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TERCEIRA PARTE

O Apocalipse de
São João
Xavier Alegre

Nos cursos acadêmicos ordinários das Faculdades de Teologia, 0


Apocalipse freqüentemente não goza do apreço que merece. Com exce-
ção de algumas breves exposições no curso de Introdução ao Novo Testa-
mento, normalmente não se costuma realizar cursos sobre este livro. Não
obstante, é um dos livros mais lidos e comentados desde a sua origem,
sobretudo nas igrejas antiga e medieval, como se percebe na arte, tanto
românica, como bizantina, onde a figura do Pantocrátor, o Cristo
majestático que sustém em sua mão o livro selado com sete selos (cf. Ap
5,8), se converte na figura dominante. Também a imagem de Cristo Juiz
(cf. 1,16; 19,15) aparece freqüentemente na arte medieval. Mas, por. sua
vez, o Apocalipse é um dos livros mais enigmáticos pela sua linguagem e
simbologia. Um grande especialista chegou a afirmar que "de todos os
escritos do Novo Testamento, o Apocalipse de São João é certamente o
mais difícil" (Feuillet).
Por outro lado, partilha junto com o evangelho de João o ter sido um
dos textos mais controvertidos do Novo Testamento. Enquanto alguns o
elogiam pelo seu alto nível cristológico e ~ua mensagem _de esperança
Para as comunidades cristãs, outros o denigrem por considerarem que
infunde mais medo e ser, portanto, pouco coerente com a mensagem cris-
Dimensão literária
192
•rneiros escritos). Enquanto alguns
L t ro em seus pn . lí .
tã (por exemp1o, u e ,, los fundamentahstas e apoca pttcos, 0
vêem nele, sobretudo nos circu questionam justamente pelas leitu-
"l . t mpos outros o . d
anúncio dos u ttmos e ' . las falsas e~pectativas e uma vin-
. perrru te e pe .
ras fundamentahstas que desperta em grupos mais sectários
. d undo que ·
da iminente do f 1m O m . tas e carismáticos, sobretudo em de-
fundamenta1is
Enquanto os grupos leitura literal e alienante do texto, ou-
terminadas seitas fo1nentam uma . ·d
' . d d base latino-amencanas, persegui as pelo
tros como nas comun1da es e ,, · d
.1mpeno', . do momento, d esco b.1em nesse texto uma cntlca aos po eres po-
líticos injustos e uma prof und a men sagem de esperança. .
· di
H OJe em a o poc 1A a1 ·pse recuperou a sua atualidade,
,, sobretudo
. entre
as comun1·dad es cns · t~s
a perseguidas por sua fe e por sua fidelidade ao
Evangelho. Pois sentem-se em profunda sintonia co~ João e su~s igrejas
perseguidas pelo império injusto, o de Roma, como sao perseguidas t~m-
bém pelos poderes políticos que se sentem ameaçados pelo modo radical
como elas vivem o seguimento de Jesus. Neste sentido, na atualidade
aparece claro que o Apocalipse é um livro de resistência cristã, escrito
por um homem profundamente crente, um profeta (cf. 22,9-1 O; 1,3 ), que
quer ajudar as suas comunidades a superar a crise religiosa que entre os
cristãos é provocada pela perseguição que estão sofrendo. Com seu livro,
o autor não só quer ajudá-las a interpretar a história que estão vivendo,
mas contribuir também para transformar esta história para que possa
corresponder ao projeto do Deus da Aliança e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo.
Para estudar, com rigor, o Apocalipse, é preciso começar pela sua
dimensão literária. Somente através dela poderemos descobrir, um míni-
mo de objetividade, aquilo que o autor pretendia dizer à sua comunidade
e, através de seu escrito, aos seus possíveis leitores. Mas a dimensão lite-
rária não _é sep~aráv,,el~ e~ u1;1 livro religioso, de sua dimensão teológica
~em da situa~ao soc;o-historica, na qual a obra foi sendo gestada. Por
isso, estes serao os tres temas que estudarem
- . .
· d
os aqui, 1evan o em consi e-
·a
raçao que se 11urrunam reciproca U .
. .. ,, t· .
1ingu1s ica e cu1tural nos separa do A oca . mente. ma grande distância histónca,
. . -
ção consistente do subst t h' ,, . P. hpse. Por isso, uma aproxima
. ra o 1stonco-ht ,, · d _
s1deração as contribuiço~e . ,, . erano o texto, que leve em con
s c1ent1f1cas d · . _ .
cindível para uma sua inte . _ ,, .ª investigaçao, toma-se 1mpres-
rpretaçao sena.
CA PÍT UL O VI

D im en sã o lit er ár ia

Par a uma com pree nsão ade qua da do Apo cali pse é esse
ncia l o estu -
do de seus elem ento s liter ário s, com o o dem ons tra a abu
nda nte liter atur a
espe cial izad a que foi pub lica da nest es últim os anos
. Foi just ame nte a
con trib uiçã o dos mét odo s hist óric o-cr ítico s o que tem
faci litad o uma lei-
tura, verd ade iram ente ecu mên ica, do Apo cali pse que
sup ere as inte rpre -
taçõ es abe rran tes e fant ásti cas que freq üen tes vez es
oco rrem . .

I. O TE XT O

1. Crí tica text ual

Gra ças às pesq uisa s sob re o livro do Apo cali pse real izad
as no cam po da
crítica text ual, 1 hoje pod emo s con fiar que as ediç ões críti
cas mod erna s nos
oferecem, no fund ame ntal , o text o orig inal do Apo cali
pse e clas sific ar me-
lhor os dive rsos man uscr itos que dão test emu nho de seu
texto.
A hist ória da form ação do text o greg o do Apo cali pse pod
e ser siste ma-
tizada em qua tro corr ente s. Em prim eiro lugar, o den omi
nad o texto .neutro,

1 Cf. H. e. Hosk ier, Conc ernin g the Text ofthe Apoc alyps
e, 2 vols. (Lon dres 1929 ); J. Schm id,
Studien zur Gesc hicht e des griec hisch en Apok alyps etext
es, 2 vols. (Mun ich 1955 -1956 ), que é a obra
funda ment al do pont o de vista da crític a textu al; além
disso , cf. a atual izaçã o deste s estud os que J .
Delo bel fez, Le texte de l'Apo calyp se. Prob leme s de
méthode, em J: Lamb recht (ed.), L'Ap ocaly pse
johan nique et l'Apo calyp tique dans le Nouv eau Testa
ment (Lou vam 1980 ) 151-1 56, com a bibli o-
grafi a que ele ofere ce na nota 1 da págin a 151 cf. tamb
ém, A. Strob el, Apok alyps e des Joha nnes , em
TRE 3, 180.
194 Dimensão literária

aparentado com a tradução da Vulgata, testemunhado pelos códices A e C,


assim como pelo códice minúsculo 2053 e o texto do comentário de Ecuniênio.
É o que tem conservado melhor o texto original. Em segundó lugar, o códice
Sinaítico, aparentado com o texto anterior, ainda que contenha algumas cor-
reções de pouco valor (cf. também o papiro 47). Mas existem também outros
dois grupos que apresentam muito mais recensões do texto, menos próximas
ao original, e que são independentes entre si. Desta forma, o texto do comen-
tário de André de Cesaréia, que encontramos também em diversos códices
minúsculos e, finalmente, o texto representado pelo códice minúsculo 046 e
muitos outros códices minúsculos.
A história da tradição do texto está relacionada com as dificuldades
que o Apocalipse encontrou para ser aceito como livro canônico, sobretu-
do pelas igrejas do Oriente. Entre os séculos m e IV temos somente uns
dez manuscritos maiores; infelizmente para a crítica textual do Apocalipse,
o códice B está incompleto a partir de Hb 9, 15. Porém os papiros 18 e 4 7
são do século III. Mesmo que seja verdade que a maioria dos manuscritos
antigos são dos séculos IX ao XI, não obstante, convém ter presente que
encontramos citações em Justino, Clemente de Alexandria, ·Hipólito de
Roma, Orígenes, Metódio de Olimpo e Eusébio de Cesaréia. Entre os
padres latinos destacam-se Tertuliano, Cipriano, Victorino de Petau,
Ticônio e Santo Agostinho.

2. A linguagem e o estilo

Segundo Eusébio, já Dionísio de Alexandria dizia em relação ao


Apocalipse: "Não vou negar que ele (João) pode ter tido revelações e ter
recebido o conhecimento e a profecia. Mas quanto ao seu estilo e à lin-
guagem, vejo que não são estritamente gregos e que ele fez uso de gírias
bárbaras e inclusive comete erros contra a gramática, que não é necessá-
rio desenvolver neste momento" (História Eclesiástica, VII 25,26).
Na atualidade os especialistas coincidem em afirmar que a língua
original do Apocalipse é o grego, se bem que o seu autor é, no mínimo,
bilíngüe, pois sua maneira de pensar e de se expressar está claramente
marcada pelo hebraico ou o aramaico, mesmo que não se possa excluir
que o autor, conscientemente, procure imitar a línguagem sagrada do
Antigo Testamento. Por isso pensou-se que o autor tivesse escrito em
grego (o grego da koiné), mesmo que pensasse em hebraico (Charles). A
linguagem e o estilo são tão diversos do resto da literaturajoanina-quar-
to evangelho e as cartas -, que não podem ser atribuídos ao mesmo autor,
como veremos logo a seguir.
Texto 195
a) Vocabulário

É muito mais limitado e mostra os limites do autor. Às vezes recorre


a vocábulos tradicionais, mas de sentido impreciso ou desconhecido , ou,
ainda, utiliza vocábulos pouco conhecidos, que toma do ambiente de luxo
que é criticado pelo autor.

b) Sintaxe

O autor tem as suas liberdades para com a gramática, tanto a grega


quanto a semita. Encontramos aposições, sobretudo no nominativo, que
não concordam com o nome ou pronome a que se referem. fazem. Um
caso típico é o de 1,4 na fórmula apo ho on kai ho en kai ho erchomenos,
que contém uma construção no nominativo c·o m a preposição apo, tanto
que em outros lugares o autor utiliza adequadamen te apo com genitivo.
Freqüentemen te existem construções pelo sentido. Com frequüência, de-
pois de um neutro continua um masculino (Ap 5,6). O que mais descon-
certa é o uso dos tempos verbais - observar, por exemplo, como joga com
os verbos em 11,7-13, onde emprega verbos no futuro, continua com o
presente e acaba com o aoristo - uma mudança dos modos verbais que
vai contra todas as regras lingüísticas.

c) Semitismos
Das construções sintáticas, tipicamente gregas, faltam sobretudo, as
que não têm correspondên cia no hebraico da época. Assim, por exemplo,
não encontramos no Apocalipse nenhum genitivo absoluto, coisa que não
ocorre em João. As construções de infinitivo com acusativo são pouco
freqüentes; desta forma encontramos com dei, porque não existe alterna-
tiva, mas quando existe alternativa, só se encontram em 2,2.9; 3,9.

d) O estilo
Os especialistas concordam em considerá-lo inimitável, único. É tí-
pica do Apocalipse a repetição de determinados argumentos. Co~o o tí-
tulo Aquele que é, Aquele que era, Aquele que vem (1,4; 1,8; cf. também
11,17 e 16,5, onde já não se diz Aquele que vem, pois quando se iniciam
os acontecimento s finais, como a encarnação/ exaltação de Jesus, João
considera que "já veio"). Ou a fórmula que é repetida três vezes, kai
semeion (mega / a/lo) ofthe en to ourano (12,1.3; 15,1). Ou a exortação
ho echon ous akousato ti to pneuma legei tais ekklesiais, com que conclui
cada uma das cartas, a segunda e a terceira. Ou a repetição de allelouia
em 19,1-8.
196 Dimen são literár ia

3. Herm enêu tica

Para pode r interp retar bem o Apoc alips e é preci so que nos situe mos
dentr o da corre nte da litera tura apoca líptic a que flore sceu entre os sécu-
los II a.e. a I d.C. (obse rvar mais à frente). Aqui obser varem os algum as
de suas carac teríst icas gerai s, que nos dão a chav e para a interp retaç ão de
sua mens agem .

a) A lingu agem cifra da


O carát er revol ucion ário e subve rsivo dos texto s apoca líptic os obri-
gava seus autor es a utiliz ar uma lingu agem crípti ca, cifra da, inteli gível
some nte para os mem bros da respe ctiva comu nidad e, mas não para os
espiõ es e censo res do impé rio do mom ento, no caso do Apoc alips e do
Impé rio Roma no.

b) Os símbo los
A lingu agem simb ólica é um dos aspec tos mais espec íficos da litera -
tura apoca líptic a e contr ibui para conv ertê-l a em litera tura cifrad a. No
Apoc alips e as imag ens são toma das, freqü entem ente, do Antig o Testa -
ment o. Se levar mos em consi deraç ão as citaç ões e as alusõ es ao Antig o
Testa ment o, o Apoc alips e pode ria ser visto como um puzzl e ( queb ra-ca -
beças ) do Antig o Testa ment o.
Os símb olos costu mam conte r imag ens comp licad as freqü entem ente
barro cas, tirada s da natur eza ( anim ais e plant as) ou da arte (estátu as, pen-
sar em Dani el). De fato, o ponto de partid a do simb olism o apoca líptic o é
o sonho , que no mund o bíblic o é interp retad o como uma revel ação de
Deus (cf. Gn 20,3; 28,12ss; 37,5- 10; Dn 7,lss ; Mt 1,18- 23; 2, 12.13ss.18ss).
O sonh o evolu iu para visão , às vezes com imag ens sobre carre gada s, im-
possí veis de imag inar, pelo que o sábio tem a funçã o de interp retá-l as,
coisa que costu ma fazer freqü entem ente servi ndo-s e do "anjo intérp re-
te", ao-qu al se atribu i a missã o de ir decif rando o signi ficad o das imag ens
ou dos fatos (17,7 ss; Me 16,6) .
A lingu agem simbólica, além de ser mais suges tiva, tem a vanta gem de
universalizar a mens agem . Pois, ainda que os símb olos esteja m se referindo,
primariamente, a uma realidade que está sendo vivid a pelo autor, não obstante,
a lingu agem simbó lica ajuda a toma r consc iênci a de que a sua mens agem é
válid a para todas as época s. Isto apare ce muito clara ment e em alguns dos
simbolismos utilizados pelo Apoc alipse e que foram toma dos da tradição
profética e apoca líptic a do Antig o Testa ment o, onde eram aplic ados aos im-
périos da época que amea çavam o povo de Israel.
Ezequiel e o segundo Isaías 197
A . .
~ . sszm, por exemplo, no Apocalipse cap. 17 e 18, o autor quer falar do
lmperzo Ro":°;,n~ que persegue a comunidade, e o fará denominando-o de "a
grande Babzlonza, a mãe de todas as prostitutas e das abominações da terra"
0 7,5 ), uti!izando imagens que Isaías e Ezequiel haviam utilizado para identi-
ficar as ~idades opressoras de Israel, sobretudo Babilônia, que se converteu
para os Judeus em símbolo do mal e do perigo da idolatria que cega o povo
crente. Dentro da mesma linha pode denominá-la também "a Besta da terra"
(13,lss) e a descreverá dizendo que "se parecia com uma pantera, seus pés
contudo eram como2 de um urso e sua boca como a mandíbula de um leão"
( 13,2), atribuindo-lhe, desta forma, os símbolos que em Dn 7,4-6 eram aplica-
dos aos impérios babilônico, medo e persa. Com isso, se indica que o poder de
Roma é como o dos três impérios juntos. E se a Besta tem sete cabeças - sete
é símbolo de plenitude, como veremos logo a seguir- e em 17,9 diz que tais
cabeças simbolizam "sete colinas" -Roma era conhecida, já na antiguidade,
como a cidade das sete colinas - ou "sete imperadores", com isso se dá ao
leitor/ouvinte iniciado algumas pistas para decifrar o significado do símbolo.
Não esqueçamos que 17,10-11 parece aludir a Domiciano, que, pela.sua cru-
eldade e perseguição dos cristãos, poderia ser visto como uma concretização
da lenda que supunha que Nero voltaria à vida e o seu reino seria ainda mais
horroroso do que o foi da primeira vez.

As cores também são simbólicas. O branco significa a vitória ou a


glória dos eleitos que participam da vida de Deus (7,9.13-18; 19,8). A cor
branca pode significar, também, a eternidade do personagem (neste caso
o Filho do Homem), que é apresentado com cabelos que "eram brancos,
como a lã branca, como a neve" (1,14). Quanto ao vermelho de fogo, cor
de sangue, é símbolo de assassinato, de violência (6,4). Por isso, se em
17,4 nos diz que a prostituta que simboliza, como vimos, o Império Ro-
mano, "estava vestida de púrpura e escarlate, adornada de ouro, pedras
preciosas e pérolas", com isto o autor está fazendo com que tomemos
consciência de que esta luta é feita também à custa de sangue dos cris-
tãos, empobrecidos e perseguidos pela sua fidelidade aos valores de Je-
sus; relembremos o que nos diz em 17,6: "vi então que a mulher estava
embriagada com o sangue dos santos e com o sangue das testemunhas de
Jesus" (cf. também 13,15-17). Na mesma linha, nos dirá sobre a serpente,
que simboliza o diabo (12,3), é vermelha, pois as comunidades joaninas
sabiam perfeitamente que o diabo é assass~no por natureza (cf. Jo 8,40-
44). O cavalo de cor preta (6,5-6) simboliza o sofrimento que a inflação
comporta; levemos em consideração que uma pequena parte dos alimen-
tos básicos para os pobres - como ocorria na Asia Menor com o trigo e a

2 o uso da partícula como é típico da linguagem a~oca~íptica, por isso, os seus au~ores estão

conscientes de que suas visões somente podem ser aprox1mat1vamente expressas por me10 de com-
parações e símbolos; cf. por exemplo Me l,10; At 2,3.
198 Dimensã o literária

cevada - custa um denário , quer dizer, o salário de uin dia (cf. Mt 20,2).
O cavalo esverde ado (6,7-8) é símbol o de peste e de morte.
Alguns dos símbolos são fáceis de ser interpretados, sobretudo se estamos
familiarizados com o Antigo Testamento. Assim os chifres são símbolos clás-
sicos do poder e, por isso, João representa com sete chifres tanto o Cristo
(5,6) como o diabo (12,3). E a Besta da terra tem sete cabeça s e dez chifres
(13,1; 17,3), significando as dez coroas de seus chifres (17,2) os reis vassalos
que receberão seu poder de Roma. Quanto à mulher que, em Apocal ipse 12,
está coroad a de doze estrelas - símbolo das doze tribos de Israel; observa r
também os doze patriarcas e os doze apóstolos que aparece m em 21,22 - e dá
à luz um filho varão que o dragão quer devorar, mas quando nasce "foi arre-
batado para junto de Deus e de seu trono" (12,5; cf. também 12,4-5), simbo-
liza o povo de Deus,3 que no Calvário dá à luz o Messia s libertador: ao ser
glorificado Jesus, Satanás fica vencido, destronado; lembre mos que o ser
expulso do céu, que é narrado em 12,7-12, é um modo simból ico de expres-
sar à conseqüência fundamental da ressurreição, enquan to esta é o início dos
tempos novos e do triunfo definitivo de Deus sobre a morte e o mal, simboli-
zados pelo demônio; uma idéia familar no Novo Testamento aparece em Lc
10,18 e Jo 12,31.
Todos os símbol os têm em João uma função eminen tement e religio-
so-polí tica, pois com eles se está dando ao leitor, por um lado, a Boa
Notícia (14,6) de que o império injusto que está perseg uindo os cristão s
cairá (ver 16,18 e a alegria com que lhe canta a queda emAp 18); e, por
outro lado, serve de advertê ncia ao leitor para que manten ha sempre viva
e alerta e a militân cia cristã. Pois quando Roma cair, Babilô nia pode vol-
tar a ressurg ir em um outro império , visto que o monstr o, o dragão , renas-
ce sem cessar em um mundo injusto, enquan to não tenha se tomado rea-
lidade o triunfo pleno de Deus (20, 7-1 O) e não tenha descido à terra a
Jerusal ém celestia l, o novo céu e a nova terra (21,1- 22,5), que Deus tem
promet ido, como nova criação , para o final dos tempos . Neste sentido , o
simbol ismo ajuda a tomar consciê ncia de que a mensag em do Apocal ipse
é uma mensag em válida para todos os tempos , enquan to a Igreja continu -
ar peregri na na terra.

e) Os número s
Os número s são uma das chaves fundam entais para poder interpre-
tar o pensam ento apocalí ptico e põem em realce a sistema tização própria
do gênero . João os utilizá profusa mente em sua obra. O número 7 aparece

Cf. o que afirmarem os mais adiante, pois trata-se de uma questão debatida, como veremos.
3
Texto 199

54 vezes, 0 l2 aparece 23, o 4 aparece 16, e o 3 aparece 11 vezes; o 10


encontra-se lO vezes, 0 1.000 aparece 6 vezes. Com isso se indica a cer-
teza com que Deus governa o mundo.
~o l~v~o do Ap~calipse o número mais importante é, sem dúvida, o
sete. S1gnifi~a a p~en1tude e, por sua vez, é utilizado, junto com o número
doze, para simbolizar um motivo teológico fundamental que o autor quer
que fique be~ cl~o para a comunidade: a Aliança de Deus com o seu
povo, uma aliança a qual, ele se mantém sempre fiel. Este número simbo-
liza a Aliança, porque é a soma ou a multiplicação do três e do quatro. O
três simboliza plenitude e é a cifra que somente é utilizada para Deus no
mundo bíblico pois se bem que tanto o judaísmo como o cristianismo são
religiões radicalmente monoteístas, não obstante com o três simbolizam
a riqueza e o dinamismo de Deus, o seu mistério mais profundo. Neste
sentido é preciso interpretar os visitantes misteriosos que encontramos
em Gn 18,2 e é o que está na base da doutrina da Santíssima Trindade.
Em todo caso, o três tem um certo valor de absoluto. Neste sentido, se Is
6,3, citado em Ap 4,8b, diz que Deus é "santo, santo, santo", com isso se
indica que Deus é totalmente santo. De modo semelhante, se Pedro nega
três vezes Jesus (ver Me 14,66-72), com isto significa que o nega radical-
mente. E se, segundo Jo 21,15-17, o mesmo Pedro três vezes confessa a
Jesus o seu amor, com isso se assinala que Jesus lhe concedeu a reconci-
liação total. Por outro lado, o número quatro (4,6ss; cf. Ez 1,5; Is 6,2-3)
simboliza o mundo criado - os quatro ventos ou os quatro pontos carde-
ais da terra que era vista como quadrada.
Se levarmos em consideração isto, compreende-se, então, que o mero
fato de o Apocalipse estar estruturado em setenáriôs, como veremos, é
uma Boa Notícia para a comunidade (14,6). Pois está dizendo de modo
subliminar, mas muito eficaz, que, apesar das dificuldades e persegui-
ções que padece por parte dos poderes do mal, apesar inclusive das falhas
das mesmas Igrejas cristãs - este aspecto é desenvolvido no primeiro
setenário, 0 das cartas -, Deus, que é fiel à Aliança, não esquece e nem
abandona O seu povo e continua protegendo-o, algo muito importante,
pois no momento em que João escreve a sua obra, tudo isto toma-se mui-
to difícil de descobrir e de crer. Por outro lado, os males descritos no livro
duram somente três anos e meio (a metade de sete) ou o seu equivalente,
quer dizer, 42 meses (11,3; 13,5) ou 1.260 dias (11,3; 12,6), é, por isso,
uma Boa Notícia. Pois com isso não se indica quanto vão durar exata-
mente os males descritos, nem muito menos quando vai ser o fim do
mundo_ como Jesus ensina em Me 13,32, Deus não revela nem sequer
ao Filho quando vão ocorrer todos os acontecimentos anunciados pelo
vidente apocalíptico-, mas se anuncia que o mal tem somente uma dura-
200 Dimensão literária

ção limitada, um motivo que é típico da apocalíptica. Com isso pretende -


se ajudar o crente a manter viva a esperanç a, já que desta forma indica
que Deus nunca permite, por amor aos eleitos, que a persegui ção e os
sofrimentos durem excessiv amente (cf. Me 13,20).
· Neste sentido é preciso colocar também dentro do marco da Boa
Nova - contra a manipul ação que muitas seitas realizam com estes núme-
ros - que o número dos eleitos seja 144.000, doze mil para cada tribo de
Is.r;ael (7,4-8). Pois esse número equivale à multiplic ação de doze por
doze por mil - mil indica uma grande multidão. Com isso o autor não
quer sublinha r que o número dos eleitos é um número limitado (somente
144.000), mas exatame nte o contrário, como o confirma o texto que le-
mos imediata mente em continuação: "Depois disso, eis que vi uma gran-
de multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos
e línguas. Estavam de pé diante do trono e diante do Cordeiro , trajados
com vestes brancas e com palqias na mão" (7 ,9).
Também é preciso interpretar simbolic amente que em 14,20 se diz
que os anjos do juízo "pisaram o lagar fora da cidade e dele saiu sangue
que chegou aos freios dos cavalos, numa extensão de mil e seiscentos
estádios" . Com isso João quer indicar que todo o mundo será objeto do
juízo - a imagem do lagar pisoteado faz alusão ao juízo de Deus (cf. Is
63,3; Ap 19,15) - e nada dele poderá escapar, pois 1.600 é a multiplic a-
ção de quatro por quatro por cem.

d) As citações do Antigo Testamento e alusões


No Apocalipse são, sobretudo, os livros do Êxodo, de Ezequiel e de
Daniel os mais utilizados pelo autor para as suas visões e símbolos . Esta
preferên cia deve-se a que nestes textos é onde aparece, com clareza
meridiana, a intervenção salvadora de Deus na história. Neles narra-se
efetivamente como Deus libertou o seu povo da escravid ão no Egito, do
exílio na Babilôni a e da opressão selêucida.

e) As principa is corrente s hermenê uticas


O texto do Apocalipse deu motivo para diversas interpret ações, que
P?d~~amos sintetiza r em quatro corrente s principais: 4 1) A interpret ação
histonco-temporal, que se empenha por explicar o Apocalip se sob o pon-
to de vista histórico-social da comunid ade e na época em foi escrito. O
Apocalipse se referiria, então, a fatos históricos concreto s, ocorrido s no

4
Cf. R. H. Mounce, The Book of Revelation (Grand Rapids 1977) 39-45.
Dimens ão literária 201
final do século I. 2) A interpr etação histori cista que acredit a descob rir no
Apocal ipse um anúnci o antecip ado de diverso s aconte ciment os históri -
cos até o momen to atual. De acordo com isto, cada autor vai aplican do as
"prediç ões", freqüe ntemen te de modo peregr ino, aos aconte ciment os his-
tóricos que foram vivido s até o momen to no qual se escrev e. 3) A inter-
pretaçã o futuris ta ou escato lógica que sublin ha que o Apoca lipse coloca
ênfase na vitória final de Deus sobre as forças do mal. 4) A interpr etação
idealist a ou atempo ral, que susten ta que o Apoca lipse não faz nenhu ma
referên cia aos aconte ciment os históri cos, mas preten de muito mais ex-
pressar os princíp ios fundam entais, de acordo com os quais Deus atua na
Históri a.

4. Gêner o literár io: o fenôm eno apocal íptico

Se bem que o Apoca lipse seja um livro único no Novo Testam ento -
isto não imped e que encont remos no Novo Testam ento alguns fragme n-
tos apocal ípticos , como em Me 13 (cf. os paralel os Mt 24 e Lc 21; e
também em 2Ts 2; lCor 15,20- 28) -, convém ter muito presen te que o
fenôme no apocal íptico era freqüe nte no mundo antigo e, sobretu do, no
bíblico e extrab íblico; assim, exceto Daniel , sobretu do 7 - 12, e divers os
fragme ntos que encont ramos no Antigo Testam ento, como em Is 24 - 27;
Zc 9 - 14; e Joel, temos obras muito signifi cativas no mundo apócri fo,
tanto judaic o quanto cristão . Entre os livros apócrif os são muito signifi -
cativos os escrito s atribuí dos a Henoc - sobretu do 1º Henoc ou Henoc
etíope, que contém fragme ntos que vão desde o século III a.e. até a pri-
meira metade do século I d.C. - e dois textos judaic os, contem porâne os
do Apoca lipse, 4º Esdras e 2º Baruc ou Baruc siríaco .
Às caracte rística s de lingua gem cifrada e pseudo nímia (sobre a
pseudo nímia ver adiante , pp. 254-25 6) que já vimos no Apoca lipse, con-
vém acresc entar aqui que, a partir de uma certa visão dualist a do mundo
que encont ramos també m no Apoca lipse, é típico da apocal íptica que a
revelaç ão - que pode ser em forma de epifani a, visão, audiçã o, viagem ao
mundo celesti al, recepç ão de um livro celeste oculto - não seja recebi da
diretam ente de Deus, mas por meio de um anjo ou de Cristo. O conteú do
destas revelaç ões pode girar em tomo de dois centros fundam entais, os
segredo s da nature za - o que serve para fixar o calend ário ou para falar
dos astros - e o descob riment o daquil o que ·ocorre rá no futuro. Fre-
qüente mente, revela- se como são os lugare s do prêmio e castigo na outra
vida (cf. 1 º Henoc e Apoca lipse de Pedro) . É própri o també m da
apocal íptica que, ao acentu ar-se a transce ndênci a de Deus, os anjos e os
a
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mundo.

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