menores, apresentados na tabela a seguir.

Tabela 6: Linhas/tramas presentes em 3%


Tramas principais (arcos maiores) Tramas secundárias (arcos menores)
1. A luta travada pela Causa e seus infiltrados;
2. Conflito entre Ezequiel e Aline, aliada do conselheiro
Mateus;
3. Michele e sua busca por vingança pela morte do irmão;
1. A seleção dos 3% do Processo
4. Fernando e sua realidade como cadeirante;
atual;
5. Joana e sua vontade de refazer a vida;
6. Rafael e o desejo de se tornar um 3% a qualquer custo;
2. Provas e conflitos a serem
7. Marco e o legado dos Alvares;
enfrentados pelos candidatos.
8. Ambição de Ezequiel em manter-se no comando do
Processo a todo custo;
9. Romance entre Michele e Fernando;
10. Devoção de Cássia a Ezequiel.

Presente durante toda a primeira temporada, a seleção dos novos 3% é a trama principal
que funciona como o fio condutor das tramas secundárias (Figura 16). Essa escolha, claro,
depende do encadeamento e da superação (ou do insucesso) das provas e conflitos
proporcionados pelo Processo, com o objetivo de testar as competências emocionais e físicas
dos participantes. Michele, Fernando, Rafael, Joana e Marco são submetidos a diversos testes
individuais e em grupo do primeiro ao último episódio, cada etapa criada e comandada pela
figura máxima e onipotente de Ezequiel.
146

Figura 16: Personagens presentes na 1ª temporada de 3%

Fonte: 3%, Netflix.com

Essas duas tramas principais são sustentadas pelas tramas secundárias, que têm a função
de apresentar, explorar e desenvolver os personagens e seus conflitos. Como contraponto para
o Processo, a série introduz a luta travada pelo grupo underground Causa, que infiltra dois
agentes na seleção atual, Michele e Rafael. Como justificativa, o arco dramático secundário de
Michele revela que ela busca vingança pela morte do seu irmão, morto durante o Processo
realizado há cinco anos. O arco de Rafael demora a explicar quais as razões pelas quais o levam
a trapacear, mas se descobre que ele deseja iniciar uma vida do outro lado para criar filhos
prontos para a batalha e, assim, promover alguma diferença.
A série trabalha ainda outros quatro protagonistas. Joana carrega um registro falso após
assassinar uma criança e deseja ir à Maralto para refazer sua história; Fernando é cadeirante e
filho de pai pastor que acredita cegamente no Processo, mas espera apenas ter uma vida
diferente em Maralto; Marco vem de uma família reconhecida por ser bem-sucedida no
Processo e inicia a história como um rapaz solícito e justo, porém, sua faceta arrogante é
revelada no capítulo 4, o que acaba o levando à morte. Por fim, a trama de Ezequiel mostra que,
embora bem-sucedido, é questionado por alguns membros do Conselho e passa a ser vigiado
por Aline, uma auditora que deseja encontrar erros seus a fim de retirá-lo do cargo. Apoiado
incondicionalmente por Cássia, chefe da segurança da instalação, Ezequiel luta para equilibrar
147

suas funções como comandante do Processo e suas atividades fora dali, no Continente,
reveladas no episódio 5 – ele tenta cuidar do filho da esposa Júlia. Sobre esse episódio, “Água”
foge à ideia da multiplicidade, visto que a narrativa se desdobra somente sobre o passado de
Ezequiel e seu relacionamento com Júlia. Criado a partir de uma estrutura episódica e, portanto,
autoconclusiva, o capítulo recorre às linhas narrativas dos dois personagens, com pequenas
intervenções de membros do Conselho como Nair, ou de Cássia. Desse modo, a relação dos
personagens tem início e fim, ainda que dela se origine, por exemplo, a razão pela qual Ezequiel
coloca a cabeça debaixo d’água na pia de seu escritório.
Para efeito de análise, a multiplicidade de tramas é fundamental para que a narrativa de
3% se sustente e se apresente completa e encerrada (em parte) para o início da segunda
temporada. A produção é bem-sucedida em entrelaçar e equilibrar as tramas principais e
secundárias, de forma que o arco maior representado pela seleção dos 3% e o Processo se arraste
por toda a temporada, enquanto os arcos menores destinados ao desenvolvimento do caráter e
da história de vida dos personagens sejam apresentados no início de episódios por meio de
flashbacks e encerrados após dois ou mais capítulos – mantendo o interesse da audiência a
respeito do desenrolar não só da seleção dos 3%, mas também da trajetória de cada personagem.

4.3.5 Ganchos em 3%

Na tabela abaixo estão os tipos de ganchos presentes em 3%. É possível adiantar que
não há ocorrência de ganchos de tensão menor para a introdução de breaks comerciais, como
já apontado em Sense8.

Tabela 7: Tipos de ganchos presentes em 3%


Ganchos de Retomadas de
Episódios Cliffhangers Elipses
tensão menor ganchos
1 X
2 X X
3 X X
4 X X X
5 X X X
6 X X X
7 X X X
8 X X X

No capítulo 1, a narrativa apresenta os participantes do Processo e duas provas


eliminatórias: Entrevista e Cubos. Diante da informação de que há um infiltrado da Causa no
Processo, Michele e Bruna são separadas do grupo e Bruna acaba morta, enquanto flashback
148

mostra que Michele está infiltrada devido à morte de seu irmão. O gancho final suspende a
dúvida: Michele será bem-sucedida como uma infiltrada da Causa e conseguirá causar algum
dano ao Processo? Ou ela será desmascarada? No episódio 2, há a retomada dos ganchos
anteriores quando Michele ouve candidatos falando do desaparecimento de Bruna e Fernando
se oferece para conversar com a jovem. Há dois cliffhangers propostos nesse episódio: Joana
trapaceia na prova das moedas, levantando a suspeita dos outros candidatos, e Aline descobre
que Ezequiel deixa o Processo para andar pelo Continente, todo vestido em trapos, e apaga as
imagens das câmeras de segurança. Ambos são retomados no episódio seguinte, 3 – “Corredor”,
quando a narrativa usa flashbacks para apresentar a história de Joana e, depois, quando a
conselheira Nair avisa que Aline está ali a serviço do conselheiro Mateus. Como cliffhanger
final, os candidatos descobrem que estão trancados em um alojamento, sem comida ou água
(Figura 17).

Figura 17: No alojamento, Joana observa um duto

Fonte: 3%, Episódio 3, Netflix.com

O episódio 4 é iniciado com a retomada do gancho final: os candidatos estão presos em


um alojamento e não encontram saída. Aqui há a primeira utilização de uma elipse para
indicação de passagem de tempo. Quando os candidatos descobrem como conseguir comida
por meio de uma combinação numérica e o movimento de alavancas, a elipse é acionada para
mostrar que todos realizaram o mesmo procedimento inúmeras vezes, tomando horas da prova.
Além de cenas que intercalam candidatos decorando uma sequência numérica, posicionando
149

alavancas e recebendo kits de comida, há também a inserção da imagem de um contador de


tempo localizado na sala de monitoramento e que indica a duração da prova. Há três ganchos
finais nesse capítulo: 1) Aline consegue entrar no quarto de Ezequiel e coleta uma digital do
cubo amarelo que ele emprestou a Augusto (o que pode desvendar a razão pela qual ele vai para
o Continente disfarçado e, consequentemente, expulsá-lo da direção do Processo); 2) Rafael diz
algo a Michele, inaudível ao espectador, que a convence de salvá-lo do ataque do bando de
Marco; 3) Os candidatos superam a prova do alojamento, mesmo após a morte de diversos
participantes, incluindo Marco. A audiência é levada a questionar o que Ezequiel ainda é capaz
de fazer durante o Processo ou se o restante dos candidatos chegará vivo ao final do Processo.
Apesar de o episódio 5 funcionar na estrutura episódica, ele apresenta uma cena inicial
que indica uma retomada anterior, pois Aline descobre de quem são as digitais encontradas no
cubo amarelo e avisa Ezequiel. Aline ainda abre um novo gancho ao sugerir que poderá não o
denunciar caso Ezequiel renuncie ao comando do Processo e a indique para o seu lugar. Para
explicar quem é o menino dono das digitais, a série recorre a um capítulo completo feito em
flashback e que explicita a relação entre Ezequiel e a esposa Júlia. Embora o capítulo em
questão não termine em um cliffhanger relacionado à trama principal, a narrativa usa a elipse
em três ocasiões para cobrir passagens temporais. Na primeira ocorrência, a estratégia funciona
para simbolizar como Ezequiel dependia emocionalmente e confiava na esposa e também para
mostrar o porquê de ele colocar a cabeça debaixo d’água assim que enfrenta um momento
difícil. Depois, a elipse serve para destacar o desequilíbrio de Júlia, mostrando cenas seguidas
em que ela, dia após dia, não dorme, não se alimenta e segue à procura do endereço da operação
no Continente em que um menino foi abandonado. Por fim, após o suicídio de Júlia, uma série
de cenas focadas em Ezequiel demonstra a passagem de tempo em que ele sofre com a falta da
esposa, ganha o apoio de Nair, recebe a proposta de sair do Conselho, doa as roupas de Júlia e
encontra a foto impressa de Augusto, o filho perdido da ex-mulher. A elipse serve para
simbolizar porque ele vai atrás do menino Augusto no Continente e passa a cuidar dele.
Dois ganchos anteriores são retomados no capítulo 6 (“Vidro”): em conversa com
Rafael, Michele descobre que ele é da Causa, e por isso ela o salvou de ser morto por Marco, e
Nair avisa a Ezequiel que o relatório de Aline sobre ele só tinha elogios, fazendo-o deduzir que
ele só sairá do comando do Processo caso renuncie. Nesse capítulo há também uma utilização
interessante da passagem de tempo sem o uso “tradicional” de diversas cenas curtas em
sequência. Quando Ezequiel leva comida para Augusto uma última vez e se despede, a narrativa
o mostra saindo pela porta e, sem seguida, em seu escritório, com o rosto todo molhado. Ao
colar as duas imagens, o espectador entende que ele deixou o Continente, retornou à instalação
150

do Processo e colocou mais uma vez a cabeça na pia, mesmo sem a inserção de uma elipse
tradicional. Ao final do episódio, quando Rafael, Joana, Fernando e Michele parecem ter
passado por todas as provas, Michele recolhe cacos de vidro do chão e os utiliza para cortar sua
pele e retirar de dentro do corpo uma cápsula – o cliffhanger da vez (Figura 18).

Figura 18: Michele retira a cápsula de seu corpo

Fonte: 3%, Episódio 6, Netflix.com

O episódio 7, “Cápsula”, inicia do mesmo ponto anterior, quando Michele rasga a


própria pele e retira uma cápsula de seu corpo. Depois que ela envenena o homem errado e mata
César no lugar de Ezequiel, a narrativa recorre à elipse novamente para demonstrar as horas
dedicadas ao interrogatório de todos os candidatos por Ezequiel em busca do assassino. Cenas
de candidatos que entram e saem de salas, que sobem e descem rampas são intercaladas com
perguntas de Ezequiel a Rafael, Joana e Fernando. Ao final, depois que Ezequiel arma para
Aline levar a culpa pelo assassinato de César, Michele retorna ao seu quarto e é confrontada
por Ezequiel, de posse da cápsula. A retomada do cliffhanger anterior no episódio 8 se dá
quando o telão do dormitório individual de Michele não mostra uma imagem clara de que se
tornou uma 3%. A elipse é novamente acionada para demonstrar a dúvida de Rafael diante do
ritual de purificação – cenas se intercalam entre o rosto de Rafael, vozes que comemoram a
entrada de novos 3% e o som da vacina. Como cliffhanger final (e de maior intensidade para
garantir que a audiência retorne para a segunda temporada), a narrativa mostra que Fernando e
Joana deixaram o Processo e retornaram ao Continente, decididos que o Processo é injusto e
151

deve acabar, enquanto Rafael e Michele passaram pelo ritual de purificação, mas estão cientes
de que Ezequiel está atrás de todos os infiltrados e pretender extirpar todos aqueles que
pertençam à Causa. Como imagem final, a ilha de Maralto.
Sem a necessidade de inserir ganchos de tensão menor para que o espectador retorne à
narrativa após os intervalos, 3% trabalha capítulos que terminam com um ou mais cliffhangers,
de modo a atrair a audiência a continuar assistindo à história sem pausas. Com exceção do
episódio 5, em que o cliffhanger não está posicionado no final do capítulo, todos os segmentos
apresentam ganchos que despertam e mantêm a expectativa e a curiosidade do usuário da
plataforma em relação ao próximo episódio. O uso de elipses é pontual e não é inserido para
preencher buracos na trama, mas para simbolizar a longa duração das provas ou o estado
emocional dos personagens. Conforme Marcel Martin (2003), o uso da elipse em 3% tem o
objetivo de efeito dramático e podem ser classificadas como elipses subjetivas, com função
simbólica e que assumem a missão de dar significações mais profundas à ação.

4.3.6 Recapitulações em 3%

Assim como em Sense8, 3% também não utiliza recapitulações paratextuais do tipo “no
capítulo anterior” ou “episódios de recapitulação”, recorrendo apenas ao uso de uma vinheta.
Já em relação às recapitulações diegéticas, a série também recusa a utilização de “voice-over”,
como indicado na tabela abaixo.

Tabela 8: Tipos de recapitulações em 3%


Recapitulações paratextuais Recapitulações diegéticas
No
Episódios Episódio de Sugestões Voice-
capítulo Vinheta Diálogos Flashback
recapitulação visuais over
anterior
1 X X X
2 X X X X
3 X X X X
4 X X X
5 X X X X
6 X X X X
7 X X X
8 X X X X

A vinheta de 3% possui quase 1 minuto de duração e apresenta uma colagem de


elementos visuais presentes na série e de imagens de capítulos, funcionando como uma
recapitulação de diversos acontecimentos. São mostradas imagens da estátua do casal fundador,
dos rostos dos protagonistas (Fernando, Michele, Joana, Rafael e Marco), do gráfico que indica
152

a linha entre o Continente e a ilha de Maralto, panorâmicas da Amazônia Subequatorial, a planta


da instalação onde ocorre o Processo, o sinal da Causa, projeções de cubos, de palmas da mão
e das sequências numéricas da prova do alojamento (Figura 19). Também são mostradas cenas
de episódios, como da prova dos cubos (episódio 1), do exame médico (episódio 2) e das
alavancas do alojamento (episódio 4). Como a vinheta mostra elementos e imagens de todos os
capítulos, o espectador só entenderá quais são cada um dos elementos que compõem o vídeo
no último episódio da temporada. Dessa forma, a vinheta também funciona como a
recapitulação de tudo que já aconteceu até ali na narrativa.

Figura 19: Frames da vinheta da série 3%

Fonte: 3%, Netflix.com

Sobre sua veiculação, ela é colocada sempre após uma introdução do episódio,
interrompendo a fruição da narrativa, com exceção do capítulo 5, em que a vinheta aparece logo
no começo. Como o episódio em questão mostra apenas uma cena do presente e seu restante
veicula um longo flashback de Ezequiel e sua esposa, a escolha pelo posicionamento da vinheta
no início serve para orientar o espectador na linha temporal.
Dentre os recursos de recapitulação diegética, 3% apoia-se nas recapitulações de
diálogos e na utilização de flashbacks, mas também insere algumas sugestões visuais que
despertam a atenção do público. Como exemplos, é possível citar a marca da vacina nos braços
dos moradores de Maralto e o corte nas mangas de suas roupas para que esta marca fique visível,
153

os quadros na parede de Ezequiel compostos por formatos geométricos presentes na vinheta e


na prova dos cubos, as flores no espelho acima da pia do escritório de Ezequiel e o cubo amarelo
que Ezequiel dá a Augusto para que ele seja bem-sucedido no Processo anos depois (Figura
20).

Figura 20: Ezequiel dá para Augusto um cubo para ajudá-lo no Processo

Fonte: 3%, Episódio 3, Netflix.com

No caso dos flashbacks, 3% inicia seu uso logo no primeiro episódio para explicar o
passado dos protagonistas e justificar suas atitudes. O espectador sabe que um flashback será
apresentado porque, segundos antes de sua inserção, um som semelhante a uma corrente de
vento é inserido na trilha. No primeiro capítulo, o flashback aparece apenas no final para
mostrar que Michele é a infiltrada da Causa no Processo. Ela aceita participar do movimento
porque deseja vingar a morte de seu irmão. O episódio seguinte tem início com um flashback,
dessa vez sobre a infância de Fernando, em que ele treina para a entrevista do Processo diante
de um espelho. Mais adiante, um novo flashback mostra o pai de Fernando consertando sua
cadeira e dizendo que a coisa mais importante é passar no Processo, que ele precisa ter fé.
Joana é foco do flashback inserido no episódio 3. Inserido por diversas ocasiões na linha
temporal do capítulo, o recurso mostra que Joana tenta juntar moedas para sobreviver, mas é
agredida e roubada. Em busca de sua bolsa de moedas, ela invade um local e, ao encontrar uma
arma, dispara sem querer contra uma criança, matando-a. Em pânico, ela consegue um novo
registro, mas é expulsa por ser considerada uma assassina de crianças. No capítulo seguinte, a
154

vez é de Marco, e seu flashback mostra que o herdeiro da família Alvares (Figura 21), que
sempre conquista um lugar dentre os 3%, deixou uma mulher grávida para trás e escreveu uma
carta para seu futuro filho, dizendo que ele deveria pegar “o que é seu de direito”, frase que
simboliza sua mudança de postura durante o episódio 4.

Figura 21: Flashback de Marco mostra seus familiares que já passaram no Processo

Fonte: 3%, Episódio 4, Netflix.com

No fim do capítulo 4, o flashback de Rafael mostra que seu nome real é Tiago e ele
embriaga um rapaz que está prestes a entrar no Processo. Rafael rouba o registro do rapaz e se
apresenta para uma moça da Causa, prometendo que não decepcionará a Causa – somente no
episódio 6 o espectador descobre que o rapaz é seu irmão mais novo, chamado Rafael.
Toda a narrativa do episódio 5 é baseada no flashback de Ezequiel a respeito de seu
relacionamento com Júlia, a esposa que era seu braço-direito quando ele ingressou como
comandante do Processo e finalizou a narrativa cometendo suicídio, impossibilitada de viver
sabendo que não pode estar ao lado do filho que ficou no Continente. Há um momento ainda
em que a série mostra um flashback da própria Júlia, dentro do flashback de Ezequiel. No
episódio 6, flashbacks de Michele retornam à narrativa, mostrando sua relação estreita com o
irmão mais velho. Em “Cápsula” (capítulo 7), Michele ainda é o foco do recurso quando ela
recorda que o Líder da Causa cedeu a cápsula de veneno para ela, caso ela fosse descoberta e
não precisasse delatar seus companheiros da Causa – Michele, porém, despeja seu conteúdo
venenoso no copo de Ezequiel, mas é César que toma o líquido e morre. Finalmente, episódio
155

8, Joana recorre às suas memórias para recursar cometer outro assassinato, o do homem que a
agrediu no passado.
As recapitulações de diálogo, por sua vez, também estão presentes a partir do segundo
episódio. A retomada de gancho do episódio 2, por exemplo, é feita por meio de uma
recapitulação de diálogo, quando os candidatos perguntam à Michele sobre Bruna, a quem
Michele viu ser assassinada (e por sua causa) no capítulo anterior. Aline também usa a
recapitulação de diálogo para acusar Ezequiel de proteger Rafael na prova de cubos. No
episódio 3, a prova do túnel faz com que os candidatos sofram alucinações ao inalarem um gás
inodoro. Por meio de recapitulações, Fernando pergunta se Michele matou Bruna, Joana vê a
criança que matou e Michele vê Ezequiel, que pergunta se ela está lá para matá-lo. No capítulo
4, quando Joana escapa do alojamento e é encontrada por Ezequiel, ele dá a entender que sabe
do que aconteceu com Joana, uma recapitulação de diálogo do flashback da personagem.
Na única cena do episódio 5 que se dá no presente, há uma recapitulação de diálogo
quando Aline diz a Ezequiel que encontrou as digitais de um menino no cubo amarelo e
pergunta quem é a criança – o espectador sabe que a criança se chama Augusto, mas quem ele
é só fica claro mais adiante no capítulo, durante o flashback de Ezequiel. Como o episódio 5
apresenta estrutura episódica e funciona para explicar apenas a linha narrativa de Ezequiel, sem
mostrar novidades da trama do presente, o capítulo 6 é o que mais utiliza recapitulações de
diálogo em toda a temporada. Com o objetivo de acionar a memória do espectador mais vezes,
uma vez que os últimos acontecimentos sobre a trama principal se deram no episódio 4, o
recurso é usado em 15 ocasiões, como, por exemplo, quando o pai de Fernando diz que a coisa
mais importante é passar no processo, que Rafael roubou o registro de seu irmão mais novo,
que Joana assassinou uma criança ou que Aline quer ocupar o cargo de Ezequiel e o está
ameaçando. A recapitulação de diálogo também é usada para que Rafael tenha dificuldades para
completar sua prova final, pois ninguém quer ajudá-lo depois que destratou tantos outros.
Nos últimos dois episódios da narrativa, “Cápsula” e “Botão”, as recapitulações são
menos presentes e são utilizadas para antecipar algum acontecimento que está para se
desenvolver na trama. Por exemplo, no episódio 7, enquanto Michele é interrogada por Ezequiel
sobre a morte de César, ele lembra que ela estava diferente quando foi cumprimentá-lo mais
cedo e dá a entender que sabe que ela é da Causa; porém, ele a dispensa, para depois reaparecer
no fim do capítulo e mostrar que sabe sobre ela ser a infiltrada. No mesmo episódio, Fernando
reforça a Michele que só se preocupa em estar com ela; no capítulo seguinte, quando Ezequiel
diz a ele que Michele foi eliminada, Fernando opta por deixar o Processo, ainda que Michele
esteja sob tortura e seja, posteriormente, “purificada” por Ezequiel e aceita no Processo.
156

Em resumo, as recapitulações são utilizadas por 3% de maneira a acionar a memória do


espectador sobre o que aconteceu na narrativa até ali, mas sem abusar da repetição de cenas, o
que costuma afugentar a audiência. Com as recapitulações de diálogo, a série mantém o usuário
da plataforma afiado nas tramas principais e secundárias, retomando até mesmo ocasiões
apresentadas pelos próprios flashbacks, enquanto que, com a utilização de flashbacks do tipo
evocado (COMPARATO, 2016), a produção explica como os personagens chegarem até o
Processo e porque demonstram certas atitudes e sentimentos.

4.4 Dark

Dark (2017-presente) é a primeira série Original Netflix produzida na Alemanha, uma


parceria da plataforma com a produtora local Wiedemann & Berg Television. A narrativa
seriada ficcional foi criada pelos showrunners Baran bo Odar e Jantje Friese, que já trabalharam
juntos no longa-metragem Invasores: Nenhum Sistema Está a Salvo (Who Am I: Kein System
ist sicher, em língua alemã), vencedor do Bambi de Melhor Filme Alemão em 2014. A estreia
teve lançamento global em 1º de dezembro de 2017, e a imprensa brasileira chama a série de
“nova Stranger Things”95, uma ideia que foi logo derrubada por blogs voltados para a análise
de séries96. Sua primeira temporada conta com 10 episódios sem duração rígida ou fixa – os
capítulos têm duração entre 44 e 56 minutos, e a classificação indicativa é de 16 anos. Na
Alemanha, a série foi indicada em 2018 ao prêmio Grimme Preis, o maior da TV alemã, como
melhor produção de ficção, e a segunda temporada já está garantida, a ser lançada em 201997.
De acordo com a página oficial da série na plataforma 98, ela é classificada entre os
gêneros mistério, drama, policial e sobre crime, ficção científica e fantasia. Na mesma página,
é possível ver que a Netflix também considera Dark uma série “alucinante”, “sinistra” e
“complexa”. A sinopse encontrada é a seguinte: “Quatro famílias iniciam uma desesperada
busca por respostas quando uma criança desaparece e um complexo mistério envolvendo três
gerações começa a se revelar”. Embora a sinopse releve pouco sobre o enredo, a narrativa
transita entre o sobrenatural e a ficção científica para falar sobre viagens no tempo em uma
cidade do interior do país chamada Winden. Há uma cidade homônima na Alemanha, na região

95
https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,gosta-de-stranger-things-entao-conheca-dark-nova-serie-da-
netflix,70002101648 Acesso em 15 jan. 2019.
96
http://blogs.correiobraziliense.com.br/proximocapitulo/dark-e-stranger-things/ Acesso em 15 jan. 2019.
97
https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/filmes/2018/10/apos-sucesso-de-dark-netflix-anuncia-cinco-
novas-series-alemas Acesso em 15 jan. 2019
98
https://www.netflix.com/br/title/80100172 Acesso em 1 dez. 2017.
157

de Freiburg, porém, a Winden de Dark é fictícia99, criada a partir da infância dos showrunners.
Essas memórias também se misturam, segundo eles, com o acidente nuclear de Chernobil, que
aconteceu na cidade ucraniana em 26 de abril de 1986. Para o The New York Times, Baran bo
Odar cita recordações de sua mãe a respeito da chuva naquela época, devido aos altos níveis de
radioatividade por conta do ocorrido. A chuvosa Winden de Dark também abriga uma usina
nuclear e o acidente de Chernobil assombra os chefes da usina e a população local.
O primeiro episódio, “Segredos”, inicia com uma epígrafe de Albert Einstein sobre o
tempo: “A diferença entre passado, presente e futuro é somente uma persistente ilusão”. Em
geral, citações são utilizadas para direcionar a percepção do espectador sobre a história a ser
contada, ainda que não pareça tão óbvia à primeira vista. Há um narrador onisciente que aparece
em alguns dos episódios e parece estar à frente da narrativa, além de apresentar conceitos e
ideias sobre tempo, sobre a existência de Deus e se os seres humanos estão destinados a algo,
três discussões que permeiam a diegese. O enredo mostra que, em 21 de junho de 2019, Michael
Kahnwald comete suicídio e deixa uma carta que só deve ser aberta após “4 de novembro de
2019, às 22h13”. Em seguida, o filho de Michael, Jonas, retorna ao colégio após afastamento
psiquiátrico e percebe a cidade agitada pelo desaparecimento de Erik Obendorf que já dura 13
dias. Quando Jonas e os colegas Bartosz Tiedemann, Franziska Dopper e os irmãos Magnus,
Martha e Mikkel Nielsen vão à floresta para encontrar as drogas escondidas por Erik,
interferências em suas lanternas e sons estranhos vindos das cavernas os assustam, culminando
no desaparecimento do garoto Mikkel Nielsen. A busca por ele mobiliza ainda mais a polícia,
pois seu pai, Ulrich, é um dos detetives da cidade. Sua família também já passara por outro
desaparecimento há mais de 30 anos, o desaparecimento do irmão mais novo de Ulrich, Mads
Nielsen. A história, portanto, se delineia a partir das buscas e dos encontros e desencontros das
quatro famílias citadas na sinopse: os Kahnwald, os Nielsen, os Tiedemann e os Doppler.
Ainda que não seja o foco desta pesquisa, faz-se necessário apontar alguns elementos
que ajudam na construção simbólica da narrativa em questão. Além da já citada inspiração de
Chernobil para Winden, a cidade é composta por florestas e por um sistema de cavernas, um
labirinto escolhido para abrigar a fenda temporal entre os anos de 1953, 1986 e 2019. É possível
que a opção pela caverna seja relacionada ao Mito da Caverna, de Platão, em que os homens
precisam sair da caverna para conhecer o mundo real. As passagens entre os tempos são
delineadas por portas maciças que levam a inscrição em latim “SIC MVNDVS CREATVS
EST” (traduzida na série como “assim o mundo é criado”) e o desenho de uma triquetra.

99
https://www.nytimes.com/2017/11/23/arts/television/dark-a-german-netflix-series.html Acesso em 10 jan.
2019.
158

Símbolo presente na simbologia cristã, na magia e até no ocultismo, a triquetra tem origem celta
e representa as três faces da Grande Mãe: a Virgem, a Mãe e a Anciã. Na série, está ligada à
intersecção entre passado, presente e futuro. A Tábua de Esmeralda, um conjunto de textos
escrito por Hermes Trimegisto e que deu origem à alquimia, também aparece em dois
momentos da série, acompanhada da triquetra, em um quadro no hospital de Winden em 1986
e como tatuagem nas costas de Noah. Ganham espaço ainda citações à história de Ariadne,
pertencente à mitologia grega, ao conceito filosófico do eterno retorno de Nietzsche, ao
ilusionista Harry Houdini e às pontes Einstein-Rosen.
De modo a encontrar possíveis alterações na estrutura narrativa da série, o quadro abaixo
apresenta a lista dos 10 episódios da primeira temporada de Dark e as categorias descritas
anteriormente, como já realizado nas análises de Sense8 e 3%. Em seguida, cada categoria é
analisada.

Tabela 9: Identificação das categorias na 1ª temporada de Dark


Formato Concepção
Narração Multiplicidade
Episódios episódico- espaço- Ganchos Recapitulações
erotética de tramas
serial tempo
1 X X X X
2 X X X X X
3 X X X X
4 X X X X X
5 X X X X X
6 X X X X X
7 X X X X X
8 X X X X X
9 X X X X X
10 X X X X X

4.4.1 Narração erotética em Dark

A narração erotética estabelece no episódio 1 (“Segredos”) algumas das principais


questões do enredo, como o que aconteceu com Erik Obendorf e Mikkel Nielsen, as duas
crianças que desaparecem de Winden, e por que Michael Kahnwald, pai de Jonas, cometeu
suicídio. Porém, o primeiro capítulo da série abre outras perguntas que ajudam a delinear o
enredo que vão além dessas duas principais questões. São elas: 1) o que há na carta escrita por
Michael antes de seu suicídio?; 2) quem é a figura de capuz que anda pela floresta de Winden?;
3) de quem é o corpo encontrado na floresta no final do episódio?; e 4) o que Helge Doppler
quer dizer com “vai acontecer de novo”?
159

Nos episódios seguintes, outras perguntas são apresentadas, algumas ligadas às já


mostradas no primeiro capítulo. No episódio 2 (“Mentiras”), o público descobre que o irmão
mais novo de Ulrich Nielsen, Mads, também desapareceu anos antes (Figura 22), portanto,
surgem questões como: 1) o que aconteceu com Mads Nielsen? e 2) será que há alguma relação
entre o sumiço de Mads, Erik e Mikkel? Há alguém sequestrando crianças em Winden?

Figura 22: Mads e Ulrich Nielsen, em 1986

Fonte: Dark, Episódio 3, Netflix.com

No mesmo capítulo, descobre-se que algo acontece na usina nuclear de Winden, pois
Aleksander Köhler, chefe da usina, pede que escondam algo na floresta, em um caminhão. Ao
mesmo tempo, Jonas Kahnwald encontra um grande mapa das cavernas de Winden, com a
inscrição “onde fica o cruzamento?”. O episódio é encerrado quando Mikkel sai da caverna e
descobre que viajou no tempo, pois há estranhos em sua casa e o jornal data de 5 de novembro
de 1986. Dessa forma, o público tem o primeiro contato com a ideia de viagem de tempo.
No quarto episódio (“Vidas duplas”), o espectador tem contato pela primeira vez com o
personagem Noah, mas só conhecemos seu rosto no quinto episódio (“Verdades”), o que
desperta uma nova questão: quem é Noah? É também no quinto episódio que as primeiras pistas
sobre viagens no tempo são apresentadas, como a teoria dos 33 anos de Charlotte, e a revelação
de que o pai de Jonas, na verdade, é Mikkel. No sexto episódio (“Assim foi criado o mundo”),
o público vê que Peter Doppler e Tronte Nielsen aparentemente sabem das viagens no tempo,
enquanto Jonas faz o caminho da caverna até encontrar uma porta e atravessar o túnel, chegando
160

ao passado. No episódio 7 (“Ponto crítico/Encruzilhadas”), enquanto Jonas observa Mikkel em


1986, o Estranho/Andarilho confirma a história do pai de Jonas para o jovem. Em paralelo, o
garoto Yasin Friese desaparece e Noah é visto limpando um chão com sangue, uma grande
tatuagem da Tábua de Esmeralda cobrindo suas costas, e então duas novas datas são adicionadas
à história: 5 e 9 de novembro de 1953.
Caminhando para o fim da temporada, o episódio 8 (“Você colhe o que planta”)
apresenta novas teorias relacionadas ao tempo, como a ponte de Einstein-Rosen, a triquetra e o
eterno retorno de Nietzsche, como tentativas para o público saber que há diversos estudiosos
que se debruçaram sobre a questão do tempo no último século. No penúltimo episódio (9 –
“Tudo acontece agora”), as três linhas temporais da série são apresentadas com clareza (1953,
1986 e 2019), e Helge e Noah são mostrados no bunker em 1986, enquanto conversam sobre a
existência de Deus e a máquina do tempo que estão construindo. O capítulo também mostra que
Helge pode ser o sequestrador de todas as crianças, a mando de Noah.
No último episódio, “Alfa e ômega”, algumas das perguntas do início são esclarecidas,
como o paradeiro dos desaparecidos Erik Obendorf, Mads Nielsen e Yasin Friese. Mads,
inclusive, é o primeiro corpo encontrado na floresta, no fim do capítulo 1. Também é respondida
a dúvida sobre quem é o Andarilho – é Jonas Kahnwald, 33 anos mais velho, que busca fechar
o buraco de minhoca aberto sobre Winden e, assim, encerrar as viagens no tempo. Porém, o
último episódio deixa uma série de perguntas em aberto como ganchos para a segunda
temporada, de maneira que a proposta da narração erotética não é resolvida por completo na
primeira temporada.
Questões acerca de quem é Noah, para onde Jonas foi (que futuro ele está?) e será que
ele conseguirá restaurar uma certa ordem temporal, quais são as intenções de Claudia ao viajar
no tempo, o que acontecerá com Ulrich (preso em 1953 como um assassino de crianças), como
Aleksander tentará destruir a vida de Ulrich a pedido de Hannah e qual é a missão proposta por
Noah e aceita por Bartosz, entre outras. Essas são perguntas ainda sem resposta que devem
conduzir a narrativa seriada alemã em sua segunda temporada. Há ainda outras perguntas sem
resposta como por que apenas meninos são utilizados nas experiências de Noah e Helge e o que
aconteceu para que o futuro de Winden seja a destruição.
A construção erotética feita na primeira temporada de Dark difere das convencionais
porque ela deixa muito mais pontas soltas do que resoluções. Das perguntas propostas no
primeiro episódio, sabemos a resposta para todas, mas ainda assim elas não encerram os
mistérios – na verdade, elas são aberturas para novas perguntas, o que garante maior
complexidade à diegese. Ainda que seja comum deixar alguma ponta solta nas narrativas
161

seriadas pertencentes à distribuição convencional do broadcasting, a concepção da série para o


modelo da Netflix faz com que as respostas demorem a aparecer e que muitas delas continuem
sem solução e iniciem ainda mais questionamentos, forçando o retorno do espectador à
produção em uma próxima temporada.

4.4.2 Formato episódico-serial em Dark

Embora seja possível considerar Dark como uma narrativa seriada complexa, ela não
obedece ao equilíbrio esperado entre os formatos episódico e serial. Cada capítulo da série está
encadeado com o anterior e dá pistas do próximo, fazendo com que seja impossível assistir a
episódios separados e compreender na totalidade do que tratam as linhas narrativas propostas.
Os episódios não possuem o que chamamos de um claro “começo, meio e fim”, como se espera
o formato episódico, pois não apresentam fechamentos para os arcos menores, uma estratégia
que costuma auxiliar na coerência no conflito central. Por isso, podemos dizer que Dark é uma
série essencialmente serial, que exige do espectador atenção em todos os 10 episódios para
assistir à resolução dos conflitos propostos – e, como dito na categoria anterior, até mesmo não
encontrar todas as respostas para as perguntas apresentadas.
Cada um dos capítulos tem título que dá pistas do que será apresentado. No episódio 2,
“Mentiras”, as linhas narrativas mostram personagens ocultando informações, mentindo ou
enganando outros, como Peter Doppler (que sofre por um motivo desconhecido), Tronte
Nielsen (que se ausenta em momentos importantes e esconde um casaco manchado de sangue),
Aleksander Köhler (que esconde da polícia algum segredo perigoso sobre a usina nuclear) e
Ulrich Nielsen e Hannah Kahnwald (que estão vivendo um caso extraconjugal). Já no episódio
3, “Passado e presente”, a série apresenta os paralelos dos dois tempos, 1986 e 2019, de
personagens, como Mads Nielsen (que viaja para 1986 e lá fica preso), Claudia Tiedemann (que
se torna a presidente da usina em 1986 e lida com a filha, Regina, que sofre com depressão) e
Ulrich e Katharina (apaixonados quando adolescentes, mas que vivem uma crise no casamento
33 anos depois). Em ambos os exemplos, o espectador se depara com linhas narrativas diversas
durante a duração do episódio, mas nenhum dos conflitos é apresentado em sua totalidade ou
mesmo concluído, pois a ideia é que eles se arrastem até o final da temporada, de forma a
desencadear explicações pouco a pouco, forçando a audiência a acompanhar todos os capítulos.
O formato episódico é introduzido apenas uma vez em toda a série – e com um motivo
importante. No episódio 4, “Vidas duplas”, é apresentada a filha mais jovem de Charlotte
Doppler, Elizabeth (Figura 23). Elizabeth é surda e desaparece durante algumas horas, fazendo
162

com que seus pais, Charlotte e Peter, acreditem que ela é mais uma criança desaparecida em
Winden.

Figura 23: Elizabeth e Charlotte Doppler

Fonte: Dark, Episódio 4, Netflix.com

No entanto, no fim do capítulo, Elizabeth volta para casa em segurança e explica que
desapareceu porque voltou a pé depois que seus pais demoraram para buscá-la. Mesmo que
tranquilos com seu retorno, Charlotte e Peter descobrem que a menina foi abordada por um
homem que a ajudou a retornar para casa e lhe deu um relógio para entregar à Charlotte. Esse
homem é Noah. Até o fim da 1ª temporada, Elizabeth é acionada novamente apenas no episódio
seguinte (5 – “Verdades”), pois ela é quem consegue dar informações para a produção de um
retrato falado de Noah. Elizabeth também é a ponte entre o personagem Yasin Friese, seu
namorado, e os desaparecimentos de Winden. A linha narrativa de Elizabeth, portanto, obedece
às características do formato episódico, além de ser a única linha que pode ser entendida por
um espectador novo na série.

4.4.3 Concepção espaço-temporal em Dark

Devido à proposta da história, Dark é exemplo interessante para a concepção espaço-


temporal em sua versão mais intrincada. A complexidade da narrativa se dá, principalmente,
pela manipulação do tempo que os roteiristas propõem à audiência. Logo no primeiro episódio,
163

a epígrafe de Einstein é seguida por um discurso declamado pelo narrador onisciente, discurso
que deixa claro a importância do tempo para a série e que a há uma junção espaço-temporal que
vale ser guardada na memória.

Nós acreditamos que o tempo decorre de forma linear. Que ele avança
uniformemente para sempre. Até o infinito. Mas a diferenciação entre
presente, passado e futuro não passa de uma ilusão. O ontem, o hoje e o
amanhã não se sucedem, mas estão conectados em um círculo infinito. Tudo
está conectado (Dark, Episódio 1, 2017).

Enquanto esse trecho ganha a tela, a introdução visual mostra todos os personagens
presentes na série e suas imagens em todos os tempos em que atuam (1953, 1986 e 2019). Essa
escolha aparentemente aleatória das fotos combina com o texto e reforça a ideia de que tudo
está ligado e que o tempo proposto é sempre o mesmo, circular. Ao final da apresentação das
fotos, o mural se abre e é possível ver que todas as imagens estão interligadas por fios de lã
(Figura 29). Essa introdução não-linear ajuda a garantir o ar de mistério à narrativa.
O conflito central da história parece estar relacionado ao desaparecimento de Erik
Obendorf e Mikkel Nielsen, ambos ocorridos nos meses de outubro e novembro de 2019.
Porém, há outros elementos que despertam a atenção do espectador para a temática do
tempo/espaço. Além da epígrafe de Einstein e do discurso acima, após a vinheta, a data “21 de
junho de 2019” é inserida, em formato de letreiro na tela, para que o público se localize no
tempo presente da história. A cena que segue mostra um homem (Michael Kahnwald) que se
enforca, deixando uma carta com a inscrição: “não abrir antes de 4 de novembro de 2019, às
22h13”, recurso que cria expectativa na audiência. Em seguida, Jonas acorda de um pesadelo e
uma nova data é inserida, “4 de novembro de 2019”. Essa escolha pela inserção clara de datas
faz com que o público acompanhe o tempo diegético e sinta que algo está prestes a acontecer.
O tema tempo é sugestionado de outra maneira, quando Mikkel faz uma brincadeira de
ilusionismo com o pai Ulrich e diz: “a questão não é onde. Mas quando”. Toda a ação do
primeiro episódio ocorre em 2019, o que muda a partir do fim do episódio 2.
No segundo capítulo, a audiência descobre que Mikkel Nielsen está vivo, mas que viajou
no tempo. A última cena do episódio mostra Mikkel saindo das cavernas de Winden,
percorrendo a cidade até chegar em sua casa. Entretanto, ele vê uma moto de modelo antigo,
assim como um carro que não é o de seus pais. Ao ser recebido por um jovem desconhecido,
ele diz que esta é sua casa e que ele mora ali; o jovem diz que Mikkel está enganado e que seu
nome é Ulrich, e ele é morador da casa. Sozinho, Mikkel percebe um jornal na soleira de sua
residência. A notícia principal aborda o desastre de Chernobil, ocorrido em 1986 na cidade
164

ucraniana: “Chernobyl, um ano depois”. Em seguida, a câmera guia o olhar de Mikkel para a
data do jornal, 5 de novembro de 1986 (Figura 24). Essa pista obriga o espectador a
compreender duas temporalidades, a do presente, em 2019, e a do passado, em 1986.

Figura 24: Jornal de 1986 sobre desastre de Chernobil

Fonte: Dark, Episódio 2, Netflix.com

Nos próximos episódios, as diferenças entre as duas temporalidades podem ser


percebidas por meio das linhas narrativas dos personagens e também por recursos audiovisuais.
No terceiro capítulo, novos personagens são introduzidos, como uma enfermeira responsável
por cuidar de Mikkel no hospital, um delegado de polícia próximo da aposentadoria e uma
garota que pega pássaros mortos e os desenha em um caderno – são Ines Kahnwald (avó de
Jonas e mãe de Michael), Egon Tiedemann (pai de Claudia e avô de Regina) e Charlotte
Doppler, respectivamente. Em paralelo, dentre os recursos audiovisuais utilizados para marcar
1986 estão a trilha sonora – com o uso da canção “Shout”, do grupo Tears for Fears –, o figurino
– casacos coloridos, cabelos armados e cacheados, estampas xadrezes e ombreiras (Figura 25),
elementos muito presentes na moda da década de 1980 – e objetos como cubo mágico e telefone
a disco.
165

Figura 25: Katharina e Hannah nos anos 1986, as roupas condizentes com a época

Fonte: Dark, Episódio 3, Netflix.com

Há também induções mais sutis nos diálogos, como quando Katharina diz a Mikkel que
ele deve tomar ácido por falar coisas tão desconexas (o uso do ácido foi potencializado na
década de 1980) ou quando Bernd Doppler fala a Claudia Tiedemann que, após “o acidente”,
ela deve escolher qual história contar sobre o que acontece na usina nuclear de Winden, uma
forma enrustida de abordar o vazamento nuclear de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986.
É somente com a inserção desses recursos que o espectador começa a questionar alguns dos
pontos soltos deixados no fim do primeiro episódio, como o corpo desconhecido encontrado na
floresta (ele carregava um walkman que tocava a música “Irgendwie Irgendwo Irgendwann”
(Em algum lugar, algum dia, em tradução livre), da cantora Nena, lançada em 1984) ou onde
está Erik Obendorf. Erik é mostrado em um quarto azul e preso em uma espécie de cadeira
elétrica, enquanto a TV transmite o videoclipe da música “You Spin Me Round (Like a
Record)”, da banda Dead or Alive.
Até o episódio 6, “Assim foi criado o mundo”, o espectador entende que precisa seguir
as duas temporalidades propostas (presente e passado). Contudo, no fim do episódio 7, a última
cena mostra um homem lavando o chão do bunker, suas costas cobertas com uma tatuagem da
Tábua de Esmeralda – é Noah. Ele, então, escreve na parede a data 9 de novembro de 1953,
logo abaixo de outra data, 5 de novembro de 1953. Abre-se a possibilidade, portanto, de uma
terceira temporalidade na série, o que se confirma no episódio seguinte. Aparentemente, o
capítulo 8 acontece inteiramente no ano de 1953, uma vez que os carros são antigos e os
166

personagens usam roupas das décadas de 1940-50, como vestidos rodados e cinturas que
começam a ser marcadas nas mulheres e roupas sociais para meninos e homens. Egon
Tiedemann é apresentado na segunda cena do episódio, ele está bem mais novo do que quando
aparece na temporalidade de 1986, e seu carro de polícia é um Volkswagen Fusca. A usina
nuclear de Winden também está sendo construída. O ano de 1953 é confirmado quando Ulrich
Nielsen de 2019 chega ao outro lado da caverna e é interceptado por uma mulher e seu filho em
uma estrada, ela confirma que estão em 1953. Ulrich também se choca ao descobrir que a
mulher e rapaz que o interrompem são sua avó, Agnes Nielsen, e seu pai, Tronte, ainda
adolescente (Figura 26). Tronte, inclusive, possui um visual muito semelhante ao do ator James
Dean, muito famoso nas décadas de 1940-50. A terceira temporalidade também apresenta ao
público Helge Doppler quando criança.

Figura 26: Ulrich de 2019 viaja para 1953 e encontra sua avó, Agnes, e pai, Tronte

Fonte: Dark, Episódio 8, Netflix.com

Os episódios 9 e 10 trabalham com as três temporalidades simultaneamente. No capítulo


9, a série apresenta claramente as datas de 1953, 1986 e 2019 em formato de letreiro para
posicionar o público e direcionar seu olhar para os acontecimentos em ordem cronológica, o
que não havia acontecido até o momento. Essa estratégia é uma forma de esclarecer como as
três temporalidades estão conectadas e, de certa forma, acontecem “ao mesmo tempo”, pois
ocorridos nos três tempos se influenciam entre si. Essa ideia também é confirmada por meio
167

dos diálogos estabelecidos entre o Estranho/Andarilho e o relojoeiro e cientista H. G. Tannhaus,


responsável por construir a máquina do tempo que cria a fenda entre as temporalidades.
Após orientar o olhar e o entendimento do espectador sobre os três tempos, o último
episódio tem início com um flashback, em que são mostrados Peter Doppler e Tronte Nielsen
na noite do desaparecimento de Mikkel – esse flashback é acionado como um recurso de tempo
para confirmar que o corpo desconhecido encontrado na floresta é de Mads Nielsen e que Peter
e Tronte nada tem a ver com o que aconteceu, ainda que agissem de maneira suspeita até então.
Depois, o episódio intercala as três linhas temporais, mostrando as ações de todos os
personagens da história até o momento em que o Estranho/Andarilho, que é Jonas no futuro,
provoca uma nova abertura do buraco de minhoca. Ainda que o espectador já saiba que os
acontecimentos do passado influenciam no futuro e vice-versa, a ordem cronológica da série é
abalada quando Charlotte encontra uma notícia de 1953 nos arquivos da polícia sobre o
sequestro de Helge em 1953, e o suspeito de tê-lo raptado é Ulrich Nielsen, o Ulrich de 2019
(Figura 27).

Figura 27: Ulrich Nielsen preso em 1953

Fonte: Dark, Episódio 10, Netflix.com

Outro evento que bagunça o entendimento cronológico da série é o aparecimento de


Helge Doppler no bunker de 1986, uma vez que ele envelheceu no tempo correto e apareceu
mais velho também em 1986 – dessa forma, como será que ele retornou a 1953? Por fim, é
168

possível perceber que Claudia Tiedemann é capaz de viajar além das duas temporalidades
apresentadas, 1953 e 2019, sendo ela de 1986. Ela também aparece na floresta de Winden,
carregando uma espécie de arma, envolta por uma poeira. Esse mesmo ambiente é repetido
quando Jonas adolescente viaja pelo buraco de minhoca e vai parar, aparentemente, no futuro.
Em relação ao espaço, a história se passa em Winden, município da Alemanha. Dentre
as locações da série, destacam-se a floresta e as cavernas de Winden, a usina nuclear, o asilo, o
colégio, o hotel e o hospital da cidade, as residências das famílias Nielsen, Kahnwald, Doppler
e Tiedemann, além da cabana e do bunker misterioso dos Doppler. Todas as locações aparecem
nas três temporalidades da narrativa seriada, com sutis mudanças, como, por exemplo, a mansão
dos Doppler em 1953 que se torna o Waldhotel em 2019, propriedade dos Tiedemann, ou o
bunker dos Doppler que passa por transformações em 1986, enquanto parece abandonado tanto
em 1953 quanto em 2019. Nesse sentido, as locações também são importantes para o desenrolar
da trama e para situar e direcionar a audiência sobre os acontecimentos nas temporalidades.
Embora a série deixe claro em diversos momentos (por meio de datas e recursos
audiovisuais já sinalizados) em que ano os personagens estão, acompanhá-los nas três
temporalidades facilmente confunde o espectador e exige que sua atenção seja muito maior para
buscar a solução para os mistérios, entender as ligações e consequências das ações de cada
personagem para a progressão da história.

4.4.4 Multiplicidade de tramas em Dark

A multiplicidade de linhas narrativas é, ao lado da concepção espaço-temporal, a


principal característica de Dark. Além de se ter três temporalidades para acompanhar, o público
precisa identificar diferentes versões dos mesmos personagens em cada um dos tempos, pois só
assim é possível compreender a história contada. Mesmo que a série coloque Jonas Kahnwald
como personagem principal do conflito central, integrantes das quatro famílias de Dark
possuem grande importância para a movimentação dos acontecimentos, caso de, por exemplo,
Ulrich Nielsen e Helge Doppler. Na verdade, podemos indicar três tramas principais (e seus
personagens) e dez arcos menores, que dão apoio à grande narrativa, mas não menos
importantes para a concretização da história, conforme tabela abaixo a seguir:
169

Tabela 10: Linhas/tramas presentes em Dark


Tramas principais (arcos maiores) Tramas secundárias (arcos menores)
1. Caso extraconjugal de Hannah Kahnwald e
Ulrich Nielsen;
1. Desaparecimento de Erik Obendorf,
2. Obsessão de Hannah por Ulrich;
Mikkel Nielsen e Yasin Friese: trama
3. Triângulo amoroso entre Jonas, Martha e Bartosz;
conduzida por Ulrich Nielsen;
4. Descoberta do câncer de Regina Tiedemann;
5. Quem é Aleksander Köhler/Boris Niewald e do
2. Cavernas de Winden e buraco de
que ele está fugindo;
minhoca: trama conduzida por Mikkel
6. Homossexualidade de Peter Doppler e fim do
Nielsen e Jonas Kahnwald;
casamento com Charlotte;
7. Romance entre Magnus e Franziska;
3. Disputa pelo controle das viagens no
8. Atividades de Franziska na floresta;
tempo: trama conduzida por Noah,
9. Sumiços constantes de Tronte;
Helge Doppler e Claudia Tiedemann.
10. Quem é Noah e qual sua participação nas viagens
do tempo.

As três principais tramas são compreendidas apenas quando entendidas em correlação,


e as tramas secundárias auxiliam no suporte dessas linhas narrativas. No caso da trama principal
1, o desaparecimento das crianças (e especialmente de Mikkel) faz com que Ulrich acaba de
1953 e lá fique preso até o fim da temporada. O sumiço de Mikkel também leva à trama
principal 2, quando o menino fica preso em 1986 e se torna Michael, pai de Jonas que, em 2019,
é levado a investigar as cavernas de Winden e descobrir os portais de passagem do tempo e
buscar H.G. Tannhaus para saber mais sobre o buraco de minhoca e a máquina do tempo.
Finalmente, essa busca de Jonas acaba por conectá-lo aos desaparecimentos e assassinatos
realizados por Helge Doppler e Noah, que deseja ter o controle das viagens no tempo e impedir
que Claudia Tiedemann siga fazendo o mesmo.
Para entender como todas essas tramas de entrelaçam, se faz necessário observar
atentamente a estrutura familiar dos Kahnwald, Doppler, Tiedemann e Nielsen, ação trabalhada
por diversos episódios. Como existem as três temporalidades, é comum encontrar na internet
diversos artigos na imprensa e vídeos no YouTube que buscam explicar não só a série, mas
principalmente a árvore genealógica dos personagens e suas ligações, como a arte apresentada
abaixo em matéria da revista Mundo Estranho, de dezembro de 2017 (Figura 28).
170

Figura 28: Árvore genealógica das quatro famílias de Dark

Fonte: Revista Mundo Estranho100

Do primeiro ao último episódio da primeira temporada, todas as histórias de cada


personagem são trabalhadas, fazendo com que o público descubra informações pouco a pouco
sobre os personagens a cada episódio, uma estratégia que mantém o suspense e a curiosidade
da audiência. Há detalhes sobre a criação e o caráter dos personagens que são apresentados até
mesmo no último episódio, quando, costumeiramente, a trama já está dada ao público e se
espera apenas seu fechamento coerente.
No caso de Jonas, no episódio 1, ele se mostra como um rapaz perturbado com o suicídio
do pai, que passara dois meses internado em uma clínica psiquiátrica e apaixonado por Martha
Nielsen. No capítulo 2, ele deseja entender melhor o pai e visita com frequência o ateliê do
patriarca, fazendo com que encontre o mapa das cavernas de Winden. No terceiro episódio, no
entanto, ele não aparece, retornando somente no capítulo 4, quando entra na caverna e passa a
investigar. No episódio 5, ele encontra o Estranho/Andarilho pela primeira vez diante da lápide
de seu pai, beija Martha e recebe a encomenda enviada pelo Estranho em que lê a carta deixada
por Michael no dia de seu suicídio. A revelação de que Michael era Mikkel o perturba demais
e o personagem passa a viajar no tempo nos episódios seguintes, até ser raptado por Helge e
Noah e despertar no futuro. A descoberta de que o Estranho/Andarilho é Jonas mais velho e
que ele impede que Jonas saia do bunker, pois precisa sofrer para se transformar no homem que
se tornou é entregue nos últimos momentos da temporada.

100
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/um-mapa-das-familias-de-dark-da-netflix-para-voce-nao-se-perder/
Acesso em 10 jan. 2019.
171

Além de entregar dados sobre a história dos personagens vagarosamente, o que engaja
a audiência a acompanhar muito além do primeiro episódio, Dark também constrói linhas
narrativas que se cruzam e colidem por diversas vezes e nas três temporalidades apresentadas,
o que exige do espectador uma grande atenção para entender quem é qual personagem em qual
tempo. Logo no episódio 1 (Figura 29), a imagem de uma parede repleta de fotos ligadas por
fios de lã não dá (ainda) a dimensão de quantos personagens serão apresentados na série. A
mesma parede volta a aparecer somente no episódio 8, quando o público tem uma noção
bastante clara de quem são as fotos apresentadas.

Figura 29: Mural com fotos de todos os personagens nas três temporalidades

Fonte: Dark, Episódio 1, Netflix.com

No total, a série trabalha com 27 personagens, sendo que cinco destes transitam pelas
três temporalidades (Ines, Tronte, Jana, Helge e Claudia) porque possuem idade equivalente às
décadas, além de Jonas, Ulrich e Noah, que conseguem viajar no tempo. Há ainda personagens
que o público só conhece em uma temporalidade, caso de Agnes Nielsen, Greta Doppler e Dora
Tiedemann, de 1953, e as crianças e adolescentes Jonas Kahnwald, Magnus e Martha Nielsen,
Bartosz Tiedemann, Franziska e Elizabeth Doppler, de 2019. Todos os rostos são mostrados
com clareza, um após o outro, os personagens em todas as temporalidades, no início do episódio
8, enquanto um narrador em voice-over fala sobre as dúvidas que os seres humanos têm sobre
sua criação, evolução e existência de Deus – são 46 rostos em sequência. Portanto, seguimos
172

os mesmos personagens em 1953, 1986 e 2019, entendendo como os laços existentes se


constroem, atam e desatam, e compreender esses encontros e desencontros é fundamental para
o entendimento da série e das referências citadas.

4.4.5 Ganchos em Dark

Lançado em distribuição binge-publishing, Dark também não tem intervalos comerciais


que interrompem a fruição de seus episódios, fazendo com que esses intervalos sejam criados
pela audiência na hora que lhe for mais conveniente. Como apontado anteriormente, uma vez
que a Netflix visa acomodar tanto aqueles que realizam maratonas e os que preferem assistir a
um episódio por vez, o uso do gancho continua importante para suspender a ação
provisoriamente, adiando o prazer da narrativa, mas também para aguçar o espectador e fazê-
lo voltar mais rapidamente à série – muitas vezes, no próximo instante, por meio da função
post-play. Assim, da mesma forma que nas séries Sense8 e 3%, cada capítulo de Dark é
finalizado com um gancho que, ao contrário da estratégia muito popular em telenovelas, por
exemplo, não é retomado imediatamente no próximo episódio. Abaixo, a tabela traz a
identificação das quatro subcategorias de ganchos em cada episódio da série:

Tabela 11: Tipos de ganchos presentes em Dark


Ganchos de Retomadas de
Episódios Cliffhangers Elipses
tensão menor ganchos
1 X
2 X X
3 X X
4 X
5 X X
6 X X
7 X X
8 X X
9 X X
10 X X

Dark utiliza ganchos do tipo cliffhanger de forma clássica, para aguçar o suspense e a
curiosidade na audiência. Ligado à principal trama apresentada no capítulo, o desaparecimento
de Erik Obendorf e Mikkel Nielsen, está localizado na penúltima cena do episódio 1
(“Segredos”). Ulrich Nielsen é chamado, pois encontraram um corpo de criança na floresta de
Winden. Desesperado, Ulrich se dirige ao local, acreditando ser Mikkel, desaparecido desde a
noite anterior. No entanto, ao observar o corpo, Mikkel repete: “não é Mikkel”. O gancho
proposto pela narrativa sugere dois suspenses: de quem é o corpo encontrado na floresta e, se
173

aquele não é Mikkel, onde ele está? Já o segundo cliffhanger proposto diz respeito à Erik
Obendorf, pois ele é visto sendo colocado em uma espécie de cadeira elétrica e uma máquina
sendo fechada em seus olhos. Essa cena dá certa continuidade à anterior, uma vez que o corpo
encontrado na floresta possui os olhos queimados, porém este gancho trabalha com
imprevisibilidade e desperta confusão no espectador, que, por um lado, sabe que Erik está vivo,
mas não tem a menor ideia do que está acontecendo com ele ou onde ele está.
O segundo episódio não é iniciado do mesmo ponto em que o primeiro é finalizado, mas
tem início com o letreiro “9 horas após desaparecimento de Mikkel”, com o objetivo de localizar
a audiência no tempo diegético. Em seguida, é mostrada a chegada do Estranho/Andarilho em
Winden e um pesadelo de Jonas com seu pai. Ulrich só é visto procurando o filho após a vinheta.
Portanto, sobre esse cliffhanger, não há retomada direta. No entanto, no caso do segundo
cliffhanger deixado no primeiro episódio, a respeito da localização de Erik Obendorf, no meio
do capítulo a cena é retomada. Erik está novamente sentado sobre a cadeira, o corpo todo
amarrado e uma figura encapuzada fechando uma máquina ao redor de seus olhos. Ao mesmo
tempo, na TV de tubo à sua frente, um homem fala sobre dobras no espaço e tempo e teorias
sobre viagens por buracos negros. Esse cientista só é descoberto capítulos adiante, é H.G.
Tannhaus. Também não há elipse nesse episódio, uma vez que a narrativa acontece em sua
totalidade durante um dia e acompanhamos cenas emendadas umas nas outras, sem a passagem
temporal demarcada. Já a respeito do gancho final do capítulo 2, ainda voltado para a trama
principal sobre o desaparecimento das crianças, é possível ver Mikkel sair da caverna e se
descobrir em 1986. A grande dúvida se instala: como ele viajou no tempo?
A chegada de Mikkel em 1986 é o ponto de partida do episódio 3. O gancho do capítulo
anterior é retomado diretamente com uma propaganda de uma barra de chocolate em uma TV
de tubo, assistida por Mikkel ao entrar na sala de sua casa. O menino é surpreendido pela reação
de Jana Nielsen, sua avó, desolada pelo sumiço do filho Mads. Ele se assusta e foge. Quanto ao
cliffhanger da vez, assim como no primeiro episódio, dois ganchos são estabelecidos para o
público ao final do capítulo: um diz respeito às duas temporalidades – Mikkel e Ulrich estão na
caverna de Winden e, ainda que ocupem tempos diferentes, Ulrich ouve Mikkel pedindo
socorro, o que sugere que a linha temporal é uma só, tudo acontece ao mesmo tempo (Figura
30); o segundo gancho mostra o mesmo cientista da TV que Erik assistia e diversos relógios à
sua volta. É H.G. Tannhaus e ele está mexendo em algo que uma máquina do tempo.
174

Figura 30: Mikkel (em 1986) e Ulrich (em 2019) saem da caverna

Fonte: Dark, Episódio 3, Netflix.com

O quarto episódio não faz qualquer retomada dos ganchos passados; a trama de Mikkel
só é retomada no capítulo 5. Quanto aos cliffhangers, desta vez há três: 1) Elizabeth retorna
para casa com a ajuda de Noah, que pede que ela entregue à Charlotte um relógio de bolso; 2)
Yasin Friese é interceptado ao caminhar sozinho pela floresta para chegar ao colégio por uma
figura encapuzada que diz ter sido enviada por Noah; 3) O Estranho/Andarilho que tem
passeado por Winden invade o quarto de Jonas enquanto ele dorme e escreve “siga o sinal” no
mapa que Jonas encontrou no ateliê de seu pai.
Alguns ganchos apresentados até então na história são retomados a partir do capítulo 5,
como a narrativa de Mikkel em 1986 e a confirmação do desaparecimento de Yasin. Dentre os
ganchos propostos no episódio estão a interação entre Noah e Bartosz, inacessível à audiência
durante todo o restante da temporada, e o encontro entre o Estranho/Andarilho e o cientista
H.G. Tannhaus, visto que o primeiro deseja “falar sobre o tempo”. Nesse episódio também há
uma indução a respeito do suicídio de Michael. Jonas descobre que seu pai é Mikkel e, por meio
de sua carta, entende que o pai nunca soube a que tempo pertencia.
O episódio 6 não retoma ganchos do capítulo anterior, e sim um deixado no episódio 4
– a anotação do mapa de Jonas feita pelo Estranho/Andarilho. Assim, vemos Jonas encontrar o
“sinal” nas cavernas, um fio de lã vermelha, e viajar no tempo para 1986, quando encontra sua
mãe, Hannah, com 15 anos. Posteriormente, esse é um dos ganchos deixados pela narrativa: o
que Jonas encontrará no passado? Ele será capaz de voltar? Outro cliffhanger apresentado é a
175

descoberta de que o corpo desconhecido encontrado no fim do primeiro episódio é Mads


Nielsen, irmão de Ulrich, que sumira em 1986. A resolução dessa linha narrativa faz com que
a audiência saiba que é possível ir e voltar no tempo, mas por que razão o corpo de Mads é
encontrado em 2019? E o que são as marcas em seus olhos e os tímpanos estourados?
Embora o início do capítulo 7 mostre uma criança desconhecida e induz ser Helge, após
a vinheta, a viagem de Jonas é retomada, assim como a investigação de Ulrich para entender
como o corpo do irmão Mads parou em 2019. Dessa vez, a narrativa aumenta a tensão e utiliza
mais de dois ganchos para manter a audiência e a atenção do espectador: Ulrich persegue Helge
na caverna (tudo leva a crer que ele viajará no tempo junto do idoso), Jonas retorna ao presente
e decide queimar a carta do pai (aparentemente dando fim à narrativa temporal dos Kahnwald),
o corpo de Yasin está sendo levado a algum lugar na floresta de Winden (mas não sabemos em
que temporalidade) e Noah lava o chão do bunker coberto de sangue e escreve datas na parede,
inaugurando uma terceira linha temporal, a de 1953.
Como anunciado no capítulo anterior, o episódio 8 começa em 1953, visto que figurino,
carros e cenários condizem que uma época bem anterior a 1986 ou 2019. Após a vinheta, a
narrativa retoma o encontro entre o Estranho/Andarilho e o relojoeiro, do capítulo 5, além da
perseguição de Ulrich a Helge idoso. Quando Ulrich se descobre em 1953, ele caça Helge ainda
criança, o agride e prende no bunker, sendo esse o primeiro cliffhanger do episódio. Há a
aparição de novos personagens, com destaque para Claudia Tiedemann, que está diante do
mural de fotos que dá início à série, e a descoberta de que o Estranho/Andarilho é do futuro e
que Tannhaus construiu uma espécie de máquina do tempo.
No episódio 9, uma vez que o clímax das tramas narrativas está próximo de chegar ao
seu auge, as temporalidades da série são colocadas em ordem cronológica, retomando grande
parte dos ganchos deixados anteriormente. A comunicação do tempo em forma de letreiro volta
a ser usada, determinando os períodos de 1953, 1986 e 2019, e aparece diante da porta que abre
a fenda temporal nas cavernas de Winden. Em 1953, há o desaparecimento de Helge enquanto
Ulrich é acusado pelo seu sequestro e pelo assassinato das duas crianças encontradas no canteiro
de obras da usina nuclear. Também é possível ver que Noah conserva a mesma idade em 1953,
enquanto conversa com a mãe de Helge. Quando Helge criança desperta no bunker, a série
prova que Ulrich não mudou a linha do tempo. Ulrich, então, é preso e impedido de regressar
para 2019. Em 1986, Ulrich adolescente é liberado da cadeia, a cadela Gretchen de 1953
reaparece para Claudia, Helge adulto foge do interrogatório de Egon Tiedemann, Hannah vê
Aleksander escondendo pertences na floresta e Helge e Noah são vistos construindo o bunker
azul e a cadeira elétrica, dizendo que aquela é uma máquina do tempo. Em 2019, Katharina
176

confronta Hannah pelo caso com Ulrich, Hannah chantageia Aleksander e Regina entra no
quarto do Estranho/Andarilho e se assusta. Por fim, Bartosz se reencontra com Noah e aceita a
proposta dele, o Estranho/Andarilho invade o caminhão com os barris radioativos e Tannhaus
recebe Claudia, que pede para que ele construa uma máquina que consertará a linha do tempo.
O episódio final retoma “o dia do desaparecimento de Mikkel”, poucas horas antes do
ocorrido, inscrição que também é apontada por meio de um letreiro visual. Todos os ganchos
apresentados até então também são abordados e fazem ponte para os cliffhangers do final da
temporada, os que devem apresentar maior impacto para criar expectativa suficiente que faça a
audiência retornar após uma lacuna temporal maior, até o lançamento da segunda temporada.
Podemos destacar Ulrich preso em 1953 como um assassino de crianças, a dúvida sobre como
Helge retorna à 1953 após ser transportado para o bunker em 1986 ainda criança, o que acontece
com Winden e seus moradores após o Estranho/Andarilho abrir o buraco de minhoca em 2019
e para onde foi Jonas, que futuro é esse em que ele se vê preso (Figura 31).

Figura 31: Jonas chega a um futuro pós-apocalíptico

Fonte: Dark, Episódio 10, Netflix.com

Assim como apresentado nas análises de Sense8 e 3%, o uso do gancho se torna
importante para a Netflix manter a audiência praticando o binge-watching e também para
aqueles que não “maratonam” continuem a narrativa após o intervalo que desejarem. Embora
não existam mais ganchos de tensão menor, visto que não há intervalos comerciais que forcem
a interrupção da fruição, o uso de cliffhangers, de ganchos de tensão maior, são posicionados
177

em Dark sempre nos dez minutos finais de cada episódio, para aguçar a curiosidade e adiar o
prazer do espectador, assim como para incentivar o uso da função post-play para os
maratonistas. Por se tratar de mais uma narrativa considerada complexa, a série costuma usar
mais do que apenas um forte gancho para amarrar todas as linhas narrativas. Também é possível
ver que a retomada de ganchos é bastante usada, mas nem sempre de forma direta ou imediata
– isto é, o próximo episódio não inicia exatamente na mesma cena que o capítulo anterior foi
encerrado ou o gancho pode ser retomado depois de dois ou mais capítulos, forçando o formato
serial da narrativa. Por fim, conforme Van Ede (2015), o uso de elipses perde parte de seu
sentido nas séries lançadas em binge-publishing e feitas para serem consumidas de uma só vez.
Em Dark, datas ou outras informações sobre tempo são inseridas de forma objetiva em parte
dos episódios e são necessárias para que o espectador se situe na narrativa. Como todos os
episódios seguem a dinâmica de representarem um dia na vida dos personagens, a necessidade
de preenchimento de buracos temporais na narrativa é desnecessária. A passagem de um dia
para o outro é feita, de forma quase inconsciente, de um episódio para o outro – e como a ideia
é a assistência em binge-watching, não é preciso mostrar o dia amanhecendo ou a madrugada.

4.4.6 Recapitulações em Dark

Utilizadas para ativar a memória do público sobre detalhes da narrativa e para acomodar
novos espectadores que não acompanham a série por completo ou com tanto afinco, as
recapitulações costumam dar sentido aos ganchos e ajudam a explicar questões colocadas pela
narração erotética, os pontos de virada e as resoluções propostas. A seguir, a tabela apresenta a
identificação de cada tipo de recapitulação na primeira temporada de Dark.

Tabela 12: Tipos de recapitulações em Dark


Recapitulações paratextuais Recapitulações diegéticas
No
Episódios Episódio de Sugestões Voice-
capítulo Vinheta Diálogos Flashback
recapitulação visuais over
anterior
1 X X X
2 X X X
3 X X X
4 X X X X
5 X X X X
6 X X X
7 X X X X
8 X X X
9 X X X
10 X X X
178

Dentre as recapitulações paratextuais, a única existente é a vinheta. Considerada em sua


concepção pelos autores como uma recapitulação, a vinheta de Dark é inserida em todo episódio
após uma breve introdução, interrompendo o fluxo narrativo, e é formada essencialmente por
imagens dos dez episódios da série. No entanto, sua apresentação não é como, por exemplo, a
vinheta de Friends, uma sucessão de cenas dos personagens, destacando cada ator por vez. Em
Dark, a vinheta utiliza imagens caleidoscópicas para causar ilusões ópticas no espectador. Cada
imagem é multiplicada por três e jogada na tela; devido à concepção do caleidoscópio, essas
imagens geram novas composições simétricas únicas (e até desconfortáveis) para a audiência
(Figura 32).
No primeiro episódio, não é possível reconhecer qualquer uma das imagens da vinheta,
pois elas são adicionadas pouco a pouco na narrativa. Em sequência, observam-se imagens da
poeira que flutua pela floresta de Winden, de uma das entradas da caverna, de Claudia
Tiedemann segurando uma arma num futuro pós-apocalíptico, do rosto de Mikkel, das mãos de
Noah em 1953 (e uma aliança em sua mão), do saguão do Waldhotel vazio, de Ines fazendo um
curativo nas mãos de Mikkel em 1986, dos galhos da floresta, dos olhos de Regina Tiedemann
e as estradas escuras da cidade, de uma figura encapuzada arrastando um corpo pela floresta,
de Claudia entrando na caverna em 1986, de duas armas, de Charlotte entrando no bunker, do
ponto de ônibus de Winden em 1986, da moeda de 1986 encontrada nos corpos, olhos, de
Regina tocando o balcão empoeirado do Waldhotel, da usina nuclear, relógios, os pés de Ulrich
em uma cela em 1986, uma fita-cassete rodando, relógios, as mãos ensanguentadas de Ulrich
após seu ataque a Helge em 1953, as luminárias do sistema solar no quarto de Mikkel em 2019,
a autópsia de um pássaro, o caminhar do Estranho/Andarilho, olhos castanhos, Jonas olhando
seu mapa das cavernas, Ulrich levantando o pano que cobra o corpo de Mads no necrotério, a
tatuagem nas costas de Noah, o Estranho/Andarilho do lado de fora do caminhão onde estão
guardados os barris radioativos da usina e o semáforo na estrada de Winden, enquanto raios
caem sobre a floresta e as luzes da cidade mudam três vezes de cor.
179

Figura 32: Frames da vinheta de Dark

Fonte: Dark, Netflix.com

Outro ponto a ser destacado da vinheta é que sua concepção caleidoscópica remete ainda
aos três tempos diegéticos. Mas é importante lembrar que a Netflix adicionou um recurso que
possibilita que o espectador “pule” a abertura da série, uma escolha popular para aqueles que
estão praticando o binge-watching e não precisam ver a mesma vinheta a cada episódio,
interrompendo o fluxo narrativo. Em contrapartida, no caso de Dark, o interessante de sua
vinheta é que só é possível reconhecer todas as imagens quando se assiste à série por completo,
o que pode aguçar a atenção dos fãs da narrativa em busca de pontas ainda soltas.
Sobre as recapitulações diegéticas, as mais populares em Dark são as sugestões visuais,
recurso dependente de um olhar mais atencioso do espectador para fazer as ligações necessárias,
mas há também algumas recapitulações realizadas por meio de diálogos e de flashbacks. Já a
técnica de voice-over só é utilizada pelo narrador onisciente e tem o objetivo de introduzir
conceitos a respeito do tempo. A primeira utilização do voice-over acontece logo na introdução
do episódio 1, narração já explicitada no item 3.4.3 desta dissertação. O narrador fala que a
diferenciação entre temporalidades é uma ilusão e que o ontem, o hoje e o amanhã estão
conectados. Junto da narração, as primeiras imagens da série se sobrepõem: um bunker, armas,
máscaras, bombas e fotos aleatórias dos personagens da série. A técnica retorna na introdução
do episódio 4, em que fala sobre buracos negros como a boca do inferno e novamente sobre a
ideia de que passado, presente e futuro podem acontecer ao mesmo tempo. Enquanto isso,
180

imagens da cadeira elétrica no bunker, da triquetra, da Tábua Esmeralda, de esculturas feitas


com pinhas, das costas tatuadas de Noah, do rosto do Estranho/Andarilho e do recorte de jornal
sobre a notícia do desaparecimento de Mikkel se alternam. Depois, no episódio 9, os rostos de
todos os personagens da série, nos três tempos, são mostrados enquanto a técnica do voice-over
reflete sobre a existência de Deus e do ser humano, sua missão, seu propósito.
As recapitulações diegéticas feitas por meio de diálogos são bem menos utilizadas do
que as sugestões visuais. Por duas vezes, Charlotte Doppler repassa aos funcionários da
delegacia qual é o status atual das investigações sobre os desaparecimentos, recapitulando ações
ocorridas. Por outras duas ocasiões, notícias de rádio também recapitulam o tempo de
desaparecimento das crianças. Os diálogos entre policiais e legistas a respeito dos corpos de
Erik, Mads e Yasin e dos pássaros e ovelhas mortos também são recapitulações interessantes e
fazem com que o espectador entenda as consequências das viagens no tempo em todas as
temporalidades. No episódio 6, ao desconfiar do próprio pai, Ulrich o interroga e repete
informações já mostradas sobre o desaparecimento de Mads. A curiosidade de Egon Tiedemann
sobre satanismo também é citada em três momentos diferentes, com Jonas em 1986, com Ulrich
em 1986 e com o mesmo Ulrich em 1953. No episódio 10, quando Egon prende Ulrich em 1953
pelo sequestro de Helge ainda criança, Ulrich reconhece o policial como o delegado que o
perseguia na juventude e repete o refrão da música que ouvia em seu quarto no ano de 1953,
quando Tiedemann já idoso o confronta sobre o sumiço de seu irmão Mads – é a canção Pleasure
to kill, da banda Kreator: “My only game is to take many lives. The more, the better I feel”.
Após repetir o refrão, Ulrich diz ao policial: “posso dizer que não gostará dela”.
A respeito das sugestões visuais (Figura 33), Dark abusa desse recurso para despertar a
atenção do espectador sem precisar repetir, capítulo após capítulo, a coerência e a ligação entre
os acontecimentos nas três diegeses apresentadas. Em todos os episódios, há objetos e locais
que são repetidos frequentemente, como imagens da floresta de Winden e da entrada da caverna,
a Tábua Esmeralda em quadros, desenhos e na tatuagem de Noah, a triquetra, o recorte de jornal
sobre o desaparecimento de Mikkel, os cartazes do desaparecimento de Erik e de Mikkel, as
torres da usina nuclear, desenhos do modelo Einstein-Rosen, a barra de chocolate Raider, a
expressão “sem futuro” em uma pichação no asfalto da usina e no quarto e na jaqueta de Ulrich
Nielsen, objetos do bunker azul em 1986 (urso panda, esculturas de pinha, cadeira elétrica),
representações de buracos negros, a porta do bunker e a porta de ferro que divide as fendas
temporais, o capuz usado tanto por Jonas (no presente, em amarelo, e no futuro, em preto) e por
Helge, a foto de Ulrich e Mads em 1986, entre outras. Outro tipo de recapitulação visual
181

realizada pela série acontece no episódio 5, quando são colocadas lado a lado, com a tela
dividida, os rostos dos personagens nas diferentes temporalidades.

Figura 33: Recapitulações diegéticas visuais em Dark

Fonte: Dark, Netflix.com

Como a diegese se dá nas três temporalidades, não podemos dizer que as linhas
narrativas de 1953 e 1986 são flashbacks. No caso de Dark, o flashback apontado a seguir é o
retorno ao passado praticado pelos personagens com a função de memória. No episódio 5, ao
ser abandonada por Ulrich em 2019, Hannah lembra quando, em 1986, fez uma falsa acusação
contra Ulrich sobre ele ter estuprado Katharina, com o objetivo de separá-los. Esse flashback
evocado serve para mostrar a verdadeira face de Hannah. O início do capítulo seguinte mostra
Regina Tiedemann acordando de um pesadelo em que, ainda adolescente, fora amarrada a uma
árvore da floresta à noite. Mais tarde no mesmo episódio, descobre-se que o que parecia ser um
sonho de Regina é, na verdade, um flashback, o que explica seu desprezo por Katharina e Ulrich
Nielsen. No mesmo episódio 6, o flashback evocado é usado novamente, agora por Ulrich. Ao
repetir sonoramente o diálogo que teve mais cedo com a mãe sobre a juventude de Mads, Ulrich
vai até o necrotério e percebe no corpo desconhecido achado na floresta traz uma cicatriz em
seu queixo – ele se dá conta que aquele é Mads. No episódio 7, da mesma forma que Regina
lembrou-se do passado, Helge idoso desperta de um flashback e se recorda de quando acordou,
ainda criança, no bunker de 1986. Em seguida, ele diz: “eu me lembro, eu me lembro de tudo”.
182

Ulrich também relembra um diálogo do primeiro episódio com Mikkel, em que ele dizia que “a
pergunta não é como [eu fiz a mágica], mas quando”. Já no fim do episódio 8, após H.G.
Tannhaus receber do Estranho/Andarilho uma máquina do tempo, ele o expulsa e encontra outra
versão da mesma máquina. Então, ele tem um flashback e relembra quando, em 1953, encontrou
um aparelho estranho no bolso do casaco de um homem que passou por sua loja – é o celular
de Ulrich e a máquina do tempo só funciona com a interferência do dispositivo.
Em conclusão, Dark privilegia o uso de recapitulações diegéticas visuais para acomodar
novos espectadores e não irritar os que praticam binge-watching. Apesar de ser uma estratégia
que parece ser mais interessante para aqueles que “maratonam”, pois não há o uso exaustivo de
diálogos repetidos ou de flashbacks óbvios para explicar as ligações da história, as imagens
utilizadas de maneira frequente são bastante marcantes e também ganham novos ângulos e
olhares a cada aparição. O voice-over, por sua vez, só tem valor para jogar reflexões sobre o
tempo e sobre, talvez, algumas das ações dos personagens que estão envolvidos nas viagens do
tempo. Por se tratar de uma narrativa complexa e que se dá em três temporalidades simultâneas,
se estivesse na TV aberta ou na distribuição tradicional semanal do broadcasting, Dark
dificilmente seria uma série de compreensão rápida ou precisaria, sem dúvida, inserir
recapitulações paratextuais como “no capítulo anterior” para que o espectador relembrasse
todas as ações nas três temporalidades ou necessitaria de mais recapitulações diegéticas de
diálogo ou flashbacks para deixar a narrativa mais clara a cada semana. Nesse sentido, sua
escolha pelas sugestões visuais apela para os mais aficionados ou que desejam a fruição em
maratona.
183

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa partiu do problema indicado na Introdução, que era investigar se a forma
de distribuição audiovisual da Netflix poderia alterar a construção das ficções seriadas
contemporâneas quanto à sua estrutura narrativa. Para isso, dedicou-se a entender a evolução
da televisão e suas transformações após a adoção de variadas tecnologias, em especial, o
streaming, identificou recursos narrativos comuns à estrutura das ficções seriadas televisivas e
contextualizou o caso da Netflix no cenário audiovisual. Por fim, por meio da análise de
conteúdo como proposta metodológica, analisou três séries Originais Netflix, de três países
distintos, com o objetivo de mostrar como se apresentam os recursos narrativos diante do binge-
publishing, modelo de distribuição da Netflix em que o serviço lança todas as suas produções
originais de uma só vez, possibilitando a assistência em maratona (ou binge-watching) de
temporadas completas.
Ao propor uma nova forma de distribuição de ficções seriadas próprias, a Netflix rompe
com as ideias de fluxo televisivo e de programação, práticas características e determinantes do
conceito de televisão construído, fazendo com que o público tenha a possibilidade de escolha a
que deseja assistir, quando e de que maneira deseja assistir. Com o binge-publishing, além de
disponibilizar temporadas completas de suas produções originais, a Netflix acaba com as
interrupções comerciais que dividem episódios em blocos e que também separam
temporalmente os episódios de uma temporada. Se, no modelo tradicional televisivo, essas
interrupções servem como forma de organização e também de pausa para absorção e reflexão
sobre o conteúdo, no modelo streaming da Netflix, as interrupções que permanecem são apenas
aquelas que dividem temporadas, possibilitando que o público assista aos episódios em
sequência e sem pausas, o que pode promover um envolvimento mais profundo da audiência
com a narrativa apresentada.
Uma vez que a Netflix abole as interrupções comerciais, esta pesquisa debruçou-se
sobre as questões: o binge-publishing faz com que aconteçam alterações nas estruturas
narrativas das produções originais do serviço? E, em caso positivo, quais seriam essas
alterações?
Assim, a partir do estudo de recursos narrativos, ou que incidem sobre a narrativa das
ficções seriadas feitas para e pelas emissoras/estúdios de TV, como tempo, espaço, narração,
formatos episódico e serial, ganchos e recapitulações, esta dissertação analisou três séries
Originais Netflix: Sense8, 3% e Dark. Como proposta metodológica, a análise de conteúdo foi
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fundamental para a seleção do corpus (séries Originais Netflix, produzidas nos anos de 2015,
2016 e 2017, de países diferentes, de mesmo gênero) e também para a categorização dos
elementos a serem analisados. Os recursos selecionados para a análise foram: narração
erotética, formato episódico-serial, concepção espaço-temporal, multiplicidade de tramas,
ganchos e recapitulações.
Após as análises das três séries, podemos indicar algumas considerações a respeito de
alterações na estrutura narrativa das ficções contemporâneas lançadas em sistema binge-
publishing. Dentre os seis recursos analisados, os que apresentam alterações são os ganchos e
as recapitulações. No caso dos ganchos, recurso utilizado para manter o suspense e a
curiosidade da audiência durante as interrupções comerciais e pausas temporais, a Netflix
remodela sua aplicação. Se nas narrativas seriadas lançadas na TV havia a inserção de ganchos
de menor tensão a cada bloco comercial e de cliffhangers ao final de cada episódio, nas séries
Originais Netflix, por sua vez, não são inseridos ganchos de menor tensão, pois a narrativa não
permite interrupções, e há a utilização de mais de um cliffhanger nos dez minutos finais de cada
episódio, fazendo com que o usuário da plataforma se sinta inclinado a assistir a um novo
capítulo da série em formato maratona.
Outra alteração identificada a respeito dos ganchos diz respeito às elipses. O recurso só
é utilizado pela série 3%, mas menos como preenchimento de buracos temporais na trama e
mais como forma de simbolizar a longa duração das provas ou o estado emocional dos
personagens. Podemos concluir que, assim como afirmado por Van Ede (2015), as elipses
perdem grande parte de sua função nessas produções, pois tanto a distribuição de uma só vez
quanto o consumo em maratona fazem com que o tempo se transforme em uma espécie de
borrão, um acontecimento seguido do outro, sem buracos temporais. Ao mesmo tempo, o tempo
diegético nas três séries parece comprimido e, portanto, não há necessidade de elipses.
No caso das recapitulações, a alteração pode ser tratada de duas maneiras. Em primeiro
lugar, como a Netflix lança os episódios de uma só vez e presume que seu conteúdo seja
assistido em maratona, a estrutura narrativa recorre menos às recapitulações para acionar a
memória do público, visto que ele assiste aos episódios em sequência e se lembra do que
“acabou de ver”. Dessa forma, o único tipo de recapitulação paratextual utilizado pela Netflix
é a vinheta, que pode ou não reunir imagens ou cenas da série em questão. Episódios de
recapitulação ou resumos como “no capítulo anterior” não são realizados. Em segundo lugar, o
uso das recapitulações pode ser analisado de forma evolutiva, pois vem sendo alterado
conforme o método de distribuição da Netflix se consolida entre seus produtores/roteiristas. Em
2015, ano de lançamento de Sense8, o sistema binge-publishing tinha apenas dois anos e estava
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sendo assimilado pelos usuários da plataforma. Assim, em relação às recapitulações diegéticas,


Sense8 ainda aposta na inserção de diálogos que remetam a acontecimentos passados da
narrativa, prática comum nas narrativas feitas pela e para a TV, mas que pode afugentar os fãs
mais assíduos, aqueles que sabem de cor tudo que aconteceu até então na produção. Em Dark,
lançada em 2017, vê-se que as recapitulações diegéticas de diálogo são bem menos recorrentes
e mais sutis e curtas; ao mesmo tempo, a série abusa das sugestões visuais, recurso que exige
muito mais atenção e sensibilidade da audiência.
A análise de conteúdo das três séries também ajudou para que esta pesquisa encontrasse
pistas (não respostas ou conclusões fixas) a respeito de um modelo narrativo característico da
Netflix, uma estrutura narrativa única que seria repetida em todos os conteúdos produzidos para
a plataforma em diferentes países. Não é possível responder se há um modelo a ser seguido,
pois essa resposta exige uma análise sobre um número muito maior de séries, visto que o
catálogo de produções Originais Netflix se aproxima de 200 títulos. Porém, podemos identificar
que há algumas características em comum nas três séries: 1) os dez minutos finais de todo
episódio são essenciais para segurar a audiência, fazendo com que ela assista ao próximo
episódio em sequência, por isso, as produções utilizam mais de um cliffhanger por episódio e
os inserem nesses minutos finais; 2) flashbacks (recapitulação diegética) não são usados para
repetir cenas ou diálogos que já aconteceram, apenas para inserir novas ideias à narrativa; 3)
vê-se uma evolução das estruturas narrativas quanto à complexidade, exigindo cada vez mais
atenção do público para descobrir todos os detalhes e pistas diegéticas deixadas em cada
episódio – Sense8, por exemplo, descreve e recapitula diversos temas e ocorridos dos episódios,
enquanto Dark dá poucas respostas claras à audiência e aposta em recapitulações mais sutis e
visuais; 4) o quarto capítulo das séries é determinante para o engajamento das audiências.
Sobre esse último ponto, retomamos a entrevista dada pela roteirista da série Original
Netflix One Day At a Time101. Segundo ela, a Netflix decide as renovações de seu catálogo
próprio de acordo com as visualizações até o quarto episódio da série. Ao observarmos as
primeiras temporadas de Sense8, 3% e Dark, o quarto episódio trabalha momentos importantes
para as narrativas: em Sense8, é o primeiro episódio em que todos se conectam ao cantar What’s
going on, da banda 4 Non Blonds; em 3%, o levante de Marco e de sua gangue produz o episódio
mais violento e impactante quanto à condição humana da série; em Dark, é o único capítulo de
estrutura episódica, possibilitando que usuários esporádicos acompanhem a narrativa, e aquele
em que se revela Noah.

101
https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/series/apos-apelo-da-imprensa-e-de-roteirista-comedia-one-day-time-e-
renovada-19707 Acesso em 20 dez. 2018
186

A investigação sobre possíveis alterações na estrutura narrativa das séries Originais


Netflix pode ser um possível caminho para pesquisas futuras. O estudo da Netflix em si como
um caso paradigmático no cenário audiovisual possibilita pesquisas sobre o futuro da televisão
ou de produtos entendidos como televisivos, mas produzidos, distribuídos e veiculados por
outras mídias, caso da plataforma de streaming. Outro aspecto interessante que pode ser
investigado é a relação efetiva entre essas alterações na estrutura narrativa e sua consequência
direta no binge-watching por meio de entrevistas quantitativas e qualitativas com usuários da
plataforma e fãs de ficções seriadas. Também é possível abordar possíveis alterações na
narrativa seriada a partir do depoimento dos roteiristas nacionais e internacionais, de forma a
avaliar como o binge-publishing e até o binge-watching podem influenciar diretamente a prática
do roteiro. Por fim, como já apontado, outra questão que pode ser fruto de análise é a existência
de um modelo de estrutura narrativa característica da Netflix, um modelo que seja repetido e
sirva como ponto de partida para as produções originais do serviço.
187

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