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BIBLIOTECA DAS MOÇAS

VOLUME 28

FLORENCE L. BARCLAY

*
O ROSÁRIO

COMPANHIA EDITORA NACIONAL SÃO PAULO

EDIÇÃO DIGITAL GEORGETTE HEYER-FANCLUB

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APRESENTAÇÃO DA DUQUESA

A paz serena de uma tarde inglesa pairava sobre os jardins e o parque


d’Overdene; os raios do sol poente, deslisando pelo gramado, prometiam de-
licioso frescor sob a ramaria dos grandes cedros.
O velho edifício, sólido e maciço, sem ornatos, abrigava, no entanto,
vasta moradia cheia de lodo o conforto possível e cuja fealdade arquitetônica
era compensada pelo manto de hera e vinha brava que lhe trepava em festões
ao longo da fachada, recobrindo-a toda de verdura alegrada aqui e ali por flo-
res níveas e cachos vermelhos.
Um terraço se estendia em frente da casa, terminando de um lado numa
estufa e, de outro, num viveiro. Largos degraus de pedra dispostos em inter-
valos regulares levavam devagarinho do terraço ao macio tapete dos relvados.
Além, era o parque, amplo e sombrio, com os seus soutos de árvores seculares
onde erravam veados o gamos,- através da folhagem distinguia-se o rio,
serpenteando nurna trémula fita de praia entre o capim raso, semeado de
botões de ouro e margarídinhas.
O quadrante solar marcava quatro horas.
Os pássaros se calavam e nenhum trinada se mesclava ao farfalhar a
ramaria, O silêncio chegava a ser acabrunhador.
O único ponto de cor brilhante, na paisagem toda do verdes suaves, era
constituído por um soberbo papagaio, debaixo dos cedros. O ruido de
uma porta que se abria fez-se afinal ouvir e surgiu no terraço uma
singular figura de senhora idosa. Parou um instante no alio dos
degraus dirigindo-se em seguida para os lados do roseiral. A
duquesa de Meldrun se dispunha a ir colher as suas rosas; trazia na
cabeça um antigo chapéu de palha, género cogumelo, atado
debaixo do nobre queixo por fitas de veludo preto. Amplo casaco
de linho pardo sobre a saia de lã escocesa muito curta; sapatos
montanheses; tinha as mãos cobertas por luvas grossas e do braço
lhe pendia um cestinho rústico contendo enorme tesoura de jar-
dinagem.
Certa criatura de má língua dissera dela um dia: Se alguém
encontrasse Sua Graça voltando do jardim ou do galinheiro, certo
que lhe daria logo uma esmola. Mas se Sua Graça olhasse para esse
alguém, ele só teria uma coisa a fazer: atirar-se à lama para que os
sapalos ducais punissem o seu atrevimento.
A verdade é que a duquesa pisaria de bom grado quem quer
que lhe faltasse ao respeito, aceitando depois com bondade as suas
desculpas, mas conservando a moeda da «esmola» a fim de exibi-la

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quando contasse a anedota.
A duquesa vivia só, nunca sentindo desejo da companhia
permanente de ninguém nem necessidade dos ternos sorrisos e
bajulações de urna dama de companhia, A pálida filha, com quem
ela sistematicamente vivia ralhando, casara-se; o filho, que adorava
perdidamente e ao qual fazia todas as vontades, morrera de súbito,
precedendo o pai, Thomas, quinto duqua de Meldrun. Este também
tivera um fim repentino c absolutamente conforme aos seus gostos,
dizia a duquesa: no dia em que completava sessenta e dois anos,
em todo o esplendor do seu traje de caça, uniforme vermelho, cartola
e calções de veludo, o cavalo que ele forçava teimosamente a galgar um
obstáculo parou de repente e Thomas, duque de Meldrun, projetado de cabeça
para baixo no chão pedregoso não se levantou mais.
 inopinada cessação daquela vida tumultuosa e barulhenta modificou
completamente o meio em que vivia a duquesa. Obrigada até então a tolerar
os alegres companheiros do marido, só podia convidar os amigos mais
chegados aos quais podia explicar «Thomas» e que suportavam «Thomas»
com bom humor, por amizade a ela e pela satisfação de se hospedarem em
Overdene, Embora a duquesa tivesse a aparência de um diamante ainda bruto,
o mais puro sangue azul lhe corria nas veias e, não obstante a aspereza um
tanto abrupta das suas maneiras, era dotada de sentimentos delicados. Podia-
se ter a certeza de que ela diria ou faria o que convinha, precisamente, nos
momentos importantes.
A linguagem do defunto duque era abrupta e os seus modos de outras
eras; quando o depositaram no sepulcro da família, enfre os sarcófagos de
seus antepassados: «Pobre querido, tão diferente dêleg, — observou a
duquesa — é um alívio pensar que ele não está realmente aí.» Morto Thomas,
Sua Graça Jançou os olhos em derredor e começou a avaliar as possibilidades
de diversão que lhe oferecia Overdene. A princípio contentou-se em jardinar,
mandar construir um viveiro de pássaros, rodear-se de toda a sorte de nver, e
animais extraordinários sobre os quais despejava as reservas de ternura que
hão tinham achado escoadouro, sobretudo nos últimos anos.
Mas ao cabo de certo tempo sua natureza hospitaleira e o malicioso
prazer que achava nas fraquezas humanas junto a satisfação de fazer admirar
os suas terras, trouxeram a Overdene séries de convivas. Em breve
Overdene criou fama de uma abadia de Theléme onde se
encontravam prazeres variados a certeza de boa companhia, além
do deleite da hospedagem e do magnífico passadio.
Lá se passavam, no verão, dias deliciosos e, no inverno,
semanas muito alegres, tudo temperado cora o «molho picante» dos
remoques da duquesa. No intimo Sua Graça dividia suas séries em
três categorias: «Série misturada», «série simples amigos» e «série
selecta».
Precisamente uma série selecta estava era função naquela bela
tarde de junho, quando a dúqueza, depois de longa sesta, se
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preparava para a colheita das suas rosas.
Ao descer do terraço e ao abrir o pequeno gradil de ferro
conduzindo ao roseiral, Tommy, o papagaio escarlate, abriu um dos
olhos sonolentos mandando à dona o estalido de sonoro beijo; feito
isto, pôs-se a rir sozinho e readormeceu.
De todos os favoritos, Tomrny era o primeiro dos pirmeiros,
pois representava a única e exclusiva concessão feita pela duquesa
a um sentimento mórbido.
Depois do desaparecimento do duque, achava extremamente
deprimente ser sempre alvo de suaves de-íerências da parte de
amigos e servidores.
Se o mordomo tivesse podido resmungar ou o vigário deixar
cair algum adjetivo menos amável, a duquesa se teria alegrado;
mas, arranjadas corno estavam as coisas sentiu pesar sobre ela
intensa melancolia, até o momento em que leu o anúncio de urn pa-
pagaio premiado, garantido como notável falador e possuindo um
vocabulário de mais de quinhentas palavras.
A duquesa precipitou-se logo para Londres, foi à casa do vendedor,
ouviu o papagaio, comprou-o e incontinenti o transportou para Ovcrdene.
Na primeira noite a papagaio ficou emburrado no seu belo poleiro,
recusando a dizer uma só das quinhentas palavras que sabia; a duquesa passou
a noite no vestíbulo mudando sem cessar de lugar. Sentada, primeiro, junto ao
pássaro, depois num canto afastado, em seguida numa poltrona atrás de um
pa-ravento, a ler, de costas, fingindo não dar por ele ou então fitando nele os
olhos penetrantes.
Tommy estalava simplesmente a língua toda vez que ela saía dle urn
esconderijo e se o mordomo ou um lacaio atravessava o vestíbulo mandava-
lhe uma cascata de beijos, rindo após isto, como um ventriloquo, A duquesa,
desolada, tentou chamar a atenção do papagaio, repetindo algumas das frases
que lhe ouvira na loja, mas Tommy limitou-se a piscar o olho e levar o pé ao
bico.
Apesar de tudo a brilhante plumagem do papagaio a divertia e ela foi
deitar-se sem se arrepender da compra. Na manhã seguinte tornou-se evidente
a lodo o pessoal do castelo que uma boa noite de repouso restituirá a Tornmy
o uso da palavra. Quando a duquesa desceu, dez minutos antes de ressoar o
nongo, encontrou Tommy batendo as asas com fúria e gritando com voz
esganiçada; «Vamos, velha, apareça!»
E a duquesa tomou café naquele dia mais alegre do que jamais estivera
há muitos meses.

JANE CHAMPION

A única parenta que se supunha viver com a duquesa era sua sobrinha e

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ex-pupila, Jane Champion; na realidade esta convivência teórica resumia-se
na faculdade concedida à boa lane de se hospedar em Overdene ou Portland
Place quando quisesse e de demorar o tempo que lhe aprouvesse.
Por ocasião da morte do pai, já no íim da sua primeira mocidade, Jane
teria de boa mente tomado o lugarde filha junto à duquesa, mas a duquesa não
precisava de filha alguma, e uma filha com opiniões tão declaradas, vontade
tão decidida, daquele porte e rosto sem beleza, teria parecido à Sua Graça
uma aquisição assaz desastrosa. De maneira que foi dando a entender a Jane
que podia ir e vir a vontade, prolongar as suas estadas como lhe agradasse,
mas conservando-se ela no mesmo pé de igualdade que os outros convidados.
Isto significava inteira liberdade, sem nenhuma responsabilidade perante os
amigos da tia, preferindo a duquesa dirigir as suas séries segundo suas vistas
pessoais.
Jane Champion entrava agora nos trinta anos. Certa pessoa perspicaz a
descrevera um dia como uma bonita mulher sob um feio envólucro e até ali
nenhum homem tentara descobrir, debaixo do invólucro imperfeito, a mulher
na sua perfeição. Teria feito da terra um paraiso para um namorado cego, que,
não tendo olhos para as incorreções do seu rosto, tivesse podido apreciar
unicamente a mulher rara que havia nela, gosar da deliciosa tranquilidade que
teria sido o amor de semelhante criatura e conhecer a alegria sem par de
conquistá-la e desposá-la. Mas nenhum cego dotado de visão interior se
deparara nunca a Jane e dir-se-ia que o seu destino fora sempre ocupar
lugar secundário, mesmo em ocasiões ern que teria admiravelmente
preenchido o principal. Tinha sido dama de honra em casamentos
cujas noivas não possuíam, sob a superficialidade da sua beleza,
metade das qualidades necessárias a uma esposa, e das quais Jane era
tão abundantemente dotada.
Servira de madrinha aos filhos das amigas, ela, cuja maternidade
teria sido digna de admiração. Possuía magnífica voz, mas este dom
da natureza não era conhecido senão por limitado grupo de pessoas, e,
como acompanhava muito bem ao piano, solicitavam-lhe geralmente o
concurso para fazer dansar as outras.
Em. suma, toda a vida de Jane representara os segundos papéis,
desempenhando-os, aliás, de boa vontade. Não conhecera nunca a
alegria de ser a primeira no coração de um ser humano.
A morte da rnãe sobreviera quando, pequenina demais, não
pudera nem sequer conservar a lembrança dessa ternura materna que
se esforçava muita vez por imaginar sem nunca lhe ter sentido efeitos.
A criada de quarto de sua mãe, criatura fiel e delicada, fora despedida
pouco tempo depois da morte da patroa; mas achando-se por acaso,
uns doze anos mais tarde, nas vizinhanças, apresentara-se ao solar, na
esperença de que alguém da casa se lembrasse dela. Depois do chá, na
ausência da Fraulein e de miss Jibb, haviam conduzido
misteriosamente a boa mulher a sala de estudo para que visse miss Jane.
A boa mulher lá fora, o coração cheio da imagem da pequena que a
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cara patroa e ela haviam rodeado de tanto carinho, mas encontrou uma
criatura alta, feia e desengonçada, com maneiras de rapaz e um modo
intimidante de olhar os outros como se estivesse fazendo inventário da pessoa
com que falava. O resultado foi secar-se a fonte de reminiscências que a
excelente Sara havia despejado no seio da governante, reduzindo-a a olhar em
derredor com os olhos rasos d’água. Lembrava-se de ter escolhido o papel da
parede em companhia da pobre defunta, que rira , tanta e tanto quando a
pequenina Quisera pegar-lhe unia das rosas.
— Posso mostrar-lhe, miss, se isso lhe interessa, precisamente a flor
que a senhora queria pegar. Olhe, era aquela vermelha, ali. . .
Antes de terminada a visita de Sara, Jane soubera uma porção de coisas
insuspeitadas, entre outras que a mãe lhe beijava as mãozinhas.
- Ah, miss, fazia-o toda hora, dizendo que eram pétalas de rosas e
cobrindo-as de beijos.
Inteiramente deshabituada destas manifestações de afeto, Jane mirou as
mãos longas e morenas, pondo-se a rir, simplesmente porque tinha vergonha
do aperto que sentia na garganta e das lágrimas que lhe molhavam as
pálpebras abaixadas.
Sara despediu-se com a impressão de que miss Jane, ao crescer, se
tornara uma menina de coração pouco sensível. Mas Fraulein e Jibb nunca
souberam porque, a partir daquele dia, as mãos mal tratadas que lhes
causavam tormento, tornaram-s e de súbito irrepreensíveis; e na noite do seu
aniversário, sozinha e no escuro, a menina beijou debaixo das cobertas as
próprias mãos, procurando nelas a ternura dos lábios da mãe morta. Mais
tarde, quando se tornou senhora de si, seu primeiro cuidado foi pôr um
anúncio nos jornais para reaver Sara Mathews e tomá-la a seu serviço, com
um ordenado que em breve permitiu à digna mulher comprar uma casa para
renda. Jane pouco via o pai, que dificilmente lhe perdoara, primeiro ser
mulher quando seu desejo era de um menino, depois, sendo menina, ter
herdado em vez da formosura da mãe a fealdade dele. Os pais são frequen-
temente injustos, achando insuportáveis na prole atributos físicos s morais que
eles lhes transmitiram. ..
O herói da infância de Jane, o camarada da sua adolescência, fora
Deryck Brand, filho único de reitor da paróquia, menino dez anos mais velho
do que ela. Mesmo nesta afeição Jane nunca se sentira primeira no coração do
seu amigo; como estudante de medicina, passando em casa as férias, a mãe e
a sua profissão tomavam a dianteira à menina solitária, cuja dedicação o
comovia e cujo desenvolvimento intelectual e caráter firme o interessavam.
Mais tarde casou-se com uma encantadora moça, o oposto de Jane, mas
a amizade deles se manteve intacta, ganhando mesmo em profundeza, e, agora
que ele se adiantava rapidamente para o primeiro lugar da sua carreira, a
apreciação de seus trabalhos por Jane, a compreensão simpática de seus
esforços, lhe eram mais preciosos que a régia distinção com que recentemente
fora galardoado.
Jane Champion não tinha amigas íntimas entre as moças do seu meio;
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sua mocidade solitária desenvolvera nela uma franqueza para consigo e com
os outros, que lhe dificultava compreender e tolerar os artificios mundanos e
as fraquezas do próprio sexo. Mulheres a quem ela testemunhava particular
interesse, e eram numerosas, guardavam em sua presença uma atitude de
admiração reconhecido, que se transformava em silêncio prudente, se, na
ausência dela, punham Jane na berlinda.
Mas seus amigos homens eram muitos, sobretudo entre o grupo de
rapazes saídos há pouco da Universidade, dos quais fazia camaradas e que lhe
escreviam de suas aventuras e aborrecimentos como não o fariam às suas
próprias mães. Sabia perfeitamente que entre si só lhe chamavam «a velha
Jane», “a grande Jane», ou «a bela Jane», mas acreditava na inocência destas
brincadeiras e na sinceridade de afetos que generosamente retribuía.
Jane Champion, na tarde em que a duquesa ia colher flores no roseiral,
estava ocupada em jogar o golf em companhia de um adolescente, para o qual
há muito tempo tinha reservado severo pito.
Mas, como Jane logo pôde perceber, é difícil encaixar uma
admoestação quando se joga golf com uma pessoa que compartilha do nosso
entusiasmo e que leva o tempo a explicar como «encheu os buracos» da
última vez e que ao voltar para casa não se farta de celebrar a maneira pela
qual a gente se conduziu na partida. De sorte que Jane estimou ter perdido,
sob o ponto de vista prático, a sua tarde. À noite, na saleta de fumar; o jovem
Cathcart, comentando a partida de golf com alguns amigos, declarou:
-— E a velha Jane esteve soberba!., . Um «drive» admirável, fazendo o
número 7 em três e não se gabando disto! Quase que decidi não mandar mais
flores àquele demónio da Tatu! Que querem vocês? A gente não suporta a
ideia de uma ceia com uma cabotina, quando se levou o dia todo a dar volta
aos «links» com a grande Jane. Por Júpiter ! Um cidadão precisa ter uma
folha corrida bem limpa a fim de que possa apertar-lhe a mão.

A SURPRESA

A hora do silêncio passara, os pássaros começavam a cantar e no


bosque vizinho urn cuco fazia, a espaços, ouvir o seu canto. A casa de súbito
acordou. Ouviu-se o barulho de portas que se abriam e fechavam. Dois
lacaios, vestidos de libré cor de vinho e prata dos Meldrun, atravessaram de
carreira o terraço, carregando mesinhas de chá dobradiças, que acrescentaram
às mesas rústicas disseminadas sob os cedros. Lfm deles voltou à casa,
enquanto o outro estendia toalhas brancas de neve sobre cada mesa.
O papagaio despertou, bateu as asas, pondo-se em seguida a escorregar
e subir ao longo do poleiro, observando zombeteiramente o lacaio. Alguns
minutos mais tarde as mesas se achavam cobertas de toda sorte de guloseimas
julgadas necessárias a um chá das cinco: a chaleira de praia maciça, os bules
cintilantes na aparador, atrás do qual impava o velho mordomo; grandes

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açafates de cristal cheios de morangos punham uma viva nota de cor em meio
à clara harmonia de branco e prata. Depois de íudo pronto, o mordomo bateu
magistral pancada no velho gongo chinês, dependurado do cedro. Do rio, dos
gramados de tênis e dos Jardins vieram chegando os convidados da duquesa,
alegres pela agradável perspectiva do chá e do repouso à sombra mansa dos
cedros.
Senhoras encantadoras, vestidas de branco e a-brigadas do sol sob
grandes chapéus ou faceiras sombrinhas. Lindas moças, preferindo a
comodidade à alvura de sua tez, atravessavam de cabeça descoberta o relvado,
balançando as «raquettes» e discu-lindo com os seus parceiros, rapazes de
branco tam bem, os últimos passes do jogo. Todos chegavam rindo e
conversando e, dispersando-se debaixo das árvores, formavam
grupos pitorescos. Alguns se deixavam preguiçosamente cair nas
poltronas de vime, outros sentavam-se na grama. Depois de
servidos, cada qual segundo o seu gosto, de café, chá ou gelados, a
conversação recomeçou vivamente.
— Então, disse alguém, a duquesa oferece-nos hoje um
concerto. Deviam suspender por aqui algumas lanternas japonesas
e realizá-lo ao ar livre. Está quente demais para que se suporte
uma sala fechada.
— Quanto a isto, respondeu Garth Dalmain, não se
incomodem. Sou eu o mestre-sala e garanto que todas as janelas do
terraço hão de f icar abertas. Vocês talvez não vejam grande coisa,
mas hão de ouvir perfeitamente.
— Ah! mas a metade do prazer consiste em ver, protestou
uma das moças do ténis; os que ficarem no terraço não
poderão apreciar as imitações que nos vai fazer a duquesa. Eu cá
não faço caso do calor; quero um lugar na primeira fila.
—E qual será a surpresa de hoje? indagou lady Ingleby.
— Velma, replicou Mary Strathern, chega para o fim da
semana. Será adorável tê-la aqui. Ninguém, exceto a duquesa,
conseguiria locomovê-la; só Overdene no mundo a poderia tentar.
Com certeza só cantará uma vez no concerto; mas persuadiremos
Jane de se colocar despreocupadamente ao piano e tocar, como por
acaso, os primeiros acordes de um dos
triunfos de Velma, e em breve lhe ouviremos a voz.
de sereia, pois é sabido que ela nunca resiste a um
acompanhamento bem executado.

—Porque chamar esta senhora Velma uma «surpresa»? perguntou uma


das mocinhas, ainda ignorante dos hábitos de Overdene.
— É brincadeira da duquesa, rainha cara, explicou lady Ingleby; sendo
organizado este concerto anual, para divertir os convidados e glorificar as ce-
lebridades locais, para ele toda a vizinhança é convidada. Só as notabilidades

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do lugar são convidadas a se fazerem ouvir. Fornecem, por conseguinte, elas
mesmas, o programa, e a duquesa, paxá o divertimento nosso, nô-lo reproduz
depois a seu modo. As brincadeiras da nossa duquesa são realmente
impagáveis.
— A grande Jane não as aprova, observou o jovem Ronald Ingrarn, e
por isto retira-se geralmente durante o concerto; mas como ninguém pode
como ela acompanhar Velma, recebeu hoje ordem de ficar, Não creio pois que
as brincadeiras sejam dos boas, pois a grande Jane não se deixa levar de
vencida pela duquesa neste assunto. Às vezes, no momento, não leva muita
vantagem, mas a sua influência exerce sempre uma ação moderadora.
—Eu acho, declarou uma bela americana de fisionomia aberta e alegre,
que miss Champion tem razão. Na minha terra consideraríamos mesquinhez
caçoar das pessoas que tivessem sido hóspedes nossos e que houvessem
cantado a nosso pedido.
- Na sua terra, minha cara, retrucou Myra Ingleby, vocês não têm
duquesas.
- Em compensação, fornecemos um sortimento delas à
Europa, retorquiu friamente a americana, continuando a saborear
sorvete que Garth Dalmain lhe oferecera.
Um riso geral acolheu a réplica mordaz e todos se pusseram a
discutir o último casamento anglo-americano.
— Onde está a grande Jane? inquiriu alguém.
— No golf, com Billy, disse Ronold Ingram; ei-los justamente que
voltam.
A alta silhueta de Jane aparecia neste momento no terraço. Billy
Cathcart a escoltava, falando com animação; deixaram os seus báculos de
jogo no vestíbulo, descendo em seguida para os cedros.
Jane trajava um comprido casaco cinzento sobre uma estreita saia,
completada por uma blusa de crepe azul, um chapéu de feltro mole, muito
enterrado, sobriamente guarnecido de uma asa preta e azul. Caminhava com
andar desembaraçado e balouçado, a um tempo indicador de fôrças e de posse
de si mesma. Seu aspecto era singularmente diverso do de todas aquelas
bonitas mulheres e, entretanto, nada tinha de masculino; pelo contrário, tudo
nela era tão graciosamente feminino que podia adotar sem prejuízo da sua
elegância esse traje de tão severa simplicidade. Era, aliás, o que, alongando-
lhe ainda mais a esbeltez do corpo, mais lhe convinha ao rosto e ao porte.
Quando se aproximou do círculo reunido ao redor das mesas, tomou
uma das cadeiras que meia dúzia de homens se empenhava em oferecer-lhe, e
fê-lo com a sorridente singeleza que invariavelmente a distinguia.
Fizeram-lhe algumas perguntas a respeito do golf, que ela elucidou
impedindo Billy de responder.
— Cale-se, Billy!! Nós somos os únicos maníacos do golf aqui;
ninguém apreciaria as nossas proezas. Onde está minha tia? O pobre
Simmons a procura com um telegrama, e não há meio de achá-la... - Por que

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não abriu você o telegrama? perguntou Myra.
— Porque minha tia não gosta que lhe abram os telegramas.
Adora os choques; e há sempre possibilidades de catástrole num telegrama.
Declara sempre que a coisa fica inteiramente gorada se alguém sabe a notícia
antes e a anuncia com precaução.
— Aí vem a duquesa, preveniu Garth Dalmain que do lugar em
que se achava sentado podia ver o gradil do roseiral.
— Não lhe falem do telegrama, aconselhou Jane, desagradar-lhe-ia
que a informassem da chegada de um. E seria pena estragar o prazer que lhe
vai causar este telegrama, com um calor destes e quando nada de inesperado
parecia dever sobrevir.
Todos se tinham voltado para a duquesa que vinha vindo pelo gramado:
essa estranha silhueta era a da dona da casa onde passavam dias encantadores;
era pela vontade dela que todos ali se achavam, o que absolutamente não os
impedia de livremente discutirem os seus pequenos ridículos. Os homens se
ergueram à sua chegada, não tão prontamente, porém, quanto para a sua
sobrinha.
A duquesa trazia o cesto cheio de lindas rosas, todas perfeitas e
colhidas precisamente no momento do desabrochar.

JANE SE OFERECE

Com um gesto rápido a duquesa colocou o cesto bem no meio da mesa


dos morangos.
— Pronto, minha gente! disse ela um pouco ofegante; sirvam-se de
rosas e que eu os veja a todos floridos logo à noite. Chamaremos ao concerto
festa das rosas...
Não, obrigada, Ronnie, este chá está requentado há pelo menos meia
liara e você devia ser bastante meu amigo para não me oferecer tal droga, Eu
nunca tomo chá; apenas um whisky com soda quando acordo da sesta, e fico
alimentada até ao íantar...
— Sim, sim, minha cara Mary, lembro-me de ter ido à sua interessante
reunião e assinado um tal manifesto contra o álcool... Mas ao sair de sua casa
fui direitinha ao meu médico, que meu deu um certificado garantindo ser
indispensável que eu tome «qualquer coisa» quando sentir necessidade,
necessidade esta que sinto invariavelmente depois da sesta... Realmente, Dal,
não é permitido, exceto no teatro, ter um ar tão pitoresco quando você nessas
flanelas brancas, nessa camisa lilaz e com essa gravata roxo-escura! Se eu
fosse sua avó, mandava-o mudar de roupa. Se você começa a fazer perder a
cabeça a velhas como eu, a que perigos não estarão expostas estas moças? ...
Silêncio, Tommy! Ê urna palavra muito leia a que disseste agora; não tenhas
ciúmes de Dal, admiro-te muito mais do que a ele, Dal, você não queria
retratar meu papagaio cor de chama?
O jovem artista cujos retratos no «Salão» do ano passado haviam íeito

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sensação no mundo artístico, e cuja camisa roxa acabava de ser criticada,
derreou-se na sua poltrona de vime, as mãos cruzadas atráz da nuca e os olhos
pardos brilhando, divertidos.
-- Não, cara duquesa, respondeu ele; peco-lhe respeitosamente licença
para recusar a encomenda; seria preciso um pintor como Landser para fazer
honra a Tommy. Por outro lado, confesse que seria deprimente para um rapaz
de minha educação passar horas em companhia desse bicho malcriado, que
não:íem papas na língua. Vou dizer-lhe o que pretendo fazer: pintá-la-ei à
senhora, querida duquesa, mas nunca com esse chapéu; desde a minha mais
tenra infância que a visia de um chapéu de palha, amarrado debaixo do queixo
por fitas pretas, me faz adoecer. Se ofendesse ao meu instinto natural iria
esconder a cara nos joelhos de miss Champion e berraria, esperneando, até
que a senhora o tirasse. Hei de pintá-la, pois, com o vestido preto com que
estava ontem, a gola de renda à Medícis, e o bonito enfeite de rendas e
diamante nos cabelos. Na mão a senhora segurará um espelho de prata
velha. ..
O artista, descrevendo o quadro com uma voz musical, tinha meio
cerrados os olhos e todos se calaram para ouvi-lo. Quando Garth Dalmain
esboçava com palavras os seus quadros todos os viam e, no ano seguinte, ao
entrar no Salão da Academia ou da Nova Galeria, reconheciam as telas.
— Na sua mão esquerda, pois, continuou ele, um espelho — para o
qual, aliás, a senhora não olhará, pois é sabido que a senhora nunca se olha ao
espelho, mesmo quando põe esse inominável chapéu de jardim.. . (miss
Champion, dê-me a mão que estou sentindo mal!) segurá-lo-á apenas na mão
esquerda, cotovelo apoiado a uma mesa de ébano incrustado e nácar, . . E no
espelho pintarei o reflexo minucioso e perfeito em todos os seus pormenores
do papagaio no poleiro. Denominaremos ao quadro «Meditação» porque é
preciso sempre dar um nome idiota às telas, mas quando o quadro passar à
posteridade, como obra de arfe famosa, há de figurar no catálogo de um
museu sob a epígrafe: «A duquesa, o espelho e o papagaio».
- Bravos! aplaudiu a duquesa, encantada; você há de pintá-lo, Dal, e
mandá-lo ao «Salão» do ano que vem e nós todos o iremos ver. Mas,.. eis
Sim-moins com qualquer coisa numa bandeja... Que será? Meu Deus, um
telegrama! Que catástrofe não terá sucedido! Espero que não há de ser de
algum imbecil que perdeu o trem!
Em meio a um silêncio impressionante a duquesa abriu o telegrama; o
choque foi imediato; a tez sempre colorida de Sua Graça passou do corado ao
escarlate e a indignação pareceu privá-la momentaneamente da palavra. Jane
ergueu-sge com calma e, curvando-se sobre o ombro da tia, tomou
conhecimento da desastrosa mensagem, indo em seguida sentar-se com a
mesma calma.
— Criatura! bradou a duquesa, miserável criatura! está aí o que se
ganha em tratá-las como amigas. E dizer que lhe tinha reservado um fio de
pérolas de valor bem superior a tudo que lhe costumam pagar por uma ária!
E falhar-me assim a última hora... Oh, espécie de cabotina!
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— Cara tia, disse Jane, se a pobre Velma foi tomada de laringite
não poderia cantar uma nota, mesmo a mandado da rainha. Seu telegrama
exprime a mais sincera pena.
— Não me contradiga, Jane! gritou a duquesa com mau humor, e
não meta a rainha num negócio em que ela nada tem que ver. Detesto o
ilogismo. Porque foi ela apanhar essa moléstia... como se chama mesmo?...
quando devia vir cantar em minha casa? Na minha mocidade não se
conhecaim estas histórias, são invenções modernas, como a apendicite, só
para aborrecer a gente. No meu tempo chamava-se isto cólica e tomava-se
ruibarbo.
Myra Ingleby sufocava de riso no chapéu de jardim atrás do qual
escondia o rosto, e Garth Dalmain mumurou ao ouvido de Jane;
— Detesto o ilogismo!...
Mas Jane fez um sinal negativo e recusou sorrir.—Tommy quer
groselha! gritou o papagaio.
— Em nome do céu, dêem-lhe groselha! ordenou a duquesa.
— Mas, minha tia, não há groselha, disse Jane.
— Não discuta, gritou a duquesa, furiosa; você bem sabe que
quando ele diz groselha quer dizer uma coisa qualquer vermelha !
Meia dúzia de pessoas se precipitaram para servir Tommy; Jane fingiu
não entender os sinais que lhe fazia Garth Dalmain.
— Não há resposta, Simmons, declarou a duquesa; agora a
questão é saber o que se vai fazer. A metade do condado virá hoje aqui a
convite meu para ouvir a Velma e a Velma está em Londres com uma
pretensa apendicite... ou o tal outro negócio em ite. Diabos carreguem a
essa mulher! como diria este espirituoso pássaro.
— Cala o bico papagueou Tommy.
A duquesa sorriu e consentiu em sentar-se.
— Mas, cara duquesa, começou Garth com a sua voz mais
persuasiva, o condado não sabe que a senhora esperava hoje a grande
Velma. Era um segredo que só devia ser revelado à última hora. Lady
Ingleby chamava a Velma «surpresa»...
— É exato, concordou a duquesa, era o mais bonito da festa. Oh!
que criatura!...
— Por conseguinte, cara duquesa, continuou Garth, ignorando o
condado o que se preparava, o condado não ficará desapontado. Os
convidados virão ouvir-se reciprocamente e saborear o seu cham-pagne e os
seus sorvetes. Depois todos sairão daqui encantados, extasiando-se diante do
faro com que a duquesa sabe descobrir os talentos da terra.

— Que fazer? repetiu a titular; Velma devia cantar o


«Rosário». Eu contava com isto. Toda a decoração da sala foi
organizada de acordo com esta música; grinaldas de rosas
brancas e urna grande cruz vermelha no iunda da estrado. Janei

12
— Minha tia?
— Não diga «minha tia» nesse tom palerma, por favor.
Lembre-se antes de sugerir alguma coisa.
-- Diabos levem esta mulher! gritou Tommy de repente.
— Que graça tem este bichinnho! disse a duquesa,
encantada e já bem de bom humor; dêem-lhe um morango.
Vamos, Jane, que sugere você?
Jane Champion estava sentada quase de costas para a tia;
tinha cruzado as pernas, segurando-as com as duas mãos hábeis e
prestativas; voltou-se lentamente, enfrentando os olhos penetrantes
que debaixo do chapéu-cogumelo a encaravam com uma espécie de
aflição, como a implorar-lhe qualquer coisa. Um vagaroso sorriso
iluminou os olhos de Jane, que ao cabo de uni instante disse
simplesmente:
- Posso cantar o Rosário em lugar de Velma, logo à noite, se a
senhora realmente o deseja, minha tia.
Uma sensação de profudo espanto tornou silencioso o grupo,
de convidados. A duquesa era a única dos presentes, que tinha
ouvido Jane cantar.
— Mas você tem a música? perguntou Sua Graça, apanhando
o telegrama amarfanhado no cesto vazio.
—Sim, disse Jane, da última vez que estive em Londres
passei várias horas com a senhora Bianca, e ela, que gosta tão
pouco das canções modernas, viu-se conquistada pelo «Rosário»,
Cantou para mim, permitindo-me até que a acompanhasse. Comprei a
música nessa ocasião.
— Bem, aprovou a duquesa, já serenada; conto então com você.
É preciso mandar agora um telegrama de simpatia a esta pobre Velma, pois
com certeza deve estar consternada do logro que me pregou. Até logo, pois,
minha gente! Não esqueçam que jantamos às oito horas em ponto e o
concerto deve começar às nove. Rormie, seja bom rapar e me leve o Tommy
para dentro. Se me vir partir sem ele, vai soltar gritos pavorosos, pois é de
uma sensibilidade esta ave!,..
A maioria dos convivas seguiu com os olhos a Ronnie, muito
atrapalhado a carregar o papagaio, que efetuava prodígios de acrobacia para
chegar junto ao rosto do rapas visivelmente assustado a segredar-lhe coisas ao
ouvido. A duquesa caminhava na frente, muito satisfeita com o íeitio que
tomavam os acontecimentos. Um ou dois dos presentes observavam Jane. Por
fim Myra Ingleby lhe disse:
— Foi muita coragem de sua parte propor-se a cantar. Não ouso
apresentar-me para acompanhá-la pois não consigo tocar «Ao claro da lua»
senão com um dedo só.
— E eu, declarou Garth Dalmain, toco com os dez dedos e se a
senhora cantasse “Allerseelen» oferecer-me-ia como acompanhador, pois,

13
sem gabolice, toco-o brilhantemente. E embora conheça a música do
«Rosário» não me atrevo... Quando se trata de acompanhar o «Rosário»
fico reduzido a diser como o velho camponês a quem ofereciam pudim pela
terceira vez: «Senhora, não posso!»
-- Não seja ridículo, Dal! respondeu Jane. Você tocaria perfeitamente o
acompanhamento do «Rosario» se fosse preciso; mas o fato é que prefiro
acompanhar-me a mim mesma,
— Ah! atalhou graciosamente lady Ingleby, como a compreendo!
Deve ser um alívio sentir que se as coisas não andarem muito bem, a gente
pode pular um pedaço ou dar o «lá»!...
Os dois únicos musicistas presentes trocaram um sorriso divertido.
— Evidentemente seria útil em caso de necessidade, respondeu
Jane.
— A rigor eu lhe darei o lá, acrescentou Garth, muito sério.
— Tenho certeza disso, tornou Jane; você é sempre serviçal, mas
prefiro dispor dos meus próprios meios.
— Mas já pensou na dificuldade de dar muita voz numa sala tão
grande?
Garth Dalmain falava com um pouco de apreensão, Jane era das suas
grandes amigas e a ideia de ver fazer fiasco uma camarada o contrariava. O
mesmo sorriso discreto que iluminava os olhos de Jane quando propusera
substituir a Velma passou-lhe nos lábios; olhou em derredor. A maior parte
dos convidados se dispersara em prupos de dois e três, alguns para casa,
outros para o lado do rio. Ela ficara só corn Dalmain e Myra. Os olhos de Jane
assumiram uma expressão divertida ao encontrar o olhar amistosamente
ansioso de Garth.
— Sim, sei, respondeu ela, mas a acústica da sala é excelente e eu
aprendi a lançar a minha voz. Talvez você ignore que estudei em Paris com a
Marchesi e continuei em Londres com a filha dela, também grande cantora.
Por isso creio que sei, pouco mais ou menos, emitir a voz.

Tudo isto era grego para Myra e o nome da primeira professora de


canto de sua época não lhe dizia grande coisa; mas Garth Dalmain
empertigou-se.
— Sim, senhora! Compreenda agora o seu sangue frio; a própria Velma
foi aluna da grande Marchesi.
— E é esta a razão pela qual vim a conhecê-la.
Estou hoje aqui porque devia acompanhá-la.
— Eu sei, mas em geral a senhora prefere acompanhar as outros a
cantar.
O sorriso de Jane reapareceu.
— Prefiro cantar, disse ela, mas a gente é sem
pre mais útil acompanhando.
— É verdade, aquiesceu Dalmain; muitas pessoas cantam, poucas

14
sabem acompanhar.
— Jane, perguntou Myra, voltando para ela o rosto langoroso;
se você tomou lições de canto e se sabe canções por que ainda não cantou
para nós?
— Por uma triste razão, replicou Jane; vocês sabem que o filho da
duquesa morreu há apenas oito anos: um rapaz tão bonito, e com tanta
talento! Ele e eu herdamos de nosso avô o gosto pela música; meu primo
estudou-a com entusiasmo e prometera cantar num concerto de caridade em
Londres, por ocasião das férias de Natal; acabava de ter gripe e saiu antes do
tempo a fim de cumprir a promessa. Recaiu, teve pneumonia e cinco dias
depois morreu. Minha pobre tia esteve meio louca de dor, e desde então não
pode sofrer alusão ao meu gosto pela música. É muito raro que eu me
arrisque a tocar ou cantar aqui.
— Mas por que não em outro lugar? Perguntou Grath; temos estado
com frequência em casas de amigos comuns e eu nunca a ouvi cantar.
- É porque. .. não sei dizer ao certo, retrucou lentamente Jane; a
música representa tanta coisa para mim... É como o santo dos santos do
tabernáculo de nossa alma. Não é fácil erguer-lhe o véu.
- O véu será então erguido logo à noite, disse Myra Ingleby com um
sorriso vagamente zombeteiro.
- Sim, replicou Jane, como a contragosto; suponho que o seja.
—E nós penetraremos no tabernáculo, concluiu Garth Dalmain,
gracejando.

CONFIDÊNCIAS

As sombras se alongavam no gramado. O quadrante solar marcava seis


horas, Myra Ingleby levantou-se, espreguiçando os braços corn indolência de
odalisca; os raios do sol poente caiam-lhe em cheio e o artista admirava a
graça da flexível silhueta banhada de luz.
— Ah! bocejou ela; está tão bom aqui e é preciso que eu me vá
entregar às mãos da camareira.. . Jane, previno-a, enquanto é tempo ainda,
que não use nunca massagem no rosto; a gente se torna escrava e perde nisso
horas e horas por dia. Eu, para vestir-me, bastaria subir àsi sete, e no entanto
sou forçada a perder esses instantes deliciosos.
—- Mas, por que? indagou Jane — ignoro-lhe qual é o processo.
— Não posso agora entrar em pormenores, mas se não fosse ter, já e já,
com a minha criada de quarto, não estaria bem à hora do jantar e, antes do fim
da noite, pareceria dez anos mais velha.
— Mas você estaria apesar de tudo encantadora, disse Jane, com
sinceridade; por que receia parecer que tem a linda idade que tem?
— Minha cara, um homem só tem a idade com que se sente e uma
mulher a que aparenta.
— Eu hoje me sinto com sete anos, acudiu Garth.

15
— E parece ter dezessete! replicou Myra, rindo.
— Como tenho vinte e sete, a duquesa me chamaria menino
ridículo. Querida lady, caso a diminuíção da cerimónia misteriosa que a
espera lhe tira a mínima parcela da beleza hoje à noite, eu lhe rogo que se
apresse. Creio que dispararia em soluços ao Jantar se tal acontecesse, e a
senhora sabe corno a duquesa detesta cenas patéticas!.,.
Lady Ingleby deu-lhe, ao passar, um tapinha amigável com o chapéu
de jardim que trazia na mão.
— Cale-se, menino sem juízo; por que presta ouvidos a minhas
confidências a Jane? Você há de pintar-me o retrato no outono. Depois
abandonarei a massagem, farei uma viagem e ficarei velha deveras.
Lançou esta ameaça por cima do ombro, sorrindo, e afastou-s e.
- - Que linda! exclamou Garth. Eu me pergunto se há realmente
verdade no que ela diz.
— Não posso fazer ideia, confessou Jane; são assuntos
sobre os quais me confesso totalmente ignorante.
- - Então, é porque não é verdade; senão nô-lo teria dito.
— Ah! replicou vivamente Jane, você se engana: Myra é
extraordinariamente sincera e sempre arrastada à franqueza a respeito de suas
fraquezas. Teve singular educação. Sempre foi tratada como ovelha
gafada enire seus numerosos irmãos, e posta à margem pela mãe. Quando
lord Ingleby pediu a Myra em casamento, não conseguiu fazer-se
compreender tanto ficou ela espantada. Esse casamento foi um golpe
para a mãe!
— Velha bruxa! atalhou Garth. Como é permitido dar a uma criatura
destas o nome de mãe? Nós que tivemos mães ternas e perfeitas, deveríamos
promulgar uma lei, não acha?. . . para que não se degradasse assim o nome da
mãe.
Jane calou-se. Sabia da tocante história de Garth e da mãe viúva, e
estava a par da adoração do filho pela memória dessa veneranda progenitora.
Preferia sempre Garth quando ele deixava transparecer sob o verniz
mundano o que lhe ia no coração; absteve-se, pois, de lembrar-lhe que ela,
Jane, nem sequer pudera balbuciar esse doce nome.
Garth ergueu-se, aprumando o porte gracioso. Jane fitou nele os olhos.
Como acontece muitas vezes aos falhos de beleza, a beleza física a
impressionava, sem influenciar no entanto a estima que dedicava aos amigos.
Garth entre estes não era o preferido; era o mais velho de todos e ao mesmo
tempo tão moço de génio que parecia às vezes até pueril.
Mas a respeito do físico não havia sobre ele duas opiniões contrárias e
Jane nesse momento considerava Garth com a admiração impessoal de uma
artista.
Garth, não obstante seus requintes de traje, não tinha nenhuma
fatuidade e, com o sol nos olhos, não notou o olhar admirativo de Jane.
- Oh! miss Champion, exclamou ele com ar de garotice, entraram todos,

16
e há tanto tempo que não temos uma boa conversa. . . Vamos fazer uma coisa,
já que não estamos fazendo nada. Desçamos até o rio e tornemos um barco. O
jantar é às oito, e tenho a certeza de que, mesmo para o papel de Velma, você
pode muito bem vestir-se em meia hoja; já a vi fazé-lo em dez minutos.
Temos, pois, tempo de remar até ao moinho velho e conversar durante o
trajeto. Pense no velho moinho, iodo cinzento, com o sol atrás e um campo de
primavera no primeiro plano.
Mas Jane não se levantou.
—Meu caro Dal, respondeu, você perderia muito do seu entusiasmo
pelo moinho e pelo sol poente, depois de haver remado até lá com uma pessoa
de meu peso! Não sou, aliás, criatura que possa ficar quieta no fundo de um
bote: gosto de remar. Mas tendo jogado golf o dia todo, não me sinto com
forças para tanto. Depois você não acharia graça nenhuma em me contemplar
durante a travessia, sabendo que eu provavelmente faço reservas mentais
sobre a sua maneira de manejar os remos.
Garth derreou-se na poltrona e passando os braços sobre a cabeça de
negros cabelos fitou em Jane os belos olhos brilhantes, como os fitara na
duquesa.
— Está de mau humor, minha amiga, disse sorrindo. Que há?
Jane pôs-se a rir, estendendo-lhe a mão.
— Caro amigo, respondeu. Você é a bondade personificada. Detesto o
mau humor, mas a verdade é que odeio os concertos da duquesa e não sinto
prazer nenhum em lhe servir de «surpresa».
-- Bem o estou vendo, disse Garth com simpatia; mas então por que se
ofereceu?
- Era preciso. Pobre tia ! Ela nunca pede nada e seus olhos me
imploravam. Você não sabe como é bom às vezes causar prazer! Eu, há
momentos em lhe engraxaria os sapatos, se ela quisesse. É tão duro passar
aqui semanas e semanas, sempre mantida a distãncia!... Uma vez que
aqueles velhos olhos tão altivos rogavam, podia eu recusar?...
Garth respondeu amigavelmente:
— Não, naturalmente não podia. Mas não se aflija com a
brincadeira da surpresa. Aposto que canta muito melhor do que
qualquer deles, e, aliás, nem sequer perceberão que se está
cantando. Ê preciso uma Velma para acordá-los. Hão de achar o
«Rosário» uma bonita canção, mas os aplausos não serão
excessivos. Há de ser só isto, não se apoquente.
Jane pareceu refletir.
— E depois, Dal, continuou ela, detesto cantar diante de um
auditório desse género. É como se lhes abríssemos a alma. Chega
até a se me afigurar inconveniente. A música, na minha opinião, é a
coisa mais reveladora deste mundo. Arrepio-me quando penso no
«Rosário» e, entretanto, ser-me-á impossível, no momento, não o
cantar do melhor modo que puder. Esquecerei o auditório. Deixe-

17
me contar-lhe a lição que me deu a grande Bianca, Cantava com ela
o canto hindu de Bemberg, a prece apaixonada de uma indiana a
Brahma e comecei «Brahma, ó Deus dos crentes. -», modulando
como se solfejasse dó, ré, mi. Brahma não me era nada. «Pare!
exclamou Bianca imperiosamente. Vocês inglesas são espantosas!
Onde já se viu cantar assim? Brahma é um Deus! Não é talvez o seu
nem o meu. Mas é o Deus de alguém. É o Deus deste canto. Ouça!”
Ergueu a cabeça e cantou: «Brahma, ó Deus dos crentes, dono das
sacras cidades...» Todo o seu belo rosto se iluminara de um fervor
religioso que penetrava os corações. Nunca mais esqueci esta lição
e creio nunca mais ter cantado sem sentimento.
— Muito bem, aprovou Dal, gosto do entusiasmo por tudo
que é forma de arte. Não faço questão de pintar um retrato a não ser
que adore a mulher que vou retraiar.
Jane sorriu. A conversa orientava-se precisamente como ela o
desejava.
— Dal, meu caro, replicou alegremente, você adora assim tanta
gente que nós, velhos amigos que nos interessamos pelo seu coração,
receamos às vezes que você não adore nunca com o fim com que deveria
adorar...
Garth pôs-se a rir.
— Ah! então é como as outras! Acha que adoração e admiração
têm de significar necessariamente casamento? Pois, olhe, eu lhe tinha
atribuído ideias mais sensatas e masculinas-
— Dal, meu caro, seus amigos decidiram que você tomasse
mulher. Você é filho único. Sozinho. Tem uma casa encantadora. Todas
estas moças da sociedade estão a caminho de perdê-lo de mimos. Nós
todos sabemos que sua mulher não pode deixar de ser uma maravilha. Mas
cada nova divindade de que você faz o retrato aparece provida de todas as
perfeições requeridas.. , e você não pode evidentemente casar-se com todas.
Escolha uma, a mais perfeita e, e vez de limitar-se a pintar-lhe a imagem,
pespose-a; terá destarte a perfeição em casa.
Garth pareceu pensar estas palavras, muito sério, de sobrancelhas
franzidas.
— A beleza, afinal de contas, acabou dizendo, é uma coisa de
superfície. Vejo-a, admiro-a, deseja-a, sinto-a. Depois que a pinto e assim a
faço minha, desinteresso-me dela. Durante o tempo que pinto um retrato de
mulher, procuro-lhe a alma para estampá-la na tela. E é assim, mis Champion,
que descobri que uma bela mulher nem sempre é dona de uma bela alma.
Jane ficou silenciosa, pois não queria absoluta-icnte externar-se sobre
a alma das outras mulheres.

— Há uma que me parece perfeita, continuou Garth.


Devo pintar o seu retraio no próximo outo no, e tenho a

18
certeza de que nela a alma é tão bonita quanto o rosto.
— Quem é?
— Lady Brand.
— Flor! exclamou Jane. Acha-a realmente tão sedutora?
— Ah, um encanto! confirmou Garth com entusiasmo. Um
encanto criminoso porque não é permitido estar assim tão perto da perfeição.
Sabe, miss Champion, que a beleza perfeita me faz sofrer?
— Parece-me que a mulher de outrem não lhe devia produzir esse
efeito...
— Mas, minha amiga, contestou Garth, surpreso, não se trata de
mulher de outrem neste assunto. Um prado em flor ao romper do sol me
daria a mesma impressão. Depois que termino o retraio de uma bonita
mulher, tenho a sensação de lhe haver rendido justiça à beleza, reproduzindo-
a tal qual a vejo, e sinto-me aliviado. Até agora não pude pintá-la senão de
memória, mas lady Brand deve servir-me de modelo em outubro.
— De memória? interrogou Jane.
— Sim, pinto muito de memória. Quando vejo
um certo rosto, um certo olhar que me faz penetrar além da simples aparência,
posso durante semanas pintá-lo de memória. Muitos dos meus melhores es-
tudos foram assim feitos. O culto da beleza constitui para mirn uma religião.
— Uma religião sem Deus, sugeriu Jane.
Ah! lá isso não. Toda a verdadeira beleza vem de Deus e volta a ele.
Um velho amigo meu dizia que a moléstia vinha do demónio. Eu nunca pude
acreditar nisso; os últimos anos de minha mãe provaram-me que o sofrimento
pode tomar-se uma bênção para os outros e ser suportado para maior glória de
Deus. Estou convencido de que toda verdadeira beleza é de origem divina;
por isso o culto da beleza me é uma religião. Nada de mau foi Jamais
perfeitamente formoso; nada de bom é em verdade completamente feio.
Jane sorriu, olhando-o com amizade; banhado da luz do poente, Garth
era ele próprio um perfeito es-pecimern de beleza máscula, mas ausência total
de fatuidade lhe permitia falar livremente deste assunto com a menos bonita
de suas amigas e havia nisto algo de sincero que divertia Jane.
— Então, Garth, insistiu ela, às pessoas privadas de beleza deve
também faltar virtude?
— Não; a falta de beleza não é forçosamente a fealdade. Aprendi
isto quando era pequeno. Minha mãe me levara a ouvir um famoso
orador sacro. Quando o avistei pareceu-me o homem mais feio que jamais
tivesse visto; dir-se-ia urn gorila e eu comecei a recear o momento em
que ele se levantasse para falar. Mal começou, porém, sua fisionomia se
transfigurou. A bondade e a inspiração lhe deram ao rosto o ar resplendente
dos arcanjos. Nunca mais
o achei feio. A beleza de sua alma irradiava-se para fora, transfigurando a
matéria. Embora muito criança, compreendi-o. Naturalmente a incorreção
dos traços não podia mudar, mas o sorriso divino iluminava-os. Não era, está

19
visto, o género de rosto que eu gostariado ter todos os dias à mesa, isso seria
um martírio. Desde essa época o homem ficou para mim a prova viva de que
a bondade nunca pode ser feia e que o amor divino e a inspiração fazem
resplandecer os traços mais irregulares, conferindo-lhes uma sorte de
beleza momentânea e tão alia que a gente nunca mais a esquece.
— Compreendo, disse Jane, e esta experiência feita cedo deve lhe
ter sido muito útil. Mas voltemos à questão importante do rosto que você
deve ier sempre à mesa, na sua frente. Não pode ser o de Flor Brand, nem o
de Myra. Você não ignora, entretanto, Dal, que há um delicioso rosto
destinado, segundo dizem, a esta honra.. .
—- Não me diga o nome de ninguém, por favor! interrompeu
vivamente O rapaz; repugna-me sempre ver surgir um nome de moça numa
conversa deste género.
— Muito bem, Dal, respeito seus escrúpulos. Mas você já o
tornou pouco mais ou menos célebre pelos estudos que fez dela, num esboço,
bem sei, que nos principias do inverno se -vai transformar em obra acabada,
não é verdade? Não me diga que não. Eu sei quanto você a admira. E tem
razão, é linda, encantadora. Vern desse pais onde as mulheres nascem com
um picante que as faz únicas. Era certo sentido, que só uma mulher dotada
de originalidade rara lhe conviria. Não sei até que ponto a opinião de seus
amigos o pode influenciar, mas não lhe será certamente desagradável saber
quanto todos aprovam o seu gosto pela — como diremos?... — pela bela da
bandeira estrelada.
Garth Dalmain tirou a cigarreira e escolhendo um cigarro ficou um
instante a contemplá-lo distraídamente na ponta dos dedos.
—Pode fumar, disse Jane.
— Obrigado,
Depois, ao cabo de um momento de silêncio:
— É realmente amistoso, de sua parte, miss Jane, ter-se dado ao
trabalho de pensar tudo isso e de mo dizer. Posso provar-lhe o meu
reconhecimento, expli- cando-lhe onde residem as minhas dificuldades? Ain-
da não as encarei a sério, creio porém poder explicá-las.
Um novo e longo silêncio caiu entre eles; Garth fumava cismando, Jane
esperava. Era todavia um silêncio muito eloquente que Garth finalmente
rompeu.
— Duas mulheres, as duas únicas mulheres que influíram na minha
vida, formam para raim um ideal-abaixo do qual eu não posso descer. Uma, é
minha mãe, lembrança sagrada; a outra, a velha Margery Grann, que foi a
guardiã de minha infância e é hoje minha caseira e minha conselheira; seu
coração fiel e sua constante dedicação procuram conservar-me digno da
memória bem amada desse ente cuja presença me faltou justamente quando
me fiz homem. Margery mora em Castle-Greenesh: quando lá vou é ela quem
primeiro avisto à porta do vestíbulo. Sinto-me com sete anos e salto-lhe ao
pescoço! Eu não lhe agrado miss Champion, quando pareço ier sete anos, mas

20
agrado muito a Margery, No dia em que eu levar uma dona para Greenesh e
apresentar a Margery, seus velhos olhos hão de logo querer vê-la bonita e o
seu velho coração não aspirará senão amá-la e servi-la. Mas eu quero que ela
ache esta nova patroa digna do seu ideal e do meu: minha mãe! -Mais de uma
vez, por menos crivei que o pareça, a ideia de Margery me deteve quando eu
sofria uma influência que parecia dever fixar o meu destino; mais de uma vez
pareceu-me ouvir a voz daquela que me guiava os passos de criança, a dizer-
me: «Que? mestre Garthie, é esta a sua escolha para substituir a minha ama
querida?...» Isto tudo se afiguraria muito ridiculo à mór parte de meus
amigos, mas a velha Margery é como a viva encarnação da minha consciência
quando não estou cego de paixão ou obumbrado pelo meu culto à beleza...
Não que Margery seja hostil à beleza; pelo contrário, julga-a obrigatória na
minha mulher, bem sei, mas quer mais alguma coisa do que a beleza.
Segundo a Metáfora admirável de São Paulo, Margery vê as coisas invisíveis.
É curioso como lhe estou contando tudo isso, miss Champion, coisas que eu
mal a mim mesmo tenho dito, e a que hoje dou Jorma pela primeira vez. Sua
bondade me tocou, dando-me com seus conselhos uma verdadeira prova de
amizade.
Garth Dalmain deixou de falar e o silêncio que se seguiu pareceu de
chofre alarmante a Jane; teve ela a impressão de uma alta barreira difícil de
transpor: ia mentalmente da direita para a esquerda sem achar saída. Era
difícil responder a confidêncisa ião inesperadas. A confiança de Garth a
comovera e a emoção tornara sempre penosa a palavra de Jane. Estas
confidências lhe revelavam um novo Garth e o compreendeu como nunca até
então o compreendera. Não achou nada para dizer senão:
— Gostaria de conhecer a velha Margery,
Os olhos pardos de Garíh brilharam de prazer. - Ah! eu também
gostaria de que a conhecesse e viesse a Breenesh, Havia de apreciar a vista do
terraço, um panorama que se estende até as montanhas cor de violeta. Diga,
rriiss Champion, porque não organizaria também uma «série seleta» para se-
tembro? Poderia pedir à duquesa que a viese presidir. E assim a senhora viria
e convidaria quem lhe aprouvesse. E talvez pudéssemos incluir a bela da
bandeira estrelada, mais a sua tia. E veríamos assim o que Margery pensa
dela...
— Muito bem, irei com sincero prazer. E falando sério, Dal, acho
que essa moça é delicada de natureza. Você não encontraria melhor, O
exterior perfeito e a alma certamente de acordo com ele. Sim, convide-nos e
vejamos o que sairá daí.
— Está combinado, aquiesceu Garth, mas que pensará
Margery da senhora Park Bangs?
-— Não importa, tornou Jane com decisão; quando você casar com a
sobrinha, a tia voltará para Chicago,
— Ah! como eu desejaria que ela não fosse filha de milionários!
— Que há de fazer? As americanas são tão encantadoras que é
preciso perdoar-lhe os milhões.
21
— Quisera que miss Líster e a tia aqui estivessem, acrescentou
Garth; mas devem estar em casa de Lady Ingleby onde sou esperado terça-
feira. A senhora não vai, miss Champion?
-— Sim, mas vou primeiro passar alguns dias com os Brand. Prometi a
Myra chegar a Shenstone pelo fim da semana. Gosto de lá. É um casal tão
harmonioso...
— Sem dúvida, replicou Garth, mas qualquer homem formaria um
par harmonioso tendo lady Ingleby por mulher.
— Que figura de retórica! mas entendo o que você quer dizer.
Myra é realmente deliciosa. Aviei-se, porém, em pintá-la quanto antes, a
fim de estar livre para Paulína Lister.
O quadrante solar marcava sete horas. As pegas voejavam ao redor dos
velhos olmos, regressando aos ninhos.
— Entremos, disse Jane levantando-se; estou satisfeita de termos
podido conversar dsste modo, ajuntou enquanto atravessavam o gramado.
Obrigada por tudo que me disse, Dal.

Uma vez no quarto, Jane viu que ainda dispuha de uns


minutos antes de vestir-se. Tomou o seu “Diário” e lançou a
conversação que acabava de ter com Garth Dalmain. Depois tocou
a campainha chamando a criada e vestiu-se para o jantar.

ROMPE-SE O VÉO

-Miss Champion! Ah! está ai?... É sua vez, faz favor.


Estão executando a última peça antes de a duquesa anunciar a
laringite de Velma, esperemos que ela não diga apendicite. Depois
disto dou-lhe o braço... Está pronta?...
Garth Dalmain, na sua qualidade de mestre de cerimónias,
viera buscar Jane Champion no terraço, e, de pé diante dela no
esbatido clarão das lanternas chinesas, o cravo escarlate pondo uma
nota -vivamente artística na severidade convencional do traje de ri-
gor, era realmente uma atraente imagem de mocidade e elegância.
Do fundo da cadeira de junco ande se afundara, Jane ergueu
os olhos sorridentes para o rosto inquieto que a contemplava.
— Estou pronta, declarou levantando-se; correu tudo
bem?... E o público, bom?
— Excelente! respondeu Garth; a duquesa está se
divertindo muito. Mas esperam todos o surpresa anunciada; onde
está a música?
—Não é preciso, prefiro tocar de cor. Evita-se assim o
aborrecimento de virar as folhas.

22
Passaram ambos à sala de concerto, aguardando atrás de um
biombo, próximo aos degraus do estrado, o momento de entrar em
cena.
— Óh! a duquesa está fazendo o seu reclame, miss
Champion, ouça. . . «Minha sobrinha Jane Champion teve a
bondade de aceitar o convite. .,», o que significa que daqui a dois
minutos a senhora vai surgir no estrado. Era preíerivel que ela
falasse menos a esse respeito, mas desta maneira estão preparados
para se apresentarem com tudo o que ouvirem. Ora! que é que eu
lhe dizia?... Lá foi, saiu a apendicite! Pobre Velma, queira Deus
não ponham isto no jornal! A duquesa expande-se sobre as
moléstias modernas. .. temos que esperar!. ., Diga-me, míss Cham-
pion, zombavam ainda ha pouco da minha capacidade lusical, mas
posso muito bem acompanhar o “Rosário”. Não?.., como lhe
aprouver. Mas lembra-se que é preciso uma voz muito forte para
encher uma sala como esta, sobretudo repleta como está. Chegou a
sua vez., . a duquesa concluiu o discurso.. . Venha. Tome sentido
com o último degrau, está escuro como breu atráz dessa cortina!...
Subiu?.. . Muito bem.. Agora coragem, minha amiguinha, co-
ragem! ...
Assim falando, Garth estendera a mão a Jane para ajudá-la a
subir a pequena escada, e a moça se achou sozinha diante dos
numerosos convidados que enchiam a sala. Adiantando-se para o
piano, o alto porte de iniss Champion ainda mais alto e esbelto pa-
receu. Trajava um vestido de um macio e brilhante cetim preto a
que uma gola de rendas antigas, rodeando o decote, aclarava a
austeridade; um fio de pérolas rodeava-lhe o pescoço. Quando
apareceu, todos os olhos curiosamente a fixaram e discretos
aplausos a acolheram. O nome de Velma no programa despertara
grandes esperanças... e não é que esta apagada miss Champion,
que ninguém supunha capaz de cantar coisa nenhuma, ia ter o topete de
substitui-la?. .,
Um auditório mais amável teria reservado à pobre Jane acolhimento
mais caloroso, apreciando como devia a generosidade do seu gesto. O público
de Overdene pelo contrário, exprimia, pela frieza, o seu desapontamento e a
pouquíssima confiança que lhe inspirava o talento musical da sobrinha da
duquesa. lane, entretanto, sorriu à assembleia, sentou-se ao piano com aquele
desembaraço de maneiras simples e distintas que era só dela, contemplou um
segundo os festões de rosas brancas e cravos vermelhos que decoravam a sala
e, atacando a abertura, começou a cantar. Sua voz ampla e magnífica encheu a
sala. Um silêncio respeitoso caiu sobre o audiíório tomado de surpresa . Cada
sílaba penetrava esse silêncio, embebia-o das suaves modulações dessa voz
profunda e quente, de ial modo impregnando-o da sua ternura que os corações
indiferentes se espantavam da emoção que sentiam. Os mais sensíveis
estremeciam à magia acariciadora daquela música a que a voz soberba de Jane
23
duplicava o poder de comoção:
“As horas todas que passei contigo Roubou-as a saudade ao tempo
vário; E vivo agora a desfiar, amigo, As contas ideais desse rosário...”
Docemente, meigamente, piedosamente, a última estrofe foi lançada no
espaço, levando consigo um mundo ardente de recordações: fiel ressonância
de uma alma de mulher a evocação dos ternos momentos do passado. O
auditório continha o fôlego. Não era uma simples rornanza o que ouviam, mas
o próprio pulscrr de um coração apaixonado, com pancadas tão pungentes que
lágrimas umedeciam todos os olhos. Então, a voz que ressoara nas primeiras
linhas com urna espécie de recolhida paz, foi-se elevando num crescendo de
angústia dolorosa:
“Do meu rosário cada hora é conta. .. E cada conta a prece do meu
ser Torturado de ausência... e tem na ponta Uma cruz. .. que é a cruz de te
não ver!. ..”
A úlfima frase foi dita com tal força e paixão que eletrizou o auditório.
Na pausa que se seguiu, pôde-se medir a intensidade do efeito produzido. Mas
logo opôs a voz continuou, com a entonação dos sentimentos que não falham,
revelando um ardor que não fraquejaria e que nenhum sofrimento conseguiria
amedrontar:
Lembrança que me queima e me consola, Oh! saudade que amarga e
que transluz. D,e um beijo a cada conta faço esmola, Para aprender a te
beijar, oh cruz. ..”
Havia um modo com que Jane Champion dizia “de um beijo a cada
conta faço esmola” a suavidade inexprimível, o exaltado langor de um amor
tão carinhoso, tão feminino, tão puro, tão belo, que a personalidade da cantora
se apagava...
O acompanhamento, que principia com um só acórde, acaba numa nota
única; ela a tomou lentamente, como at contragosto e, levantando-se do piano,
ia deixar o estrado quando um trovão de aplausos reboou pela sala dominada
pelo divino sortilégio da sua voz. Jane hesitou, parou um minuto, olhando
para os convidados da tia, como surpreendida de os ver ali,
Um lento sorriso lhe iluminou tronsfiguradamente os olhos,
passando-lhe como um lampejo de sol pelos lábios pálidos. Ficou
um instante de pé no meio do estrado, branca ainda de emoção que
a transportara, sem saber o que fazer, quase acanhada: depois, diri-
giu-se-, para a escadinha do estrado. «Bis! Bis!...» gritavam os
homens, entre os delírios das palmas.
Em baixo, atrás do palco, na penumbra do biombo, uma
surpresa bem mais espantosa que o entusiasmo dos seus ouvintes a
aguardava.
Ao pé dos degraus estava ainda Garth Dalmain, o rosto de
uma palidez mortal, mas os olhos brilhantes como duas estrelas.
Ficou imóvel até que a moça lhe chegasse perto; então, num rápido
movimento, agarrou-a pelos ombros obrigando-a a virar-se.

24
—- Volte! ordenou num tom dominador que fez
erguerem-se para ele, em mudo espanto, os olhos profundos de
Jane; volte imediatamente e recomece! Do princípio ao fim, nota a
nota, palavra por palavra, Vá depressa! Todos reclamam, vá! Não
compreende que é preciso?...
Jane, atónita, fitou seus olhos nos olhos que brihavam, vendo
neles qualquer coisa que escusava a aspereza da voz e da ordem.
Sem palavras, tornou a subir os degraus, atravessou o estrado sem
ouvir quase o estrépido dos aplausos redobrados e sentou-se ao
piano sem ver siquer a sala que a aclamava.
Sentia naquele instante uma emoção nova e surpreendente.
Nunca na sua vida obedecera a uma ordem peremptória. Quando
era pequena, as governantas descobriam logo que não podiam
Iazer-se obedecidas senão corn muita cortesia e com apelos paté-
ticos aos bons sentimentos de Jane. Esse traço de carater
conservara-se intacto e a própria duquesa sempre lhe dizia: «Se
você quizer...» E eis que um moço pálido e de olhos ardentes a
fizera imperiosamente voltar, mandando-a cantar de novo, e ela,
sem resistir, lhe obedecera. Perplexa e aturdida, ao sentar-se ao
piano Jane decidiu intimamente não bisar o «Rosário». Tinha mais
de um número no seu repertório. Cantaria outro número.
Deu começo a um belíssimo prelúdio de Haendel; mas,
enquanto o executava, seu natural sentimento de justiça interveio.
Não, voltando a cantar, não obedecera ao capricho de uma criança
impulsiva, mas a vontade de um homem profundamente comovido
e cuja emoção não era de qualidade vulgar. Que Garth Dalmain se
tivesse emocionado a ponto de esquecer a habitual cortesia de
maneiras, era a maior homenagem que lhe podia render.
Enquanto dedilhava o tema de Haendel, de modo a parecer
que uma orquestra inteira estava respondendo ao firme apelo dos
seus dedos, teve de súbito consciência do «È preciso...» de Garth e
sentiu que precisava obedecer.
Terminado o prelúdio, quando arrefeceram as palmas, deteve-
se um segundo, e atacando o acorde inicial do «Rosário», obedeceu
a Garth, pondo-se a cantar:
“As Horas todas que passei contigo Roubou-as a saudade ao tempo
vário: E vivo agora a desfiar, amigo, As contas deste rosário.
Do meu rosário cada hora é conta. .. E cada conta a prece ao meu ser
Torturado de ausência... e tem na ponta Uma cruz. . . que é a cruz de te não
ver!. ..
“Lembrança que me queima e me consola, Oh! saudade que amarga e
que transluz, De um beijo a cada conta faço esmola, Para aprender a te
beijar, oh cruz!...”

25
Quando Jane desceu do estrado, Garth continuava imóvel aos pés dos
degraus, o rosto ainda muito pálido, mas os olhos tinham perdido a expressão
de insaciada angústia que forçara Jane a obediência: uma luz maravilhosa os
incendiava agora, uma luz de adoração que foi direito ao coração de Jane,
pois nunca vira nada semelhante.. .
Sorria, descendo vagarosamente os degraus e estendeu ao rapaz as duas
mãos num gesto amistosamente gracioso. Garth tomou-as arrebatadamente
entre as suas.
Depois de um segundo de silêncio, apertando-as com força, disse com
uma voz baixa e vibrante:
— Deus! Ó Deus!
— Não pronuncie este nome em vão, Garth! protestou Jane,
sorrindo sempre.
— Em vão!,.. Ó não, nunca o disse menos em vão! «Todo dom perfeito
vem do alto». Quando as palavras faltam para elogiar o dom, porque
surpreender-se de uma apóstrofe Aquele de onde provém esse dom?
Jane fitou calmamente os olhos cintilantes de Garth e uma expressão de
prazer iluminou os dela.
—Então gostou do meu canto?,..
— Gostei do seu canto?. . . repetiu Garth com uma espécie
de perplexidade no rosto expressivo; não sei se gostei do seu canto, ..
—Então, para que estas lisonjeiras manifestações? perguntou Jane
rindo.
— Porque, disse Garth muito baixo, se rompeu o véu e eu
penetrei no santuário... e, ao pronunciar estas palavras, virando de
mansinho as mãos da moça que conservava presas nas dele,
inclinou-se e beijou-as devoíamente... Depois, largando-as,
afastou-se e Jane saiu sozinha para o terraço a fim de receber as
felicitações da sala impaciente.

GARTH ENCONTRA SEU ROSÁRIO

Jane demorou-se um pouco no salão. Embora fosse a heroína


da noite, os elogios prodigalisados a importunavam, e não a
empolgavam os divertimentos. De mais a mais sentia precisão do
isolamento do seu quarto para refletir no incidente com Garth.
Jane percebia que encerrava ele um elemento que ela não podia
aprofundar e que o último ato do rapaz acordara em seu peito
sentimentos que não compreendia. A maneira com que lhe beijara
as mãos desagradara-lhe muito; ele o fizera porém com uma
espécie de paixão respeitosa que dava a lane a impressão de uma
revelação: a de ser dotada, para consolar os homens, desse dom de
melodia que eleva e enobrece.
Não conseguia apagar a sensação rápida dos lábios na palma

26
das mãos onde qualquer coisa de tangível lhe parecia ter ficado.
Surpreendeu-se duas ou três vezes a mirá-las com ansiedade; à
terceira decidiu-se a subir para o quarto.
A duquesa estava ao piano, escondida pela massa dos
convidados que a rodeavam, presos de buIhenta animação. Jane
desviou-se com um movimento lasso, dirigindo-se para a porta.
Por mais discreta que fosse esta saída, Garth ali estava.
A moça não compreendeu como, pois, lhe avistara a cabeça de negros
cabelos junto a Myra Ingleby no momento em que ela, Jane, saía do grupo
que rodeava a duquesa.
Garth abriu a porta e Jane passou. Estava realmente desejosa de lhe
dizer: «Como pôde fazer uma coisa tão contrária às conveniências?...» ou
então: «Diga-me o que quer que eu faça, que o farei.» Não pronunciou,
todavia, nem uma nem outra frase. Garth acompanhou-a até ao vestíbulo,
acendeu uma vela, atirando o fósforo a Tommy e dando depois o castiçal de
prata a Jane. Tinha um ar absolutamente feliz, Jane impacientou-se de que ele
sentisse uma felicidade de que ela não compartilhava. Além disto, sentia que
era preciso romper aquele silêncio de intimidade, exprimindo tanto coisa que
não devia tornar consistência, de de que não se podia formular em palavras.
Tomou o castiçal com urn gesto um pouco agressivo, e no terceiro degrau
voltou-se.
— Boa noite, Dal! você está perdendo as imitações da duquesa...
Ele fitou-a. Seus olhos brilharam à luz da vela que Jane sustinha.
— Não, replicou, não estou perdendo nada, não faço falta a
ninguém. Esperava apenas aqui que a senhora subisse. Não voltarei ao
salão. Vou descer ao parque, respirar o ar fresco da noite, e debaixo dos
carvalhos dizer o rneu rosário. Não sabia, até hoje à noite, que tinha um
rosário mas agora sei que o tenho.
—Imagino que você deve ter pelo menos uma dúzia! retrucou Jane
secamente.
—. Engana-se. .. Tenho um somente, mas é de muitas contas; vou
desfiá-las quando lá estiver sozinho.
— E a cruz? perguntou lane, tentando gracejar.
— Ainda não cheguei até a ela, tornou Garth; não à cruz do meu
rosário.
— Todo rosário tem cruz, Dal, replicou Jane com doçura, e receio
que as coisas se compliquem para você quando encontrar a sua!
Mas Garth sentia-se confiante.
—Quando encontrar a minha, murmurou numa espécie de contido
fervor, espero poder., .
Involuntariamente Jane olhou para as próprias mãos. Ele
surpreendeu-lhe o olhar e sorriu, embora um leve rubor lhe
tingisse o moreno das faces.
—... encarar de frente a minha cruz, concluiu ele numa prece.

27
Jane recomeçou a subir a escala; Garth deteve-a.
—Um momento, miss Champion! Há uma coisa que lhe quero
perguntar. Posso fazê-lo? A senhora talvez me ache imprudente, atrevido e
curioso, . .
— Provavelmente, disse Jane, mas como hoje eu oestou achando
singular de mais de uma maneira, três adjetivos de mais ou de menos não
significarão coisa nenhuma. Pergunte.
—Miss Champion, a senhora não tem um rosário?
A moça olhou-o com ar de incerteza. . . depois, compreendeu onde
queria chegar a pergunta.
—Não, respondeu com simplicidade, graças aos céus tenho-me
conservado indene das «lembranças que queimam e consolam». Estas coisas
não entram na minha existência racional e ordenada e não tenho desejo
nenhum de vê-las entrar.
— Então, continuou Garth, como pôde a senhora cantar o «Rosário»
como se cada linha exprimisse sua própria experiência, cada nota uma alegria
e uma dor, uma lembrança e uma saudade, talvez longínqua, mas pessoal?
— Porque vivo sempre o momento em que canto... No
instante em que cantei tinha um rosário mas à parte isto, no sentido artístico
que você compreende, não, não tenho nenhum.
Garth subiu dois degraus e seus olhos brilhantes se acharam ao nível da
chama da vela.
— Mas, murmurou, baixinho, se a senhora
amasse?...
Jane refletiu um instante.
—Sim, acabou confessando, se eu amasse, suponho que seria daquela
maneira e sentiria o que senti durante esses poucos minutos.
—Então era sua alma que cantava no seu canto, embora as
contingências dele lhe fossem estranhas.
—Devia ser, se a gente se pode desapegar inteiramente das
contingências pessoais. Mas tudo isto é inoportuno. Boa noite, Garth.
— Ainda uma palavra, miss Champion! Quer cantar para mim,
amanhã? Quer vir à sala de música e me cantar todas as encantadoras coisas
que desejo ouvir? E quer dar-me licença de acompanhá-la? Ah! prometa-me
vir... Prometa-me cantar tudo-o que eu quiser e eu não a atormentarei mais
hoje.
Olhava-a de frente e havia nos seus olhos brilhantes tanta adoração que
Jane desviou os seus, impressionada e perturbada.
Depois, de repente, julgou ter achado a explicação e apressou-se em
dar-lha,
—- Ah! caro amigo, exclamou, que artista é você, e como é difícil a nós
outros, gente prosaica, entender um temperamento artístico!.. . Não é que
você quase me está virando a cabeça tão sólida, com seus extases a propósito
do que lhe pareceu a perfeição do som, como se extasia todos os dias a

28
propósito do que lhe parece a prefeigão da forma? Começo a compreender
como faz perder o juízo às mulheres quando lhes pinta o retraio. Enfim,
embora você não seja de s interessante no seu entusiasmo, estou cansada e
vou deitar-nie. Prometo-lhe cantar amanhã tudo que quiser, mas deixe-me
agora e vá dançar em vez de ir ao para_ue assustar os gansos da duquesa.
Não, não preciso que me ajudem a carregar a vela... Vamos, Garth, vá desfiar
o seu rosário e se topar com uma cruz, lernbre-se que se a gente não se
apressar a «cruz» pode muito bem retomar o caminho de Chicago...
Jane sorria ainda ao entrar no quarto, pondo a vela sobre o cristal da
penteadeira.
Em Overdene não se conhecia outro modo de iluminação senão os de
lampeões e velas. A duquesa recusava modernizar a velha casa, instalando a
ele-tricidade. Mas as velas abundavam e Jane, que gos-Iva de luz, pôs-se a
acender todas. Feito isto, sentou-se numa poltrona confortável, tirou o diário
da gaveta e preparou-se para terminar as notas do dia. Escreveu: «Cantei o
“Rosário”» no concerto de tia Gína, em lugar da Velma que não veio
(laringite).» Aqui parou, A cena com Garth era difícil de reproduzir. Jane
meditou muito tempo diante da página... que afinal ficou em branco. Antes de
levantar-se e guardar sob chave o caderno, dera-se a si mesma uma explicação
satisfatória em que o temperamento artístico de Garth formava a base. Por
desgraça, uma originalidade psicológica não serve de fundamento nem a uma
teoria nem a um destino; a moça, entretanto, teve de aceitá-la como fator
principal do seu raciocínio. A emoção vibrante de Garth, que tão
singularmente lhe perturbara a própria calma, não fora provocada pela pessoa
dela, Jane, exceto na medida que se lhe aplicava à voz e aos dotes musicais.
Fora uma pura emoção de arte. Assim como a vista da beleza
o punha fora de si até que a reproduzisse na tela, assim a sua
paixão pelo belo fora naquela noite exasperada, não pelo sentido da
vista, mas pelo ouvido. Depois que ela lhe desse a larga parte de
harmonia que ele desejava, depois que lhe cantasse tudo que ele
quisesse, ficaria satisfeito e a perturbadora expressão de adoração
se apagaria dos seus belos olhos pardos.
Enquanto isto, era delicioso pensar no dia seguinte, mas não
esquecendo nunca que toda essa admiração nada tinha de pessoal
para ela. Jane. Garth teria sentido idênticos êxtases pela Bianca,
dona do mesmo timbre de voz e do mesmo método, juntos a uam
plástica que encantava os olhos enquanto a voz inebriava os
ouvidos. Era preciso que Garth ouvisse a Bianca, desde que a
música o fascinava a este ponto. Jane começou a fazer projetos
neste sentido, mas a ideia de Paulina Lister, a deliciosa americana,
cujo nome durante toda a estação aparecera junto ao de Garth, lhe
atravessou a mente, Jane convenceu-se que essa moça era
precisamente a mulher que convinha a Garth: sua beleza radiosa
lhe seria uma perpétua festa para os olhos, o seu senso prático
contrabalançaria as tendências um pouco boémias do artista e a
29
adaptabilidade do seu génio comunicativo havia de pô-la à vontade
no ambiente de Garth.
Uma vez casado, renunciaria a desarrazoar de admiração por
Myra ou Flor e a beijar a mão das pessoas sensatas de maneira
tão... absurda. Foi o qualificativo que se apresentou primeiro ao
espírito de Jane, mas substituiu-o logo por «extraordinário» como
mais correto e conforme à verdade.
Inclinou-se um pouco para a frente, os cotovelos nos joelhos e
considerou as palmas das mãos abertas, recordando a sensações do estranho
instante. , . Depois, repentinamente, dominou-se: «Jane Champion, não sejas
tola. Prejudicarias mais a este belo artista moco, mais do que a ti mesma se o
tomasses a sério. A homenagem que hoje te rendeu não te foi pessoal, foi do
mesmo género que a que rendeu à tia Georgina elogiando-lhe o jantar. No
prazer que lhe causou o efeito, incluiu a causa e foi só. Contenta-te com o
sucesso de tua arte e não o estragues com uma néscia sensibilidade. Agora
lava tuas mãos, minha velha, e vai deitar-te».
Assim falou Jane a si mesma.
Sob os carvalhos umbrosos, os pés na relva, Garth Dalmain, de pé,
cismava diante do céu estrelado. Os gamos inquietos dormiam em derredor
inconscientes da sua presença e no azul escuro do firmamento os astros
faiscavam como lâmpadas. E Garth pensava.
—- Achei-a! a mulher ideal, a companheira perfeita da alma, do corpo,
do espírito daquele que a conquistar. Jane! Jane!... quanto fui cego! Tê-la
conhecido há tanto e não a ter compreendido! Mas rompeu-se o véu que a
encobria, eu penetrei no santuário. Ah! que grande e nobre coração!... Nunca
mais nada há de separar os nossos corações. E não tem ainda um rosário!...
Louvado seja Deus, nenhum homem possuiu ainda o que desejo mais que
tudo na terra: o amor de Jane, o calor de sua ternura. ., O que há de ser...
Desfio, uma a uma, as contas divinas... Ela também há de desfiá-las um dia. ..
as dela e as minhas. Que Deus nos poupe a cruz... E se é preciso uma cruz a
todo rosário, que o fardo mais pesado seja o meu e que, de carregá-la juntos,
mais intimamente nos faça unidos... Aquelas queridas mãos!... Aqueles olhos
límpidos, tão sinceros, tão fiéis! Oh! Jane, Jane!... Com certeza Jane sempre
reinou em mim sem que eu o soubesse, cego e imbecil que fui! Mas meus
olhos abriram-se. Vejo, sinto, sei... E, a partir desta noite, há de ser Jane, se
Deus quiser, para a eternidade. ..
A brisa perpassou-lhe pela testa e seus olhos erguidos cintilavam à
claridade das estrelas. E Jane, meio adormecida, sobressaltada pelo choque do
estore contra a janela, surpreendeu-s e murmurando: «Tudo que você quiser,
Garth... diga-o, que eu farei...» Mas de chofre, adquirindo consciência do que
dizia, sentou-se com impaciência no escuro, censurando-se severamente:
—Oh! tola que já passaste a idade das loucuras, julgas-te ajuizada e um
pouco de amabilidade vinda de uma pessoa a quem tens amizade te faz perder
a cabeça!... Volta ao bom senso, já e já, ou deixa amanhã Overdene, pelo
primeiro trem. -
30
AINDA AS CONTAS

Os dias que se seguiram foram de delicia para Jane. Nenhum incidente


veio perturbar o êxtase de um estado tão novo para ela. Nada, no dia seguinte,
nas maneiras de Garth, traiu a agitação que a surpreendera e emocionara na
véspera; mostrou-se calmo, sensato, parecendo a Jane mais idoso do que do
costume. Não teve senão raras voltas aos seus modos de rapazinho de sete
anos, mesmo em relação à duquesa e quando lhe perguntaram, rindo, se
estava ensaiando seu próximo papel de homem casado, respondeu:
— É com efeito a atitude que pretendo adotar.
— Estará ela em Shenstone? indagou Ronald. Vários
convidados da duquesa tiveram também, convite de lady Ingleby para o fim
da semana.
—Sim, disse Garth.
— Oh! Senhor! exclamou Billy em tom melodramático.
Devemos nós tomar isto sério.
Mas Jane-, sentada perto e parecendo absorta na leitura de um jornal,
murmurou baixinho, de maneira a não ser ouvida senão de Garth:
— Oh! Dal! como estou satisfeita ! Você se decidiu ontem à
noite?
— Sim, confirmou ele, virando-se de sorte a só falar para ela; ontem à
noite...
— Nossa conversa da tarde incluiu um pouco em sua decisão? .
— Absolutamente em nada,
— Então terá sido o «Rosário»?
Ele hesitou, respondendo afinal sem a fitar:
—- A revelação do «Rosário», sim.
Jane explicou imediatamente a agitação de Garth, deixando-se ir toda
inteira a esta nova frase de sua amizade; as horas de música feita juntos lhes
proporcionaram verdadeiras alegrias. Garth era mais musicista do que ela
supusera e sentia prazer sincero em ouvir-lhe a hábil e delicada execução.
O que a voz de Jane foi para Garth durante essas horas maravilhosas,
ele não o exprimiu em palavras; depois da noite do concerto observava extre-
ma reserva em suas frases. Sob os carvalhos prometera-se esperar urna
semana para falar e esperava,. .
Mas a sensação completamente nova para Jane foi a de sem sentir
dominar um coração. De oculto modo Garth lho fez compreender. Nada
chamava a atenção de ninguém, mas Jane teve em breve consciência que não
entrava nunca num lugar sern que Garth secretamente fôsse prevenido e que
não saia sem que ele aí sentisse um vazio. As atenções dele eram tão cheias
de delicadeza, tão discretas que não se faziam notadas aos olhos das outras
pessoas. Nem sequer provocaram brincadeiras de amigos ou reflexões da
duquesa. Jane entretanto sentia-se envolta numa atmosfera de ternura. Pela

31
primeira vez na vida soube o que era absorver o pensamento de alguém.
Sentia-o seu, feliz e orgulhosa de tudo que ele íazia ou dizia. Nas horas que
passavam juntos no salãozinho de música, Jane aprender a conhecer e a
compreender como nunca chegara a compreender essa natureza entusiasta,
enamorada da beleza. Os dias eram encantadores e, todavia, no correr destes
instantes incomparáveis, nunca a ideia do amor no sentido vulgar da palavra
se ofereceu ao pensamento de Jane. Sua ignorância nesse ponto não vinha
tanto da sua inexperiência quanto do seu demasiado conhecimento na
comédia da amor que a impedia de discernir o amor verdadeiro que se apro-
ximava, velado e irresistível, revestido de ideal beleza.
A moça não atravessa uma dúzia de «estações» sem ter recebido pelo
menos outra dúzia de pedidos de casamento. Para uma herdeira rica, não
dependendo de parentes, nem de tutor, aliada às melhores famílias, um certo
número de pedidos de casamento devia fatalmente haver. Homens maduros,
cansados de prazeres, possuindo bons castelos mas parcos meios para
conservá-los, ofereceram-se a Jane Champion sem afetaçoes de
sentimentalidade e tiveram o dissabor de serem rejeitados com a mesma total
ausência de sentimentalidade. Dois ou três rapazes que ela ajudara a sair de
embaraços acreditando, num momento de enternecimento, não ser
desagradável tê-la sempre ao lado para impedi-los de ía-zer asneira, tinham-
lhe pedido que se casasse com eles. Respondendo com um tabefe amistoso
aos que se achegavam demais, Jane a sorrir mandara-os passear. Tais haviam
sido as suas experiências sentimentais. Ninguém nunca a amara só por ela. E
agora que a paixão de um homem silenciosamente a envolvia, não atinava
com a fonte da felicidade que a banhava. Via em Garth o pretendente
declarado de uma outra mulher, jovem e bela, com a qual jamais podia podido
pensar em rivalizar. Considerava pois sua intimidade com ele como o
desabrochar de uma amizade, como nunca pensara que existisse.
As coisas permaneceram assim até na terça-feira, dia em que os
convidados de Overdene se dispersaram. Jane partiu para Londres a fim de
passar dois dias em casa dos Brand; Garth seguiu diretamente para Shenstone
onde fora convidado propositalmente para encontrar miss Lister e a tia, a
senhora Parker Bangs. Jane devia chegar a Shenstone na sexta-feira.

EM CASA DE LADY INGLEBY

Logo que o trem que levava Jane deixou a estacão de Londres, a moça
encostou-se a um canto do vagão, soltando um suspiro de satisfagão.
Esses dois dias em Londres lhe haviam parecido intermináveis e
procurava a razão disto. Seu tempo iôra tomado por ocupações interessantes
e, em geral, o simples fato de estar ern Londres lhe agradava.
Por que se sentira ião descontente e isolada? Que se passara nesses três

32
dias? Flor estivera encantadora, Deryck bom e cordial como sempre, as
crianças muito gentis; que lhe faltara então?,..
— Eu sei, dizia-se Jane, foi a música. Tive música demais e que
música!... durante esse tempo de Overdene e foi a súbita privação dela que
me causou esta sensação de vazio e tédio. Nós vamos comcerteza fazer
muita música em casa de Myra; Dal estará lá para reclamá-la.
Ditoso sorriso iluminou por antecipação os traços de Jane, e ela
absorveu-se na leitura de uma revista.
Myra esperava-a à estação; guiava um pequeno tandem de potros e,
sem perder tempo, as duas amigas partiram a trote largo pelas estradas, Cam-
pos e bosques mostravam-se radiosamente verdes, dum verde suave, e Jane
respirava com ebriez o ar puro e vivo.
—Ah! como está bom isto aqui! exclamou de súbito, quase
involuntariamente.
— Cara amiga, replicou lady Ingleby, é um prazer tê-la com a
gente. Dá-me sempre a impressão de pôr tudo nos eixos quando chega.
Corriam entre frondes e cercas vivas, roçando às moitas de
madressilvas. Jane arrancou de passagem um galho de clematite.
— Alegria do viajante, disse com o mesmo sorriso de antecipada
satisfação, e floriu de branco abotoeira vazia.
—Pois bem, continuou Myra Ingleby, meus convidados comportam-se
de maneira satisfatória. E sabe, Jane, parece que não há mais dúvidas a
respeito de Dalmain. Quanto me regosijaria se a situação aqui se definisse! A
americanazinha é simplesmente deliciosa, tão viva e tão afável!... Dal já não
se faz de tolo; não que eu o achasse pueril, mas sei que você assim às vezes o
julgava. Está calmo, refletido; se se tratasse de outra pessoa diria até que
aborrecido. Os dois jovens seguem todas as regras da cartilha dos namorados.
Eu me estorço por desviar a atenção da tia; tenho medo que ela afugente Dal.
Por isto prometi maravilhas à senhora Parker Bangs, esforço-me por ouvir-lhe
as sentenças, distrai-la e entretê-la a distância de Dal. Acho que Dal fará hoje
o pedido a miss Lister. Não sei porque não o fêz ontem à noite. Estava um
luar admirável e eles sairam a passear de bote no lago. Que mais queria Dal?
Um lago, a lua e uma criaturinha encantadora ao seu lado!. .. Perdeu uma
ocasião única. Billy se encarregara da senhora Parker Bangs e quase a afogou
de riso com as suas pilhérias. Perguntou-me ela depois se Billy era viúvo. Que
significa esta pergunta, na sua opinião, Jane?
— Não tenho a mínima ideia a respeito, mas estou encantada com
o que você me conta de Dal e miss Lister. Paulina é precisamente a
pessoa que convém a Dal e há de se a íazer depressa os suas maneiras.
Depois, para Dal era indispensável uma beleza sem sombras, e em miss
Lister encontrá-la-á perfeitó.
— Sim, tem razão. Se você a tivesse visto ontem â noite, de setim
branco, os cabelos íloridos de eglantinas... Um sonho, realmente. Eu me
espanto é de que Dal não se tenha mostrado mais poético, mas talvez esta

33
calma aparente seja de bom augúrio. Suponho que esteja resolvendo a se
decidir.
— Não, respondeu Jane, creio que está decidido desde Overdene,
mas encara o casamento muito seriamente. Quem mais tem você aqui em
Shenstone?
Lady Ingleby disse o nome dos seus convidados: Jane conhecia-os
todos.
— Muito bem! aprovou ela, estou encantada de me ver aqui.
Londres estava horrivelmente abafadiça e poeirenta, Ah! lá está a adorável
igrejinha! Anseio por ouvir o novo órgão.
Passaram diante do pequeno templo pitoresco o mais possível sob o seu
manto de hera, e um minuto mais tarde transpunham a trote largo o gradil do
paíque, roçando de tão perto o rnarco de pedra que Jane não se pôde impedir
de lançar-lhe um olhar alarmado. Myra Ingleby surpreendeu-o,
— Ah! exclamou rindo, por uma linha ou por um metro que
importa, contanto que se passe! E o car ro mergulhou em marcha acelerada
sob as frondes dos olmos.
Apearam-se diante do terraço e Myra atravessou o vestíbulo com uma
graça negligente, sob a qual ninguém suspeitaria o vigor com que minutos
antes mantinha as cavalos. Myra levou Jane ao primeiro andar.
— Aqui, Jane. Escolhemos para você o quarto da magnólia, pois
sei que gosta da vista do lago. Oh! ia-me esquecendo de dizer que se está
realizando neste momento um torneio de ténis. È preciso que eu vá lá. Dal
e Ronnie jogam o final dos homens; vai ser uma bonita luta. Tomaremos chá
sob os castanheiros. Não se demore, pois, em preparar-se. Sua criada e suas
malas demoram um pouco.
—Obrigada, tornou Jane tirando o chapéu, vou desempoeirar-me um
bocado e pentear-me; daqui a pouco lá estarei.
Dez minutos mais tarde, guiada pela bulha das vozes e dos risos, Jane
chegava ao campo de ténis. Toda a companhia se achava reunida sob os casta-
nheiros alvos e cor de rosa. Como se adiantasse pôde a moça distinguir a ágil
silhueta de Garth, de calças de flanela branca e camisa roxa, e o jovem
Ronnie, alto e vigoroso, confiante na sua força hercúlea para contrabalançar o
golpe de vista mais certa e a mão mais leve de Garth,
O jogo estava animadíssimo; Garth já ganhava o primeiro set e parecia
dever ganhar o resto com facilidade. Jane dirigiu-se a uma cadeira vazia junto
de Myra, Acolheram-lhe a chegada com simpatia, porém sem, que a atenção
dos espectadores se desprendesse do jogo.
De súbito um rugido explodiu, Garth acabava de cometer dois graves
erros; Jane sentara-se, seguindo com os outros as peripécias da partida.
Quase imediatamente novas exclamações e gritos de surpresa
ressoaram. Garth jogara acima da linha; Ronnie ganhava.
— Nunca vi. Garth fazer coisa igual, declarou Billy; não sei o que ele
tem. Enfim, teremos o prazer de assistir a novo set. São admiravelmente

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aparelhados. Dal é o raio, Ronnie o trovão.
Os jogadores se aproximavam; Dal um pouco pálido sob o queimado
das faces. Estava envergonhado de ter fraqueado naquele ponto, não que fi-
zesse questão de ganhar, mas imaginava: que todos deviam ter percebido a
causa de sua perturbação, coincidindo esta com o aparecimento de uma
silhueta vestida de cinzento, diante da linha das cadeiras.
Em realidade, a única das pessoas presentes que estabelecera relação
entre a derroto de Garth e a chegada de Jane fóra a linda moça, sentada
defronte da rede, com a qual Garth trocara uma palavra e um sorriso, quando
passaram para outro lado do «courl».
A vitória definitiva foi no entanto de Garth, Os lutadores deixaram o
terreno juntos, “raquette” debaixo do braço e a animação de um combate
valentemente disputado estampado no rosto: A luta fora tão viva que ambos
ressentiam qualquer coisa de ebriez da vitória. Paulina Lister permanecera
sentada, com o casaco de Garth sobre as joelhos, segurando o relógio e a
corrente que o rapaz igualmente lhe confiara. Ele parou um instante para
tomar o que era dele e receber as felicitações da maca; depois, enfiando o
casaco, foi direito a Jane.
— Como vai, miss Champion?., .
Seus olhos buscavam ardentemente os de Jane e o contentamento que
neles leu encheu-o de satisfação e certeza: ela lhe fizera tanta falta naqueles
dias!... Terça, quarta, quinta, tinham sido intermináveis. Parecia estranho que
a ausência de uma só pessoa pudesse produzir tal vazio, mas era bom que
assim fosse e ambos disto tivessem consciência, desde que chegara o
momento em que ele ia confessar-lhe quanto ardentemente a desejava ter
sempre perto.
Estes pensamentos atravessaram o espírito de Garth, enquanto saudava
Jane com a banal interrogação à qual geralmente não se responde. Ela, en-
tretanto, lhe respondeu com franqueza, querendo informar-se como ia ele
comparar as suas sensações durante esses três intermináveis dias e retomar a
sua camaradagem no ponto exato em que a tinha deixado. Pôs a mão na do
rapaz com aquela franca decisão que lhe tornava o aperto de mão uma
verdadeira prova de amizade.
— Muito bem, Garth, obrigada; pelo menos vou cada vez melhor
desde que aqui me acho.
Garth encostou a «raquette» na cadeira de Jane, estendendo-se em
seguida na relva: aos pés dela,
— Qualquer coisa em Londres não lhe correu bem!. .. disse ele
em voz baixa sem olhá-la.
— Correu tudo perfeitamente bem, respondeu ela sorrindo;
havia calor e poeira à vontade, mas Londres estava esplêndida. Não, eu é
que estava decididamente com uma mola desconcertada e você vai
envergonhar-se de mim, se eu lhe disser o que foi.
Garlh não se mexera, continuando a arrancar folhinhas de grama que

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colocava na ponta do sapato de Jane. Esta conversa teria sido oportuníssima
se estivessem sós, mas iria realmente Jane anunciar a todos, alto e bom som, o
suave segredo de que a ausência a ambos fôra penosa?
— Bolo? perguntou de repente a voz fanhosa da senhora Parker
Bangs.
— Biscoitos? gritou Billy no mesmo instante e precipitando-se
quase derrubou nos joelhos da velha senhora o prato cheio que trazia.
Jane encarou um instante a senhora Parker Bangs e os seus biscoitos;
depois volveu os olhos para Garth, cujo moreno rosto estava inclinado para a
grama.
— Aborreci-me, confessou ela, e só as pessoas aborrecidas é que
se aborrecem. Mas no trem é que descobri a causa do meu tédio. Está
ouvindo, Dal?
Garth levantou a cabeça e fitou-a, compreendendo naquele instante
que o que julgava recíproco talvez não existisse senão de um lado. Os
calmos olhos de Jane brilhavam de amistosa alegria. —A culpa foi sua, meu
caro!
— Como assim? perguntou ele, enrubescendo, embora a
entonação da voz fosse simplesmente interrogativa.
— Porque, nesses últimos dias você me arrastou a uma tal orgia de
música como nunca até então conhecera e da qual senti grandemente a
privação a
um ponto alarmante. Comecei a recear pelo equilíbrio da minha boa
cabeça.
— Pois bem, disse Myra, surgindo do abrigo da sua sombrinha
encarnada, vocês poderão também aqui entregar-se a orgias de música, se
quiserem: temos três pianos.
— Obrigada, Myra, replicou Jane rindo; um só bastaria.
—E se vocês quiserem uma coisa realmente excitante como música,
não deixem de ir aos ensaios do ofício coral que estão preparando com o fim
de auxiliar uma subscrição para pagar o órgão.
— Prefiro pagar o preço total do órgão a ir ao ofício coral, retrucou
Jane com decisão.
— Oh! não, interrompeu vivamente Garth, a quem não escapara o ar
desapontado de Myra; é justo que as pessoas trabalhem para pagar as dívidas
da igreja e adquirir o que fala a ela. Mis Champion tem de vir comigo ao
próximo ensaio.
— Terei mesmo? indagou Jane inconsciente da ternura do seu
sorriso, lembrando apenas a noite de Overdene em que se sentiu forçada a
dizer a Garth: «Diga-me o que quer que eu faça, e o farei».
— Paulina é que há de gostar de acompanhá-los, lembrou a
senhora Parker Bangs; ela é doida pela música campestre!
— Está brincando, titia, replicou miss Lister que se fóra sentar
perto de Myra; sou da opinião de miss Champion: só gosto de boa música.

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Jane voltou-se vivamente com um sorriso cordial, dizendo da maneira
mais amistosa:
-- É preciso que venha conosco, miss Lister. Sofreremos juntas,
enquanto Dal nos der explicações. Pois imagino que ele há de ter a coragem
de sustentar as próprias opiniões.
Miss Lister, então lançou-se na descrição entusiasta de um episódio
musical a bordo do «Arabic»; lane ouvia atentamente, encantada com os
gestos, a voz, a atitude da linda americana, pensando no prazer que Dal devia
sentir ouvindo-a também. Mas este, de cabeça baixa, divertia-se em traçar
círculos imaginários sobre a relva com um galho de castanheiro.
Jane observou-o um instante, vexada aíinal com a evidente desatenção
de que dava prova. Todos se erguiam e ela contemplou sem inveja o admirá-
vel par que íorrnavam de pé, lado a lado, na luz ondulante da tarde, Dal e
Paulina Lister.
A natureza os tinha cumulado a ambos de raras prendas, Uma só crítica
se lhes poderia fazer quanto ao casamento, era uma sorte de similitude no
tipo, que teria podido iazê-los passar por irmãos. Mas Jane não teve essa
ideia. Sua admiração pela linda Paulina aumentava a cada olhar,
convencendo-a de ter dado a Garth o melhor conselho para a felicidade dele.
Um pouco mais tarde, como voltassem a casa ela e Garth sozinhos,
Jane disse simplesmente:
— Garth, você não se ofenda se lhe perguntar uma coisa. Está
tudo decidido?
— Nada que venha da senhora pode ofender-me, respondeu o
rapaz; mas seja mais explícita, de que se trata?
— Está noivo de miss Lister?
— Não!.. . O que a leva a pensá-lo?
— Você me disse terca-feira em Overdene...
— Terça! Parece-me que há semanas decorridas desde terça-feira.
— ... que pensava seriamente nisso.
— Não foram só semanas, foram anos, continuou Garth, e espero
que a senhora me torne a sério. Seja como for, não pedi miss Lister em
casamento e desejaria muito ter com a amiguinha uma conversa confidencial
a este respeito. Se consentir, hoje à noite, depois do Jantar, poderemos dar
uma escapada; quer vir comigo ao terraço, onde poderemos falar sem temor?
O luar no lago vale a pena de ser visto. Ontem passei uma hora no terraço.
Mas engana-se pensando que estava acompanhado: estava só no passeio de
barco; sonhava com.., a nossa conversa de hoje, talvez.
— Pois virei de muito bom grado, acedeu Jane sorrindo, e você me
falará sem reticências, que eu o aconselharei e ajudarei o melhor que puder.
— Dir-lhe-ei tudo, respondeu Garth baixinho, e me aconselhará; como
«só a senhora o pode fazer».
Sentada diante da janela do seu quarto, alguns instantes mais tarde,
Jane gozava o sol poente e a vista deliciosa e alegre daquela meia hora de

37
recolhimento antes de chamar a criada. Debaixo da janela estendia-se o
terraço e mais abaixo o jardim à moda antiga, com canteiros orlados de buxo,
dléias tortuosas e fontes espalhadas pelos massiços. Mais longe, o gramado
descia em declive suave até ao lago, semelhante naquela hora a um espelho de
prata. A calma era absoluta e uma serena paz dimanava de tudo. Jane
segurava um livro mas não lia. Contemplava embevecida os bosques, além do
lago, e o céu de nácar no qual flutuavam nuvens de rosa, estriadas de ouro.
Uma sensação de alegria e bem-estar lhe invadia o coração. Dentro em pouco
ouviu passos leves na areia, debruçando-se para ver quem era. Garth, saindo
da saleta de fumar, andava de um lado para outro e acabou atirando-se a uma
cadeira de vime. O aroma de seu cigarro vinha aié a ela de envolta com o
cheiro forte das mognólias. Garth deitou fora o cigarro, e começou a
cantarolar elevando a pouco e pouco o tom da sua voz de barítono, cantando
de manso:
Não sei dizer o que me inflama N’alma gentil de minha dama. . .
A entoação era tão vibrante e apaixonada que Jane teve a sensação de
ser indiscreta; apanhou uma folha de magnólia e, curvando-se no peitoril,
deixou cair sobre a cabeça do rapaz. Este estremeceu e olhando para o ar,
exclamou:
— Alo! Está aí?
— Sim, respondeu a moça, rindo e falando baixo
com medo que as outras janelas estivessem abertas: estou aqui. Você
enganou-se de janela, jovem enamorado, ao cantar a sua serenata.
— Meu Deus! como está bem informada! replicou Garth.
— Não estou? Mas na ausência de Margery é preciso dar-me licença de
ser o seu guia.
Garth levantou-se e, metade por pilhéria, metade por desafio, propôs:
— Se eu trepasse no pé da magnólia? Tenho
um montão de coisas a dizer-lhe, que não se pode realmente gritar diante da
fachada da casa.
— De certo que não, tanto mais quanto eu não
quero nenhum Romeu na minha janela. O montão
de coisas pode muíto bem esperar até à noite, senão vamos ambos ficar
atrasados para o jantar.
- Está bem, está bem. Mas a senhora tem de vir nem falta, logo à noite,
e me dar o tempo todo que lhe pedir.
— Irei assim que puder escapulir. Estou curiosa de ouvi-
lo, Oh! este perfume das magnólias.. . Quer uma para a sua lapela?
Ele sorriu, voltando-se para entrar.
— Por que sou eu sempre levada a bulir com ele?
Fui,realmente muito tola.. . Ele parece amá-la seriamente e ela. . .
Esperemos que o ame deveras e esteja disposta a casar-se. Pode
entrar, Mathews, e dê-me o vestido do concerto de Overdene; só
temos dez minutos.

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A REVELAÇÃO
O jantar de Shenstone era sempre uma comprida cerimónia a
que dois dos convivas mais salientes não podiam furtar-se sem dar
na vista; de maneira que só quando um distante relógio bateu dez
horas na aldeia já pacatamente adormecida foi que Garth e Jane pu-
seram pé no terraço deserto. Garth, de passagem. munira-se de um
chalé, fechando cautelosamente a porta do vestíbulo inferior.
Achavam-se absolutamente sós, pela primera vez, desde os dias de
separação, que tão longos a ambos haviam parecido. Em silêncio,
caminharam lado a lado, ao longo do parapeito que dominava o
velho jardim. A luz argêntea do luar inundava romanticamente a
cena. Distinguiam nitidamente a orla dcs buxos, os atalhos
sinuosos, os massíços, e a distância o disco luminoso do lago no
qual se refletia a plácida beleza da noite enluarada.
Garth estendeu o chalé sobre o rebordo baixo do parapeito e
Jane sentou-se: ele ficou de pé junto dela, com os braços cruzados e
a cabeça alia. Jane, sentada um pouco de lado, tendo as costas
apoiadas a
um velho leão de pedra, voltara os olhos em direçâo ao lago prateado
do luar, parecendo-lhe que o moço também olhava para o mesmo ponto. Mas
Garth olhava Jane. Trazia ela o vestido do setim preto da festa de Overdene,
emoldurando-lhe a renda velha da grande gola a casta abertura do decote. Não
trazia pérolas ao pescoço. Apenas de um lado do cor-pete, nota de púrpura
viva sobre o brancor mortiço da renda, um lufo de rosinhas encarnadas. O luar
banhava-lhe suavemente o rosto grave a que a massa escura dos cabelos,
simplesmente penteados, dava estanha pobreza. A esbeltez de seu alto porte,
quebrada pelo abandono da atitude, fazia-se mais flexuososa e mais feminina
e da bondade do seu sorriso, do calmo brilho de seus olhos leais emanavam
uma força tranquila, uma ternura latente que faziam vibrar o coração do
homem que a contemplava. Todo o amor, toda a adoração que lhe enchiam o
peito transbor-dante subiram aos olhos de Garth, brilhando neles como um
sol. Nada mais tinha a esconder. Sua hora chegara enfim; nada queria
dissimular àquela que amava.. .
Ao cabo de um momento, espantada que ele não começasse as
confidências a respeito de Paulina Lister, ela voltou-se e o seu olhar
interrogador deu com o de Garth...
— Dal! exclamou erguendo-se a meio. Ah! Dal... não!...
Ele fê-la sentar-se de mansinho.
- Silêncio! querida, disse num tom de estranha autoridade; deixe-me
falar primeiro. É preciso que ou lhe diga tudo, tudo... Prometeu ouvir-me,
aconselhar-me, ajudar-me. Chegou o instante de cumprir a tua promessa. Ah!
Jane, Jane necessito tanto do seu conselho e não só do seu conselho mas de
sua pessoa.
Jane, de você mesma... Ah! se soubesse quanto me é
necessária!.. . Esses três dias forarn de sofrimento contínuo porque
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você estava ausente e a vida só realmente recomeçou quando a vi
chegar. Custou-me tanto, foi-me tão duro esperar todas essas horas
para (alar. .. Tenho tanta coisa a dizer-lhe, Jane, e antes de tudo o
que você para ruim se tornou desde a noite do concerto.. . Tudo na
minha vida tem sido até então trivial e superficial. Esse desejo, essa
necessidade de você é tão grande que amesquinha miseravelmente
tudo o que precedeu. Oh! Jane, andei apaixonado por muitas
mulheres, delirei por elas, pintei-lhes o retraio, esquecia-as. . . Mas
nunca amei uma só mulher até hoje; nunca me fora dado
compreender o que uma mulher podia ser para um homem até o ins-
tante em que ouvi a sua voz modular, aprendi também a desfiar-lhe
as contas ao meu íntimo rosário, horas preciosas do passado, há
muito esquecidas e só hoje apreciadas... Cada conta é uma prece.. .
Ah! possam o passado e o presente confundir-se num rosário
perfeito e não nos reservar o futuro nem dor, nem possibilidade de
separação!... Oh! Jane, Jane, poderei eu jamais fazer-lhe
compreender todo, todo o meu amor?
A eslas últimas palavras dobrara o joelho diante dela e,
estendendo os braços, num gesto de súplica e de posse, rodeara-lhe
a cintura, escondendo-lhe nas rendas do corpete o rosto
transfigurado de ternura. .. Um apaziguamento desceu sobre ele,
toda a luta para fazer-se compreender cessou como por magia na
silenciosa eloquência desse amplexo que tudo aclarava dentro
deles, estreitando-os no mais completo dos entendimentos.
Jane não tinha forças para falar, nem para mover-se: era tão
singularmente delicioso tê-lo ali!... Atempestade de emoção que a
sublevava amainou-se e um divino sossego lhe reinou de súbito no coração ...
Compreendeu de repente que fora a ausência dele que tão ermos lhe tornaram
aqueles três dias s, compreendendo-os, rodeou também e inconscientemente
abraçou o amigo precioso. Sensações desconhecidas tumultuavam nela, o
sentimento deslumbrado r de não estar mais só, de ser proletora e protegida,
um único fato radioso dominando tudo: ele e ela, juntos! Como pensava
assim, Garth levantou a cabeça e, enlaçando-a sempre, os olhos fitos nos seus
olhos, murmurou inebriantemente:
— Juntos, nós dois... E você minha... minha!...
Jane, porém, não pôde suportar o brilho daquele olhar de fogo, a
lembrança de sua inferioridade física lhe apertou o coração diante daqueles
olhos de adoração que, corno luzes implacáveis, mais claramente ainda lha
revelavam. Sem outra intenção senão dissimular o rosto feio àquele para o
qual tão bela quizera ter sido, apertou a cabeça de Garth de encontro ao peito
fremente, mas ele, sentindo a doçura das queridas mãos nesse movimento de
espontânea carícia, julgou aceito tudo que mudamenle acabava de oferecer. . .
Durante dez, vinte, trinta segundos de delicia, sua alma palpitou de uma
alegria que as palavras humanas são impotentes para traduzir.. . De-
senlaçando-se por fim do braço excessivo, levantou a cabeça, fitando Jane,
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face a face:
— Minha mulher!... — disse religiosamente como numa
invocação.
Nos olhos sinceros de Jane perpassou uma expressão de espanto; depois
um rubor subiu às suas faces e as fez ardentes; ela sentiu que eu coração
desfalecia.
Libertou-se dos braços de Garth, ergueu-se e ficou imóvel, olhando o
horizonte onde as águas dormentes luziam sob a claridade lunar,
Garth permaneceu ao lado dela, sem a tocar nem lhe falar. Estava
seguro de a ter conquistado e uma felicidade indizível lha enchia a alma. Seu
espírito exultava e o silêncio lhe parecia mais expressivo que qualquer
palavra.
Jane falou enfim.
— Garlt, será verdade? Quer que eu seja... sua esposa?
—- Sim, querida, respondeu este com emoção profunda. Pelo menos
vim aqui para isso — oh minha bem amada! já a considero rainha esposa.—
Nenhuma promessa, nenhuma cerimónia a poderá fazer mais minha do que
estes momentos de maravilhosa união espiritual.
Jane virou-se lentamente e o fitou. Nunca vira nada tão radiante como a
fisionomia de Garth, mas aqueles olhos cintilantes feriram-na qual um gládio:
teria querido cobri-los com as mãos ou pedir-lhe que os desviasse enquanto
lhe falava. Pôs um joelho no braço de pedra, encostou o braço no parapeito
encobrindo o rosto com a mão aberta. Só então, tentou falar:
- Você me surprendeu, Dal, Eu percebera naturalmente, que era cheio
de atenções encantadoras desde o concerto, e que nosso gosto comum pela
música estreitara a nossa amizade, estabelecendo entre nós um tom
confidencial que me parecia a expressão de uma camaradagem maior.
Confesso que dava mais apreço à sua amizade do que a qualquer outra, mais
isto é porque você, Dal, é um ponto brilhante no circulo dos seus amigos.
Sinceramente julguei que esta tarde queria fazer-me uma confidência a respei-
to de Paulina Lister. Toda a gente julga que a beleza dela o cativou, e,
na verdade, Dal, na verdade eu o julgava também. Jane deteve-se.
— Pois bem, replicou uma voz tranquila, já agora sabe que julgou
errado!. ..
— Dal, você de tal modo me surpreende!. . , Nem posso
responder esta noite.,. esperemos amanhã...
— Mas, disse ele, não é preciso que minha bem
amada responda, como não foi preciso que eu perguntasse. Não está claro que
o pedido já foi feito e a resposta já foi dada? Oh, querida, venha para perto
de mim. Sente-se...
Jane, porém, permanecia de pé.
— Não, disse ela, não posso considerar tudo concluído. Você me
surprendeu e eu perdi imperdoàvelmente a cabeça, confesso. Mas, meu
amigo, bem sabe que o casamento é uma coisa séria e não exclusivamente

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uma questão da sentimento. Sua essência é a duração, exige por conseguinte
uma sólida base, capaz de suportar a vida quotidiana cm comum. Conheço
intimamente tantos casais!. .. Passo temporadas em casa deles, aceito-lhes
ser madrinha dos filhos e, connhecendo-os assim, jurei a mim mesma só me
arriscar ao casamento com muitas garantias. Não proteste,
pois, se eu lhe pedir doze horas para refletir.
Garth ouviu tudo em silêncio. Sentou-se no parapeito, as costas para o
lago, recuando para traz a fim de melhor perscrutar o semblante de Jane, mas
a mão aberta lho tapava. Cruzou as pernas rodeando os joelhos com as mãos e
conteve-se durante alguns segundos para dominar o impulso que o levava a
falar ou agir com violência. Querendo recobrar o sangue frio tentou deter a
atenção sobre coisas insignificantes, oferecidas diretamente ao seu olhar.
Notou a mancha vibrante da cor rubra de suas meias sobre o alvor do ladrilho
do terraço, prometendo-se doravante só usar meias vermelhas à noite.
Perguntou a si próprio se Jane não lhe faria um dia umas meias de
tricot, sorrindo a esta ideia. Contou em seguida as janelas da fachada e
quantas separavam o quarto dele do de Jane. Sentiu-se afinal senhor de si.
— Querida, perguntou com doçura, diga-me, você então não
compreendeu ainda há pouco?
— Oh! disse Jane duramente, não me peça que analise as minhas
emoções. O casamento é um ato sério e não um sentimento. Se deseja
realmente agir para bem de nós dois, volte já para dentro e não me diga
mais nada hoje. Você falava ainda há pouco em ir experimentar o órgão da
igrejinha, amanhã de manhã. Pois bem, lá estarei às onze e meia e,
depois de tocarmos, dar-lhe-ei minha resposta. Mas, agora não; eu lhe peço,
deixe-me sozinha, pois não posso mais... Preciso ficar só.
Garth desatou as mãos que estavam fortemente entrelaçadas e a moça
sentiu que uma destas mãos se apoderava da fimbria de sua saia; depois a bela
cabeça dele se curvou, murmurando: «Beijo a cruz» e, num gesto
infinitamente terno e respeitoso, beijou a fimbria do vestido de Jane.
Um segundo depois estava ela só. Ouviu os passos se afastarem, abrir-
se e fechar-se a porta do vestíbulo ... Então, lentamente, retomou o lugar que
ocupava, quando Garth se prostara diante dela.
Estava bem só. A tensão dos últimos instantes caía. Apertou as duas
mãos de encontro ao peito, ali onde a cabeça querida tão abandonadamente se
apoiara... “Se ela compreendera”, perguntara-lhe Garth. Oh, Deus, como não
compreender?
As lágrimas não vinham facilmente a lane, mas nessa noite, fora
chamada por um nome que nunca julgava ouvir, um nome que nunca mais por
certo ouviria.,. Grossas lágrimas silenciosas lhe caíram sobre as mãos e nas
rendas do carpete, seu domínio sobre si mesma, todo masculino, cedia, enfim,
na onda vitoriosa de ternura que lhe afogava a alma desamparada — e a
mulher não pôde deixar de pagar à sua sensibilidade alvoroçada o eloquente
tributo dessas lágrimas. Ao redor dela, a seus pés, se despetalavam rosas, na
latescéncia azulada do luar.
42
Ao cabo de certo tempo volveu ao vestíbulo, onde grupos animados se
dispersavam ao ressoar de alegres “boas noites”.
As mulheres subiram a escadaria, lançando ainda réplicas brincalhonas
ou uma última palavra relativa aos projetos do dia seguinte.
Garth Dalmain, no último degrau achava-se em vivo colóquio com
Paulina Lister e a tia. Jane ao entrar avistou-lhe a silhueta esbelta. Dava-lhe as
costas, e, embora ela, adiantando-se, se achasse pertinho, não o viu dar
demonstração nenhuma de ter percebido a sua presença. Mas a súbita alegria
da voz de Garth parecia misteriosamente fazê-lo de novo dela. Só ela
conhecia a causa dessa jubilosa entoação que escutou levando
inconscientemente a mão ao peito.
— Sinto imenso, minhas senhoras, dizia Garth as americanas,
porém amanhã tenho um compromisso na aldeia, lá para as onze horas.
Impossível, portanto.
— Deve ser alguma coisa de delicioso sabor campestre, senhor
Dalmain, replicou a velha Parker Bangs; porque não nos levar, a Paulina e
a mim? Nunca vimos uma leiteria nem uma guardadora de vacas, nem nada
do que se encontra nos romances régionalistas. Gostaria tanío de entrar numa
cozinha rústica!
— Talvez fossemos demais na leiteria! Alvitrou maliciosamente
miss Lister.
A moça estava deslumbrante no seu vestido de se-tím cor de pêssego,
que maravilhosamente lhe realçava o garbo da sedução americana. Hão tinha
outra jóia senão um fio de pérolas, muito iguais e lateas, mas sobre a carnação
magnifica de Paulina Lister as pérolas pareciam fulgurar.
Todos esses encantos, que visavam Garth, passaram-lhe por cima da
cabeça indo atingir Jane, que se achava na retaguarda; avaliou-lhe de relance
todos os pormenores de bonítez, de mocidade e de elegância.
Nunca a beleza cintilante da jovem americana foi tão justa e
imparcialmente apreciada.
- Infelizmente, continuava Garth, minha entrevista nada tem a ver com
uma leiteria gentil e sim com um ser bastante hirsuto, cuja beleza campestre
consiste numa juba de cabelos ruivos e inumeráveis sardas.
— Filantropia, então? interrogou miss Lister com o seu louro
sorriso de sereia.
— Sim, a seis vinténs a hora.
— Aposto que se trata de golf! Porque todos estes mistérios com
uma coisa tão simples? acrescentou a senhora Parker. Pode esperar ver-
nos surgir nos «links» para lhe admirarmos o jogo.
— Minha cara senhora, sua bondade eleva a dema
siada altura a minha capacidade de jogador, do mesmo modo que exagera os
meus méritos a outros respeitos. O passeio a pé pela mata seria realmente
encantador, sobretudo na agradável companhia das senhoras...
mas o dever tirânico me chama precisamente do lado oposto.

43
A senhora Bangs queria insistir, mas a sobrinha interrompeu-a em tom
bastante peremptório.
— Basta, minha tia, não seja importuna. Estamos, aliás,
obstruindo a escada a miss Champion, que quer passar.
Garth arredou-se e Jane começou a subir os degraus. Ele não a fitava,
mas parecia-lhe que tinha os olhos presos à fimbra do seu vestido no
momento em que a saia roçou por ele. Parou um momento ao lado de miss
Lister. Sabia que era violento o seu contraste com a beleza alva e delicada da
jovem americana, mas virou-se resolutamente apresentando-se de frente a
Garth para que ele pudesse vê-las juntas e compará-las. Desejava que o artista
pudesse julgar a cruel diferença. E esperou.
Os olhos de Garth permaneciam abaixados, mas levantaram-se
gradualmente até a renda do corpete onde por um segundo se imobilizaram,
tornando a abaixar-se em seguida.
— Então, a senhora vai jogar amanhã com o nosso grande
artista, miss Champion? perguntou estouvadamente a palradora senhora
Bangs.
Jane ficou rubra, sentindo-se logo furiosa de ter enrubecido e
amaldiçoando as circunstâncias que a laziam agir de maneira tão contrária à
sua natureza. Hesitou longamente. Como ousava Garth comportar-se assim?...
As pessoas iam pensar que o seu vestido tinha algo de singular. Forçou-se
porém à calma, respondendo um pouco desabridamente:
- Não jogo golf amanhã, mas a senhora não pode dar melhor emprego à
sua manhã do que ir aos «links». .. Boa noite, minha senhora; durma bem,
miss Lister; boa noite, Dal.
Garth, que se achava um degrau abaixo dela entregando à tia de Paulina
uma carta que ela deixara cair, respondeu simplesmente:
— Boa noite, miss Champion, e os seus olhares se cruzaram por
um instante, sem que todavia lhe estendesse a mão ou parecesse ver que ela a
meio lhe oferecera.
As três subiram juntas a escada. Miss Lister entrou por um corredor à
direita, com a tia andando atrás dela.
— Houve briga, obtemperou a senhora Parker Bangs.
— Pobre criatura! suspirou miss Lister. Gosto muito dela.
Julgava-a, porém, mais sensata que nós outras
— -De espécie bem vulgar, observou a tia sem prestar atenção ao
final da frase,
—Não foi ela quem fez o próprio rosto, advertiu generosamente miss
Lister.
— Não, e não paga a ninguém para que lho
consertem um bocado. Ela é o que Walter Scott denomina «o natural em toda
a sua rudeza».
— Querida tia, replicou a linda Paulina num tom de extranho
cansaço, não se dê ao trabalho de citar clássicos ingleses, quando estamos a

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sós. É em pura perda. Eu sei que os leu a todos. Mais eis-nos em casa:
entre e ponha-se à vontade neste canapé. Preciso dar-lhe algumas
explicaçeõs urgentes e duas palavrinhas adicionais acerca de miss Champion.
Ela é camarada e me inspira simpatia. Não se pode dizer que seja bonita,
mas tem um belo porte e sabe vestir-se. Tem muito dinheiro e poderia ter
pérolas mais lindas que as minhas, mas é bastante inteligente para
compreender que as pérolas não vão bem senão às peles muito brancas.
Gosto de mulheres inteligentes.
Todos as homens a adoram, não pelo seu físico, mas pelo que
ela é, o que, afinal de contas, titia, não deixa de ser o que mais
enfeita uma criatura. Em todo caso é sempre o que mais dura.
Daqui a dez anos a grande Jane será o que é hoje e eu me esforçarei
para ser o que não serei mais. Quanto a Garth Dalmain, tem olhos
para todos nós, mas o coração para nenhuma. Suas palavras de mel
e seus olhares de fogo não significam casamento, pois é daqueles
que se fizeram um ideal de mulher, e não querem casar com nenhu-
ma que lhe seja inferior. Não fará um casamento de dinheiro, pois
tem-no de sobra. Não há de procurar a beleza, porque tanto adora
as bonitas caras que nunca tem certeza de preferir uma a outra
durante vinte e quatro horas. Não desposará a bondade, o mérito,
nem a virtude pois nesse ponto a grande Jane lhe realisaria o ideal e
ela é demasiado sensata para unir a sua fealdade a um epicurista
daqueles. Considera-se, aliás, avó dele. Mas Garth Dalmain, o
pobre, é de tão sublime inconsciência que não duvida atingir o seu
ideal. Julga possuí-lo já e vai ter uma cruel decepção quando ela
lhe dizer que não, pois tenho a certeza que o vai fazer pelas razões
acima enunciados. Durante esses três últimos dias que ele me
andou à ronda, você e outras amáveis casamenteiras seguiram-nos
com tocante candura, persuadidas de que nós estávamos ficando
doidos um pelo outro e que ele beijava a terra em que eu andava e
contava os minutos passados longe de mirn. Mas o que vocês não
sabiam é que se ele se comprazia ern minha companhia era
unicamente porque eu lhe falava dela e o compreendia, É só o que
houve e jamais haverá algo entre mim e Garth Dalmain e se você
tivesse real solicitude pelo meu jovem coração, descobriria alguma
razão premente para safarmos daqui às primeiras horas do dia. .. E
agora, titia de minha alma, não fique aí a argumentar, pois que exgotei
brilhantemente o assunto. Vamo-nos deitar que o meu vestido me aperta e
estou caindo de sono. Sim, Josephina, pode entrar. Boa noite, titia, tenha bons
sonhos que a inspirem.
Depois de retirar-se a criada, Paulina apagou a luz e, abrindo a janela,
quedou-se longo tempo abstraida, diante da plácida paisagem inglesa imersa
em luar. Murmurou por fim baixinho: — “Advoguei sua causa, Garth, embora
você não o merecesse. Há semanas que eu deveria ter ouvido falar de Jane. ..
Em todo o caso isto fará calar os boatos a nosso respeito. Quanto a você;
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continuará a suspirar pela lua, e quando descobrir que a gente não pode atingi-
la, não terá por certo a ideia de procurar compensação junto a uma claridade
mais terrestre» -— acrescentou corn um sorrizinho zombeteiro,, pois a alegria
de Paulina esfusiava tanto na solidão como em sociedade; e tanto a sua
própria custa como a custa dos outros, seu valente coraçãozinho americano
queria admitir para si mesmo avaria séria.
Durante esse tempo Jane dobrara à esquerda e, sem se apressar, chegara
ao seu quarto. Garth não lhe aceitara a mão que lhe estendera; sabia perfeita-
mente porque. Não desejaria mais apertar-lhe a mão como a um simples
camarada; se ela lhe recusasse a posse definitiva desta mão perderia para
sempre a saudação afetuosa e familiar do amigo. No terraço, só com ele, tinha
pela primeira vez compreendido o que é um coração de homem: sondara-lhe a
profundeza, vira o fundo de ferocidade primitiva oculto sob o verniz da
civilização, advinhava a aspiração secreta, a sede ancestral de domínio: —
tomar, possuir e guardar. E mato quem m’a quiser disputar! E a alma galharda
de Jane estava pronta para responder uma vencida aquiescência; sim!... sim!...
Mas as coisas nunca mais poderiam ser o que haviam sido. Nenhuma
sutileza sentimental, nenhum oferecimento de fraterna amizade bastaria mais
ao homem do qual tivera a cabeça apoiada ao sou coração. Ela o
compreendia. Ele se dominara admiravelmente, mas Jane sentia que era uma
pequena trégua que lhe concedia. Considerava-a sua, e a certeza do futuro
próximo lhe dava paciência para o presente.
Entretanto, agora, enquanto esperava a sua resposta, não quisera trocar
com ela o aperto de mão do amigo... O amigo morrera, o dono e senhor queria
d’oravante existir... Jane fechou a porta a chave. Precisava encarar o problema
do porvir sob o ponto de vista de ambos. Ah! se pudesse fechar a porta a
todos os pensamentos que não fossem unicamente ele, se pudesse aceitar
simplesmente o dom admirável de amor que lhe punha aos pés! Durante
curtos instantes faria assim. Tinha direito a urna hora de felicidade, livre de
tomar em seguida parte do fardo e discriminar com clareza as consequências
que o casamento podia ter para ambos. O que significaria para ela, Jane, não
entrava em linha de conta. Ela se conhecia, tinha consciência do seu valor,
mas não era egoista. Deixou o quarto no escuro e, aproximando-se da janela,
abriu-a, puxou uma cadeira, sentando-se diante do panorama encantado da
noite cheia de luar. Os cotovelos no peitoril e o queixo nas mãos, baixou os
olhos para terraço inundado de luar... A janela fazia quase frente ao lugar pre-
ciso onde ela e Garth tinham estado. Distinguia o leão de pedra e o vaso de
gerânios vermelhos... As recordações despertavam vibrantes. Jane
abandonou-se à sua doce evocação. Iulgou-se com este direito.
Imolou em pensamento a liberdade de que tanto se ufanava e com todas
as forças de seu ser prometeu a Garth amá-lo, honrá-lo, obedecer-lhe... Sofreu
sem tremer a adoração dos olhos apaixonados,.. Não tinha mais corpo, toda
ela era alma e esta alma era bela, bela bastante, mesmo para ele.
Os anos solitários desapareceram... sua vida teve um fito, uma razão de
ser. Ele precisaria sempre dela e sempre ela estaria a seu lado para responder-
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lhe ao apelo. - - «É assim que está bem, meu adorado?...» e a voz ditosa de
Garth responderia todas as vezes: -- «É assim!...»
Jane sorria na noile e na profundidade de seus olhos tremia uma
intuição nova e seu meigo sorriso revelava a inefável compreensão da
verdadeira felicidade da mulher. Ele é meu e eu sou dele... O coração de Jane
dava-se sem reserva, dilatado na alegria da oferta. Depois a mãe acordou nela,
e conheceu como a ternura materna se mescla sempre ao amor da mulher bem
mulher e quanto há de criança no homem que ama e na sua necessidade
daquela que se lhe tornou indispensável. — «Garth, murmurou, compreendo-
te tão bem, meu pobre querido: foi-te duro seres repelido, mas naquele curto
minuto tudo tiveste de mím,.. Nunca nenhum outro rosto se há de encostar
aqui onde se encostou o teu... Sou tua hoje e para sempre, eternamente»,
Jane encostou a testa ao rebordo da janela e a luz da lua caiu sobre a
sua espessa cabeleira escura. O perfume das magnólias envolvia-a. Um
rouxinol fazia fremir de trinados de ouro a romaria do bosque vizinho. Os
tristes anos de solidão, as apreensões da hora presente, a perspectiva incerta
do futuro, tudo se desvaneceu. Navegava em pleno oceano, com Garth, um
oceano de sonho, longe das nargeas li; rnitadas do tempo. Pais o amor é
eterno e o nascimento de um verdadeiro amor liberta a criatura das servidões
e das contingências da carne.
Ao longe um. relógio bateu meia-noite c as doze badaladas
repercutiram longamente pelo parque. Um dia novo começaria, o dia ern que
Jane prometera dar a resposta a Garth. Quando novamente doze pancadas
soassem no relógio, achar-se-ia com ele na igreja e a resposta devia estar
pronta. Deixou a janelc, puxou a cortina, apagou a luz, tirou o vestido de festa
e, vestindo um roupão, chegou uma cadeira à mesinha de escrever; depois,
tirando o diário da gaveta, começou vagarosamente a percorrê-lo; virava as
páginas parando, volvendo atrás, caindo afinal sobre as que procurava.
Meditou-as longamente, a cabeça entre as mãos. Eram as páginas contendo os
pormenores da conversa que tivera com Garth na tarde do concerto. Releu o
que ele dissera do velho pregador presbiteriano e da sua fealdade
transfigurada pelo ardor de sua fé e a beleza de sua alma: «Não era o género
de cara que gostaria de ter sempre à mesa», dissera Garth — «o que teria sido
para mim, um martírio...»
Jane continuou a leitura mas o seu espírito se concentrou nesta última
frase. Levantou-se enfim, acendeu os candelabros da penteadeira e, sentando-
se diante do espelho oval que todo o busto e a cabeça lhe refletia, contemplou
friamente a própria imagem...
***

Quando o relógio bateu uma hora, Garth Dalmain, de pé diante da sua


janela, dava um último olhar à noite enluarada, essa noite que fôra para ele
«Luz eterna!...» ao pronunciar Garth estas palavras pareceu-lhe que
transpassavam o silêncio, como um raio resplendente de sol. Jane avistava
a cabeça do rapaz acima do órgão. Temia o instante em que ele se voltasse e
47
seus olhares se encontrassem. .. Como aceitaria ele a sentença?
Discutiria, dominando-lhe a vontade? Poderia opôr-e ao desejo de Garth?
Sairiam dessa luta sem se lerirem mutuamente? Que poderia ela diser e
responder? Que razão daria à sua recusa, para que ele se conformasse? Após
alguns acordes improvisados no órgão, o tema variou. O coração de Jane
parou-lhe no peito: Garth tocava agora o «Rosário». Não cantava, mas a
sutil doçura dos sons do órgão parecia lançar as palavras no espaço melhor do
que qualquer voz. As contas preciosas da saudade desfilaram-se uma a
uma em toda a sua pureza, depois a melodia entristeceu-se, revelando que
havia chegado à luz. Tudo tomou para lane nova significação; lançou em
derredor urn olhar de súplica, procurando se não havia meio de escapar ao
infinito encanto da melodia que enchia a igrejinha.
De súbito fez-se o silêncio. Garth levantando se, voltou-se e deu com
Jane; o clarão de uma grande alegria iluminou-lhe o rosto,
— Está bem, Jimmy, disse rindo, basta por hoje. Toma este penny
novo, já manobrastes tão bem... Olha, que é um shilling! Mas é teu assim
mesmo, porque hoje é um belo dia. O mais belo dos dias, Jimmy, e eu quero
que tu também sejas feliz. Agora, saía-te e fecha a porta da igreja, meu
rapaz!,..
Ah! como aquela voz vibrante tocou a alma de Jane!... O rapazola de
cabelos ruivos e cara crivada de sardas, radiante de contentamento, saiu de
trás do órgão, descendo por um dos lados, a arrastar
os pés; deixou cair o precioso shilling, deteve-se para apanhá-lo, saindo
enfim batendo com estrondo a pesada porta atas de si. Garth ficara de pé,
imóvel junto ao órgão, sem olhar para Jane, e, agora que se achavam
absolutamente sós na igreja, não se moveu, ficando alguns instantes assim.
Esses instantes pareceram a Jane dias, semanas, anos, uma eternidade!
Depois, Garth surgiu no meio da nave, cabeça alta, olhos brilhantes, tendo no
garbo da atitude a alegria do conquistar certo da vitória.
Adiantou-se até os degraus do altar e aí parou, fazendo sinal a Jane para
que viesse ter com ele.
— Aqui, bem amada, implorou; que seja aqui!
Jane aproximou-se e durante breves momentos
permaneceram ambos lado a lado, voltados para o coro; era ali a parte
mais escura da igreja pois só recebia luz por três estreitas aberturas ornadas de
vitrais sanguíneos. Garth voltou-se afinal para a moça.
— Minha amada, murmurou com fervor, estamos em lugar sacrosanto,
mas não pode haver nada sagrado demais para o que temos a nos dizer, e o
Deus no qual ambos acreditamos vai abençoar e ratificar as nossas palavras.
Espero sua resposta.
Jane, enterrando as mãos nos bolsos do casaco, respondeu:
— Dal, minha resposta será uma pergunta: Que idade tem você?
Percebeu no rapaz um movimento de intensa surpresa; viu-lhe a
claridade venturosa do rosto apagar-se e, depois de curta hesitação, ouviu-lhe

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a voz:
— Pensei que o soubesse, bem amada: tenho vinte e sete anos.
—Pois bem, replicou Jane depressa, como para se ver livre de uma
tarefa importuna: eu já fiz trinta, aparento trinta e cinco e sinto que tenho
quarenta. Você tem vinte e sete, Dal, parece ter dezenove e julga muita vez só
ter nove. Refleti muito, pensei e compreendi. . . que não me posso casar. ..
com uma criança.. .
Houve um silêncio absoluto e como tomada de susto Jane voltasse para
ele os olhos que propositadamente desviara, viu que Garth se tornara lívido;
um semblante duro e calmo, a calma glacial da pedra.
Falou por fim, numa voz sem timbre que se diria vir de longe:
— Não pensei nisso, confesso, articulou lentamente; não sei como
foi, mas desde que tenho a alma cheia de sua imagem, não pensei mais em
mim, de modo que não avaliei quanto realmente sou falho de qualidades para
que você me amasse. Pensei que sentisse como eu e que éramos. . . um do
outro. . .
Adiantou a mão um segundo, como se a fosse tocar, mas o braço lhe
caiu pesadamente.
— Tem razão, continuou, você não pode casar-se com um homem
que considera uma criança.
Desviou-se dela, olhando novamente o coro. Durante o espaço de um
longo minuto contemplou silenciosamente o vitral, acima do altar onde
agonizava um Cristo de púrpura e ouro.
— Aceito a cruz. . . disse com os lábios brancos de cera; e,
voltando-se, desceu tranquilamente a nave. A porta da igreja abriu-se,
fechando-se depois com surdo fragor.
Jane ficou só. Cambaleou até o banco de onde sairá, deixando-se aí cair
desfalecidamente de joelhos.
- Oh! meu Deus, meu Deus, gemeu num soluço; fazei que ele volte!
Restitue-m’o!. . . Oh! Garth, meu amor, eu é que sou indigna de ti!. . . Oh!
Garth,
Volta! Volta! Terei confiançia, não duvidarei mais, . Oh!. meu amor,
meu amor, volta! . .
Esperou, de ouvido á escuta. Escutou até que todos os nervos de
Seu corpo vibrassem de sofrimento Decidiu o que diria quando a pesada
porta se reabrisse e Garth surgisse num raio de luz. Esperou em um
silêncio que a espera parecia aumentar, apertando-a num circulo
cruel, que, era um muro de treva que só se abriu para lhe deixar
encarar a frieza da sua futura solidão. Mais uma vez rompeu o si-
lêncio com um apelo dilacerante;
- Oh! meu amor, meu amor!...
Mas nenhum passo se fez ouvir e, de joelhos, o rosto enterrado nas
mãos, sem lágrimas mas com o coração a estalar no peito opresso. Jane
compreendeu que Garlh Dalmain aceitara sua decisão como final e

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irrevogável e nunca mais voltaria..
Não soube quanto tempo ali ficou de iaelhos. numa prostração de
aniquilamento. O reconforto veio-Ihe enfim; tinha a convicção que agira
acertadamen-Ier e algumoa horas de angústia no presente valiam, mais do que
anos e anos de desilusão. Sua vida seria doravante tristemente vazia e a perda
da ventura en-trevista lhe custava mais do que imaginara, oh! muito mais!..
Estava porém sinceramente persuadida de ter agido para o bem de Garth —
Que importava então, o seu próprio pesar?...
Foi desta maneira que o reconforto veio a Jane.
Perto do parque animado um grupo de meninas se preparava para soltar
um papagaia. Jimmy- o herói da hora, o centro da atração era o feliz
proprietário desta maravilha. O rapazinho achava provavelmente gandre esse
dia e estava perfeitamente feliz. “Feliz também” - dissera Garth. E os olhos de
Jane se encheram de lágrimas, lembrando o tom com que ele
pronunciara estas palavras.
Como ia subindo a alameda do castelo, viu uma charrete que
descia. Garth Dalmain guiava-a, tendo atras um criadinho com a
maleta. Levantou o chapéu ao passar, mas com os olhos fixos na
frente, muito pálido ainda; e num segundo desapareceu.
Se Jane livesse tido o desejo de detê-lo.. não lhe fora isso
possível, tão rápido passara. Mas não desejava detê-lo, certa de que
agira para o bem de ambos; e julgando que o sofrimento real era só
dela. Ele, num futuro bem próximo sem dúvida, encontraria a que lhe
seria o que ela não teria podido ser. Para Jane os anos não fariam outra
coisa senão margulhá-la mais em sua solidão.
No vestíbulo crusou u com Paulina Lister.
—- Ah! miss Campion, a senhora por aqui? exclamou a linda
americana. Já sabe da novidade: Garth Dalmiain recebeu um
telagrama de Londres, um chamado urgente; parte pelo trem de
uma e um quarto. E minha tia, tendo sofrido um acidente na
dentadura, obriga-nos também a precipitar-nos para um gabinete de
dentista, pelo das duas e vinte! Como são incertas as coisas deste
mundo!... Myra está desolada! Devem servir-nos o lanche mais cedo
e no quarto Adeus, pois, miss Champion!...
A RECEITA DO DR. DERYCK

Jane Champion de pé no alto da Grande Pirâmide, contemplava o


horizonte. Os quatro árabes, cujos esforços combinados até ali a tinham
carregado, jaziam em derredor, na atitude de pitoresco repouso habitual aos
de sua raça. Três anos haviam decorrido desde a noite fatal de Shenstone, em
que Jane tomara a decisão que dfinal ali a trouxera. Estremeceu à recordação
do isolamento que, a partir daquele momento, a envolvera, Oh! que teria
acontecido se Garth houvesse respondido ao grito abafado que, nos primeiros
instantes de intolerável sofrer, lhe jorrara do fundo d’alma chamando-o

50
desvairadamente?. .
Mas Garth não era homem de ficar na soleira, quando lhe batiam com a
portla na cara. Compreendeu a recusa formal a seu pedida, saíra
resolutamente da vida de jane. Estava na estação antes que ela chegasan a
casa e, desde aquele dia até esta hora, nunca mais havim se encontrado.
Garth considerava evidentemente um dever evitar Jane. Em duas ou
três ocasiões em que visitaram amigos comuns coincidia Garth acabar
precisamente de sair quando ela entrava! Arranjava sempre meio de escapar a
um encontro acidental na estação, que o teria forçado a um cumprimento que
lhe desagradaria. A nobre resignação de Garth, a dignidade de seu
afastomento continuavam a surpreendê-la. Jane não medira a profundeza da
respeito que ele lhe votava.
O talento de Garth, porém, afirmava-se cada vez mais. O retrato de
Paulina Lister, exposto no Salão seis meses depois, ficara logo célebre. A
linda americana, num vestido de setim branco, descendo os degraus de velha
escada solarenga, uma cacada de carvalho esculpido, as mães cheias de rosas
amarelas, tendo atrás e acima de si a fulgência de ouro dos vitrais luminosos
em que ressaltavam o brasão d’armas e a divisa da nobre família a qual
pertencia o castelo, era verdadeiramente uma aparição de primavera. O artista
tinha maravilhosamente exprimido a graça e a vivacidade da moça. moderna e
francamente americana, do alto da airosa cabecinha à biqueira dos sapatos de
setim Todos supunham que o casamento uniria em breve o artista ao modelo,
mas foi na realidade a dona do castelo que servira de cenário à tela que
persuadiu a linda Paulina a deixar-se fixar permanentemente num cenário que
tão bem se harmonizava com a sua beleza
Jane Champian ouviu muitas vezes citar a este respeito uma anedota:
contavam que miss Lister posara, tendo ao pescoço seu magnfico fio de
pérolas: Garth lhe reproduzira com extraordinária exatidão o raro oriente. Mas
um dia raspara com o canivete as pérolas todas, declarando que para
contemplar a harmonia das cores era preciso que ela pusesse seu colar de
topázios cor de rosa.
Quando Jane viu o quadro na Academia, os topazios rosados se
destacavam esplendidamente sobre a alvura torneada do jovem pescoço, mas
aqueles que antes tinham admirado a obra de Garth eram de opinião que o
artista sacrificaria um maravilhoso detalhe da pintura. Acrescentavam que a
própria Paulina Liater teria dito, levantando os lindos olhos:
— Harmonia de cores foi pretexto. A verdade é que ele desmanchou as
pérolas porque uma pessoa em visita ao “atelier” cantarolou não me lembro
mais o que, olhando o quadro. Era capaz de dar uma boa recompensa a quem
descobrisse que música foi!...
Jane soube dessa história pola primeira vez ao tomar chá no galante
salão íntimo de lady Brand: O concerto em que Dalmain ouvira Jane cantar
“O Rosário” jazia no fundo do passado. Mais de um ano já decorrera depois
da ruptura, eesta fôra a primeira referencia a Garth que chegou até Jane. Não
duvidou um instante que a música distraidamente trauteada tivesse sido o
51
“Rosário”:
“As horas todas que passei contigo Roubou-as a saudade ao tempo
vário... E vivo agora a desfiar, amigo, As contas ideais desse rosário...”
Pareceu-lhe que Garth lhe falava ainda no terraço...
O coração de Jane se entorpecia no vácuo que A rodeava. Este incidente
de “atelier” veio despertá-lo e aquece-lo um momento, mas o acordar foi
acompanhado de uma dor aguda Quando os visitantes se retiraram lady Brand
subiu para ver os filhos, Jane, ficando só, foi ao piano, sentou-se e pôs-se a
tocar em surdina o acompanhamento do «Rosário”... De repente uma uma
voz disse atrás dela:
- Cante, Jane!
Ela estremeceu e voltou-se. O doutor entrara e acabava de se estirar
preguiçosamente numa grande poltrona, mãos crusadas atrás da cabeça. —
Cante, Jane, insistiu.
— Não posso, Deryck, respondeu ela, conquanto continuasse a fazer
fremir as teclas sob os dedos há meses e meses que não canto...
- O que se passou nesses meses?
As mãos de Jane deixaram o piano juntabndo-se num movimento
convulsivo.
—Meu amigo, mumurou, estraguei minha vida! E, no entanto,
sei que agi como devia. Recomeçaria se fosse preciso; acho pelo
menos que recomeçaria...
O doutor não respondeu; fitava Jane e meditava sobre as frases
truncados. Esperou outras confidências, sabendo que viriam mais facilmente
se fizesse silencio. Elas Vieram.
— Renunciei a qualquer coisa que significava para
mira mais do que a vidar Fi-lo por amor de outrem, mas não
me posso consolar de o ter feito. Sei que cumpri o meu dever,
mas isto não me basta!
O doutor inclinou-se tomando nas dele as suas mãos crispadas.
- Pode dizer-me Tudo, Jane?
—Não; não possa dizer a ninguém!
— Mas se você sentir precisão um dia de falar a alguém, prometa
escolher-me para confidenle, Jane? Somos camaradas véllhos.
- Com muto prazer ...
- Bom. Agora è precisa obedecer-me, minha fiJha, seguir-me â risca a
receita; Viaje, parta para o estrangeiro e note que eu não considero
estrangeiro: Paris, a Suíça ou a Riviera. Vá para a América, longe daqui,
conlemplar alguns grandes panoramas; vá ver o Niagara. E depois, quando a
vulgar realidade a amofinar, seu espirito há de comprazer-se em voltar a
lembrar-se da grande massa d’agua verde que se desprendia com o fragor do
trovão e num alvo deslumbramento de espuma. Tome quarto num hotel
perto das quedas a fim de te-las noite e dia debaixo dos olhos. Aprenda a
compreender a verdadeíra significação do “Rochedo dos Sécelos”. Tome

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com o espirito e com o coração posse do Niagara Depois, estude outras
coisas da América Procure conhecer as obras pias e humanitárias, a vida e o
amor Vá a Nova York e veja como um homem, quando quer
construir e não tem terreno, supre esta falta fazendo uma casa que Sobe até ao
céu. Aprenda a fazer a mesma coisa. Em seguida , depois do povo
americano haver despertado seu entusiasmo pela energia de
seu esforço, vá ao Japão e veja um pequeno povo que nobremente tenta
tornar-se grande. Siga depois até à Palestina e acompanhe os traços da maior
vida que jamais foi vivida. De volta, passe pelo Egito, a fim de rememorar que
no nosso mundo moderno há ainda muitas coisas antigas: uma figura de pau,
por exemplo. bem conservada, com os olhos de silex e pupilas de cristal;
esses olhos brilhantes sob as pálpebras de bronze que olhavam o mundo no
tempo de, Abrahão. Você o encontrará no museu do Cairo; se quiser fazer
equitação, tome um burrico e vá até a Grande Pirâmide. Se se sentir
deprimida, não hesite, faça-lhe a ascensão. Procure um árabe chamado
Echehati e diga-lhe que quer checar no alto mais depressa que nenhuma outra
mulher. Depois volte, Jane, telelone-me ou venha ao meu consultório, dizer-
me se a receita foi eficaz. Tenho a certeza de nunca ter formulado outra
melhor e você nada tem que pagar!
Jane pôs-se a rir, apertando efusivamente as mãos do médico.
- Oh! meu amigo, exclamou, creio que tem razão. Todos os meus
pensamentos estão concentrados em minha pessoa e em meus sofrimentos
individuais. Farei o que me aconselha e Deus Ihe pague a sua bondade! Mas
eis a nossa Flor. Flor, continuou Jane. ao ver a sonhora do médico entrar
lindamenle vestida com um vestido verde-àgua e fechar à passagem todos os
botões elétricos; sabe que o senhar seu marido acaba de receitar seriamente
uma ascensão à Grande Pirâmide, para curar uma depressão nervosa? .. .
Flor sentou-se no braço da poltrona do marido, que ternamente a
cingiu pela cintura.
— Jane, respondeu ela com seu riso de fada. ouvi você ainda há pouco
tocar o “Rosário”, Adoro esta música e há meses que não a ouço. Cante-a.
querida, sim?
Jane encontrou os olhos do médico; começava a seguir sua
receita, pois, voltando-se, fez simplesmente o que lhe pediam.
As ultimas palvras do canto, a mulher do doutor curvou-se, depondo
um beijo leve na fronte do marido, justamente no lugar em que os espessos
cabelos castanhos se estriavam de prata... Mas o pensamento de Brand estava
com Jane e, antes que ela tocasse as derradeiras notlas. tinha a certeza de que
o seu diagnóstico fora acertado.
- Entretanto, pensou ele, é melhor que parta. Mudará de ideias e
largará seu ponto de visla geral e particular; e “ele” não mudará; se
mudar é que Jane tera tido razão. Eu ma perguntava o que minava sur-
damente a animação daquele rapaz. Amar a Jane. ser amado por ela
— e perde-la!.. É preciso, ter nervos de aço para continuar no ramerão
da vida. Qual a cruz que se levantou entre les? Talvez o Niagara a
53
arraste no seu redemoinho e Jane lhe manda uma mensagem em
radiograma.
O doutor tomou a querida mão que lhe pousava no ombro,
enquanto Jane ainda estava de costas, e beijou-a longamonte. . .
Jane obedeceu à prescrição de Deryck Brand e dois anos
passou o tomar o remédio, Achava-se agora no cimo da Grande
Pirâmide, rindo a lembrança da descrição que em breve lhe faria
dessa memoravel ascensão. Jane sentia a exaltação agradável
provinda de uma façanha difícil de realizar com sucesso. Trajava
um veslido de excursionista, perfeito de talho, e Trazia na cabeça
um capacete de cortiça. O sol do Oriente lhe crestara a pele mas não se
perturbara com isso, diapensando véus e sombrinhas. E seus alhos encaravam
a luz de ouro do deserto sem recorrer aos vidros enfumaçados. Sabia arranjar
de maneira segura e graciosa sua abundante cabeleira escura a nunca estivera
tão bem como naquela tarde de março, em que subia ao píncaro da Grande Pi-
râmide;a irregularidade dos seus traços era compensada por uma expressão de
interesse e de prazer e seu belo sorriso, tão franco e inteligente, descobria-lhe
os dentes deslumbrantes de alvura, prova de sua admirável saúde. A receita
do médico fora acertada. A ameaça de envelhecimento prematuro, que tão pe-
nosamente impressionara Deryck, se desvanecera. Jane parecia uma
admirável trintona, prestes a tomar com passo calmo o caminho dos quarenta
e nada tendo a temer dos cinquenla quando chegassem. Seus alhos claros
olhavam de frente a vida e seu espírito sadio formulava idéias bem
equilibrados, temperados pela bondade do seu generoso coração
Por enquanto Jane contemplava a vista, apreciando-lhe a majestosa
beleza. De um lado o Delta com as suas copas de palmeiras, oliveiras e
laranjeiras crescendo am rica profusão às margens do rio, larga tira de prata
cintilante. Do outro, o deserto desenrolando o tapeie dourado de suas areias;
nem uma arvorej nem uma folha, nem um fiapo de relva; nada, senão a
liberdade ilimitada, um oceano de luz. Uma encruzilhada de caminhos,
pensava Jane. Aqui é preciso escolher a liberdade ou a abundância. Era pre-
ciso consultar a Esfinge, guardiã das idades, detentora misteriosa dos
segredos da tempo, de olhos fixos no futuro há milênios.
- Vamos, Schehati, desçamos. E agora, leve-me à Esfinge. Schehati
Quero fazer-lhe uma pergunta justamente no instante em que o sol
desaparecer no horizonte..

A RESPOSTA DA ESFINGE

Jane dera ordem para que lhe servissem o café na “piazza” do hotel,
para nada perder da misteriosa beleza da noite. Na transparência lactescente
da luz, as Piramides parecem mais altas e mais sólidas e a Esfinge mais
solenemente envolta em mistério.
Enquanto esperava encostou-se ao espaldar da cadeira de vima e,

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bebendo o café aos golinhos, aban-donou-se a sensação de pensativo bem-
estar que segue não raro um vigorosa estorça físico. Ternos e pacificos
pensamentos lhe vinham à mente relativos a Garth. Julgava sempre ouvir a
voz harmoniosa cantando “Bemaventurada luz”. E do fundo da noite azul, os
belos olhos amorosos de Garth pareciam contemplá-la. Jane fechou os seus
para vê-lo melhor. Nessa noite não temia os olhares do homem amado: eram
tão cheios de temura!.. Ah! quanto o desconhecera com os seus néscios
receios do futuro! Seu coração naquela noite transbordava tanto de confiança,
de confinça em si e nele, que se Garth ali estivesse, pensou, sairiam Juntos
pela noite luminosa e sem apreensão ela se teria deixado contemplar. Sentia
que lhe teria dito simplesmente: “Esse rosto é seu, Garth; eu o quisera
formaso para ser mais digno de seu amor; desde que lhe agrada porque, meu
bem amado, o negaria eu a seu carinho?...
Qual era a causa desta transformação dos seus pensamentos? Seria a
receita de Deryck? Este novo ponto de vista era mais conforme à razão, mais
humano do que o que se forçara a aceitar para chegar, ao preço de inominável
angústia, ao sacrifício da sua decisão? Por que, no dia seguinte, em vez de
subir o Nilo e prosseguir a viagem até Constantinopla e Atenas, não tomaria
ela o vapor de Alexandria que a levarici a Londres numa semana? Mandaria
chamar Garth e far-lhe-ia uma confissão total, pondo-lhe nas mãos o futuro de
ambos. Jane não duvidava absolutamente de que era ainda amada. Garth se
lhe afigurou de súbito muito perto; julgou sentir-lhe o amplexo e a cabeça
adorada; apoiada contra o seu Coração Ah! aqueles caros olhos iluminados!...
Oh! Garth .. Garth!...
- Uma coisa hoje me aparece claramente, pensava Jane, se ele me
deseja ainda, se precisa de mim, não posso continuar a viver longe, dele, devo
ir ter com ele.
Abriu os olhos e contemplou a Esfinge... Depois tornou a fechá-los
dizendo: Arriscarei a tentativa! e uma alegria profunda lhe inundou o coração.
Nesse momento, um grupo de ingleses saiu da sala de janlar e
desembocou ruidosamente no Terraço; tinham chagado á tarde e acabavam
de jantar; jane mal reparara neles: uma bonita senhora com a filha, dois
rapazes e um homem mais idoso, de aspecto militar. Não ínteressavam à
moça, mas perturbaram-lhe as cismas, pois tomaram assento numa mesa
próxima e continuaram em alta voz a conversa, como se estivessem
sozinhos. Um ou dois estrangeiros que sonhavam tomando café e fumando,
levantaram-se e foram procurar debaixo das palmeiras um recanto mais
tranquilo. Jane teria querido imitá-los, mas não teve coragem de romper o
encanlamento que a retinha ali. O homem idoso tinha na mão uma
carta e um exemplar do «Morning Post»; o grupo comentava as
noticias da carta assim, como o conteúdo dos parágrafos do jornal
que acabavam evidentemente de ler alto.
-Pobre rapaz! suspirou a senhora, é triste
demais!
- Tenho a certeza de que ele preferiria morrer instantaneanente!
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exclamou a mocinha. Eu, no caso dele, preferiria Isso.
— Oh! não, murmurou um dos rapazes, inclinan-do-se para
ela, a vida é boa, aconteça o que acontecer. . ,
- Oh! mas cego. protestou a jovem voz fremente, cego, para o resto da
vida, é horrível...
- Foi com a própria espingarda? Interrompeu a
senhora. E como é que caçavam no mês de março?..
Jane sorriu cem certa ironia. O amar dos animais, mesmo do
mínimo inseto, o respeito às suas humildes vidas era para ela uma
religião como o culto da beleza para Garth. Pretendia nunca se
apiedar dos acidenles de caça. Quando aqueles que, se divertiam
infligindo sofrimento e matando por prazer os bichos indefesos
perdiam a vida no bárbaro divertimento, Jane declarava que era
justo castigo e não sentia nenhum pesar.
O senhor de aspecto militar, entretanto, tinha ajustado o
pince-nez, abrindo à luz as folhas da carta
-- Não, disse ele ao cabo de um insfante, as partidas de caça
terminaram, o que ainda é mais triste. Ele renunciara aliás a toda
caçada há um ano ou dois, odiava a morte sob todos os aspectos.
Foi ao parque do castelo magnifuico que possuía e O acaso fez
que ele avistasse uns caçadores de coelhos Pulou a certa a fim
de protestar; foi quando um dos indivíduos, sem o ver atirou... A carga
deu em cheio numa árvore próxima e ricocheteou. Ele não foi ferido em
pleno rosto, uns arranhões apenas; o cérebro ficou ileso, mas a retina
foi ofendida e perdeu a vista sem remissão,
— Que tremendo azar! exclamou um dos rapazes.
— Eu não compreendo que não se goste de caçar, acresçentou o
que nada falara ainda
— Ah! você comprenderia se tivese conhecido o
pobre rapaz, replicou o militar era tão cheio de vida! Ninguém o podia
imaginar moribundo nem produzindo a morte. E a adoração da beleza que
lhe serviu quase de religião? Sabia descobrir beleza onde ninguém a
suspeitava. E agora ocoitado não verfá mais nada
— Tem mãe ainda? perguntou a senhora.
— Não, ninguém! É só no mundo. Amigos, as dúzias; era um
dos rapazes mais cotados de Londres, mas não tem familia. Nunca se quis
casar...
Pobre moço! Tem que ser menos exigente agora.
Poderia ter escolhido tanta moça bonita... Mas dizia-se casado com a arte.
E agora, como escreve
lady Tngleby, acha-se na escuridão, só e completamente entreguue àqueles
que o rodeiam .
— Oh! falemos de outra coisa, pediu a mocinha
empurando a cadeira e levantando-se; quero esquecer essa

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história; é triste demais! Falemos de coisas
alegres
Todos se ergueram e o rapaz passou a mão pelo braço da
menina, aproveítanda-se da sua emoção.
— Esqueça tudo isto, querida, disse-lhe, vamos escutar o que
diz a velha Esfinge numa noite como esta.
Deixaram a praça seguidas pelos outros, mas o senhor de aspecto
militar a quem pertencia o “Morning Post”, deixou-o em cima da
mesa, demorando-se um pouco para acender um cigarro. Jane deixou a
cadeira e dirigiu-se a ele.
— Dá-me licença de correr os olhos no seu jornal? Disse sem
mais preambulos.
— Pois não, respondeu cortezmente e, depois,
olhando-a de mais perto: pois não, miss Champion,
não a sabia nestas paragens
— Ah! general Loraine, bem que me parecêra reconhece-lo
mas néste lusco-fusco não tinha certeza.
Obrigada. Peço-lhe que me empreste o seu Jornal,
mas não quero rete-lo, nós nos encontraremos mais
tarde.
Jane esperou que todos se afastassem e que cessasse o eco
prazenteiro das vozes e risos. Voltou então para a sua cadeira, para o
lugar em que Garth Ihe parecera tão próximo e contemplou ainda uma vez a
Esfinge e a Pirâmide colossalsob a luz do luar. Depois tomou o jornale
abriu-o.,. Sim, era bem Garth Dalmain, o seu Garth de olhos cintilantes
de amor, que, no castelo distante e solítario jazia cego, sozinho,
reduzido a impotência e os trevas, ..

REGRESSO

As penedias brancas de Douvres se deslocavam no horizonte em


contornos cada vez mais nítidos e por fim surgiram, qual muro
fomidavel saindo do mar. Depois o castelo-forte se perfilou,
infinitamente pitoresco na claridade opalina daquele dia de primavera.
Jane contemplava o espetáculo com encanto mas a lembrança do que lera
lhe veio de súbito e, como ferida brutalmente, fechou os olhos.
Desde o instante em que na “piazza” do hotel do Cairo lera a noticia
dolorosa, todo o espetaculo de beleza lhe enchia o coração de tristeza. Uma
hora depois dessa leitura punha-se a caminho e, ao dia seguinte, tomava o
paquete em Alexandria; em breve desembarcava em Brindisi, e, viajando
noite e dia, chegava afinal as costas da Inglaterra.
Em alguns instantes desembarcaria e só lhe faltariam duas etapas a
viagem, pois, desde o instante em que se pusera a caminho. Jane sabia que
tomava o rumo do quarto solitário onde a ascuridão e o sofrimento davam

57
tremendo assalto à coragem moral, a razão, ao instinto de conservação do
homem que ela amava. Instintivamente ia ter com Garth, embora se sentisse
incapaz de combinar modos de o fazer. Seu bom senso a prevenia de que o
problema era complexo, não obstante o grito de todo seu : “Oh! Deus, é, no
entanto tão simples! Cégo e só! Meu Garth!” Compreendía que uma opinião
mais ponderada do que a sua devia resolver o problema e a melhor maneira
de chegar até Garth era passar pelo consultório do doutor Brand. Por isso, por
isso assim que chegara a Paris, telegrafou a Déryck, e por enquanto nada via
além da rua Wimpole. Em Douvres comprou as folhas, descobriu na secção
de informações mundanas o que procurava:
“Lastimamos saber que o senhor Garth Dalmain, que se acha em
Greenesh, seu castelo de Aberde-enshire, continua em precário estado de
saúde devido ao acidente a que foi vitíma há quinze dias. Perdeu
irreversivelmente a vista e, embora todo receio de complicação cerebral
esteja afastado, produziram-se nêstes últimos dias perturbações graves que
exigiram o chamado de ilustre especialista em moléstias nervosas dr. “Deryck
Brand Nos círculos mundanos e artísticos onde Garth Dalmain era muito
estimado e popular, reina consternação pela desgraça que por assim dizer
suprime do mundo da arte, em pleno apogeu do talento, um dos nossos mais
futurosos artistas.”
Jane tomou lugar num compartimento. Mas um pequeno telegrafista
percorria o trem repetindo a todo instante: Miss Jane Champion? A moça
ouviu o seu nome e fez-lhe sinal
— Aqui, rapaz, sou eu.
Arrebatadamente abriu o telegrama. Era do doutor: “Boas vindas.
Chego da Escócia. Héspero em Charing-Cross. As ordens. Tome café em
Douvres, Deryck.”.
Jane teve um curto soluço de alivio e reconhecimento. Sentia-se tão
horrivelmente isolada. Chegou-se à portinhola.
- Olá. Tragam-me uma xícara de café.
O telegrafistazinho, que ficara de sentinela junto ao vagão, precipitou-
se para o “bofe”, de onde trouxe, a correr, uma xícara de café e um pedaço de
pão com manteiga.
—- Obrigada, gritou-lhe Jane, colocando o prato no banco e atirando-
lhe uma moeda às pressas, pois o trem partia — não é preciso troco.
Obrigada!
E Jane, instalada confortavelmente, recalcou as lágrimas prestes a
correrem, e tomou o café sem vontade nenhuma; mas a idéia de desobedecer
ao médico nem siquer passar pela mente. Sentiu-se logo mais reanimada. Oh!
como naquele momento precisava de um amigo esclarecido, forte e
compassivo! Deryck não lhe faltaria, bem o sabia. Releu o telegrama e sorriu
Como era delicada da parte dele ter pensado no café e, sobretudo em vir à
estação! Viajara noite e dia, num turbilhão de pressa febril, mas chegara ao
alcance da mão de Deryck. Deus louvado! A agitação de sua alma serenou e

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Jane adormeceu numa grande calma: a Providência não a abandonaria.
Foi de pé a portinhola do carro que Jane entrou na estação de Charing-
Cross. O médico se achava justamente no lugar em que parou o carro de Jane;
não havia nisso senão um acaso, mas um acaso benfazejo que fazia sempre
aparecer Deryck Brand onde mais dele se precisava. Num segundo ele
atravessou a turba densa, estendendo a mãe à Jane. A moça lançou um rápido
olhar ao magro e resoluto semblante do médico, aclarada agora pela
afabilidade da acolhida e leu-lhe nos olhos uma simpatia e compreensão
perfeitas. Atrás do doutor avistou um lacaio da tia e a sua criada de quarto.
Um impulso a levou para esse grupo conhecido Apertou com força a mão
serviçal de Deryck.
— Então, Jane. ei-la de volta e em perfeito estado de saúde, pelo que
vejo. Dê-me suas chaves. .. suponho que você não tem contrabando.
Telefonei à duquesa para que mandasse um criado cuidar das bagagens e que
não a esperasse antes do jantar, porquê viria diretamente para nossa casa.
Andei bem?.. Por aqui... Passe a grade... Que atropelo! Todos querem ser os
primeiros a passar na frente; desobedecem às regras. Realmente a paciência
dos empregados da estrada de ferro é um ensinamento poro o resto da
humanidade...
Assim falando, o doutor conduzia Jane através da multidão, abriu a
portinhola de um coupé elétrico, fê-la subir, sentando-se a seu lado e,
rapidamente, saíram da estação pelo Strand, tomando a direção da
Trafalgar Square.
— Então, disse o doutor sorrindo, o Niagara é uma grande coisa,
não é? E o porto de Nova York? Viu você alguma coisa que se lhe
compare ao pôr do sol?
Jane teve um súbito soluço e voltando para ele os olhos secos:
— Não há mais nenhuma esperança, Deryck?
O doutor pousou amistosamente a sua mão sobre a dela.
- Ele está cego para sempre Mas a vida tem outros bens, além da
vista. Nós nunca devemos dizer não há mais esperança!
— Mas viverá?
- Não há razão para que não viva-. Mas o preço da vida
depende para o pobre rapaz do que se puder fazer por ele nos
primeiros tempos de provação. O abalo foi mais moral do que
físico.
Jane tirou as luvas, teve um arrepio súbito e. apoiando a mão no
joelho do doutor, disse simplesmente.
— Eu amo Garth, Deryck.
O médico ficou silencioso alguns instantes meditando sobre essa
espantosa revelação, Tomou depois a bela e forte mão que lhe tremia
sobre o joelho e beijou-a com profundo respeito, homenagem do
homem à sinceridade da corajosa mulher.
- Nesse caso, minha amiga, o futuro tem de reservas tão grandes

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bens para Garth Dalmain, que
acho supérfluo para ele a vista. Sinto que você tem muito a dizer-me
e tem também o direito de saber o que lhe posso contar. Venha ao
meu consultório. Stoddart sabe que não nos devem importunar sob
pretexto algum.

A CONSULTA
O gabinete do doutor era um cômodo infinitamente sossegado e
confortável. Jane tomara assento na poltrona de couro verde, com as mãos
agarradas n braços da cadeira. Brand encarava-a. Acabava de a lhe relatar
minuciosamente a sua íntima visita a Castle-Greenesh, de onde voltara na
véspera. Passara cinco horas com Dalmain e achava que verdadeira
misericórdia era não esconder nada de Jane. Enquanto falava, entretanto,
olhava para a frente sem parecer notar as lágrimas que sulcavam o rosto da
sua interlocutora.
— Compreenda, amiga, a coisa como é, os ferimentos vão tão bem
quanto podem ir. E surpreendente que havendo ruptura da retina o cérebro
não lenha sofrido nada, O perigo atual provém do choque nervoso e da
angústia moral causada pelo conhecimento da sua desgraça. O sofrimento
físico e moral durante os primeiros dias deve ter sido atroz. Pobre moço! Está
abaladissimo. Mas possui constituição magnífica e teve uma vida sempre tão
sadia que vai certamente ficar bom muito depressa. A tortura moral é que
aumenta à medida que a saúde vem voltando. A vista para ele tinha alta
significação: a beleza da forma, beleza da cor... O artista dominava tudo.
Contaram-me que quase não tem falado. É homem corajoso e forte, mas a sua
temperatura começou a manifestar variações assustadoras, e um especialista
de nervos pareceu mais indicado do que um oculista; é por isto que está entre
as minhas mãos.
O médico parou, arrumou alguns livros dispersos sobre a mesa, levando
ao rosto um vasinho cheio da violeta das quais aspirou por um segundo o
aroma delicado, tornando a recolocá-lo no lugar exato em que a mulher o
pusera, e prosseguiu:
— Estou satisfeito com o estado geral do doente Ele necessita de uma
voz amiga para atravessar a treva que o rodeia. Necessita de uma afetuosa
mão para apertar a dele mostrando que é compreendido. Ele não pede
compaixão e, de outro lado, aqueles que lhe falam da sua desgraça sem lhe
avaliarem a imensidade, enlouquecem-no. Era preciso que um homem lhe
fosse dizer: — “É um combate, Dal, um tremendo combate. Seria, por certo,
mais fácil morrer; morrer, entretanto, seria confessar-se vencido. É preciso
viver para vencer. E com a graça de Deus você, você há de sair vitorioso”.
Tudo isso eu lhe disse e mais coisas ainda, e então passou-se algo de estranho
e de admirável. Posso confiá-lo a você naturalmente hei de confiá-lo a Flor—
e a ninguém mais neste mundo. A dificuldade em obter dele a mínima
resposta. Mostrava-se insensível a tudo Mas as palavras “com a graça de
Deus” pareceram apoderar-se dele e encontrar um eco nas profundezas do seu
60
ser. Repetiu-as e, voltando-se no travesseiro, um afluxo de vida lhe subiu ao
rosto macilento. Murmurou num sussurro: “Lembro-me das palavras e da
música”. E então muito, muito baixinho, mas claramente, repetiu a estrofe do
“Veni Creator”: “Iluminai-nos o espírito com vossa luz”. Nunca ouvi nada
mais comovedor!
O doutor Brand parou, pois Jane, com o rosto escondido nas mãos,
soluçava convulsivamente. Quando os soluços se arrefeceram um pouco, a
voz calma do medico prosseguiu:
— Você compreende que isto me deu um ponto de apoio, Quando
sobrevém numa existência semelhante catástrofe, não resta ao homem outro
apoio senão o seu sentimento religioso. Segundo o desenvolvimento do lado
espiritual O físico suporta ou não o fardo. Dalmain tem sentimentos muito
mais profundos do que nós imaginamos. Depois de conversarmos, chegamos
a um acordo, Ele não tem família, está isoladíssimo lá; eu me pergunto se
algum de nós conhecia o verdadeiro Garth, a alma do homem sob a superfície
do corpo.
Jane levantou a cabeça, e disse simplesmente: — Eu a conhecia.
— Ah! Respondeu o doutor; compreendo. Mas para acabar com estes
detalhes: tem junto dele um enfermeiro e o criado de quarto, pois recusou
absolutamente um dos guardas do hospital. Declarou não querer ser tocado
por mãos femininas. Foi preciso ceder. Atualmente podemos passar sem
enfermeiro e eu insisti para mandar-lhe uma enfermeira, ou antes, uma
secretária, da minha escolha naturalmente, que lhe fizesse companhia, leituras
e se ocupasse com a correspondência. As cartas não abertas se acumulam; é
preciso que alguém o ajude a entrar na sua vida de cego. Será preciso um jeito
especial. Justamente hoje, porém, contratei a pessoa que nos convém, moça
de boa família, dona de todas as capacidades requeridas e, de mais a mais,
bonitinha, esbelta, graciosa, exatamente a criatura elegante que teria agradado
a Garth, difícil como era e tão conhecedor de beleza! Fiz-lhe a descrição
numa carta ao doutor Mackenzie que vai preparar o doente para recebê-la.
Deve partir depois de amanhã: foi uma sorte tê-la descoberto. Enfim, está
vendo, Jane, que tudo se arranja. E agora, filha, conte-me a sua história. Mas
primeiro vou mandar servir o chá; podemos tomá-lo sossegadamente aqui, se
você quiser.
Quando Deryck Brand empurrou a mesinha de chá, Jane sentiu-se
voltada aos dias de camaradagem em sua adolescência, e achou-se
perfeitamente à vontade para falar,
— Deryck, começou, vou dizer-lhe tudo, vou falar-lhe sobre
meu coração e sobre minh’alma como falaria a respeito de minhas artérias
e de meus pulmões. Peço-lhe que seja ao mesmo tempo médico e
confessor.
O médico, que examinava a ponta dos dedos, lançou um olhar
rápido à sua companheira de infância e pôs a contemplar o fogo, depois de
ter feito a Jane um sinal de assentimento.
— Deryck, minha vida sempre foi solitária. Eu nunca fui
61
indispensável a ninguém e ninguém procurou conhecer o verdadeiro
fundo de minha natureza.
O médico entreabriu a boca como para falar; depois apertou os lábios e
contentou-se em responder com um aceno de cabeça.
— Nunca fui amada com esse amor absoluto que
nos coloca no primeiro lugar de um coração e eu mesma nunca amara assim.
Tinha tido grandes afeições, mas uma grande afeição não é o amor; só hoje é
que o sei.
O perfil do doutor destacava-se um pouco pálido sobre o espaldar
verde da poltrona giratória, mas sorria ao responder,
- Exato, minha amiga, há uma distinção e uma diferença.
— Tive muitos amigos geralmente mais moços do que eu, que me
chamavam miss Champion pela frente e, por trás. «aquela velha Jane».
O sorriso do doutor acentuou-se, Ele muita vez a ouvira chamar
assim, é verdade que sempre com grande cordialidade.
— Os homens em geral, continuou Jane, entendem-se melhor
comigo de que as mulheres. As mulheres me consideram um espírito forte e
têm medo de mim. Quanto a meus jovens amigos, sou para eles uma
confidente, uma irmã; mais velha em quem podem fiar-se. Contava
entre meus amigos Garth Dalmain.
Jane fez uma pausa e o médico esperou em silêncio que ela
continuasse.
— Ele sempre me interessou, com certeza porque é um espírito
original e um brilhante conversador, e, talvez sem que o percebesse, porque é
tão belo. Havia também nas circunstâncias de nossa vida grandes afinidades;
ambos órfãos donos de uma boa fortuna e nem um nem outro tendo de dar
contas a ninguém dos nossos atos. Pouco a pouco chegarmos a uma
grande intimidade; falávamos livremente das mulheres que lhe agradavam e
eu me comprazia em adivinhar aquela que lhe fixaria o destino. Mas um belo
dia, em uma hora, tudo mudou. Estávamos ambos em Overdene, em meio de
uma Turba de convidados que tia Georgina reunira para um concerto A
artista
Velma faltou à última hora. Tia Gina estava desesperada. Era preciso
fazer qualquer coisa. Ofereci-me para tomar o lugar de Velma e cantei.
— Ah! exclamou o doutor Deryck.
— Cantei o “Rosário”, a música que Flor me pediu para cantar da
última vez que aqui estive. Lembra-se?
— Lembro-me.
- Então tudo mudou entre mim e Garth. Primeiro não compreendi.
Só vi que a música o tinha comovido muito, e julguei que no dia seguinte
estaria esquecida a impressão. Não aconteceu assim, os dias corriam e ele não
mudava; tive de súbito a impressão de que pela primeira vez na minha vida
fazia falta á alguém. Não podia entrar num aposento sem sentir a certeza de
que ele adivinhava imediatamente minha presença; não podia sair sem

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perceber que ele sentiria a minha ausência. Compreendi tudo isto e por mais
incrível que pareça a afirmação não adivinhei que era o amor. Acreditei
menos numa simpatia profunda entre nós. Passávamos horas no salão de
música e quando os olhos dele pousavam em mim como que lhes sentia o
contato. E não pensava no amor! Não tenho beleza e estou quase no declínio
da mocidade e ele tão belo, tão moço, um jovem deus cuja presença me
aquecia o coração... Eis o que foram para mim os dias que se seguiram ao
concerto. Quanto a ele, disse-me que ao me ouvir cantar o “Rosário” teve uma
revelação, a revelação de mim mesma. Disse-se que até então não vira em
mim senão uma boa camarada, mas que foi como se um véu se rasgasse,
revelando-lhe a mulher, acrescentou que eu lhe apareci como a encarnarão
mesma do seu ideal feminino e que a partir dessa hora só teve uma idéia:
fazer-me dele para sempre, desejando-me como nunca desejara nada na vida.
Jane calou-se, com os olhos fitos na chama ardente da lareira. O dr.
Deryck olhou-a então; havia muito que pressentia todas as ternuras latentes
nela, Por isso respondeu:
-- Não me espanta cara amiga.
Jane esquecera o médico, voltando num suspiro ao sentimento do
instante presente.
— Obrigado, meu amigo. Eu, pelo contrário, espantei-me muito. Em
suma, deixamos Overdene no mesmo dia. Vim para a casa: de vocês e
ele foi para Shenstone, na sexta-feira eu também chegava a
Shenstone. A curta, separação deu a este encontro uma doçura
inexplicável Em Shenstone havia uma linda americana, Paulina
Lister; era uma beleza e Garth entusiasmou-se por ela, querendo até
pintar-lhe o retrato. Toda a gente se persuadiu que ele a ia pedir em
casamento E eu, Deryck, pensava-o naturalmente, como os outros.
Regozijava-me com isso por causa dele, embora sentisse que o dia
só começava realmente para mim quando ele aparecia. O que
acabava no momento em que me dizia adeus. Esta nova sensação de
ser a primeira no pensamento de Garth me dourava a existência e,
no entanto, eu não julgava que aquilo passasse de uma deliciosa
amizade. Mas na noite da minha chegada a Shenstone, Garth me
pediu que fosse com ele ao terraço depois do jantar, pois precisava
conversar comigo! Imaginei, Derick, que era ainda uma vez
chamada a meu papel de confidente e que ele me ia pôr a par de
suas intenções acerca de miss Lister. Imbuída dessa idéia sai
tranqüilamente e fui; fazia um luar magnífico; eu esperava que ele
falasse. E então, Deryck, então... não posso entrar em minúcias. Ele
derramou o seu amor a meus pés como ouro líquido. Minha reserva,
o gelo de minha impassibilidade, tudo se fundiu diante do ardor de
Garth. Só tive consciência de uma coisa, o seu amor era meu. Nada
explico. Deryck, ignoro como isto se deu, mas vi-o de repense
prostrado junto a mim, a cabeça apoiada ao meu peito. Ajoelhara,
seus braços me enlaçaram e ficamos assim numa grande calma. Eu
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era toda dele. Não sei quanto tempo teria ficado imóvel. Ele,
porém, levantou a cabeça e falou. Disse-me duas palavras apenas.
Estas palavras restituíram-me as faculdades: Garth Dalmain pedia-me em
casamento.
Jane esperou, um pouco ofegante, esperando a impressão da surpresa
do doutor. Mas o doutor não demonstrou surpresa alguma.
— Podia ela pedir outra coisa? Então, cara amiga, você...
— Eu me levantei, tornou Jane, pois sentia que enquanto ele ali
estivesse de joelhos, era dono de meu espírito e do meu corpo, e um instinto
me prevenia de que para me inclinar ao casamento era preciso que minha
razão primeiro aquiescesse.
— Ah! Jane, você compreendeu uma grande verdade!
— Talvez. Custou-me caro, porém. Afastei Garth dizendo-lhe
que precisava de doze horas para refletir. Ele tinha: tanta certeza de si e de
mim que consentiu sem protestar. A meu pedido retirou-se logo.
Prometi encontrá-lo no dia seguinte na igrejinha da aldeia. Ele devia
experimentar o órgão novo as onze heras. Sabíamos, pois que estaríamos a
sós. Eu fui. Nos degraus do coro chamou por mim e uma certeza feliz
brilhava nos seus olhos, embora se contivesse. Não se aproximou de mim,
enquanto aguardava minha resposta. Eu lha dei, numa recusa definitiva,
baseada num motivo que ele não podia discutir. Afastou-se de mim e
deixou a igreja. Desde esse instante não o tornei a ver.
Longo silêncio caiu. Um nobre coração de homem compartia dos
sofrimentos de outro homem, tentando não se indignar antes de saber toda a
verdade.
A vontade de Jane, tensa como na hora fatal, sondava esse silêncio e
mais uma vez ela convenceu-se que agira como devia. Por fim o doutor
Deryck disse fitando-a resolutamente nos olhos:
— E porque motivo o recusou, Jane?
A voz do amigo se fizera dura. A moça estendeu as mãos num gesto de
suplica.
— Ah! Deryck é preciso que eu tente fazer-lhe compreender.
Como podia ter procedido de outro modo, conquanto fosse renunciar ao que
a vida me podia, dar de melhor? Conhece bastante Garth para saber que
preço ele dá à beleza: precisa viver rodeado dela. Antes dessa inexplicável
mudança muita vez falara-me nisto com liberdade, dizendo-me um dia de
uma pessoa feia da qual admirava o moral e acabara gostando do rosto:
“Não era, naturalmente, a cara que a gente gostaria de ter todos os dias à me-
sa, o que teria sido para mim um martírio.” Oh! Meu amigo , podia eu
acorrentar Garth ao meu semblante gracioso? Podia eu consentir em
desgostar a essa natureza amante da beleza? Dizem que o amor é cego. Mas
é antes que o amor tenha entrado no seu reino; o amor que conquistou o ser
amado reencontra logo a sua lucidez. O amor conjugal não é cego. Ah! eu
lenho vivido demais com gente casada para ignorar como se vêem os esposos,

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depois de dissipada a primeira ilusão do amor. Sei que durante aqueles dias
abençoados, Garth era cego à minha falta de beleza porque me desejava tão
vivamente. Mas depois, que eu o saciasse com tudo que tenho a dar de
beleza d’alma, quando a rotina da vida recomeçasse, mantendo sem cessar
meu rosto aos seus olhos, se eu o visse um dia desviar os olhos, como o
suportaria; Deryck? E neste sentimento de atroz impotência minha fealdade
não teria aumentado? E a humilhação, o ciúme que sobreviria, tudo isto não
viria contribuir para me tornar repelente? Deryck, como podia eu suportar
semelhante suplício?

O médico examinava Jane com uma expressão de interesse profissional,


— Como foi certo o meu diagnóstico quando a mandei viajar,
declarou num tom meditativo, entretanto não sabia grande coisa do seu caso.
— Ah! meu amigo, exclamou Jane com impaciência, não me fale
como uma doente, fale-me como a uma criatura humana e diga-me com a
sinceridade que teria com um homem: podia eu unir a Garth a minha cara tão
feia? Porque bem sabe que ela o é. .,
O dr. Deryck pôs-se a rir, satisfeito por te-la encolerizado um
pouquinho.
— Minha filha, respondeu, se eu me dirigisse a um homem teria
coisas bastante desagradáveis a dize-lhe, mas como falo a u’a mulher, a quem
muito respeito e admiro como a mais nobre das mulheres, responderei
apenas com franqueza à sua pergunta.
Você não tem beleza no sentido dado geralmente à palavra e quem lhe quer
bem não pode nunca mentir-lhe a esse respeito. Admitamos até que seja
feia, embora não fosse fácil achar uma dúzia de amigos que admitissem
semelhante hipótese. Mas você é você. E desde que discutimos seu querido
rosto, posso garantir-lhe que houve um tempo em que teria de bom grado
caminhado vinte léguas para avistá-lo,
— Ah! Deryck, mas nunca foi forçado a te-lo constantemente
defronte de si á mesa!
— Infelizmente, não, mas sempre achei melhores as minhas
refeições quando esse rosto estava presente...
Ela pos-se a rir.
— Oh! meu amigo, falemos sério, eu lhe suplico! Se não me der
um bom conselho, esta confissão tão custosa terá sido inútil.
O médico assumiu expressão grave e, inclinando-se, tomou nas suas as
mãos juntas de Jane
- Perdoe-me, cara amiga; o meu maior desejo é servi-la,
creio. Permita-me fazer-lhe algumas perguntas. Como
conseguiu convencer Dalmain de que tal frioleira era ara
empecilho intransponível à união de ambos?
— Não lhe dei esta razão
— Qual foi?

65
— Perguntei-lhe a idade
— Como? Ali nos degraus do coro enquanto esperava
sua resposta?
-- Sim, refletindo depois, compreendi que era
atroz. Mas o meio produziu bom resultado.
— Acredita-o. E depois?
— Respondeu-me que contava vinte e sete anos. Eu lhe disse que
tinha trinta, apresentava trinta e cinco e sentia ter quarenta, acrescentando
que ele podia ter vinte e sete mas parecia ter dezenove e estava convencido de
que muita vez devia ter nove.
— Então?
— Então, declarei que não podia casar-me com uma criança.
— E ele aceitou?
— Ficou primeiro estupefato, respondendo depois que se com
efeito eu o considerava uma criança, não me podia casar com ele e se
submetia a minha decisão. Desceu a nave e saiu da igreja. E não nos
revimos mais...
- Jane, disse o doutor, o que me admira é ele não lhe ter
descoberto a mentira; você não sabe mentir! Não deve ter
mentido com convicção.
Sob o moreno da pele Jane enrubesceu
— Deryck! Não era completamente mentira. Ele é mais moço
que eu, ainda mais no gênio do que na idade. Minha ajuizada maturidade lhe
teria pesado sobre a mocidade d’alma. Onde mentia foi no dizer que
considerava criança ao homem cujo influxo eu sentia tão fortemente. Tomado
de surpresa. Garth não soube o que responder. Não pensava senão em mim.
Eu, pensava nele e em mim também,
- Jane, você merece todos os sofrimentos pelos
quais tem passado desde esse momento.
- Bem o sei, suspirou ela abaixando a cabeça.
- Mentiu a si mesma e faltou à lealdade para com o homem que a
amava. Não compreende seu erro? Encarando o caso sob o ponto de vista
mais prosaico, Dalmain por mais adorador que seja da beleza, estava cansado
de bonitas caras. Era como o pasteleiro a quem os pastéis não tentam mais
e, ao cabo de duas semanas, não quer ouvir falar senão no pão de todo o dia.
Você era para Dal pão de todo o dia; se a comparação não lhe agrada, lastimo-
o.
- Agrada-me muito, atalhou Jane sorrindo.
- Mas você era mais alguma coisa, filha, era o seu ideal feminino.
Acreditava na sua: força e na sua ternura, na sua doçura a na sua sinceridade.
Você derrubou-lhe o ideal e falhou à fé que ele depositara no seu auxilio. A
caprichosa natureza de artista que tão sedutor o torna, encontrara afinal o
porto seguro, e não é que ao fim de doze horas você o atira novamente ao
mar? Jane, cometeu um crime. O valor moral de Dalmain provou-se no seu

66
proceder desde ai. Não retrogradou na arte, pelo contrário. Suas melhores
obras são as últimas. Não fez nenhum casamento insensato para se
vingar. Quando penso que o pobre rapaz, que vi homem tão corajoso, passou,
por sua causa, por semelhante provação!... Jane se você fosse homem eu lhe
batia com certeza!...concluiu energicamente o dr. Deryck.
Jane moveu os ombros e abaixou a cabeça com qualquer coisa de seus
velhos modos de estudante jovial.
- Você me bateu, amigo, retrucou ela com um triste sorriso; suas
palavras doeram-me até ao âmago, mas essa dor me fez bem. E agora creio
que devo dizer-lhe mais uma coisa: lá no Egito, do alto da Grande Pirâmide
vi subitamente o passado sob outro aspecto. Compreendi que, afinal de
contas, a liberdade da gente viver só para si é a mais triste das escravidões.
Compreendi que eu também o havia condenado à vida do deserto.
Interroguei os olhos da Esfinge antiga, e esses olhos tão calmos e tão
profundos que sabem o futuro e julguei que eles me diziam:”Amar é viver”.
Nessa mesma tarde resolvera voltar imediatamente à Inglaterra, chamar Garth
e pedir-lhe que esquecesse tudo que se passara desde o momento em que
havíamos estado juntos no terraço de Shenstone. Dez minutos depois de
tomar esta resolução, tive a noticia do acidente...
—- As rodas do Tempo, murmurou o doutor em voz baixa, nunca
rodam para traz, nunca! Eu sei continuou vivamente, que toda regra
comporta: exceção e que tinha reconhecido o seu erro antes de saber Dalmain
irrevogavelmente perdido.
- Não sei ao certo se eu achava que tinha errado, mas tinha a certeza
absoluta de não poder viver mais sem ele e estava pronta a tudo para
encontrá-lo.. . Agora, os padecimentos de meu pobre amigo simplificam
tudo.
— Simplificam tudo? repetiu o médico, levantando as
sobrancelhas dubitativamente e encarando a moça, vamos ver... Diga-
me primeiro, minha cara Jane, o que conta fazer?
- Que conto lazer? Ir ter já com Garth, naturalmente! Quero apenas que
me aconselhe qual a melhor maneira de preveni-lo da minha chegada, di-
zendo-me se já está bastante forte para superar a emoção. Não quero também
arriscar-me a ser separada dele por médicos e enfermeiros. Meu lugar é junto
dele: nada mais peço na vida. E os que tratam dos doentes são-lhes as vezes
tão inúteis... Creio que um telegrama seu arranjaria tudo,
— Sim, aquiesceu lentamente o doutor; um telegrama de minha parte
abrir-lhe-á caminho até Garth. . Mas chegando lá? ..
Um sorriso de inefável ternura passou pelas lábios de Jane,
transfigurando-a por um segundo; o doutor voltou a cabeça, com um aperto de
coração, lembrando que esse a quem se dirigia aquele sorriso nunca o havia
de ver.
— Chegando lá, Deryck, o amor me ha. de ensinar o que devo
fazer e todos os obstáculos desaparecerão, Garth e eu estaremos juntos um do

67
outro.
O médico disse, num tom calmo e cheio de bondade:
— Ah! Jane! Jane! Este é o ponto de vista feminino, o mais
simples e talvez o melhor... Mas à cabeceira de Garth é preciso considerar o
ponto de vista masculino. Eu faltaria à confiança que tem em mim se não a
prevenisse de antemão que se for a Garth oferecer-lhe seu amor, o tesouro que
ele solicitou debalde há três anos, ele concluirá naturalmente que o amor de
hoje não passe de compaixão. E Garth não é homem que se contente com
piedade, sobretudo de um coração que julgara conquistar e não conseguira.
Não aceitaria nunca o seu sacrifício, nem permitiria jamais a uma mulher,
sobretudo àquela que colocara em tão alio pedestal, ligar-se à sua cegueira,
sem a certeza de que esta união representaria para ela a maior das felicidades.
E como poderia ter esta certeza, diante dos fatos? Quando encarnava tudo o
que uma mulher possa desejar, você o repeliu. Se por outro lado explicar o
motivo de sua recusa, ele não poderá replicar senão isto: “Não Tinha
confiança na minha felicidade quando eu via; eis-me cego, não está em meu
poder provar esta fidelidade e vem a mim só quando irremediável acidente
torna vãos os seus temores”. Minha pobre amiga, eis o estado da questão:
acho que, Dalmain não ha. de encarar de outra maneira.
A fisionomia consternada de Jane, sua repentina palidez, comoveram
ao medico.
— Mas, Deryck, ele me ama.. . balbuciou tremulamente.
— É precisamente porque a ama que não poderá suportar ser aceito
por simples dó.
— Oh! Deryck, ache um meio! Diga-me o que posso fazer! Implorou
Jane, juntando as mãos, tendo o desespero pintado nos olhos,
O dr. Deryck meditou longamente em silêncio.
— Só vejo um meio, declarou, afinal; seria preciso que de
qualquer maneira Dal viesse a imaginar o estada de espírito em que você se
achava quando o repeliu, o que falasse disto a alguém, a mim, por exemplo.
Isto a colocaria em melhor situação e eu poderia elucidar tudo com jeito.
Mas há de ser difícil chegar a este resultado!... Se pudesse estar perto dele
sem ser vista — ah! pobre rapaz, é fácil agora., quero dizer, sem que
suspeite. Sua presença...
Se pudesse exercer as funções de enfermeira-secretaria que arranjei. ..
Jane deu um pulo na cadeira.
— Deryck, que idéia genial. Deixe-me ir como enfermeira-
secretaria. Nunca poderá imaginar que sou eu. Há três anos que não
ouve minha voz e julga-me no Egito. Ninguém sabe que voltei. Oh!
Deryck, você pode recomendar-me; tenho um uniforme de enfermeira,
posso seguir em vinte e quatro horas. Passarei por enfermeira como
“qualquer pessoa”, e, se for preciso, comerei na cozinha.
— Mas, minha filha, tornou calmamente o doutor, á impossível
que passe por enfermeira como ”qualquer pessoa”. Você só poderia partir

68
sob o nome da enfermeira Rosemary Gray que contratei hoje mesmo e já
anunciei ao doutor Mackenzie. Em principio eu nunca tiro um doente a uma
guarda para dá-lo a outra; quereria entretanto muito que você tomasse o
lugar desta, se fosse possível. E agora vou dizer-lhe uma coisa: antes de
deixar Dalmain, ele pediu notícias suas, colocando-as cuidadosamente entre a
duquesa e minha mulher, mas não pode impedir ao sangue de lhe subir ás
faces emagrecidas. Queria saber onde você se achava. Eu lhe disse que no
Egito.
Quando voltaria? Respondi que nos princípios de maio. Informou-se,
então, de sua saúde e eu lhe disse que, sendo você péssima correspondente, só
me mandava postais ande me dizia que ia bem. Acrescentei, então, que fora
eu quem aconselhara essa viagem, porque você estava bastante abatida. Fez
com a mão um gesto como se quisesse bater. Depois, sem transição, crivou-
me de perguntas sobre Flor; depois de saber que Flor estava em casa, de
perfeita saúde e de dizer que lhe mandava as expressões da sua maior
simpatia, pediu-me que lhe visse as cartas, uma pilha, e que dissesse as letras
que eu conhecia, Todo o universo parecia ter-lhe escrita palavra
Disse-lhe uma dúzia de nomes, entre outros o de uma pessoa
de sangue real, da qual eu reconhecera a caligrafia. Não quis que eu
lesse nenhuma. “A duquesa não escreveu?” perguntou afinal.
Escrevera e ele desejou logo conhecer o conteúdo da carta que era,
naluralmente, típica de bondede e de delicadeza, No meio dizia:
“Jane vai ficar penalisadissima quando eu lhe escrever sobre o seu
acidente, logo que ela me mandar um enderece. Por enquanto não
tenho a mínima ideia da parte do globo onde se acha”. Acabada a
leitura da carta de sua tia ele indagou sem rebuços se não havia
alguma sua. Eu disse que não, sendo pouco provável que você
estivesse a par do acontecido, mas que mal soubesse certamente
escreveria. Espero, cara amiga, qua há de escrever; a enfermeira
Rosemary Gray tem ordem de lhe ler todas as cartas.
- Oh! Deryck, balbuciou Jane, juntando as mãos, não posso
suportar que outro me tome o lugar!... É preciso que eu vá!..
O telefone tilintou, nesse momento, imperiosamente na mesa
do doutor.
— Alô... sim, é o doutor Brand... Quem fala?. . Oh! a
diretora... muito prazer. „ Sim? Que nome diz a senhora... Alô...
Sem dúvida alguma. Hoje de manhã, um caso muito importante...
Deve vir
falar comigo a tarde... sim?.. O que? Um erro de registro?., Como?.
. Partiu... há oito dias! Ora esta! ... E para onde?... Austrália!...
Oh! completamente fora de alcance! . . Sim, sabia que fora man-
dado... Não se aborreça não foi culpa sua... Obrigado, creio que
não, tenho outra em vista... Sim, sim... Provavelmente conviria. ..
Telefonarei se precisar... Adeus... não fas mal... obrigado. O medico
recolocou o fone no lugar e, voltando-se para Jane, a sorrir:
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— Minha amiga, disse estendendo-lhe. a mão, eu não creio no acaso,
mas acredito numa Providência que nos faz e desfaz os planos. Você irá!..

A SUBSTITUIÇÃO

— E agora ocupemo-nos dos meios de realizar nosso plano, continuou


o doutor; é indispensável que depois de amanhã parta pelo trem da noite.
Pode aprontar-se até então?
— Estou pronta! respondeu Jane,
- É necessário também que você personifique a enfermeira Rasemary
Gray
— Isto que não me agrada, interrompeu Jane —
preferiria um nome fictício. Suponha um momento que a enfermeira Gray
apareça ou que sobrevenha alguém que a conheça...
— Minha cara amiga, ela anda atualmente rumo da Austrália e
você não vera ninguém sinão os criados da casa e do medico. O perigo é ser
reconhecida por uma visita qualquer; mas se teme correr esse risco, não se
aventure. Em todo o caso, e para evitar complicações possíveis, dar-lhe-ei
uma carta, da qual poderá servir-se em qualquer eventualidade, em que
explicarei a situaçao, dizendo como, a pedido meu, consentiu em tomar o
nome e o lugar da enfermeira para evitar ao doente emoções prejudiciais.
Posso garantir-lhe, aliás, que isto é mais verdade do que pensa. E preciso,
pois, assumir o papel tanto quarto seu porte o permitir, não esquecendo que eu
a descrevi ao doutor Mackenzie como uma mulherzinha elegante e
requintada, muito mais inteligente do que parece.

- Deryck! Ele vai ver logo que não sou a pessoa que você
descreveu na carta!
— Não ha perigo, Jane. Lembre-se do que se trata de um
escoces e um escoses nada vê logo a primeira visla. O espirito
dele caminha lentamente, embora com segurança Convencer-se-
á, depois de contempla-la um instante, que eu não entendo de
mulher e a enfermeira Grery é muito diferente do que eu disse,
mas já terá criado para Dalmain a imagem mental da enfermeira
isto é o que importa. Fiemo-nos na Providência e esperamos que
o velho Robbie não lhe faça retoques à descrição. Procure evitar
conversas neste senlido. Se, entretanto, o bom doutor parecer
suspeitar de sua identidade, tome-o à parte, mostre-lhe a minha
carta e diga-lhe a verdade. Mas não creio que seja necessário.
Com o doente lembre-se da extrema acuidade do ouvido de um
homem cego. Não se esqueça de que você não pode tirar um livro
de uma estante sem trepar num tamborete. Caminha lentamente.
Arranje-se para que ele não possa fazer idéia de sua estatura. E

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quando o convalescente comrçar a andar, faça que não perceba
que a enfermeira é um pouco mais baixa do que ele. E, Jane,
como se me afigura impossivel que uma pessoa que lhe tenha
apertado aa mãos não a reconheça, aconselho-a a evitar os
apertos de mão. Mas todas essas precauções nada podem contra a
maior dos dificuldades: a sua voz. Acha sinceramente que ele não
a reconhecera?
— Ajude-me, Deryck, dê-me sua opinião sobre o
modo como eu procederia se fosse realmenle a enfermeira
Rosemary Gray e existisse entre nossas vozes uma similitude
surpreendente.
O médico sorriu.
— Cara enfermeira Rosemary, disse com bonhomia,
não se espante se o nosso doente descobrir grande
semelhença entre sua voz e a de uma de nossas amigas. Eu mesmo com
frequência tenho essa impressão.
— Realmante, senhor? retrucou Jane muito seria. E posso saber
com a de quem se parece minha voz?
— Com a de miss Champion, retorquiu o doutor — não a
conhece?
— Muito pouco, mas espero em breve conhece-la melhor,
E ambos se puzeram a rir.
— Qbrigada, Deryck; sei agora o que devo dizer ao doente. Mas
que tristeza. Meu Deus!,.. que seja possível enganar Garth, de olhar tão
penetrante... Terei eu coragem de sustentar meu papel?
—Se faz questão de sua felicidade futura e da dele consegui-lo-a,
replicou o doutor com firmeza.
Os dois se ergueram e, de pé diante da lareira, trocacam um longo
olhar,
— Amigo, disse a moça com emoção, foi tão bom comigo, tão fiel
e pronto na sua amizade, que, aconteça o que acontecer, lhe serei eternamente
grata.
O dr. Deryck inclinou-se roçando com os lábios a mão de Janne.
— Quero-lhe muito bem, disse simplesmente.
E nos dias dificeis que se seguiram, Jane achou mais de uma vez
reconforto na lembrança destas simples palavras.

ENTRA EM CENA A ENFERMEIRA

A enfermcira Rosemary Gray chegara a Greenesh. Quando se vira com


a mala na plataforma da pequena estação de aldeia, sentira a impressão de cair
das nuvens e duvidar da própria identidade. Um auto esperava. Jane tómou-
o e o carro enveredou pela estrada da montanha.
Léguas de solidão se estendiam em torno dela. Jane, cada vez mais

71
tinha a sensação de se ver transportada a um mundo novo, e a indiferença do
“chaufeur” a seu respeito lhe deu a convicção animadora de ter conseguido
encarar perfeitamente a personagem. Ouvira muitas vêzes falar do velho
castelo de Garth, mas não o imaginara rodeado de tão pitorescas paisagens.
Como o auto galgava o flanco da montanha, os torreões cinzentos
apareceram e Jane Julgou ouvir a voz vibrante de Garth, dizendo-lhe em
Overdene: “Gostaria que visse Castle-Greenesh; a vista do terraço, o bosque
de pinheiros e as colinas lhe agradariam por certo”. E falara em reunir ali uma
serie de convidados onde ela seria a primeira. E agora o dono dessa bela
propriedade estava cego e ela transpunha o portal de Greenesh sob um nome
de empréstimo... Como acabaria tludo isso?
O criado de quarto de Garth recebeu-a à porta; esse homem entrara a
seu serviço havia menos de três anos e evidentemente não a conhecia, Jane
parou no antigo vestíbulo, olhando em derredor como sempre fazia, quando
pela primeira vez chegava à casa de amigos. Depois, súbitamenle, viu
Simpson no meio da escada e lembrando-se que não passava de uma en-
fermeira apressou-se em fiagui-lo. Foi recebida em cima pela velha Margery.
Bastou a Jane olhar aquele rosto sério e meigo, enrugado e fresco ainda, bela
mistura de perfeita saúde e de muita idade para adivinhar que era a ama de
Garth. Seguiu-a docilmente até o bonito quarto que lhe haviam preparado,
respon
deu às perguntas sobre a sua viagem e confessou que gostaria de
almoçar, porém ainda mais de tomar um banho, se fosse possível.
E agora, tendo tomado o banho e almoçado, Jane, da janela do seu
quarto, admirando a vista mara-vilhosa, esperava a visita do médico assistente
que a devia apresentar a Garth. Puzera o mais prático de seus uniformes, um
vestjdo de linho azul, gola e punhas brancos, um grande avental branco de
largos bolsos e a touca da escola de enfermeiras onde fizera seu estagio. Não
tencionava usa-lo sempre mas nada queria negligenciar do que, aos olhos do
doutor MCKENZIE, lhe daria uma aparência estritamente profissional.
Percebendo que a linha severa do uniforme ainda mais lhe acentuava o alto
porte, aguardava, não sem ansiedade, o primeiro olhar que lhe lançaria o
médico escoces.
E de repente, a distância, avistou um carrinho de duas rodas que se
aproximava rapidamente. Um homem o quiava e um criadinho estava sentado
atras de braços cruzados. Chegara a sua hora. Jane caiu de joelhos pedindo ao
céu que a inspirasse. Refletira tanto que tudo se lhe confundia no espírito.
Mesmo o querido semblante de Garth como se embrulhava na apreensão que
a dominava. Só um fato permanecia distinto: dali a alguns minutos seria
levada ao quarto onde ele sofria. Veria o rosto bem amado; ele porém não
poderia ver o seu e ela devia esforçar-se por dissimular a sua identidade. O
carro desaparecera na última curva, Jane levantou-se e esperou.
Duas frases da sua conversação com Deryck lhe voltaram de chofre à
memória: “Terei eu coragem de representar meu papel até o fim?” — dissera
ela. E o amigo lhe respondera com calor: “Se faz questão da sua futura
72
felicidade e da dele, terá.”
Bateram a porta, Jane abriu; Simpson apareceu no limiar.
-- O doutor Mackensie está na biblioteca e deseja vé-la.
— Leve-me eutão a biblioteca, senhor Simpson, respondeu
simpleamente a enfermeira Gray.

NAPOLEÃO DAS DUNAS

De pé, pisando uma pele de urso, dando as costas a lareira, achava-se o


doulor Mackenzie, mais onhecido pelo nome de “Doutor Rob” ou “velho
Robbie”.
Jane viu-se diante de um homenzinho atarracado, metido num colete
de lontra j velho e num sobretudo largo demais de cor clara. A atitude do
facultativo era empertigada; mas a fisionomia nada linha de alímpica nem de
impotente; pelo contrario, os olhos ví-vos, de um azul pálido, quase
desapareciam sob as sobrancelhas emaranhadas, de um vermelho ardente, que
mal deixavam distinguir os dois pontos claros de cor, dos olhos. Quando
Jane entrou, os olhos de Rob estavam fixos numa carta aberta, que ela
adivinhou ser a de Deryck, e não os levantou logo. Quando o fez teve
insopitável movimento de surpresa. Abriu a boca para falar, tornando a fechá-
la sem ter pronunciado palavra e recomeçau a ler a carta. Jane esperou num
silêncio respeitoso, dominando a custo a sua agitação
O homenzinho levantou afinal os olhos, dizendo num tom de
interrogação;
— A enfermeira?..
Rosemary Gray, respondeu Jane, com deferência, com a sensação de
estar repetindo um papel,
— Ah, exclamou o doutor Mackenzie. vejo que...
Houve um silêncio: o doutor examinava a enfermeira dos pés a cabeça,
com olhar agudo. Falou por fim:
- Então chegou bem, enfermeira Gray?
— Muto bem, senhor doutor, respondeu Jane num alivio,
verificando que nenhuma dúvida sobre sua identidade parecia ter passado pelo
espirito do doutor.
Seguiu-se uma pausa, rompida de novo por ele.
— Estava aflito por que a senhora chegasse.
— Estou satisfeita, então, de ter vindo, respondeu Jane
com gravidade
A pequena comédia se desenrolava; Jane esperava até ouvir
as observações da duquesa nos bastidores. De chofre o doutor
voltou-se de lado e o olhar panetrante dos seus olhos azuis pesou
sobre ela, enquanto se punha a falar precipitãdamente.
— Se eu estou bem informado, miss Gray, a senhora veio
para tratar do espirito do doente, mais do que o corpo, não é isto?

73
Não se dê ao trabalho de explicar, pois recebi informações diretas
de meu colega Brand, que prescreveu uma enfermeira-secretaria e a
escolheu. Muito bem. Estou inteiramente de acordo, aliás, com esla
prescrição,
Jane inclinou-se silenciosamente.
— Creio, miss Gray, que me resta pouco a dizer-lhe a respeito do
tratamento, continuou o homenzinho. O doutor Deryck deu-lhe por certo
instruções minuciosas. A coisa importante, atualmente, é fazer que o
doente se interesse pelo mundo exterior. A tentação daqueles que perdem
subitamente a visla é de se abismarem no mundo intlerior, um mundo de
recordações, de volta ao passado, de saudade e da imaginação, que é, de fato,
o único mundo visível para eles.
Jane teve um movimento de atenção e de interesse. Afinal de contas
àquele escoces gorducho e excêntrico lhe podia talvez ensinar qualquer
coisa. — Sim, aquiesceu ela, queira dar-me algumas indicações.
— Pois bem, tornou o clinico, é esta precisamente a dificuldade
com o seinhor Dalmain. Dir-se-ia impossível inspirar-lhe o mínimo interesse
pelo mundo extorior . Recusa receber visitas; não quer que lhe leiam as
cartas. Possa horas e horas sem dizer palavras. Se não me falasse a mim e não
desse uma ou outra ordem ao Criado do quarto, a gente poderia imaginar que
perdeu a faculdade de se exprimir ao perder avista. Se manifestar o desejo
de me falar a sós quando estivermos ocasião, não saia do aposento. Finja
sair e fique. Desejo que a senhora veja que ele pode, quando quer, fazer um
esforfço. A sua função mais importanle, miss Gray, é prendê-lo à vida, à
vida de um homem cego, é verdade, mas não sem atividade. Agora que todo o
perigo de inflamação desapareceu, ele pode levantar-se, mexer-se, aprender a
guiar-se pelo ouvido e pelo tacto. Era artista de profissão:
não pintará mais, mas tem outros dotes que podem servir de derivativo a uma
natureza artística.
O médico parou de chofre; depois com a rapidez do raio, virando-se
para Jane, lancou-lhe uma pergunta:
— Ele é músico?
— O doutor Deryck não me informou a respeito; ignoro se o senhor
Dalmain O é.
— Ah está bem, .. é preciso então que o descubra E, a
propósito, toca piano?
— Um pouco.
-- Ah. . E canta um pouco tambem? Jane fez sinal que sim.
— Nesse caso, cara miss Gray, prescrevo-lhe formalmente
abster-se de tocar ou cantar o que quer que seja diante do senhor
Dalmain. Nós outros, que enxergamos, podemos suportar as pessoas
que tocam um bocado, demonstrando assim quão pouco sabem tocar,
porque nos podemos distrair olhando em derredor. Mas um cego, e
um cego artista, poderia enlouquecer com uma experiência destas.

74
Não a arrisquemos, por conseguinte. Lastimo parecer-Ihe pouco
amável; o interesse do doente porètn, vem antes de toda e qualquer
consideração.
Jane sorriu; o escoces começava a agradar -lhe.
— Não tocarei e não cantarei. doutor; fique tranquilo.
— Muito bem, mas permita-lhe sugerir-lhe o que deverá
fozer. Conduza-o aa piano, faça-o sentar numa cadeira em que se sinta
bem e ele encontrará facilmente as notas; deixe-o expandir a alma
dolorida
em sons harmoniosos. Isto o ocupará deliciosamente durante horas.
E se ele é realmente muscista, como o piano que aqui vejo me leva a
crer, pode começar este exercício já, antes que o atormentemos com o
estudo do sistema Braile e outros métodos de instruir cegos. E
agoro, miss Gray, só me resta apreaentà-la ao doente.
JANE sentiu o sangue fugir-lhe do rosto, refluindo-Ihe
violentamente ao coração. Mas conservou o seu sangue frio
aparente e esperou em silêncio. O doutor Mackenzie tocou a
campainha; Simpson apareceu,
- Um cálice de cherry com alguns biscoitos, pediu o doutor.
Simpsan inclinou-se. O doutor Robbie ficou de pé, torcendo o
bigode ruivo e olhando para fora. Sim-pson reapareceu com uma
bandejinha e tornou a sair fechando cuiddadosamente a porta.
- E agora, sra enfermeira, sente-e e, beba este vinha e coma um
biscoito,
— Mas, doutor, eu nunca... protestou Jane.
— Eu sei, que a senhora nunca bebe às onze horas da manhã,
interrompeu ele, mas vai fazê-Io hoje; não perca tempe em discutir.
Viajou toda a noite e vai ter um espetaculo muilo doloroso para seus nervos e
sua sensibilidade Acaba de ter uma entrevista penosa comigo e está
agradecendo a Deus por haver ela acabado. Agradeçer-lhe-á com mais
fervor quando tiver engolido êste cherry. De mais a mais, ha um bom
momento que a vejo de pé. Subirá a
escada com andar mais firme, miss Rosemary, se sentar cinco minutos a esta
mesa.
Jane obedeceu, enternecida e mais humilde. Afinal de contas, sob o
velho colete de lontra do médica, batia um coração compassivo e seu axtenor
quasç desagradàvel escondia uma compreensão inteligente dos homens e da
vida. Enquanto fazia a sua leve rerefeição, o doutorzinho ia e vinha de um
lado para outro como uma abelha. Parecia ter-lhe esquecido a presença; mas
no instante preciso em que ela enxugou os lábios no guardanapo, ele voltou-se
de sopetão e, atravessando o compartimento, pousou a mão no ombro de Jane.
— Agora, sra. enfermeira, siga-me e fale o menos
possível.
Não esqueça que toda nova voz, atravessando o silêncio e a

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escuridão lotal que o cercam, causa angústia ao doente . Fale pouco e baixo e
que Deus todo poderoso lhe de tato e sabedoria!
Havia a dignidade da autoridade na singular silhueta qu precedia Jane
na escadaria. Seguindo o doutor Mackenzie, teve a revelação de que, sem o
saber, se apoiava moralmente nele e que ele a amarava e fortalecia. A
peroração inesperada, quase uma invocacão na sua foma arcaica, infundiu-lhe
nova coragem. “Que Deus todo poderoso lhe dê toda a sabedoria”.... - disse
ele, sem suspeitar por certo quanto precisava Jane dessas duas coisas. E, num
passo firme e silencioso, Jane seguiu o doutor Mackenzíe, penetrando atras
dele no quarto onde Garth jazia deitado, débil, cego e desfigurado.

A VOZ DENTRO DA NOITE

A cabeça de negros cabelos pousada no travesseiro, foi o que Jane


primeiro avistou no quarto cheio de sol. Sem se perguntar porque, imaginara
um quarto escuro, esquecendo que para Garlh a noite. e o dia eram agora
semelhantes e que não havia razão nenhuma para privar o doente dos raios
benéficos da luz que cura e fortíca. Pedira que a cama fosse empurrada para o
canto mais arredado da porta, da lareira e das janelas, o lado esquerdo rente à
parede, de maneira que pudesse tocá-la com a mão quando se voltasse, afim
de se resguardar da inquisição dos olhares invisíveis. Estava justamente
virado assim, quando entraram, e não se mexeu. A querida cabeça: no
travesseiro foi só o que Jane viu a principio. Depois distinguiu o braço direito,
atirado um pouco para tras, na manga de seda azul de um pijama, e a mão
branca, inerte, emagrecida, sobre o cobertor, Jane escondeu as dela atras das
costas, no impulso veemente que a impelia a atirar-se de joelhos- junto a esse
leito, tomar nas delas a pobre mão abandonada e cobri-la de beijos! Ah! Com
certeza a querida cabeça de negros cabelos se voltaria em vez de procurar re-
fúgio na parede inexorável, e se entregaria à infinita ternura de seus braços.
Mas a voz de Deryck, grave e calma
lhe ressou ao ouvido: “Se faz questão de sua felicidade futura e da
dele...”
O doutor Mackenzie aproximou-se da cama, to-cando num gesto
amistoso o ombro de Garth. Depois, com surpreendente doçura na voz seca,
pose-se a falar com tanta harmonia que Jane mal reconheceu o homem, que,
havia instantes, durante meia hora acabava de interrogá-la num tom tão
incisivo e auto-ritário
— Bom dia, senhor Dalmain. simpson disse-me que o senhor passou
uma noiíe excelente a melhor de todas que tem passado. Ainda bem. Sem
dúvida alguma sentiu-se aliviado por se ver livre de Johnson e se achar nas
mãos de seu sarvidor do costume. Estes enfermeiros de profissão querem
sempre mostrar zelo, sem perceber que muita vez importunam. Eis aqui a
enfermeira Rosemary Gray, que lhe foi mandada pelo doutor Daiyck Brand, e
está disposta a servir-lhe de secretaria, do ledora; e de dama de companhia. E
de fato um novo par de olhos para o senhor Dalmain, com um cérebro
76
inleligente atrás desses olhos e um coração de mulher cheio de bondade e
simpatia para dirigi-los. Miss Roemary Gray chegou hoje de manhã senhor
Dalmain.
Nenhuma resposta. Mas a mão de Garth procurou a parede, recaindo
depois sobre o cobertor,Jane não chegava a compreender claramenle que miss
Gray era ela mesma! Só tinha um desejo, é que o pobre doente não fosse
importlunado por causa dessa mulher. Mas o doulor Mackenzia falava de
novo.
- Miss Rosemary Gray está aqui no quarto, senhor Dalmain.
Então a cortesia natural de Garth pareceu atraves-sar as trevas que o
envolviam. Não volveu a cabeça mas, com a mão direita, fez um aceno de
boas vindas e em voz baixa e distinta articulou:
— Ah! bom dia.. Foi bondade sua ter querido vir para tão longe.
Espero que não se tenha cansado muito na viagem.
Os lábios de Jane moveram-se, mas nem um som pode sair por entre
eles. O
doutor Mackenzie respondeu ràpidamente sem olhar para ela;
-- Míss Gray fez muito boa viagem e ninguém dirá que passou a noite
no
trem de ferro. Adivinhou qua è uma pessoa amante da água fria.
— Espero que a governanta tenha providenciado sobre tudo. Dê
as ordens
por mim, por farver, retrucou a pobre voz fatigada.
Depois Garth encolhoeu-se ainda mais de encontro à parede, como para
finalisar a entrevista. O doutor Rob torceu silenciosamente o bigode e
dirígíu-se à Jane.
— Sra. enfermeira, quero mostrar-lhe uma poltrona que fizemos
preparar para o
senhor Daimain, e no; qual ele achará todo o conforto possivel assim que se
levantar. Veja, há um anteparo movel para a cabeça; estas prateleiras podem
igualmente mudar de posição. Esta cadeira foí realmente muitó bem ideada e
executada e o doulor Deryck aprovou-a. Já viu a senhora algmia deste
género?
— Tinhams uma no hospital, mas não tão aperfeiçoada quanto esta,
respondeu Jane.
No silêncio do quarto cheio de sol um grito lascinante irrompeu da
cama. Era o grito de um desgraçado perdido nas trevas, clamando por socorro
do fundo de seu desespero. Jane fez-se lívida.
— Quem está aí? Quem está no quatro? Bradou Garth num ofego
imperioso, o corpo levantado a mejo, os olhos sem vida voltados para o lado
de onde par-tia a voz, a face torcida de angústia.
— Não há ninguém no quarto senhor, Dalmain, a não ser a
enfermeira, respondeu o doutorzinho.
— Há uma outra pessoa no quarto, tornou Garth com violência, —

77
como se atreve o senhor a enganar-me? Quem falou aqui há minuto?...
Jane aproximçu-se da cama; as mãos lhe tremiam, conseguiu porem
dominar-se.
— Fui eu quem falou, senhor: a enfermeira Rosemary Gray.
Foi com certeza a minha voz que o impressionou. O doutor Brand me
prevenira que isto poderia ccontecsr, dizendo-me que eu não me espantasse
se o senhor achasse minha voz parecida com a de certa amiga comum. Ele
próprio muitas vezes o tinha notado.
Garth, mergulhado nas trevas, ficou imóvel ouvindo e refletindo.
Perguntou afinal vagarosamente;
— Ele não lhe disse a quem pertencia essa voz?
— Sim, porque lhe pcrguntei; disse-me que era de miss Champion,
A cabeça de Garth recaiu sobre o travesseiro, toda a sua fisionomia se
apagou num desânimo.
— Perdoe-ne. miss Gray, de ter tido tal susto, mas custa muito a
gente se habituar a ser cego e cada voz, transpassando o véu de eterna noite
que me cerca, tem um alcance que a pessoa que fala não pode avaliar, A
semelhança de sua voz cam a dessa moça é tal que, mesmo sabendo-a
atualmente no Egito, me custa acreditar que não se encantre aqui no quarto. E
entretanto a presença dela aqui seria: a coisa mais impossivel do mundo!
Perdoem-me pois, a senhora e o doutor Mackenzie, esta minha agitação e a
minha incredulidade, concluiu estendendo a mão direita para os lados da
Jane que torceu convulsivamente as suas, atrás das costas.
— Sra. enfermeira — ordeneu a voz rude do doutor Mackenzie,
venha aqui a esta janela, tenho ainda algumas instruções a dar-lhe.
Entretiveram-se alguns instantes em voz contida.
— Agora, creio que me posso despedir, declarou por fim o clínico.
— Pois eu desejaria dizer-lhe duas palavras em particular, acudiu a
voz enfraquecida de Garth.
—-Espera-lo-ei em baixo, doutor Mackenzie.. disse Jane dirigindo-se
para a porta.
Um gesto peremptório do médíco a deteve no entanto, fazendo-a sem
ruido colocar-se junto à lareira. Não havia necessidade de dissimulação,
sentindo-se contrariada de prestar-se a ela. Mas era impossível desobedecer
àquelíe homenzinho autoritário. O doutor foi até à porta, abriu-a e tornou a
fecha-la voltando depois para a cama, puxou uma cadeira e sentou-se.
—- Então, senhor Dalmain?
Garth soergueu-se a meio nos travesseiros, voltan-do-se todo para ele.
Pela primeira vez Jane pode ver-lhe direito o rosto.
— Doutor, pediu ele numa tensão extrema de voz, fale-me dessa
enfermeira, descreva-a antes de tudo!..,
Juntara as mãos, todo seu ser fremia na súolica deste pedido e o seu
rosto pálido e emagrecido como devastado de sofrimento, parecia ao mesmo
tempo tão vivo e tão morto.

78
— Descreva-a, doutor, descreva essa miss Rosemary Gray, como o
senhor a chama.
— Mas não é um nome de minha invenção, replicou o doutor Rob;
é o nome da moça e um bonito nome, não acha?
- Descreva-a, repetiu Garth pela terceira vez.
O médica tirou devagarinho a carta do doutor Deryck e pos-se
a estuda-la.
- Hum!... começou lentamente, tossindo afim de aclarar a voz,
é uma bonita mocinha, fina e distinta; talvez já não seja tão mocinha
assim, mas é o género de pessoa elegante que o senhor gostaria de
ter a seu lado se enxergasse.
— Loura ou morena?
O doutor lançou um olhar para os lados de Jane. pálida e
imóvel, cujas mãos amorenadas se apoiavam no mármore do fogáo.
— Loura, declarou, sem um minuto de hesitação.
Jane estremeceu de surpresa: porque mentia em favor dela esse
homenzinho?...
— Os cabelos, insistiu a voz do leito,
— Para dizer a verdade estão em parte escondidos pela modesta
touca, mas imagino que sejam frisados E vaporosos, como devem ser os de
uma bonita mulher.
Garth esticou-se fremente de emoção, escondendo nas mãos o rosto
sem vida.
— Doutor. disse ele, sei que já lhe dei muito trabalho e
devo parecer-lhe hoje perfeitamente ridículo. Mas se não quiser que
eu enlouqueça, mande embora essa enfermeira, não a deixe mais
entrar no meu quarto!
— Vamos, senhor Dalmam, replicou muito pachor-
rentamente o doutor; encaremos a situação. Suponho que o senhor
nada tenha contra a pessoa em questão a não ser esta curiosa
similitude de voz com uma de suas amigas em viagem. Esta sua
amiga não é então uma pessoa agradável?
Garth teve um riso escarninho.
— Oh! demais agradável, retorquiu com ironia.
— Nesse caso porque não evocana miss Rosemary Gray
uma lembrança agradável? Tanto mais quanto a voz dela me parece
tão feminina, toda doçura e bondade, o que nos nossos dias não é para
desdenhar. Há tanta mulher que fala agora como pedras rolando
dentro de um regador...
— Mas o senhor não compreende, doutor, implorou Garth
com uma entonação de cansaço extrema, que é esta lembrança, esta
parecença que na minha escuridão eu não posso suportar? Nada
tenho contra essa voz... Só Deus sabe! Mas quando a ouvi julguei
que... era a outra... a outra .. vindo ter comigo... aqui... e... Sua voz

79
apagou-se subitamente.
— A voz da pessoa agradável? Sugeriu o doutor.
Compreendi muito bem, Senhor Dalmam. O doutor Brand é porém
de opinião que a melhor coisa para o seu caso seria receber visitas.
O senhor tem uma poífusão de amigos dispostos a vir reconforla-lo:
porque não mandar chamar a pessoa agradável? Tenho a certeza da
que ela vira. E depois que se tivesse sentado aqui ao seu lado, e
conversado, a voz da enfermeira não o impressionaria mais.
Garth sentou-se na cama, a fisionomia descomposta exprimindo
o ardor do sentimento que o agitava.
Jane. de pé, contemplava-o com indisível enternecimento.
— Não, doutor, não, pelo amor de Deus! No mundo
inteiro ela é a ultima pessoa que deve entrar aqui, se não me querem
contraiar!
O doutor Mackenzie curvou-se como para examinar o lençol.
— E porque? perguntou baixinho.
-- Porque, retrucou rispidamente Garth, esta pessoa agrardável, como o
senhor a rhama, tem um coraçãoo generoso e compassivo que minha desgraça
faria transbordar de dó e dela eu nunca poderia aceitar a piedade. Seria
sobrecarregar demais o meu fardo. Tenha forças para aceitar a cruz que me é
imposta, doutor, e espero com o tempo carregá-la virilmente até a hora em
que aprouver a Deus libertar-me, mas a piedade dessa pessoa me partiria o
coração... Creio que me afundaria no abismo para nunca mais sair.
- Está bem, tornou o doutor Rob, com doçura A pessoa agradável não
virà.
Esperou em silêncio algum minutos, e afastando em seguida a cadeira
levantou-se
— Faça o que entender, senhor Dalmain, mas eu não posso mandar
embora esta enfermeira. Foi escolhida pelo doutor Brand. De mais a mais,
medite que decepção seria para a coitada estar despedida! Poderia até
prejudicar-lhe a carreira. Reflita um pou-co; ser despedida depois de cinco
minutos no quarto do doente, porque a voz dela o impressionara mal...
Nenhum hospital a receberia mais. E que diria a diretora quando tiveese de
lhe apresentar a atestado? Queira ser baslante generoso e desinteressado para
se pôr um instante no lugar dela..,
— Doutor Mackenzie, murmurou Garth, hesitante, o senhor jura, é
capaz de jurar-me que a descrição desta enfermeira está perfeitantenee
exata?
— Jurar, eu! protestou com unção o doutor Rob, tive uma mãe
devota, meu rapaz! Posso, aliás, fazer coisa melhor. Vou contar-lhe un
segredo. Eu lhe estava lendo trechos da carta do doutor Deryck, pois sou
mau julgador quanto à cara de mulheres, tendo sempre considerado os cães e
cavalos bem melhores companheiros, por menos atravancadores. Por
isto não me quiz fiar nos meus próprios olhos, preferindo dar-lhe a descrição

80
do doufcr Brand. O senhor não pode dizer que êle não é bom juiz
na matéria. Já viu lady Brand?
- Se vi lady Brand! Ora esta! retorquiu Garth com animação, com um
leve rubor subindo-lhe às fa-ces descoradas, pintei-lhe até retrato. Ah! que
quadro; de pé, junto a uma mesa, com sol nos cabelos e arranjando num
antigo vaso de Veneza narcisos de ouro. Não o viu, na Nova Galeria, há dois
anos?
— Não; não frequento muito exposições de quadros, mas (e lançou
um olhar a Jane que lhe fez um sinal afirmativo) miss Gray me disse há
momentos que o tinha visto.
— Realmente? e a voz de Garth traiu o seu interesse; em geral a
gente não imagina uma enfermeira passeando numa galeria da quadros
— E porque não? Muitas delas tem gosto artistico e preferem não
passar os feriados diante das vitgrines de moda. De mais a mais Rosemary
Gray é uma moça culta. O doutor Brand me disse que é bem nascida,
ínteligente, instruida. E agora, meu rapaz, meu rapaz, que decide?
Garth refletiu alguns instantes em silêncio, Jane desviou os olhos,
tremendo. Tantas coisas estavam suspensas na hesitação desse minuto!... A
voz de Garth ressoou, enfim, vagarosa e hesitante ainda.
— Se eu conseguisse separar a sua voz da. ., da personalidade da outra,
se eu pudesse convencer-me de que apesar desta igualdade ela não é... não é...
Fez uma pausa... e o coração de Jane pareceu parar-lhe repentinamente
no peito... Iria ele descreve-la?...
—.... parecida com a pessoa, continuou a meia voz como se falasse
para si mesmo, cujo porte e cujo rosto tão claramente se desenham na minha
memória associados a essa voz...
— Pois bem, atalhou o médico, podemos vencer esta dificuldade.
As enfermeiras sabem que é preciso não raro ceder ao capricho dos doentes.
Vamos chamar a jovern; ela se ajoelhará perto de sua cama. Fique descansado
que comigo aqui não se negará o e senhor lhe passará as mãos pelo rosto,
cabelos e cintuira certificando-se assim da veracidade da minha descrição.
Garth disparou a rir, tomando-lhe a voz uma nova entonação.
— Oh! exclamou, de todas as propostas extravagantes
esta é a mais extraordinaria! Estou completamente idiota e começo a
crer que exagerei a similitudo da voz. Em dois ou três dias não Ihe prestarei
mais atenção. E diga-me, doutor, se realmente ela se interessou pelo retrato!
Olá! Onde vai o senhor?
--Mas estou aqui, empurrava simplesmente a
cadeira para junto da lareira e tomei a liberdade de por água num copo. O
senhor tem realmente uma acuidade de ouvido anormal Sou todo atenção.
Que me dizia do retrato?
Ia dizer que se a enfermeira se interessou deveras pelo retrato de lady
Brand, ha lá em cima no meu estudio um que talvez gostasse de ver, mas a
propósito, doutor, não acho conveniente ficar na cama, já que jovens

81
eleganteg de vestido azul e avental branco entram no meu quarto quando bem
lhes apraz. Porque não me levantaria eu para experimentar a sua cadeira
aperfeiçoada? Mande-me Simpson, e diga-lhe que traga meu casaco pardo
de pintar e uma gravata alaranjada. Que benção do céu ter conservado a
memória das cores. Coitados dos que nasceram cegos! Rogo-lhe também
dizer a miss Gray que passeie por toda parte, a pé ou de automóvel, como
entender. Diga-lhe que a casa é dela, mas que não venha aqui no quarto sob
pretexto algum antes que Simpison a previna.
— O senhor pode contar com a discrição de miss Gray. respondeu
o doutor Rob
com a voz subitamente enrouquecida. Quanto a levantar-se, não se preci-
pite, meu rapaz. Verá, logo que as suas forças não podem ir muito longe.
Entretanto, se lhe apetece deixar a cama, faça-o sem susto, nada o impede.
— Adeus, doutor! atalhou Garth apertendendo-lhe a mão; lastimo
não poder mais oferecer-me para pintar o retrato da senhora Mackcenzie!
— Adeus, meu rapaz, e que Deus todo poderoso o abençoe,
replicou o medico; proceda com cautela. E não se admire, se,
voltando de ver meus doentes,
eu não apareça de novo para saber se a poltrona lhe agrada.
O doutor Mackenzie abriu a porta, deixando Jane passar sem ruído.
Seguiu-a, fazendo-lhe sinal que descesse.
Na biblioteca: Jane, sem forças, deixou-se cair numa cadeira; depois
voltou-se para ele, olhando-o de fito. O clínico inclinou-se diante dela; seus
olhos azuis sob as sobrancelhas emaranhadas estavam húmidos.
- Minha filha, disse bondosamente, sou um velho imbecil. É préciso
perdoar-me. Não previra que ia sujeita-la a semelhante provação.
Compreendo perfeitamante que enquamto ele hesitava a senhora sentisse toda
a sua carreira em jogo. Vejo que chorou mas não tome tão a peito assim que
nosso doento lhe tenha confundido a voz com a tal miss Champion e se
agitasse por isso. Não pensará mais nisso daqui a três dias, e a senhora lhe
será mais util que todas as pessoas agradáveis deste mundo. Ele já quer
levantar-se e explicar-lhe os quadros que fez. Não se assuste A senhora ha de
conseguir maravilhas, e poderei anunciar ao doutor Deryck seu pleno sucesso
junto ao doente. Agora, urge que eu veja Simpson para lhe dar instruções
detalhadas. Vollarei daqui a algumas horas para ver como estão as coisas.
Não quero reté-la
— Doutor Mackenzie, acudiu Jane, posso perguntar-lhe parque
disse que eu era loira e de cabelos crespos?
O doutor Rob já pousara o dedo no botão da campainha, mas a esta
pergunta parou, cruzando ao claro olhar de Jane os seus olhos azuis cheios de
finura.
— Certamente que pode, míss Gray, embora me surpreennda acha-
lo a senhora necessário. Ê claro que, por motivos todos dele o doulor Daryck
quiz fazer da senhora ao doente um retrato imaginário, e eu achei mais

82
prudente conformar-me com estas indicações. E agora, se me dá licença...
e o doutor tocou com força no tímpano.
- E porque lhe ofereceu também certificado da veracidade desse
retrato? Era correr grande risco.
— Porque tinha a certeza de tratar com um cavalheiro, declarou o
doutor Rob impacientado. Entre, Simpson, e feche a porta, louvando a
Deus por ter-nos feito homens e não mulheres.
Um quarto de hora mais tarde Jane viu afastar-se a charrete.

— Deryck tinha razão, pensou ela, é um original, mas poderá ajudar-


nos.
Se tivesse Jane podido ouvir as reflexões que o doutor Rob ia fazendo,
certamente teria pasmado Ele costumava falar alto e sozinho enquanto
ia de um doente a outro.
— Ora esta! resmungava ele fustigando o cavalo, quem me dirá por que
cargas dágua essa Jane Champion nos caiu aqui do céu?... Diabos me levem
se o adivinho! — continuou — mas nada de pragas, meu velho, lembra-fo que
tiveste mãe devota...

JANE FAZ PROGRESSOS

Carta de Jane Champion ao doutor Dericki Brand. Castelo de Greenesh:


-Meu caro Deryck, telegramas e postais não o informaram por
enquanto senão da minha chegada. Estando, porem, aqui a quinze dias, acho
que è tempo de mandar-lhe um relatório. Lembre-se, todavia da lamenlável
correspondente que sempre fui. Desla vêz gostaria de ler uma pena, pois
acabo de atravessar uma crise que bem poucas mulheres terão tido ocasião de
afrontar.A enfermeira Rosemary Gray esta se saindo menos mal junto ao
doente e lhe inspira uma confiança que satisfaz o seu orgulho profissional.
Quanta â pobre Jane, teve de contentar-se com a notícia de que é a
última dos pessoas de quem éle deseja a presença. Quando o nome dela foi
mencionado como o de uma possivel visita, o doente exclamou um “não”! de
tal repugnância que a pobre Jane sentiu o coração cheio de espinhos. Jane
está, pois, sendo castigada! Ah! caro doutor tão perspicaz, você não não se
havia engana-do na seu diagnóstico. Ele disse que a minha compaixão seria o
fardo mais intolerável para sua Cruz já tão pesada! Como fazer-lhe com-
preender que é dela mesma que apobre Jane tem compaixão?. . Não se
espantará, pois, se eu lhe disser que neste regime a dita Jane tem emagrecido
e perdido as cores, apesar dos petiscos que Margery lhe liberalisa. Qh, meu
velho camarada meu coração esta como em carne viva e receio até o contato
da sua mão tão leve. Mas onde ficara eu!.,. Ah! falava do meu emagrecimento
e cansaço; em compensação, parece que a jovem Rosemary continua

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florescente, bonita e com os cabelos mais vaporosos do que nunca. Devo
cononfessar-lhe que no tocante ao fisico da enfermeira tive de pôr o pessoal
doméstico do castelo na confidência. Incidentes críticos davam-se a todo
instante. Na biblioteca, por exemplo, a primeira vez que lá estivemos junfos,
Garthi mandou Símpson dar um lamborete a miss Gray; Simpson abria jà a
boca para responder que miss Gray era bastante alta: para atingir as estantes
superíores, mas a sua contenção de lacaio de grande casa solveu a situação.
Respondeu um «sim senhor» respeitoso, lançando-me entetanto um olhar
estupefato. Se Margery estivesse presente, era a catastrofe, pois nada lhe teria
podido deter a língua. Por isso, nessa mesma noite, depois de acomodado o
patrão, convoquei Simpson e Margerv a sala de janitar dizendo-lhes que por
motivos do tratamento uma descrição inexata do meu fisico fóra feita ao
doente. Julgava-me baixa, loira e muito bonita. Era, pois, importante não lhe
causar nenhuma perplexidade, desenganando-o por enquanto. A expressão de
polida atenção de Simpson não sofreu alteração, mas a velha Margery paasou
por uma série de expressões diversas que se cristalizaram numa última, de
aquiescência. Comentou em seguida:
— Fizeram bem! Porque meu amo, coitadinho, desde pequeno sempre
fez questão de beleza. Eu lhe disse mais de uma vêz “Você se ocupa
demais da exterior da taça, sem se preocupar com o que está dentro”. Por
isto, miss Gray, a senhora tem razão, é melhor
continuar a enganá-lo.
E como Simpson tossisse atrás sa mão para adverti-la da indisc rição,
acrescentou com ar de simpatia: “Se bem que um rosto vulgar possa ser
embelezado por uma expressão de bondade, a gente não pode explicar essa
expressão aos cegos”. De maneira, Deryck que o julgamento dessa fina velha
que conheceu Garth toda a vida estaria de acordo com a resolução por mim
tomada há três anos!... Mas continuemos o relatorio. A voz. como vocè
prevíra, quase comprometeu tudo. Teve um choque tal que, não obstante
parecer satisfeito com as explicações que lhe haviam preparado, julgando-me
fora do quarto declarou ao doutor Mackenzie que minha voz lhe tranformaria
fatalmente o espirito, sendo pois preciso mandar-me logo embora. O médico
soube convencê-lo e eu continuo no meu posto. Garth não fez mais alusão a
esse respeito. Somente, por vezes, surpreendo-o escutar-me.
Em vista disso, enquanto a pobre Jane permanece arredada, a enfemeira
Rosemary tem horas inefáveis. O doente volta-se para ela, confia em seus
cuidados, fala-lhe, procura penetrar-lhe o pensamento, descobre-lhe os seus; é
uma criatura rara e sedutora e uma delicia a vida com ele.,. Chego agora ao
ponto capital de minha carta e, embora mulher, não o reservo para o –“post-
scriptum”, Deryck, meu amigo, poderá vir ver-me breve e me falar? Não
creio que tenha força para suportarr durante muito tempo a situação sem seu
auxilio. Ele ficaria tão satisfeito com uma visita sua, para mostrar-lhe os
progressos ja feitos... E você poderia dizer uma palavrinha em favor de Jane,
saber pelo menos o que ele pensa dela.
Ah, meu amigo, se pudesse consagrar-me quarenta e oito horas! . Um
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pouco de ar das dunas lhe seria salutar. . . e depois, alimento um projeto que
depende em grande parte de sua vinda. Venlha pois,
Preciso de você,
Jane”
Do doutor Deryck Brand, à enfermeira Rosemary Gray, Castelo de
Greenesch.
“ Minha querida Jane. Irei certamente. Partirei sexta-feira e posso
passar todo o sabado e parte do domingo em Greenesh; mas preciso estar de
volta na segunda feira. Farei o possível; mas não possuo infelizmente a vara
de Moisés. Tenho confiança, no entanto. Tenhamos fé em Deus, que só ele
pode fazer sair o bem do mal. Estou satisfeito de que a enfermeira tenha
provado tanta compatência, e espero não me achar a braços com alguma nova
complicação,
Suponho que nosso doente se apaixone pela gentil Rosemary, que sorte
reservaríamos neste caso á Jane? Convém evitar todo transe a esta catástrofe.
Estou, brincando, porque aí estarei breve a seu dispor.
Do muito seu
Deryck: Brand .
Do doutor Deryck Brand ao doutor Roberto Mackcnzie:
“Meu caro colega.
Acha o colega útil que eu faça uma visita ao nosso doente da Greenesh
e que dê minha opinião acerca do seu atual estado? Ser-me-ia possível ir la
pelo fim da semana, Espero que esteja satisfeito com a enfermeira que lhe
mandei.
Seu afeiçoado
Deryck Brand” .
Do doutor Mackenzie ao doutor Brand:
“O doente recebe da pessoa tão competente que o colega mandou o
melhor trato possível. Nem o senhor, nem eu lhe somos mais necessários.
Creio, entretanto, muito oportuna uma visita sua a enfermeira que emagrece à
vista d’olhos e inexplicavelmente. Secreto pesar, fora da preocupação da
responsabilidade, evidentemenle a consome. Talvez tenho ela confiança no
colega. O fato é que não se resolve a me testemunhar nenhuma. Muito seu
criado e abrigado
R aberto Maekenzie”.

DIFÍCEIS MOMENTOS PARA A SECRETÁRIA

A enfermeira Rosemary se achava com o doente na biblioteca


ensolarada de Greenesh, entre eles, numa mezinha píortatil, se empilhavam
cartas ainda fechadas, do correio da manhã Garth. vestido de flanela branca,
gravata clara e uma flor à botoeiraa, recostava-se na sua poltrona, gosando
com uma acuidade tôda nova o perfume das floress e o calor dos raios solares.

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A enfermeira terminou a leilura de uma carta pessoal, dobrando-a,
guardou-a no bolso com verdadeira satisfação: Deryck ia chegar.
- Sua carta é de um homem, não é miss Gray?
perguntou Garth de repente,
- Perfeitamente; mas como sabe?
— Porque só havia uma folha e carta de mulher sobre assunto de
importánda nunca deixa de ter muitas. E esta carta tratava de assunto
importante.
— Ainda uma vez bem adivinhado, respondeu a enfermeira sorrindo; e
ainda uma vez como o sabe?
— Porque a senhora soltou um suspiroziho de satisfação no
começo da leitura e outro no fim, quando recolocou a carta no envelope.
Posemary pos-se a rir,
— O senhor está fazendo progressos tais, senhor Dalmain, que em
breve não poderemos mais ter segredos. Minha carta era de...
— Oh! não diga, protestou Garth, eu não tencionava ser indiscreto
a respeito da sua correspondência, miss GRay, mas gosto tanto de lhe fazer
constatar meus progressos e adivinhar o que não me dizem.. .
— Mas eu ia lhe dizer A carta é do doutor
Deryck, que entre outras coisas anuncia que estará aqui no
sábado.
— Ah! tanto melhor.. que mudança vai: encontrar! E que
prazer terei eu em agradecer-lhe a paciente leitora, secretária,
enfermeira e conselheira que me deu! Mas, acrescentou num
tom que denotava súbita apreensão, ele não vem para leva-la?
— Não, ainda não. E justamente, senhor Dalmain, ia
peíguntar-lhe se poderia dispensar-me durantete quarenta e
oito horas? A visita do doutor Brand seria excelente ocasião de
me ausentar, ao que me parece. Deixá-lo-ia sem susto, sabendo-
o em boa companhia. Se me autorisa a sair no fim da próxima
semana, estarei de volta segunda-feira cedo, a tempo de ler
correia da manhã. O doutor Brand podorá ler-lhe o do sabado
— não o ha no domingo — e substitue-me de todos os modos.
— Muito bem, aquiesceu Garth esforçondo-se por
esconder a sua decepção; eu teria gostada que converssassemos
os três. Mas acho justíssimo que queira
um feriado. Pretende ir longe?
- Não tenho amigos perto. E agora, quer que leia as suas
cartas?
— Sim, disse Garth estendendo a mão; um instante,
per favor; ha um jornal entre as cartas, sinto o cheiro da tinta de
impressão. Não, não Quero a jornal; dê-me o resto.
A enfermeira pos o jornal de lado e adiantou as cartas de
sorte que Garth pudesse tocá-las com a mão. Ele tomou-as a

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lentamente, uma a uma.
— Não são poucas, declarou sorrindo, passando os
dedos sabre os selos. De súbito parou; tinha em mão uma carta
escrita em papel estrangeiro e lacrada.
Scgurou-a um momento, parado, sem dizer nada, apalpando em
seguida o lacre que a selava. A enfermeira observava-o
ansinsamente. Ele, porém, não fez nenhma reflexão;
deixou cair a carta e tomou a seguinte. Mas quando depositou a
pilha em cima da mesa teve o cuidado de deixar a carta lacrada
em baixo de todas, afim de que viesse por úllimo. Rosemary
tomou a primeira leu a indicação do lugar de onde vinha,
descreveu a letra. Garth tentava adivinhar o expedidor,
rejubilando quanda acertava. Naquela manhã havia nove cartas.
A mão da enfermeira Rosemary tremia quando pegou a oitava.
-Esta carta. Senhor Dalmain traz um selo do Egilo,
anunciou. Tocando a última, e o carimbo do correio do
Cairo, Está selada com lacre vermelho, sinete de um elmo
enpenachado com a viseira abaixada,
— E a letra;? perguntou. Garth numa voz muito calma.
-A letra é clara, firme, bem lançada, sem floreios, foi
escrita com pena de ponta quadrada
— Faça-me o obséquio de abri-la e dizer-me a a assinatura antes de
lê-la. A enfermeira lutava contra a emoção que lhe contraia a garganta,
parecendo-lhe que a voz não ia sair Abriu a carta devagar e olhou a
assinatura. — A carta está assinada Jane Champion, senhor Dalmain.
- Tenha a bondade de ler, ordenou Garth atraz da mão que lhe velava o
rosto inclinado.
A enfermeira começou:
-Caro Dal, que posso dizer-lhe neste papel? Se estivesse ao seu lado
teria muita coisa a contar-lhe; mas escrever para mim é difícil, quase
impossível. Sei que a provação é mais dura para você do que para qualquer
um de nós; mas tenho a certeza de que ha de ser mais corajoso que todos nós
e ha de vencâ-la, continuando a achar bela a vida e faze-la achar assim a
muitos outros. Eu não sabia aprecia-la antes daquele verão passado em
Overdene e cm Shenstone, onde você me ensinou a perceber-lhe a beleza.
Desde então, ao espetculó de cada por do sol, de cada raiar de manhã sobre as
águas azul-verde do Atlântico, diante do púrpura das montanhas, das
catadupas do Niaigara, dos desertos dourados do Egito, pensei em você e por
sua causa compreendi melhor. Oh! Dal! quereria ir contar-lhe estas
maravilhas e fazer que as visse através de meus olhos, que graças a você
passaram a compreender melhor a sua magnificência. Disseiam-me que voce
não recebe visitas; mas não pode acaso fazer uma exceção para mim? Estava
na Grande Pirâmide quando soube... no terraço, depois do jantar. .. A
claridade do luar evocava em mim um mundo de lembranças. Acabava de me
decidir a regressar á Inglaterra e, uma vês chegada, escrever-lhe pedindo-lhe
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que me fosse ver... Neste instante exato o general Loraine veio com um jornal
Inglês e uma carta de Myra e eu soube de tudo ...
Teria voce vindo ver-me, Garth? Mas hoje, meu amigo, desde
que não pode vir ter comigo, deixe-me ir ter com você? Se me
mandar dizer simplesmente “Venha” irei de qualquer parte do mundo
em que possa estar. Não se importe com a proveniência desta carta,
eu não estarei no Egito quando a receber. Escreva para a casa de
minha tia, em Londres. Deixe-me ir, Dal, e creia que compreendo seu
sofrimento. Mas Deus ha de ajudâ-lo. Creia-me também mais sua do
que o posso exprimir.
Jane Champion”
Garth descobriu o rosto que exprimia forte resolução.
— Se não está fatigada, miss Gray, gostaria de ditar-lhe a resposta a
esta carta, enquonto a tenho ainda bem presente ao espírito. Tem aí
papel? Pode começar?
“Cara miss Champion, comoveu-me profundamente sua carta cheia de
símpatia. Só a sua bondade a levaria a escrever-me assim de tão longe, em
meio a cenas tão feitas para afastar seu pensamento dos seus amigos da
Inglaterra”.
Uma longa pausa; a enfermeira de pena na mão pedia à Deus que não
fosse ouvido do outro lado da mesinha o bater descompassado do seu coração.
--Estimo que não tenha renunciada a ir ver o Nilo e...”
Uma abelha zumbiu de encontra à vidraça... “naturalmente, se
me tivesse chamado, eu teria ido”. Silêncio completo durante alguns
minutos; depois a voz de Garth recomeçou a ditar:
- «A senhora é demasiado bondosa insistindo para me ver,
mas,-.» A enfermeira deixou cair a caneta:
- Qh! senhor Dalmain, deixe-a vir, coitada;
O rapaz voltou para ela um rosto estupefato:
- Não desejo que venha, declarou num tom résoluto.
— Mas reflita quanto é penoso desejar ardentemente ver
um amigo que padece e ser mantida a distância!
— Ê unicamente por bandade que miss Champion o diz: foi
uma camarada, uma boa amiga dos tempos passados; afligi-la-ia
ver-me no estado em que me acho.
— Hão è o que ela diz, retrucou a enfermeira com
convicção; ah! como não leu o senhor nas entrelinhas? Será precise
então um coração de mulher para compreender uma carta de mulher?
Talvez eu tenha lido mal? Quer que a releia?
Uma expressão de verdadeira contiariedade passou pelo
semblante de Garth. Falou com desacostumada dureza, as
sobrancelhas fransidas e a fisionomia glacial.
—A senhora leu muito bem a carta, mas não deve discuti-la.
Quero ter a liberdade de ditar cartas à minha secretária sem ser

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forçado a explicá-las.
— Peço-lhes desculpas senhor, respondeu a
enfermeira; exorbitei realmente das minhas atribuições, mas esta
senhora é a que me disseram ter a voz parecida com a minha e
cntão...
Garth estendeuj a mão atravez da mesa, deixando-a assim um
momento, mas nenhuma outra mão lhe respondeu ao gesto.
- Não pensemos mais nisto, disse éle com o seu encantador sorriso; o
meu excelente mentorzinho pode aconselhar-me sobre vários assuntos, porém
não sobre este. Agora, acabemos. Onde ficamos? Ah,. . «insistindo para me
ver». A senhcra escreveu “demasiada bondosa”.
— “Demasiada bondosa”, repetiu a enfermeira Rosemary com voz
abafada.
— Continuemos: “Mas por enquanto não recebo ninguém e não
desejo ter visitas senão quando me tiver tornado senhor de meu novo
estado, para que não transpareça demais. Tenciono passar todo o verão em
Greenesh na mais complela solidão, habituando-me pouco a pouco às
exigências desta nova vida. Tenho a certeza de que meus amigos
respeitarão a minha decisão. Tenho a meu lado uma pessoa de capacidade e
paciência tais...” Não! espere, exclamou Garth. súbitamente, não ponha isto,
ela poderia interpretar mal... Ja começara a escrever esta frase? Não? Qual é
a ultima palavra? “Decisão”. Muito bem. Um ponto depois de decisão.
Bom. Agora, deixe-me refletir.
Deixou cair a cabeça nas mãos e ficou absorto nos seus pensamentos. A
enfermeira esperava; na mão direita a pena levantada, e à esquerda apoiada no
coração, contemplava com inexprimível ternura os negros cabelos do doente.
Por fim Garth endireitou-se e concluiu: -Sinceramente seu, Garth Dalmain”.
Sem protestar, a enfermeira Rosemary traçou estas palavras no papel.

COOPERAÇÃO DO DR. ROB

O silêncio um tanto penoso que se estabeleceu depois de fechada a


carta foi rompida pela voz jovial do doutor Rob.
— Qual é o doente hoje? O senhor ou a senhora? Ah! nem um
nem outro, pelo que vejo. Ambos tem um ar tão prospero que intimidam o
médico. Tems a primavera lá fora, mas o estio cá dentro, continuou o doutor
Rob, embora se perguntasse a si proprio porque estavam tão pálidos aquêles
dois rostos e porque se respirava naquela atmosfera uma sensação de
sofrimento. Estou vendo, miss Gray, que a senhora abandanou o uniforme
de lã cinzenta, regrassando ao vestido de linho azul, mais bonito sem duvido,
porém capaz de dar-lhe um resfriado. E preciso não apanhar frio e comer
bem. Neste clima a gente tem de se alimentar copiosamente e a mim me
parece que a senhora está perdendo o peso ha algum

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tempo. Olhe, não vá ficar completamente imponderável.
— Porque bole sempre com miss Gray a respeito de sua pequena
estatura? perguntou Garth em tom de censura. Ser baixa não é
positivamente um defeito!
— Posso troçar, então, da sua grande estatura, se o senhor o
preferir, replicou o doutor Rob lançando um olhar malicioso a alta silhueta da
enfermeira, muito tesa e como que pregada diante da janela.
— Preferia que não fizesse nenhum comentário sobre seu fisico,
declarou Garth secamente, acrescentando depois com mais brandura: o senhor
compreende, para mim ela é apenas a voz que guia. A principio esforçava-
me por mentalmente emprestar uma aparência a esta voz; prefiro agora deixar
no vácuo a que ignaro. Salvo aquéle Johnson pertencente a um pesadelo a
meio esquecida, ela é a única pessoa nova que me tenha falado desde que
ceguei. A única voz a qual não posso dar nem rosto nem corpo. Com os anos
haverá muitas assim. Por enquanto, é a única.
Os olhos do doutor Rob, que durante esta explicação não tinha cessado
de esquadrinhar em derredor, pareceram imobilizar-se de chofre sobre um
objeto, digno de atento exume. Acabava de avistar a carta proveniente do
Egito, em cima da mesa.
— Ah! esclamou, as Pirâmides; o seloo do Egito é interessante.
Tem amigos por lá, senhor Dalmain?
—A carta chegou-me do Cairo, respondeu Garth, mas atualmente creio
que miss Champion está na Síria.
O doutor torceu o bigode, absorvendo-se na contemplação da edita.
— Champion? repetiu, Champion? É um nome pouco vulgar; sua
correspondente seria por acaso a grande Jane, como a chamavam?
— Justamente, confirmou Garth surpreso, conhece-a por ventura?
e a sua voz vibrava estranhamente.
—Muito, retorquiu o doutor em tom deliberado; conheço-a e conheço-
lhe principalmente o carater. Via à prova de fogo, o que a mor parte de seus
amigos não pode dizer. Mas há uma coisa dela que eu ainda não conhecia, é a
letra. Posso examiná-la?
Volta-se para a janela o petulante homenzinho dirigindo a pergunta à
enfermeira Rosemary; mas nâo viu dela senão as costas: miss Gray observava
a paisagem... Ele voltou-se entâo para Garth, que naturalmente já dera um
sinal de assentimento e em cuja fisionomia transparecia o desejo de ouvir
mais coisa sobre tal assunto. O doutor Mackenzie tomou o envelope.
— Sim, disse ele depois de curto exame silencioso; a letra se
parece com ela; clara, firme, decidida., sabendo o que quer dizer e indo onde
quer ir. Ah! meu rapaz, que nobre mulher tem por amiga!
Uns laivos rosados tingiram as faces amorenadas de Garth. Na sua treva
fora obsecado pelo desejo de ouvir falar dela, sem poder espera-lo. Ah! se
tivesse suspeitado que aquêle velho Robbie a conhecia .. Quanto tempo
perdido!... Usara de infinitas precauçãos para intetrogar Brand, temendo

90
revelar o seu segredo e o de Jane. Mas com o doutor Rob e a enfermeira não
eram necessarias tantas manobras. Podia guardar o seu segredo e, entretanto,
ouvi-los falor.
— Onde a enconfrou? perguntou logo para não deixar caír a
conversa.
— Dir-lhe-ei onde o como, se o senhor não tem medo de ouvir uma
historia de guerra.
Garth não queria outra coisa, e disse pressuroso:
— Mas o senhor esta sentado? E Miss Gray não quer uma
cadeira?
— Nâo estou sentada, nem me sento nunca quando quero dar livre
curso a minha eloquéncia, Miss Rosemany, absorta pelo panorama, está na
janela e não presta atençâo nenhuma ao que dizemos. Uma mufher, alias,
interessa-se raramente pelo que se possa contar de outra mulher. Mas acendar
o seu cigarro e refestele-se na sua poltrona aperfeiçoada. A primeira ves que
vi Jane Champion foi na África, durante a guerra dos boers. Eu lá estava
como cirurgião e ela como enfermeira voluntaria, mas não enfermeira-
amadora. Tratava deveras dos feridos. Trabalhava como dez e exigia que
todos trabalhassem da mesma maneira. Médicos e enfermeiras adoravam-na.
Sabia tão bem falar ao pobre “Tormny” ferido!... Achava palavras de mãe
para consola-loa, não imagina!
Garth deixou cair o cigarro a meio consumido, cobrindo o rosto com a
mão. O doutor apagou o cigarro, esfregando com o pé o tapete chamuscado,
olhando de soslaio para a janela: a enfermeira voltara-se de olhos inquietos
fixos em Garth.
— Encontrei-a, então, frequentemente, embora não estivéssemos
na mesma seção, prosseguiu o doutor; falou-me mais de uma vez. Uma
ocasião em que viera buscar clorofórmio na ambulância dei voita à sala e vi
miss Champion de joelhos junto a um homem
que ia morrer. Falava-lhe de mansinho, quando de repente houve um
estrépido formidavel e miss Jane e o ferido se viram cobertos de poeira e do
estilhaços: um obuz boer caira do telhada da ambulancia. O homem gemia de
medo, coitado, e era desculpavel: agonizava. A grande Jane não perdeu o
sangue-frio:
— “Deite-se, meu amigo, e fique quieto”. -— «Aqui, não”-
soluçava o desgraçado. — “Pois, sossegue, que vamos tirá-lo daqui”.
Voltou-se e, avístando-me, ordenou: “Aqui, sargento ! Ajude-me a carregar
este rapaz, não quero que ele se assuste neste momento”. Foi só o que
disse acerca do obuz que a podia ter matado. Meteu as mãos debaixo dos
ombros do ferido, que eu peguei pelos joelhos, e carregamo-lo ambos fora da
sala em ruínas até um quartinho ao fundo do corredor contendo uma cama e
algumas fotografias na parede — “Aqui, sargento”, e nós deitamos o homem
na cama. – “De quem é este quarto?” perguntei. A pergunta pareceu
surpreendê-la, vendo porém que se tratava de um estranho, respondeu
cortesmente: “É meu”, e notando que o ferido serenara, acrescentou;
91
“Pobre rapaz, não precisará mais da cama, quando eu pensar em deitar-
me”. Está é a mulher. Foi aliás esta a minha única conversa com miss
Champion, Pouco depois, voltava eu à Inglaterra;.
Garth levantou a cabeça:
— E tomou a encontrá-la?
— Sim, disse o doutor Rob; ela, no entanto, não me
reconheceu nem por sombras. Nem podia mesmo: na Africa eu andava
barbado, pois faltava-me o tempo para barbear-me e meu uniforme me
fazia passar por militar em vez de cirurgião. A gente naturalmente não
podia esperar reencontrar uma camarada de ambulância em...
Picadilly, concluiu o doutorzinho, engolindo em seco. E agora, meu
rapaz, que já
o macei bastante, vou falar a Margery na sala de jantar. Ela anda
assustada porque, segundo me disse, não digere bem as gorduras. Com
sua licença, portanto, vou chamar a Margary.
— Ainda não, doutor, atalhou a voz comedida da enfermeira,
tenho uma palavra a dizer-lhe; vou com o senhor até a sala de Jantar.
Enquanto examinar Margery, porei, o chapéu e, se o senhor Dalmain
quiser ficar só durante uma hora, acompanha-lo-ei um
bocadinho.
Jane entrou na sala de jantar com o doutor Mackenzic:
— Então, vou levar um grande pito? Perguntou ele detendo sobre
ela o olhar incerto.
A moça adiantou-se de mãos estendidas:
—Ah, sargento, exclamou, caro e fiel sargento, está vendo o que é a
gente usar roupa alheia?, .. Todo o meu tormento vem de ter tomado o nome
de outra mulher ! Então o senhor me reconheceu imediatamente?

--Assim que entrou, declarou o doutorzinho.


— Por não o disse?
— Pensei que devia ter sérios motivos para ser a enfermeira
Rosemary Gray, e não tinha que me meter nos seus negócios.
— Oh! como foi bom, discreto! Quamdo me lembro da maneira
pela qual me disse: “Então, fez boa viagem, enfermeira Gray?” quando podia
tão bem terme dito: “Bom dia, miss Champian, o que a tras aqui com um
nome emprestado?
— Teria podido, com efeito; mas graças a Deus não disse!
-- Então, continuou Jane, por que trair-se agora?
O doutor Rob pousou a mão no braço de Jane,
— Minha filha, eu sou um velho e em toda a minha vida não fiz
outra coisa senão adivinhar o que não me dizem. A senhora acaba de sofrer
uma dificil provação, não só no que diz reapeito a ele mas a todos nós.
Sabia que para dar-lhe forças de suportá-la, seria dentro em pouca necessário
ver compartilhado o seu segredo. E hoje, pela fisionomia

92
dos dois, quando entrei, vi que era chegada o tempo. A senhora tem
em mím um amigo que, como os que a viram na África, poriam de bom
grado a mão no fogo para servi-la
Jane fitou-o com os olhos cheios de gratidão, demasiado comovida para
falar. O doutorzinho prosseguiu:
— Diga-me só, minha filha, qual a razão que os separa?
—- Ah! doutor, reesondeu Jane num suspiro, foi uma histótia de
desconfiança e mal-entendido de minha parte. Agora, enquanto o senhor
examina Margery, vou preparar-me para sair e tentareí contar-lhe em
caminho o que separa nossas vidas. Seus conselhos talvez me ajudem e
sua ciência do coração humano descobrira talvez uma solução à tristeza
do meu caso.
Como Jane atravessara o vestíbulo e se dispunha a subir a escada,
olhou para os lados da porta fechada da biblioteca. Um susto a deteve:
não teria causado excessiva emoção, a Garth, a história do doutor Rob?
Só ela podia adivinhar a força de certas evocações e sentia que não
podia sair sem cerfificar-se de que ele ia bem. Abriu a porta da entrada,
ontornou a casa até o terraço e aproximou-se da janela aberta da
biblioteca, pisando sem bulha o canteiro gramado. Nunca o
espreitara, sabendo que ele odiava e temia a idéia de uma intrusão
invisível. Mas, agora... só uma vez... Jane espiou: sempre sentado na
cadeira, cruzava os braços sobre a mesa, ocultando entre eles o rosto.
Soluçava como ela ouvira ás vezes soluçar os soldados apos uma atroz
operação suportada em silêncio. E entre os soluços murmurava; “Minha
mulher! Minha mulher!”
Jane fugiu desvairada. Secreta intuiçãolhe dizia que descobrir-se a
êle nesce momento seria perder tudo. A voz de Deryck parecia rapetir-
lhe ao ouvido: “Cuidado! se faz questão da sua futura felicidade a da
déle.,.” Depois o praso era curto. Com certeza, na calma que sucedia a
esta tempestade, a necessidade de revê-la seria mais forte que tudo. A
carta ainda não expedida seria novamente escrita e ele diria —
“Venha” e um instante depois estaria ela em seus braços...
Sem ruido Jane afastou-se. Quando, uma hora depois, voltou do
seu passeio com o doutor Rob, com o coração cheio de esperanças,
encontrou Garth de pé, encostado a janela, escutando os rumores dife-
rentes que ja principiava a distinguir. Quando voltou a cabeça, ao
escutar-lhe o passo, parcecu-lhe impossível que eslivasse privado de
seus belos olhos brilhantes.
— Então, esteve agradável o passeio no bosque? Simpson
me legará até lá depois do chá, por enquanto, miss Gray, se não está
cansada, acabaremos a nossa tarefa, sim?
Garth ditou cinco cartas. jane percebeu que a carta dela
desaparecera, mas a resposta ainda estava em cima da mesa. Após um
instante de hesitação resolver-se a dizer:

93
— E a carta de miss Chompion? Deseja que a mande hoje?
— Certamente; nós já a concluímos, se não me engano.
— Pensava, murmurou Jane nervosamente, pensava que
talvez, depois da narrativa do doulor Rob, o senhor desejasse,..
— A narrativa de Rob não pode influir em nada sobre a
visita de miss Champion, atalhou Garth com secura, acrescentando
mais brandamente: — Lembro-me apenas...
— O que? perguntou Jane, com a mão no coração.
— Que nobre criatura ela é, rematou Garth Dalmain.

A VENDA

Quando Deryck Brand desceu na pequena estação, procurou debalde na


plataforma a figura de Jane, que por certo o devia estar esperando. Mas não
havia ninguém. Era ele o único passageiro; depois de ter depositado no chão a
mateta do viajante, o condutor reembarcava e o trem partia. O doutor tomou o
carro que o esperava, numa indefinível apreensão. Por que não viera Jane
recebê-lo?
A decepção causada por esta ausência lhe inspirava penosos
pressentimentos: seria possível que os nervos dela tivessem cedido à sua
demasiada tensão?
Na fuz radiosa da manhã lobrjgou em breve os vastos gramados e os
terraços de Greenesh, com os seus alegres canteiras de flores, suas alamedas
ensaibradas e o parapeito dominando o vale. Simpsan o recebeu à porta: do
vestibulo, custando ele a conter-se e não pedir noticias de miss Champion.
Esta inadevertência lembrou-lhe a neceasidade de estar alerta em palavras e
ações. Não se perdoaria nunca fer traido Jane.
— O senhor Dalmain está na biblioteca, explicou Simpson.
Gaeth levantou-se adiantando-se ao seu encontro, com a mão estendida,
um sorriso nos lábios e tão teso, tão moral andar que foi preciso ao doutor
mirar-lhe o rosto sem olhar, para certificar-se da ídentidade do homem
desembaraçado e de movimentos livres que o acolhia. Avistou um torçal de
seda indo da cadeira à porta e que a mão esquerda do rapaz acompanhara
disfarçadamente no andar O dr Deryck apertou-lhe carinhosamente a mão
estendida.
— Querido amigo, que transformação!...
— Não é verdade? murmurou Garth, encantado; pois é tudo obra
exclusiva da excelente enfermeira que me mandou. É de primeira ordem e
eu muito lho agradeço
Garth encontrara sem esforço a cadeira, que de ordinário era
ocupada por Jane, ofereceu-a ao médico.
— Tudo isto é invenção dela, declarou, largando o cordel, que
estava amarrado à poltrona; tenho assim à minha disposição uma porção de
fios condutores permitindo-me circular livremente. Como os distingue você,

94
Band?
— Pela cor. Um pardo, outro vermelho e o terceiro azul relorquíu
o doutor.
— Sim, tornou Garth, você é pela cor e eu pela espessura e
diferença da seda que os compõe.
— Estou contente por haver-lhe agradado a enfermeira.
-- Agradado! atalhou Garth com vivacidade. Diga que me ajudou,
simplesmente, a viver. Envergonho-me até quando me lembro do abismo
moral em que caira, quando você aqui veio pela primeira vez. Era um trapo. . .
Deve-me ter julgado um poltrão e um imbecil.
— Nem uma coisa, nem outra, caro amigo. Você
atravesava uma hora de terrível amargura, da qual, graças a Deus,
saiu vitorioso,
-- Devo-lhe muito, Brand, mas devo ainda mais a miss Gray, gostaria
que ela aqui estivesse para vê-lo. Ausentou-se infelizmente até o fim da
semana.
— Ausentou-se!... Precisamente hoje exclamou o médico, quase
traindo-se, de novo.
— Sim, partiu ontem de noite para passar o fim da semana nas
vizinhanças. Disse-me que estaria de volta segunda-feira cedo; a coitada
precisava realmente de uns feriados. Mas, Brand que bondade a sua de vir
ver-me, ocupado como é! Estou confuso de lhe ter dado este incomodo,
— Deixe-se de confusão, meu caro amigo, pois conquanto em
verdade só tenho vindo por sua causa, tenho nos arredores outro conhecido
pelo qual me interesso. Digo-lhe isto para o aliviar do fardo do
reconhecimento.
— Obrigado, respondeu Garth sorrindo; alivia a sensação sem
diminur o reconhecimento, E agora, vá almoçar... E perdoc-me Brand,
mas... Garth hesitou um instante, corando como uma criança.
“Estou desolado com a ideia de você comer sozinho, porque miss Gray
está ausente. Aborrece-me, creia, mas .. tomo sempre minhas refeições em
particular. Símpson me serve.”
Garth não pode ver o olhar de comiseração do médico, mas o tom cheio
de afeto da sua voz deu-lhe coragem de acrescentar:
— Nem sequer pude ainda aceitar a companhia de miss Gray.
Comemos sempre separadamente. Você não imagina o que é procurar um
pedaço de qualquer coisa no prato, receando que ele não esteja passeando na
toalha...
— Não posso imaginar, replicou o doutor, e nenhum de nós o
imagina ter feito essa dura experinência: como é que Simpson o acanha
menes doque miss Gray, que tem, profissionamente, o hábito dessas coisas?
Garth enrubesceu de novo,
— Simpson, sabe, è quem me barbeia, me veste, passeia comigo e,
afinal, a situação resume-se nisto: Simpson representa os olhos de meu corpo,

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miss Gray os de meu espirito. Sabe que ela nunca me tocou, nem mesma
para um aperto da mão? -Gosto disto, pois não á para mjm senão uma
voz, uma voz maravilhosamente caridosa. Parece-me que não poderia
mais viver sem ouvi-la,
Garth tocou o timpano, dando ordem a Simpson para levar o
doutor Brand ao seu quarto e servir-lhe o almoço. Derick levantou-se,
vestiu-se e almoçou com apetite. Extasiava-se justamente com o café da
velha Margery, quando esta opareceu. Ele imediatamente lhe perguntou
onde fazia aquele delicioso café.
— Num pote de barro, respondeu a velha caseira. O senhor
quereria ter a bondade de vir comigo, sem fazer bulha, quando acabar de
almoçar? Sem bulha sobretudo, repetiu Margery precedendo o doutor.
Subiram devagarinho a escada e seguiram por um corredor
bastante sombrio, recoberto de espesso tapele cujas paredes eram
ornadas com velhas gravuras e feixes de armas.
— Para onde me leva. Margery? indagou o doutor,
adaptando o andar ao passinho curto da boa mulher,
— Vai sabê-lo já, doutor; estamos chegando.
Na extremidade do corredor parou, bateu de leve numa porta e
abriu-a cochichando misteriosamente:
— É aqui. doutor, miss Gray o espera e introduziu Brand num
confortável salãozinho em cuja lareira brilhava um bom fogo. Jane
estva sentada numa poltrona de alto espaldar, com os pés nas achas.
O doutor só lhe viu a princípio o alto da cabeça e a barra da saia
cinzenta,
— Oh! Deryek, disse sorrindo é você? Entre e feche a porta!
Estamos bem sós? Venha apertar-me a mão , sem o que vou procurá-lo por
aí...
Num relance o doutor Se aproximara e, de joelhos diante da cadeira,
tomou as mãos que se lhe estendiam incertas:
— Oh! Jane! Jane! balbuciou com a voz travada de surpresa e de
emoção.
Os olhos de Jane estavam cobertos por uma espessa venda, um lenço
de seda grossa e preta, solidamente amarrado sobre as tranças fartas. Havia
qualquer coisa de patético no espetáculo daquela mulher solitária, nesse
salãozinho iluminado, os olhos vendados à luz. ..
--Meu amigo, respondeu a moça com um meigo sorriso, quis viver
alquns dias no país onde reinam as trevas. Oh. Deryck, era preciso que eu
fisesse esta viagem. A única maneira de ajudar eficazmente meu pobre
Garth, era saber com precisão o que representa para ele o fato de ser cego e
isto nos seus mínimoa detalhes. Eu não tenho muita imaginação e,
como ele nunca se queixa, ignoro o que há de mais penoso no seu eestado
Só me restava um meio para descobrí-lo: ficar cega como ele durante
quarenta e oito horas. Margery e Simpson compreenderam-no logo e me

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auxiliam no que podem. Simpson me garante o campo livre, se vou subir
ou descer. Seria uma complicação indesejável o encontro dois dois
cegos. Margery me ajuda em tudo que não posso fazer sozinha e você não
calcula quanta coisa, Deryck, quanta coisa.., E depois esta horrivel
escuridão, esta cortina preta sempre diante da gente, rigida qual um muro „
insondável como um abismo onde parece que a gente vai ser traqada.
E da escuridão saem vozes Se falam muilo alto, batem feito martelos, e se
não indistintas, desnorteiam o entendimento. E o despertar da manhã na
mesma escuridão envolvente da noite! ... Só o experimentei uma vez, pois
comecei a prova ontem, antes do jantar, mas já a estou temendo amanhã de
manhã. Imagine o que deve sei ter sempre, sempre, semelhante despertar sem
nenhuma esperança de sol! E as refeições..
--O que! você conserva a venda durante as refeições? exclamou o
doutor comovidíssimo.
— Naturalmente, e você não faz ideia da humilhação de encontrar
na toalha um pedaço que a gente julgava no prato! Mão me admiro mais de
que meu pobre Garth recuse deixar-me assistir às suas refeições, mas depois
de meu período de experiência espero que consinta, pois saberei vencer para
ele as dificuldades. Oh! Deryck, tive de me decidir a empregar êste meio,
porque não havia outro...
— Sim, concordou o doutor, sopitando o enternecimento que
Jane não lhe podia ver na fisionomia? sendo o que você é, devia tentá-lo.
— Ah! como estou satisfeita de que lhe admita a necessidade!
Receava que a julgasse pueril e inutil. Era preciso que fosse agora ou nunca,
pois, se ele me perdoar, há de ser este, espero, o único fim de semana que
ficarei longe dele. Acha que me perdoará?
-- Ah! minha pobre amiga, que lhe posso dizer? repetiu o doutor com
emoção. Vamos explique-me bem a coisa; você não tira nem um instante este
lenço?
— Só para lavar o rosto de manhã, respondeu Jane sorrindo, e fico
de olhos fechados, o mais possível. Durante a noite esta venda aquece-me
tanto a cabeça que a tirei alguns momentos para poder dormir; mas tornei a
amarrá-la antes de amanhecer.
— E conta conserva-la amanhã cedo?
Jane sorriu, adivinhando o alcance da pergunta.
—Até amanha à noite, Deryck, disse com doçura
-- Mas, Jane, protestou indignamente o doutor, Você tem de me ver
antes que eu parta! Seria levar demasiado longe a experiência.
— Não, retorquiu Jane, curvando-se para ele. Oh! Deryck, é me
tão penoso ouvi-lo sem vê-lo! Creia que compreendo qual será sempre o
mais rude dos sofrimentos dele!...
O doutor achegou-se a janela, assobiando para disfarçar a emoção. Jane
percebeu que ele lutava contra a própria contrariedade; esperou, pois.
pacientemente, que cessasse de assobiar. dentro em pouco sentiu ouvi-lo rir

97
baixinho e vir sentar-se a seu lado.
-- Você sempre foi destas pessoas que vão até o fundo das coisas. As
meias medidas não lhes convêm. Tenho, pois, de concordar com o que
planejou.
Jane procurou a mão do doutor.
— Meu amigo, disse ela, sinto que me vai ajudar também, mas
nunca o senti tão perto de ser egoista!
— Há em todos nós dois homens, tornou o médico, e cada um
deles é para nós temeroso desconhecido. Nos outros, homens, pretendemos
sempre ocupar o primeiro lugar em relação às mulheres pelas quais sentimos
interesse, e não só com aquela que excluvamente nos pertencem, mas ainda
com as sobre as quais pensamos ter direitos: filhas, irmãs, parentes e amigas.
Assim o quer a natureza que é preciso aprender a vencer. Agora deíxe-me dar-
lhe a sua capa. Costumo remexer sempre nos coisas de Flor, e sei muito bem
como se deve fazer. Não? Não quer, alma de pouca fé! Está bem, mandar-lhe-
ei Margery, então. Mas não se demore. Conversaremos mais livre lá fora e
você talvez faça descobertas que poderão servir para guiar mais tarde o nosso
amigo. Pense um pouco! Se você cair na escada com ela, Jane!... Uma pessoa
que faz tão esplendido café!...

PONTO DE VISTA MASCULINO

Profunda tranquilidade reinava na biblioteca onde Garth e Deryck


fumavam em silêncio, mergulhados na sensação de beatitude que se segue
sempre a um bom jantar num dia passado ao ar livre.
Pena era que Jane não pudesse ver os dois homens: Garth no “smoking”
elegante que lhe assentava tão bem ao talhe esbelto, o doutor em traje de
noite dos mais impecáveis, pois sabia que Jane fazia questão dessas minúcias
e não refletia que ela não teria olhos para olhá-lo!.,.
Garth sentara-se junto à lareira, pois o calor das chamas era muito
agradável nessa fresca noite de primavera.
- Que me dizia ainda ha pouco a respeito da enfermeira? Que ela
nunca lhe apertava a mão? perguntou de repcnle o médico.
— Sim, replicou Garth, mas não será uma regra de confraria,
corporação ou instituto ao qual pertence, que veda às enfermeiras apertar a
mão aos doentes?
— Não, que eu saiba.
— Então foi a intuição de miss Gray que a levou a agir
precisamente como eu quisera que agisse. Nunca me apertou a mão nem, de
maneira alguma me tocou. Mesmo passando-me as cartas ou objelos como
faz umas vinte vezes por dia seus dedos jamais nem siquer roçaram, os meus.
— E isto lhe agrada? interrogou o doutor lançando ao ar
baforadas de fumaça entre as volutas da qual observava atentemente o belo
rosto sem olhar.

98
- Sou-lhe muito reconhecido, disse Garth com ardor, por este requinte
de delicadeza. Sabe, você, Brand, que quando me propôs mandar uma
enfermeira-secretaria, eu senti logo que me seria intoleravel deixar-me tocar
por uma mulher?
— Você com efeito mo disse.
-- Quê?! realmente. Devo-lhe ter parecido muito urso...
-- Absolutamente; apenas um doente pouco vulgar. Em regra
geral os homens...
— Ah! bem sei, interrompeu Garth com certa impaciência; houve um
tempo também em que o contato de uma doce mão feminina me seria
agradavel e é provável até que eu a tivesse beijado. Fazia estas coisas outrora
levianmente... Mas Brand, quando um homem sentiu uma vez na dele a mão
daquela que unicamente para ele, é “a mulher”, esse contato torna-se tão
preciosa lembrança que, mergulhado na noite, esta lembrança é uma das
poucas coisas que ficam e consolam. Não acha, pois, razoável que qualquer
outra mão de mulher se lhe represente como um objeto de receio?
— Acho, respondeu lentamente o dr. Deryck, não o sei por
experiência, mas compreendo-o. Somente,meu amigo, não vejo porque,
se a “mulher unica” existe para você, não está ela aqui, a seu lado. No lugar
que lhe pertence de direito, desde que o contato de sua mão o consolaria...
— Sem dúvida! concordou Garth, acendendo outro cigarro,
mas na realidade isto importa dizer gue desde que ha uma vista
esplendida no terraço eu devo forçosamente vê-la... A vista aí está,
mas a minha cegueira me impede da vê-la.
-- Em outros termos, atalhou o doutor, conquanto seja ela
para você a “mulher única”, não é você o “homem único” para
ela?
- Não, respondeu Garth com amargor, acrescentando num suspiro:
não sou aos olhos dela senão uma criança.
— Digamos antes que você não soube discenir o que era para
ela, nem lhe fazer compreender, prosseguiu Deryck Brand sem parecer
perceber as últimas palavras; é preciso as vezes tempo e paciência para
provar certas coisas a uma mulher.
Garth levantou a cabeça num sobressallo de surpreso;
— Pensa você realmente o que está dizendo!
— Penso, retrucou firmemente o doutor; no homem, a
revelação da ”mulher única” è fulminante; nela, ao contrário a convicção
reciproca não se produz senão gradualmente, aos poucos, como o raiar
do dia,
— Oh, Deus! murmurou Garth. Para nós foi assim.Ela para mim
foi logo ”minha mulher”, meu coração deu-lhe sem hesitar esse nome.
No dia seguinte tratava-me de criança, uma criança que não se pode
levar a sério... Onde vâo parar as suas teorias, Brand?
— Não fale de teorias, meu velho, mas deixe-me dizer-lhe:

99
Adão fez muito mal de não correr imediatamente atrás de Eva.
Garth, inclinado para a frente, agarrou os braços da poltrona. Esse
tom de calma segurança acordava nêle dúvidas sobre a maneira com que
encarava a situação, as primeiras que lhe vínham ao espirito desde o
instante em que, três anos antes, deixara a igrejinha de Shenstone. O
doulor viu-o empalidecer e gotas de suor lhe umederam a testa.
— Qh! Brand, implorou num ofego —eu estou cego, seja
misericordioso! Tudo para mim tem tanta significação nestas trevas ..
O medico refletiu. Se as enfermeiras e alunos lhe tivessem podido ver a
expressão do rosto, teriam dito que estava praticando uma operação delicada e
perigosa, da qual o mais leve desvio do bisturi poderia resultar a morte do
paciente, e teriam tido razão, pois a sorte de dois entes oscilava ali na balança,
dependendo nesta crise da segurança e leveza da mão do operador.
Este rosto angustiado com o suor de agonia na fronte, este apelo
trágico: “eu sou cego...“ não haviam entrado nas previsões do dr, Deryck, Era
um aspecto do companheiro que não podia afrontar sem emoção. Mas a idéia
de que, lá em cima, os olhos vendados daquela que esperava o
acompanhavam da sombra e as suas mãos suplicante se lhe estendiam,
reanimou o médico,
— Você pode estar cego, Dalmain, respondeu num tom
propositadamente comedido, mas não é positivamente um imbecil, agora.
— Como, agora? Tê-lo-ia sido então outrora?...
—Como pode julgar? Conte-me claramente as coisas do seu ponto de
vista e darei opinião sobre o caso.
Seu tom. era tão suave que teve sobre Garth um efeito calmante,
inspirando-lhe ao mesmo tempo uma deleitosa sensação de segurança. O
médico falaria: por certo neste tom de uma angina ou uma dor ciática. Garth
derreou-se na poltrona e meteu a mão no bolso interno do casaco, apalpando
uma carta que lá se achava. Ousaria ele? Devia conceder-se enfim o alívio de
falar da sua mágua a um homem em que podia confiar inteiramente, evitando
entretanto o perigo de trair o nome de Jane diante de quem tão bem a
conhecia?
O doutor esperava: em silêncio Ao cabo de uns instantes Garth decidiu-
se:
-- Brand, se, como você teve a bondade de sugerir, eu me
der ao extremo alivio de confiar-lhe meu segredo, promete não
tentar adivinhar qual é
pessoa de quem vou falar?
— Meu caro amigo, declarou Brand com uma fisionomia que
reforçou a confiança de Garth, não procuro nunca adivinhar o segredo de
ninguém, E uma distração que não me atrai.
— Obrigado. Pessoalmente, eu nada quizera esconder. Mas
devo-lhe a ela; não lhe toquemos no nome, pois.
— Tem razão, meu amigo.

100
— Direi as coisas o maia resumidamante possível, começou
Garth com recalcada emoção, Conhecia-a ha muitos anos e encontrava-a em
todos os lugares onde a gente se encontra. Sempre me simpatisara com ela e
lhe dera apreço às opiniões. Era para mim uma camarada e amiga como o
era para outros, mas ninguém nunca se lembraria da associar-lhe uma ideia de
amor. A gente sentia prazer em estar junto dela, sem poder dizer porque. É
impossivel descrevê-la... Ela era... era... era...
O doutor viu o nome de Jane tremer nos lábios de Garth e não
querendo estancar a onda das confidencias;
— Sim, compreendo o que quer dizer... Então?
— Tive muitas paixões, continuou a jovem voz ardente ou
antes muitos entusiasmos estéticos. Só via a beleza nas mulheres e a beleza
me enfeitiçava. Nunca pensara em casamento, limitando a pintar o retrafo das
que admirava. Mães, tias e velhas casadouras imaginavam logo que eu
queria desposar meus modelos, mas as moças, essas sesntiam logo o contrá-
rio. Admirava-lhes a beleza apenas e elas enrendiam perfeitamente de que
natureza era esta admiração. De uma bonita mulher eu só queria um favor:
que me posasse para o retrato. Aos maridos eu não podia estar explicando
isto a toda hora. Mas as mulheres me compreendiam tão bem que -nenhuma
hoje se levanta, na minha ecuridão, para me censurar.
—Você foi mal julgado, disse Deryck, mas eu acredito.
— As duas únicas mulheres que exerceram influência sobre mim,
minha mãe, morta quando eu tinha dezoito anos, e Margery Grann, que eu
abraço e beijo todas as vezes que saio ou entro. Estes laços de infância: são
os mais sagrados da vida. As coisas ficaram assim até certa noite de junho, ha
anos já. Ela e eu nos achávamos hospedados no mesmo
castela, uma deliciosa moradia. Uma tarde conversamos com mais
intimidade do que do costume, e eu pensei tanto em casar-me com ela como
com Margery. Mas sobreveio um incidente (não posso dizer qual, se não a
reconheceria), e a mulher, a esposa, a mãe se me revelaram, num instante
maravilhoso, em toda perfeição de uma alma pura intacta. Foi uma revelação
de ternura de que nasceu um desejo insofreável, um desejo que nada saciará,
nunca, até o dia de juntos nos encontrarmos na celeste mansão, lá onde não
haverá: nem lágrimas, nem dores, nem trevas...
O belo semblante sem olhar brilhava iluminado pela chama da lareira.
A lembrança do passado evocava para Garth a visão do futuro. O dr. Deryck
ficou imóvel esperando que a impressão se atenuasse.
-- Pois bem,continuou a voz, compreendi logo que a amava e a
desejava; senti que a presença dela me iluminava o dia e a sua ausência
tornava mais fria e escura a noite. E todos os dias se fizeram radiosos porque
ela estava alí.
Garth, o peito arfante, parou um momento. A voz incisiva do doutor
elevou-se:
— Era sem dúvida bela, bonita, sedulora?

101
— Uma bela mulher! Ah! meu Deus, não.., Bonita? Não sei.
dizer...
—- Mas você não lhe queria pintar o retrato?
— Pintei-o, confessou Garth baixinho com intraduzivel ternura, e
os dois retratos que dela fiz de memória embora acabados na triteza e na
solidãocontam-se entre as minhas melhores obras. Ninguém os viu até hoje,
e ninguém os verá, a não ser apessoa nos olhos de quem tenho de confiar
para que mos traga... para serem destruidos...
— E esta pessoa?... interrogou o doutor.
— Será miss Rosemary Gray.
O doutor arranjou com a ponta do pé uma acha que queimava
alegremente na lareira.
— Escolheu bem, aprovou, fazendo sério esforço para
dominar o contentamento que da fisionomia lhe podia passar para a voz.
Miss Rosemary será discreta. Mas, em suma, é-me permitido pensar que
ela era bonita?
Garth parecia perplexo.
- Não sei, respondeu lentamente, como se refletisse, não posso vê-la
como a vêem outros olhos. A visão que dela tenho no instante em que tudo se
iluminou, inclui espirito, alma e corpo. Sua alma era tão bela, tão nobre, tão
feminina, que o corpo que a revestia lhe compartilhava da perfeição e se me
tornava infinitamente caro.
— Compreendo, disse afetuosamente o doutor; e de si para ai:
— Jane, Jane! você não tinha venda nos olhos e era cega nesse tempo!
— Tivemos, então, dias admiráveis, reiniciou Garth,
tudo me parecia tão simples e luminoso que não imaginava que o não
fosse para ela. Conversavamos,
faziamos música, falávamos de todos exceto de nós.,. porque estávamos
de pleno acordo, pensava eu. Toda vez que a via achava-a mais perfeita e mais
mulher. Houve entre nós uma separação de três dias, encontrando-nos depois
num fim de semana em outra casa amiga. Como associassem meu nome ao de
uma jovem americana, muito linda, a propósito de um gracejo dela a respeito,
tomei a resolução de lhe falar sem defença. Pedi-lhe que fôsse ao terraço.
Estavamos sós; fazia um luar magnifico, um luar como nunca vi...
A voz de Garth sossobrou num longo silêncio, articulando depois de
uma surdina de profunda emoção:
- Eu lhe falei... Vi que ela me compreendia, julguei que me aceitasse e
me envolvia com o seu amor, como eu a envolvera com o meu. Mas enquanto
imaginava que me compreendesse e correspondesse ao apelo de todo o meu
eu. .. ela esforçava-se por ser boa e indulgente.., pois não compreendera:.—
— Tem certeza? insistiu o doutor com a voz sacudida.
— Certeza plena: Quça-me: quando lhe dei o nome que esperava
ser o dela em breve futuro: «minha mulher», vejo-a ainda - ergueu-se num
sobressalto e me repeliu, mas sem cólera, pedindo-me uma noite para refletir.

102
Marcamos um encontro no outro dia de manhã, na igrejinha da aldeia; dar-
me-ia ali a resposta. Você talvez me vá julgar obtuso de fatuidade, mas
nunca me julgara mais severamente do que eu próprio. Imagine que tinha a
certeza de ser
aceito. Ela veio e, como eu pro forma lho pedisse a resposta, declarou-me
gravemente, categòricamente, que não lhe era possível casar-se com uma
criança!
A voz de Garth estrangulou-se-lhe na garganta e a sua cabeça caiu-lhe
sobre o peito, como a de um condenado. Chegara ao ponto em que a vida,
para ele, deixara de se oferecer sob o aspecto de antes...
O doutor sentiu um arrepio. Sabia que o transe fôra muito mais
doloroso do que o pobre Garth o dizia. Viu o homem que amava Jane, cego e
revivendo eternamente esta cena que nenhum ouvido jamais apagaria. Uma
onda de comiseração o inclinou paca Garth e, pousando-lhe ternamente
a mão no ombro:
— Pobre rapaz! murmurou, pobre, pobre rapaz!..
E permaneceram os dois muito tempo silenciosos.

O DIAGNÓSTICO DO MÉDICO

Por essa bela manhã de domingo, Jane e o doutor Brand galgavam um


atalho em ziguezague, que do terraço levava ao bosque de pinheiros. Dois
troncos de árvores derrubadas, colocados em pleno sol e dominando um
panorama admirável, lhes ofereciam assento, O doutor acabava de contar a
Jane a conversa da noite precedente.
— Porque não lhe deu sua opinião? exprobrou ela.
--Não dei opinião, nem expliquei nada, Deixei-o a crer no que
acreditava porque é o único meio de mantè-la no pináculo em que a colocou.
Não hei de ser eu que a faça cair.
— Cairia nos braços dele, respondeu afoitamente Jane; prefiro
êste lugar ao pináculo.
— Permita dizer-lhe, filha, que é bem mais provavel cair você no
primeiro trem de partida para Londres. Eu sté já a estou vendo néle...
— Oh! Deryck, suspirou Jane passando o braço pelo do doutor e
recostando nele os olhos vendados: que tem hoje que está tão mau comigo?
Torturou-me ainda ha pouco repetindo as palavras às Garth e agora, em vez
de me confortar, censura-me, zomba de mim e deixa-me em dificuldades.
— Censuro-a, sim, mas quanto a deixá-la em dificuldades, não.
A. noite de ontem não foi brincadeira, asseguro-lhe. Vi que devastações
pode exercer na vida de um homem a mulher amada Acordei hoje de
manhã com a sensação de ter levado uma sova.

103
— E eu? Não avalia então o que sinto?
— Você pensa ter razão e enquanto pensar assim seu caso sera um
caso perdido É precisa aprender a dizer: “Reconheço meu erro, perdoem-
me.”
-- Mas eu procedi do modo que me pareceu mais acertado, pensei
nele antes de pensar em mim.
— Isto não é a estrita verdade. Jane; você pensou primeiro em si.
Não teve coragem de arrostar a possibilidade de um arrefecimento no amor e
na admiração dele. Todo o amor é egoista, salvo o amor materno.
— Ah! gemeu Jane, sinto-me perdida nesta escuridão. Se ao
menos pudesse ver seus bons olhos, Deryck, sua voz me pareceria menos
dura.
— Pois tire o lenço dos olhos e olhe, aconselhou o doutor.
— Não quero! declarou Jane com violência; teria eu feito tudo isto
para sossobrar no porto?
— Minha filha esta privação voluntária da vista começa a atacar-
lhe os nervos, Tome sentido que não vá resultar mais mal do que bem. Os
remédios violentos. ..
— Psiu! fez Jane estremecendo; ouço passos.
— A gente sempre ouve passos num bosque, replicou ele, calando-
se e prestando ouvidos.
— É o passo de Garth, disse Jane baixinho Deryck,va ver.
Daqui se enxerga o atalho em baixo.
O doutor deu alguns passos, volvendo depois a Jane.
- Sim, conformou ele, a fortuna nos favorece. Dalmam sobe o caminho
com Simpsan; estará: aqui em três minutos.
— Diga antes que a fatalidade me persegue. Deryck. E a mão de
Jane levantou-se rapidamente para a venda que lhe tapava os olhos; o doutor
mal teve tempo de agarrar-lhe o braço no momento em que ia arrancá-la.
— Não faça isso, ordenou baixo e depressa; não sossobre no
último instante. Sou capaz de manter dois cegos a distância um do outro.
Tenha confiança em mim e fique sossegada. Como não compreende que a
fortuna nos favorece? Dalmain vem pedir a minha opinião sobre o que me
confiou. Você ouvirá. Será uma economia de tempo para nós dois o
presenciar você o modo com que vai aceitar meus conselhos. Agora, não se
mexa, pois se se mexer serei forçado a dizer que é um esquilo a atirar-lhe
algumas pinhas para afugentá-la.
O doutor dírigiu-se lentamente a uma dobra estreita do atalho; Jane
ficou só no escuro.
— Então, Dalmain! por estas alturas! disse o médico indo-lhe ao
encontro. Podemos dispensar Simpson, Tome meu braço.
— Pois sim, replicou Garth; disseram-me que você estava aqui e eu
cá vim ter.
Simpson retirou-se e os dois homens apareceram na cimeira.

104
—- Está sozinho? indagou Garth. Pareceu-me ouvir vozes.
— Com efeito, confirmou o dr. Brand, falava com u’a moça.
- Que espécie de moça?
- Ah! uma rapariga robusta que se me afigura de humor bastante
suscetível,
— Conheço-a, é a filha mais velha do jardineiro; tem muitas
preocupações, a pobrezinha.
— Bem me pareceu. Quer sentar-se neste tronco de árvore!
Lembra-se da vista que há aqui?
— Lembro-me ainda; apavora-me porém averiguar quanto, uma a
uma, as imagens mentais se embrulham e se esbatem na minha cabeça,
exceto...
— Exceto?
— O rosto dela!
— Ah, meu amigo, não esqueci a promessa de dar minha opinião
acerca do que me confiou. Refleti seriamente a respeito, estamos
perfeitamente bem aqui fora conversar.
— Tem certeza de estarmos sós? perguntou Garth inquieto; parece-
me sentir outra presença ao redor de nós...
— Quem é que está completamente só num bosque caro amigo ?
Inumeráveis pequenas presenças nos rodeiam. Se quizer a verdadeira
solidão, evite os bosques.
— Sim, aquiesceu Garth; mas falava de uma presença humana.. .
Aliás. Brand, devo dizer-lhe que vivo constantemente obcecado pela sensação
de uma presença invisível em torno de mim Outro dia teria jurado que ela, a
“mulher única”, me contemplava em silêncio, cheia de dó e de meiguice.
— Quando Teve essa sensação?
- Recentemente: o doutor Robbie nos contara como o acaso nos pusera
em presença de... Ah! Não posso revelar! Miss Gray e ele me tinham
deixado só e na minha treva solitária senti os olhos dela sobre mim
— Caro Dalmain, é preciso refugar esta obsessão de
presenças inverosíveis. Lembre-se que aqueles que nos amam
profundamente, podem, mesmo de longe, nos fazer sentir que o
pensamento delas está próximo, sobretudo quando sofremos. Não
se deve espantar se tem frequentemente a impressão de senti-la
próximo, pois, em minha: alma e consciência amigo, estou
persuadido de que o amor e o coração dela o acompanham por toda
a parte.
— Deus todo poderoso! exclamou Garth e,
lêvantando-se, deu alguns passos ao acaso. O doutor segurou-o
pelo braço; um passo mais e tropeçaria nos pés de Jane,
— Sente-se, Dalmain. e ouça-me. Vou tentar explicar-lhe
minhas palavras: preste atenção mas não se agite. Falamos em face
de um problema psicológico. Suponhames a presença dos dois seres

105
em questão. Compreenda uma coisa: o amor no homem cria o
esquecimento de si mesmo. Na mulher, pelo contrário, exaspera a
consciência de sua personalidade. Será ela tudo que esse que a ama
imagina? Poderá contentá-lo totalmente não só nos dias presentes mas
tambem no futuro? Quanto mais tiver ela sido simples e esquecida de
si mesma, mais estes pensares a obcecarão.
O médico olhou para os lados de Jane; juntara as mãos, o que
lhe deu a entender que estava no bom caminho.
— Em seguida, meu amigo, continuou Brand, pelo que me
disse compreendi que «ela« não correspondia fisicamente ao tipo de
mulher pelo qual você professava admiração. Quem sabe teve medo de,
após certo tempo, cessar de agradar-lhe?
— Não, disse Garth em tom incisivo, neste caso ela me teria
confiado suas apreensões. Eu logo a teria convencido. Sua suposição é
indigna de minha bem amada...
O venta soprava nas árvores, uma nuvem passou diante do
sol. Os dois seres mergulhadas na escuridão estremeceram num
arrepio e licaram silenciosos. Afinal o doutor rompeu o silêncio:
— Querido amigo, disse com uma vibração de profundo afeto na
voz persuasiva, estou convencido, convencidíssimo de uma coisa: “ela” o
ama! Talvez neste momento aspire com todas as forças de seu afeto estar a
seu lado, Consinta em dizer-me o nome dela, deixe-me procurá-la e pedir-lhe
a sua versão sobre o que se passou. E se for como penso, permita que
a traga aqui para provar seu arrependimento, sua ternura, seu amor.
— Nunca, bradou Garth num ímpeto, nunca enquanto me durar a
vida! Não vê, que quando eu tinha vida, renome, alegria, tudo que se possa
almejar em suma, não lhe pude conquistar a afeição, o que sentiria
por mím hoje, diante da imensidade do meu infortúnio, só poderia ser
pena, comiseração. Nunca lhe aceitarei a piedade. Se há
tres anos eu não passava de uma criança, aos olhos dela, agora não passaria de
um aleijado, um cego digno de pena da esmola do seu dó. Se você tem
razão, e ela realmente duvidou da fidelidade futura do meu sentimento, não
está mais no meu poder desmenti-lo pela minha fidelidade. Recusou-me
porque não me achou digno. Prefiro que assim seja. Fiquemos nisto.
— Mas assim você continua na solidão, no isolamento... observou
tristemente o doutor.
— Prefíro a solidão, afirmou a jovem voz de Garth, a desilusão.
Escute, ouço o primeiro sinal do gongo. Margery se amofinará se fizermos
esperar os pratos domingueiros.
Levantou-se voltando os olhos sem olhar para o lado em que
a paisagem se estendia a perder de vista.
— Ah! como conheço bem tudo isto! suspirou; quando aqui
venho com miss Gray, ela me descreve o que vê e eu lhe revelo o
que não pode ver. Tem muito gosto pela arte e por quase tudo que

106
me interessa. Preciso pedir-lhe o braço, Brand, embora o caminho
não seja íngreme. Não quero arriscar um tombo, já levei uns dois
ou três terríveis e prometi a Miss Gray ser prudente. O atatho não é
muito apertada podem duas pessoas caminhar lado a lado e três até,
se fôsse preciso. É uma sorte terem consertado este trilho; não
imagina como era difícil subir aqui antigamente.
— Tem razão, daria para três pessoas caminharem lado a lado.
Deu um passe atrás e, forçando Jane a levantar-se , pos-lhe a mão
gelada debaixo do braço esquerdo.
— Garth, continuou, tome o meu braço direito, de modo a poder
servir-se de sua bengala com a mão direita. Assim,
E, através do bosque, naquele plácido domingo de primavera, desceram
eles a passos lentos, caminhando o doutor Deryck entre essas duas criaturas
às quais tão ardenlamente desejava unir os corações magoados..,
De repente Garth, prestando atenção, parou.
- Parece-me distinguir outro passo além do seu e do meu.
— Os bosques são como o coração, cheios de ecos, retrucou o doutor;
se a gente se puser à escuta ouvirá tudo que quiser.
— Não nos demoremos então, replicou Garth, pois antigamente,
quando eu chegava atrasado para o chá Margery me castigava.

OS CORAÇÕES SE ENCONTRAM NO ESCURO

— Ser-me-á para sempre impossível, miss Gray, exprimir-lhe o que


penso sobre o que acaba de fazer por mim.
Garth estava de pé diante da janela escancarada da biblioteca. O sol da
manhã entrava às golfadas Uma nova aparência de força e animação emanava
desse rapaz de alto e esbelto porte. Estendeu as mãos à enfermeira, mas antes
para sublinhar suas palavras de reconhecimento do que à espera: do que seu
gesto fosse acolhido,
— E eu que procurava imaginar como passava a senhora o seu fim de
semana perguntando-me quem podiam, ser os seus amigos? Entretanto,
durante todo esse tempo, sozinha, no quarto, de olhos vendados, a senhora
passava por minha causa horas de verdadeiro sofrimento. .. Ah! a bondade
que inspira se-melhante ação está acima das palavras humanas, Mas, miss
Gray, não se sentiu um pouquinho culpada de dissimulação?
Era, com efeito, a sensação constantemente sentida pela pobre Jane e
por isto respondeu humildemente:
— Sem dúvida, mas todavia eu lhe dissera que não iriapara muito
longe. E meus amigos da vizinhança eram Simpson e Margery que me
ajudaram quanto puderam. Aliás dizendo que partia, diria uma verdade, pois
o mundo onde reinam as trevas é bem diverso do mundo em que existe a
luz!...
— Ah, como tem razão concordou Garth; é tão difícil fazer

107
compreender aos outros a sensação de absoluta solidão que sentimos!
Parecem vir de uma outra esfera e, depois de terem enlrado em contato pela
voz e pela sua simpatia, para lá de súbito voltam, deixando uma imensa
solidão da noite perpetua.
— Sim, respondeu a enfermeira, e a gente lhe receia a chegada
porque a partida torna a escurdão mais profunda e mais completa a solidão.
- Ah! Sentiu isto? Não me sentirei então mais tão só no reino das
trevas; dir-me ei que uma amiga dedicada me veio visitar.
Teve um riso tão moço e feliz que Jane sentiu latejar-lhe no coração
tudo que continha de ternura maternal.
De pé diante de Garth abriu-lhe os braços num gesto de espera e de
amor e, assim, na claridade luminosa, falou;
— Senhor Dalmain, teria muitas coisas a dizer-lhe, mas antes da
começar quero revelar-lhe a lição que aprendi no reino das trevas.
Depois, tendo consciência de que a emoção que a sacudia lhe dava à
voz vibrações que lembrariam talvez a Garth os acordes do “Rosário”, fez
uma pausa e tomou um diapasão mais elevado, do qual, para personificar
Rosemary, contraíra o hábito.
— Creio ter aprendido que esta solidão, intolerável para um só,
poderia transformar-se num paraíso para duas criaturas que se amassem.
A escuridão se tornaria para essas duas almas, em certas
circunstâncias, um maravilhoso lugar de reunião. Se eu amasse um
homem que tivesse perdido a vista, gostaria de conservar a minha, a
fim de serem seus os meus olhos quando deles precisasse, mas
tenho a certeza de que a luz muitas vezes me inportunaria porque
ele não a compartilharia e, quando viesse a noite, teria; pressa em
dizer-lhe: “Apaguemos as luzes, não deixemos entrar a claridade da
lua e fiquemos sós na sombra tão doce e tão boa...”
Enquanto Jane falava, Garlh empalideceu e seus olhos se
endureceram. Depois Uma reação lhe fez subir o sangue ao rosto,
que se coloriu até a raiz dos cabelos. Esquivava-se evidentemente a
influência da voz que dizia estas coisas Com a mão direita
procurava o cordel que a guiaria à sua poltrona.
— MISS Rosemary, respondou, e ao som desta voz os braços
abertos de Jane recaíram; é uma grande bondade de sua parte
confiar-me todos os belos pensamentos que lhe vieram no escuro.
Mas espero que o homem que tem a ventura de lhe possuir o
coração, ou que teria a felicidade de conquistá-lo, não seja um
enfermo como eu. Será melhor para ale viver na luz do que por em
prova a sua generosa dedicação. E, agora, abramos nossas cartas,
rematou taleando o cordel e indo ate a poltrona.
Uma sensação de terror acordou, então, em Jane, a
compreensão do que fizera. Esquecera totalmente a enfermeira
servindo-se da sua voz para despertar em Garth a ideia do que seria

108
para ele o amor dela, Jane. Esqueera que aos olhos dele só a en-
fermeira estava, em jogo e que esta enfermeira acabava de lhe dar
uma prova talvez demasiada de devotamento. Compreendeu que
Garth concluia assas justificadamente que ela acabava da lhe fazer uma
declaração de amor. . Jane sentiu-se entre Charybdes e Scylla, mas num
segundo resolveu-se ao mergulho.
Veio sentar-se no seu lugar, do outro lado da mesinha, dizendo:
—Creio que foi a ideia daquele ao qual acabara de aludir que me
permitiu falar-lhe abertamente como o fiz... Por desgraça brigamos, ele e eu...
ele nem sequer sabe que estou aqui!
A secura de Garth desapareceu instantaneamente.
— Ah! miss Gray, disse com animação, espero que não me ache
nem curioso, nem intrometido, mas tenho-me perguntado muita vez se esse
feliz mortal não existiria nalgum lugar!
— Não podemos chamar feliz agora, disse alegremente Rosemary,
pelo menos no que diz respeito aos seus pensamentos para mim. Meu
coração lhe pertence todo inteiro, mas ele recusa-se a acreditar.
Um mal-entendido levantou-se entre nós, e como foi por minha culpa, ele não
me quer dar a possibilidade de uma explicação.
— Que tolice da parte déle! redarguiu Garth. E estão noivos?
A enfermeira hesitou
— Não... oficialmente não, mas é como se estivessemos. Nem ele,
nem eu poderíamos dar a ninguém a sobra sequer de um pensamento.
Garth sentiu que lhe tiravam um peso do peito. Desde algum tempo
receava não ter sido muito direito para com ela e consigo próprio. A
enfermeira tornara-se-lhe necessária: mais que necessaria, indispensável por
suas qualidades e dedicação conquistara um lugar à parte no seu
reconhecimento.Suas relações eram deliciosas, eram um verdadeira
bálsamo, e eis que o doutor Robbie tinha estabanadamente
desmanchado este ideal equilíbrio. Garth um dia, só com ele, declarara
que miss Grey era necessária a sua felicidade, exprimindo a
compreensão em que vivia de que fosse chamada de um momento para
outro pela diretoria do hospital a que pertencia:
— Temo que não a deixem ficar indefinidamente no mesmo
lugar, mas talvez Deryck Brand nos obtenha uma exceção.
- Mande às favas a diretoria e o doutor Brand, respondera o
doutorzinho em tom deliberado, e se quiser tê-la aqui
permanentemente, assegure-sa da sua pessoa casando-se com ela meu
rapaz; aposto que não o recusará.
E fora assim que os grossos sapatos ferrados do doutor haviam
pisado num terreno delicado. Garth, desde aí, esforçava-se para
afugentar esta ideia, sem consegui-lo. Começava a perceber que as
atenções incessantes de miss Rosemary ultrapassavam o dever
profissional e deviam ser inspiradas por um mais terno sentimento.

109
Repelia obstinadamente a ideia que se lhe impunha ao espirito,
tratando mentalmente o doutor Rob de imbecil e a si próprio de fatuo e
ridículo. Mas, apesar de tudo tinnha em presença de miss Rosemary a
sensação de estar rodeado de uma vigilante atimosfera de amor. Certa
noite mesmo encarou possibilidades mais positivas e lutou contra uma
violenta tentação. Afinal de contas, por que não faria o que lhe sugeria
o doutor? Por que não desposaria esta criatura tão encantadora,
inteligente e dedicada? Conservá-la assim sempre junto dele. A outra o
considerava “uma criança”. Esta talvez tivesse por ele simpatia... Que
lhe ofereceria? Fortuna, posição social, uma casa principesca e um
companheiro que não lhe parecia desagradar... Mas o tentador
adiantou-se demais, pois murmurou: “E a voz fará sempre a de
Jane; tu nunca viste os traços de Rosemary, tu nunca os veras.
Poderás continuar a atribuir a voz aquela que adoras e, se casares
com Rosemary, não deixarás de amar Jane”. Mas Garth repeliu
com horror a dúbia alternativa e a batalha foi ganha.
A ideia porém de que a paz de coração da enfermeira por sua
culpa talvez tivesse sido perturbada, o atormentava. Por isto teve
real alivio sabendo que havia um homem na vida dela , embora o
espicaçasse secreto ciúme. E agora que a conhecia infeliz por causa
do namorado, como o era ele por causa de Jane, súbito impulso o
levou a acabar para sempre com equívocos e falar a Rosemary com
absoluta sinceridade.
— Miss Gray, disse-lhe inclinando-se para ela com o sorriso de
franqueza juvenil que tantas mulheres haviam achada irresistível; comove-me
muito a sua confiança e, conquanto me sinta desajuizadamente ciumento do
homem venturoso que lhe possui o coração, regozijo-me de que ele exista.
Quero, pois, também, minha excelente amiga, dizer-lhe uma coisa, que nos
toca a ambos, mas antes de o fazer peço-lha que ponha a sua mão na minha a
fim de selar a nossa amizade. A senhora que esteve no país das trevas deve
compreender o que significa um aperto de mão para quem não vê,
Garth estendeu a mão aberta e toda a sua atitude traiu forte tensão
interior.
- Não posso, senhor Dalmain, respondeu a enfermeira com uma voz um
pouco tremula; queimei as mãos... oh! Coisa sem importância, um simples
fósforo, nos dias em que estive cega... Mas diga-me assim
mesmo o que nos toca a ambos.
Garth retirou a mão apoiando-a no joelho... Atirou para tras o
corpo, conservando o rosto levantado, e havia nesse rosto uma
expressão tão pura a exaltação de um espirito pairando tão acima de
todas as tentações inferiores que os olhos de Jane se encheram de
lágrimas ao contemplá-lo. Só então compreendeu o que o amor e o
sofrimento haviam feito de Garth. Começou em voz baixa, falando
sem se virar para os lados de Rosemary.
— Diga-me primeiro se ele lhe é muito caro.
110
Os olhos de Jane, pregados no rosto bem amado, iluminaram e a
emoção desta fremiu na voz da enfermeira Rosemary,
— Éle é tudo para mim, respondeu simplesmente,
— E ele.. . ama-a como merece ser amada?
Jane curvou-se, pousando os lábios no ponto da mesa em que a mão
de Garth se apoiara, respondendo depois a enfermeira.
— Amava-me mais do que eu merecia.
— Por que diz “amava” no passado? “Ama” não é mais
verdadeiro?
— Não, infelizmente, confessou a voz quebrada da
enfermeira, receio ter perdido o seu amor graças às minhas
desconfianças e mal-entendidos.
— Nunca! declarou Garth, o verdadeiro amor nunca
desfalece. Pode parecar morto algum tempo, enterrado mesmo,
mas lá vem uma manhã em que ressuscita Seu amigo sabe qua a
senhora reconhece o seu erro? insistiu com extrema doçura.
— Não, replicou dolorosamente a enfermeira e nega-
me a possibilidade de uma explicação em que eu lhe mostraria o
mal que nos está fazendo a ambos a sua teimosia em não me
querer ouvir.
— Pobre moça, disse Garth num tom cheio de simpatia; minha
própria experiência foi tão trágica que posso compartir da dor dos que
sofrem por afeito. Mas ouça meu conselho, miss Gray. Escreva a seu
amigo uma confissão sem reticências. Explique-lhe o
acontecido. Todo homem que ama acaba acreditando. Compreendê-la-
á. Espero somente que não chegue aqui como um pé de vento para
arrebatá-la.
Jane sorriu através das lágrimas.
— Se ele me chamasse, senhor Dalmain, teria de partir logo,
disse mansinho.
— Quanto receio esse dia! continuou Garth. E sabe o que pensei por
vezes? Fêz tanto por mim e ocupa tão grande lugar na minha vida que
pensei em recorrer a um meio extremo para conservá-la sempre aqui. A
senhora é tão digna de tudo que um homem pode dar!... E, como a uma
criatura do seu quilate, eu não teria podido oferecer senão o melhor de
mim mesmo, quero que saiba o segredo de meu coração, onde tenho
guardada uma imagem idolatrada. Todas as outras vão a pouco e pouco
empalidecendo; cego, mal posso evocar o debuxo de tantos e tantos lindos
rosto que meu pincel reproduziu; todos se embaralham e se tornam
indistintos. Mas, louvado seja Deus, a imagem adorada se aclara à medida
que se adensa a minha treva .. Há de acompanhar-me a vida toda e na
morte, creio, ainda estará comigo. A senhora disse “amava” falando do
que lhe é caro, pois não sabe se éle mudou. Eu não possa dizer nem
“amava” nem “ama”, falando do ser a quem amo. Nunca me amou. Mas

111
eu a extremeço com tal ternura que nada mais poderei oferecer a quem
quer que seja. Se por egoísmo me casasse, o semblante de minha mulher
nada me seria... resplandecendo sempre o dela na minha escuridão.
Cara amiga se às vêzes reza por mim, reze para que não cometa nunca
a baixeza de oferecer a outra mulher, o simulacro de união que seria
O casamento comigo.
— Mas, interrogou miss Rosemary, ela que tudo podia ter,
ela?
- Ela... gemeu Garth, recusou tudo! Oh! Deus misericordioso, quem
pode avaliar o que isto significa: parecer indigno de ser amado por quem se
ama!
Garth deixou cair o rosto nas mãos, num soluco sem lágrimas.
Um silêncio completo reinou na biblioteca. De repente, sem
levantar a cabeça, pos-se a falar rapidamente:
— Agora estou sentindo o que contei a
Brand, mas nunca, salvo no dia em que estive só, com tal
intensidade!.. . Ah! miss Gray, não se mexa, mas
olhe se não vê alguma coisa... Olhe à janela... Não posso
convencer-me de que estamos sós... Enganam-me porque sou
cego! Entretanto... eu não me engano tenho consciência da
presença da mulher que amo. Seus olhos estão detidos em mim
com pena e dó. Condoe-se tanto de minha miséria que esse dó me
envolve quase como eu sonhara que seu amor me envolveria .
Oh, Deus! Está tão próxima que chega a ser terrível, pois não a
desejo perto de mim preferiria que houvesse léguas entre nos...
Serã ilusão psíquica? Ou é real?... Ou estarei enlouquecendo?. ..
MISS Gray, a senhora não me mentiria, nenhuma influência,
nenhuma diabólica subtileza a decidiria a me enganar neste ponto.
Olhe em derredor, eu lhe suplico em nome de Deus, e diga-me:
estamos nos sozinhos? E, se não estamos, quem, então, está aqui
além de nós dois?...
Jane ficara sentada, com os braços cruzados e o olhar apaixonado fixo
na cabeça tão bela de Garth. Quando o viu exprimir o desejo de vê-la a mil
léguas, cobrirara rosto com as mãos. Achavam-se tão perto que, estendendo o
braço, Garth lhe teria podido tocar nas grossas tranças. Mas Garth não se
moveu e Jane permaneceu de rosto escondido.
O siléndo durou um bom momento depois do apelo de Garth. Por fim
Jane levantou a cabeça.
-Não há ninguém aqui, declarou com infinita brandura a enfermeira.
Ninguém, senhor Daímoin. o não ser o senhor e eu . .
A ESPOSA E MÃE
— Então, agradou-lhe o passeio? perguntou Garth a miss Gray.
Haviam saído ambos pela primeira vez de automovel e igualmente pela
primeira vez tomaram chá os dois juntos na biblioteca pois o seu “fim de

112
semana” na escuridão tinha valido à enfermeira Rosemary vários privilégios.
Curvou-se e dispôs a xícara de Garth comodamente ao alcance das suas
mãos, tocando-lhe levemente os dedos com o pires para guiá-lo.
— Tome as suas refeições comigo, disse sfa num tom tão
conciliante que equivalia quase a uma carícia, e nenhum tropêço lhe
sobrevirá a mesa. Não quer fiar-se nos meus olhos?
— Fio-me nos seus olhos, respondeu Garth, sorrindo, tant o nessa
como em todas as outras coisas. Ah! Mas... estou me lembrando de uma
importante missão que tenho a confiar-lhe, missão de que a ninguém no
mundo encarregaria . Já vem caindo a tarde Miss Gray, ou temos nós ainda
uma hora de claridade?
Miss Rosemary olhou pela janela, consultando em seguida o relógio.
— Tomamos o chá muito cedo, disse ela, porque o passeio nos
abriu o apetite. Ainda não são cinco horas e a tarde está radiante, O sol só
se porá às sete e meia.
— Então a luz está esplendida, atalhou Garth. A senhora já
tomou o seu chá? O sol dá por um instante na janela do meu estudio. A
senhora conhece o meu estudio, lá em cima no último andar, pois já me foi
buscar uma vez os esboços do retrato de Lady Brand. Deve ter visto uma
porção de telas empilhadas nuncanto, algumas intatas, outras como que
iniciadas. Entre estas achará duas que desejo identificar antes de destruir.
Fiz-me levar até lá outro dia por Símpson e, mandando-o embora, tentei
sozinho reconhecê-la pelo tato, mas perdi-me em meio a tantas. Não quis o
auxilio de Simpson. pois o assunto desses dois trabalhos talvez o
surpreendesse e o fizesse tagarelar, e acho odioso despertar a curiosidade de
um criado. Não podia contar com Deryck, pois que conhecera o original
desses retratos. Quando os pintei não pensava que outros olhos além dos
meus os vissem jamais. A minha cara e excelente secretária é a única
pessoa a quem posso pedir êste serviço. Consente em fazer o que lhe peço e...
em fazê-lo já?
Miss Rosemary ergueu-se.
— Naluralmente senhor Dalmain, estou aqui para ser-lhe util como
lhe convier.
Garth tirou do bolso uma chave, deitando-a na mesa.
— Creio que as telas que desejo estão no canto mais afastado do
estudio, atras de um biombo japonês. São grandes. Se as achar pesada
demais, junte-as de frente e mande Simpson carrega-los. Mas não o deixe só
com esses quadros!
Miss Rosemary tomou a chave, indo depois ao piano, que abriu, e
estendendo a Garth o cordel que o guiava da poltrona ao instrumento, disse:
— Toque um pouco, senhor Dalmain, enquanto eu estiver lá em
cima, Mas diga-me antes uma coisa. Sabe quanto suas obres me interessam;
quando eu encontrar as telas em questão deseja apenas que eu as identifique
ou me permite admirá-las à vonlade na boa luz do estudio? Pode fíar-se em

113
mím para fazer exatamente o que deseja.
O artísfa em Garth não pode resistir ao desejo de ver sua obra
apreciada.
— Pode observá-las quanto quiser, miss Gray; nunca fiz nada de
melhor, embora as tenha pintado de memória. É, ou antes, era antigamente
uma de minhas manias.
— Como hei de reconheicê-las? ínformou-se mis Rosemary
dirigindo-se para a porta, onde parou e esperou. A voz de Garth, já sentado
ao piano e a tocar em surdina um acompanhamento, lhe chegou distintamente,
quase como um recitativo:
— Uma mulher e um homem... sós num jardim. O cenário mal
esboçado. Ela em traje de festa. Escuro e leve com uma renda clara ao redor
do decole. Chama-se este: “A Esposa”.
— Sim.
— A mesma mulher, o mesmo cenário, mas desta vez o rapaz
ausente, sente-se que é inútil pinta-lo; visível ou invisível, está ali para ela.
Nos braços a mulher tem...
O acompanhamento calou-se e um silêncio absoluto caiu
sobre eles
— ... uma criancinha. Chama-se: “A Mãe”. Em seguida a música
recomeçou, mansa e lenta, e a porta se fechou sobre a enfermeira que saiu.
***
Jane subiu ao estúdio e olhou em derredor. Cada minúcia na sua
perfeição revelava Garth: a harmonia dos reposteiros, dos espacos vazios e o
grande conforto dos recantos arranjados com arte. Num cavalete uma pintura
inacabada, palheta e pincéis aã ladc, como Garth os deixara na manhã fatal,
três meses antes. De súbito Jane arrancou-se a uma contemplação consciente
que adiava de propósito uma provação que precisava afrontar.
Atras do biombo amarelo descobriu uma quantidade de telas
amontoadas, mostrando pelo atropelo da desordem que mãos de cegos as
haviam remexido, tenlando debalde arrumá-las. Com respeitosa ternura Jane
apanhou as telas caídas no chão, alinhando-as à parede. Mas as telas
procuradas não se achavam ali. Jane endireitou-se e, avistando num cantinho
uma nova pilha, remexeu entre elas e achou as que viera buscar.
Reconhecendo-as logo e carregando-as para defronte da janela, face ao
poente, onde havia melhor luz, sentou-se para examinà-las à vontade. A nobre
silhueta de uma mulher era a primeira imagem a ressaltar. Sim, a nobreza
dominava, emanondo da atitude do rosto erguido, da extrema dignidade do
modelo. A segunda impressão era de força; força de agir, de perseverar, de
consolar. Só depois é que se atentava no semblante, numa surpresa
imprevista. O terceiro pensamento expresso no quadro era o do amor, do amor
mais elevado, mais puro e mais humano, entretanto. Esse amor, estava
escrito naquele rosto. Não tinha beleza, mas à medida que o fitava
mais as imperfeições se apagaram numa irresistível atração, e só se

114
lhe vinm a pureza e a nobre simplicidade. Esse rosto irradiava luz,
positivamente, essa luz misteriosa da alma que lhe brilhava aos
calmos olhos cinzentos que, por cima da cabeça do homem
ajoelhado a seus pés, olhavam para além do mar com a expressão de
total abandono da mulher que nada mais tem a dar de si mesma... A
ternura, a confiança, a compaixão pelo homem que lhe abraçava os
joelhos se fundiam numa infinita doçura, uma doçura milagrosa que
a transfigurava. Aquele iluminado rosto sem beleza prendia o olhar
como um ímã e o tílulo “A Esposa” jorrava instintivamente dos
lábios.
Jane não pode um segundo duvidar que se estava vendo; mas. ó
bondade divina, a que ponto diferente da imagem que lhe retratava o
espelho! A expressão dos olhos cinzentos lhe tornou tão vivamente
presentes as emoções do momento que ela assim vivera, quando a dileta
cabeça se lhe apoiara ao coração, que murmurou várias vezes: “Foi
assim... foi assim. Eu devia estar assim”.
E, de repente, caiu de joelhos diante do quadro,
- Oh! meu Deus, foi assim que eu estive? Foi assim que ele me
viu? Oh! Garth! Garth! Ajuda-o, Senhor, a me compreender, a me
perdoar!
As lágrimas lhe inundavam o rosto; teve de enxugá-las para
examinar o outro quadro. Era o mesmo modêlo, a mesma figura de
mulher, mas tendo nos braços uma criancinha cuja cabeça se
recostava no seio da mãe. A majestade do amor materno révestia-a
de singular formosura, uma transfiguração de amor lhe idealizava o
semblante extasiado; a esposa cumpria a sua missão e O sorriso de seus
lábios exprimia a mais inefável das alegrias ...
Um soluço sacudiu Jane da cabeça aos pés, soluço vindo das
profundezas de seu ser ante a revelação do que podia ter sido:
— Oh! meu amor, rogou baixinho, perdoa-me! Enganei-me.
Confessarei meu erro e, com a graça de Deus, explicá-lo-ei. Mas
perdoa- me, perdoa-me!
Uma torrente de ternura a submergia. Achou afinal forças para se
erguer e, encontrando-se à janela, chorou perdidamente diante da glória do
pôr do sol. O céu, na fimbria do horizonte, era de ouro e púrpura, porém mais
acima, á medida que o olhar subia, engolfava-se, no azul puríssimo da altura,
um azul imaterial, translúcido, um azul sem fim e sem fundo... Os olhos de
Jane perderam-se nesse azul e um sorriso de feliz antecipação lhe entreabria
os lábios. Enxugou os olhos, fechou a janela, e, tomando cautelosamente as
duas telas, voltou a biblioteca.
— Como demorou, miss Gray! Estive a ponto de mandar Simpson
ver se lhe tinha acontecido alguma coisa.
— Felizmente não mandou, pois Simpson me encontraria em
pranto, o que seria humilhante para mim.

115
Garth estremeceu; o ouvido do artista tinha surpreendido na entonação
da enfermeira uma perfeita compreensão de sua obra.
— Chorou? Por que?
— Porque estava encantada, deslumbrada, emocionadissima. Essas
telas são lindas, comovem até o fundo da alma. Infinitamente patéticas, pois o
artista soube tornar bela uma mulhar feia.
Garth deu um salto, voltando desabridamente para a enfermeira.
- Como? ... Feia?! bradou num assomo indignado.
- Feia, sim, tornou calmamente miss Rosemary. O senhor com certeza
sabia que o modelo o era. Aí é que esta a maravilha. Embelezou-a tanto
com a dignidade de esposa, transfigurou-a tanto de mor materno que ninguém
lhe nota as imperfeições do rosto incorreto. Vemo-la amada e amante, e bela
por conseguinte por êste simples fato. É o triunfo esplêndido da arte!
Garth deixou-se cair na poltrona as mãos juntas nos joelhos.
- É o triunfo da verdarde. Pintei o que vi ..
— Pintou-lhe a alma, continuou miss Rosemary; e essa alma
iluminou-lhe o rosto.
- É que lha via a alma, mumurou Garth cam voz quase imperceptivel, e
esta visão foi tão radiosa que ainda aclara a minha noite...
Fez-se um silencio comavente. O crepúsculo caía. Por sua vez a
enfermeira disse baixinho:
— Senhor Dalmain, tenho um pedido a fazer-lhe. Suplico-lhe que
não destrua esses quadros!
— É preciso destruí-los, retrucou ele levantando a cabeça; não
podem correr o risco de serem vistos por pessoas que... conheçam a moça
que pintei.
— Em todo o caso há uma pessoa que os deve ver, antes de serem
destruídos.
— E é? interrogou Garth.
— A que foi seu modelo, respondeu corajosamente a enfeimeira.
— Não, ela nunca os verá!
— Mas tem o direito de vê-los.
Qualquér coisa no tom firme da insistência impressionou Garth.
— E por que?
— Porque, vendo estes quadros, uma mulher que se sabe feia teria
a revelação de saber que poderia parecer bonita aos olhos de quem a ama.
Garth ficou longo tempo imóvel. Repetiu depois,
interrogativamente:
— Uma mulher... que se sabe feia...
Havia espanto na sua voz e, sentindo-se tacitamente animada, a
enfermeira continuou,
— Supõe o senhor por um instante que o espelho desta moça a
tenha refletido com o aspecto que a tela lhe deu? Pode ter a certeza de que
nunca, nunca se viu assim. Ela é casada?

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— Sim, afirmou tranquilarnente Garth, depois de ligeira
hesitação.
— É mãe?
— Não. Eu pintei o que podia ter sido...
Miss Rosemary compreendeu a censura.
— Caro senhor Dalmam, vejo que lhe devo parecer muito
presunçosa com as minhas perguntas e conselhos, mas a culpa é do efeito que
me produziram as admiráveis pinturas... Oh! sim, são admiráveis,
admiraveis!
— Ah! respondeu Garth com a satisfação do artista bem
compreendido, eu as tinha um tanto esquecidas. Estão aqui? Tome-as,
então, e seja bastante bondosa para m’as descrever.
Jane foi à janela, abriu-a, respirou o ar puro, fazendo mentalmente a
Deus uma oração para que as forças não lhe faltassem nessa hora crítica.
Depois sentou-se e, devagar, com voz mansa e doce, descreveu ao cego o que
Jane vira no estudio. Fê-lo com mestria, e todo o ardor desesperado de Garth
acordou novamente àquela voz .. Teve a sensação de que Jane fora dele
naquela noite e que os frios raciocionios de depois ainda não tinham
perturbada ali o divino extase que os unira.
E perdera-a... Por que? Por que? Haveria outra rasão além da que ela
lhe dera?
A voz de miss Gray prosseguira, terminando por fazer alusão à rosa
trepadeira pintada no fundo do quadro.
- Gosto da ideia das flores em botão no primeiro quadro e
desabrochadas no segundo.
Garth, mais senhor de si, sorriu.
— Sim, disse, e eu gosto que tenha reparado nesse detalhe. Pois
bem, não destruiremos essas telas já. Agora que sei onde estão, não há pressa.
Se não for muito trabalho, a senhora poderia embrulhá-los escrevendo em
cima: “Não abrir” e mandar Margery guarda-las no estúdio. Deste modo
quando eu quiser, saberei onde se acham.
— Muito bem; Fico assim contente, e talvez a moça feia...
— Não posso tolerar que a chamem de feia! ataIhou Garth com
energia; ignoro o que ela pensava do próprio rosto ou, antes imagino que
nunca pensara nele. Não sei que impressão lhe causaria, mas so lhe posso
dizer uma coisa: o rosto dela é o único a destacar-se na grande sombra da;
minha notre. . . Todas as belezas que pintei e admirei vão-se apagando de
minha memória. Só ela perdura, só ela: caama, serena, pura, terna,
bela. Tenho-a sempre diante de mim , e faz-me pena que uma pessoa que
se lhe viu a imagem que pintei possa chamá-la feia,
— Perdoe-me! disse afetuosamente a enfermeira Rosemary; eu não
queria contrariá-lo, senhor Dalmain e para provar a emoção que senti
diante de seus quadros, vou contar a resolução que me suscitaram lá no
estúdio. Não quero falhar na vida por falta da coragem e deixar que me fuja

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o que sua arte to bem evocou: as mais doces alegrias da terra ... Acurvarei
meu orgulho, serei franca e arrependida. Vou escrever a meu amigo uma
confissão inteira onde lhe explicarei minha atitude no mal-entendido que nos
separou. Acha que ele vai compreender? Acha que me compreenderá? , .
Garth sorriu. Tentou representar-se a imagem de um bonito rostinho
inquieto, rodeado de uma aureola de leves cabelos louros esta imagan não
estava em harmonia com a voz, mas era indubitàveímante a da enfermeira
Rosemary, tal qual os outros a viam
. — Seria de uma insensibilidade revoltante se não perdoasse,
respondeu com sinceridade
O FERIADO DA ENFERMEIRA
O janiar daquela noite, o primeiro na mesinha redonda, teve exito
completo. Todos os poquenos arranjos de miss Rosemary satisfizram
vivamente a Garth, A tensão da tarde provocou uma reaçao de alegria e
algumas perguntas feitas geitosamente trouxeram a baila anedotas sobre a
duquesa, e o nome de miss Champion voltou com uma frequência que
deleitou os interlocutores. Descobrindo o lugar que ocupava na memoria de
Garth, Jane delicadamente se enternecia e tudo lhe parecia prometer a vitória
no coração de Garth. Depois do jantar o rapaz demorou-se longamente ao
piano, enchendo a sala de doces harmonias. Uma ou duas vezes o prelúdio do
“Rosário” ressoou, mas foi imedialamente substituído por outros acordes:
dir-se-ia que voltava numa verdadeira obsessão. Quando Garth se levantou do
piano e voltou para a sua poltrona, miss Rasemary disse devagarinho:
— Senhor Dalmain, poderia eu pedir-lhe uns dias feriados no fim
da semana.
— Oh! para que? Para ir aonde? E por quanto tempo? Bem sei
que depois de tantas provas de dedicação eu lhe deveria dizer: —“De certo!
De muito bom gosto!” Mas em verdade não posso. Não imagina a que foi a
vida sem a senhora durante o outro “fim de semana”. Não foram dois dias, foi
um mês, apesar da presença amiga de Brand. A culpa é sua, de se tornar tão
necessária. . .
Miss Gray sorriu.
— Não me demorarei, penso eu, desde que deseja o meu regresso..,
Tenciono escrever hoje a carta de que lhe falei e botá-la amanhã no
correio. É preciso que a siga de perto; é preciso que esteja perto dele quando
a receber, ou, pelo menos, logbo depois. Creio, espero, que depois de lê-la
ele há de querer minha presença. Hoje é terça: posso partir na quinta?
O pobre Garth parecia aterrado.
— É hábto das enfermeiras abandonar assim os doentes para
irem verificar se os namorados lhes recebam as carras? perguntou com
amistosa ironia
- Não, replicou gravemente miss Rosemary, mas o meu
caso é excepcional.
—- Vou telegrar a Brand.

118
— Ele lhe mandara outra entermeira mais competente
e com a qual possa contar,
—- Oh! mulherzinha maldosa, exclamou Garth rindo; se miss
Champion estivesse aqui, havia de sacudi-la às direitas: a senhora sabe
perfeitamente que é insubstituível.
- Muito obrigado, tornou a enfermeira; miss Champion
tem então o costume de sacudir a gente?
— Sim, quando é gente aborrecida diz sempre que tem
vontade de sacudi-la.
— E miss Champion teria forças de por esta ameaça em
execução?
— Teria, se quisesse, mas não o quer nunca, pois é a bondade
e a indulgência personificadas,
A enfermeira pos-se a rir com um riso um tanto nervoso,
— Eis Simpson, anunciou, o serão passou depressa. Está
combinado. Posso ir quinta feira?
— Estou sem defesa, confessou Garth, não tenho o poder de
dizer não ... mas suponhamos que a senhora não volte?
— Então o senhor telegrafará ao doutor Brand
— Creio que está mais é com vontade de deixar-me
exprobrou Garth em tom sentido.
Ainda uma vez a enfermeira teve um risinho abafado, afastando-
se das mãos estendidas de Garth.
Quando Jane fechou o saco postal entregue todas as noites à
Simpson, havia metido nele duas cartas: uma dirigida à “Georgina,
duquesa de Meldrum”, outra ao “Doulor Deryck Brand”, e em ambos
os envelopes escrevera: “Em caso de ausência fazer seguir com
urgência até onde se achar a pessoa a quem deverá ser entregue”.
“VAI ACONTECER ALGUMA COISA”
A terça passou-se, na aparência, sem nenhum acontecimento. Se a
enfermeira percebeu na fisionomia de Garth, um ar de cansaço,
significativo de que o pesar o impedira de dormir, não pareceu nota-lo.
Dois telegramas vieram para miss Gray durante o dia. O primeiro
chegou quando lia um dos artigos do «Times» para Garth. Simpson trouxe-o,
exclamando:
— Um telegrama para miss Gray.
Ela tomou-o, excusou-se da interrupção e abriu-o. Vinha da duquesa e
d izia: “Muito incomodo, já se vê, mas parto de Easton hoje. Aguardo novas
instruções era Aberdesn.”
A enfermeira sorriu guardando o telegrama no bolso.
— Não tem resposta; obrigado, Simpson.
— Não são más noticias, espero... falou Garth.
— Não, mas minha ida quinta-feira torna-se obrigatória. Esse
telegrama é de uma velha tia de meu amigo. É preciso que eu lhe tome a

119
dianteira ou serão complicações a mais não poder...
— Ele não a deixará voltar... suspirou Garth desanimado.
— Acha-o realmente? respondeu a enfermeira com um terno
sorriso, e recomeçou a leitura interrompida.
O segundo telegrarna chegou depois do chá. Garth estava ao piano a
tocar a Marcha Fúnebre de Beethoven, e os poderosos accórdes da música
enchiam o vasto aposento. O aparecimento inopinado de Simpson no limiar
da porta pareceu insuportável à enfermeira, que, pondo um dedo nos lábios,
atrvessou a passos surdos a sala e tmou sem ruído o telegrama. Depois voltou
para o seu lugar e, estranha coincidência, enquanto lia o papel amarelo, Garth
ao piano pos-ae a dedilhar de mansinho o “Rosario”. O telegrama era de
Brand e dizia; “Licença especia! pade ser obtida. Flor e eu chegaremos
quando quizer. Telegrafe novamente.”
O “Rosário” chegou ao fim.
- Que tocarei agora? murmurou Garth.
- “Veni Creator Spiritus”, respondeu a enfermeira, curvando a
cabeça.
A quarta-feira chegou, um primeiro de maio ideal Garth achava-se no
jardim antes do almoço e, como lhe passasse debaixo das janelas, Jane ouviu-
o cantar. Curvou-se para forar. Que tentação de- lhe gritar: “Querido! Querido,
salve! Deus te guarde neste dia!”
Que ia trazer esse dia em. que a sua confissão devia chegar a Garth ? Era
tão criança em muitos pontos, tão impressionável, tão artista e cheio de
fantasias não obstante a sua horrível desgraça.,. Quando porérn entrava em
jogo sua dignidade de homem, mantinha imperterrito seu direito de escolher
e decidir, sem se deixar levar pelo juízo dos outros; tomava-se então rígido e
inflexivel.
Jane, à Janela nessa manhã, ignorava se a tarde a veria na estrada de
Aberdeen a caminho da Ingleterra, ou para sempre unida a Garth.
A enfermeira desceu para o terraço. Garth entrou cantarolando. Parecia
de esplêndido humor, despreocupado: trazia um botão de rosa na lapela do
casaco e na mão uma rosa-chá.
— Bom dia, miss Gray, disse com efusão. Que bela manhã de maio!
Levantei-me com as cotovias; o pobre Simpson ouviu-me o toque às cinco
horas. Levantei-me com a sensação de que «vai acontecer alguma coisa».
Quando era pequenino e tinha esta ideia, Margery dizia: “Levanta-te depressa
para que a coisa aconteça mais cedo ainda”. Obrigado, Simpson, obrigado.
Simpson levara o patrão até aquele lugar e retira-se. Assim que fechou
a porta, Garth inclinou-se sobre a mesa e, sem se enganar, colocou a rosa no
prato da enfermeira,
— Rosas para Rosemary, disse com o seu irresistivel sorriso,
leve-as ao peito se achar que ele não vê nisso inconveniência. Refleti
muito a respeito da tia e do sobrinho. Porque não os convidaria a virem
aqui, em vez de partir amanhã? Eu me ocuparei com a tia, enquanto a

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senhora se explicar com o seu amigo. Depois de tudo arranjado e nos eixos,
manda-lo-emos embora. Ah! miss Gray , faça-os vir, em vêz de ir onde elas
estão!
— Senhor Dalmain, respondeu ela passando-lhe a xícara, esta
manhã de maio sobe-lhe à cabeça; vou chamar Margery, ela deve conhecer
os sintomas,
— Repito que “vai aconlecer alguma coisa”. Este meu
pressentimento sempre dá certo. Poderia relatar-lhe os fatos
ocorridos, mas talvez a aborreça.
— Absolutamente não, protestou a enfeimeira. Mas gostaria
que se servisse, pois o correio estará, aqui num instante.
— Oh! esqueçamos as cartas, fazendo deste dia de maio um
feriado
— Senhor Dalmain, se não quiser ter juizo chamarei
Margery!
-— E que a senhara nunca me viu num dia em que “vai
acontecer alguma coisa”, afirmou ainda uma vez convictamente
Garth.
E miss Rosemary teve de renunciar a ralhar com ele. Suas
reflexões, alias, quando chegou a correspondência, ficaram sem
resposta. Garth ao piano tocava ritornelos que ressoavam como
campanulas de prata, quando a porta se abriu e a velha Margery,
de avental de seda e toucado de jardim, fez sua entrada. Foi
direito ao piano, pousando a mão no ombro do rapaz.
- Garth, pediu ela com seu modo carinhoso -não quer levar sua velha
Margery a passeio ao bosque por esta linda manhã de maio?
As mãos de Garth deixaram o piano.
— Naluralmnte! minha velha, tanto mais. Margery,
que “vai acontecer alguma coisa”.
— Eu bem a sei, meu rapaz—respondeu a velha ama
ternamente e a expressão com que contemplava o belo rosto sem
olhar encheu de lágrimas aos olhos de Jane. Eu também acordei
com esta sensação. Vamos ao bosque escutar a voz da terra, das
arvores e das flores, que nos dirão se é alegria ou tristeza o que
nos espera. Venha, meu filho querido.
Garth ergueu-se como num sonho estava tão belo e tão
jovem, apesar dos olhoa apagados que o coração de Jane pareceu
parar-lhe no peito.
Quando desceu para o chá. depois de um giro solitário
pelos campos, ficou espantada de ver Garth já instalado à mesa
de escrever.
— Miss Gray, disse seriamente ouvindo-a chegar,
peço-lhe desculpas do meu proceder de hoje de manhã. Estava
o que nós chamamos “fey” aqui na terra. Amalucado, é a

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tradução. Só Margery é que me entende quando estou assim.
Ouvi o que me disse a nossa boa mãe a terra, dormi sob os
espinhais e despertei disposto, pronto para tudo que êste dia me
trouxer Pois vai trazer-me alguma coisa. Não é uma ilusão.
Margery bem o sabe!...
- Talvez haja alguma noticia interessante nas
suas cartas, sugeriu Rosemary.
— Ah! esquecêra as cartas!... Depois do chá podemos
abri-las. São muitas?
- Uma pilha.
— Bem; daremos -cabo dessa pilha com vagar.
Meia hora mais tarde, Garth, sentado no lugar do costume, o rosto
voltado para a secretária, atento, ouvia a leitura da sua correspondência.
Apalpara as cartas, em meio das quais havia uma lacrada, cujo sinete era um
um elmo de viseira abaixada. A enfermeira o viu empalidecer. Não féz
todavia nenhuma reflexão, mas como da primeira vez quardou-a por último.
Depois de terminada a leitura de todas as outras, Jane tomou essa carta..
Tudo era silêncio em derredor. Ouvía-se o zumbir das abelhas no
jardim e o perfume das flores penetrava pelas janelas escancaradas. Ninguém
lhes perturbava a solidão. Miss Gray rasgou o envelope.
- Senhor Dalmain, eis uma carta lacrada de vermelho cujo sinete é um
elmo...
— Já sei, atalhou Garth, abra-a, por favor.
A enlemieíra obedeceu.
— É uma carta muito comprida, senhor Dalmain.
— Realmente? Queira le-la, então.
Houve um momento de silêncio durante o qual a voz da enfermeira
tremia. Garth esperava sem falar. Miss Gray pôde enfim dizer:
— Em verdade, senhor, esta carta me parece absolutamente
confidencial. Acho difícil le-la.
Garth surpreendeu-se com a aflição da voz e, voltando-se
bondosamente, disse:
—. Não fique nervosa, pobre menina, pois não lhe diz respeito. É com
efeito uma carta confidencial. Mas não tenho nenhum meio de conhecer-lhe o
conteúdo senão por seu intermédio. De mais a mais, a senhora que me escreve
nada pode ter muito intimo a dizer-me,
— Ah! mais pelo conlrário... assegurou trêmulamente a
enfermeira Rosemary.
Garth refletiu um segundo, tornando depois:
— Vire a pagina e leia a assinatura.
— São várias páginas.
— Pois vire-as todas, ordenou ele impaciente, não me faça
esperar. Como está assinada?
- “Sua mulher”, balbuciou a Enfermeira,

122
Garth pareceu de chofre petrificado; e após pesado silencio estendeu
a mão.
- Dê-me a carta, miss Gray, pediu em voz sem timbre;
obrigado. Quero ficar só um quarto de hora. Ser-lhe-ía grato se
passasse à sala de jantair e impedisse que entrassem aqui. Não
quero ser incomodado. Dentro de um quarto de hora, tenha a
bondade de voltar.
Falava com tanto sangue frio que Jane se sentiu desfalecer.
Algum sinal exterior de agitação a teriaa reanimado. Mas era o homem
que na nave da igrejinha se afastara dela sem voltar... Era o homem que
desde ai considerava terminado para sempre o episódio entre eles, o
homem do qual não viera nem uma solicitação, nem uma lembrança;
nem uma censura. E era para este homem que assinara – “Sua
mulher”!...
Jane, que nunca na vida soubera o que fora medo, soube-o nesse
instante pela primeira vez. Saiu sem ruido. Tinha consciência do
terrivel conflito interior que se travava no tranquilo aposento onde
Garth estava tomando uma decisão sem conhecer os argumentos que
ela lhe apresentara em defesa própria. Por uma simples fatalidade não
ouvira senão duas palavras da carta, mas eram as palavras decisivas, as
duas palavras que resumiam tudo que precedera. ESTAS palavas lhe
tinham como que desvendado o espirito da carta e o estado d’alma de
sua autora. Jane andava de um lado para outro numa grande agonia de
íincerteza. Lembrou-se, no entanto, como consolação, daforça que tinha a
verdade sobre a alma do artista. Não teria ele a intuição de que aqujela as-
sinatura exprimia a verdade?... Não seria êle mais ditoso na sua solidão se a
mulher que amava viesse, a menos que as confidências da carta a fizessem
considerar indigna? De repente Jane teve consciência da enorme vantagem
que lhe dava o fato de Garth ouvir a carta ja conhecendo a conclusão,
impossivel de ser posta no principio. Agradeceu a Deus e uma sensação de
paz e segurança lhe baixou na alma tumultuosa. O quarto de hora decorrera.
Jane atravessou o vestibulo a passos firmes e parou um instante à porta da
biblioleca. Depois, deaassombradamente, a enfermeiro Rosemary entrou.
A ENFERMEIRA
Garth estava perto da janela e não se voltou logo. Jane procurou a carta
com os olhos, avistando-a na mesa; pareceu-lhe amassada e depois alisada de
novo. Achava-se ao alcance da mão de miss Gray. Quando Garth deixou a
janela, sua fisionomia revelava claramente a violenta luta interior. Dava a
impreasão de um ser que, privado da vista, tivesse empregado esforços
tresloucados para ler. Tinha as faces pálidas, cabelos em desordem, mas a voz
com que se dirigiu à sua secretaria parecia calma.
— Cara miss Gray, temos na nossa frente uma tarefa difícil. Recebi
uma carta de que devo conhecer o conteúdo. Sou obrigado a pedir-lhe que a
leia, desde que não há mas ninguém que em seu lugar o possa fazer. Se minha
mãe fosse viva, seria ela. Compreendo que essa tarefa lhe seja
123
desagradável, pois, que a faz intermediária entre dois corações
feridos e separados. Tornar-lhe-ei eu menos custosa essa tarefa,
garantindo-lhe que não há ninguém de cujos lábios eu possa com
menos sofrimento ouvir ler esta missiva? Acredite que, salvo meus
próprios olhos, seriam os seus que eu de preferência escolheria
para lê-la. Sei que posso ter confiança na senhora, pois há de julgar
com bondade a pessoa que escreve e a mim mesmo, esquecendo
escrupulosamente tudo que não devia ser conhecido por uma
terceira pessoa
— Obrigada, senhor Dalmain, murmurou miss Gray.
Garth recostou-se à poltrona, abrigando o rosto na mão.
— Agora, se quizer...
Muito clara, muito sossegadamente, a enfermeira Rosemary
começou a ler:
“Querido Garth, desde que não me quer deixar ir onde está
você, dando-me assim a possibilidade de dizer-lhe a sós o que deve
ser dito, sou forçada a escrever-lhe. A culpa É sua, Dal, e ambos
sairemos com isto. Pois, como escrever livremente, quando sei que
não pode ouvir sem uma terceira pessaa saber o que deviamos
saber, só nós dois? E, no entanto, é preciso que eu escreva
livremente, desde que o futuro de nos ambos depende de sua
resposta a esta carta. É preciso pois que eu escreva como se unica-
mente você a fosse ler. De modo que se não pode fiar-se
inteiramente na sua secretária, diga-lhe que lhe restitua a carta
antes de virar a primeira página, e permita-me, Garth, ir dizer-lhe,
o resto de viva voz.”
—Isto é o fim da pagina, avisou a enfermeira numa reticência de
espectativa.
Garth descobriu o rosto.
— Fio-me sem reservas na minha secretária e não quero que «ela»
venha, declarou éle.
Miss Grery virou a página e continuou;
--Quero que compreenda, Garth, a verdade sem rebuços de cada
palavra desta carta. Lembre-se que eu sempre fui sincera e, no entanto,
Garth, preguei-lhe uma mentira. A confissão que se segue provém toda
dessa mentira única. Não preciso dizer o que ha de penoso em confessar-
me a alguém que não me quiz receber, nem uma simples visita de
amizade. Não sou humilde de natureza, bem o sabe, e pela grandeza do
esforço imposto ao meu orgulho pode medir a de meu amor. Deus lhe
assista, meu amado, meu pobre bem amado solitário.”
A enfermeira parou subitamente, pois a estas paalavras inesperadas
vindas de Jane, Garth se erguera dando alguns passos a esmo, como a
fugir a uma provação acima de suas forças. Mas dominou-se, tornou a
sentar-se, escondendo desta vêz completamente o rosto nas mãos.

124
A enfermeira Rosemary continuou.
--Ah! quanto a nós ambos prejudiquei! Lembra-se , meu querido, da
noite do terraço de Shenstone em que me chamou sua mulher? Eu o era
sem o compreender. Fiquei profundamente surpreendida, aturdida pela
novidade do que sentia, sendo tão inexperiente nas coisas do amor. Mas
naquele mesmo instante meu coração o proclamava seu dono e senhor. E
quando me apertou nos braços e sua adorada cabeça me descalçou no
seio, conheci pela primeira vez a significação da palavra extase, e nada
mais pedia ao céu senão que prolongasse a inefável delicia daqueles
momentos.”
A voz da enfermeira parou de chofre e a leitura cessou. Garth. caído
para a frente, a cabeça nas mãos, estrangulou na garganta um longo soluço
sem lágrimas... Foi, no enlanto o primeiro a recobrar a calma e, sem levantar
a cabeça, teve um gesto de piedade.
— Pobre menina! murmurou, estou consternado! Por que não me veio
esta carta quando aqui estava Brand? Mas preciso pedir-lhe que continue; leia
sem compreender; sou eu quem deve compreender
A enfermeira recomeçou:
“No momento em que levantou a cabeça e me fitou — ah, os queridos
olhos!.. — seu olhar despertou-me de súbito a consciência da minha fealda-
de... e, acabrunhada pela sensação de minha inferioridade, apartei sua cabeça
contra meu coração para que seus alhos não me pudessem mais ver. Só agora
tenho conscinêcia da interpretação que você pode dar a esse gesto! Juro-lhe
Garth, que só da segunda vez que me deu o nome de esposa percebi que esta
coisa extraordinária significava casamento. Por mais incrivel que isto pareça,
lembre-se que eu só conhecera até ali inocentes camaradagens e não esqueça,
dileto dono de minha alma, que eu sempre o considerava muito mais moço
que eu, e até o concerto de Overdene, não suspeitava sequer o que era o
amor. Você não esqueceu por certo que lhe pedi doze horas de reflexão. Dir-
lhe-ei mais tarde, meu arnor, o que forarn para mim essas horas... Espero
poder dizê-lo, mas é necessário que aqui integralmente lhe revele o
lamentável fato que nos separou. Eu o sabia admirador apaixonado da beleza
sob todas as formas; anotara mesmo no meu diário uma conversa em que
você me falara da beleza que pode às vezes revestir, graças à expressão, um
rosto feio iluminado de formosura interior. Mas ecrescentou que istoo era para
de vez em quando, pois ter uma cara feia todo o dia a seu lado ser lhe-ia um
suplicio... Foi esta frase que li e reli naquela noite fatal, ai de mim!... Não
tive bastante confiança no seu amor, não o julguei capaz de suportar a
imperfeição de meu rosto... Não me vira ainda pelos seus olhos. Julguei
poupar-nos a ambos cruéis arrependimentos e amargores futuros, abrindo
mão loucamente, assim, da felicidade inaudita que se me oferecia. No
mórbido sentimento que me dominava, eu me disse: “Que?! Esse efebo preso
à minha feiura, tornando-se cada vez mais belo e eu cada vez mais velha e
feia!. .” Como tudo isto ogora ma parece mesquinho, agora que conheço a
intensidade do seu amor! Mas julgava-me ajuizada e sensata , e tomei a
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resolução de dizer “não!” embora se me partisse o peito dilacerado. Ah! creia,
creia que eu não podia avaliar o que esse “não” significaria para você. Julguei
que passaria logo a uma nova fantasia. Sinceramente, Garth, acreditei que a
desilusão seria só para mim! Depois, apresentou-se a dificuldade: como
recusá-lo? Sabia que se lhe desse o verdadeiro motivo você me forçaria a crer
que me enganava. Então, meu amor, temendo ceder, menti-lhe... Não me
defendo, não me desculpo, confesso-me simplesmente confiada na sua
generosidade, que me confessara fambém que nenhuma outra resposta o teria
afastado de mim senão a que lhe dei. Ah! Se soubesse que desespero foi o
meu! Se me pudesse ter visto na igrejinha chamando-o, retraindo-me,
prometendo, ansiando ouvir o rumor dos seus passos num delírio de paixão! ..
Mas o meu Garth não era homem de esperar na porta os caprichos de uma
mulher.
“O ano que se seguiu comprometeu-me tanto a saúde que Deryck me
mandou viajar. Foi então que numa outra atmosfera encarei mais
aquilibradamente a vida e, no Egito, em março passado, compreendendo a
loucura de meu erro, decidi que não podia mais viver sem você. Precisava
tanto do seu amor e precisava tanto dar-lhe o meu, que resolvi
embarcar no primeira vapor e chamá-lo assim que chegasse. Então,
então, meu adorado, soube!... Escrevi-lhe incontinenti uma carta
pedindo para ir vê-lo e recebi uma negativa!
“Admito perfeitamente que possa dizer-se, — “Ela não tinha
confiança emm mim quando eu enxergava; agora que sou cego
nada mais teme e só tem pena de mim!” Garth você pode pensar
assim, porém não é verdade!
“Tive recentemente provas certas de que me enganava e podia
ter em você a mais cega das confianças. ESSAS provas eu lhas darei
mais tarde. Tudo que lhe posso afirmar é que se seus belos olhos
brilhantes pudessem ver, veriam uma mulher que é toda, toda sua.
E se alguma apreensão, viesse ao espirito dessa mulher quanto ao
próprio rosto ou pessoa, diria simplesmente:
- “Agradaram-lhe, são dele; não lenho mais o direito de
critica-los, são dele e não meus”. Querido, não posso ainda revelar-
lhe como cheguei a esta natural convicção. Mas tenho agora
incomparfáveis certezas de sua fidelidade, de seu amor. A questão
resume-se, pois a isto: pode perdoar-me? Se pode irei
imediatamente. Se não pode curvarei a cabeça, submissa, mas para
sempre desgraçada. Mas, oh! meu amor, o coração sobre o qual um
dia sua cabeça se encostou não bate senão por você. Se precisa dele
e lhe faz falta, não o repila. Escreva uma palavra- uma só, mas de
seu próprio punho: “Perdoada”. É só o que lhe peço. Assim que me
chegar às mãos, lá voarei. Não dite carta à sua secretaria, eu não o
poderia suportar. Escreva simplesmente com toda sinceridade:
“Perdoada” e mande esta palavra.
Sua mulher”
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O aposento estava infinitamente calmo quando a enfermeira Rosemary
acabou a leitura, pondo a carta sobre a mesa, Garth, depois da longa pausa,
levantou a cabeça.
— Pede-me para fazer uma coisa impossível, declarou num sorriso
que lhe distendeu lentamente os traços contraídos.
Jane apertou convulsivamente as mãos sobre o peito opresso.
—Não pode escrever “perdoada”? perguntou ela surdamente.
— Não! não posso! retorquiu Garlh, mas dê-me papel e lápis,
minha filha.
A enfermeira colocou-lhe o que pediu ao alcance da mão esquerda, e
ele, escorregando os dedos até ao meio do papel. Traçou uma palavra em
grossos caracteres,
- Está legível? indagou passando o papel à miss Gray.
— Muito legível, balbuciou ela antes que as lágrimas molhassem o
papel.
Em vêz de “perdoada” Garth escreveu “amada” ..
— Pode por no correio já? perguntou Garth em voz baixa e
agitada. E ela virá... Oh, Deus! ela virá. Se a carta seguir hoje poderá
estar aqui dapois de amanhã.
A enfermeira Rosemary tomou a carta da Jane e por um esforço quase
sobrehumano conseguiu dizer:
— Senhor Dalmain há um post-escriptum na carta, dizendo:
“Escreva para o Palace-Hotel em Aberdeen”.
Garth deu um pulo.
— Aberdeeni! Gritou. Jane em Aberdeen? Mas então ao receber este
papel amanhã cedo, poderá estar aqui à tarde!.. Jane! Jane! Querida miss
Rosc-jnory, esta ouvindo? Jane estara aqui amanhã! A senhora é
demasiado inglesa para ter compreendido meu pressentimento. Margery
porém sabia. Miss Gray, o bilhete pode ser mandado ao correio já, sim?
- Irei levá-lo em pessoa, senhor Dalmain, aproveitando assim a ocasião
de um passeio. Estarei de volta antes do chá.
No correio, não mandou naturalmente a palavra de Garth.. mas enviou
dois telegramas o primeiro à Duquesa de Meldrun: “Venha pelo trem das 5,30
sem falta, hoje”; outro ao doutor Deryck Brand: “Tudo bem”.

A REVELAÇÃO DO ROSÁRIO
Simpson, tendo deixando o jovem patrão instalado na biblioteca,
atravessara o vestíbulo lá para as seis e meia da tarde. Ouviu um leve barulho
vindo de cima e, erguendo os olhos, aviatou uma moça de alta estatura
descendo a escada de carvalho esculpido.
Simpson parou tomado de espanto. A elegância do traje preto
guarnecido de rendas verdadeiras não o impressionou tanto quanto á vista do
calmo rosto resplandecente de certeza e alegria.

127
— Simpson, explicou Jane, minha tia, a duquesa de Meldrun, com a
criada de quarto, o lacaio e as bagagens, chegara de Aberdeen às sete e meia.
Margery Grann já está providenciando para os quartos. Mandei o “coupé” â
estação, a duquesa embirra com os automóveis. Quando Sua Graça chegar,
introduza-a logo na biblioteca. jantaremos na sala de jantar, lá pelas oito e um
quarto. Enquanto isso, o senhor Dalmain e eu estamos muito ocupadas e
não devemos ser incomodados antes da chegada da duquesa
Entendeu?
— Sim... milady! balbuciou Simpson, a quem a sobrinha de
uma duquesa intimidava profundamente, Jane sorriu.
— Basta dizer «miss», Símpson. E com incomparável distinção
passou diante dele e penetrou na biblioleca. Garth ouviu-a entrar e fechar a
porta e o seu ouvido apurado percebeu o farfalhar da seda.
— Ah! míss Gray, já guardou seu uniforme?
— Sim, já fiz a mala. Jane adiantou-se devagar e parou um
instante junto á lareira, contemplando Garth, ele estavaa em traje de
noite, como em Shenstone na noite inesquecível; Jane não se fartava de
o contemplar. Sua hora soara enfim. Porém mesmo naquele momento,
pelo amor de Garth, importava ser prudente e paciente.
— O senhor não cantou como tinha dito, lembrou ela.
— Não, primeiro não pensei mais nisso: depois, quando me
lembrei, não podia mais cantar . . Ah! miss Gray , tenho minha alma
cheia de ansiedade!
— Compreendo, concordou Jane de manso, e sou eu quem vai
cantar agora.
- Poia canta? Então porque não cantou até aqui?
- Quando cheguei o doutor Robbie me perguntou se eu tocava piano.
Respondi «um pouco», de onde ele concluiu que eu devia cantar
também, proibindo-me lterminantemente fazer-lhe música. Declarou
que não queria ve-lo melancólico.
Garth teve um riso alegre.
— Isto é bem do velho Robbie, disse ele; mas apesar da proibição
vai cantar-me um pouco hoje para me dar prazer, sim?
- Vou cantar-lhe uma só música... Olhe, ali tem o cordel e não há mais
nada entre si e o piano fronteiro. Venha!
Jane foi ao plano e sentou-se. O “Rosário” só tem um acorde de
prelúdio; tocou-o com os olhos em Garth: viu-o endireitar-se de chofre num
sobressalto de surpresa interna e esperar. Ela então começou a cantar. A voz
profunda, vibrante e doce encheu o silêncio:
“As horas todas que passei contigo
Roubou-as a saudade ao tempo vário;
E vivo agora a desfiar, amigo,
As contas ideais desse Rosario...“
Jane não íoi mais longe... Garlh ergueu-se e, sem pronunciar palavra,

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num impeto irresistivel, atirou-se ao piano. Ela voltou-se no tamborete,
obrindo-lhe os braços para recebê-lo. A mão de Garlh estendida para a frente,
abateu-se sobre as teclas... mas encontrou-a, afinal... Caiu de joelhos,
apertando-a nos braços. E os dela apaixanadamente o envolveram com toda a
ternura recalcada daquelas tormentosas semanas Ele ergueu para ela o belo
rosto sem olhar.
-Você? Balbuciou... Você?... Você?... Esse tempo todo?... e apertou a
cabeça de encontro ao peito de Jane.
- Sim, meu querido amor, respondeu Jane com infinito carinho; eu, o
tempo todo junto de meu bem amado, no seu sofrimento e na sua solidão.
Como poderia ter ficado longe?... Ah! Garth, esta felicidade de senti-lo enfim
aqui, pertinho... Sim, sou eu . Oh! Querido, não tem certeza ainda?.. Cui-
dado! venha aqui sentar-se junto a mim!...
Garth ergueu-se, mas sempre abraçado a ela, que de mansinho o guiou
para o canapé. Ali ale de novo se atirou aos seus pés, refugiando-se nos
braços amorosos.
— Ah! meu amor, meu querido amor! murmurou Jane, acarinhando
com as mãos a cabeça apoiada ao seu coração Foi tão consolador estar aqui
para serví-lo, evitar-lhe todo inútil sofrer, accunpanhá-lo na sua noite? Mas eu
só pedia ser eu... quando meu amado tudo compreendesse e perdoasse à pobre
Jane... Não, perdoasse, não... desde que ele a amava ainda! Oh! Garth,
acalme-se, meu amor, assusta-me,.. Não, eu nunca mais o deixarei, nunca
mais... nunca!... Sossegue, ouça-me: alguns dias mais de paciência e
poderemos obter uma licença especial e casar, Garth, Tia Gina chega hoje.
estará aqui dentro de meia hora. Nos nos casaremos, meu Garth... E então
(terminou numa voz ardente e baixa) será a minha maior alegria estar
constantemente com meu marido, sempre, sempre...
Um longo e inefável silencio. Pouco a pouco a tempestade de emoção
que sacudiu Garth, serenou. Fez-se uma divina calmaria e ele pôde levantar a
cabeça.
- Sempre, sempre juntos! balbuciou. Ah! vai ser a luz!...
Quando Simpson, pálido de importância, abriu a porta da biblioteca e
anunciou: “Sua Graça a duquesa de Meldrun”, Jane estava ao piano tocando
sentimentais melodias, e um esbelto rapaz em trajes de festa se adiantou com
respeitosa atenção para receber a visitante.
A duquesa não viu ou fingiu não ver o cordel condutor.
- Deus do céu, meu caro Dal, que surpresa! Esperava
encontrá-la cego e vejo-o ai, vindo ao meu encontro com o seu
andar de costume!
— Querida duquesa, respondeu Garth, inclinando-se
para beijar as velhas mãos amigas, um pouco trêmulas, que
apertavam, as dele: eu não posso infelizmente vê-la, mas não me
sinto cego, Hoje a noite que me rodeia foi iluminada por
inexplicável alegria.

129
—- Ah! ah! ja estamos nesse ponto?, . . Ainda bem. E com.
quem se casa você? Com a enfermeira que me disseram, ser pessoa
muito recomendável, ou com esta impertinente Jane que, sem
remorso algum, ordena à velha tia de vir de um extremo do reino a
outro, quando lhe convém?
Jane deixou o piano, passando oD braço sob o do noivo.
— Querida tia Gina, respondeu sorrindo, a senhora não
pode ocultar que está encantada de ter vindo, pois gosta sempre
de chegar como fada madrinha nos momentos propícios. Garth
casa-se com as duas, a enfeimeira e Jane, porque ambas o querem
demais para que possam deixá-lo e ele também não pode passar
sem elas.
A duquesa fitou as duas radiantes fisionomias que lhe sorriam
e seus olhos se encheram de lágrimas.
- Vamos! Vamos! Que Deus os abençoe, gente
absurdamente feliz! Eu também os abançoorei mas só depois
de ter jantado. Agora, chamem esse nervoso personagem que me
fez entrar e digam-lhe que me mande a minha criada e o meu
papagaio... Tive de trazê-lo, Jane, é tão afetuoso o pobre bicho! Eu
sa bia que você acharia demais, porém não pude separar-me dele.

FELICIDADE
Alguns dias mais tarde, na pequena igreja episcopal trepada n alto dos
morros, Garth e Jane foram unidos. Os jornais mundanos descreveram a ceri-
mónia como celebrada na maior intimidade.
Para os noivos, só uma coisa importava; casarem-se e serem
um do outro o mais depressa possível. Recusaram ocupar-se de
minúcias, acessórias, Jane entregou tudo a Deryck Brand, dizendo-
lhe somente:
— Arranje as coisas de modo que o casamento seja valido e
mande-me as contas.
A duquesa, fiel aos velhos costumes, discutiu com Jane a questão do
traje nupcial.
- Setim branco e véu de rendas, tia Gina? Nunca, nunca!
- Então como conta você vestir-se, menina? perguntou
severamente a velha fidalga conservadora.
— Com o vestido daquele dia! respondeu ela; mas vendo a
contrariedade da tia acrescentou, eu não sou uma noiva como as outras, tia;
conciliemos porém as coisas. Tenho lá em cima unss vestidos; a senhora
escolha O que lhe agradar mais e prometo vesti-lo de olhos fechados.
O resultado foi que Jane compareceu à igieja num vestido azul bordado
a ouro que lhe assentava maravilhosamente ao alto porte. Garth preocupara-se
tantoo com o traje de noivo quanto Jane. Simpaon vestira-o com a máxima
correção. Estava belo como um deus, esperando aos pés do altar a noiva que

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vinha pela nave no braço de Deryck. Ao rumor dos seus passos, voltou para
ela a cabeça e sorriu. A duquesa, coberta de setim e arminho, exibindo para a
cerimónia os suas jóias de família, achava-se ao lado da noiva,
pronta para representar com todas as regras o seu papel. Do lado
oposto, o mais perto possível do noivo, Margery Grann, de setim
preto, toucada de dia de festa e chale de gala cruzado sobre o velho
coração fiel, que desde o berço acompanhara o seu rapaz. O doutor
Robbie, único celibatário disponível, servira de testemunha, e
estava encarregado de distribuir naquele dia liberais esmolas aos
pobres dos arredores,
Deryck Brand fazia boa figura ao lado da linda figura de Flor,
que viera na véspera, tendo sido julgada obrigatória sua presença.
Depois de levar Jane ao altar, veio sentar-se junto à mulher, atras de
Margery. Deixando o braço de Deryck, Jane voltou-se e os dois
amigos trocaram um longo olhar em que todas as recordações, toda
a confiança de tantos anos de afeição e camaradagens se
estampavam. Flor Brand abaixou os olhos para o livrinho de
orações que tinha na mão ignorava o ciúme, pois, o doutor, sempre
enamorado, nunca lhe dera ocasião de o sentir , mas só naquele
instante compreendeu verdadeiramente a intensidade da afeição que
ligava o marido a Jane.
No momento em que o oficiante perguntou se algum dos
assistentes sabia de algum impedimento, houve tal pausa que a
velha Margery respondeu nervosamente: “Não!” em voz alta. O
noivo voltou-se para o lado da voz e sorriu. Brand inclínou-se, pou-
sando amigavelmente a mão no ombro da velha, recomendando-lhe
baixinho:
- Calma, velha amiga. Calma!
Depois Jane sentiu a mão direita apertada na de Garth e ouviu
as palavras litúrgicas, perguntando a ele se a queria por esposa.
— Sim, respondeu ele firmemente.
A mesma pergunta foi feiaa a Jane: “na saúde e na doença?” E Jane,
com voz vibrante, a voz do “Rosário” declarou fervorosamente:
— Sim!
Mal pronunciara estas palavras, Garth levou aos lábios a mão que
segurava, beijando-a com devoção. E assim se ligaram para a vida — esses
que há tanto pelo coração estavam unidos — solenemente, piedosamente, a
face de Deus. O anel nupcial, símbolo do amor que não tem principio nem
fim, depois de repousar sobre o Livro Sagrado, foi colocado no dedo de Jane.
Terminada a cerimónia ela tomou o braço de Garth, apoiando-se a ele e
guiou-o ate á sacristia.
No carro que os legava, nesse instante em que pela primeira vez se
viam a sós, marido e mulher, Garth voltou-se para ela e disse-lhe estas
simples pálavras que a tocaram até o âmago;

131
— Querida, quando partirão todos? Quando ficaremos bem sós? Por
que não mandá-los levar diretamenie da igreja à estação?
Jane sorriu e consultou o relógio
—Querido, nos não podemos deixar de alimentar nossos convidados:
foram todos tão bons e dedicados! É uma hora, a merenda será servida
às duas e meia e o trem parle às 4 e 30. Daqui a tres horas, meu Garth,
estaremos a sós.
— Conseguirei portar-me convenientemente du rante essas três
horas? exclamou ele com um riso de criança.
— É preciso. . . senão chamarei a enfermeira Rosemary!
- Psiu! minha Jane, não gracejemoa hoje, a realidade é bela demais! —
e apoderando-se da mão da noiva, acrescentou, achegando-se a ela:
compreende que á realmente minha mulher?
Jane levantou a mão do marido apoiando-a ao peito, precisamente no
lugar onde ela tantas vezes pousara as suas para conter as pancadas precipita-
das do coração, prestes a trair o seu segredo.
— Não só o compreendo, meu amor, como também o sinto. Note como
palpita o meu coração!

LUZ ETERNA

A lua inundara o terraço de uma claridade serena, argêntea


imaculada. Garth e Jane penetraram pela porta do terraço na zona
luminosa, atraídos pela doçura da noite de verão e pelo canto dos
rouxinóis que enchiam de melodias os bosques adormecidos ao
luar.
Puxaram as grandes poltronas até o parapeito e ali se
quedaram, extasiados, ouvindo os ecos harmoniosos da noite
Garth atirou ao chão uma almofada e sentou-se de costa para ela,
com a cabeça deitada nos joelhos de Jane que lhe acariciava de
leve os cabelos. O silêncio era completo, a calma absoluta, a
solidão imensa. De tempos a tempos Garth se apoderava da mão
de Jane e beijava o anel que ele mêsmo lhe puzera no dedo, mas
que nunca vira! Longos, ternos, silenciosos, envolviam:
pensamentos demasiados íntimos, alegrias sagradas demais para
serem exprimidas por palavras flutuavam-lhe em tomo, naquele
silêncio de infinita ternura!.. .
Garth, no entanto, não se fartava de senti-la, sempre ao
alcance de sua mão e ela aceitava inebriada esta tão doce
servidão, pois essa intimidade lhe dava um prazer igual. Com
efeito, no decorrer das longas semanas em que seu papel de
enfermeira a mantivera arredia do ente amado, quantas vezes
recalcara dolorosamente a sofreguidão de esireitá-lo nos braços e, proxima
e distante, nem siquer lhe tocara a mão!.. Parecia-Ihe que nunca poderia saciar

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a fome acumulada no seu coração ansioso. Um rouxinol desfiava ao longe
seus trinados comovedores... Garth pôs-se a assoviar uma imitação perfeita.
— Oh! meu querido, murmurou Jane, isto me lembra certa
música que eu quero tanto ouvir cantar! Não posso dizer exatamente o nome,
mas você se lembraa: foi na segunda-feira, quando miss Rosemary descrevia
os quadros e os nossos corações tanto se torturavam... Retirei-me cedo para
começar a redigir a minha confissão e estava no quarto a escrevê-la quando
ouvi tocar na biblioteca; você principiou por musicas que me eram familiares
e que juntos outrolra havíamos interpretado. De súbito, algumas hesitações e
variantes e um tema desconhecido se precisou numa harmonia maravilhosa;
dexei cair a pena e escutei... Então, para gáudio meu, você pos-se a cantar,
abri sem ruído a janela e dexei-me embalar pelo canto... As palavras não me
chegavam todas, mas ouvi distintamente dois versos impregnados de tão to-
cante tristeza que apoiei a cabeça ao rebordo da janela e chorei, sentindo-me
sem forças para esperar mais tempo... Sentia-me irresistivelmente chamada
pela magia do seu cantar.
Garth puxou a querida mão que segurava a pena naquela: noite e
beijou-lhe docemente a palma.
— Quais eram esses versos, minha Jane?
— “Quando tudo que é não for mais. Senhor, conduz-me ao
porto”. Ah! meu amor, que patéticas palavras: “quando tudo que é não for
mais” Aquele que compos essa música deve ter passado por sofrimentos
iguais aos nossos. Depois, a este lamento sucedeu um tema tão cheio de
esperança e vida que me levantei armada de nova coragem,
Retomei a pena e continuei a carta. De quem é essa música, meu
Garth? Onde a ouviu? Desejo loucamente ouvi-la cantar por você...
e já, já, não tenho mais paciência de esperar!
Garth poz-se a rir devagarinho.
- Jane, rainha Jane, que descobrimento, esse? Você tão
senhora de si e tão paciente!... Mas vou fazer-lhe a vontade, minha
tirana, gosto de sua tirana. Descobri as palavras num psalterio de
Worcester, há um ano; t ranscrevi o texto no meu caderninho
durante o sermão!.. Deus me perdoe! Êsse hino se me afigurou tão
admirável que lhe aprendi logo de cor as palavras. Quer que lho
cante, aqui, mesmo? .. Sem acompanhamento talvez não pareça tão
bonit... mas sair daqui nesse momento, nem por um decreto!
Então, erguendo-se a meio, a cabeça levantada para o céu
onde o luar resplandecia, as mãos cruzadas sobre os joelhos, Garth
se põs a cantar... Jane ouvia, com a alma transabordada de êxtase...
Os versos cantados por ele dobravam de expressão e a música
misteriosamente lhe exaltava a beleza. As últimas palavras
frementes de esperança subiram como girãndolas de som na noite
sossegada... Garth desatou as mãos e, como aliviado, recostou-se de
novo aos joelhos da mulher.
— Que beleza! suspirou Jane beijando-lhe a testa. E
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quão apropriado a esta noite bendita!
— Parece-me, com efeito, ter atingido o porto de
que fala o poema, mas é que, possuindo-a, Jane, possuo tudo!...
Ela curvou-se encostando a face na cabeça de Garth.
— Bem amado, possue realmente ludo que de min posso dar e
que nos dias sombrios lhe parecia perdido... Mas a música, a deliciosa
música de quem é?
O riso de Garth ressoou da novo, turbado agora por leve acanhamento.
— Estou contente de que a música tenha agra dado à minha
adorada curiosa, porque... é minha. A pequena Rosemary despertara sem
piedade tantas recordações da “moça do retrato” que, avaliando o que podia
ter sido para mim o amor da “esposa” me senti tão maguado, tão só, tão
triste... que as palavras do hino me jorraram do espírito, como um clarão de
consolo... Puz-me a recitá-lo e, de súbito, a visão evocada pelo texto
transformou-se em sons. E exatamente como outrora via e fixava na tela as
gradações de um por de sol, “ouvi” toda a gama de harmonia do sol poente.
Tive a infama sensação de agulhadas nas pontas dos dedos que sentia quando
a inspiração me valha e, em vez de ir à palheta e aos
pinceis, fui ao piano e lancei em música o grilo de fé e de paz... As
hesitações foram devidas aos vários elementos do que é composta a melodia...
Que felicidade ter-lhe agradado, pois você poderá escrevê-la! E cantá-la,
Jane, acompanhando-a eu! Minha música interpretada pela sua voz que
ventura.
Jane chorava de mansinho e uma lágrima caiu na mão de Garth. Num
ápice, estava de joelhos diante dela.
— Jane, meu amor, que há? Magoei-a sem querer? Ah! meu
Deus, porque não posso ver o Seu rosto?!...
Ela, dominando a emoção, respondeu num tom natural, forçando-o a
sentar-se:
—Ah! meu amor, é de alegria, da uma grande alegria! Encoste-se a
mím, vou explicar-lhe: compoz uma obra prima! Não só sua mulher se
orgulhará de cantá-la, como todas as mulheres que gostam de música, hão de
querer inteipreta-la, Garth, meu amado, a faculdade criadora era tão grande
em você que, tendo-se fechado um sentido, jorrou vitoriosamente por outro!
Milagre abençoado! Eis um novo campo do mundo exterior que se abre para
sua atividade artística!
Garth passou o mão pelo caro rosto, úmido ainda das lágrimas de
ação de graças, e disse:
- Não me importo com as apreciações dos outros: quero só me ocupar
com minha mulher, exclusivamente com ela.
- Eu sei, amor, e ela é toda sua. Ser-lhe-á uma alegria facilitar esse
acesso a uma nova via. Imagine. Garth, que prazer será o nosso quando seus
hinos encheram as velhos catedrais e suas músicas animarem os grandes
concertos?!

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— Será realmente tão grande prazer assim? perguntou ele
levantando a cabeça.
— Querido, só digo que a primeira vez em que ouvi esta música e
nem de leve suspeitava de quem era achei-a logo a mais bela de quantas
ouvira.
- Bem! respondeu Garth com simplicidade, mas agora não falemos
mais do futuro, minha Jane, o presente é demasiado maravilhoso para que
não fiquemos nele. Falemos do presente.
Jane sorriu e foi o riso da esposa, misterioso, terno, obediente, um
sorriso de aquiescência e de abandono de si mesma. Inclinou-se apoiando a
testa na mão de Garth.
- Sim, meu amor,falemos de agora, como deseja, comece!
-Descreva-me a casa como apareçe ao luar.
— Em meios tons cinzentos, sugerindo sensações de paz, de
segurança, de intimidade.
- Ha Luz nas janelas?
-- Sim, a biblioteca está iluminada como quando a deixamos; a porta
aberta; a lampada no seu pedestal de cobre, toucada de- vermelho pelo
–“abat-jour”, projeta uma claridade quente por tgodo o aposento. Avisto uma
luz de vela na sala de jantar; Simpson deve estar guardando a prataria... Ha
luz também no quarto a leste... Vejo a Margery ir e vir... Parece ocupada em
arranjos, os últimos arranjos... Seu quarto tambem está iluminodo... Margery
entra nele pela porta de comunicação... Avisto-a imóvel no meio do quarto,
vendo se não falta nada. Querida Margery! Como é bom, como é doce
estarmos assim em nossa casa, meu Garth, servidos por gente dedicada e boa!
— Oue felicidade pensar assim, querida! Receava que lastrimasse não
ter uma lua de mel como todass Mas... não, não receava nada de sua.
Parte... Reunidos os dois, enfim, não era este o nosso único desejo, minha
mulher?
— Nada mais desejava, querido!
Um relógio bateu nove horas.
— Caro velho relógio, suspirou Garth; ouvia-o tambem, bater
nove horas quando era pequeno, na minha caminha de criança, não querendo
dormir antes que mamãe atravessasse o quarto para ir ao dela; a porta de
comuniracão ficava sempre aberta e eu distinguia o reflexo da vela no teto de
meu quarto. Quando aparecia essa linha luminosa, eu imediatamente
adormecia. A presença de minha mãe dava-me uma sensação de absoluta
quietude. Jane, agrada-lhe este quarto do levante?
- Sim, meu amor, é lindo o quarto e sagrado para mim porque foi o
dela. Sabe que tia Georgina lá foi e queria por força mandar empapelá-lo?
Opuz-me, formalmente, tinha a certeza de que você havia amado as pinturas
da parede em criança e que devia lembrar-se delas.
- Ah! sim, tornou Garth com animação, um pintor francês
durante sua estada aqui em casa decorou êste quarto; agua. juncos

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e uns lindos flamingos encarapitados no alto das pernas
muito compridas; os do teto voam, asas abertas sobre um verde
pálido, acima de nuvens flocosas. Jane, creio que poderia dar a
volta a éste quarto de olhos vendados, ou antes. como estou agora,
a designar o lugar exato de cada flamingo.
- Você há de realizar esta façanha, meu bem! prometeu
Jane ternamente, pois estes lapsos de Garth lhe pungiam sempre
o coração — e pouco a pouco me contará tudo que fazia na
infância, tudo me interessa. Dormia no quarto contíguo ao de sua
mãe?
- Do mais longe que me possa lembrar sempre a porta de
comunicação permaneceu aberta; depois da morte de minha mãe
fechei a porta a chave, mas na véspera do meu aniversario
costumava abrí-la, e de manhã cedinho, no dia seguinte, entrava no
quarto... parecia-me que a querida sombra ao romper
dessa madrugada única, voltava para me felicitar... Não sei de que
modo Margery o descobriu, mas, no terceiro ano, encontrei uma
folha de papel bem em evidência na cama presa com alfinete, e
escrito nela com a grossa letra de Margery os seguintes dizeres:
“Parabens Garth, e possa este dia repetir-se muitas e muitas
vezes!” A ideia era tocante e a intenção consoladora, mas
destruiu a ilusão em que me comprazia. Desde ai a porta ficou
fechada.
Um silencio de terna intimidade ainda mais os estreitou. Os rouxinóis
respondiam-se uns aos outros em cascatas de trinos sonoros e o luar
resplendia como um sonho feérico. Garth procurava de novo a aliança no
dedo de Jane, fazendo-a rodar numa carícia e beijando-a.
— Você disse que Margery atravessava de um
para outro lado; o quarto grande está então aberto hoje?
Jane juntou as mãos ao redor da cabeça da Garth, mãos um
pouco fortes e que no entanto tremiam, e apertou o rosto do
marido de encontro ao seu, com o mesmo gesto que, tres anos
antes, lhes aproximara as cabeças em Shenstone. E de súbito
Jane desfaleceu ao peso da emoção.
— Ah! meu amor, meu amor, disse com voz
entrecortada, leve-me deste implacável luar! Não quero mais a
sua claridade, lembrar-me Shenstone e o mal que lhe fiz! É
como uma barreira luminosa entre nós dois: quero ficar com
você no escuro, no seu escuro, pois nada mais posso querer que
não seja igual!
As lágrimas de Jane caíram sobre os olhos mortos de Garth. .. Ergueu-
se, então, de um salto, estremecendo, e a consciência da sua máscula supe-
rioridade lhe voltou. A alegria de ordenar, a embriaguéz de possuir lhe
invadiam os sentidos.
Embora cego, sentiu-se o mais forte; por causa de sua enfermidade
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dependia de todos, mas para os atos essenciais Jane cconfiava nele!.. Fe-la
mansamente erguer-se e, rodeando-a com os braços, aureolado pelo seu
grande amor, orou ardentemente:
- Esposa bem amada, nem a lua, nem as trevas podem doravante nos
separar. Esse plácido luar não a pode arrancar dos meus braços, mas na calma,
na imóvel e doce escuridão você se sentirá mais minha porque tudo nos será
comum. Venha comigo, minha amada, apaguemos as luzes, puxemos as
cortinas e venha sentar-se no sofá como estava na noite deslumbradora em
que eu quase amedrontei a minha valente Jaine, na noite em que
adivinhei que era você... Não se amedrontará hoje, meu amor, pois é
minha inteira e para sempre... Posso dizer o que quizer, agir a minha
fantasia; não me ameaçará mais de chamar a enfermeira Rosemary,
porque é Jane que eu quero, Jane, só Jane, unicamente Jane! Venha,
meu amor, eu, para quem as trevas não têm segredos, irei ao piano e
tocarei o “Rosario” que a revelou a mim e que rezaremos juntos, o
rosário da nossa felicidade...
Garlh cingiu o corpo de sua mulher e, assim enlaçados, se
dirigiram para o interior ...
Apoiando-se no marido, mas guiando-o com uma ligeira pressão, os
lábios abertos para o beijo próximo, Jane se abismou na ventura perfeita de
sua vida conjugal...
FIM

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