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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS AMBIENTAIS

DISCIPLINA: ESTUDO E ANÁLISE DE PROCESSOS AMBIENTAIS


PROFESSORAS: DRA. HERMÍNIA Y. KANAMURA e DRA. SIMEY T. V. FISCH
ALUNA: HELOISA MARIA PAES DE SOUZA

PROCESSOS AMBIENTAIS ENVOLVIDOS NA ANÁLISE MORFOLÓGICA DAS


CIDADES MUÇULMANAS TRADICIONAIS E SUA RELAÇÃO COM O AMBIENTE
NATURAL ENTRE OS SÉCULOS VIII E XIII: UMA REVISÃO BIBLIOGÁFICA.

1. Introdução
O Islamismo é uma das três religiões monoteístas existentes no planeta. Sua origem remonta
ao século VII na Península Arábica, entretanto, os muçulmanos veem sua religião como uma
restauração do monoteísmo original praticado por Abraão, tendo Deus escolhido Muhammad para
ser o último mensageiro e profeta a ser enviado aos seres humanos.
Os muçulmanos não veem o Islã apenas como uma religião, mas como um modo de vida que
integra todos os campos existentes, incluindo a questão ambiental. No Islã, a integração dos seres
humanos com o meio ambiente é norteada pela doutrina de que os primeiros são “califas” de Deus na
Terra, isto é, são vice regentes ou mordomos responsáveis pela administração do capital natural do
planeta a fim de que possam ser utilizados pelas gerações futuras (AMERY, 2010). Percebe-se,
portanto, que o conceito de sustentabilidade já estava contido na doutrina islâmica desde seus
primórdios.
Nas últimas décadas, acompanhando os estudos sobre os efeitos da ação antrópica no
ambiente natural, vem aumentando o número de ambientalistas muçulmanos que afirmam ter o Islã
uma solução de paradigma para a questão ambiental, incluindo os problemas relativos à água (DIEN,
2010). Nos meios acadêmicos europeus e norte-americanos já se fala em uma eco-teologia, isto é, um
discurso ambiental global que conecta temas ecológicos com a ética islâmica (ISLAM, s/d), cujos
fundamentos repousam sobre o Alcorão e os registros dos ditos e feitos do Profeta Muhammad – a
Suna.
No rastro do eco-Islã e também por conta dos gravíssimos problemas ambientais enfrentados
nos países de maioria muçulmana, sobretudo no Oriente Médio e norte da África, estudiosos de
diversas áreas do conhecimento tem voltado seus interesses para o passado da civilização islâmica
numa tentativa de resgate de soluções éticas e técnicas para a sustentabilidade de um dos mais
problemáticos ecossistemas existentes: os urbanos, pois a maior parte da população desses países
vive em grandes cidades.

2. O Império Islâmico e o meio natural

Após a morte de Muhammad em 632, a religião islâmica e o Estado dela originado,


propagaram-se, cobrindo territórios de diferentes povos e culturas. Tal processo de expansão abarcou
extensa área, desde a Península Ibérica até partes da Índia e China, em um período compreendido
entre os séculos VII e XIII, denominado pelos cientistas sociais de Época de Ouro do Islã (AQUINO,
1989).
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São muitas as razões que explicam a formação de império tão vasto em um curto espaço de
tempo, pois a maior parte das terras conquistadas já havia sido integrada pouco mais de cem anos
após a morte de Muhammad (figura 1). Entre as razões podemos citar que os árabes eram uma força
organizada com habilidades e experiências militares, o fervor da convicção de que estavam
espalhando a verdadeira religião de Deus, o fato dos Impérios Bizantino e Sassânida estarem
enfraquecidos por causa de muitas guerras e de epidemias e o fato de, nas áreas dominadas,
manterem a segurança, a paz e impostos razoáveis, permitindo que cristãos e judeus continuam-se
praticando suas religiões e seus negócios (HOURANI, 2006).

Figura1:mapa da área de abrangência do Império Islâmico até o século VIII.


Fonte:http://historia7.wordpress.com/2009/05/19/civilizacao-muculmana

Nos territórios conquistados e anexados ao Império Islâmico estão inseridos boa parte dos
biomas com menor disponibilidade de água do planeta: os desertos do Saara e da Arábia, e o bioma
mediterrâneo (extremo norte africano e sul da Europa).
O bioma desértico pode ser definido como uma área que perde mais água por meio da
evapotranspiração do que ganha com a precipitação. Um lugar é considerado árido quando recebe
menos de 500 milímetros de precipitação no ano e os desertos do Saara e arábico recebem menos de
250 milímetros por ano (SILVEIRA, 2003). Outro fator que contribui para a existência dos desertos
é a irregularidade das chuvas e, devido à falta de umidade, há uma grande variação anual e diária da
temperatura (amplitude térmica). De acordo com Miller (2008) os desertos citados são classificados
como tropicais: têm pouquíssimas plantas (as existentes são do tipo xerófitas), animais com
qualidades próprias de adaptação (sendo o camelo o mais utilizado pelos seres humanos) e uma
superfície áspera, castigada pelo vento e coberta por areia e pedras, resultantes da erosão eólica.
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O bioma mediterrâneo representa uma área de transição e apresenta invernos amenos e


chuvosos, já os verões têm clima temperado e bastante seco (SILVEIRA, 2003). A vegetação é
esparsa e composta por arbustos e árvores com raízes longas e caules e troncos grossos adaptados à
falta de água.
A adaptação dos seres humanos aos biomas áridos foi possível mediante a adoção de práticas
que tinham como principais objetivos coibir a desidratação e o desequilíbrio térmico por conta da
evaporação insensível, pois o clima é tão quente e seco que o suor evapora extremamente rápido, não
dando chances de que se perceba a transpiração (MORAN, 1994). Os povos que vivem e viveram
nesses biomas desenvolveram estratégias que vão desde o tipo de vestuário que minimiza a ação dos
raios solares até a construção de cidades, cujas edificações retardavam a entrada de ar quente,
seguindo certas técnicas que foram difundidas e aperfeiçoadas no Império Islâmico.

3. As cidades muçulmanas tradicionais entre os séculos VIII e XIII

Chamamos de cidades muçulmanas tradicionais àquelas adaptadas ou criadas pelos


muçulmanos durante a chamada Época de Ouro do Islã. Como foi mostrado no item anterior elas
foram construídas em biomas áridos de difícil adaptação. No que tange aos elementos arquitetônicos
sintetizaram com criatividade as tradições de várias culturas, tais como a árabe, a bizantina, a persa, a
indiana e a greco-romana (AQUINO, 1989).
Diversas são as origens dessas cidades: algumas já existiam e foram adaptadas à cultura da
sociedade islâmica, como Alepo e Damasco na Síria. Algumas tiveram sua origem em
acampamentos militares muçulmanos, tais como Basra e Kufa no Iraque e Fustat (Cairo) no Egito.
Outras surgiram espontaneamente partir de feiras esporádicas e há aquelas foram obras de
governantes, como Bagdá no Iraque.
As principais cidades muçulmanas foram e são, por motivos religiosos, Meca e Medina na
península arábica. A primeira recebe milhões de fiéis todos os anos durante o hajj (peregrinação) e
Medina, cidade que acolheu o Profeta durante a perseguição feita aos muçulmanos no início do Islã,
contem lugares sagrados também visitados pelos peregrinos. Além delas, outras cidades do mundo
muçulmano, ainda existentes nos dias atuais, são importantes centros religiosos, acadêmicos,
turísticos, econômicos e/ou políticos: Cairo, Bagdá, Fez, Tanger, Marrakesh, Túnis, Córdoba,
Sevilha, Granada, etc.
Depois da morte dos três primeiros califas do Império Islâmico houve o desaparecimento de
uma estrutura unitária de governo e o surgimento de vários Estados islâmicos.Os elementos que
deram continuidade ao mundo muçulmano foram a religião, a alta cultura e a economia praticada em
um conjunto de cidades cujas características são muitíssimo semelhantes (ABIKO, 1995 apud
GOITIA, 1992).
O assim chamado mundo muçulmano ligava duas bacias marítimas – a do mar Mediterrâneo
e do oceano Índico, em um constante movimento de exércitos, mercadores, artesãos, estudiosos,
peregrinos e também ideias, estilos e técnicas (HOURANI, 2006). As rotas que ligavam as cidades
eram internas, cortando montanhas e desertos, e marítimas, especialmente no que tange o comércio
internacional.
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4. As cidades muçulmanas tradicionais: o debate

A cidade muçulmana tradicional era o lugar de múltiplas atividades: os mercadores e


artesãos trabalhavam, os sábios estudavam e ensinavam, os governos mantinham suas cortes e
palácios, os juízes administravam a justiça, os aldeões e moradores do deserto vendiam seus produtos
e compravam o que precisavam (geralmente bens manufaturados), etc. Portanto, a cidade precisava
de uma estrutura adequada para tantas necessidades.
Mas, o que diferenciava a cidade muçulmana tradicional de outros modelos de cidades
existentes na história? Em primeiro lugar cabe dizer que a definição do que ela é e o que a identifica
mudou com o passar do tempo. Ao longo do século XX surgiram duas correntes de investigação
sobre o tema que promoveram um polêmico debate sobre sua definição e legitimidade (ABU-
LUGHOD, 1987). Tal debate atravessou o século passado, envolvendo estudiosos dos departamentos
de línguas e estudos orientais de diversas universidades europeias e norte-americanas.

4.1. Correntes de pensamento

A primeira corrente de pensamento destaca o papel do Islã no processo urbanístico e sua


influência na organização da cidade. Entre as múltiplas opiniões dos que advogam tal corrente, cabe
destacar as seguintes ideias:
 A base da estrutura das cidades muçulmanas é o islamismo. Ao redor da religião
desenvolvem-se todos os acontecimentos da cidade.
 A civilização muçulmana foi, antes de tudo, urbana. Desde o início da formação do
Império Islâmico os conquistadores sentiram a necessidade de se instalarem em
cidades, já existentes ou fundar outras (SHINAQ, 2001).

A segunda corrente nega o papel da religião islâmica na organização da cidade muçulmana.


Entre as ideias dos autores que compõe este segundo grupo, cabe destacar as seguintes:
 O Islã não previu qualquer organização urbana ou municipal como tiveram as cidades
romanas ou as incipientes cidades cristãs a partir dos séculos XI e XII. As cidades
muçulmanas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, careciam de um estatuto jurídico e
de edifícios administrativos, por conseguinte, não eram entidades políticas, posto que a
lei religiosa nada dispôs acerca da regulamentação das construções, de seu
embelezamento e características, assim como do traçado, da largura das ruas e dos seus
edifícios.
 A família, em todas as civilizações, tem um papel muito importante na organização
espacial das cidades e seus tecidos urbanos, sobretudo nos bairros residenciais.
Contudo, na cidade muçulmana tradicional, constitui o eixo principal da mesma, devido
à sensibilidade com a qual o Islã trata a família, assim como ao conceito de privacidade
e a separação dos gêneros e quais os domínios do homem e da mulher (SHINAQ,
2001).
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De acordo com Abu-Lughod (1987) e Hoteit (1993) as correntes apresentam um sério


problema: construíram um modelo geral de cidade muçulmana tradicional tendo como base um único
exemplo (quando muito dois).
Na década de 1970 Hourani e Stern passam a discutir como foi formada a cidade
muçulmana tradicional e as características essenciais que as diferem das cidades europeias.
Entretanto, os autores apenas consolidaram o arquétipo já instituído no passado (HOTEIT, 1993),
especialmente no que concerne à constituição física das cidades.

4.2. A xaria e a normatização das cidades muçulmanas tradicionais

Os estudos recentes sobre as cidades muçulmanas tradicionais tem procurado entendê-las


como resultado da presença marcante do islamismo no cotidiano da época, mais precisamente da
presença da xaria, entendida como o código de leis do Islã, que não prevê separação entre religião e
direito.
A xaria tem como objetivo regular todas as ações humanas em conformidade com os
mandamentos estabelecidos no Alcorão e na Suna. Nos séculos imediatamente posteriores ao
advento do Islã, costumava ser o único sistema jurídico que regulava a vida de muçulmanos e não
muçulmanos nas áreas do Império Islâmico. É importante destacar que a xaria agiu como elemento
chave na integração dos povos e culturas que fizeram parte do referido império e pouco variou
naquele território tão vasto e multicultural.
A xaria, na visão islâmica, é uma espécie de catálogo indicativo de como satisfazer e servir
a Deus, tanto nas obrigações de culto como nas relações com as criaturas por Ele criadas
(LAMAND, 1994), compreendendo aqui tanto os bióticos quanto os abióticos.
Sendo não somente um conjunto de princípios legais como também morais, a xaria
estabelece a seguinte divisão das ações humanas (DEEN,s/d): wajib (ações obrigatórias), manditib
(virtudes devocionais e éticas), mubah (ações permissíveis), makrull (ações condenadas do ponto de
vista moral, mas não no legal) e haram (ações proibidas).
Com o crescimento e a expansão territorial do Islã, a xaria foi se tornando mais sofisticada.
Ao Alcorão e à Suna foram adicionados mais elementos: a ijma (consenso dos juristas eruditos), a
qiyas (raciocínio por analogia), ijitihad (interpretação da lei segundo o contexto em que deve ser
aplicada) urf wa adat (costumes e práticas locais, que não contradizem os princípios corânicos).
A partir do século VIII surgem as escolas do direito islâmico que, apesar de divergirem em
questões metodológicas e em alguns pontos doutrinários, convergem nos princípios fundamentais da
religião. As principais escolas sunitas (ramo do islamismo que congrega mais de 80% do conjunto
dos muçulmanos), existentes até nossos dias, são a hanafita, a malikita, a hambalita (considerada a
mais conservadora e que derivou no wahabismo, em vigor na Arábia Saudita) e a shafiíta
(considerada a mais liberal) (LAMAND, 1994).
Apesar da existência de diferentes escolas de jurisprudência islâmica, entre elas há mais
semelhanças que diferenças na normatização do ambiente construído. Vejamos os pontos
convergentes:
 Quanto às responsabilidades da autoridade governante da cidade: o governante deve
estabelecer a primeira mesquita em um ponto central, depois o palácio do governo, a
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tesouraria, o mercado, as principais vias da cidade e, também, os muros defensivos com


suas portas de acesso.
 Quanto às responsabilidades dos chefes das famílias: eles devem organizar suas
famílias em locais próximos uns dos outros e o projeto das casas.
 Quanto às responsabilidades do muhtasib: cabe a ele, como oficial responsável pela
moral pública, também a regularização dos mercados, vias públicas, além das
construções da população em geral.

Além dos pontos citados, que regulamentavam o macro, a nível micro (bairro e vizinhança)
a lei previa o Qawa’id fiqhiyya, definida como uma regra geral estabelecida pelos juristas e que era
aplicada aos particulares, também definida como uma regra abrangente, que se aplicava aos vários
níveis de uma determinada situação ou problema (AL-HUSSAINI, 2005; HAKIM, 2010).
Os cinco princípios mais importantes do Qawa’id e que influenciaram no ambiente
construído são:
 La darar wala dirar: não prejudicar os outros e não sofrer prejuízo (princípio norteador
de toda a lei).
 Al-umur bi-maqasidiha: os assuntos são determinados pelas suas intenções.
 Al-yaqin la yazul bi-l-shakk: a segurança não é removida pela dúvida.
 Al-mashaqqa tajlib al-taysir: a dificuldade vem com o alívio (no sentido de socorro,
ajuda).
 Al-ada muhakkima: o costume tem o peso da lei (contanto que não contradiga os
princípios revelados no Alcorão e na Suna).

A lei também destaca cinco direitos do proprietário de um ambiente construído, que são:
 Liberdade para agir, contanto que não seja causado dano às propriedades adjacentes de
terceiros – a chamada ibaha – liberdade que é limitada pelo que é proibido (haram).
 Direito de precedência, isto é, o respeito às construções feitas anteriormente. Se uma
pessoa construir uma estrutura adjacente a uma já existente, deverá ter cuidado com a
questão da privacidade de seu vizinho.
 A pessoa que primeiro constrói tem o direito de controlar sobre as realizações do
próximo construtor.
 Um vizinho tem o direito ao abut, isto é, construir ao lado de uma parede já existente,
contanto que não cause danos à parede vizinha ou à estrutura da construção. Já que as
casas nas cidades muçulmanas foram construídas ao redor de um pátio, que provê luz e
ar, tal direito facilitou o ajuntamento das construções.
 O acesso a um edifício é feito através de um espaço chamado fina (ou harim),
aproximadamente 1 a 1,5 metros de largura ao redor da parede exterior do edifício,
sendo que o espaço também se estende verticalmente, contanto que não atrapalhe o
tráfico de cargas, animais e pessoas (HAKIM, 2010).

Desta forma, se pode colher da revelação corânica e da Suna os princípios e critérios para a
boa convivência entre os habitantes desse ecossistema urbano específico (cidades muçulmanas
tradicionais) e sua sustentabilidade, entendida do ponto de vista islâmico como a realização
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simultânea e equilibrada do bem-estar do ser humano, da justiça social e do equilíbrio ecológico,


tendo a máxima atribuída ao Profeta Muhammad “não deve haver nenhum dano ou imposição de
danos”, o principal guia norteador (ABUMOGHLI, 1992).

5. As cidades muçulmanas tradicionais como um ecossistema urbano específico

Os ecossistemas urbanos fazem parte do conjunto maior dos ecossistemas terrestres. Sua
principal característica é a forte presença da atividade humana transformando o ambiente natural que,
neste caso, não é perfeitamente adequado à vivência humana por causa da grande aridez. Além da
xaria, um conjunto de técnicas, procedimentos e inventos foram postos em práticas pelos habitantes
desse ecossistema, em particular para que pudessem alcançar um nível de conforto ambiental
adequado às suas necessidades.
Existem diversos ecossistemas urbanos por causa de suas particularidades históricas,
socioeconômicas e culturais, sendo que o diferencial que distingue as cidades muçulmanas
tradicionais dos demais ecossistemas é a semelhança morfológica resultante da xaria.

6. Elementos morfológicos das cidades muçulmanas tradicionais

O estudo da morfologia urbana propõe a compreensão da formação, evolução e


transformação do espaço urbano, seus elementos e suas relações, possibilitando a identificação de
problemas e de como intervir da melhor maneira nas áreas já construídas e no desenho das novas.
O estudo morfológico das cidades ocupa-se da divisão do meio urbano em partes
(elementos morfológicos) e da articulação destes entre si e com o conjunto que definem (LAMAS,
2004), isto é, os lugares que constituem o espaço urbano.
Os elementos morfológicos das cidades ocidentais são o solo, o lote, o traçado da rua,
monumentos, edifícios, quarteirões, a calçada (passeio público), a praça e a vegetação, além do
mobiliário urbano, que são todos os objetos e equipamentos colocados em espaço público ou
disponibilizados para o domínio público e, em regra, são destinados ao bem estar e satisfação dos
seres humanos: lixeiras, postes de iluminação e sinalização, hidrantes, bancos, abrigos, etc. As
cidades muçulmanas tradicionais, por sua vez, apresentam alguns desses elementos ou os apresentam
com características diferentes.
Elementos morfológicos como praças e calçadas (passeio público) são inexistentes nas
cidades muçulmanas tradicionais. A principal função da praça, que é reunir possíveis assembleias de
cidadãos, era proporcionada pelo grande espaço interior das principais mesquitas das cidades que,
além da grande área para abrigar os fiéis nas orações coletivas das sextas-feiras, possuíam um pátio
interno aberto, de tamanho considerável, geralmente revestido em mármore.
Quanto aos edifícios públicos que constituíam o núcleo central das cidades (medina), além
das mesquitas, havia o mercado (suq) e os banhos públicos (hammam). Quanto aos edifícios de
caráter privado havia palácios e casas, sendo que estas eram agrupadas em bairros, divididos por
critérios étnicos, religiosos e ambientais, pois, neste último caso, certas atividades econômicas como
o abate de animais, a curtição e pintura do couro, por serem agressivas ao ambiente (provocam
poluição do ar e sonora), de acordo com a xaria, eram realizadas nos pontos mais distantes, próximos
aos muros que circundavam e protegiam a cidade. O cemitério, também normatizado pela xaria, era
construído fora dos muros e voltado para o leste, em direção à Meca.
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Edifícios e ruas tinham uma forma compacta nas cidades muçulmanas tradicionais. Os
objetivos principais eram criar grandes espaços de sombra e evitar que o ar quente e as tempestades
de areia entrassem nos mesmos. Para que pudessem ter algum conforto em meio ao ambiente árido
certas diretrizes foram estabelecidas (GOOD, s/d apud BELKACEM, 1982; EL-SHORBAGY, s/d):
 Localização e orientação das estruturas para tirar partido do sol, vento e água.
 Utilização de materiais tradicionais para proporcionar isolamento térmico natural:
terracota, tijolo, madeira e cal.
 Espaços interiores das casas organizados para minimizar a troca de calor com o
ambiente externo.
 Pátios internos abertos onde eram plantadas árvores frutíferas e plantas ornamentais,
além da instalação de fonte d’água com o objetivo de refrescar o ar quente nos verões e
trazer certa umidade em todas as estações.
 Casas de construção introvertida, pois o pátio é o elemento central da casa e os
cômodos são dispostos ao seu redor.
 Presença de torres (malqaf) nos telhados ou terraços das casas para a captação do vento
(ar frio) e eliminação/expulsão do ar quente.

A vegetação, um dos elementos morfológicos principais das áreas urbanas, no caso em


estudo, não era encontrada com tanta frequência nas ruas das cidades, mas no interior dos edifícios
particulares.
As ruas são um caso a parte nas cidades muçulmanas tradicionais. Ao contrário de como é
entendida no Ocidente, como um meio de passagem público, naquelas cidades, dependendo de onde
estavam localizadas, poderiam adquirir um caráter semi privado, como uma espécie de extensão das
casas, servindo como passagem apenas para os moradores daquele local. , como uma espécie de
extensão das casas.

6.1. O waqf

Ao falarmos nos elementos morfológicos que constituíram as cidades muçulmanas


tradicionais não podemos deixar de falar no waqf, uma instituição islâmica regulamentada pela xaria
responsável pela maior parte do mobiliário urbano das cidades.
O waqf é uma doação voluntária, irrevogável e permanente que pode ser feita em dinheiro
ou espécie, cujo destinatário é Deus e tem como objetivo trazer benefícios à humanidade. O waqf
apresenta-se em duas formas: bens econômicos e ativos sócias. No primeiro caso pode ser a doação
de algum negócio cuja renda será utilizada para o financiamento sustentável da comunidade (ou parte
dela) e o desenvolvimento de projetos e programas sociais que, como no segundo caso, inclui a
construção de mesquitas, madrassas (escolas), poços artesianos, instalações de água e saneamento,
plantio de árvores, irrigação, etc.

7. A questão da água: captação e abastecimento


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Como foi dito, os biomas de deserto e mediterrâneo apresentam escassez de água. Esta é
encontrada em aquíferos subterrâneos, lençóis subterrâneos, cursos de água intermitentes, oásis
(trechos dos lençóis subterrâneos que atingem a superfície) e em alguns rios perenes, como o Nilo, o
Tigre e o Eufrates (SILVERIRA, 2003).
Uma das soluções encontradas para a captação da água que seria utilizada nas cidades e no
campo (irrigação) foi a construção de qanats, invenção persa apropriada pelos muçulmanos e
divulgada por estes em toda a área do Império Islâmico. Mais tarde, depois da conquista espanhola
sobre a América, o mesmo princípio foi aplicado nas colônias.
Os qanats, mistura de poço com aqueduto, são túneis horizontais de baixa declividade,
escavados nas montanhas para captar a água infiltrada. Os túneis têm aberturas na superfície que
variam entre 0,60 a 1,20 m e a abertura que vai da superfície ao túnel varia entre 1,20 a 2,10 m. Tais
túneis são curtos, tendo em média de 5 quilômetros de extensão. Entretanto, há grandes qanats que se
estendem por 40 e 50 quilômetros (VILLIERS, 2002; BERNABÉ, 2006). A baixa declividade serve
para que a água possa fluir até seu destino somente pela gravidade. Como o sistema ocorre alguns
metros abaixo da superfície, a água é protegida da evaporação provocada pelo sol.

8. Considerações finais

As cidades muçulmanas tradicionais eram economias pré-industriais de ciclos fechados, ou


seja, eram tanto local de produção quanto de consumo, mas não eram sistemas fechados, pois
recebiam a produção excedente da zona rural (alimentos e matérias-primas), camponeses em épocas
de conflitos e, no caso dos grandes centros urbanos, importavam e exportavam produtos
manufaturados (geralmente fabricados em pequenas unidades de produção) e alimentícios a partir de
rotas que cruzavam o mundo islâmico e além (ABUMOGHLI, 1992; HOURANI, 2006).
A doutrina ambiental islâmica, juntamente com o tipo de economia praticada, contribuíram
para o caráter sustentável dessas cidades, pois certas imposições estabelecidas pela xaria restringiram
seu crescimento econômico.

9. Referências bibliográficas:

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