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Universidade Federal Fluminense


Programa de Monitoria 2010
História da América II
Monitora: Mariana de Castro Barbieri
Tradução: Mariana de Castro Barbieri

Diálogo entre Atahualpa e Frenando VII nos Campos Elísios

O diálogo foi escrito em Charcas nos primeiros meses de


1809 e geralmente é atribuído ao patriota rioplatense
Bernardo de Monteagudo, que então estudava na
Universidade. Circulou de mão em mão nos meios
universitários e políticos e contribuiu com muita eficácia à
difusão das ideias que impulsionariam as revoluções de
Chuquisaca e La Paz. Descreve o encontro entre a sombra de
Atahualpa, o último Inca, e a de Fernando VII1.

Nos cerca de trezentos anos em que as delícias desfruto destes Campos Elísios, nunca deixa a
memória de meus trágicos sucessos de atormentar-me algum tanto. Mas até mim se encaminha um
homem que, segundo signos, parece ser espanhol, e quero, pois que chega recentemente, chama-lo
para perguntar-lhe o que em minha terra se passa.

I. - Homem, quem quer que sejas, diz-me quem és.

F. - Fernando sou, de Bourbon, sétimo deste nome, de todos os soberanos o mais triste e
desgraçado.

I. - Por que desgraçado?

F. - Porque somente por meus pueblos fui monarca proclamado da Espanha e das Índias,
quando o mais infame, o mais vil de todos os homens viventes, isto é, o ambicioso Napoleão, o
usurpador Bonaparte, com enganos me arrancou do doce seio e regaço de minha pátria e de meu
Reino, e imputando-me delitos todos falsos e fictícios, me conduziu prisioneiro até o centro da
França. Ali permaneci até que soube um dia que minha Espanha, já vencida e derrotada pelas fortes,
formidáveis e quase insuperáveis legiões da França, minha inimiga, estava por render-se, e
compadecida minha dor, uma vida me tirou, tão penosa e tão amarga. Fechei, pois, os olhos ao
mundo, somente com o ínfimo consolo de que os ingleses, alemães e o mundo todo, queiram
obrigar aquele monstro a desistir de seus projetos e a restituir à minha Casa a usurpada e iníqua
posse que agora ele tem na península.

I. - Suas desgraças, terno jovem, me causam lástima, tanto mais quando por própria
experiência sei que é imensa a dor que padece aquele que, como eu, se vê injustamente privado de
um cetro e de uma coroa.

F. - Pois quem a ti também te arrebatou, como a mim, sua coroa? A ambição?

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O Diálogo e esta pequena introdução informativa foram traduzidos a partir de: ROMERO, José Luis. Pensamiento
Politico de la Emancipacion (1790-1825). Caracas, Biblioteca Ayacucho. 1977.
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I. - O miserável Atahualpa, o infeliz soberano do Império do Peru, Fernando, a teu lado está.
Pois que se percebeste como injusta e iníqua a conquista da Espanha por Bonaparte, não lamentes
nem te admires de que de usurpada e furtiva eu igualmente qualifique a dominação que empreendeu
na América o espanhol.

F. - Ainda que conhecer-te, Inca, me letifique e me agrade, não sei com que fundamento a
dizer-me te avanças que, se o injusto Bonaparte minha península domina, na América faz, sem
dúvida, o mesmo o espanhol.

I. - Não é certo, diz-me, Ferdinando, que sendo a base e único firme sustentáculo de uma
legião e bem fundada soberania a livre, espontânea e deliberada vontade dos pueblos na cessão de
seus direitos, aquele que, tendo atropelado este sagrado princípio, conseguisse subjugar uma nação
e ascender ao trono sem haver nele subido por este sagrado degrau, seria, ao invés de Rei, um tirano
a quem as nações darão sempre o epíteto e renome de usurpador? Sem dúvida que deves confessa-lo
porque és a poderosa comprovação da notória injustiça do Imperador dos franceses.

F. - Eu o confesso, e ainda acrescento que não há vivente algum sobre a face da Terra que não
mire Bonaparte com desprezo e com horror quando saiba que ele arrebatou o cetro de Castela a um
monarca descendente de infinitos reis. Veria-se, por conseguinte, que os habitantes da península
unicamente lhe rendem uma obediência forçada, efeito do medo e do temor que inspiraram as
inauditas tiranias de suas tropas sanguinárias.

I. - Compare, pois, tua sorte com a minha; a conquista de tua península com a do Novo
Mundo; e a conduta do francês na Espanha com a do espanhol na América. Consulta, digo-te, as
histórias sobre as cenas que foram vistas nos peruano e mexicano solos, e verás manifestamente que
dizem que no momento em que deu Colombo notícia do descobrimento da fertilidade da nova terra
e de suas riquezas, começou a ferver a cobiça no coração avaro dos estúpidos espanhóis, que
atravessando imensos mares, se transmigram às Índias em tumulto. Aqui sabem que os americanos
são uns homens tímidos e singelos, mas são advertidos de que, ainda que incultos e selvagens, são
muito poucos os misantrópicos, e que os demais vivem reunidos em sociedade; que possuem seus
soberanos a quem obedecem com amor, e que cumprem com pontualidade suas ordens e decretos.
Sabem, enfim, que esses monarcas descendem, igualmente a tu, de infinitos reis, e que sob seu
domínio desfrutam perfeitamente seus vassalos de uma paz inalterável; mas como que com olhos
embotados do venenoso licor da ambição, creem coroados de ouro e prata os cumes das montanhas,
ou ao menos, depositados no interior delas intermináveis tesouros, como as próprias cabanas dos
rústicos e inocentes índios lhes parecem repletas de preciosos metais, e querem apoderar-se de tudo
e conseguir tudo; procuram arruinar aquela desgraçada gente e destruir seus monarcas. A razão nos
dita – dizem eles – que isso é um atentado, e a religião nos ensina que é um sacrilégio, mas não há
outro meio para mitigar nossa implacável cobiça. Sufoquemos, pois, a humanidade, a religião e a
razão, e verifiquemos nossos desígnios. E nesse momento começam a chover por toda parte a
desolação, o terror e a morte, bárbaras em tudo, hábeis unicamente em apressar e aumentar a
crueldade e a tirania, arruinar do mesmo modo as humildes choupanas e os suntuosos palácios. Por
toda a parte correm rios imensos de sangue inocente; em toda a parte se encontram milhares de
cadáveres, desgraçadas vítimas da ferocidade espanhola.
Diante de tão horrível espetáculo soluça a virtude, geme a natureza e estremece o mundo
inteiro. Somente o espanhol, mais bárbaro que as sanguinárias e venenosas feras da Líbia, segue
assolando os campos, desolando províncias, derribando tronos, arrastando monarcas e degolando
imperadores. As inesgotáveis riquezas das quais despojou os soberanos e seus vassalos ainda não
bastavam para aplacar sua insaciável sede. Vão, pois, a buscar mais tesouros no interior de fendas e
penhascos, arrastam tribos inteiras de índios, as obrigam e mandam que minem as serras e que
adentrem as mais remotas e escondidas serras. Obediente, o mísero indígena começa seu trabalho,
mas ao cabo de algumas horas já não alcança o esmorecente vigor de seu débil e cansado braço o
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quebrar e romper a dureza das pedras. Como que desmaiando se senta para refazer suas forças. O
adverte o espanhol e ao mesmo tempo embainha seu fio cortante no peito do inocente indígena, que
envolto em seu próprio sangue e em suas continuadas lágrimas, exala a alma de seu corpo. Outros
conseguem, é certo, penetrar as tenebrosas entranhas da terra, mas naquele obscuro e lúgubre caos,
destituídos de todo auxílio, privados da luz do sol e ainda do ínfimo consolo de gemer ao lado de
seus parentes, em breve experimentam sorte semelhante à do primeiro. Os que lograram sair
daquele abismo, castigados de fome vão buscar algum alimento, mas nada encontram porque tudo
foi furtado. Correm para beber nas fontes e encontram as águas tingidas com o sangue de seus
irmãos. A inocente mãe chora amargamente a lastimosa morte de seu filho querido, até que sua dor
mesma corta o fio de sua vida. O angustiado pai adverte-se de que a morte é seu único recurso,
apenas nela vê o feliz término de suas fadigas, e homicida de si mesmo, morre pendente de uma
árvore por meio de uma corda, dando fim, com isso, à sua vida e à sua fama. Todos, enfim, sofrem
tantas desgraças e calamidades que juntamente podem dizer “traditi sumus ut conteramur
iugulemur et pereamus; an ut magni in servos et famulos venundemur el tole rabile malum” (Fomos
entregues para sermos quebrantados, degolados e mortos; acaso para sermos vendidos a bom preço
como servos e escravos).
Veja aí, Fernando, a viva imagem da conduta de teus espanhóis; veja, digo-te, se é com
fundamento que lhes percebo como injustos, cruéis e usurpadores, quando do mesmo modo que o
francês na Espanha, se entronizaram eles na América contra a vontade dos pueblos; quando do
mesmo modo que aqueles, roubaram o cetro à soberanos descendentes de vários reis e
juramentados, do mesmo modo que tu, unanimemente por seus pueblos; quando, finalmente, a
homenagem que lhes é rendida é ainda mais forçada e violenta que aquela que tributa a Espanha ao
francês Imperador. Convençam-se de que os espanhóis foram uns sacrílegos atentadores dos
sagrados e invioláveis direitos da vida, da liberdade do homem. Reconheça que, como invejosos e
irados de que a natureza tenha prodigalizado tantas riquezas à sua América, havendo-as negado ao
solo hispânico, eles a pisotearam por toda a parte. Confesse, enfim, que o trono vosso a respeito das
Américas estava cimentado sobre a injustiça e era o próprio assento da iniquidade.

F. - É loucura, Atahualpa, negar que foram vistas atrocidades inauditas durante a conquista da
América. Mas deves observar que o mesmo fizeram os assírios, persas, romanos, gregos e todas as
nações do mundo quando subjugar quiseram, ou conquistar, reinos. Deves saber que a defesa
própria e a conservação da vida eram o justo motivo que os obrigava a executar os horríveis
estragos os quais haveis referido.

I. - Se os assírios, romanos e demais homens foram também desumanos, além de não induzir
bondade a um ato iníquo a execução de outro semelhante, jamais verás entre os assírios um
soberano que, como Hautemestu, tenha sido estendido sobre ardente e devoradora brasa de fogo,
pelo somente vil interesse de que manifestasse suas riquezas. Não verás entre os romanos capitão
algum como aquele Huapetei, arrancados os olhos, cortados os braços e serrado o crânio. Nem verás
que os gregos fizeram alguma vez como os espanhóis, arrancando um filho dos ternos e inocentes
braços da mãe, lançando-lhe contra o chão e arremessando-lhe para que servisse de sustento a seus
famintos e carniceiros cães. Entre todas as nações, ultimamente não acharás uma que haja
executado crueldades e tiranias como os espanhóis, porque estas são tantas que fazem horizonte à
minha vista e é impossível enumerá-las. Quanto à própria ofensa que alegas para desculpá-las,
unicamente respondo que um ladrão que assalta a casa de um rico não poderá, surpreendido em seu
crime, alegar defesa própria para justificar seu homicídio, se despedaçou o possuidor das riquezas,
ainda depois de que este tenha levantado uma arma para fazer o mesmo com ele.

F. - Seja o que for, o que tu deves saber é que Alexandre VI cedeu e doou as Américas a meus
progenitores e a seus herdeiros.

I - Venero o Papa como a cabeça universal da Igreja, mas não posso menos que dizer que
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deve ter sido uma extravagância muito consumada quando cedeu e doou tão francamente o que
tendo donos próprios, em nenhum caso poderia ser dele, especialmente quando Jesus Cristo, de
quem receberam os Pontífices toda sua autoridade e a quem devem ter por modelo em todas as suas
operações, lhes dita que não tem poder algum sobre os monarcas da terra, ou que ao menos não
convém exercê-lo, quando diz: Meu reino não é desse mundo; e quando a seus apóstolos ensina e
lhes encarrega de venerar aos reis e de pagar tributos a César. Me admira, digo-te, que Alexandre
VI tenha cometido semelhante atentado, quando São Bernardo lhe disse: “quid falcem vestram in
alienam messem extendis? Si apostolis interdicitur dominatus quomodo tu tibi audes usurpare?
Non tu ille de quo propheta: el erit omnis terra posessio eius”. (Por que estendeis vossa foice à
seara alheia? Se está vedada a paixão de domínio aos apóstolos, como ousas tu pedi-la para ti? Tu
não és aquele de quem fala o profeta: “e toda a terra te pertence”).
Mas os grandes crimes de idolatria e sacrifício humano que cometiam os indígenas, me dirás,
foram os que obrigaram o príncipe da Igreja a ceder aqueles reinos a um monarca católico que
extirpasse tão bárbaros costumes. Mas eu direi que muitas das nações do antigo mundo foram
algumas vezes idólatras e bárbaras, e entretanto não se dá exemplo de que por tais delitos tenham
destruído os Pontífices as suas monarquias, porque eles sempre se reconheceram juízes
incompetentes para isso e confessaram que a punição de tais crimes está reservada ao Altíssimo.
Direi que os delitos dos indígenas poderiam fazer nascer jurisdição sempre que os últimos,
predicados ou induzidos à verdade do cristianismo e convencidos da barbárie de seus ritos e
costumes, houvessem permanecido idólatras e bárbaros sequazes de sua antiga superstição, mas
ceder as Américas quando os espanhóis, longe de dissipar as trevas da idolatria com a luz do
Evangelho se haviam, antes, feito odiosos com seu mau exemplo e com os muitos crimes
abomináveis de que os fizeram espectadores, sem dúvida de que foi um ato de cuja legitimidade
jamais convencer-me poderei. Por último, se um Witisa, um Rodrigo, um Henrique, epílogo de
abominações e monstros de seus séculos, pra os quais quaisquer crimes eram menos desculpáveis e
mais enormes por sua maior cultura, e sobre os quais, por haverem entrado na Igreja pelas portas do
batismo, teriam mais jurisdição os pontífices, nunca foram castigados com a terrível pena de serem
despojados de seus cetros, muito menos deveriam ter sido destruídos os indígenas, pois se eram
idólatras, tinham a desculpa de não terem tido notícia da religião cristã; se eram antropófagos
poderiam evadir-se com o antiquado costume que ocultava deles sua barbárie.

F. - Quando o vigário de Cristo, movido por um santo e ardente zelo em propagar e estender o
rebanho do senhor, cedeu e doou aos Reis Católicos as imensas terras da América, certo é, Inca, que
ainda não se havia pregado o Evangelho, mas no presente tens florescente nesta parte do globo o
mais puro cristianismo, tens elevados uma multidão de santos altares sobre as ruínas da idolatria,
convertido um novo mundo, e em uma palavra, estabelecida a verdadeira religião mediante os
suores e trabalhos dos espanhóis, que por este único motivo podem chamar-se, à presença do
mundo inteiro, legítimos possuidores da América.

I. - O que? Quereis acaso alegar a religião que introduziste em meu reino como título o
bastante para possui-lo impunemente? Não, Fernando, não; evites confundir este santo nome com o
que foi puramente injustiça dos espanhóis. É certo que devem os habitantes da América a religião
que professam, mas não por isso devem ser estes dominados por aqueles, porque de outra sorte seria
preciso dizer que Xavier, que conduziu o nome de Cristo até as remotas províncias do Indo e do
Ganges, e todos os apóstolos que pregaram o Evangelho, deveriam ter sido coroados em um e
noutro hemisférios. Diríamos que o Cristianismo leva consigo o impedimento insuperável de
converter um soberano infiel, o qual dificilmente abraçaria a cruz do Salvador tendo em vista que
por isso haveria de descer de seu trono e dar fim a seu reinado.

F. - Pois se isto não te convence, seja persuadido de que pelo menos a possessão de 300 anos,
unida ao juramente de fidelidade e vassalagem que prestaram todos os americanos, que, agradecidos
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pelas grandes felicidades de que lhes enchemos, vivem prazerosamente sujeitos aos reis da
Espanha.

I. - O espírito da liberdade, nascido com o homem livre por natureza, tem sido senhor de si
mesmo desde que viu a luz do mundo. Suas forças e direitos quanto a ela tem sido sempre
imprescritíveis, nunca findáveis ou perecedores; se obrigado a viver preso em sociedade, fez o
terrível sacrifício de renunciar ao direito de dispor de suas ações e de sujeitar-se aos preceitos e
estatutos de um monarca, não perdeu [o direito] de reclamar seu primitivo estado, muito menos
quando o despotismo, a violência e a coação o tem obrigado a obedecer a uma autoridade a qual
detesta e a um senhor a quem fundamentalmente odeia, porque nunca se lhe oculta que, se deu a ele
jurisdição sobre si mesmo, ajustando-se a cumprir seus (ilegível) e obedecer seus preceitos, foi
precisamente sob a tácita e justa condição de que aquele olhasse por sua felicidade. Por
conseguinte, desde o mesmo instante em que um monarca, piloto adormecido no regaço do ócio ou
do interesse, nada faz pelo bem de seus vassalos, faltando ele com seus deveres, estão rompidos
também os vínculos de sujeição e dependência de seus pueblos. Este é o sentir de todo homem justo
e a opinião dos verdadeiros sábios.

F. - Mas disto o que concluis?

I. - Concluo que nem o juramento de vassalagem que prestaram ao espanhol os americanos,


nem a possessão de trezentos anos que logrou aquele na América, são título suficiente para devê-los
dominar. Não o juramento, porque não devendo ter sido mais livre do que aquele em que sacrifica o
homem a sua liberdade mesma, não induziu no americano obrigação alguma o violento e cativo
[juramento] que prestou ao espanhol se o terror que inspirou nele a ferocidade daquele, o medo de
ser vítimas sangrentas de seu despotismo, a terrível situação de ser destituídos de armas para se
defender, o ver depositada a força somente nos espanhóis e neles somente reunida a autoridade, é o
cativo princípio de onde nasce seu compromisso. Caso contrário, responda: de onde resulta a
nulidade da vassalagem que prestaram os habitantes da península ao francês Imperador? Sem
dúvida da força que lhes infere a impossibilidade de resistir.
Mas ainda quando este juramento fosse livre e espontâneo, não foi, como tenho dito, sob a
tácita e indispensável condição de que os monarcas espanhóis os mirassem com amor e felicitassem
sua pátria. Pois bem. Onde está essa felicidade? Na ignorância que fomentaram na América? Na
insistência tenaz e no vigilante empenho de impedir à Minerva o trânsito do oceano e de sujeitá-la
na margem do Tâmisa e do Sena? Em tê-los gemendo sob o insuportável peso da miséria, em meio
mesmo às riquezas e tesouros que lhes oferece a amada pátria? Em havê-los destituído de todo
emprego? Em haver privado seu comércio e impedido suas manufaturas? No orgulho e despotismo
com que são tratados pelo espanhol mais grosseiro? Em havê-los ultimamente abatido e degradado
até o nível as bestas? Sim, nisto consiste a felicidade que lhes prodigou a Espanha e nisto também a
nulidade de seus votos. Se da dominação de trezentos anos queres valer-se para justificar a
usurpação, deves confessar primeiro que a nação espanhola cometeu um terrível atentado quando
depois de oitocentos anos em que se sujeitou aos mouros, conseguiu sacudir seu jugo. Deves
responder a mesma coisa à Espanha, França e Inglaterra, que depois de haverem sofrido uma
dilatada série de anos de dominação por parte dos romanos, restabeleceram ao fim sua liberdade e
mereceram os elogios de toda a sua posteridade.
Queres que quando a Espanha, por manifesto castigo do braço vingador do Onipotente, sofre
em sua ruína e destruição a mesma sorte que ela fez experimentarem as Américas, estas últimas
permaneçam e estejam sujeitas ainda assim a um Fernando que fala comigo agora na região dos
mortos? Queres que quando o céu lhes abre a porta para a felicidade, sejam tão insensíveis que
permitam o jugo de outra nação? Não é certo que quando a convulsão universal da metrópole e o
terrível contágio da entrega chegaram sem dúvida à América, devem aspirar a viver independentes?

F. - Convencido de tuas razões, o quanto haveis dito confesso, e em sua virtude, se ainda
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vivesse, eu mesmo os moveria à liberdade e à independência do que a viver sujeitos a uma nação
estrangeira.

I. - E se transmigrar-me pudesse desde este lugar ao meu reino, sem dúvida os exortaria com a
seguinte proclamação:
Habitantes do Peru: se desnaturalizados e insensíveis tens mirado até hoje, com semblante
tranquilo e sereno, a desolação e os infortúnios de vossa desgraçada pátria, recordeis agora do
penoso letargo em que haveis estado submersos, desapareça a penosa e funesta noite da usurpação e
amanheça o claro e luminoso dia da liberdade. Quebranteis as terríveis cadeias da escravidão e
comeceis a desfrutar dos deliciosos encantos da independência. Sim, paisanos, vossa causa é justa,
equitativos vossos desígnios. Reuni-vos pois, corrais a principiar a grande obra de viver
independentes. Não nos detenha, Fernando, porque não tens ou não terás em breve mais vida que
seu nome, nem mais existência que aquela que publicam a fraude e a mentira. Revestis-vos de
entusiamo e publicando vossa liberdade, sereis todos ditosos e o espetáculo de uma felicidade será
invejável no universo inteiro.

F. - E pelo prazer que tive de conhecer-lhe e falar-lhe, vou agora ver se encontro a algum de
meus antepassados para avisá-los de minha sorte e do que na Espanha se passa.

I. - Ide, pois, Fernando, adeus. Que eu também a Moctezuma e a outros reis da América dar-
lhes quero a feliz nova de que seus vassalos estão já a ponto de dizer que viva a liberdade.

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