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FORTALEZA – CEARÁ
2017
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FORTALEZA – CEARÁ
2017
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AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 9
2 MODERNIDADE.…………………………………...……………………….. 13
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.………………………………………………... 56
REFERÊNCIAS………………………………………………………………. 58
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1 INTRODUÇÃO
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4’33’’ (1952) de John Cage (1912 – 1992), ao piano David Tudor (1926 – 1996). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY>. Acesso em: 07 abr. 2017.
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com o mundo que irá ouvi-lo. Sua arte torna-se realmente única, no sentido em que é
incomunicável, fechada por todos os lados. O bloco errático já não é uma
curiosidade que funciona como exceção; passa a ser o único modelo oferecido aos
neófitos para emulação. A aparição de uma série de tendências anárquicas,
incompatíveis e contraditórias no terreno da história corresponde a essa completa
ruptura com a tradição (1996, p. 72 – 73).
Em linhas gerais, Stravinski pontua que, por conta da grande diversidade de “tendências
anárquicas”, a música moderna causou estranhamento e incompreensão no ouvinte.
Complementando a abordagem de Stravinski, o filósofo francês, Jacques Rancière
(2005), sugere que
A noção de vanguarda define o tipo de tema que convém à visão modernista e
próprio a conectar, segundo essa visão, o estético e o político. Seu sucesso está
menos na conexão cômoda que produz entre a ideia artística da novidade e a ideia da
direção política do movimento, do que na conexão mais secreta que opera entre duas
ideias de “vanguarda” (2005, p. 43).
Nesta perspectiva, a noção de vanguarda já emerge com uma postura política. Para o autor, o
termo vanguarda abriga duas concepções, uma artística que acredita na potência da arte
autônoma, e concerne a invenção das formas sensíveis e da novidade, afirmando sua
heterogeneidade; e uma política que acredita num programa, no pensamento sobre as formas
de visibilidade da arte e vincula-se entre a história e movimentos políticos, como por
exemplo, a arte dos regimes totalitários. As duas concepções são condicionadas a política e
ambas convergem ao acreditar na potência da arte como uma forma de emancipação da
consciência e por revogar a arte o reestabelecimento de uma comunidade ética, na qual é
possível a partilha do sensível. “É isso que a vanguarda “estética” trouxe a vanguarda
“política” ou que ela quis ou acreditou lhe trazer, transformando a política em programa total
de vida” (p. 43 – 44). Assim, pode-se entender que, mediante a análise de Rancière, algumas
vanguardas tornaram-se movimentos excessivamente politizados, como o construtivismo
russo, e outras distanciadas da experiência comum dos sujeitos, como o abstracionismo.
Diante desta questão, apresenta-se um paradoxo, ao mesmo tempo em que as
vanguardas do início do século XX, na Europa e na América (Estados Unidos), tencionaram
reintegrar a arte à vida, ampliando os suportes e utilizando-se de elementos imbricados no
cotidiano, os movimentos passaram a conceber bulas e manifestos para elucidar os objetivos
das intervenções, ou ainda, se afirmando por meio de uma radical autonomia. Neste sentido, a
questão central busca compreender a obra de John Cage no contexto das vanguardas. De que
forma este autor modula sua obra considerando-o sob a perspectiva estética e das rupturas?
Ao que parece, enquanto a maior parte dos compositores do século XX estavam
preocupados em sistematizar um novo código musical, forte o suficiente para substituir o
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sistema diatônico, John Cage desponta como uma figura multifacetada, que articula sua
experiência com base nas questões cotidianas. Seus interesses não residiam apenas na música,
mas na interdisciplinaridade entre as artes. Nesta perspectiva, o objetivo do estudo é
compreender a relação da trajetória de John Cage e de sua obra musical, entre as décadas de
1940 e 1950, buscando entender o processo compositivo e o artista de múltiplos focos na
modernidade, capturado na aproximação com a percepção de Charles Baudelaire (1996).
Como subquestões, Por que uma música emerge do silêncio? O que explica essas escolhas?
O recorte entre as décadas de 1940 e 1950 justifica-se a partir das referências
bibliográficas encontradas. Há poucos estudos que apresentem a trajetória do compositor
antes de 1940. É por volta desta mesma época que Cage passa a ter aulas com os
compositores Henry Crowell, Adolph Weiss e Arnold Schoenberg. No intervalo de 1940 e
1950 sua obra musical torna-se mais relevante – é o período das experimentações com o piano
preparado, com o acaso e com a música indeterminada. Ainda nos anos de 1950, envolvido
com a filosofia oriental, o zen-budismo e o I Ching, Cage dedica-se a propostas de arte
interdisciplinares. Deste modo, depois de 1960, torna-se inviável pensar em sua obra apartada
das demais linguagens artísticas.
Dentre as pesquisas consultadas, dissertações e teses, destacam-se os estudos de
COSTA (2004; 2009), POZZO (2007), HELLER (2008) e LOUREIRO (2013). De modo
geral, Costa (2004) tem como foco o estudo do piano preparado de John Cage. Costa (2009) e
Pozzo investigam as formas abertas e o acaso na música. Heller dedica-se ao silêncio da obra
musical e literária de Cage, e Loureiro investiga a técnica e os processos criativos do século
XX na música e nas artes visuais.
Como fontes bibliográficas, utilizou-se um livro de ensaios e conferências de John
Cage, publicado originalmente em 1963, intitulado, De segunda a um ano (2013). E um outro
livro de entrevistas de Cage com Joan Retallack, Musicage: palavras, publicado no Brasil em
2015. Recorreu-se também a escuta das músicas e a apreciação de vídeos e entrevistas. No
entanto, por conta das limitações da pesquisa, este trabalho não apresenta nenhuma análise
musical de suas obras.
A metodologia baseou-se em um estudo de caso da trajetória de John Cage,
relacionando no contexto de sua produção artística e aproximando do entendimento de
Baudelaire, com foco nos aspectos: o artista na modernidade; o artista de múltiplos interesses;
a escuta do presente; a arte imbricada na experiência cotidiana.
Buscando pelos referenciais, tomei grande gosto pela discussão musicológica e
esta pesquisa situa-se então em um campo interdisciplinar entre a estética e a história. Adotei
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a modernidade como uma categoria histórica para entender como as vanguardas emergiram e
quem é o artista na modernidade, através da leitura do poeta francês, Charles Baudelaire.
Para isso, o estudo dividiu-se em três capítulos. O capítulo dois foi subdividido
em dois tópicos; o primeiro tópico busca entender, no contexto da modernidade, a emergência
das vanguardas, apoiando-se na captura de Charles Baudelaire, um dos primeiros a intuir o
conjunto de modificações e instabilidades que influenciam as artes a partir do século XIX. O
segundo tópico analisa as proposições de Baudelaire com a ajuda dos estudos de Marshall
Berman (1986) e de Nicolau Sevcenko (2001).
O terceiro capítulo, subdividido em três seções, concentra-se em compreender as
vanguardas. O primeiro tópico aborda como a arte foi compreendida ao longo da história,
fundamentada na análise do filósofo francês Jacques Rancière (2004; 2005). Mediante as
investigações de Rancière, pode-se verificar um paradoxo nas vanguardas europeias e norte-
americanas do século XX. Neste sentido, a segunda seção buscou-se evidenciar este paradoxo
por meio de algumas tendências das artes plásticas. O último tópico explicita as principais
tendências da música do século XX, com o objetivo de compreender as vanguardas na
música, assim como o meio onde emergiu John Cage.
Por fim, dividido em dois tópicos, o capítulo quatro foca-se no artista, em
compreendê-lo em face o imperativo histórico. Assim, o primeiro tópico descreve as
características do artista moderno, partindo da proposição de Baudelaire. A segunda seção
propõe uma leitura da trajetória de John Cage a partir da captura de Baudelaire.
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2 MODERNIDADE
fatos e acontecimentos. O poeta e ensaísta Octavio Paz, nos oferece mais uma percepção
sobre a modernidade. O autor afirma que é a crítica que nos diferencia das demais
modernidades.
O que distingue nossa modernidade das modernidades de outras épocas não é a
celebração do novo e surpreendente, embora isso também conte, mas o fato de ser
uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da continuidade. A arte
moderna não é apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma
(1984, p.20).
2
Os filósofos Soren Kierkegaard, Walt Whitman e Carl Max, os poetas Arthur Rimbaud, Herman Melville,
Charles Baudelaire e Fiódor Dostoievski são alguns exemplos de modernistas de segunda fase – século XIX.
15
Ele questiona o mergulho dos pintores modernistas na tradição, pontuando que “se
lançarmos um olhar a nossas exposições de quadros modernos, ficaremos espantados com a
tendência geral dos artistas para vestirem todas as personagens com indumentária antiga”
(BAUDELAIRE, 1986, p. 24-25). Em geral, a maioria dos personagens representados seguia
à moda da Idade Média, do Renascimento e do Oriente. Para o escritor, é admirável examinar
os antigos mestres para aprender a pintar, mas o centro do estudo deveria estar em apreender o
caráter da beleza atual.
Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método
geral. De tanto se enfronhar nele, perde a memória do presente; abdica do valor dos
privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem
16
3
Jacques-Louis David (1748 -1825) era um pintor francês representante do neoclassicismo.
4
Sobre a expressão, Dilmar Miranda, explica: “O termo flanância, palavra não dicionarizada, é uma tradução
bem livre de flânerie para significar o uso de sair perambulando pela cidade, sem destino, para “flertar” com o
mundo e a vida” (s.d., p.80).
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pensar, deambulando pela cidade, com seu ritmo próprio. A flânerie torna-se uma
prática difundida do seio da moderna sociedade parisiense (MIRANDA, s.d., p. 7).
Baudelaire afirma que é excelente estudar com os antigos mestres para aprender a
pintar.6 Em referência à modernidade, o que este antigo mestre tem a nos ensinar? Como suas
ideias influenciaram os escritores e artistas do século XX? Antes de nos aventurarmos a
5
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
Disponível em: <http://150.164.100.248/profs/sergioalcides/dados/arquivos/baudieflores.pdf>. Acesso em: 12
maio. 2017.
6
O poeta ressalta que é interessante aprender a pintar com antigos mestres, desde que o foco do estudo esteja em
apreender a essência do tempo presente. (BAUDELAIDE, 1986, p. 26).
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encontrar esta resposta, cabe considerar alguns fatos do século XX que compuseram o cenário
para o surgimento das vanguardas artísticas.
O historiador brasileiro, Nicolau Sevcenko, enfatiza que na transição para o século
XX, “o mundo já era praticamente tal como o conhecemos” (2001, p. 15).7 Este século é
marcado pela intensificação, contínua e acelerada, das atividades tecnológicas. De acordo
com o autor, é possível dividir o século XX em duas fases,
Na primeira dessas fases, prevaleceu um padrão industrial que representava o
desdobramento das características introduzidas pela Revolução Científico-
Tecnológica de fins do século XIX (...). A segunda fase, iniciada após a [segunda]
guerra, foi marcada pela intensificação das mudanças – imprimindo á base
tecnológica um impacto revelado sobretudo pelo crescimento dos setores de
serviços, comunicações e informações -, o que a levou a ser caracterizada como
período pós-industrial. (2001, p. 24).
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Sobre a nossa modernidade Sevcenko comenta, “no curso de seus desdobramentos surgirão, apenas para se ter
uma breve ideia, os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação
elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os
arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas,
as rodas-gigante, as montanhas-russas, a seringa hipodérmica, a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor
de pressão arterial, os processos de pasteurização e esterilização, os adubos artificiais, os vasos sanitários com
descarga automática e o papel higiênico, a escova de dentes e o dentifrício, o sabão em pó, os refrigerantes
gasosos, o fogão a gás, o aquecedor elétrico, o refrigerador e os sorvetes, as comidas enlatadas, as cervejas
engarrafadas, a Coca-Cola, a aspirina, o Sonrisal e, mencionada por último mas não menos importante, a caixa
registradora”. (1998, p. 9-10).
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Neste trecho, Baudelaire refere-se ao aquarelista Constantin Guys (1805- 1892). O poeta utiliza a figura de
Constantin para elucidar quem é este artista da vida moderna.
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futurismo, pop art e minimalismo são alguns exemplos. Sobre a arte moderna, Sevecenko
comenta que
(...) alguns dos mais eminentes pioneiros da arte moderna, principalmente dentre os
surrealistas, se deram conta do extraordinário potencial artístico do cinema. Assim
como os cubistas haviam buscado reproduzir com seus pincéis a mobilidade, a
versatilidade, o dinamismo e a descontinuidade com que a câmera de filmar capta e
transforma a realidade, havia a opção, muito óbvia, de usar a própria filmadora para
repassar versões “cubistas” do mundo para o grande público dos cinemas. (...)
capazes de desafiar as convenções da percepção e abrir novas possibilidades de
compreensão e interpretação dos fatos e processos (2001, p. 74 – 75).
Figura 1 – Richard Hamilton, O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão
atraentes? (1956).
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/384494886911533846/
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Richard Hamilton (1922 – 2011) foi artista de colagem e pintor britânico integrante da Pop Art.
21
Com a ampliação dos suportes, como pontua Sevcenko, as técnicas de notação expandiram-
se,12 pois a notação tradicional não dava conta de registrar os novos sons incorporados nas
composições.
10
Amériques (1918-1921) de Varèse, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RwB83KjKego>.
Acesso em: 06 abril. 2017.
11
Edgard Varèse (1883 – 1965) compositor de vanguarda francês.
12
Foram criadas as seguintes formas de representação sonora, “Contamos atualmente com quatro tipos de
notação musical (...): Notação precisa: escrita tradicional que objetiva atingir um grau máximo de precisão
(aspecto quantitativo). Notação gráfica: utilizada na música contemporânea com o intuito de estimular, motivar
e sugerir a decodificação dos signos musicais. Notação aproximada: utilizada na música contemporânea, grafa
os signos sonoros de modo aproximado, isto é, não se preocupa com a exatidão de correspondência entre os
símbolos e o som pretendido. Notação roteiro: utilizada na música contemporânea, somente delineia a
sequência dos signos musicais" (KOELLREUTTER apud, BRITO, 2001, p.126).
22
Figura 2 – Trecho de partitura gráfica Fontana Mix (1958) do compositor John Cage
(1912 – 1992).
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Z-r6LyTUiYg
É possível perceber que diferente dos artistas do século XIX, alguns artistas da
primeira metade do século XX foram de encontro ao academicismo, objetivando apreender a
essência da vida moderna e representar o tempo presente, como defendia Baudelaire. Os
vanguardistas, além de almejarem restabelecer a arte com os espaços da vida cotidiana, foram
extramente críticos em relação à arte como mercadoria. Conforme Berman “o século XX
talvez seja o período mais brilhante e criativo da história da humanidade, quando menos
porque sua energia criativa se espalhou por todas as partes do mundo. O brilho e a
profundidade da vida moderna (...)” (1986, p. 23).
Baudelaire, ao descrever as ruas parisienses, evidencia como a modernização das
cidades pode inspirar e orientar a alma dos seus residentes. Ele nos ensina a nos energizarmos
e a tirar proveito das experiências cotidianas e transformá-las em uma arte que expresse
beleza e verdade. As cidades, embora, sejam espaços plenos de dissonâncias, “devemos
esperar, como Baudelaire às vezes esperou, por um futuro em que a alegria e a beleza, como
as luzes da cidade, venham a ser partilhadas por todos.” (BERMAN, 1986 p.150).
O mundo moderno foi mote das intervenções da vanguarda, no entanto, ao mesmo
tempo em postulavam um desejo de reaproximar a arte com a vida, por que os experimentos
propostos pela vanguarda parecem não ter alcançado a experiência comum dos sujeitos? No
próximo capítulo será discutida uma noção de como a arte foi entendida ao longo da história.
Em seguida, pretende-se compreender porque as vanguardas apesar de inspirarem-se nos
temas da vida moderna e ampliarem os suportes, causaram certo estranhamento e
distanciamento da experiência comum.
23
No regime ético, Juno Ludovisi é identificada como uma representação da divindade. Neste
sentido, não existe arte, pois a “arte” está subsumida em função da imagem, de sua verdade e
dos efeitos que causam sobre os indivíduos e a coletividade. No regime representativo ou
poético, a deusa é um produto da arte, a escultura. Neste regime de identificação, Juno
Ludovise é apreendida através de um cânone de convenções, sendo possível avaliar a
competência do escultor ao engendrar imitações benfeitas, ao dar forma e artisticidade na
matéria bruta. No regime estético, Juno Ludovisi, é identificada como estátua de livre
aparência. A ênfase não está na perfeição técnica ou no modo de fazer, mas na apreensão
sensível, no modo de ser. Conforme Rancière,
Neste regime [regime estético], a Juno Ludovisi não extrai sua propriedade de obra
de arte da conformidade da obra do escultor a uma ideia adequada da divindade ou
aos padrões da representação. (...) A propriedade de ser arte se refere aqui não a uma
distinção entre os modos do fazer, mas a uma distinção entre os modos de ser. É isto
que quer dizer “estética”: a propriedade de ser arte no regime estético não é mais
dada por critérios de perfeição técnica, mas pela inscrição em uma certa forma de
apreensão sensível (2004, p. 9).
14
Filmografia do documentário O Povo que Canta (1972) disponível em:
<http://www.michelgiacometti.com/coleccao.html>. Acesso em: 18 abr. 2017.
25
propriamente dita, a música estava presente de tal forma na vida dos sujeitos que a impedia de
se individualizar como uma peça ou obra musical. Outro exemplo são as comunidades
ameríndias, o que nomearíamos de expressões artísticas, como música, dança, pinturas
corporais, máscaras e rituais refletem o modo de ser sensível da coletividade. Na fala da
musicóloga Rosângela Tugny, “(...) aquilo que gostaríamos de denominar fatos “artísticos”
forma um modo de ser e gerenciar relações carregadas de afetos entre distintas sociedades
corporais que coabitam os seus espaços” (2015, p. 323). Ao que parece, nestas culturas as
dimensões natureza e cultura não são dissociadas, a experiência sensível está interligada com
a experiência comum.
O regime representativo pode ser compreendido através da apreciação de um
concerto de Haydn ou uma sonata de Mozart. Neste caso, a peça é fruto da habilidade do
compositor ao manusear os sons, com base em um sistema musical pré-estabelecido. Já
Tubarões Voadores (1984),15 de Arrigo Barnabé, é apreendida pelo regime estético. Nesta
música, o compositor dispensa temas e regras, onde os tubarões voam e as vozes passeiam
entre o canto e a fala.
Em linhas gerais, na modernidade rompe-se com o sistema mimético, rejeitando, a
priori, na pintura, a não-figuração, a vontade pelo novo e pela inovação. Os modernistas, não
tencionaram apenas romper com a tradição, mas objetivavam reavaliar e reinterpretar as
maneiras de fazer, questionando os antigos mestres, o patrimônio e a história da arte. Mas, ao
mesmo tempo em que estes pintores, músicos e poetas buscaram ampliar os suportes e tirar
proveito das metrópoles e do tempo presente, como almejava Baudelaire, estes artistas
distanciaram-se da experiência comum dos sujeitos, além de tornar-se uma arte
excessivamente politizada. Neste ponto, impõe-se um paradoxo, que será melhor evidenciado
no tópico seguinte.
15
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=qTLlnY4WSSY>. Acesso em: 18 abr. 2017.
26
Os impressionistas saíram de seus ateliês para observarem o mundo real, tornando o cotidiano
tema central das obras. Em O baile de moulin de La galette (1876), por exemplo, Renoir
(1841 – 1919)16 retrata o cotidiano burguês, seus costumes, gestos e indumentárias. Foram
eles, os impressionistas, os primeiros a desafiarem as regras impostas pela academia e pelo
establishment.
Figura 4 - Pierre-Auguste Renoir, O baile de moulin de La galette, 1876.
Fonte: https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/-/rQEx7CtGiKE3yg?hl=pt-BR.
16
Pintor francês, integrante do movimento impressionista.
17
Umberto Boccioni (1882 – 1916), pintor e escultor do movimento futurista italiano.
18
O russo Vladimir Tatlin (1885 – 1953) foi um pintor, escultor e arquiteto integrante do movimento
construtivista.
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19
Marcel Duchamp é um pintor, poeta e escultor, francês. É considerado o fundador do conceitualismo, uma
tendência da arte do século XX.
20
A Exposição dos Artistas Independentes de 1917 foi promovida pela Sociedade dos Artistas Independentes.
Esta Sociedade era formada por intelectuais que mantinham uma posição contrária a National Academy of
Design. Para tornar-se membro, era necessário pagar o valor de um dólar, e cinco dólares por obra exposta.
Duchamp era um dos diretores do grupo, foi este motivo que o levou a assinar Fonte sob um pseudônimo. No
entanto, mesmo no meio dos artistas independentes, Fonte não foi exposta, pois a maioria dos diretores da
Sociedade a julgou como vulgar e ofensiva.
28
Ele [Duchamp] queria questionar a própria noção do que constituía uma obra de arte
tal como decretada por acadêmicos e críticos, que via como os árbitros
autoescolhidos e em geral não classificados do gosto. (...) A posição de Duchamp
era que se um artista dizia que uma coisa era uma obra de arte, tendo interferido em
seu contexto e significado, ela era uma obra de arte. E ele percebeu que essa
proposta, mesmo sendo simples de compreender, poderia causar uma revolução no
mundo da arte (GOMPERTZ, 2013, p. 23 - 24).
Um ano antes da exposição da Fonte, emerge uma tendência na arte moderna que
se opõe não só a visão dos críticos e acadêmicos, mas da própria arte; os dadaístas “(...) eram
contra tudo: contra o establishment, contra a sociedade, contra a religião e, acima de tudo,
contra a arte” (GOMPERTZ, 2013, p. 240). O impulso inicial para as intervenções dadaístas
eram o acaso e a utilização de suportes cotidianos. Na literatura, a estruturação do poema
consistia no recorte de palavras retiradas de artigos de jornais e, depois de embaralhadas, os
fragmentos eram colados em uma folha de papel, imitando a imprevisibilidade da vida, “(...)
um poema tradicional (e o status enaltecido do poeta) era falso por sua própria natureza; era
uma estrutura ordenada que fazia perfeito sentido. A vida, por outro lado, era aleatória e
imprevisível” (GOMPERTZ, 2013, p. 243). Esta técnica também foi transposta para as artes
plásticas, Jean Arp21 elaborou Colagem com quadrados dispostos segundo as leis do acaso
(1916 – 17). Neste quadro, Arp recorta quadrados de tamanhos diferentes e deixa-os cair
sobre um pedaço maior de papel.
Entre as décadas de 1950 e 1960, artistas como Eduardo Paolozzi (1924 – 2005),
no Reino Unido, Robert Rauschenberg (1925 – 2008) e Eduardo Jasper Johns (n.1930),22 nos
Estados Unidos, planejaram questionar a divisão entre baixa e alta cultura, acreditando que
imagens de revistas, jornais, garrafas, pneus, madeira, entre outros materiais ordinários, eram
tão bons quanto às demais formas de arte convencionadas. A intenção deste grupo de artistas
era produzir uma arte a partir dos descartes de uma sociedade consumista. Questionado sobre
a validade das obras de seus contemporâneos, Rauschenberg afirma “tenho pena das pessoas
que acham feias as coisas como saboneteiras ou garrafas de Coca-cola, porque elas estão
cercadas por coisas assim e isso deve deixá-las muito infelizes” (apud, GOMPERTZ, 2013, p.
312 – 313).
A proposta de Duchamp, Arp, Paolozzi, Rauschenberg, Johns e dos demais
artistas de vanguarda causou certa incompreensão por parte dos críticos e do público. Apesar
de postularem um desejo de reaproximar a arte da vida, de usarem elementos imbricados no
21
Jean Arp (1886 – 1966), também é conhecido como Hans Arp, foi um pintor e poeta alemão naturalizado
francês cofundador do movimento dadaísta (1916 – 23).
22
Artistas plásticos integrantes da Pop Art (1956 – 1970).
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cotidiano e o acaso, o que tornou a vanguarda uma cultura dissociada da experiência comum
dos sujeitos? Greenberg aponta que,
(...) o poeta ou artista de vanguarda procurava manter o alto nível de sua arte
restringindo-a e elevando-a simultaneamente à expressão de um absoluto em que
todas as relatividades e contradições seriam resolvidas ou descartadas. Surgem a
“arte pela arte” e a “poesia pura”, e o tema ou conteúdo torna-se algo a ser evitado
como uma praga (1997, p. 29).
A procura deste absoluto, como ressaltou Greenberg, resultou em uma arte não
objetiva, não figurativa e abstrata. Nas artes plásticas, o pintor deixou de registrar temas da
experiência comum e começou a inscrever seus pensamentos na tela. Na série de Composição
e Improvisação de Kandinsky,23 o pintor planejara “(...) criar uma “paisagem sonora”: telas
que permitissem ao espectador ouvir o “som interno” de uma cor. Isso significou a eliminação
de ainda mais referências ao mundo real” (GOMPERTZ, 2013, p. 173). Os artistas
abstracionistas, como Kandinsky, se comparavam a músicos e suas telas a partituras;
inspiravam-se na música, pois acreditavam ser a arte mais abstrata.
Fonte: https://www.wikiart.org/en/wassily-kandinsky/composition-vii-1913
23
Wassily Kandinsky (1866 – 1944) foi um pintor russo precursor do abstracionismo nas artes plásticas.
24
Kazimir Malevich (1878 – 1935) foi um pintor ucraniano adepto do suprematismo.
30
Neste sentido, alguns artistas dedicaram-se a construção de uma identidade visual para estes
regimes políticos. Foi o caso de Monumento à Terceira Internacional (1919 - 20), de Tatlin,26
que faz uma referência a supremacia da União Soviética. Embora nunca tenha sido construída,
Tatlin esperava que sua torre fosse construída em São Petersburgo, as margens do rio Neva,
que deveria ser a sede global do comunismo.
Gompertz pontua que até mesmo “o dadaísmo pode ter se expressado mostrando-
se estúpido, mas foi o mais intelectual dos movimentos artísticos” (2013, p. 243). O mesmo
pode se ponderar em relação a Pop Art, na década de 1960, nos Estados Unidos, sobre a qual
o mesmo autor chama a atenção “(...) não era uma fase tola em que artistas faziam obras de
25
Embora Rancière evidencie que a arte dissocia-se da vida, há de se considerar se os artistas de vanguarda
tinham o propósito de criticar a própria sociedade e não apenas a arte.
26
O russo Vladimir Tatlin (1885 – 1953) foi um pintor, escultor e arquiteto integrante do movimento
construtivista.
31
arte fáceis para um público pueril, mas um movimento extremamente político, com aguda
consciência dos demônios e armadilhas ocultos na sociedade que estava retratando” (p. 311).
A partir desta breve incursão em alguns movimentos da arte do século XX, não se
objetivou comprovar o paradoxo proposto por Rancière, mas perceber de modo mais prático a
profusão de correntes, tensões e contradições que as vanguardas abrigaram. Como isso se
explica?
Como apresentado na introdução, Rancière entende que arte é condicionada a
política. O autor elucida duas noções de política, uma estética que concerne à invenção das
formas sensíveis e a outra compreende que a arte deve proporcionar uma experiência
engajada, onde o expectador passa a ser ator. Neste sentido, todas as vanguardas são políticas,
umas, no entanto, fizeram arte política, como Rancière mesmo exemplifica, os futuristas e os
construtivistas. Nas palavras do autor,
A história das relações entre partidos e movimentos estéticos é antes de mais nada a
história de uma confusão, às vezes complacentemente entretida, em outros
momentos violentamente denunciada, entre essas duas ideias de vanguarda, que são,
com efeito, duas ideias diferentes da subjetividade política: a ideia arquipolítica do
partido, isto é, a ideia de uma inteligência política que concentra as condições
essenciais da transformação, e a ideia metapolítica da subjetividade política global, a
ideia da virtualidade nos modos de experiências sensíveis inovadores de antecipação
da comunidade por vir. Mas essa confusão nada tem de acidental. Não é que,
segundo a doxa contemporânea, as pretensões dos artistas a uma revolução total do
sensível tenham preparado o terreno para o totalitarismo. Trata-se, porém, do fato de
que a própria ideia de vanguarda política está dividida entre a concepção estratégica
e a concepção estética de vanguarda (2005, p. 44).
Em linhas, estas tensões se explicam pelo imperativo histórico, refletindo as próprias questões
que se impõe na modernidade.
A próxima seção intenciona denotar as principais tendências da música do século
XX, com ênfase no impressionismo, expressionismo, futurismo, serialismo, neoclassicismo e
na música concreta e eletrônica. Como os compositores do século XX se utilizaram dos temas
da vida moderna? Será que com mesmo ímpeto e entusiasmo dos artistas plásticos? Como
essas ideias influenciaram no fazer musical? Por que, de modo geral, este período é denotado
pela dissolução do sistema tonal?
27
Prélude à l’Aprés-Midi d’un Faune (1894) - Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=43rzoDrD4e0>. Acesso em: 23 jan. 2017.
28
Para BARRUAD (2012), o modernismo na música é inaugurado por Stravinsky em A sagração da primavera,
estreada em 1913. Já Alex Rosse (2009) atribui à inauguração do modernismo na música a Salomé (1905) de
Richard Strauss (1864 – 1949).
33
Die glückliche hand (1910-13) e Pierrot Lunaire (1912) são frutos da fase
expressionista de Schoenberg. Nestas obras, Schoenberg mostra-se um artista interdisciplinar,
o compositor concebeu a música, o texto, o figurino, o cenário e a iluminação na composição
da obra, que tinha influências simbolistas de Kandisnsky. Da mesma forma, é possível
perceber está multiplicidade artística em Pierrot Lunaire (1912), para grupo de câmera e voz.
O texto utilizado são poemas traduzidos para o alemão do poeta belga, Albert Giraud (1860 –
1929). A solista recorre ao sprechgesang, uma espécie de vocalização entre o canto e a voz
falada. “A peça não se destina claramente ao teatro nem à sala de concerto, não tendo sido
escrita para uma cantora, mas para uma atriz, que se apresentou caracterizada na estreia”
(GRIFFITHS, 2011, p. 34). Além de compor, Schoenberg pintava, suas telas receberam o
reconhecimento do pintor russo, Wassily Kandinsky (1866 – 1944). Entre 1908 e 1910, ele
pintou cerca de setenta quadros.
No intervalo entre 1921 – 51, o compositor sente a necessidade de “atingir a
unidade formal e a firmeza formal sem se servir da tonalidade (...) empregar um outro meio de
ligação formal, com força suficiente para reduzir os acontecimentos musicais ao mesmo
denominador” (SCHOENBERG apud, BARRUAD, 2012, p. 85). O sistema organizado por
Schoenberg foi nomeado de dodecafonismo, tinha como principio a não hierarquização dos
sons. Na prática, as doze notas da escala cromática estariam presentes na peça com a mesma
frequência. A sucessão das doze notas será chamada de série. A partir da escolha da série, o
compositor manipulava-a, transpondo-a em diversos intervalos. A série poderia assumir
quatro formas, original, invertida, retrógrada e retrógrada invertia. Assim, “(...) os doze sons
devem sempre desfilar sem que se possa reencontrar nenhum deles antes que os onze outros
tenham sido ouvidos, então vai-se ouvir sempre a mesma coisa” (SCHOENBERG, apud,
BARRUAD, 2012, p. 87).
Embora sua música não fosse acolhida pelo público e recebesse fortes críticas, até
mesmo ele entendia a aversão, “Pode ter sido o desejo de se livrar daquele pesadelo, daquela
tortura dissonante, daquelas ideias incompreensíveis, de toda aquela metódica loucura – e
devo admitir que as pessoas que se sentiam assim não eram más” (SCHOENBERG apud
GRIFFITHS, 2011, p. 32), as ideias de Schoenberg foram bem aceitas entre seus alunos, os
35
austríacos Alban Berg (1885 – 1935) e Anton Webern (1883 – 1945), foram seus primeiros e
mais promissores discípulos. Juntos, formaram a Segunda Escola de Viena.
Percebe-se que, ao mesmo tempo em que Schoenberg nega o uso do sistema
diatônico e parte em busca da emancipação da dissonância, nota-se no compositor afeto e
admiração aos antigos mestres e a tradição dos compositores austro-germânicos, de Bach a
Brahms; também demonstrava anseios de estudar e de continuar compondo nos modelos
clássicos. Em sua incursão na atonalidade, o compositor afirma, “eu tinha a sensação de ter
caído num oceano de água fervente (...) que não só queimava minha pele, mas queimava por
dentro” (SCHOENBERG apud GRIFFITHS, 2011, p. 25). Neste mesmo período, na América,
os compositores Charles Ives (1874 – 1954), Carl Ruggles (1876 – 1971) e Henry Cowell
(1897 – 1965), aparentemente sem nenhum conhecimento do que se passava na Europa,
chegaram à atonalidade. O mexicano Julian Carrilo (1875 – 1965), o checo Alois Hába (1893
– 1973) e o russo Ivan Vishnegradsky (1832 – 1895), buscavam nos intervalos menores de um
semitom, microtons, o rompimento com o sistema diatônico. Desta forma, questiona-se: como
estes compositores perceberam que o sistema tonal não correspondia mais as suas demandas?
A respeito da rejeição dos compositores do século XX em compor com base no
sistema tonal, o historiador americano, Carl Schorske, aponta que desde a renascença a
música ocidental era fundamentada em uma ordem tonal e hierárquica. A música foi
concebida a partir da seleção de doze sons, estes sons estão situados no centro de um intervalo
denominado de oitava. A oitava é constituída por doze intervalos iguais, chamados de
semitons, cuja soma de dois semitons resulta em um tom. A sucessão destes doze semitons
em intervalos iguais estrutura a escala cromática. Já a sucessão destes sons distribuídos de
modo desigual, cinco tons e dois semitons, configura a escala diatônica. O sistema tonal tem
como base a escala diatônica. Cada nota da escala cromática pode originar uma escala
diatônica, desde que siga o padrão estabelecido de cinco tons e dois semitons, oferecendo ao
compositor uma gama de tonalidades distintas, com caráter e cor singular. Na escala diatônica
se destaca um elemento central, a tríade - perfeita, maior e consonante. A tríade é um
elemento de autoridade, repouso e estabilidade dentro da tonalidade. O movimento emergia
do equilíbrio entre a tríade tônica, o quarto grau e o quinto grau da escala, retornando a tônica.
Estes três acordes dão sustentação e estrutura a todo o sistema tonal. A dissonância era vista
como um elemento dinâmico, justificado quando partida da tonalidade. A modulação, o
trânsito de uma tonalidade a outra, era um movimento ilegítimo permitido, que logo deveria
ser resolvido para uma nova tonalidade ou o retorno da anterior. Assim,
36
musicólogo Francesco Pratella (1880 – 1955) lança a primeira publicação, Manifesto dos
músicos futuristas (1911). De modo geral, este manifesto criticava a estagnação da música
italiana pelos editores, que divulgavam um cânone musical estabelecido pela tradição, e os
diretores e professores de conservatórios, que não incentivavam a liberdade e as inovações
por parte dos jovens músicos. Sugeria que o libreto da ópera fosse composto pelo autor, em
versos livres. No mesmo ano, Pratella elabora um segundo manifesto, Manifesto técnico da
música futurista. Neste manifesto, o compositor discute temas relacionados à composição -
harmonia, ritmo e forma – e propõe que os ruídos das cidades, das fábricas e das máquinas
fossem incorporados na música. Pratella foi censurado, pois suas composições estavam mais
concatenadas com as formas clássicas do que com suas ideias expressas nos manifestos.
O pintor e compositor futurista, Luigi Russolo (1885 - 1947), também “(...)
reclamava uma música que tivesse a ver com os sons e ritmos das máquinas e fábricas, uma
“arte do ruído” necessariamente estridente, dinâmica e profundamente sintonizada com a vida
moderna” (GRIFFITHS, 2011, p. 97 – 99). Segundo o artista, os sons das fábricas, das
máquinas e dos motores são mais atraentes que a música de Beethoven ou Wagner. Russolo
publicou um manifesto em 1903, A arte de ruídos. O manifesto expõe as limitações dos
instrumentos utilizados na música clássica, afirmando que o mundo moderno necessita de
mais riqueza trimbrística. Assim, ele criou diversos intonarumori (entoadores de ruídos),
eram esculturas sonoras que emitiam sons de roncos, zumbidos, estalos, estampidos, dentre
outros.
O “Intonarumori” é composto por várias caixas acústicas com correspondentes alto-
falantes, e foi inventado e construído por Luigi Russolo e Ugo Piatti. A orquestra do
“Intonarumori”, como explica o próprio Russolo , compõe-se de 21 instrumentos
que executam o som entoado. Conforme o ruído produzido subdivide-se em várias
modalidades, recebendo cada um o nome da família do som que reproduz, e esses
nomes são o que se pode imaginar de mais extravagante. É interessante pensar no
exótico desta complicada aparelhagem e no impacto que deve ter causado numa
Itália conservadora e burguesa, ainda tão ligada aos padrões artísticos tradicionais.
Russolo explica que com cada um desses instrumentos pode-se entoar qualquer
escala diatónica, cromática ou enarmônica, no ritmo que se desejar. Com o timbre de
determinado ruído executa-se a melodia, e com a união dos vários instrumentos é
possível obter qualquer harmonia (POLINESIO, s.d., p. 144).
reavaliadas após a Segunda Guerra pelo francês, Pierre Schaeffer, idealizador da música
concreta. Uma possível causa para a desintegração do movimento futurista é o retorno aos
modelos clássicos.
O romantismo atingiu o ápice nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial
(1914 – 1918), no entanto, após a guerra, entre as décadas de 1930 e 1940, na Europa e na
América, emerge uma atitude anti-romântica. De acordo com Griffiths,
A geração do pós-guerra aspirava a algo diferente, buscando ardentemente um
espírito novo. Associado à velha ordem, o romantismo era por muitos considerado
despropositado, e mesmo de mau gosto, parecendo sua ambição apenas bombástica,
e seu emocionalismo mero sentimentalismo. O século XIX devia ser esquecido
como uma aberração. Numerosos compositores decidiram adotar um novo ponto de
partida com base na música anterior: foi a aventura do neoclassicismo (2011, p. 62).
Este ponto de partida estava centrado na música do século XVIII. O compositor russo Ígor
Stravinsky (1882 – 1971), um dos maiores expoentes do neoclassicismo, sublinha que “Uma
renovação só é frutífera quando anda de mãos dadas com a tradição” (1996, p. 107). A
afirmação de Stravinsky sintetiza o pensamento de parte dos compositores deste período.
Assim,
(...) o neoclassicismo pode ser definido como uma adesão aos princípios clássicos do
equilibrio, da frieza, da objetividade e da música absoluta (por oposição a
programática), princípios que têm por corolários a economia de mios, a textura
predominantemente contrapontística e as harmônicas, não só cromáticas, como
também diatônicas, a música neoclássica recorre ainda por vezes à imitação, á
citação ou alusão a melodias ou características estilísticas de compositores mais
antigos, como sucede na Pulcinella, de Stravinsky, contruída sobre temas atribuídos
a Pergolesi, ou no bailado Le Baiser de la fée (O Beijo da Fada, 1928), baseado em
temas de Tchaikovsky (2011, p. 721 - 722).
sons naturais, voz de um menino gravada, como sons eletrônicos; com o objetivo de
representar o texto de bíblico de Daniel 3.
Em 1939, por meio de Imaginary Landscape n. 1, John Cage inaugurou uma nova
modalidade na música eletrônica, a chamada live electronic music, que consistia na execução
ao vivo da obra. No entanto, foi apenas por volta da década de 1960 que “aumentaram o
número” de grupos de música eletrônica ao vivo. Os conjuntos utilizavam instrumentos
eletrônicos e convencionais, sintetizadores e amplificadores. Sobre a música eletrônica
Griffiths faz os seguintes apontamentos,
Por esta época [década de 1960] a eletrônica já se tornara tão importante na música
“erudita” que parecia natural alguma forma de acomodação com o popular, e que a
iniciativa partisse de ambos os lados. Instrumentos desenvolvidos no terreno popular
começaram a ser empregados na música “séria” (...), e certos grupos pop começaram
a se interessar pela “vanguarda”. Tornou-se possível inclusive a realização de
concertos conjuntos de grupos eletrônicos e de música pop, e isto sem qualquer
incongruência, pois já agora a distinção era apenas uma questão de formação,
origem, público e marca de discos (2011, p. 154).
John Milton Cage Jr. foi filho de John Milton Cage e de Lucretia Harvey, nasceu
em Los Angeles – Califórnia, em 5 de setembro de 1912 e faleceu na cidade de Nova York
em 12 de agosto de 1992. Ao que parece, desde a infância John Cage foi exposto a um
ambiente estimulante e criativo, em uma palestra realizada no núcleo de Artes da UFPA,
Valério da Costa (2002) comenta que o pai de Cage era um inventor, “inventor mesmo,
daqueles que o Estado contratava pra criar uma invenção” (p. 4). Ao concluir o ensino médio,
em 1930, viajou para a Europa em busca de inspiração, pois desejava seguir o ofício de
escritor. Seus interesses, no entanto, não residiam apenas na literatura e poesia, ele também
estudou um pouco de música e arquitetura.
Devido ao Crash da Bolsa de Nova York e a grande crise que se abateu sobre os
Estados Unidos, seus pais não puderam mais financiar sua viajem pela Europa, assim, após
dois anos, ele regressa a Los Angeles. Para manter-se, Costa (2002) relata que Cage
costumava dar palestras sobre a vida e a obra de célebres artistas – compositores, pintores,
dentre outros – para abastadas donas de casa. Ele reunia, em média, uma plateia de trinta a
quarenta pessoas, cobrando aproximadamente dois dólares de cada ouvinte. Certa vez, ao
organizar uma palestra sobre Schoenberg, Cage pensou em analisar uma peça do compositor
e, em seguida, convidar um pianista para executar a música analisada. Assim, entrou em
contato por telefone com o renomado pianista Richard Buhlig (1880 – 1952), convidando-o
44
para tocar de graça em sua palestra. Buhlig recusou o convite, mas, a partir deste primeiro
contato, o pianista começou a ensiná-lo composição.
Em seguida, Cage passa a ter aulas com Henry Cowell (1897 – 1965),29 por volta
de 1933, e com Adolf Weiss (1891 – 1971), em 1934. Weiss era aluno de Schoenberg e com
ele Cage estudou harmonia e contraponto. Logo depois dos estudos com Cowel e Weiss, Cage
começa a frequentar a classe de contraponto, harmonia e análise de Arnold Schoenberg.
Como Cage não possuía condições financeiras para pagar as aulas com Schoenberg, eles
fizeram um acordo em que John Cage prometia devotar a vida dele à música em troca das
aulas. Mas, de acordo com Loureiro (2013), “(...) um ano bastou para que as exigências do
professor já não encontrassem eco no aluno. Schoenberg reprovava sua falta de senso
harmônico, dizendo que isto lhe impossibilitaria escrever música, pois seria como se
encontrasse sempre em seu caminho uma parede intransponível” (p. 218).
Como explicitado anteriormente, ao mesmo tempo em que Schoenberg
investigava novas maneiras de compor, ele era músico apegado à tradição; acreditava que,
antes de aprender a compor, era fundamental o estudo da harmonia tradicional. Em
contrapartida, John Cage não encontrava sentido em revisar os conteúdos de contraponto, de
harmonia e de análise musical, ele questionava constantemente a Schoenberg, “(...) por que
preciso entender harmonia para poder compor?” (COSTA, 2002, s.d., apud Cage). Diferente
de Schoenberg, Cage não demonstrava interesse na tradição e na literatura musical. Em uma
entrevista concedida nos anos de 1991, o compositor afirmou que escutar o som do trânsito
mostrava-se uma experiência mais instigante que ouvir Mozart ou Beethoven.30
Foi através de conversas com o cineasta e diretor de animações abstratas Oskar
Fischinger (1900 – 1967) que Cage engendrou novos caminhos para sua música. Fischinger
produzia animações a partir de objetos abstratos e Cage o ajudava a mover os objetos para que
Fischinger pudesse fotografar e sequenciar as imagens. 31 O cineasta costumava afirmar que
“(...) cada objeto tem um espírito e para você libertar o espírito de cada objeto, você tem que
29
Atribui-se a Cowell a criação e a sistematização do cluster, entidade harmônica que congrega notas sucessivas
em uma escala, ou seja, a sobreposição de segundas maiores e menores. É possível observar a utilização anterior
de clusters nas composições de Leo Ornstein, Charles Ives e Edgar Varèse, mas Hanry Cowell os usou
sistematicamente, mencionando o termo pela primeira vez em Harmonic Development (1921), de coautoria com
Robert Duffus. Além de elaborar a grafia da técnica e desenvolver estudos de execução para piano – palma,
braço e punho.
30
Trecho da entrevista de John Cage, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Hj7rq-gEzgo>.
Acesso: 19 abr. 2017.
31
Exemplo de umas das animações de Fischinger: An Optical Poem (1938) – Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=they7m6YePo>. Acesso em: 04 dez. 2016.
45
pô-lo em vibração” (COSTA, 2002, p. 7). Influenciado por esta ideia, Cage começa a
experimentar os timbres dos objetos, ressaltando que:
Ele [Oskar Fischinger] me falou sobre o que chamava de espírito inerente aos
materiais e declarou que um som produzido a partir de madeira tem um espírito
diferente daquele produzido a partir do vidro. No dia seguinte eu comecei a escrever
música para ser tocada com instrumentos de percussão (KOSTELANETZ, 1993,
p.31, apud COSTA, 2004, p. 24).
Suas composições não eram estruturadas por uma harmonia ou melodia, nem
baseadas em escalas ou em sistemas de alturas, mas em timbres e em espaços temporais.
Nesta fase, o compositor acreditava que a música para percussão seria a música do futuro,
pois supõe que a “nova música” é composta por todos os sons disponíveis – de instrumentos
musicais convencionais, de instrumentos eletrônicos, de sons cotidianos. Milan Kundera
afirma que “Quando o homem criou um som musical (cantando ou tocando um instrumento),
dividiu o mundo acústico em duas partes estritamente separadas: a dos sons naturais e a dos
sons artificiais” (1994, p. 62), no entanto, esta cisão não existia para Cage. A vivência com os
objetos de sons indeterminados representou para ele a não hierarquização dos sons. Conforme
o compositor, “por música nós entendemos som (...)” (2013, p. 21). A tensão não residia mais
entre consonância e dissonância, mas entre sons e ruídos.
Heller (2008) aponta que durante os anos 30 e 40 Cage entendia o silêncio como
“(...) opondo-se ao som; silêncio como ausência de som; silêncio representável pela pausa
musical (a pausa indicando um valor “negativo”, mensurável) (...)” (p. 14). É a partir dos anos
50, com a experiência na câmera anecóica, que Cage passou a compreender o silêncio como
um recurso expressivo e compositivo. Na mesma entrevista em que afirma achar mais
instigante o som do tráfego à Mozart e Beethoven, o compositor ressalta que das experiências
do som, a que prefere é a experiência do silêncio.
46
Assim, Cage inicia sua carreira como compositor, também ministrava cursos de
extensão na Universidade de Los Angeles e trabalhava como acompanhador em estúdios de
dança. Em 1938, Cage participou de um festival de verão no Mills College em São Francisco.
Neste festival, o compositor recebeu uma proposta da dançarina Bonnie Bird32 para integrar o
corpo docente da Cornish School em Seattle, como acompanhador da classe de dança da
bailarina. Bird o convenceu a aceitar o cargo quando ressaltou que na Cornish School existia
uma grande diversidade de instrumentos de percussão e que estariam à sua disposição.
Cornish era uma escola de arte na qual incentivava seus alunos e professores a
organizarem espetáculos interdisciplinares, envolvendo os alunos de música, de dança e de
teatro. Empolgado por este ambiente efervescente e experimental, Cage organizou um grupo
de percussão integrando os dançarinos da Cornish School. O grupo obteve sucesso e
realizaram turnês pela Cota Oeste do país, de modo que Cage passou a receber encomendas
de peças para percussão.
Na década de 1940, em Cornish School, a dançarina e coreógrafa, Syvilla Fort, o
convidou para acompanhá-la em uma performance de caráter africano chamada de
Bacchanale.33 O espaço destinado a performance, no entanto, era pequeno, cabendo apenas os
dançarinos e, no canto da sala, um piano. O que tornou impossível alocar o grupo de
percussão de Cage. Desta forma, John Cage começou a experimentar diversas sonoridades ao
piano com o intuito de obter uma atmosfera de caráter étnico. Dentre as sonoridades
exploradas por Cage estavam: a) composição de música serial b) tocar entre as cordas do
piano, como seu ex-professor, Cowell34 c) posicionar instrumentos dentro das cordas do
piano, a princípio sem fixá-los d) fixar borrachas e parafusos35 entre as cordas do piano.
Dentre as proposta acima, a última foi a que mais lhe agradou. O compositor comenta que,
Eu tinha feito experiências, ao estudar com Henry Cowell. Sabia que ele conseguia
tirar sons raspando e beliscando as cordas do piano, através de pizzicatos e glissandi.
Ampliei esta idéia ao colocar objetos entre as cordas. Inicialmente coloquei uma
fôrma de bolo, não entre as cordas, mas em cima delas. O único problema era que a
fôrma saltava e mexia. Então, vi que faltava qualquer coisa de fixo. Coloquei um
prego, mas também escorregava. Tive a idéia de colocar um parafuso de madeira
entre as cordas e foi exatamente o que eu precisava. O parafuso permaneceu no lugar
bastante tempo para fornecer um som que poderia ser repetido. (CAGE, 1990, apud
POZZO, 2007, p. 47).
32
Bird era uma jovem, talentosa e empreendedora dançarina do grupo de Martha Graham que havia fixado
residência em Seattle em 1937 com o intuito de implementar um programa de dança moderna na Cornish
(MILLER, 2002, p. 49, apud COSTA, 2004, p. 22).
33
Em 1940, compõe sua primeira peça para piano preparado, Bacchanale – Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=vGkQfwj6LeQ>. Acesso em: 24 mar. 2016.
34
Exemplificando, destaco Sinister Resonance (1930), Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zIZ5vt6a6Uc>. Acesso em: 24 mar. 2016
35
Preparando o piano. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kc3-C7Lnzh0> Acesso em: 24 mar.
2016.
47
A partir da fixação de materiais entre as cordas do piano, Cage construiu uma orquestra de
percussão para apenas um intérprete, intitulando de piano preparado.
Figura 8 – John Cage preparando o piano
Fonte: https://arcano5.com.br/som-e-sil%C3%AAncio-996492602779
Um ano após a estreia de Bacchanale, em 1941, Cage muda-se para Chicago para
lecionar a disciplina de teoria musical na School of Desing. Neste mesmo ano, compõe a partir
de sons amplificados, gravações e música para percussão uma trilha para o programa de rádio,
The City Wears a Slouch Hat, da CBS, que resultou em grande sucesso para o compositor. É
neste período que Cage considera aventurar-se em Nova York e a trabalhar na criação de
efeitos sonoros para rádio e cinema. Cage desejava mudar-se para Nova York, pois achava a
metrópole culturalmente estimulante com a chegada dos artistas europeus Piet Mondrian
(1872 – 1944), Jackson Pollock (1912 – 1956), Marcel Duchamp (1887 – 1968), entre outros,
que haviam se refugiado em Nova York durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945).
Mas, segundo Costa, “as coisas não saíram como o esperado, e ele e sua esposa Xenia
passaram enormes dificuldades financeiras a partir de então” (2004, p. 28). No início de sua
estadia em Nova York, sem muitos recursos financeiros, o compositor teve dificuldades em
estabelecer um novo grupo de percussão. Diante deste impasse, ele resolveu voltar a compor e
atuar no acompanhamento de classes de dança com o piano preparado. O recurso-instrumento
mostrou-se um meio pelo qual Cage pudesse continuar residindo em Nova York.
48
No final dos anos de 1940 e no início de 1950, Cage compõe suas peças mais
relevantes para piano preparado, Sonatas and Interludes (1946-1948),36 Concerto for
Prepared Piano and Chamber Orchestra (1951),37 Two Pastorales (1951)38 e Music of
Change (1951).39 A segunda peça, Concerto for Prepared Piano anda Chamber Orchestra, é
constituída por três movimentos, sendo o último submetido a operações do acaso através do I
Ching - Livro das Mutações. Em Two Pastorales “(...) o intérprete é convidado a tocar apitos
e assobiar junto com os sons de piano normal e preparado” (COSTA, 2004, p. 36). Já Music
of Change é completamente sujeita ao acaso.
Após Music of Change, influenciado pela filosofia zen-budista, Cage deixa de
escrever para piano preparado e concentra-se em “(...) desistir do desejo de controlar o som,
limpar a mente de música e dispor-se a descobrir jeitos de deixar que os sons sejam eles
mesmos (...)” (CAGE, 1957, p. 10, apud HELLER, 2008, p. 51). Sobre o caráter dos sons o
compositor assinala,
Agora, antes de estudar música, homens são homens e sons são sons. Enquanto se
estuda música as coisas não são claras. Depois de estudar música homens são
homens e sons são sons. Isto é: No começo, a gente pode ouvir um som e dizer
imediatamente que não é um ser humano ou algo que se deva olhar; é agudo ou
grave – tem um certo timbre e potência, dura um certo lapso de tempo e a gente
pode ouvi-lo. A gente depois decide se é agradável ou não, e gradativamente
desenvolve uma série de gostos e aversões. Enquanto se estuda música as coisas
ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos: Dó, Ré, Mi,
Fá, Sol, Lá, Si. Sustenidos e bemóis. Dois deles, mesmo separados por quatro ou
mesmo cinco oitavas, têm o mesmo símbolo. Se um som tiver a desgraça de não ter
um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejetado do sistema: é um ruído ou
não musical. Os sons privilegiados que se salvam são arranjados em modos e escalas
ou, hoje, em séries e se inicia um processo abstrato chamado composição. Isto é, um
compositor usa os sons para expressar uma ideia ou sentimento ou uma integração
de ambos. No caso de uma ideia musical, dizem que os sons em si já não são
importantes; o que ‘conta’ é a relação entre eles. Na verdade essas relações são
geralmente bem simples: um cânon é como brincar de pegador. A fuga é um
brinquedo mais complicado; mas pode ser quebrada por um único som: digamos, de
uma sirene de bombeiro, ou de apito de um barco que passa. O máximo que
qualquer ideia musical consegue é mostrar quão inteligente foi o compositor que a
teve; e o modo mais fácil de descobrir o que era a ideia musical, é você se colocar
num tal estado de confusão que você passe a pensar que um som não é algo para se
ouvir mas, sim algo para se olhar. No caso de um sentimento musical, nova-mente
os sons não são importantes, e o que conta é a expressão. Mas o máximo que se
pode conseguir com a expressão mu-sical de sentimentos é mostrar como era e-
motivo o compositor que a teve. Se alguém quiser ter uma ideia de quão emotivo um
compositor demons-trou ser, ele tem de se confundir tão completamente quanto o
compositor o fez e imaginar sons não são sons mas são Beethoven e que homens não
36
Sonatas and Interludes (1946-1948) – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=26K9f8n6ymU.
Acesso em: 22 jun. 2017
37
Concerto for Prepared Piano and Chamber Orchestra (1951) – Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=olIPcZIVPIU&t=25s>. Acesso em: 04 dez. 2016.
38
Two Pastorales (1951) – Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=7P28XLs0mTc>. Acesso em:
04 dez. 2016.
39
Music of Change (1951) – Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eAjKD12RkEY>. Acesso em:
04 dez. 2016.
49
são homens, mas sons. Qualquer criança nos dirá: simplesmente esse não é o caso.
Um homem é um homem e um som é um som. Para chegar a isso, a gente tem de
dar um paradeiro ao estudo da música. Isto é a gente tem de eliminar todos os
pensamentos que separam a música da vida. Há todo o tempo do mundo para estudar
música, para viver não há quase tempo nenhum. Porque viver ocorre a cada instante
e esse instante estará sempre mudando. A coisa mais sensata a fazer é abrir os
ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente an-tes que o pensamento tenha a
chance de transfor-má-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico. Sons são sons e
homens são homens, mas agora nossos pés estão um pouco fora do chão (CAGE,
2013, p. 96 - 98).
Através da citação acima é possível intuir que os sons, para Cage, eram a expressão da própria
vida. Ele desejava ouvi-los e experimentá-los como eles eram e não como se convencionaram
por meio de símbolos musicais.
Figura 9 – John Cage (1955)
Fonte: http://johncage.org/beta/blog.html
É também neste período que o compositor, inicia operações com o acaso e com a
música indeterminada. A terminologia acaso é usada para designar procedimentos que
utilizam sorteios, jogos de moedas e cartas para estruturar a composição e conservar a ideia
musical na partitura. Já os termos indeterminado e aleatório40 são empregados quando o
intérprete é convidado a intervir na peça, “(...) ao intérprete é legado um nível de liberdade
para re-modelar o resultado sonoro e que mesmo o compositor deveria surpreender-se com
ele” (COSTA, 2009, p. 21). De acordo com Cage,
Acaso refere-se ao uso de certos procedimentos randômicos no ato de composição
(...) indeterminação, por outro lado, refere-se à possibilidade de uma peça ser tocada
de modos substancialmente diferentes – ou seja, a obra existe de uma forma tal que
ao interprete é dada uma variedade de maneiras de tocá-la (ROSSI e BARBOSA,
2015, n.p, apud PRITCHETT (1999).
40
Enquanto os norte-americanos utilizavam o termo indeterminado, os europeus preferiam a utilização da
terminologia aleatória.
50
Por vezes, 4’33’’ é compreendida como uma obra conceitual, mas a partir da fala
de Cage pode-se intuir que o compositor propõe uma experiência indissociada da vida e da
realização material da arte. Cage acreditava que ofício do compositor havia mudado, “um
compositor, que não mais organiza sons numa peça, simplesmente facilita um
empreendimento” (2013, p. 68). Assim, se e a audiência tinha ouvidos, então teria de exercitá-
los, nas palavras dele: “qual o x do problema, no que concerne ao ouvinte? É o seguinte: ele
tem ouvidos; deixe-o usá-los” (2013, p. 30). Esta era a proposta da arte de Cage, compartilhar
experiências,
A Arte, em lugar de ser um objeto feito por uma pessoa, é um processo
desencadeado por um grupo de pessoas. A Arte está socializada. Não é alguém
dizendo alguma coisa, mas pessoas fazendo coisas, dando a todos (inclusive àqueles
41
O acaso tornou-se uma força propulsora no trabalho de Cage, não apenas em sua música, mas também em sua
obra literária.
51
envolvidos) a oportunidade de ter experiências que de outra forma não teriam tido
(CAGE, 2013, p. 151).
Ainda no início dos anos 50, Cage admite o silêncio, não mais como um valor
negativo, mas como um recurso compositivo, expressivo e reflexivo. A constatação se deu na
Universidade de Harvard, a partir se sua experiência em uma câmera a prova de som, chama
de câmera anecóica. Durante o teste o compositor afirma ter escutado dois sons, um agudo e
um grave - o som agudo corresponde ao sistema nervoso e o grave corresponde à circulação e
aos batimentos cardíacos. Conforme Cage,
Eu pensei, honesta e ingenuamente, que existia de fato um silêncio (...) por mais que
tentemos fazer silêncio, não o podemos: não há silêncio que não esteja
grávido/prenhe de som; nenhum som teme o silêncio que o extingue, e não há
silêncio que não esteja grávido de sons (HELLER, 2008, p. 20 apud Cage).
Assim, o silêncio é um som não intencional. Cage afirma que o silêncio atual, em quase todas
as partes do mundo, é o som do trânsito. Outro fator que culminou em 4’33’’ foi o
(...) acesso às telas inteiramente pretas ou inteiramente brancas de Rauschenberg
pintadas em 1949. Rauschenberg afirmava na ocasião que uma tela não seria nunca
totalmente esvaziada, atraindo para ela no mínimo a poeira e os resíduos que se
encontravam soltos na atmosfera. Ao ter contato com tais obras Cage percebeu que
poderia adotar uma solução análoga na área da música, e 4'33" aparece como um
nítido reflexo da mesma idéia fundamental (BOSSUEUR, 2000, s.d., apud
LAUREIRO, 2013, p. 226).
happening que me parece regido por uma intenção, vou-me embora dizendo que aquilo não
me interessa” (1968, n.p, apud BOSSEUR, D., BOSSUER, J., 1990, p. 162).
O primeiro evento, que se têm notícia ocorreu em 1952 no Black Mountain
College, Carolina do Norte, sob o título de Untitled Event. Cage e seus parceiros propuseram
intervenções ao vivo, congregando múltiplas linguagens artísticas. A seguir, Heller descreve a
performance,
(...) Cage, do alto de uma escada, lia em voz alta sua Conferência na Juilliard,
enquanto em outra escada M. C. Richards e Charles Olson liam poemas; suspensos
desde o teto encontravam-se quatro quadros branco sobre-branco de Robert
Rauschenberg, enquanto em uma parede se projetavam slides e um filme de
Nicholas Cernovitch; Rauschenberg operava um toca-disco, produzindo ruídos ao
raspar a agulha sobre o vinil, Merce Cunningham dançava (seguido,
inadvertidamente, por um cão) e David Tudor tocava piano (2008, p. 21-22).
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/181269953722724885/
Por esta época, ele havia atraído em Nova York um grupo de colegas com
preocupações afins, entre eles o pianista David Tudor e os compositores Morton
Feldman (1926), Earle Brown (1926) e Christian Wolff (1934). O grupo ligou-se
também aos artistas plásticos estabelecidos na cidade, como Jackson Pollock e
Alexander Calder (...) (GRIFFITHS, 2011, p. 160).
A concepção de forma móbil em música não é nova e nem uma característica exclusiva do
século XX, Griffiths assinala que,
Até mesmo o manejo do acaso desenvolvido por Cage tinha precedentes nas
publicações do final do século XVIII que forneciam materiais musicais a serem
transformados em “composições” segundo os resultados do jogo de dados. Mas a
introdução do acaso em meados do século XX foi diferente em escala e importância.
No caso extremo de Cage, levou á completa subversão do conceito ocidental de peça
musical como obra de arte permanente, e mesmo à negação da necessidade de
compor. “A música que prefiro”, disse Cage, “à minha própria e à de qualquer outro,
é a que ouvimos quando nos mantemos em absoluto silêncio” (2011, p. 164).
Deste modo, analisar a trajetória de John Cage nos ajudou a pensar na experiência
musical derivada de uma relação implícita com a experiência cotidiana e no tempo. Suas
intervenções parecem ser respostas às demandas da lida com a arte. Importante salientar que,
para Cage, a música parecia estar diretamente relacionada à execução, à performance e ao
sentindo prático. Em entrevista a Duckworth, Cage esclarece que a maioria de suas obras
foram encomendadas ou elaboradas para algumas de suas conferências. Na perspectiva do
compositor,
Não gosto quando alguém escreve grandes peças para orquestra quando não foi
comissionado por uma orquestra. A razão pela qual eu não gosto disso é que meu
primeiro professor, Adolph Weiss, tinha uma pilha de músicas que nunca haviam
sido tocadas e ele acabou se tornando uma figura socialmente amargurada. Ele se
tornou um exemplo para mim do que não devo me tornar. Não creio que haja uma
peça minha que não tenha sido tocada (DUCKWORTH, 1987, p.26, apud COSTA,
2004, p. 28).
Ao que parece, Cage não postulava compor gerando excedentes. Mas, respondia a um sentido,
uma interação.
54
Por volta dos anos de 1950, quando inicia suas investigações na filosofia zen-
budista, no acaso e na música indeterminada, o compositor excede a percepção dos sistemas
musicais como gramática, se atendo ao som como uma experiência sensível, estética.
Cuando yo hablo sobre música, termina pareciendole a la gente de que estoy
hablando sobre el sonido de que no significa nada, de que no es “interno” sino más
bien “externo” y ellos diece, éstas personas que entendieron eso finalmente, dicen,
¿te referis a que son solamente sonidos? Pensando... que para algo el ser solo um
sonido fuera algo inútil. Mientras, yo amo a lós sonidos tal y como son. Y no tengo
necessidad alguna, de que sean nada más de ló que son. No quieron que sean...
“psicológicos” no quiero que um sonido pretenda que es um balde, o de que es...
presidente o de que está enamorado de outro sonido. (risas) Sólo quiero que sea um
42
sonido
Diante da vontade de Cage em compreender os sons como eles são e não como códigos
musicais, ou psicológicos, ou que representem um compositor, como licenciada em música
me questiono, será que isso não revela que as abordagens de ensino musical pensam no fazer
artístico como uma atividade excessivamente conduzida, deixando de lado a escuta, a
improvisação, a experimentação e o acaso e a matéria ‘som’ como algo pleno de
possibilidades, para além dos sistemas?
É relevante ressaltar que, por volta da década de 1960, Cage compôs uma peça
para televisão e um performer, evidenciando que suas intervenções não estavam restritas
apenas nas academias e nas escolas de artes, aos espaços destinados a performance, mas
ocupavam as ruas, a televisão e o rádio.43
42
Trecho da entrevista de John Cage, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Hj7rq-gEzgo>.
Acesso: 19 abr. 2017.
43
Cage apresenta Water Walk (1959) em um famoso TV Show. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=SSulycqZH-U>. Acesso em: 08 jul. 2017
55
Cage também tem consciência que a arte interage com a política, mas, ao mesmo
tempo, o compositor não a torna o tema de suas intervenções, “(...) porque embora eu não
esteja envolvido na política, tenho enquanto artista uma certa intuição do conteúdo político da
arte, o qual não inclui a política” (CAGE, 1968, n.p, apud BOSSEUR, D., BOSSUER, J.,
1990, p. 163).
Em síntese, pode-se intuir que John Cage personifica o homem do mundo e das
multidões apontado por Charles Baudelaire. Um homem cosmopolita, curioso, que vive no
presente e que “se interessa pelo mundo inteiro”. Sobre as aquarelas de Constanti Guys,
Baudelaire comenta que eram imagens extraídas a partir de suas viagens, afirmando que Guys
traduzia no papel as imagens “que lhe povoavam o cérebro”. De modo análogo, pode-se
entender a obra de John Cage, como respostas as demandas de seu tempo, como intervenções
que partiam da experiência cotidiana e a escuta na captura do presente.
56
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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