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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ


CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM MÚSICA

LARYCE RHACHEL MARTINS SANTOS

JOHN CAGE (1912 – 1992): O ARTISTA, A EXPERIÊNCIA E A OBRA SOB A


PERSPECTIVA DA MODERNIDADE DE BAUDELAIRE

FORTALEZA – CEARÁ
2017
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LARYCE RHACHEL MARTINS SANTOS

JOHN CAGE (1912 – 1992): O ARTISTA, A EXPERIÊNCIA E A OBRA SOB A


PERSPECTIVA DA MODERNIDADE DE BAUDELAIRE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Licenciatura em Música do
Centro de Humanidades da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial para
a obtenção do grau de licenciada em Música.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Lucila Pereira da Silva
Basile

FORTALEZA – CEARÁ
2017
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AGRADECIMENTOS

À Deus, pelo dom da vida.


Aos meus amados pais, pelo apoio incondicional.
À minha maravilhosa orientadora, professora Lu Basile, pelo entusiasmo e generosidade ao
me apresentar os caminhos da pesquisa. Pelo tempo que me dedicou e, acima de tudo, por
partilhar o sensível.
À banca examinadora, professores Manoel Fonsêca de Alencar e Weber dos Anjos, pela
disponibilidade e pelas novas elucidações, que tenho certeza que servirão para o
amadurecimento deste trabalho.
Aos amigos, Sarah Catrib, Yanaêh Vasconcelos, Kellen Raissa, Karine Teles, Israel de
Oliveira, Paulo Maia, Washington Soares e Rafael Machado pela amizade e cumplicidade.
Aos colegas e professores do Curso de Música.
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RESUMO

A música das vanguardas contemplou uma multiplicidade de recursos expressivos,


assimilando também o acaso e o ruído como elementos compositivos. Neste sentido, as
vanguardas do início do século XX, na Europa e na América (Estados Unidos), tencionaram
reintegrar a arte à vida, ampliando os suportes e utilizando-se da experiência cotidiana. De
acordo com a análise de Jacques Rancière (2004; 2005), ao mesmo tempo em que as
vanguardas propuseram restabelecer a arte com a experiência comum, elas tornaram-se
formas autônomas da vida e passaram a conceber bulas e manifestos para elucidar os
objetivos das intervenções. Nesta perspectiva, o estudo tem como objetivo compreender a
relação da trajetória de John Cage (1912 – 1992) e de sua obra musical, entre as décadas de
1940 e 1950, buscando entender o processo compositivo e o artista de múltiplos focos na
modernidade, capturado na aproximação com a percepção de Charles Baudelaire (1996). O
trabalho foi dividido em três capítulos, sendo o primeiro destinado a compreender, no
contexto da modernidade, a emergência das vanguardas; o segundo concentra-se em
apresentar como a arte foi entendida ao longo da história, em explicitar o paradigma das
vanguardas, a partir da proposição de Rancière, e, evidenciar as principais tendências da
música do século XX no contexto no qual emerge John Cage; e, por fim, o terceiro capítulo
foca-se em analisar a trajetória e a obra musical de Cage.

Palavras-chave: John Cage. Modernidade. Vanguarda.


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ABSTRACT

The music of the vanguards contemplated a multiplicity of expressive resources, assimilating


the random and noise as compositional elements. In this regard, the vanguards of the early
twentieth century, in Europe and in the United States, intended to reintegrate the art into life,
expanding the supports and using everyday experience. According to the analysis of Jacques
Rancière (2004; 2005), at the same time that the vanguards proposed to re-establish the art
with a common experience, they have become autonomous forms of life and they began to
design leaflets and manifests to elucidate the objectives of the interventions. In this
perspective, the study has as objective to understand the relation of the trajectory of John
Cage (1912-1992) and his musical work, between the 40's and 50's, seeking to understand the
compositional process and the artist of multiple focuses in the modernity, captured in
approaching with the perception of Charles Baudelaire (1996). The work was divided into
three chapters, the first aimed to understand in the context of modernity, the emergence of
vanguards; the second focuses on presenting how the art was understood throughout history,
making explicit the paradigm of the vanguards from the proposition of Rancière, to evidence
the main trends of twentieth-century music in the context In which emerges John Cage; and
finally, the third chapter focuses on analyzing the trajectory and the musical work of Cage.

Keywords: John Cage. Vanguards. Modernity.


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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Richard Hamilton, O que exatamente torna os lares de hoje tão


diferentes, tão atraentes?(1956)......................................................... 20

Figura 2 - Trecho de partitura gráfica Fontana Mix (1958) do compositor


John Cage (1912 – 1992).................................................................... 22

Figura 3 - Juno Ludovisi..................................................................................... 24

Figura 4 - Pierre-Auguste Renoir, O baile de moulin de La galette,


1876..................................................................................................... 26

Figura 5 - À esquerda, escultura de Umberto Boccioni, Formas únicas de


continuidade no espaço (1913). À direita, Contrarrelevo de Canto
(1914 - 15) de Vladimir Tatlin.......................................................... 27

Figura 6 - Wassily Kandinsky, Composição VII (1913).................................... 29

Figura 7 - Trecho da partitura de Prélude à l’Aprés-Midi d’un Faune,


Debussy (1894)................................................................................... 32

Figura 8 - John Cage preparando o piano........................................................ 47

Figura 9 - John Cage (1955)................................................................................ 49

Figura 10 - John Cage, Merce Cunningham e Robert Rauschenberg.............. 52

Figura 11 - Trecho da partitura Water Walk (1959), apresentada em um TV


Show em Janeiro de 1960.................................................................. 54
8

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 9

2 MODERNIDADE.…………………………………...……………………….. 13

2.1 A MODERNDIDADE DE BAUDELAIRE........................................................ 14

2.2 “SEM DÚVIDA, É EXECELENTE ESTUDAR OS ANTIGOS MESTRES


PARA APRENDER A”... PENSAR, E SER, E AGIR........................................ 17

3 VANGUARDA: “EU SINTO UM GOSTO (UMA COISA ESTRANHA,


UM NEGÓCIO ESQUISITO) MEIO AMARGO DO FUTURO”................ 23

3.1 REGIMES ESTÉTICOS DA ARTE.................................................................... 23

3.2 PARADOXO DAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS DO SÉCULO XX........... 25

3.3 “O SÉCULO DO AVIÃO MERECE SUA PRÓPRIA MÚSICA”: PINCIPAIS


TENDÊNCIAS DA MÚSICA DO SÉCULO XX............................................... 31

4 “ASSIM ELE VAI, CORRE, PROCURA. O QUÊ?”: O ARTISTA NA


MODERNIDADE............................................................................................... 42

4.1 “O ARTISTA, HOMEM DO MUNDO, HOMEM DAS MULTIDÕES E


CRIANÇA”.......................................................................................................... 42

4.2 JOHN CAGE: O HOMEM DO MUNDO E DAS MULTIDÕES....................... 43

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.………………………………………………... 56

REFERÊNCIAS………………………………………………………………. 58
9

1 INTRODUÇÃO

4’33’’.1 A peça quatro minutos e trinta e três segundos (4’33’’), do compositor


norte-americano John Cage, foi o meu primeiro contato com a música de vanguarda, e, foi um
encontro ao acaso. No início da minha graduação, transitando pelos corredores do bloco de
música, ouvi um trecho de uma conversa que afirmava que “4’33’’ era uma música
silenciosa”. Fiquei intrigada, afinal entendia música e silêncio como parâmetros opostos,
música sons e silêncio ausência. Pesquisando sobre a obra, cheguei a conclusão que 4’33’’
não se tratava de silêncio, mas de escuta, de abrir os ouvidos para apreender os sons do
mundo e que todo silêncio é “grávido de sons”.
Ao ampliar os estudos em torno da música de vanguarda, percebi um cenário
repleto de aventura, provocações e tensões. Assim, esperava que ao longo do curso, nas
disciplinas de história da música, harmonia, percepção e prática de conjunto, pudesse
aprofundar os conhecimentos sobre a música das vanguardas – O que explicaria uma música
como 4’33’’? O que explica sua emergência? O que os compositores de vanguarda
pretendiam com suas intervenções? O que podemos aprender com elas? - Sobretudo, senti
falta de experimentá-las, vivenciá-las.
A música ocidental dos séculos XVII ao XIX era baseada, predominantemente,
no sistema tonal, no entanto, no século XX emerge uma multiplicidade de novos recursos
expressivos. Os sistemas passam a ser organizados em séries, texturas e blocos, assimilando o
acaso e o ruído como elementos compositivos e incorporando os sons das novas metrópoles.
A experiência musical não seria enriquecida se estivesse familiarizada e tirasse proveito dos
debates e a expansão de perspectivas que foram colocadas pela música do século XX? Em
caso afirmativo, por que essa música não está no cotidiano, sequer da maioria dos graduando
em música?
Sobre a diversidade da música do século XX o compositor russo, Ígor Stravinski
(1882 – 1971), fez a seguinte análise,
Acontece que a era contemporânea nos oferece o exemplo de uma cultura musical
que vai perdendo dia a dia o sentido da continuidade e o gosto por uma linguagem
comum. O capricho individual e a anarquia intelectual, que tendem a controlar o
mundo em que vivemos, isolam o artista de seus companheiros de ofício e o
condenam a aparecer como um monstro de olhos do público; um monstro de
originalidade, inventor de sua própria linguagem, de seu próprio vocabulário, do
instrumental de sua arte. O uso de materiais já utilizados e de formas estabelecidas
lhe é, em geral, proibido. E assim ele chega ao ponto de falar um idioma sem relação

1
4’33’’ (1952) de John Cage (1912 – 1992), ao piano David Tudor (1926 – 1996). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=HypmW4Yd7SY>. Acesso em: 07 abr. 2017.
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com o mundo que irá ouvi-lo. Sua arte torna-se realmente única, no sentido em que é
incomunicável, fechada por todos os lados. O bloco errático já não é uma
curiosidade que funciona como exceção; passa a ser o único modelo oferecido aos
neófitos para emulação. A aparição de uma série de tendências anárquicas,
incompatíveis e contraditórias no terreno da história corresponde a essa completa
ruptura com a tradição (1996, p. 72 – 73).

Em linhas gerais, Stravinski pontua que, por conta da grande diversidade de “tendências
anárquicas”, a música moderna causou estranhamento e incompreensão no ouvinte.
Complementando a abordagem de Stravinski, o filósofo francês, Jacques Rancière
(2005), sugere que
A noção de vanguarda define o tipo de tema que convém à visão modernista e
próprio a conectar, segundo essa visão, o estético e o político. Seu sucesso está
menos na conexão cômoda que produz entre a ideia artística da novidade e a ideia da
direção política do movimento, do que na conexão mais secreta que opera entre duas
ideias de “vanguarda” (2005, p. 43).

Nesta perspectiva, a noção de vanguarda já emerge com uma postura política. Para o autor, o
termo vanguarda abriga duas concepções, uma artística que acredita na potência da arte
autônoma, e concerne a invenção das formas sensíveis e da novidade, afirmando sua
heterogeneidade; e uma política que acredita num programa, no pensamento sobre as formas
de visibilidade da arte e vincula-se entre a história e movimentos políticos, como por
exemplo, a arte dos regimes totalitários. As duas concepções são condicionadas a política e
ambas convergem ao acreditar na potência da arte como uma forma de emancipação da
consciência e por revogar a arte o reestabelecimento de uma comunidade ética, na qual é
possível a partilha do sensível. “É isso que a vanguarda “estética” trouxe a vanguarda
“política” ou que ela quis ou acreditou lhe trazer, transformando a política em programa total
de vida” (p. 43 – 44). Assim, pode-se entender que, mediante a análise de Rancière, algumas
vanguardas tornaram-se movimentos excessivamente politizados, como o construtivismo
russo, e outras distanciadas da experiência comum dos sujeitos, como o abstracionismo.
Diante desta questão, apresenta-se um paradoxo, ao mesmo tempo em que as
vanguardas do início do século XX, na Europa e na América (Estados Unidos), tencionaram
reintegrar a arte à vida, ampliando os suportes e utilizando-se de elementos imbricados no
cotidiano, os movimentos passaram a conceber bulas e manifestos para elucidar os objetivos
das intervenções, ou ainda, se afirmando por meio de uma radical autonomia. Neste sentido, a
questão central busca compreender a obra de John Cage no contexto das vanguardas. De que
forma este autor modula sua obra considerando-o sob a perspectiva estética e das rupturas?
Ao que parece, enquanto a maior parte dos compositores do século XX estavam
preocupados em sistematizar um novo código musical, forte o suficiente para substituir o
11

sistema diatônico, John Cage desponta como uma figura multifacetada, que articula sua
experiência com base nas questões cotidianas. Seus interesses não residiam apenas na música,
mas na interdisciplinaridade entre as artes. Nesta perspectiva, o objetivo do estudo é
compreender a relação da trajetória de John Cage e de sua obra musical, entre as décadas de
1940 e 1950, buscando entender o processo compositivo e o artista de múltiplos focos na
modernidade, capturado na aproximação com a percepção de Charles Baudelaire (1996).
Como subquestões, Por que uma música emerge do silêncio? O que explica essas escolhas?
O recorte entre as décadas de 1940 e 1950 justifica-se a partir das referências
bibliográficas encontradas. Há poucos estudos que apresentem a trajetória do compositor
antes de 1940. É por volta desta mesma época que Cage passa a ter aulas com os
compositores Henry Crowell, Adolph Weiss e Arnold Schoenberg. No intervalo de 1940 e
1950 sua obra musical torna-se mais relevante – é o período das experimentações com o piano
preparado, com o acaso e com a música indeterminada. Ainda nos anos de 1950, envolvido
com a filosofia oriental, o zen-budismo e o I Ching, Cage dedica-se a propostas de arte
interdisciplinares. Deste modo, depois de 1960, torna-se inviável pensar em sua obra apartada
das demais linguagens artísticas.
Dentre as pesquisas consultadas, dissertações e teses, destacam-se os estudos de
COSTA (2004; 2009), POZZO (2007), HELLER (2008) e LOUREIRO (2013). De modo
geral, Costa (2004) tem como foco o estudo do piano preparado de John Cage. Costa (2009) e
Pozzo investigam as formas abertas e o acaso na música. Heller dedica-se ao silêncio da obra
musical e literária de Cage, e Loureiro investiga a técnica e os processos criativos do século
XX na música e nas artes visuais.
Como fontes bibliográficas, utilizou-se um livro de ensaios e conferências de John
Cage, publicado originalmente em 1963, intitulado, De segunda a um ano (2013). E um outro
livro de entrevistas de Cage com Joan Retallack, Musicage: palavras, publicado no Brasil em
2015. Recorreu-se também a escuta das músicas e a apreciação de vídeos e entrevistas. No
entanto, por conta das limitações da pesquisa, este trabalho não apresenta nenhuma análise
musical de suas obras.
A metodologia baseou-se em um estudo de caso da trajetória de John Cage,
relacionando no contexto de sua produção artística e aproximando do entendimento de
Baudelaire, com foco nos aspectos: o artista na modernidade; o artista de múltiplos interesses;
a escuta do presente; a arte imbricada na experiência cotidiana.
Buscando pelos referenciais, tomei grande gosto pela discussão musicológica e
esta pesquisa situa-se então em um campo interdisciplinar entre a estética e a história. Adotei
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a modernidade como uma categoria histórica para entender como as vanguardas emergiram e
quem é o artista na modernidade, através da leitura do poeta francês, Charles Baudelaire.
Para isso, o estudo dividiu-se em três capítulos. O capítulo dois foi subdividido
em dois tópicos; o primeiro tópico busca entender, no contexto da modernidade, a emergência
das vanguardas, apoiando-se na captura de Charles Baudelaire, um dos primeiros a intuir o
conjunto de modificações e instabilidades que influenciam as artes a partir do século XIX. O
segundo tópico analisa as proposições de Baudelaire com a ajuda dos estudos de Marshall
Berman (1986) e de Nicolau Sevcenko (2001).
O terceiro capítulo, subdividido em três seções, concentra-se em compreender as
vanguardas. O primeiro tópico aborda como a arte foi compreendida ao longo da história,
fundamentada na análise do filósofo francês Jacques Rancière (2004; 2005). Mediante as
investigações de Rancière, pode-se verificar um paradoxo nas vanguardas europeias e norte-
americanas do século XX. Neste sentido, a segunda seção buscou-se evidenciar este paradoxo
por meio de algumas tendências das artes plásticas. O último tópico explicita as principais
tendências da música do século XX, com o objetivo de compreender as vanguardas na
música, assim como o meio onde emergiu John Cage.
Por fim, dividido em dois tópicos, o capítulo quatro foca-se no artista, em
compreendê-lo em face o imperativo histórico. Assim, o primeiro tópico descreve as
características do artista moderno, partindo da proposição de Baudelaire. A segunda seção
propõe uma leitura da trajetória de John Cage a partir da captura de Baudelaire.
13

2 MODERNIDADE

Circunscrever a modernidade é um exercício complexo, pois o termo abrange


diversas variantes, além de perpassar um longo período histórico, iniciado no século XVI.
Com o propósito de evidenciar esta multiplicidade de pensamento, recorremos às concepções
sobre modernidade do poeta francês Charles Baudelaire e do filósofo norte-americano
Marshall Berman - que, embora Berman seja um crítico de Baudelaire e suas visões sejam
distintas no tempo, alguns aspectos coincidem-se, tonando-se complementares para a
compreensão da modernidade. Para o primeiro autor, “a modernidade é o transitório, o
efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”
(BAUDELAIRE, 1986, p. 25). Já Berman intui que,
Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor — mas ao
mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que
somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras
geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse
sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma
unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num
turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como
disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar” (1986, p. 15).

Marshall Berman, ainda com o objetivo de compreender a modernidade dos


séculos XVI ao XX, divide este período em três fases. A primeira fase corresponde do século
XVI até o final do século XVIII, de acordo com o autor, nestes séculos, os sujeitos começam
a vivenciar a vida moderna, mas não sabem ao certo descrever ou nomear os acontecimentos,
eles “têm pouco ou nenhum senso de um público ou comunidade moderna, dentro da qual
seus julgamentos e esperanças pudessem ser compartilhados” (1986, p. 16). A segunda fase
inicia-se por volta de 1790, neste momento as pessoas passam a conviver com os impactos da
modernização trazidos pela Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que pensam e
comportam-se em um mundo que ainda não é completamente moderno. “É dessa profunda
dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se
desdobra a ideia de modernismo e modernização” (1986, p. 16). Na terceira fase, que
compreende o século XX, o progresso e a revolução tecnológica envolve, praticamente, toda a
cultura ocidental. Em contrapartida, a concepção de modernidade fragmenta a experiência
humana, perdendo a habilidade de estruturar e dar sentido à vida.
A sistematização proposta por Berman, embora, facilite visualizar as diversas
modernidades, para a história, estabelecer estes recortes temporais limita a percepção dos
14

fatos e acontecimentos. O poeta e ensaísta Octavio Paz, nos oferece mais uma percepção
sobre a modernidade. O autor afirma que é a crítica que nos diferencia das demais
modernidades.
O que distingue nossa modernidade das modernidades de outras épocas não é a
celebração do novo e surpreendente, embora isso também conte, mas o fato de ser
uma ruptura: crítica do passado imediato, interrupção da continuidade. A arte
moderna não é apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma
(1984, p.20).

Diante do exposto, percebe-se que o termo abriga uma pluralidade de correntes e


paradoxos. Assim, o cerne deste capítulo é compreender a percepção da arte e a emergência
das vanguardas, na Europa e na América (Estados Unidos), no contexto da modernidade. O
segundo tópico do capítulo fundamenta-se nos estudos de Marshall Berman (1986), que
proporciona uma leitura crítica sobre a modernidade de Baudelaire, e do historiador brasileiro
Nicolau Sevcenko (2001), que ajuda a colocar os fatos no tempo.

2.1 A MODERNDIDADE DE BAUDELAIRE

De acordo com Berman (1986), alguns autores do século XX tendem a segmentar


a vida moderna em duas categorias distintas e apartadas, espiritual e material. A primeira
categoria situa a modernidade como um espírito que se manifesta nas artes, e a segunda
concepção abrangem os processos políticos, econômicos e sociais, localizados no âmbito da
modernização. Por vezes, estes processos são vistos de modo independentes, fragmentando a
experiência entre os sujeitos e o ambiente. Diferente dos autores do século XX, alguns
escritores do século XIX2 acreditavam que a modernidade é resultante da união das dimensões
espiritual e material, tal interpretação permitiu maior profundidade em apreender a vida
moderna. Neste sentido, recorremos à proposição de Charles Baudelaire (1821 - 1867), que
foi um dos primeiros a descrever a essência da vida e da arte moderna, assim como o papel do
artista em meio a este cenário.
Baudelaire vivia em uma Paris marcada por transformações introduzidas pela
Revolução Científico-Tecnológica de fins do século XIX. Neste contexto, o escritor se
deparou com a intensificação das atividades industriais e urbanas, aperfeiçoamento das
tecnologias de transporte e comunição, como também a instauração de uma ordem burguesa e
capitalista. Mediante estas alterações na vida e nas interações sociais, na paisagem visual e

2
Os filósofos Soren Kierkegaard, Walt Whitman e Carl Max, os poetas Arthur Rimbaud, Herman Melville,
Charles Baudelaire e Fiódor Dostoievski são alguns exemplos de modernistas de segunda fase – século XIX.
15

sonora das cidades, concomitantemente, no campo artístico, emergem posturas reativas de


apego e imersão no passado.
Ressalta-se que neste período cresceram o número de museus públicos e
instituições legais para protegerem e conservarem os patrimônios históricos; também foram
criados os conservatórios com o objetivo de preservar a tradição e a literatura musical. Sobre
a música do século XIX, Milan Kundera faz a seguinte afirmação,
(...) até o século XIX, a sociedade vivia quase exclusivamente como a música de sua
própria época. Esta não tinha contato vivo com o passado musical: mesmo que os
músicos tivessem estudado (raramente) a música das épocas precedentes, não
tinham o hábito de executá-la em público. É durante o século XIX que a música do
passado começa a reviver ao lado da música contemporânea e a tomar
progressivamente mais e mais espaço, a tal ponto que no século XX a relação entre o
presente e o passado se inverte: escutamos a música de épocas antigas muito mais do
que a música contemporânea que, hoje, acabou abandonando quase por completo as
salas de concerto (1994, p. 55).

Ao que parece, os sujeitos do século XIX viviam em uma atmosfera de constante


modernização, enquanto as artes retratavam as concepções, sentimentos e gestos de outra
época. Baudelaire evidência este anacronismo na pintura da seguinte forma,
Há neste mundo, e mesmo no mundo dos artistas, pessoas que vão ao Museu do
Louvre, passam rapidamente — sem se dignar a olhar — diante de um número
imenso de quadros muito interessantes embora de segunda categoria e plantam-se
sonhadoras diante de um Ticiano ou de um Rafael, um desses que foram mais
popularizados pela gravura; depois todas saem satisfeitas, mais de uma dizendo
consigo: “Conheço o meu museu” (1996, p. 7).

Baudelaire admite o valor histórico destas representações, mas o escritor estava


mais interessado em representar o tempo presente,
Ora, hoje quero me ater estritamente à pintura de costumes do presente. O passado é
interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem
constituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico. O
mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representação do
presente deve-se não apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à
sua qualidade essencial de presente (BAUDELAIRE, 1996, p. 8).

Ele questiona o mergulho dos pintores modernistas na tradição, pontuando que “se
lançarmos um olhar a nossas exposições de quadros modernos, ficaremos espantados com a
tendência geral dos artistas para vestirem todas as personagens com indumentária antiga”
(BAUDELAIRE, 1986, p. 24-25). Em geral, a maioria dos personagens representados seguia
à moda da Idade Média, do Renascimento e do Oriente. Para o escritor, é admirável examinar
os antigos mestres para aprender a pintar, mas o centro do estudo deveria estar em apreender o
caráter da beleza atual.
Ai daquele que estuda no antigo outra coisa que não a arte pura, a lógica e o método
geral. De tanto se enfronhar nele, perde a memória do presente; abdica do valor dos
privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem
16

da inscrição que o tempo imprime às nossas sensações (BAUDELAIRE, 1996, p.


28).

Em relação ao belo, Baudelaire o entende de duas maneiras, um elemento eterno e


um elemento relativo. “O belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja
quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que
será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão”
(BAUDELAIRE, 1986, p. 10). O pesquisador Dilmar Miranda explica a afirmação de
Baudelaire da seguinte forma,
Segundo a noção baudelairiana, o belo é constituído por dois componentes, que se
interpenetram, criando ambivalentemente sua configuração histórica. Um dos
componentes é eterno, imutável; o outro é relativo, mutável, concernente a uma
determinada época e a todas as especificidades que caracterizam tal época. A parte
eterna só pode ser expressa mediada pelo elemento variável, que simultaneamente
oculta e expressa o eterno. Só através dos traços que identificam uma época é que a
idéia-forma do Belo, enquanto instância eterna, deve se efetivar, nunca por si
mesma, mas envolta nas vestes que identificam uma determinada época. Daí
Baudelaire afirmar que cada época possui sua própria beleza e que o belo sempre
encontra satisfação na epocalidade inscrita na formalização estética do momento de
sua representação (s.d., p. 82).

Ou seja, a beleza deveria estar concatenada com o tempo presente do artista. A


crítica de Baudelaire reside no fato de alguns artistas negligenciarem a apreensão da beleza
atual, procurando-a no passado. Tal atitude resultava em uma produção artística desprovida de
significado e desconectada com a experiência e o momento histórico.
Nesta perspectiva, para Baudelaire, o termo moderno remete a concepção do
presente. Nas palavras do autor, “A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a
metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável” (BAUDELAIRE, 1996, p. 25).
Baudelaire sublinha que houve uma modernidade para cada artista antigo, desde que
identificassem os costumes e gestos de sua própria época. Assim, um David,3 por exemplo,
foi eternizado por sua sensibilidade em apreender o presente, o transitório e o efêmero.
Além de presumir que o artista moderno deveria nutrir-se da vida e das paisagens
urbanas, na modernidade de Baudelaire emerge a figura do flânuer.4 O flânuer é um amante e
observador das multidões, de seus gestos, gostos e comportamento,
No interior das multidões compactas desses novos lugares urbanos, constituídas de
homens do mundo dos negócios, pessoas do grand monde parisiense, donas de casa,
pintores, poetas e outros intelectuais e artistas de distintas naturezas,
desempregados, transeuntes anônimos de diversos tipos e procedências, em frenética
movimentação, encontra-se o flâneur, solitária personagem que, a um só tempo,
integrada e afastada das multidões citadinas, a tudo observa, devaneando em seu

3
Jacques-Louis David (1748 -1825) era um pintor francês representante do neoclassicismo.
4
Sobre a expressão, Dilmar Miranda, explica: “O termo flanância, palavra não dicionarizada, é uma tradução
bem livre de flânerie para significar o uso de sair perambulando pela cidade, sem destino, para “flertar” com o
mundo e a vida” (s.d., p.80).
17

pensar, deambulando pela cidade, com seu ritmo próprio. A flânerie torna-se uma
prática difundida do seio da moderna sociedade parisiense (MIRANDA, s.d., p. 7).

Em resumo das ideias apresentadas, o poema A uma passante, de Baudelaire,


sintetiza a noção de modernidade do autor, tal como o papel do artista moderno,
A uma passante5

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.


Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! — Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!


Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

A partir da leitura do poema é possível intuir que o flânuer materializa o papel do


artista moderno, aquele que vaga pelas ruas das grandes metrópoles buscando nos choques da
vida ordinária inspiração, apreendendo o instante, o efêmero e o transitório. Neste caso, o
próprio Baudelaire representa a figura do flânuer, ele se põe a observar ao em torno da rua,
ouvindo o seu “frenético alarido”, captando a beleza de uma mulher, de uma passante. Em
linhas gerais, a modernidade de Baudelaire trata-se de “tirar da moda o que esta pode conter
de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” (1996, p. 24), o encontro das
dimensões espiritual e material. Considerando tal percepção, como se comportam as artes a
partir desta modernidade?

2.2 “SEM DÚVIDA, É EXECELENTE ESTUDAR OS ANTIGOS MESTRES PARA


APRENDER A”... PENSAR, E SER, E AGIR.

Baudelaire afirma que é excelente estudar com os antigos mestres para aprender a
pintar.6 Em referência à modernidade, o que este antigo mestre tem a nos ensinar? Como suas
ideias influenciaram os escritores e artistas do século XX? Antes de nos aventurarmos a
5
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
Disponível em: <http://150.164.100.248/profs/sergioalcides/dados/arquivos/baudieflores.pdf>. Acesso em: 12
maio. 2017.
6
O poeta ressalta que é interessante aprender a pintar com antigos mestres, desde que o foco do estudo esteja em
apreender a essência do tempo presente. (BAUDELAIDE, 1986, p. 26).
18

encontrar esta resposta, cabe considerar alguns fatos do século XX que compuseram o cenário
para o surgimento das vanguardas artísticas.
O historiador brasileiro, Nicolau Sevcenko, enfatiza que na transição para o século
XX, “o mundo já era praticamente tal como o conhecemos” (2001, p. 15).7 Este século é
marcado pela intensificação, contínua e acelerada, das atividades tecnológicas. De acordo
com o autor, é possível dividir o século XX em duas fases,
Na primeira dessas fases, prevaleceu um padrão industrial que representava o
desdobramento das características introduzidas pela Revolução Científico-
Tecnológica de fins do século XIX (...). A segunda fase, iniciada após a [segunda]
guerra, foi marcada pela intensificação das mudanças – imprimindo á base
tecnológica um impacto revelado sobretudo pelo crescimento dos setores de
serviços, comunicações e informações -, o que a levou a ser caracterizada como
período pós-industrial. (2001, p. 24).

Tais mudanças tiveram reflexo em diversos aspectos da vida e da experiência


humana. Dentre estas mudanças estão: diversificação do mercado e potencialização do
sistema econômico, surgimento das indústrias – refinarias, siderúrgicas, usinas, dentre outras -
e aumento da demanda por mão de obra especializada. A mecanização das atividades
agrícolas e o crescimento das atividades industriais provocou um grande deslocamento da
população rural para as cidades, dando origem as metrópoles. Com o crescimento do número
de operários, os trabalhadores começaram a se organizar através de partidos políticos e
sindicatos, reivindicando melhores condições de trabalho da sociedade burguesa. As pautas
consistiam na redução da jornada de trabalho, férias, aumento salarial, plano de saúde.
Neste ponto, vale sublinhar que, a respeito da modernidade de Baudelaire,
Berman afirma que ao exaltar a vida nas cidades, Baudelaire não considerou as desigualdades
e dissonâncias das ruas parisienses. Para o filósofo Marshall Berman, as cidades modernas são
socialmente e espacialmente fragmentadas, “(...) pessoas aqui, tráfego ali; trabalho aqui,
moradias acolá; ricos aqui, pobres lá adiante; no meio, barreiras de grama e concreto (...)”
(1986, p. 162). Berman evidencia que, de acordo com Baudelaire, a vida moderna “(...) surge
como um grande show de moda, um sistema de aparições deslumbrantes, brilhantes fachadas,

7
Sobre a nossa modernidade Sevcenko comenta, “no curso de seus desdobramentos surgirão, apenas para se ter
uma breve ideia, os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação
elétrica e a ampla gama de utensílios eletrodomésticos, a fotografia, o cinema, a radiodifusão, a televisão, os
arranha-céus e seus elevadores, as escadas rolantes e os sistemas metroviários, os parques de diversões elétricas,
as rodas-gigante, as montanhas-russas, a seringa hipodérmica, a anestesia, a penicilina, o estetoscópio, o medidor
de pressão arterial, os processos de pasteurização e esterilização, os adubos artificiais, os vasos sanitários com
descarga automática e o papel higiênico, a escova de dentes e o dentifrício, o sabão em pó, os refrigerantes
gasosos, o fogão a gás, o aquecedor elétrico, o refrigerador e os sorvetes, as comidas enlatadas, as cervejas
engarrafadas, a Coca-Cola, a aspirina, o Sonrisal e, mencionada por último mas não menos importante, a caixa
registradora”. (1998, p. 9-10).
19

espetaculares triunfos de decoração e estilo” (1986, p. 133). É possível compreender a


afirmação de Berman neste trecho de O Pintor da Vida Moderna,
E ele sai!8 E observa fluir o rio da vitalidade, tão majestoso e brilhante. Admira a
eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão
providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as
paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas
pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos cavalos, a limpeza
reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o andar das mulheres ondulosas, as
belas crianças, felizes por viverem e estarem bem vestidas; resumindo, a vida
universal. Se uma moda, um corte de vestuário foi levemente transformado, se os
laços de fita e os cachos foram estronados pelas rosetas, se a mantilha se ampliou e o
coque desceu um pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saia alargada,
acreditem que a uma distância enorme seu olhar de águia já adivinhou. Um
regimento passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difundindo no ar dos bulevares
suas fanfarras sedutoras e diáfanas como a esperança; e eis que o olhar de G. já viu,
inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia dessa tropa. Arreios,
cintilações, música, olhares decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele
absorve simultaneamente; e em alguns minutos o poema que disso resulta estará
virtualmente composto. E sua alma vive com a alma desse regimento que marcha
como se fosse um único animal, altiva imagem da alegria na obediência!
(BAUDELAIRE, 1996, p.22).

Retornando a fala de Sevcenko, em consequência do aumento da população


urbana e da luta de melhores condições de trabalho, o historiador brasileiro destaca que
“formaram-se assim grandes contingentes com alguns recursos para gastar e algum tempo
livre” (2001, p. 73). É neste mesmo período que emerge a indústria do entretenimento.
Como a ópera, o teatro e os salões de belas-artes eram luxos reservados aos
abastados, alguns empresários vislumbraram a oportunidade de investir nas duas
formas baratas de lazer possibilitadas pelo desenvolvimento da eletricidade: o
cinema e os parques de diversões (2001, p. 73).

O cinema e os parques de diversões impactaram e excitaram os sentidos das


populações urbanas, gerando muitos lucros aos empreendedores. No cinema, predominou o
modelo norte-americano, histórias “(...) cada vez mais infantilizada, mais cheia de frinssons,
de vertigens, de correrias, tiros, bolas de fogo e finais felizes” (SEVCENKO, 2001, p. 75).
Assumindo uma postura crítica em relação ao mercado de consumo e ao estilo de vida
apresentado pela indústria cinematográfica, surgem movimentos artísticos que tencionam
reaproximar a arte com a experiência comum dos sujeitos, ao mesmo tempo em que buscam
nutrir-se da agitação e da desordem das ruas modernas. Estes movimentos são conhecidos
como vanguarda.
Vanguarda é um termo genérico que abrange diversas tendências da arte que
surgem nas primeiras décadas do século XX – impressionismo, cubismo, surrealismo,

8
Neste trecho, Baudelaire refere-se ao aquarelista Constantin Guys (1805- 1892). O poeta utiliza a figura de
Constantin para elucidar quem é este artista da vida moderna.
20

futurismo, pop art e minimalismo são alguns exemplos. Sobre a arte moderna, Sevecenko
comenta que
(...) alguns dos mais eminentes pioneiros da arte moderna, principalmente dentre os
surrealistas, se deram conta do extraordinário potencial artístico do cinema. Assim
como os cubistas haviam buscado reproduzir com seus pincéis a mobilidade, a
versatilidade, o dinamismo e a descontinuidade com que a câmera de filmar capta e
transforma a realidade, havia a opção, muito óbvia, de usar a própria filmadora para
repassar versões “cubistas” do mundo para o grande público dos cinemas. (...)
capazes de desafiar as convenções da percepção e abrir novas possibilidades de
compreensão e interpretação dos fatos e processos (2001, p. 74 – 75).

Estas novas experiências e expressões foram, no entanto, restritas ao ambiente


artístico, distante das grandes populações. Outro exemplo é O que exatamente torna os lares
de hoje tão diferentes, tão atraentes? (1956) de Richard Hamilton.9 Nesta colagem, Hamilton
transportou o casal que habitava no paraíso do Jardim do Éden, Adão e Eva, para o cenário
pós-segunda guerra. A obra assumiu uma dimensão política e social, expondo que a
mercadoria havia se tornado o centro dos lares e da vida cultural.

Figura 1 – Richard Hamilton, O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão
atraentes? (1956).

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/384494886911533846/

Corroborando com está mesma linha de pensamento, Norbert W. Bolz, discutindo


sobre a teoria midiática de Walter Benjamin, afirma que “(...) a modernidade estruturou cada
vez mais, através da tecnologia, as funções da percepção, e que faz parte de nossas
experiências mais fundamentais o fato de nossa percepção ser perpassada por aparelhos e
construções” (s.d., p. 92). Benjamin também infere que a escrita emancipa-se dos livros -
movimentando-se para os cartazes e letreiros de propagandas das grandes metrópoles -, o

9
Richard Hamilton (1922 – 2011) foi artista de colagem e pintor britânico integrante da Pop Art.
21

jornal interrompe a continuidade da leitura, a fotografia ocupa o lugar da memória e o cinema


apresenta os choques e as descontinuidades da vida moderna. Por sua vez, a percepção muda
para ‘sensação’ e os objetos, a cultura visual, os interiores e a mercadoria assumem o lugar da
atenção e da fruição estética.
Além do cinema, da fotografia e das artes plásticas, na música se multiplicaram as
pesquisas em busca de outros sistemas, escalas, modos e recursos expressivos. De acordo com
Sevcenko, houve “(...) um empenho determinado a incorporar os sons das novas metrópoles,
das indústrias e das máquinas, dos ruídos das ruas, das ferrovias, dos aeroportos e das grandes
multidões” (2001, p.110). Amériques (1918-1921)10 de Edgard Varère11 ilustra o panorama
apresentado por Sevcenko. Nesta peça, Varèse incorporou a orquestra sinfônica sirenes de
ambulância e ruídos urbanos. Além de assimilar o ruído como elemento compositivo, a
música das vanguardas explorou as
(...) novas tecnologias eletro-eletrônicas, a ampliação, a decomposição, as colagens,
as sonoridades projetadas e editadas em laboratórios acústicos, unindo ciências,
técnica e arte. E também o anseio de explorar as potencialidades e os efeitos sonoros
da voz humana, da natureza, do acaso e do silêncio. Sondagens, portanto, que não só
procuravam descondicionar formas tradicionais da percepção auditiva, como se abrir
para a busca de materiais sonoros inéditos, de novos efeitos timbrísticos, de
variações cromáticas inovadoras, de estratégias compositivas ousadas,
acompanhadas de mudanças nas técnicas de notação, regência e execução
(SEVCENKO, 2001, p. 110).

Com a ampliação dos suportes, como pontua Sevcenko, as técnicas de notação expandiram-
se,12 pois a notação tradicional não dava conta de registrar os novos sons incorporados nas
composições.

10
Amériques (1918-1921) de Varèse, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RwB83KjKego>.
Acesso em: 06 abril. 2017.
11
Edgard Varèse (1883 – 1965) compositor de vanguarda francês.
12
Foram criadas as seguintes formas de representação sonora, “Contamos atualmente com quatro tipos de
notação musical (...): Notação precisa: escrita tradicional que objetiva atingir um grau máximo de precisão
(aspecto quantitativo). Notação gráfica: utilizada na música contemporânea com o intuito de estimular, motivar
e sugerir a decodificação dos signos musicais. Notação aproximada: utilizada na música contemporânea, grafa
os signos sonoros de modo aproximado, isto é, não se preocupa com a exatidão de correspondência entre os
símbolos e o som pretendido. Notação roteiro: utilizada na música contemporânea, somente delineia a
sequência dos signos musicais" (KOELLREUTTER apud, BRITO, 2001, p.126).
22

Figura 2 – Trecho de partitura gráfica Fontana Mix (1958) do compositor John Cage
(1912 – 1992).

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Z-r6LyTUiYg

É possível perceber que diferente dos artistas do século XIX, alguns artistas da
primeira metade do século XX foram de encontro ao academicismo, objetivando apreender a
essência da vida moderna e representar o tempo presente, como defendia Baudelaire. Os
vanguardistas, além de almejarem restabelecer a arte com os espaços da vida cotidiana, foram
extramente críticos em relação à arte como mercadoria. Conforme Berman “o século XX
talvez seja o período mais brilhante e criativo da história da humanidade, quando menos
porque sua energia criativa se espalhou por todas as partes do mundo. O brilho e a
profundidade da vida moderna (...)” (1986, p. 23).
Baudelaire, ao descrever as ruas parisienses, evidencia como a modernização das
cidades pode inspirar e orientar a alma dos seus residentes. Ele nos ensina a nos energizarmos
e a tirar proveito das experiências cotidianas e transformá-las em uma arte que expresse
beleza e verdade. As cidades, embora, sejam espaços plenos de dissonâncias, “devemos
esperar, como Baudelaire às vezes esperou, por um futuro em que a alegria e a beleza, como
as luzes da cidade, venham a ser partilhadas por todos.” (BERMAN, 1986 p.150).
O mundo moderno foi mote das intervenções da vanguarda, no entanto, ao mesmo
tempo em postulavam um desejo de reaproximar a arte com a vida, por que os experimentos
propostos pela vanguarda parecem não ter alcançado a experiência comum dos sujeitos? No
próximo capítulo será discutida uma noção de como a arte foi entendida ao longo da história.
Em seguida, pretende-se compreender porque as vanguardas apesar de inspirarem-se nos
temas da vida moderna e ampliarem os suportes, causaram certo estranhamento e
distanciamento da experiência comum.
23

3 VANGUARDA: “EU SINTO UM GOSTO (UMA COISA ESTRANHA, UM


NEGÓCIO ESQUISITO) MEIO AMARGO DO FUTURO”13

3.1 REGIMES ESTÉTICOS DA ARTE

Em conformidade com o filósofo francês, Jacques Rancière, “o que o singular da


“arte” designa é o recorte de um espaço de apresentação pelo qual as coisas da arte são
identificadas como tais” (2004, p. 4). Assim, antes de discutir sobre o lugar e a função da arte
de vanguarda, faz-se relevante identificá-la ao longo da história. Rancière argumenta que para
“fundar o edifício da arte, isso significa definir um certo regime de identificação da arte, isto
é, uma relação específica entre práticas, formas de visibilidade e modos de inteligibilidade
que permitem identificar seus produtos como pertencendo à arte ou a uma arte” (2004, p. 7).
Nesta perspectiva, o autor distingue a arte ocidental em três grandes regimes –
ético, poético ou representativo e estético. No regime ético, a arte não é identificada como tal,
o que existem são maneiras, modos de fazer. Na concepção do autor, o regime ético trata-se
“(...) de saber no que o modo de ser das imagens concerne ao ethos, à maneira de ser dos
indivíduos e das coletividades. E essa questão impede a “arte” de se individualizar enquanto
tal” (RANCIÈRE, 2005, p. 29). Do regime ético das imagens emerge o regime representativo
ou poético, este regime define a noção de representar, apreciar e julgar imitações benfeitas.
Contrapondo-se ao regime representativo, apresenta-se o regime estético, neste regime a arte é
identificada por relacionar-se com o modo de ser e com o sensível. Desta maneira, a arte
dispensa regras, hierarquias, temas e gêneros. Existe como uma livre aparência, ou se pode
afirmar, é desinteressada. Ainda sobre o regime estético, Rancière pontua que, “(...) ao fazê-
lo, ele [o regime estético] implode a barreira mimética que distinguia as maneiras de fazer arte
das outras maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das ocupações sociais” (2005, p.
34). Em consequência, o regime estético torna a arte singular e autônoma, distanciando-a das
formas da vida. Este regime alinha-se ao que se entende por modernidade.
Rancière ilustra os três regimes através da estátua da deusa grega Juno Ludovisi,
ele afirma que “A mesma estátua da mesma deusa pode ser ou não arte, ou sê-lo
diferentemente conforme o regime de identificação segundo o qual é apreendida” (2004, p. 7).
13
O título foi extraído de um trecho da música Sabor de Veneno (1980) de Arrigo Barnabé. O enunciado elucida
o sentimento de parte dos compositores do início do século XX que intuíram que o sistema diatônico não
correspondia ao contexto no qual estavam inseridos – a modernidade. Logo no começo do século eles percebem
“uma coisa estranha, um negócio esquisito” e partem em busca de outros modos, escalas e sistemas
composicionais. Alguns compositores, embora estivessem engajados na busca de outros recursos expressivos,
sentem “um gosto meio amargo do futuro”.
24

No regime ético, Juno Ludovisi é identificada como uma representação da divindade. Neste
sentido, não existe arte, pois a “arte” está subsumida em função da imagem, de sua verdade e
dos efeitos que causam sobre os indivíduos e a coletividade. No regime representativo ou
poético, a deusa é um produto da arte, a escultura. Neste regime de identificação, Juno
Ludovise é apreendida através de um cânone de convenções, sendo possível avaliar a
competência do escultor ao engendrar imitações benfeitas, ao dar forma e artisticidade na
matéria bruta. No regime estético, Juno Ludovisi, é identificada como estátua de livre
aparência. A ênfase não está na perfeição técnica ou no modo de fazer, mas na apreensão
sensível, no modo de ser. Conforme Rancière,
Neste regime [regime estético], a Juno Ludovisi não extrai sua propriedade de obra
de arte da conformidade da obra do escultor a uma ideia adequada da divindade ou
aos padrões da representação. (...) A propriedade de ser arte se refere aqui não a uma
distinção entre os modos do fazer, mas a uma distinção entre os modos de ser. É isto
que quer dizer “estética”: a propriedade de ser arte no regime estético não é mais
dada por critérios de perfeição técnica, mas pela inscrição em uma certa forma de
apreensão sensível (2004, p. 9).

Figura 3 – Juno Ludovisi

Fonte: RANCIÈRE, 2016, p. 24

Na música, o regime ético pode ser exemplificado através de cantos de trabalho,


religiosos, entre outros. Pelos registros etnográficos de Michel Giacometti sobre a música nas
aldeias rurais de Portugal,14 percebe-se que a música estava imbricada nas atividades
cotidianas. Algumas destas canções tinham como finalidade garantir uma boa colheita,
pastorear ovelhas. Assim, como ressalta Rancière, no regime ético não existe arte

14
Filmografia do documentário O Povo que Canta (1972) disponível em:
<http://www.michelgiacometti.com/coleccao.html>. Acesso em: 18 abr. 2017.
25

propriamente dita, a música estava presente de tal forma na vida dos sujeitos que a impedia de
se individualizar como uma peça ou obra musical. Outro exemplo são as comunidades
ameríndias, o que nomearíamos de expressões artísticas, como música, dança, pinturas
corporais, máscaras e rituais refletem o modo de ser sensível da coletividade. Na fala da
musicóloga Rosângela Tugny, “(...) aquilo que gostaríamos de denominar fatos “artísticos”
forma um modo de ser e gerenciar relações carregadas de afetos entre distintas sociedades
corporais que coabitam os seus espaços” (2015, p. 323). Ao que parece, nestas culturas as
dimensões natureza e cultura não são dissociadas, a experiência sensível está interligada com
a experiência comum.
O regime representativo pode ser compreendido através da apreciação de um
concerto de Haydn ou uma sonata de Mozart. Neste caso, a peça é fruto da habilidade do
compositor ao manusear os sons, com base em um sistema musical pré-estabelecido. Já
Tubarões Voadores (1984),15 de Arrigo Barnabé, é apreendida pelo regime estético. Nesta
música, o compositor dispensa temas e regras, onde os tubarões voam e as vozes passeiam
entre o canto e a fala.
Em linhas gerais, na modernidade rompe-se com o sistema mimético, rejeitando, a
priori, na pintura, a não-figuração, a vontade pelo novo e pela inovação. Os modernistas, não
tencionaram apenas romper com a tradição, mas objetivavam reavaliar e reinterpretar as
maneiras de fazer, questionando os antigos mestres, o patrimônio e a história da arte. Mas, ao
mesmo tempo em que estes pintores, músicos e poetas buscaram ampliar os suportes e tirar
proveito das metrópoles e do tempo presente, como almejava Baudelaire, estes artistas
distanciaram-se da experiência comum dos sujeitos, além de tornar-se uma arte
excessivamente politizada. Neste ponto, impõe-se um paradoxo, que será melhor evidenciado
no tópico seguinte.

3.2 O PARADOXO DAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS DO SÉCULO XX

O termo vanguarda é de origem francesa, avant-garde, designa a ideia topográfica


e militar que está à frente, que lidera o movimento, que opera papel pioneiro, que desenvolve
técnicas. As vanguardas, na Europa e na América (Estados Unidos), postulam uma vontade de
reaproximar a arte dos espaços e tempos da vida ordinária. Ansiavam por uma arte que
representasse o tempo presente. Os impressionistas, por exemplo,

15
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=qTLlnY4WSSY>. Acesso em: 18 abr. 2017.
26

(...) violaram as regras da todo-poderosa e enfadonhamente burocrática Academia de


Belas-Artes de Paris. A Academia esperava que os artistas fizessem obras baseadas
em mitologia, iconografia religiosa ou na Antiguidade clássica num estilo que
idealizava o tema. Esse tipo de falsificação não interessava a esse grupo de jovens e
ambiciosos pintores. Eles queriam deixar seus ateliês e ir para fora a fim de
documentar o mundo moderno à sua volta (GOMPERTZ, 2013, p. 33).

Os impressionistas saíram de seus ateliês para observarem o mundo real, tornando o cotidiano
tema central das obras. Em O baile de moulin de La galette (1876), por exemplo, Renoir
(1841 – 1919)16 retrata o cotidiano burguês, seus costumes, gestos e indumentárias. Foram
eles, os impressionistas, os primeiros a desafiarem as regras impostas pela academia e pelo
establishment.
Figura 4 - Pierre-Auguste Renoir, O baile de moulin de La galette, 1876.

Fonte: https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/-/rQEx7CtGiKE3yg?hl=pt-BR.

A partir de então, uma diversidade de tendências emergiram durante o século XX


– algumas celebrando a máquina e o ambiente mecanizado, outras adotando procedimentos
aleatórios na composição das obras. Com a intenção, de evidenciar o paradoxo das
vanguardas exposto na seção anterior, propomos um passeio por alguns movimentos nas artes
plásticas, começando pelos futuristas.
Por volta dos anos de 1910, Boccioni17 e Tatlin18 trataram de representar o
movimento e o dinamismo da vida moderna. Em Formas únicas de continuidade no espaço
(1913), Umberto Boccioni descreve as transformações trazidas pela Revolução Científico-
Tecnológica, ao fundir o homem e o ambiente mecanizado em uma escultura de bronze que
traduz o arrojo e a velocidade da modernidade. Tatlin amplia os suportes, utilizando materiais
próprios da era industrial, aço, ferro e vidro, na composição de Contrarrelevo de canto (1914
– 15).

16
Pintor francês, integrante do movimento impressionista.
17
Umberto Boccioni (1882 – 1916), pintor e escultor do movimento futurista italiano.
18
O russo Vladimir Tatlin (1885 – 1953) foi um pintor, escultor e arquiteto integrante do movimento
construtivista.
27

Figura 5 - À esquerda, escultura de Umberto Boccioni, Formas únicas de continuidade


no espaço (1913). À direita, Contrarrelevo de Canto (1914 - 15) de Vladimir Tatlin.

Fonte: Elaborada pela autora.

Além de objetivar aproximar a arte com a vida e ampliar os meios e suportes, os


artistas de vanguarda questionavam a noção do que se entendia por arte. Na modernidade, a
atividade artística estava submetida ao formalismo, ao academicismo, ao virtuosismo e a
precedentes convencionados pelos grandes mestres. Como ressaltado no capítulo anterior,
aproximadamente meio século antes, foram criados conservatórios e instituições legais com o
objetivo de proteger e conversar o patrimônio histórico, além do aumento de museus públicos.
Neste sentido, observa-se a sistematização de referenciais para determinar o que é ou não arte.
Críticos, curadores, especuladores e historiadores da arte, dentre outros passaram a discutir
sobre os objetos da arte e a conceder-lhe ou não, o status de “obra de arte”.
Com o intuito de criticar o sentido da arte estabelecida pelos acadêmicos, Marcel
Duchamp (1887 – 1968)19 envia para a Exposição de Artistas Independentes20 de 1917 um
mictório, assinado sob o pseudônimo de R. Mutt e chama-o de Fonte. Em linhas gerais,
Duchamp acreditava que pertencia ao artista determinar o que é ou não arte. Assim, escolheu
um objeto produzido em massa, sem nenhuma qualidade ou valor estético especial, e alterou
seu contexto e finalidade original, tornando-o uma obra de arte. Chamou estas esculturas
prontas de readymade. Nesta perspectiva, a ideia era a força motriz de seu trabalho e os
suportes e meios secundários.

19
Marcel Duchamp é um pintor, poeta e escultor, francês. É considerado o fundador do conceitualismo, uma
tendência da arte do século XX.
20
A Exposição dos Artistas Independentes de 1917 foi promovida pela Sociedade dos Artistas Independentes.
Esta Sociedade era formada por intelectuais que mantinham uma posição contrária a National Academy of
Design. Para tornar-se membro, era necessário pagar o valor de um dólar, e cinco dólares por obra exposta.
Duchamp era um dos diretores do grupo, foi este motivo que o levou a assinar Fonte sob um pseudônimo. No
entanto, mesmo no meio dos artistas independentes, Fonte não foi exposta, pois a maioria dos diretores da
Sociedade a julgou como vulgar e ofensiva.
28

Ele [Duchamp] queria questionar a própria noção do que constituía uma obra de arte
tal como decretada por acadêmicos e críticos, que via como os árbitros
autoescolhidos e em geral não classificados do gosto. (...) A posição de Duchamp
era que se um artista dizia que uma coisa era uma obra de arte, tendo interferido em
seu contexto e significado, ela era uma obra de arte. E ele percebeu que essa
proposta, mesmo sendo simples de compreender, poderia causar uma revolução no
mundo da arte (GOMPERTZ, 2013, p. 23 - 24).

Um ano antes da exposição da Fonte, emerge uma tendência na arte moderna que
se opõe não só a visão dos críticos e acadêmicos, mas da própria arte; os dadaístas “(...) eram
contra tudo: contra o establishment, contra a sociedade, contra a religião e, acima de tudo,
contra a arte” (GOMPERTZ, 2013, p. 240). O impulso inicial para as intervenções dadaístas
eram o acaso e a utilização de suportes cotidianos. Na literatura, a estruturação do poema
consistia no recorte de palavras retiradas de artigos de jornais e, depois de embaralhadas, os
fragmentos eram colados em uma folha de papel, imitando a imprevisibilidade da vida, “(...)
um poema tradicional (e o status enaltecido do poeta) era falso por sua própria natureza; era
uma estrutura ordenada que fazia perfeito sentido. A vida, por outro lado, era aleatória e
imprevisível” (GOMPERTZ, 2013, p. 243). Esta técnica também foi transposta para as artes
plásticas, Jean Arp21 elaborou Colagem com quadrados dispostos segundo as leis do acaso
(1916 – 17). Neste quadro, Arp recorta quadrados de tamanhos diferentes e deixa-os cair
sobre um pedaço maior de papel.
Entre as décadas de 1950 e 1960, artistas como Eduardo Paolozzi (1924 – 2005),
no Reino Unido, Robert Rauschenberg (1925 – 2008) e Eduardo Jasper Johns (n.1930),22 nos
Estados Unidos, planejaram questionar a divisão entre baixa e alta cultura, acreditando que
imagens de revistas, jornais, garrafas, pneus, madeira, entre outros materiais ordinários, eram
tão bons quanto às demais formas de arte convencionadas. A intenção deste grupo de artistas
era produzir uma arte a partir dos descartes de uma sociedade consumista. Questionado sobre
a validade das obras de seus contemporâneos, Rauschenberg afirma “tenho pena das pessoas
que acham feias as coisas como saboneteiras ou garrafas de Coca-cola, porque elas estão
cercadas por coisas assim e isso deve deixá-las muito infelizes” (apud, GOMPERTZ, 2013, p.
312 – 313).
A proposta de Duchamp, Arp, Paolozzi, Rauschenberg, Johns e dos demais
artistas de vanguarda causou certa incompreensão por parte dos críticos e do público. Apesar
de postularem um desejo de reaproximar a arte da vida, de usarem elementos imbricados no

21
Jean Arp (1886 – 1966), também é conhecido como Hans Arp, foi um pintor e poeta alemão naturalizado
francês cofundador do movimento dadaísta (1916 – 23).
22
Artistas plásticos integrantes da Pop Art (1956 – 1970).
29

cotidiano e o acaso, o que tornou a vanguarda uma cultura dissociada da experiência comum
dos sujeitos? Greenberg aponta que,
(...) o poeta ou artista de vanguarda procurava manter o alto nível de sua arte
restringindo-a e elevando-a simultaneamente à expressão de um absoluto em que
todas as relatividades e contradições seriam resolvidas ou descartadas. Surgem a
“arte pela arte” e a “poesia pura”, e o tema ou conteúdo torna-se algo a ser evitado
como uma praga (1997, p. 29).

A procura deste absoluto, como ressaltou Greenberg, resultou em uma arte não
objetiva, não figurativa e abstrata. Nas artes plásticas, o pintor deixou de registrar temas da
experiência comum e começou a inscrever seus pensamentos na tela. Na série de Composição
e Improvisação de Kandinsky,23 o pintor planejara “(...) criar uma “paisagem sonora”: telas
que permitissem ao espectador ouvir o “som interno” de uma cor. Isso significou a eliminação
de ainda mais referências ao mundo real” (GOMPERTZ, 2013, p. 173). Os artistas
abstracionistas, como Kandinsky, se comparavam a músicos e suas telas a partituras;
inspiravam-se na música, pois acreditavam ser a arte mais abstrata.

Figura 6 – Wassily Kandinsky, Composição VII (1913).

Fonte: https://www.wikiart.org/en/wassily-kandinsky/composition-vii-1913

Ainda mais radical foi o suprematismo de Malevich.24 Nesta tendência a obra


deveria ser o próprio tema. Em Quadrado Negro (1915), a tela consiste em uma única forma
geométrica de uma só cor, sob um fundo branco. Enquanto o apreciador observasse a relação
entre as margens, a cor e a textura, Malevich esperava que espectador escapasse de sua visão
racional e percebesse todo o cosmo em sua obra.

23
Wassily Kandinsky (1866 – 1944) foi um pintor russo precursor do abstracionismo nas artes plásticas.
24
Kazimir Malevich (1878 – 1935) foi um pintor ucraniano adepto do suprematismo.
30

Rancière assinala que tais propostas tornaram-se dissociadas da prática comum,


sobretudo,
Quando os futuristas ou os construtivistas proclamam o fim da arte e a identificação
de suas práticas àquelas que edificam, ritmam ou decoram os espaços e tempos da
vida em comum, eles propõem um fim da arte como identificação com a vida da
comunidade (...) (2005, p. 37).25

Em consequência, as intervenções começaram a vir acompanhadas de bulas e manifestos.


Filippo Marinetti, por exemplo, foi o autor do primeiro Manifesto Futurista publicado em 20
de fevereiro de 1909 no jornal francês Le Figaro. Por trás das obras que exaltavam o novo, o
homem e a máquina também estavam concatenadas questões de ordem política e social,
4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova
beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com
grandes canos, como serpentes de respirações explosivas de um carro bravejante que
parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória da Samotrácia.
9. Nós glorificaremos a guerra — a única higiene militar, patriotismo, o gesto
destrutivo daqueles que trazem a liberdade, ideias pelas quais vale a pena morrer, e o
escarnecer da mulher.
10. Nós destruiremos os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, lutaremos
contra o moralismo, feminismo, toda covardice oportunista ou utilitária. (1909, n.p).

Tanto o futurismo quanto o construtivismo aliaram-se a governos totalitários.


Conforme, Gompertz,
A vanguarda russa havia posto a arte sobre novas bases, tal como Lênin estava
fazendo com o mundo ao criar seu Estado socialista. O dogmático político tinha
ideias sobre quase tudo, inclusive arte. Para começar, a arte tal como praticada no
ocidente era decadente, capitalista e burguesa. Na nova Rússia soviética, proclamou
ele, a arte deveria ter um objetivo. Ela deveria ser “inteligível para milhões”,
servindo as necessidades das pessoas e do regime (2013, p. 196).

Neste sentido, alguns artistas dedicaram-se a construção de uma identidade visual para estes
regimes políticos. Foi o caso de Monumento à Terceira Internacional (1919 - 20), de Tatlin,26
que faz uma referência a supremacia da União Soviética. Embora nunca tenha sido construída,
Tatlin esperava que sua torre fosse construída em São Petersburgo, as margens do rio Neva,
que deveria ser a sede global do comunismo.
Gompertz pontua que até mesmo “o dadaísmo pode ter se expressado mostrando-
se estúpido, mas foi o mais intelectual dos movimentos artísticos” (2013, p. 243). O mesmo
pode se ponderar em relação a Pop Art, na década de 1960, nos Estados Unidos, sobre a qual
o mesmo autor chama a atenção “(...) não era uma fase tola em que artistas faziam obras de

25
Embora Rancière evidencie que a arte dissocia-se da vida, há de se considerar se os artistas de vanguarda
tinham o propósito de criticar a própria sociedade e não apenas a arte.
26
O russo Vladimir Tatlin (1885 – 1953) foi um pintor, escultor e arquiteto integrante do movimento
construtivista.
31

arte fáceis para um público pueril, mas um movimento extremamente político, com aguda
consciência dos demônios e armadilhas ocultos na sociedade que estava retratando” (p. 311).
A partir desta breve incursão em alguns movimentos da arte do século XX, não se
objetivou comprovar o paradoxo proposto por Rancière, mas perceber de modo mais prático a
profusão de correntes, tensões e contradições que as vanguardas abrigaram. Como isso se
explica?
Como apresentado na introdução, Rancière entende que arte é condicionada a
política. O autor elucida duas noções de política, uma estética que concerne à invenção das
formas sensíveis e a outra compreende que a arte deve proporcionar uma experiência
engajada, onde o expectador passa a ser ator. Neste sentido, todas as vanguardas são políticas,
umas, no entanto, fizeram arte política, como Rancière mesmo exemplifica, os futuristas e os
construtivistas. Nas palavras do autor,
A história das relações entre partidos e movimentos estéticos é antes de mais nada a
história de uma confusão, às vezes complacentemente entretida, em outros
momentos violentamente denunciada, entre essas duas ideias de vanguarda, que são,
com efeito, duas ideias diferentes da subjetividade política: a ideia arquipolítica do
partido, isto é, a ideia de uma inteligência política que concentra as condições
essenciais da transformação, e a ideia metapolítica da subjetividade política global, a
ideia da virtualidade nos modos de experiências sensíveis inovadores de antecipação
da comunidade por vir. Mas essa confusão nada tem de acidental. Não é que,
segundo a doxa contemporânea, as pretensões dos artistas a uma revolução total do
sensível tenham preparado o terreno para o totalitarismo. Trata-se, porém, do fato de
que a própria ideia de vanguarda política está dividida entre a concepção estratégica
e a concepção estética de vanguarda (2005, p. 44).

Em linhas, estas tensões se explicam pelo imperativo histórico, refletindo as próprias questões
que se impõe na modernidade.
A próxima seção intenciona denotar as principais tendências da música do século
XX, com ênfase no impressionismo, expressionismo, futurismo, serialismo, neoclassicismo e
na música concreta e eletrônica. Como os compositores do século XX se utilizaram dos temas
da vida moderna? Será que com mesmo ímpeto e entusiasmo dos artistas plásticos? Como
essas ideias influenciaram no fazer musical? Por que, de modo geral, este período é denotado
pela dissolução do sistema tonal?

3.3 “O SÉCULO DO AVIÃO MERECE SUA PRÓPRIA MÚSICA”: PINCIPAIS


TENDÊNCIAS DA MÚSICA DO SÉCULO XX

Como explicitado, o século XX é notado pela multiplicidade de tendências, as


principais correntes vigentes na música antes da segunda metade do século são o
32

impressionismo, expressionismo, futurismo e neoclassicismo. De modo geral, a característica


predominante na música moderna é o abandono do sistema diatônico. A ruptura com sistema
diatônico iniciou-se com os românticos, no final do século XIX.
Os compositores românticos ressentiram-se bastante com a insuficiência
<expressiva> do sistema tonal. A harmonia delimitou, com efeito, as suas
características em função do poder sugestivo de certos intervalos, como as terceiras
que determinam os modos maior e menor; mas ela afasta parcialmente do seu
sistema os intervalos considerados demasiado dissonantes, os que não respeitam
uma consonância, natural>, excluindo simultaneamente toda uma faixa do universo
sonoro, onde vamos encontrar os ruídos. Mesmo assim, a fim de obter uma maior
expressividade, os românticos – Chopin, Listz, Wagner ou Brahms – infiltram pouco
a pouco na sua música, que apesar de tudo se mantém fortemente enquadrada pela
arquitectura tonal, alguns elementos de expansão, a modalidade e o cromatismo,
entre outros. O que irá ter como consequência uma verdadeira explosão da
tonalidade do século (BOSSEUR, D., BOSSUER, J., 1990, p. 14).

Do ponto de vista de Paul Griffiths, o modernismo na música é inaugurado pelo


compositor francês, Claude Debussy (1862 - 1918), ao estrear Prélude à l’Aprés-Midi d’un
Faune,27 composta entre 1892 e 1894.28 Nesta perspectiva, o Prélude anuncia a modernidade
na exposição de seus dois primeiros compassos.

Figura 7 – Trecho da partitura de Prélude à l’Aprés-Midi d’un Faune, Debussy (1894)

Fonte – GRIFFITHS, 2011, p.7

Nestes dois compassos, a melodia da flauta se liberta do sistema diatônico, são


utilizadas todas as notas de dó sustenido a sol natural, tornando difícil identificar a tonalidade
e o modo (maior ou menor) da peça. O Prélude também inova em sua forma e orquestração.
Não apresenta um tema definido para desenvolvê-lo posteriormente, como de costumes nas
formas clássicas. Os ritmos são irregulares e a orquestração é tratada como um elemento
compositivo que atribui à obra unidade, coerência e estrutura. Debussy constrói um ambiente

27
Prélude à l’Aprés-Midi d’un Faune (1894) - Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=43rzoDrD4e0>. Acesso em: 23 jan. 2017.
28
Para BARRUAD (2012), o modernismo na música é inaugurado por Stravinsky em A sagração da primavera,
estreada em 1913. Já Alex Rosse (2009) atribui à inauguração do modernismo na música a Salomé (1905) de
Richard Strauss (1864 – 1949).
33

enigmático e imaginativo, com o objetivo de representar os “cenários sucessivos em que se


projetam os desejos e sonhos do fauno” (DEBUSSY apud GRIFFITHS, 2011, p. 10). Esta
peça não inaugura apenas o modernismo na música, mas o movimento impressionista,
tendência análoga na pintura, fundada à aproximadamente vinte anos antes pelo, também
francês, Claude Monet (1840 – 1926), na exposição de Impression, soleil (1872).
No campo da música, o impressionismo é uma forma de compor que procura evocar,
principalmente através da harmonia e do colorido sonoro, estados de espírito e
impressões sensoriais. É, assim, uma espécie de música programática. Difere, no
entanto, do grosso da música programática, pois não procura exprimir emoções
profundas nem contar histórias, mas sim evocar um estado de espírito, um
sentimento vago, uma atmosfera, para o que contribuem os títulos sugestivos e as
ocasionais reminiscências de sons naturais, ritmos de dança, passagens melódicas
características, e assim sucessivamente (GROUT e PALISCA, 1994, p. 684).

Enquanto Debussy apresentava novos coloridos na orquestração e abandonava a


ortodoxia estrutural da obra e o sistema tonal, adotando escalas orientais, hexafônicas,
pentatônicas, dentre outras, seus contemporâneos, na Alemanha e na Áustria, estavam
comprometidos em prolongar o romantismo novecentista. O período entre 1890 – 1910 foi o
“(...) ponto culminante do romantismo tardio; pois foi a ênfase romântica no temperamento
individual que preparou o colapso das fronteiras tonais reconhecidas” (GRIFFITHS, 2011,
p.23).
Dentre os compositores interessados no romantismo estava Arnold Schoenberg
(1874 – 1951), apontado como responsável pela desintegração do sistema tonal. Nos anos
1899 a 1907, o compositor se dedicava em estudar o cromatismo de R. Wagner (1813 – 1883)
e o estilo contrapontístico de J. Brahms (1833 – 1897). Lieder de juventude (op. 1, 2, 3, 6, 8);
sexteto de cordas Verklärte Nacht, op. 4 (1899) e poema sinfônico para orquestra Pelleas und
Mélisande, op. 5 (1903), são alguns exemplos de obras compostas neste período.
Por volta de 1908, ao musicar uma série de poemas de Stefan George (1868 –
1933), Schoenberg percebeu que a harmonia diatônica não evocava o espírito e as imagens
dos poemas de George, assim o compositor inicia sua incursão na atonalidade - “o termo
atonal, no sentido em que é vulgarmente utilizado, designa a música não baseada nas relações
melódicas e harmônicas gravitando em torno de um centro tonal que caracterizam a maior
parte da música dos séculos XVIII e XIX” (GROUT e PALISCA, 1994, p. 730). Suas
melodias e harmonias eram fundamentadas na superposição de acordes de quarta e na
combinação de acordes de seis sons. Quinze George-lieder, op. 15 (1908-09) e Três Peças
para Piano, op. 11 (1909) são suas primeiras peças atonais. A atonalidade torna-se o principal
difusor de uma nova tendência na música do século XX, o expressionismo. Como no
impressionismo, o expressionismo foi antes inaugurado na pintura.
34

Enquanto o impressionismo procurava representar objectos do mundo exterior tal


como os nossos sentidos os captam num determinado instante, o expressionismo,
caminhando em sentido oposto, procurava representar uma experiência interior (...).
O campo temático do expressionismo é o homem do mundo moderno, tal como o
descreve a psicologia do século XX: isolado, joguete impotente de forças que não
compreende, presa de conflitos interiores, tensões, ansiedade, medo e de todos os
impulsos profundos e irracionais do subconsciente, em revolta aberta contra a ordem
estabelecida e as formas aceitas (GROUT e PALISCA, 1994, p. 732).

Die glückliche hand (1910-13) e Pierrot Lunaire (1912) são frutos da fase
expressionista de Schoenberg. Nestas obras, Schoenberg mostra-se um artista interdisciplinar,
o compositor concebeu a música, o texto, o figurino, o cenário e a iluminação na composição
da obra, que tinha influências simbolistas de Kandisnsky. Da mesma forma, é possível
perceber está multiplicidade artística em Pierrot Lunaire (1912), para grupo de câmera e voz.
O texto utilizado são poemas traduzidos para o alemão do poeta belga, Albert Giraud (1860 –
1929). A solista recorre ao sprechgesang, uma espécie de vocalização entre o canto e a voz
falada. “A peça não se destina claramente ao teatro nem à sala de concerto, não tendo sido
escrita para uma cantora, mas para uma atriz, que se apresentou caracterizada na estreia”
(GRIFFITHS, 2011, p. 34). Além de compor, Schoenberg pintava, suas telas receberam o
reconhecimento do pintor russo, Wassily Kandinsky (1866 – 1944). Entre 1908 e 1910, ele
pintou cerca de setenta quadros.
No intervalo entre 1921 – 51, o compositor sente a necessidade de “atingir a
unidade formal e a firmeza formal sem se servir da tonalidade (...) empregar um outro meio de
ligação formal, com força suficiente para reduzir os acontecimentos musicais ao mesmo
denominador” (SCHOENBERG apud, BARRUAD, 2012, p. 85). O sistema organizado por
Schoenberg foi nomeado de dodecafonismo, tinha como principio a não hierarquização dos
sons. Na prática, as doze notas da escala cromática estariam presentes na peça com a mesma
frequência. A sucessão das doze notas será chamada de série. A partir da escolha da série, o
compositor manipulava-a, transpondo-a em diversos intervalos. A série poderia assumir
quatro formas, original, invertida, retrógrada e retrógrada invertia. Assim, “(...) os doze sons
devem sempre desfilar sem que se possa reencontrar nenhum deles antes que os onze outros
tenham sido ouvidos, então vai-se ouvir sempre a mesma coisa” (SCHOENBERG, apud,
BARRUAD, 2012, p. 87).
Embora sua música não fosse acolhida pelo público e recebesse fortes críticas, até
mesmo ele entendia a aversão, “Pode ter sido o desejo de se livrar daquele pesadelo, daquela
tortura dissonante, daquelas ideias incompreensíveis, de toda aquela metódica loucura – e
devo admitir que as pessoas que se sentiam assim não eram más” (SCHOENBERG apud
GRIFFITHS, 2011, p. 32), as ideias de Schoenberg foram bem aceitas entre seus alunos, os
35

austríacos Alban Berg (1885 – 1935) e Anton Webern (1883 – 1945), foram seus primeiros e
mais promissores discípulos. Juntos, formaram a Segunda Escola de Viena.
Percebe-se que, ao mesmo tempo em que Schoenberg nega o uso do sistema
diatônico e parte em busca da emancipação da dissonância, nota-se no compositor afeto e
admiração aos antigos mestres e a tradição dos compositores austro-germânicos, de Bach a
Brahms; também demonstrava anseios de estudar e de continuar compondo nos modelos
clássicos. Em sua incursão na atonalidade, o compositor afirma, “eu tinha a sensação de ter
caído num oceano de água fervente (...) que não só queimava minha pele, mas queimava por
dentro” (SCHOENBERG apud GRIFFITHS, 2011, p. 25). Neste mesmo período, na América,
os compositores Charles Ives (1874 – 1954), Carl Ruggles (1876 – 1971) e Henry Cowell
(1897 – 1965), aparentemente sem nenhum conhecimento do que se passava na Europa,
chegaram à atonalidade. O mexicano Julian Carrilo (1875 – 1965), o checo Alois Hába (1893
– 1973) e o russo Ivan Vishnegradsky (1832 – 1895), buscavam nos intervalos menores de um
semitom, microtons, o rompimento com o sistema diatônico. Desta forma, questiona-se: como
estes compositores perceberam que o sistema tonal não correspondia mais as suas demandas?
A respeito da rejeição dos compositores do século XX em compor com base no
sistema tonal, o historiador americano, Carl Schorske, aponta que desde a renascença a
música ocidental era fundamentada em uma ordem tonal e hierárquica. A música foi
concebida a partir da seleção de doze sons, estes sons estão situados no centro de um intervalo
denominado de oitava. A oitava é constituída por doze intervalos iguais, chamados de
semitons, cuja soma de dois semitons resulta em um tom. A sucessão destes doze semitons
em intervalos iguais estrutura a escala cromática. Já a sucessão destes sons distribuídos de
modo desigual, cinco tons e dois semitons, configura a escala diatônica. O sistema tonal tem
como base a escala diatônica. Cada nota da escala cromática pode originar uma escala
diatônica, desde que siga o padrão estabelecido de cinco tons e dois semitons, oferecendo ao
compositor uma gama de tonalidades distintas, com caráter e cor singular. Na escala diatônica
se destaca um elemento central, a tríade - perfeita, maior e consonante. A tríade é um
elemento de autoridade, repouso e estabilidade dentro da tonalidade. O movimento emergia
do equilíbrio entre a tríade tônica, o quarto grau e o quinto grau da escala, retornando a tônica.
Estes três acordes dão sustentação e estrutura a todo o sistema tonal. A dissonância era vista
como um elemento dinâmico, justificado quando partida da tonalidade. A modulação, o
trânsito de uma tonalidade a outra, era um movimento ilegítimo permitido, que logo deveria
ser resolvido para uma nova tonalidade ou o retorno da anterior. Assim,
36

A tarefa do compositor era a de manipular a dissonância no interesse da


consonância, como um líder político num sistema institucional que manipula o
movimento, canalizando-o para servir aos propósitos da autoridade estabelecida. De
fato, a tonalidade na música pertencia ao mesmo sistema sócio-cultural onde se
encontrava a ciência da perspectiva na pintura, com seu foco centralizado: o sistema
barroco do status na sociedade e do absolutismo constitucional na política. Fazia
parte da mesma cultura que privilegiou o jardim geométrico – o jardim como
extensão da arquitetura racional sobre a natureza. Não por acaso foi Rameau, o
músico de corte de Luís xv, o teórico mais claro e inflexível das “leis” da harmonia.
O sistema tonal era uma organização musical onde os tons tinham um poder
desigual para expressar, validar e tornar suportável a vida do homem numa cultura
hierárquica racionalmente organizada. Apropriadamente, o objetivo da harmonia
clássica na teoria e na prática era fazer com que todo o movimento ao final recaísse
dentro da ordem (o termo musical é “cadência”) (SCHORSKE, 1988, p. 323 - 324).

Ainda na perspectiva de Schorske, a música é movimento, assim como o século XIX;


onde a intensidade do movimento desestabiliza a ordem. Por isso, o século XIX foi o período
da expansão da dissonância, o que resultou, no século seguinte, em colapso do sistema tonal.
Na música e em outros setores, o tempo avançou sobre a eternidade, a dinâmica
sobre a estática, a democracia sobre a hierarquia, o sentimento sobre a razão.
Richard Wagner, que era também um revolucionário político e sexual, tornou-se o
inimigo público número um da tonalidade tradicional. Em seu Tristão e Isolda, Eros
volta em ritmos e cromatismos ondulantes para reivindicar seus direitos contra a
ordem política e moral estabelecida, expressa no mesmo rígido e na harmonia
diatônica. Os tons cromáticos – semitons – têm todos um único valor, e constituem
um universo de sons igualitário. Para alguém acostumado à ordem hierárquica da
tonalidade, tal democracia é perturbadora. É a linguagem do fluxo, da dissolução.
Da liberdade ou da morte, dependendo do ponto de vista (SCHRSKE, 1988, p. 324).

O sistema atonal apresenta um código de sons igualitários, “quer dizer que, no


desenrolar de uma peça de música, os doze sons estarão presentes, cada um, o mesmo número
de vezes, de modo que, terminada a peça, nenhum deles terá sido ouvido, em princípio, com
mais frequência que os outros” (BARRAUD, 1997, p.86). Isso evidencia que as
transformações que ocorrem na música alinhavam-se às questões de ordem político-social.
Pode-se compreender que, mesmo sem contato aparente, compositores de diversos países
estavam buscando soluções na música que correspondessem ao imperativo histórico – a
modernidade. Debussy complementa, “não será nosso dever encontrar meios sinfônicos de
expressar nosso tempo, meios que evoquem o progresso, o arrojo e as vitórias dos dias
modernos? O século do avião merece sua própria música” (DEBUSSY apud, GRIFFITHS,
2011, p. 97).
Ainda no início do século, na Itália, surge outra tendência, o futurismo. O
futurismo é considerado o primeiro movimento de vanguarda, foi oficialmente inaugurado em
20 de fevereiro de 1909, com o manifesto do escritor Filippo Marinetti (1876 – 1944). Os
futuristas tinham a necessidade de reformular aspectos mais amplos e profundos da cultura,
suas intervenções abrangiam todas as expressões artísticas. Na música, o compositor e
37

musicólogo Francesco Pratella (1880 – 1955) lança a primeira publicação, Manifesto dos
músicos futuristas (1911). De modo geral, este manifesto criticava a estagnação da música
italiana pelos editores, que divulgavam um cânone musical estabelecido pela tradição, e os
diretores e professores de conservatórios, que não incentivavam a liberdade e as inovações
por parte dos jovens músicos. Sugeria que o libreto da ópera fosse composto pelo autor, em
versos livres. No mesmo ano, Pratella elabora um segundo manifesto, Manifesto técnico da
música futurista. Neste manifesto, o compositor discute temas relacionados à composição -
harmonia, ritmo e forma – e propõe que os ruídos das cidades, das fábricas e das máquinas
fossem incorporados na música. Pratella foi censurado, pois suas composições estavam mais
concatenadas com as formas clássicas do que com suas ideias expressas nos manifestos.
O pintor e compositor futurista, Luigi Russolo (1885 - 1947), também “(...)
reclamava uma música que tivesse a ver com os sons e ritmos das máquinas e fábricas, uma
“arte do ruído” necessariamente estridente, dinâmica e profundamente sintonizada com a vida
moderna” (GRIFFITHS, 2011, p. 97 – 99). Segundo o artista, os sons das fábricas, das
máquinas e dos motores são mais atraentes que a música de Beethoven ou Wagner. Russolo
publicou um manifesto em 1903, A arte de ruídos. O manifesto expõe as limitações dos
instrumentos utilizados na música clássica, afirmando que o mundo moderno necessita de
mais riqueza trimbrística. Assim, ele criou diversos intonarumori (entoadores de ruídos),
eram esculturas sonoras que emitiam sons de roncos, zumbidos, estalos, estampidos, dentre
outros.
O “Intonarumori” é composto por várias caixas acústicas com correspondentes alto-
falantes, e foi inventado e construído por Luigi Russolo e Ugo Piatti. A orquestra do
“Intonarumori”, como explica o próprio Russolo , compõe-se de 21 instrumentos
que executam o som entoado. Conforme o ruído produzido subdivide-se em várias
modalidades, recebendo cada um o nome da família do som que reproduz, e esses
nomes são o que se pode imaginar de mais extravagante. É interessante pensar no
exótico desta complicada aparelhagem e no impacto que deve ter causado numa
Itália conservadora e burguesa, ainda tão ligada aos padrões artísticos tradicionais.
Russolo explica que com cada um desses instrumentos pode-se entoar qualquer
escala diatónica, cromática ou enarmônica, no ritmo que se desejar. Com o timbre de
determinado ruído executa-se a melodia, e com a união dos vários instrumentos é
possível obter qualquer harmonia (POLINESIO, s.d., p. 144).

Na década de 1920, Mario Bartoccini (1898 – 1964) e Aldo Mantia (1903 –


1982), através do manifesto A improvisação musical, defendem a improvisação livre, como
meio de chegar à originalidade absoluta. Franco Casanova, ressaltava a importância do jazz na
música moderna. Edgard Varére (1883 – 1965), George Antheil (1900 – 1959), Arthur
Honegger (1892 - 1955), foram alguns dos compositores interessados pela “música
mecânica”. Por volta de 1930, o movimento futurista na música perde força, suas ideias serão
38

reavaliadas após a Segunda Guerra pelo francês, Pierre Schaeffer, idealizador da música
concreta. Uma possível causa para a desintegração do movimento futurista é o retorno aos
modelos clássicos.
O romantismo atingiu o ápice nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial
(1914 – 1918), no entanto, após a guerra, entre as décadas de 1930 e 1940, na Europa e na
América, emerge uma atitude anti-romântica. De acordo com Griffiths,
A geração do pós-guerra aspirava a algo diferente, buscando ardentemente um
espírito novo. Associado à velha ordem, o romantismo era por muitos considerado
despropositado, e mesmo de mau gosto, parecendo sua ambição apenas bombástica,
e seu emocionalismo mero sentimentalismo. O século XIX devia ser esquecido
como uma aberração. Numerosos compositores decidiram adotar um novo ponto de
partida com base na música anterior: foi a aventura do neoclassicismo (2011, p. 62).

Este ponto de partida estava centrado na música do século XVIII. O compositor russo Ígor
Stravinsky (1882 – 1971), um dos maiores expoentes do neoclassicismo, sublinha que “Uma
renovação só é frutífera quando anda de mãos dadas com a tradição” (1996, p. 107). A
afirmação de Stravinsky sintetiza o pensamento de parte dos compositores deste período.
Assim,
(...) o neoclassicismo pode ser definido como uma adesão aos princípios clássicos do
equilibrio, da frieza, da objetividade e da música absoluta (por oposição a
programática), princípios que têm por corolários a economia de mios, a textura
predominantemente contrapontística e as harmônicas, não só cromáticas, como
também diatônicas, a música neoclássica recorre ainda por vezes à imitação, á
citação ou alusão a melodias ou características estilísticas de compositores mais
antigos, como sucede na Pulcinella, de Stravinsky, contruída sobre temas atribuídos
a Pergolesi, ou no bailado Le Baiser de la fée (O Beijo da Fada, 1928), baseado em
temas de Tchaikovsky (2011, p. 721 - 722).

Para Griffiths, compositores como Stravinsky, Ferruccio Busoni (1866 – 1924),


Sergei Prokofiev (1981 – 1953), Paul Hindemith (1895 – 1963) olharam para o passado com
reverência; inspirando um retorno à clareza das formas clássicas e a densidade composicional
de Bach. Mas, alguns compositores, como Erik Satie (1866 – 1925), Arthur Honegger (1892 –
1955) e Francis Poulenc (1899 – 1963), por exemplo, encaram o neoclassicismo com ironia e,
até mesmo, com certo traço de zombaria. Sobre as composições de Satie, Griffiths afirma,
O modelo escolhido por Erik Satie (1866 – 1925), cujas experiências harmônicas
podem ter influenciado o seu amigo Debussy na década de 1890, mas que desde
então enveredara por uma espécie de dadaísmo. Satie queria ver a música reduzida
ao estrito essencial; dono de um imperturbável senso de humor e da paródia, ele
apresentava suas peças sob título como Choses Vues à droite et à Gauche (sans
lunettes) (Coisas vistas à direita e à esquerda [sem óculos]) e Sonatine
Bureaucratique; e cultivava a inconsequência em sua “música de mobiliário”,
destinada a ser ignorada (2011, p. 66).

No final da década de 1940 e início da década de 1950, após os conflitos da


Primeira Guerra Mundial (1939 – 1945), houve um interesse renovado pelo serialismo. Os
39

compositores do pós-guerra ampliaram a abordagem de Schoenberg empregando a série não


somente na altura do som, mas no ataque, na duração e nas dinâmicas. Esta técnica ficou
conhecida como serialismo integral. Pierre Boulez (1925 – 2016) e Stockhausen (1928 –
2007) foram grandes expoentes do serialismo integral, eles tomaram como base os estudos do
compositor e ornitologista francês Oliver Messiaen (1908 - 1992). Conforme Griffiths,
Há indícios de que Messiaen estudara em 1944 a possibilidade de uma organização
serial dos outros elementos musicais. Ele não chegou a pôr a ideia em prática em
Mode de Valeus (que é modal, não serial), mas a obra efetivamente abriu caminho
para o que se tornou conhecido como “serialismo integral” (2011, p. 132).

Neste mesmo período, o advento do gravador, dos sintetizadores e dos


instrumentos eletrônicos possibilitou a retomada das experimentações com música concreta,
iniciada no começo do século, e o surgimento de outra tendência na música do século XX, a
música eletrônica. Barraud esclarece que, “música concreta, música eletrônica: estes dois
rótulos assinalam duas doutrinas divergentes e, por um momento, quase que antagônicas, que
o tempo pouco a pouco reaproximou, sem contudo confundi-las” (2011, p. 150). Do ponto de
vista do autor, a música concreta trata de explorar fontes sonoras e captar sons naturais para
depois modificá-los eletroacusticamente, organizando e transformando-os em música. Já a
música eletrônica trabalha com a criação de sons sintéticos, inscrevendo-os em fitas. Mas, na
prática, essas duas categorias não se mostravam totalmente apartadas, compositores como
Varère e Stockhausen, por exemplo, combinavam os dois recursos, sons naturais e
eletrônicos.
As pesquisas relacionadas à música concreta e eletrônica estavam polarizadas em
estúdios e em estações de rádio, onde abrigavam todo o aparato tecnológico. Radiodiffusion
Française, em Pais, e Nordwestdeutscher Rundfunk, em Colônia, tornaram-se referências, a
primeira para a música concreta, sob a direção de Pierre Schaeffer (1910 – 1995) e a segunda,
para a música eletrônica, com Stockhausen. Para um músico serial como Stockhausen, a
música eletrônica apresentou-se como uma oportunidade “(...) de levar ainda mais longe o
desejo de manter o material sonoro sob um controlo contínuo, em gradações cada vez mais
precisas, já que a sua aplicação podia incluir mesmo a micro-estrutura do som” (BOSSEUR,
D., BOSSUER, J., 1990, p. 39). Studie I (1953) foi a primeira composição de música
eletrônica de Stockhausen, mas, de acordo com Griffiths, a experiência não foi bem sucedida
“As sonoridades puras não se cristalizavam, como ele esperava, e a ideia teve de ser
abandonada até o advento de métodos e equipamentos mais sofisticados” (2011, p. 147).
Assim, três anos após Studie I, em Gesang der Jünglinge (1955 - 56), Stockhausen usou tanto
40

sons naturais, voz de um menino gravada, como sons eletrônicos; com o objetivo de
representar o texto de bíblico de Daniel 3.
Em 1939, por meio de Imaginary Landscape n. 1, John Cage inaugurou uma nova
modalidade na música eletrônica, a chamada live electronic music, que consistia na execução
ao vivo da obra. No entanto, foi apenas por volta da década de 1960 que “aumentaram o
número” de grupos de música eletrônica ao vivo. Os conjuntos utilizavam instrumentos
eletrônicos e convencionais, sintetizadores e amplificadores. Sobre a música eletrônica
Griffiths faz os seguintes apontamentos,
Por esta época [década de 1960] a eletrônica já se tornara tão importante na música
“erudita” que parecia natural alguma forma de acomodação com o popular, e que a
iniciativa partisse de ambos os lados. Instrumentos desenvolvidos no terreno popular
começaram a ser empregados na música “séria” (...), e certos grupos pop começaram
a se interessar pela “vanguarda”. Tornou-se possível inclusive a realização de
concertos conjuntos de grupos eletrônicos e de música pop, e isto sem qualquer
incongruência, pois já agora a distinção era apenas uma questão de formação,
origem, público e marca de discos (2011, p. 154).

Diante da afirmação de Griffiths, será que, de fato, todos os movimentos de


vanguarda provocaram um afastamento da experiência comum? Será que estes novos suportes
e interfaces não ampliam o fazer musical, assim como a experiência da escuta? Griffiths
afirma que o público de Stockhausen e do compositor Terry Riley (1935) era constituído por
mais jovens entusiasmados pela música pop do que em compreender a tradição musical do
ocidente.
Análoga à música desenvolvida a partir de meios eletrônicos e a ampliação do
serialismo, o acaso tornou-se uma força motriz no trabalho de alguns compositores,
principalmente na América (Estados Unidos). John Cage é apontado como um dos primeiros a
usar a intervenção do acaso na sistematização de suas composições. Assim, deixaremos para
discutir esta corrente da música no próximo capítulo, como também as abordagens que
propunham performances para além da música, com interseções nas demais artes.
Em síntese, pôde-se perceber que os compositores do início do século tinham a
sensação de que o passado estava irremediavelmente perdido, assim, mesmo com receio,
foram em busca de outros modos e sistemas que sustentassem o fazer musical. Em
consequência destas pesquisas, o século XX foi repleto de uma multiplicidade de tendências.
Até mesmo o neoclassicismo que estava fundamentado na música dos séculos XVII e XVIII,
não soava como o estilo contrapontístico de Bach e nem como a clareza das formas de
Mozart.
Ressalta-se também o transito dos compositores entre variadas correntes.
Stravinsky, por exemplo, inicia compondo peças para o balé russo. Em 1920, volta-se para o
41

neoclassicismo e, em meados de 1950, dedica-se ao serialismo. Este ecletismo não é


exclusividade do século XX, Beethoven (17770 – 1827) escreveu peças ao longo da vida que
refletem aspectos tanto clássicos bem como elementos do romantismo, embora tenha
participado destes dois movimentos, ele compôs com base em um único código – o tonal. Esta
questão não o torna menos ou mais singular em relação á Stravinsky, mas evidencia a
complexidade e simultaneidade de ideias com que os compositores do século XX lidaram.
Por fim, salienta-se que em alguns movimentos, buscava-se não segmentar as
artes, mas pensá-las como um conjunto, uma unidade. No final do século XX, Cage e um
grupo de artistas propõem intervenções interdisciplinares, que serão apresentadas no capítulo
seguinte a partir do estudo da trajetória do compositor, assim como tentar entender quem é
este artista no contexto da modernidade, a partir da proposição de Charles Baudelaire.
42

4 “ASSIM ELE VAI, CORRE, PROCURA. O QUÊ?”: O ARTISTA NA


MODERNIDADE

4.1 “O ARTISTA, HOMEM DO MUNDO, HOMEM DAS MULTIDÕES E CRIANÇA”

Baudelaire, ao observar a trajetória do aquarelista Constanti Guys (1805 – 1892),


percebeu estar diante, como ele mesmo denota, de um homem singular, de um homem que
não é exatamente um artista. De acordo com o poeta,
Entenda-se aqui, por favor, a palavra artista num sentido muito restrito (...) artista,
isto é, especialista, homem subordinado à sua palheta como o servo à gleba. (...) O
artista vive pouquíssimo — ou até não vive — no mundo moral e político. O que
mora no bairro Bréda ignora o que se passa no faubourg Saint-Germain. Salvo duas
ou três exceções que não vale a pena mencionar, a maioria dos artistas são, deve-se
convir, uns brutos muito hábeis, simples artesãos, inteligências provincianas,
mentalidades de cidade pequena. Sua conversa, forçosamente limitada a um círculo
muito restrito (...) (1986, p. 16 – 17).

Se o artista torna-se sinônimo de um especialista, de um artesão, o que a figura de Guys


elucida em relação a este “novo artista” na modernidade?
Baudelaire apresenta Constanti Guys como um homem cosmopolita, apaixonado
pela multidão e pelo incógnito; suas pinturas evocam as imagens capturas a partir de suas
viagens e de suas experiências. Baudelaire também o compara como uma criança, que é
impulsionada pela curiosidade e deslumbrada pelo novo. Além de criança, Guys é um homem
do mundo e das multidões,
Homem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro, homem que compreende o
mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes; (...) G. não
gosta de ser chamado de artista. Não teria ele alguma razão? Ele se interessa pelo
mundo inteiro; quer saber, compreender, apreciar tudo o que acontece na superfície
de nosso esferóide. (...) [A conversa do artista] torna-se rapidamente insuportável
para o homem do mundo, para o cidadão espiritual do universo (BAUDELAIRE,
1986, p. 16).

Outro aspecto deste artista no contexto da modernidade é a capacidade de contemplar e estar


com os sentidos no presente. Baudelaire o descreve da seguinte forma,
Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela
bruma ou fustigadas pelos sopros do sol. Admira as belas carruagens, os garbosos
cavalos, a limpeza reluzente dos lacaios, a destreza dos criados, o anda das mulheres
ondulosas, as belas crianças, felizes por viverem e estarem bem vestidas; resumindo,
a vida universal. Se uma moda, um corte de vestuário foi levemente transformado,
se os laços de fita e os cachos foram destronados pelas rosetas, se a mantilha se
ampliou e o coque desceu um pouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e a saia
alargada, acreditem que a uma distância enorme seu olhar de águia já adivinhou. Um
regimento passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difundindo no ar dos bulevares
suas fanfarras sedutoras e diáfanas como a esperança; e eis que o olhar de G. já viu,
inspecionou, analisou as armas, o porte e a fisionomia dessa tropa. Arreios,
cintilações, música, olhares decididos, bigodes espessos e graves, tudo isso ele
43

absorve simultaneamente; e em alguns minutos o poema que disso resulta estará


virtualmente composto (1986, p. 22).

A partir da análise de Baudelaire sobre a trajetória de Guys, pode-se intuir que


este homem-criança personifica a ideia do artista na modernidade e nos ajuda a compreender
a figura de John Cage. É certo que Constanti Guys retratou a sociedade, a moda e os gestos da
sociedade francesa de seu tempo, enquanto Cage militou nas vanguardas de meados do século
XX, posicionando-se politicamente e esteticamente. Ainda assim, é possível aproximar o
compositor com Baudelaire no aspecto do artista na modernidade. Um artista que sai, corre e
procura ouvir os sons do mundo, transcendendo os sistemas musicais. Uma criança no sentido
da predisposição as mudanças, ao jogo e aos múltiplos interesses. Nesta perspectiva, o
próximo tópico trata de apresentar a trajetória de Cage com ênfase nas décadas de 1940 e
1950.

4.2 JOHN CAGE: O HOMEM DO MUNDO E DAS MULTIDÕES

John Milton Cage Jr. foi filho de John Milton Cage e de Lucretia Harvey, nasceu
em Los Angeles – Califórnia, em 5 de setembro de 1912 e faleceu na cidade de Nova York
em 12 de agosto de 1992. Ao que parece, desde a infância John Cage foi exposto a um
ambiente estimulante e criativo, em uma palestra realizada no núcleo de Artes da UFPA,
Valério da Costa (2002) comenta que o pai de Cage era um inventor, “inventor mesmo,
daqueles que o Estado contratava pra criar uma invenção” (p. 4). Ao concluir o ensino médio,
em 1930, viajou para a Europa em busca de inspiração, pois desejava seguir o ofício de
escritor. Seus interesses, no entanto, não residiam apenas na literatura e poesia, ele também
estudou um pouco de música e arquitetura.
Devido ao Crash da Bolsa de Nova York e a grande crise que se abateu sobre os
Estados Unidos, seus pais não puderam mais financiar sua viajem pela Europa, assim, após
dois anos, ele regressa a Los Angeles. Para manter-se, Costa (2002) relata que Cage
costumava dar palestras sobre a vida e a obra de célebres artistas – compositores, pintores,
dentre outros – para abastadas donas de casa. Ele reunia, em média, uma plateia de trinta a
quarenta pessoas, cobrando aproximadamente dois dólares de cada ouvinte. Certa vez, ao
organizar uma palestra sobre Schoenberg, Cage pensou em analisar uma peça do compositor
e, em seguida, convidar um pianista para executar a música analisada. Assim, entrou em
contato por telefone com o renomado pianista Richard Buhlig (1880 – 1952), convidando-o
44

para tocar de graça em sua palestra. Buhlig recusou o convite, mas, a partir deste primeiro
contato, o pianista começou a ensiná-lo composição.
Em seguida, Cage passa a ter aulas com Henry Cowell (1897 – 1965),29 por volta
de 1933, e com Adolf Weiss (1891 – 1971), em 1934. Weiss era aluno de Schoenberg e com
ele Cage estudou harmonia e contraponto. Logo depois dos estudos com Cowel e Weiss, Cage
começa a frequentar a classe de contraponto, harmonia e análise de Arnold Schoenberg.
Como Cage não possuía condições financeiras para pagar as aulas com Schoenberg, eles
fizeram um acordo em que John Cage prometia devotar a vida dele à música em troca das
aulas. Mas, de acordo com Loureiro (2013), “(...) um ano bastou para que as exigências do
professor já não encontrassem eco no aluno. Schoenberg reprovava sua falta de senso
harmônico, dizendo que isto lhe impossibilitaria escrever música, pois seria como se
encontrasse sempre em seu caminho uma parede intransponível” (p. 218).
Como explicitado anteriormente, ao mesmo tempo em que Schoenberg
investigava novas maneiras de compor, ele era músico apegado à tradição; acreditava que,
antes de aprender a compor, era fundamental o estudo da harmonia tradicional. Em
contrapartida, John Cage não encontrava sentido em revisar os conteúdos de contraponto, de
harmonia e de análise musical, ele questionava constantemente a Schoenberg, “(...) por que
preciso entender harmonia para poder compor?” (COSTA, 2002, s.d., apud Cage). Diferente
de Schoenberg, Cage não demonstrava interesse na tradição e na literatura musical. Em uma
entrevista concedida nos anos de 1991, o compositor afirmou que escutar o som do trânsito
mostrava-se uma experiência mais instigante que ouvir Mozart ou Beethoven.30
Foi através de conversas com o cineasta e diretor de animações abstratas Oskar
Fischinger (1900 – 1967) que Cage engendrou novos caminhos para sua música. Fischinger
produzia animações a partir de objetos abstratos e Cage o ajudava a mover os objetos para que
Fischinger pudesse fotografar e sequenciar as imagens. 31 O cineasta costumava afirmar que
“(...) cada objeto tem um espírito e para você libertar o espírito de cada objeto, você tem que

29
Atribui-se a Cowell a criação e a sistematização do cluster, entidade harmônica que congrega notas sucessivas
em uma escala, ou seja, a sobreposição de segundas maiores e menores. É possível observar a utilização anterior
de clusters nas composições de Leo Ornstein, Charles Ives e Edgar Varèse, mas Hanry Cowell os usou
sistematicamente, mencionando o termo pela primeira vez em Harmonic Development (1921), de coautoria com
Robert Duffus. Além de elaborar a grafia da técnica e desenvolver estudos de execução para piano – palma,
braço e punho.
30
Trecho da entrevista de John Cage, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Hj7rq-gEzgo>.
Acesso: 19 abr. 2017.
31
Exemplo de umas das animações de Fischinger: An Optical Poem (1938) – Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=they7m6YePo>. Acesso em: 04 dez. 2016.
45

pô-lo em vibração” (COSTA, 2002, p. 7). Influenciado por esta ideia, Cage começa a
experimentar os timbres dos objetos, ressaltando que:
Ele [Oskar Fischinger] me falou sobre o que chamava de espírito inerente aos
materiais e declarou que um som produzido a partir de madeira tem um espírito
diferente daquele produzido a partir do vidro. No dia seguinte eu comecei a escrever
música para ser tocada com instrumentos de percussão (KOSTELANETZ, 1993,
p.31, apud COSTA, 2004, p. 24).

De modo geral, enquanto parte dos compositores do pós-guerra buscavam a


reconstituição de um novo sistema musical, John Cage estava mais interessado “(...) pelos
instrumentos de sons indeterminados e pela música e filosofia orientais” (CAMPOS, 2007, p.
133). No final da década de 1930, Cage começa a compor para instrumentos de percussão, a
série Construction marca o início das composições escritas para tambores, maracas, peças de
automóvel, latas, entre outros. De acordo com Costa,
Para o compositor o termo ‘percussão’ não estava relacionado simplesmente à
música obtida através da percussão de objetos, mas referia-se principalmente a um
tipo de realização musical de caráter inclusivo, que admitiria em sua realização
todos os sons, sejam eles ruídos ou sons ditos musicais (COSTA, 2004, p. 24).

Suas composições não eram estruturadas por uma harmonia ou melodia, nem
baseadas em escalas ou em sistemas de alturas, mas em timbres e em espaços temporais.
Nesta fase, o compositor acreditava que a música para percussão seria a música do futuro,
pois supõe que a “nova música” é composta por todos os sons disponíveis – de instrumentos
musicais convencionais, de instrumentos eletrônicos, de sons cotidianos. Milan Kundera
afirma que “Quando o homem criou um som musical (cantando ou tocando um instrumento),
dividiu o mundo acústico em duas partes estritamente separadas: a dos sons naturais e a dos
sons artificiais” (1994, p. 62), no entanto, esta cisão não existia para Cage. A vivência com os
objetos de sons indeterminados representou para ele a não hierarquização dos sons. Conforme
o compositor, “por música nós entendemos som (...)” (2013, p. 21). A tensão não residia mais
entre consonância e dissonância, mas entre sons e ruídos.
Heller (2008) aponta que durante os anos 30 e 40 Cage entendia o silêncio como
“(...) opondo-se ao som; silêncio como ausência de som; silêncio representável pela pausa
musical (a pausa indicando um valor “negativo”, mensurável) (...)” (p. 14). É a partir dos anos
50, com a experiência na câmera anecóica, que Cage passou a compreender o silêncio como
um recurso expressivo e compositivo. Na mesma entrevista em que afirma achar mais
instigante o som do tráfego à Mozart e Beethoven, o compositor ressalta que das experiências
do som, a que prefere é a experiência do silêncio.
46

Assim, Cage inicia sua carreira como compositor, também ministrava cursos de
extensão na Universidade de Los Angeles e trabalhava como acompanhador em estúdios de
dança. Em 1938, Cage participou de um festival de verão no Mills College em São Francisco.
Neste festival, o compositor recebeu uma proposta da dançarina Bonnie Bird32 para integrar o
corpo docente da Cornish School em Seattle, como acompanhador da classe de dança da
bailarina. Bird o convenceu a aceitar o cargo quando ressaltou que na Cornish School existia
uma grande diversidade de instrumentos de percussão e que estariam à sua disposição.
Cornish era uma escola de arte na qual incentivava seus alunos e professores a
organizarem espetáculos interdisciplinares, envolvendo os alunos de música, de dança e de
teatro. Empolgado por este ambiente efervescente e experimental, Cage organizou um grupo
de percussão integrando os dançarinos da Cornish School. O grupo obteve sucesso e
realizaram turnês pela Cota Oeste do país, de modo que Cage passou a receber encomendas
de peças para percussão.
Na década de 1940, em Cornish School, a dançarina e coreógrafa, Syvilla Fort, o
convidou para acompanhá-la em uma performance de caráter africano chamada de
Bacchanale.33 O espaço destinado a performance, no entanto, era pequeno, cabendo apenas os
dançarinos e, no canto da sala, um piano. O que tornou impossível alocar o grupo de
percussão de Cage. Desta forma, John Cage começou a experimentar diversas sonoridades ao
piano com o intuito de obter uma atmosfera de caráter étnico. Dentre as sonoridades
exploradas por Cage estavam: a) composição de música serial b) tocar entre as cordas do
piano, como seu ex-professor, Cowell34 c) posicionar instrumentos dentro das cordas do
piano, a princípio sem fixá-los d) fixar borrachas e parafusos35 entre as cordas do piano.
Dentre as proposta acima, a última foi a que mais lhe agradou. O compositor comenta que,
Eu tinha feito experiências, ao estudar com Henry Cowell. Sabia que ele conseguia
tirar sons raspando e beliscando as cordas do piano, através de pizzicatos e glissandi.
Ampliei esta idéia ao colocar objetos entre as cordas. Inicialmente coloquei uma
fôrma de bolo, não entre as cordas, mas em cima delas. O único problema era que a
fôrma saltava e mexia. Então, vi que faltava qualquer coisa de fixo. Coloquei um
prego, mas também escorregava. Tive a idéia de colocar um parafuso de madeira
entre as cordas e foi exatamente o que eu precisava. O parafuso permaneceu no lugar
bastante tempo para fornecer um som que poderia ser repetido. (CAGE, 1990, apud
POZZO, 2007, p. 47).

32
Bird era uma jovem, talentosa e empreendedora dançarina do grupo de Martha Graham que havia fixado
residência em Seattle em 1937 com o intuito de implementar um programa de dança moderna na Cornish
(MILLER, 2002, p. 49, apud COSTA, 2004, p. 22).
33
Em 1940, compõe sua primeira peça para piano preparado, Bacchanale – Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=vGkQfwj6LeQ>. Acesso em: 24 mar. 2016.
34
Exemplificando, destaco Sinister Resonance (1930), Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=zIZ5vt6a6Uc>. Acesso em: 24 mar. 2016
35
Preparando o piano. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kc3-C7Lnzh0> Acesso em: 24 mar.
2016.
47

A partir da fixação de materiais entre as cordas do piano, Cage construiu uma orquestra de
percussão para apenas um intérprete, intitulando de piano preparado.
Figura 8 – John Cage preparando o piano

Fonte: https://arcano5.com.br/som-e-sil%C3%AAncio-996492602779

Um ano após a estreia de Bacchanale, em 1941, Cage muda-se para Chicago para
lecionar a disciplina de teoria musical na School of Desing. Neste mesmo ano, compõe a partir
de sons amplificados, gravações e música para percussão uma trilha para o programa de rádio,
The City Wears a Slouch Hat, da CBS, que resultou em grande sucesso para o compositor. É
neste período que Cage considera aventurar-se em Nova York e a trabalhar na criação de
efeitos sonoros para rádio e cinema. Cage desejava mudar-se para Nova York, pois achava a
metrópole culturalmente estimulante com a chegada dos artistas europeus Piet Mondrian
(1872 – 1944), Jackson Pollock (1912 – 1956), Marcel Duchamp (1887 – 1968), entre outros,
que haviam se refugiado em Nova York durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945).
Mas, segundo Costa, “as coisas não saíram como o esperado, e ele e sua esposa Xenia
passaram enormes dificuldades financeiras a partir de então” (2004, p. 28). No início de sua
estadia em Nova York, sem muitos recursos financeiros, o compositor teve dificuldades em
estabelecer um novo grupo de percussão. Diante deste impasse, ele resolveu voltar a compor e
atuar no acompanhamento de classes de dança com o piano preparado. O recurso-instrumento
mostrou-se um meio pelo qual Cage pudesse continuar residindo em Nova York.
48

No final dos anos de 1940 e no início de 1950, Cage compõe suas peças mais
relevantes para piano preparado, Sonatas and Interludes (1946-1948),36 Concerto for
Prepared Piano and Chamber Orchestra (1951),37 Two Pastorales (1951)38 e Music of
Change (1951).39 A segunda peça, Concerto for Prepared Piano anda Chamber Orchestra, é
constituída por três movimentos, sendo o último submetido a operações do acaso através do I
Ching - Livro das Mutações. Em Two Pastorales “(...) o intérprete é convidado a tocar apitos
e assobiar junto com os sons de piano normal e preparado” (COSTA, 2004, p. 36). Já Music
of Change é completamente sujeita ao acaso.
Após Music of Change, influenciado pela filosofia zen-budista, Cage deixa de
escrever para piano preparado e concentra-se em “(...) desistir do desejo de controlar o som,
limpar a mente de música e dispor-se a descobrir jeitos de deixar que os sons sejam eles
mesmos (...)” (CAGE, 1957, p. 10, apud HELLER, 2008, p. 51). Sobre o caráter dos sons o
compositor assinala,
Agora, antes de estudar música, homens são homens e sons são sons. Enquanto se
estuda música as coisas não são claras. Depois de estudar música homens são
homens e sons são sons. Isto é: No começo, a gente pode ouvir um som e dizer
imediatamente que não é um ser humano ou algo que se deva olhar; é agudo ou
grave – tem um certo timbre e potência, dura um certo lapso de tempo e a gente
pode ouvi-lo. A gente depois decide se é agradável ou não, e gradativamente
desenvolve uma série de gostos e aversões. Enquanto se estuda música as coisas
ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos: Dó, Ré, Mi,
Fá, Sol, Lá, Si. Sustenidos e bemóis. Dois deles, mesmo separados por quatro ou
mesmo cinco oitavas, têm o mesmo símbolo. Se um som tiver a desgraça de não ter
um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejetado do sistema: é um ruído ou
não musical. Os sons privilegiados que se salvam são arranjados em modos e escalas
ou, hoje, em séries e se inicia um processo abstrato chamado composição. Isto é, um
compositor usa os sons para expressar uma ideia ou sentimento ou uma integração
de ambos. No caso de uma ideia musical, dizem que os sons em si já não são
importantes; o que ‘conta’ é a relação entre eles. Na verdade essas relações são
geralmente bem simples: um cânon é como brincar de pegador. A fuga é um
brinquedo mais complicado; mas pode ser quebrada por um único som: digamos, de
uma sirene de bombeiro, ou de apito de um barco que passa. O máximo que
qualquer ideia musical consegue é mostrar quão inteligente foi o compositor que a
teve; e o modo mais fácil de descobrir o que era a ideia musical, é você se colocar
num tal estado de confusão que você passe a pensar que um som não é algo para se
ouvir mas, sim algo para se olhar. No caso de um sentimento musical, nova-mente
os sons não são importantes, e o que conta é a expressão. Mas o máximo que se
pode conseguir com a expressão mu-sical de sentimentos é mostrar como era e-
motivo o compositor que a teve. Se alguém quiser ter uma ideia de quão emotivo um
compositor demons-trou ser, ele tem de se confundir tão completamente quanto o
compositor o fez e imaginar sons não são sons mas são Beethoven e que homens não

36
Sonatas and Interludes (1946-1948) – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=26K9f8n6ymU.
Acesso em: 22 jun. 2017
37
Concerto for Prepared Piano and Chamber Orchestra (1951) – Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=olIPcZIVPIU&t=25s>. Acesso em: 04 dez. 2016.
38
Two Pastorales (1951) – Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=7P28XLs0mTc>. Acesso em:
04 dez. 2016.
39
Music of Change (1951) – Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eAjKD12RkEY>. Acesso em:
04 dez. 2016.
49

são homens, mas sons. Qualquer criança nos dirá: simplesmente esse não é o caso.
Um homem é um homem e um som é um som. Para chegar a isso, a gente tem de
dar um paradeiro ao estudo da música. Isto é a gente tem de eliminar todos os
pensamentos que separam a música da vida. Há todo o tempo do mundo para estudar
música, para viver não há quase tempo nenhum. Porque viver ocorre a cada instante
e esse instante estará sempre mudando. A coisa mais sensata a fazer é abrir os
ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente an-tes que o pensamento tenha a
chance de transfor-má-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico. Sons são sons e
homens são homens, mas agora nossos pés estão um pouco fora do chão (CAGE,
2013, p. 96 - 98).

Através da citação acima é possível intuir que os sons, para Cage, eram a expressão da própria
vida. Ele desejava ouvi-los e experimentá-los como eles eram e não como se convencionaram
por meio de símbolos musicais.
Figura 9 – John Cage (1955)

Fonte: http://johncage.org/beta/blog.html

É também neste período que o compositor, inicia operações com o acaso e com a
música indeterminada. A terminologia acaso é usada para designar procedimentos que
utilizam sorteios, jogos de moedas e cartas para estruturar a composição e conservar a ideia
musical na partitura. Já os termos indeterminado e aleatório40 são empregados quando o
intérprete é convidado a intervir na peça, “(...) ao intérprete é legado um nível de liberdade
para re-modelar o resultado sonoro e que mesmo o compositor deveria surpreender-se com
ele” (COSTA, 2009, p. 21). De acordo com Cage,
Acaso refere-se ao uso de certos procedimentos randômicos no ato de composição
(...) indeterminação, por outro lado, refere-se à possibilidade de uma peça ser tocada
de modos substancialmente diferentes – ou seja, a obra existe de uma forma tal que
ao interprete é dada uma variedade de maneiras de tocá-la (ROSSI e BARBOSA,
2015, n.p, apud PRITCHETT (1999).

40
Enquanto os norte-americanos utilizavam o termo indeterminado, os europeus preferiam a utilização da
terminologia aleatória.
50

Griffiths constata que “(...) tanto o serialismo integral, quanto a composição


eletrônica, que haviam despertado tantas esperanças, revelaram-se ambas permeáveis à
influência do acaso” (2001, p. 159 – 160). No serialismo, o compositor perde parte do
controle da composição, pois a composição baseia-se no maneio dos números e, na música
eletrônica, os sons não podem ser estabelecidos com muita precisão. Griffiths pontua que
nestas duas tendências “impunha-se alguma forma de adaptação à desordem, quem sabe
tentando fazer do acaso uma escolha” (2001, p. 160).
John Cage, entretanto, não sentia urgência em determinar uma ordem no acaso.41
Em 4’33’’ (1952), o compositor determina apenas a duração da peça, “(...) o executante não
toca. Quem faz a música é o público, provocado pelos insuportáveis minutos de silêncio”
(CAMPOS, 2007, p. 134). Em entrevista com Joan Retallack, Cage descreveu 4’33’’ da
seguinte forma,
(...) eu só penso nela como a escuta de um período de tempo em que não existe
nenhum som sendo produzido. E, assim, eu escuto os sons que aparecem na situação
– qualquer que seja ela. E escuto com tanta atenção quanto eu puder. E é claro que
eu não sei quanto minha audição é boa. Eu não sei se escuto tão bem quanto teria
escutado quarenta anos atrás, quando isso aconteceu. (risos) Agora, eu penso nisso
mais em relação ao mundo como um todo. E tenho outra forma dessa peça que leva
o silêncio da sala até o nível da microfonia, mas não permite que a microfonia seja
ouvida, apenas sentida, de modo que não percebe que está em situação eletrônica
que pode ser dolorosa. Mas não é, hum? Mas poderia ser. E, nesse silêncio altamente
eletrificado, eu saio do palco e vou me sentar na plateia e experimento isso por um
período indefinido de tempo. E, então, quando já é suficiente para mim, volto para o
palco e acabou. O que está na minha mente – poderia haver alguma ironia -, mas o
que eu acho que estou mostrando é que nós mudamos o ambiente, e que não é
mais... agora é um silêncio tecnológico, hum? Agora, o silêncio inclui a tecnologia.
De uma forma que não é necessariamente... boa. Isso poderia envolver, hum, ironia?
Ou algum tipo de crítica? (CAGE, 2015, p. 197 – 198).

Por vezes, 4’33’’ é compreendida como uma obra conceitual, mas a partir da fala
de Cage pode-se intuir que o compositor propõe uma experiência indissociada da vida e da
realização material da arte. Cage acreditava que ofício do compositor havia mudado, “um
compositor, que não mais organiza sons numa peça, simplesmente facilita um
empreendimento” (2013, p. 68). Assim, se e a audiência tinha ouvidos, então teria de exercitá-
los, nas palavras dele: “qual o x do problema, no que concerne ao ouvinte? É o seguinte: ele
tem ouvidos; deixe-o usá-los” (2013, p. 30). Esta era a proposta da arte de Cage, compartilhar
experiências,
A Arte, em lugar de ser um objeto feito por uma pessoa, é um processo
desencadeado por um grupo de pessoas. A Arte está socializada. Não é alguém
dizendo alguma coisa, mas pessoas fazendo coisas, dando a todos (inclusive àqueles

41
O acaso tornou-se uma força propulsora no trabalho de Cage, não apenas em sua música, mas também em sua
obra literária.
51

envolvidos) a oportunidade de ter experiências que de outra forma não teriam tido
(CAGE, 2013, p. 151).

Ainda no início dos anos 50, Cage admite o silêncio, não mais como um valor
negativo, mas como um recurso compositivo, expressivo e reflexivo. A constatação se deu na
Universidade de Harvard, a partir se sua experiência em uma câmera a prova de som, chama
de câmera anecóica. Durante o teste o compositor afirma ter escutado dois sons, um agudo e
um grave - o som agudo corresponde ao sistema nervoso e o grave corresponde à circulação e
aos batimentos cardíacos. Conforme Cage,
Eu pensei, honesta e ingenuamente, que existia de fato um silêncio (...) por mais que
tentemos fazer silêncio, não o podemos: não há silêncio que não esteja
grávido/prenhe de som; nenhum som teme o silêncio que o extingue, e não há
silêncio que não esteja grávido de sons (HELLER, 2008, p. 20 apud Cage).

Assim, o silêncio é um som não intencional. Cage afirma que o silêncio atual, em quase todas
as partes do mundo, é o som do trânsito. Outro fator que culminou em 4’33’’ foi o
(...) acesso às telas inteiramente pretas ou inteiramente brancas de Rauschenberg
pintadas em 1949. Rauschenberg afirmava na ocasião que uma tela não seria nunca
totalmente esvaziada, atraindo para ela no mínimo a poeira e os resíduos que se
encontravam soltos na atmosfera. Ao ter contato com tais obras Cage percebeu que
poderia adotar uma solução análoga na área da música, e 4'33" aparece como um
nítido reflexo da mesma idéia fundamental (BOSSUEUR, 2000, s.d., apud
LAUREIRO, 2013, p. 226).

O ano de 1952 apresenta-se como um período efervescente na trajetória de John


Cage, ao mesmo tempo em que aprofunda os estudos na filosofia oriental e dedica-se a
intervenções por meio do acaso, junto o pianista David Tudor, o artista Robert Rauschenberg,
o poeta Charles Olson e o coreógrafo Merce Cunningham fomentam intervenções de arte
interdisciplinar, denominadas de happening. O happening é um subgênero da arte conceitual
denominada de arte performática, é deste movimento que emergem os flash-mobs, teatros
participativos e festivais de arte interdisciplinar. De acordo com Cage, “um ouvido sozinho
não é um ser. Por isso, encontramos sempre mais obras de arte, visuais ou audíveis, que já não
são estritamente música nem pintura. Em Nova York são chamados “happenings”” (2013, p.
32). Por meio dos happenings, objetivavam-se a reintegração entre a vida e a arte.
Assim como as sombras já não destroem a pintura, nem os sons ambientais a
música, as atividades ambientais não destroem um happening. Ao contrário, podem
causar mais prazer. O resultado, para citar um exemplo da vida diária, é que nossas
vidas não são perturbadas pelas interrupções promovidas continuamente pelas
pessoas. (...) [a arte] não se separa do resto da vida, mas em vez disso confunde a
diferença entre Arte e Vida, assim como minimiza as distinções entre tempo e
espaço (CAGE, 2013, p.32).

Para Cage, os happenings representavam uma forma de vida em si, abertas a


imprevisibilidade e ao acaso. Confirmando esta ideia, Cage esclarece “quando vou a um
52

happening que me parece regido por uma intenção, vou-me embora dizendo que aquilo não
me interessa” (1968, n.p, apud BOSSEUR, D., BOSSUER, J., 1990, p. 162).
O primeiro evento, que se têm notícia ocorreu em 1952 no Black Mountain
College, Carolina do Norte, sob o título de Untitled Event. Cage e seus parceiros propuseram
intervenções ao vivo, congregando múltiplas linguagens artísticas. A seguir, Heller descreve a
performance,
(...) Cage, do alto de uma escada, lia em voz alta sua Conferência na Juilliard,
enquanto em outra escada M. C. Richards e Charles Olson liam poemas; suspensos
desde o teto encontravam-se quatro quadros branco sobre-branco de Robert
Rauschenberg, enquanto em uma parede se projetavam slides e um filme de
Nicholas Cernovitch; Rauschenberg operava um toca-disco, produzindo ruídos ao
raspar a agulha sobre o vinil, Merce Cunningham dançava (seguido,
inadvertidamente, por um cão) e David Tudor tocava piano (2008, p. 21-22).

Segundo Gompertz, o evento foi um caos, mas “(...) divertidíssimo e a arte


performática dera seu primeiro passo experimental rumo à notoriedade” (2013, p. 335). Desta
maneira, Cage, Rauschenberg e Cunningham firmaram parceria e começaram a fomentar
diversos projetos. Ao som da música de Cage, Cunningham dançava em cenários preparados
por Rauschenberg.

Figura 10 - John Cage, Merce Cunningham e Robert Rauschenberg

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/181269953722724885/

Em meados da década de 1950, Cage começa a utilizar a indeterminação em suas


composições. O termo foi proposto por ele em 1958 ao ministrar a conferência Indeterminacy
no curso de verão em Darmstadt Music School (Hessen, Alemanha) a convite do compositor
Stockhausen. Mas, os mais entusiastas em relação ao seu trabalho eram os compositores
norte-americanos.
53

Por esta época, ele havia atraído em Nova York um grupo de colegas com
preocupações afins, entre eles o pianista David Tudor e os compositores Morton
Feldman (1926), Earle Brown (1926) e Christian Wolff (1934). O grupo ligou-se
também aos artistas plásticos estabelecidos na cidade, como Jackson Pollock e
Alexander Calder (...) (GRIFFITHS, 2011, p. 160).

Na música indeterminada ou aleatória as partituras de notação musical


tradicionais foram substituídas por notações gráficas. Neste tipo de registro, a leitura torna-se
menos precisa, permitindo maior liberdade ao interprete. Neste contexto, a relação
compositor-executante ganha outra configuração,
(...) é evidente a importância do contexto estético e o envolvimento do intérprete na
realização das obras indeterminadas. Mais do que ler a partitura e entender as
notações propostas, é necessário uma imersão no estilo proposto pelo compositor
(...) o compositor se propõe a abrir mão de diversas escolhas e a perder o controle do
resultado final, enquanto que o intérprete passa a ter um papel ativo nas escolhas dos
caminhos da peça, agindo também como compositor (ROSSI e BARBOSA, 2015,
p.n).

A concepção de forma móbil em música não é nova e nem uma característica exclusiva do
século XX, Griffiths assinala que,
Até mesmo o manejo do acaso desenvolvido por Cage tinha precedentes nas
publicações do final do século XVIII que forneciam materiais musicais a serem
transformados em “composições” segundo os resultados do jogo de dados. Mas a
introdução do acaso em meados do século XX foi diferente em escala e importância.
No caso extremo de Cage, levou á completa subversão do conceito ocidental de peça
musical como obra de arte permanente, e mesmo à negação da necessidade de
compor. “A música que prefiro”, disse Cage, “à minha própria e à de qualquer outro,
é a que ouvimos quando nos mantemos em absoluto silêncio” (2011, p. 164).

Deste modo, analisar a trajetória de John Cage nos ajudou a pensar na experiência
musical derivada de uma relação implícita com a experiência cotidiana e no tempo. Suas
intervenções parecem ser respostas às demandas da lida com a arte. Importante salientar que,
para Cage, a música parecia estar diretamente relacionada à execução, à performance e ao
sentindo prático. Em entrevista a Duckworth, Cage esclarece que a maioria de suas obras
foram encomendadas ou elaboradas para algumas de suas conferências. Na perspectiva do
compositor,
Não gosto quando alguém escreve grandes peças para orquestra quando não foi
comissionado por uma orquestra. A razão pela qual eu não gosto disso é que meu
primeiro professor, Adolph Weiss, tinha uma pilha de músicas que nunca haviam
sido tocadas e ele acabou se tornando uma figura socialmente amargurada. Ele se
tornou um exemplo para mim do que não devo me tornar. Não creio que haja uma
peça minha que não tenha sido tocada (DUCKWORTH, 1987, p.26, apud COSTA,
2004, p. 28).

Ao que parece, Cage não postulava compor gerando excedentes. Mas, respondia a um sentido,
uma interação.
54

Por volta dos anos de 1950, quando inicia suas investigações na filosofia zen-
budista, no acaso e na música indeterminada, o compositor excede a percepção dos sistemas
musicais como gramática, se atendo ao som como uma experiência sensível, estética.
Cuando yo hablo sobre música, termina pareciendole a la gente de que estoy
hablando sobre el sonido de que no significa nada, de que no es “interno” sino más
bien “externo” y ellos diece, éstas personas que entendieron eso finalmente, dicen,
¿te referis a que son solamente sonidos? Pensando... que para algo el ser solo um
sonido fuera algo inútil. Mientras, yo amo a lós sonidos tal y como son. Y no tengo
necessidad alguna, de que sean nada más de ló que son. No quieron que sean...
“psicológicos” no quiero que um sonido pretenda que es um balde, o de que es...
presidente o de que está enamorado de outro sonido. (risas) Sólo quiero que sea um
42
sonido

Diante da vontade de Cage em compreender os sons como eles são e não como códigos
musicais, ou psicológicos, ou que representem um compositor, como licenciada em música
me questiono, será que isso não revela que as abordagens de ensino musical pensam no fazer
artístico como uma atividade excessivamente conduzida, deixando de lado a escuta, a
improvisação, a experimentação e o acaso e a matéria ‘som’ como algo pleno de
possibilidades, para além dos sistemas?
É relevante ressaltar que, por volta da década de 1960, Cage compôs uma peça
para televisão e um performer, evidenciando que suas intervenções não estavam restritas
apenas nas academias e nas escolas de artes, aos espaços destinados a performance, mas
ocupavam as ruas, a televisão e o rádio.43

Figura 11 – Trecho da partitura Water Walk (1959), apresentada em um TV Show em


Janeiro de 1960.

Fonte: Elaborada pela autora

42
Trecho da entrevista de John Cage, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Hj7rq-gEzgo>.
Acesso: 19 abr. 2017.
43
Cage apresenta Water Walk (1959) em um famoso TV Show. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=SSulycqZH-U>. Acesso em: 08 jul. 2017
55

Cage também tem consciência que a arte interage com a política, mas, ao mesmo
tempo, o compositor não a torna o tema de suas intervenções, “(...) porque embora eu não
esteja envolvido na política, tenho enquanto artista uma certa intuição do conteúdo político da
arte, o qual não inclui a política” (CAGE, 1968, n.p, apud BOSSEUR, D., BOSSUER, J.,
1990, p. 163).
Em síntese, pode-se intuir que John Cage personifica o homem do mundo e das
multidões apontado por Charles Baudelaire. Um homem cosmopolita, curioso, que vive no
presente e que “se interessa pelo mundo inteiro”. Sobre as aquarelas de Constanti Guys,
Baudelaire comenta que eram imagens extraídas a partir de suas viagens, afirmando que Guys
traduzia no papel as imagens “que lhe povoavam o cérebro”. De modo análogo, pode-se
entender a obra de John Cage, como respostas as demandas de seu tempo, como intervenções
que partiam da experiência cotidiana e a escuta na captura do presente.
56

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como mencionado na introdução, 4’33’’ foi o ponto de partida para os


questionamentos que nortearam este trabalho. Quatro minutos e trinta e três segundos de um
silêncio ensurdecedor, e como “todo silêncio é grávido de som”, este silêncio veio repleto de
questões.
Assim, com o intuito de compreender o cenário de onde as vanguardas surgiram,
recorreu-se a leitura de Charles Baudelaire, que foi um dos primeiros a tentar captar a
essência da vida moderna. Em seu ensaio, O pintor da vida moderna (1996), Baudelaire
enfatiza que a arte repousava em um lugar tão obsoleto que, ao observar as exposições de
quadros modernos, parte deles representava os gestos e as modas dos séculos anteriores.
Ainda neste período, meados do século XIX, são organizadas instituições com o objetivo de
preservar e conservar a arquitetura, a pintura e a música, ao mesmo tempo em que população
começa a sentir os impactos impostos pela revolução industrial - desenvolvimento das
grandes metrópoles, fábricas, máquinas, meios de transporte e comunicação. Como Berman
descreve, os sujeitos do século XIX vivem em uma profunda dicotomia, pertenciam,
simultaneamente, a dois mundos, um mundo em constante modernização, enquanto as artes
situavam-se no regime representativo. Mediante tantas transformações na paisagem visual e
sonora, Baudelaire assinala que, embora seja interessante estudar os antigos mestres para
aprender a pintar, é importante apreender o caráter da beleza atual, de captar o instante, o
efêmero e estar com os sentidos no tempo presente.
Neste contexto, as vanguardas emergem com um desejo de reavaliar o lugar da
arte, de questionar o establishment e, como ressalta Gompertz, de documentar o mundo
moderno. No entanto, de acordo com a análise da arte ao longo da história, Rancière pontua
que a partir do regime representativo, as dimensões arte e cultura foram desvinculadas,
distanciando a arte da experiência comum dos sujeitos. No regime estético, que abriga a
noção de modernidade, a arte deixa de representar o mundo real e passa a ser acompanhada de
bulas e manifestos, tornando-se uma forma autônoma da vida. No âmbito das vanguardas na
música, percebe-se em parte dos compositores um interesse em reconstituir um novo código
musical, ao passo que a postura de Cage como artista modifica a ideia do especialista ou dos
demais compositores focados nas novas tecnologias e possibilidades predominantemente
musicais, embora esteja inserido no ambiente das vanguardas e vinculado a uma reformulação
e inovação da arte.
57

Neste sentido, com o objetivo de compreender John Cage, recorremos novamente


à leitura de Charles Baudelaire sobre quem é o artista na modernidade. Ao investigar a
trajetória de Guys, Baudelaire apreendeu estar diante de um homem cosmopolita e de
múltiplos interesses, pertencente ao mundo e as multidões. Conforme o poeta, este homem
também apresenta o espírito da criança, com relação a entender o mundo como jogo, como
acaso, como abertura e interesse constante.
Tais características podem ser percebidas desde o início da trajetória de Cage.
Após o término do colegial, Cage vai à Europa em busca de inspiração para seguir a carreira
de escritor. No entanto, como destaca Baudelaire, o homem das multidões, interessa-se pelo
mundo inteiro, assim, em sua excursão, Cage acaba estudando música e arquitetura. Este
interesse pelo mundo inteiro também se manifesta na sua associação com cineastas,
dançarinos e artistas plásticos.
A criança curiosa e inquieta também desponta em todo seu percurso, sobretudo
em sua obra para percussão, para piano preparado e no uso do acaso. Ao encerrar seus estudos
com Schoenberg, Cage engendra novos caminhos para sua música a partir de conversas com o
cineasta Oskar Fischinger. O compositor comenta que logo depois de Fischinger declarar que
todo objeto possui um espírito e para libertá-lo é preciso colocá-lo em vibração, ele começa a
experimentar os objetos de sons indeterminados. Em relação ao piano preparado, ressalta-se
que foi criado a partir das demandas do cotidiano do compositor e na experimentação de
recursos fixados entre as cordas do piano.
Em resumos das ideias apresentadas, o que podemos aprender com estes dois
mestres antigos, Baudelaire e Cage, é pensar na experiência artística imbricada no cotidiano e
no tempo presente, mantendo os sentidos abertos à captura do presente. Com Cage,
especificamente, aprendemos que, para fazer música, não é necessário grande aparato, apenas
ter os ouvidos atentos, “para obter o som nosso de cada dia (...), a cada momento (não importa
onde vivamos), para fazer nossa música. (Não estou falando de nada especial, só de ouvido
aberto, mente aberta e saber apreciar os ruídos diários.)” (CAGE, 2013, p.34). Nesta
perspectiva, ele nos ensina a fruir esteticamente com a matéria som independente de sistemas,
favorecendo uma escuta estética do mundo contemporâneo nas suas inúmeras contradições.
58

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