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Guilherme Buzatto
2019
Guilherme Buzatto
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Gabriela Silva (Orientadora)
_____________________________________________
Prof. Dr. Enéias Tavares (1º arguidor)
____________________________________________
Prof. Dr. Deonir Kurek (2º arguidor)
_____________________________________________
Prof. Dr. Rosângela Fachel de Medeiros (3º arguidor)
Not by chance, the fragmentation, the complexity, the emptying of meanings and the
mobility of identities in the contemporary world have been objects of study in the
various areas of knowledge. Literature, in this sense, has much to contribute
because, with its mimetic capacity, while distancing itself to capture differences, it
approaches social, cultural and historical universes, projecting, beyond that which is
familiar, new possibilities of knowledge. From this perspective, the present work
aims to study the character and its narrative implications in the production of
meanings that formulate a possible image of contemporary man. From the reading
of the novel American Gods, under the comparative bias, we analyze the character
Shadow, protagonist of the narrative, in order to observe how the projection of the
image of man is constituted, considering the approximations and the distances from
what is known, by convention, as hero, from the theories of Bernard Knox and
Joseph Campbell. American Gods is the tortuous trajectory of Shadow, a former
convict, in the midst of an ideological war that, in turn, also challenges ethics and its
universal truths. The novel features gods who are human (not just humanized),
weakened and of dubious values, struggling for power, and a man who, while
marginalized, plays a key role in the world. In narrative construction, discourse
decentralization and the end of the ethical or dichotomous polarities that guide
modernity are verified – Shadow's identity is endowed with such complexity that
there is no room for simplification or ready-made formulas, it is found in route in the
experiencing of its own recognition in the midst of the war projected by the world.
Thus, the work is justified by being a reflective and analytical study of the literary
work that aims to investigate the modes of representation of the contemporary world,
its modes of dialogue with tradition and its vision as a prospect for future realities.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
3 AS SOMBRAS DO HERÓI 61
REFERÊNCIAS 136
10
INTRODUÇÃO
personagem. O choque entre os valores desses universos simbólicos tem seu ápice
na narrativa como um Ragnarök1 pós-moderno. A pós-modernidade, por si só, é
onipresente. As relações entre os indivíduos, a representação e o comportamento
das divindades, tudo é onipresente. Como sustentação dos mitos, os homens
precisam ter muita crença ou fé. Os deuses, que são materializados na figura
humana, têm suas identidades em crise e suas sobrevivências dependem da fé dos
homens. Questionam-se por que continuar a habitar em um mundo que se
esqueceu deles; por que não dar passagem aos novos deuses, objetos de adoração
que surgem com os avanços tecnológicos e as sociedades de consumo em massa,
exemplificados por personagens como Techno Boy2 e Media3?
Além da interpretação analítica da personagem, guia-me, nos capítulos que
serão apresentados a seguir, a ideia de explorar os significados que ligam as
mitologias e o mundo contemporâneo, sobretudo com relação ao diálogo
estabelecido entre algumas persistentes simbologias e seus efeitos na constituição
das identidades contemporâneas. O romance em análise, conforme minha leitura,
versa principalmente sobre o trânsito de determinados valores sociais e espirituais,
sobre a crise das subjetividades, sobre a condição do homem que se situa nos
abismos “entre” lugares do mundo.
Deuses americanos, de Neil Gaiman, foi publicada pela primeira vez no ano
de 2001 nos Estados Unidos e na Inglaterra, na versão original em inglês. A obra
foi traduzida para o português por Ana Ban e lançada no Brasil, em 2002, pela
editora Conrad. Uma década mais tarde, em 2011, o livro foi publicado novamente
em Edição Preferida do Autor, numa versão ampliada incluindo extras; foi relançado
também no Brasil, agora pela editora Intrínseca, com nova tradução, feita por
Leonardo Alves, cuja edição, de 2016, é a que se utiliza neste estudo.
1
Ragnarök é o evento escatológico ocorrido na mitologia nórdica, formado por uma sequência de
eventos, iniciados por desastres naturais, que culminam em uma grande batalha final travada entre
os deuses e seus inimigos, conduzindo ao fim do mundo.
2
Techno Boy é o primeiro dos chamados deuses novos a aparecer no romance, já no capítulo DOIS,
descrito como um “jovem gordo” que “parecia recém saído da adolescência” (GAIMAN, 2016, p. 64),
fumando um cigarro que exala um cheiro de “peças queimadas de equipamentos elétricos”
(GAIMAN, 2016, p. 65).
3
Mais uma das divindades modernas, Media (palavra em inglês para “mídia”), introduzida no capítulo
SETE através de um aparelho de televisão em que Shadow assistia a um seriado, cuja personagem
foi utilizada para conversar com o protagonista. Nessa conversa, Media define a si mesma assim:
“Eu sou a mãe dos idiotas. Sou a televisão. Sou o olho que tudo vê, sou o mundo do raio catódico.
Sou a expositora de tetas. O pequeno altar em torno do qual a família se reúne para louvar”
(GAIMAN, 2016, p. 173).
12
Eu era um leitor. Eu amava ler. Ler coisas me dava prazer. Eu era muito
bom na maioria das matérias na escola, não porque eu tinha qualquer
aptidão particular para elas, mas porque normalmente no primeiro dia de
aula entregariam livros didáticos, e eu os leria - o que significa que eu sabia
o que estava por vir, porque eu teria lido4 (ABBEY, 2010, p. 66)
Foi através dessa exposição precoce à leitura que o hoje renomado escritor
descobriu em si a aspiração para perseguir sua atual profissão, sobretudo pelo
contato com os verdadeiros universos cujo adentramento é possibilitado através das
páginas de livros de grandes escritores como Tolkien e C.S. Lewis, os quais Gaiman
cita como os responsáveis pelo florescimento da sua vontade de imaginar e dar
forma, através da escrita, aos seus mundos próprios, às suas próprias histórias.
E foi assim que Gaiman deu início à sua carreira: escrevendo sobre aquilo
que lhe interessava, sem pontos de partidas e sem vislumbrar pontos de chegada,
até mesmo imitando, de certa forma, seus autores favoritos. Ele afirma que, ao reler
os livros favoritos da sua infância para seus filhos, deu-se conta do quanto tinha
tomado emprestado deles em seus escritos, como o ritmo ou até mesmo algumas
frases, tal era a forma que essas obras haviam se entranhado nele. No entanto,
para ele, o que diferencia cada autor é que cada pessoa, e somente elas mesmas,
podem contar suas próprias histórias, mesmo que para isso tenham que usar uma
4
I was a reader. I loved reading. Reading things gave me pleasure. I was very good at most subjects
in school, not because I had any particular aptitude in them, but because normally on the first day of
school they'd hand out schoolbooks, and I'd read them—which would mean that I'd know what was
coming up, because I'd read it (Tradução livre).
15
outra voz até encontrar a sua, conforme é possível entender na afirmação que
segue:
Conte a sua história. Não tente contar histórias que outras pessoas
poderiam contar. Porque como um escritor iniciante, você sempre começa
com vozes de outras pessoas - você tem lido outras pessoas por anos…
Mas, tão rápido quanto possível, comece a contar histórias que só você
pode contar - pois sempre haverá escritores melhores que você, escritores
mais espertos que você… Mas só você é você.5. (GAIMAN, 2017, ep. 106)
Se você gosta de fantasia e quer ser o próximo Tolkien, não leia grandes
fantasias Tolkieniescas. Tolkien não lia grandes fantasias Tolkieniescas,
ele lia livros sobre filologia finlandesa. Vá e leia fora de sua zona de
conforto, vá e aprenda coisas6(GAIMAN, 2017, ep. 106)
5
Tell your story. Don’t try and tell the stories that other people can tell. Because [as a] starting writer,
you always start out with other people’s voices — you’ve been reading other people for years… But,
as quickly as you can, start telling the stories that only you can tell — because there will always be
better writers than you, there will always be smarter writers than you … but you are the only you
(tradução livre).
6
If you like fantasy and you want to be the next Tolkien, don’t read big Tolkienesque fantasies —
Tolkien didn’t read big Tolkienesque fantasies, he read books on Finnish philology. Go and read
outside of your comfort zone, go and learn stuff (tradução livre).
16
eu não seria quem eu sou sem bibliotecas. Eu era o tipo de criança que
devorava livros, e meus momentos mais felizes enquanto garoto eram
quando eu persuadia meus pais a me deixarem na biblioteca local a
caminho do trabalho, e eu passava o dia lá.7
Iniciou sua carreira de escritor atuando como jornalista, ainda em seu país
de origem. Alguns de seus primeiros trabalhos como escritor incluíam biografias,
como a da banda inglesa Duran Duran e a do escritor Douglas Adams, autor d'O
Guia do Mochileiro das Galáxias, cuja versão traduzida para o português
comercializada no Brasil leva o título Não entre em pânico: Douglas Adams e o guia
do mochileiro das galáxias.
Gaiman alcançou grande destaque internacional, primeiramente, como
roteirista de quadrinhos a partir de 1989, ano de início da publicação da aclamada
série Sandman, que se estendeu por 75 edições, sendo finalizada no ano de 1996.
Durante a vigência do período de seu lançamento, a série foi condecorada com
vasto número de prêmios de grande importância nos Estados Unidos, incluindo
nove Will Eisner Comic Industry Awards e três Harvey Awards, além de um notável
World Fantasy Award de Melhor História Curta em 1991, que confere à série a
distinção de ter sido a primeira história em quadrinhos a ganhar um prêmio literário.
Hoje, com um currículo extenso que inclui, além de histórias em quadrinhos
e os romances para adultos, Deuses americanos, Lugar nenhum, Anansi boys,
Belas maldições (uma coautoria com Terry Pratchett, seu conterrâneo), Stardust, O
oceano no fim do caminho, também livros infantis e infanto-juvenis, inúmeros
contos, roteiros e produções de séries televisivas, o autor goza de grande
popularidade junto ao público norte-americano e por todo o globo. Seu nome está
7
"I wouldn't be who I am without libraries. I was the sort of kid who devoured books, and my happiest
times as a boy were when I persuaded my parents to drop me off in the local library on their way to
work, and I spent the day there. I discovered that librarians actually want to help you: they taught me
about interlibrary loans" (tradução livre). Trecho retirado do site pessoal do autor, disponível no link:
http://www.neilgaiman.com/About_Neil/Biography. Acesso em: 04 set 2017.
17
8
“Originally considered too frightening for children” (tradução livre). Trecho retirado do site pessoal
do autor. Disponível em: http://www.neilgaiman.com/About_Neil/Biography. Acesso em: 04 set 2017.
9
In this novel, Gaiman closely examines American character and ideology through his use of gods
appropriated from other cultures recast in Americanized molds. Through these gods, the humans
they encounter, and the depictions of the lands they travel, Gaiman gives us his own outsider’s
perspective on American identity through its own mythology (tradução livre).
18
Conforme já dito, o livro foi lançado pela primeira vez nos Estados Unidos no
mês de junho do ano de 2001. Às vésperas do início do verão no hemisfério norte,
o romance trazia já estampado na capa, bem como repetidamente ao longo da
narrativa, o prenúncio de uma grande tempestade. Com a perspectiva que se tem
hoje, passadas quase duas décadas inteiras desde o lançamento, os temas e o tom
do livro parecem proféticos, levando-se em conta principalmente os ataques às
Torres Gêmeas, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, que ocorreriam
alguns meses mais tarde naquele ano, no dia 11 de setembro.
Em forma embrionária, no entanto, a obra já existia desde aproximadamente
uma década antes, como conta Gaiman na introdução à edição do livro lançada
posteriormente, em comemoração aos dez anos de sua publicação:
Portanto, Gaiman se muda para os Estados Unidos no início dos anos 90, no
auge do sucesso de Sandman, vindo de um país que possui com seu novo lar
alguns pontos de ligação, como a língua e a história compartilhada, tanto pelo
processo de colonização sofrido pelo país norte-americano, quanto pela
participação de ambos no mesmo lado nas duas grandes guerras ocorridas na
primeira metade do século. Por outro lado, existem também enormes diferenças
entre eles: a Inglaterra é um país consideravelmente menor, além de estar
localizado em uma ilha, por isso mesmo apartado e, no entanto, politicamente
pertencente ao continente europeu, cuja história documentada remonta há muitos
séculos anteriores à ocupação do Novo Mundo pelos povos ocidentais de matriz
europeia.
Durante o período em que escrevia o romance, enquanto se ambientava ao novo
lar, Gaiman viajou por vários lugares diferentes dentro do território dos Estados
Unidos, país que agora tinha se tornado sua nova casa. “Escrevi meu livro em
muitos lugares – casas na Flórida, uma cabana em um lago do Wisconsin, um
quarto de hotel em Las Vegas” (GAIMAN, 2016, p. 8), diz ele na introdução do
19
romance. Inspirando-se nos locais pelos quais passou em sua exploração, Gaiman
escolhe como cenários principalmente locais de passagem, o que reforça a
impressão de movimento constante, bem como da desestabilização de seu
protagonista. O leitor encontra Shadow principalmente em quartos de hotel, ou
posando por uma noite na casa de alguém que acabara de conhecer, ou dirigindo
por vários quilômetros em estradas secundárias, parando aqui e ali em bares e
restaurantes e outros lugares pitorescos como atrações de beira-de-estrada.
Talvez cause estranheza ao leitor imaginar que possa ser tão grande o
choque causado em um inglês pela nova residência em solo estadunidense, dada
principalmente a onipresença de elementos culturais característicos dos Estados
Unidos em quase todo o globo terrestre, especialmente no ocidente - a música em
diversos gêneros como o blues, o jazz, o rock n’ roll, o pop, o hip-hop; o cinema e a
televisão, representada pelos seriados, programas, como os talk shows, e canais,
como a MTV; a moda; as redes de fast food; e os shopping centers, apenas para
citar alguns dos símbolos norte-americanos que se espalharam e se reproduziram
mundo afora. Conforme se lê no artigo The discursive construction of Americanism
(“A construção discursiva do americanismo”, em tradução livre), publicado na revista
Discourse & Society por Thomas Ricento:
Muitas pessoas que moram nos Estados Unidos têm uma impressão da
identidade americana que se baseia nas narrativas sobre a história dos
Estados Unidos que elas leram nas escolas ou viram representadas na
televisão ou no cinema. Os “detalhes” se perdem em generalizações e
aquilo que evoluiu para se tornar a visão dominante sobre a “América” com
o tempo (e.g. como representada em textos escolares de história, ou na
mídia convencional), quer se goste ou não do que isso representa, é um
modelo, ou construção, coerente (ainda que reduzido, para não dizer
distorcido) do desenvolvimento e identidade nacional10 (RICENTO, 2003,
p. 614)
Porém, os Estados Unidos que o leitor visita ao ler Deuses Americanos não
é o mesmo país que habita o imaginário dos consumidores de seus produtos de
exportação; o romance, na verdade, reproduz uma visão muito peculiar dessa vasta
nação onde se cruzam muitos povos, culturas e histórias. O cenário é muito menos
10
“Many persons living in the U.S. have a sense of American identity that is based on the narratives
of U.S. history they read in school or saw enacted on television or in movies. The 'details' get lost in
the generalizations and what has evolved to become the mainstream view of 'America' over time (e.g.
as represented in school history texts, or the mainstream media), whether one likes what that
represents or not, is a coherent (if reduced, not to say distorted) model, or construction, of national
development and identity” (tradução livre).
20
Eu queria que o livro fosse uma série de coisas. Queria escrever uma
história que fosse grandiosa, excêntrica e sinuosa, e escrevi, e ela era.
Queria escrever uma história que incluísse todas as partes dos Estados
Unidos pelas quais eu estava obcecado e encantado, que costumavam ser
os pedaços que nunca apareciam nos filmes e nas séries de tevê
(GAIMAN, 2016, p. 8)
dos anos 80, ela é um cadáver ambulante responsável por alguns homicídios ao
longo do livro).
Deuses americanos tem uma história que é sobretudo sinuosa. Os truques
de moeda, passatempo preferido de Shadow na prisão (e depois dela), são não
tanto um hobby quanto são uma metáfora do que a narrativa faz com o leitor:
11
A palavra wednesday, que designa o dia da semana que em português se chama de quarta-feira,
em inglês se origina etimologicamente do nome do deus nórdico Odin – Odin’s day ou Wotan’s day.
O nome pelo qual se chama o deus ao longo do romance, portanto, é uma brincadeira com o dia em
22
A terra é vasta. Pouco tempo depois, nosso povo nos abandonou, passou
a nos tratar apenas como criaturas do Velho Mundo, como algo que não
os havia acompanhado até sua nova vida. Nossos verdadeiros fiéis
morreram ou pararam de acreditar, e nós, perdidos, assustados e
desamparados, fomos obrigados a sobreviver com qualquer resquício de
adoração e fé que encontrássemos. E a sobreviver da melhor forma
possível (GAIMAN, 2016, p. 140)
(...) deuses novos estão ganhando força nos Estados Unidos, agarrando-
se a focos crescentes de fé: deuses do cartão de crédito e da rodovia, da
internet e do telefone, do rádio, do hospital e da televisão, deuses do
plástico e do bipe e do neon. Deuses orgulhosos, criaturas gordas e
estúpidas, envaidecidas com a própria novidade e importância.
(...)
Eles sabem que estamos aqui, e nos temem, e nos odeiam. Vocês se
enganam se acreditam que não. Eles vão nos destruir, se puderem. É hora
de nos unirmos. É hora de agirmos (GAIMAN 2016, p. 140)
que ele e Shadow se conheceram – uma quarta-feira, seu dia –, algo com que o deus brinca na
ocasião: “Vejamos. Bom, considerando que hoje certamente é o meu dia, que tal você me chamar
de Wednesday? Senhor Wednesday. Se bem que, com esse tempo lá fora, bem podia ser Thursday,
né?” (GAIMAN, 2016, p. 37). Ocorrido enquanto caía uma tempestade, no diálogo o deus também
brinca com a palavra thursday, quinta-feira, que, por sua vez, vem do nome de Thor, o deus nórdico
do trovão e seu filho.
23
A última semana foi a pior. Em alguns aspectos, foi pior do que todos os
três anos juntos. Shadow se perguntou se era por causa do clima: pesado,
inerte e frio. A sensação era de que havia uma tempestade a caminho, mas
ela nunca chegava. Estava tenso e ansioso, com um forte pressentimento
de que havia algo muito errado. No pátio de exercícios, o vento soprava
com força. Shadow achou que dava para sentir o cheiro de neve no ar
(GAIMAN, 2016, p. 22)
Mas Shadow havia cumprido a sua pena, portanto dentro de poucos dias
sairia. Antes disso, recebe a notícia da morte da esposa em um acidente de carro,
e por isso é liberado mais cedo. Encontra o Sr. Wednesday, no avião que o levava
de volta para casa, que lhe faz uma proposta de emprego; confiando que seu melhor
amigo, Robbie, como prometido, estava segurando uma vaga em seu antigo
serviço, como preparador físico em uma academia, inicialmente se recusa a ouvir a
proposta daquele homem misterioso e desagradável que parece saber coisas sobre
sua vida sem que tenha lhe contado. Shadow desembarca em um aeroporto
qualquer antes de seu destino final, tentando despistar o homem, aluga um carro e
decide dirigir pelo resto do caminho.
Parando em um lugar chamado Jack’s Crocodile Bar para comer, Shadow se
depara novamente com o sr. Wednesday, que impossivelmente estava ali. Ele lhe
traz um jornal contendo a notícia da morte da esposa, e descobre que Robbie estava
no mesmo acidente. Sem a esposa e o melhor amigo, a única espécie de família
que tinha, se foi o emprego e, portanto, a única chance de vida digna que tinha,
considerando a dificuldade que um ex-condenado pode encontrar na busca por
trabalho e ressocialização. De repente, Wednesday se transforma em sua única
alternativa: suas condições são financeiramente favoráveis e, afinal de contas, ele
não tem mais para onde ir. É assim que, sem saber, ele se coloca no olho do
furacão.
Ao final se revela que a guerra não passa, na verdade, de uma farsa. Um
esquema montado entre Wednesday e Mr. World – que na verdade é Loki, outro
deus nórdico, disfarçado – com o objetivo de obter o máximo de poder possível
através de um grande massacre dedicado em sua homenagem – mais que isso: um
massacre de deuses. Para isso, Wednesday planeja inclusive a própria morte, o
que causa uma comoção entre os seus pretensos aliados, os deuses antigos, que
de uma vez por todas decidem entrar em combate, convencidos, pela morte de “um
dos seus”, da necessidade do movimento. Wednesday sabe que precisa de um
grande sacrifício, antes mesmo desse embate, para, morto, voltar a vida; e o mais
poderoso dos sacrifícios é aquele oferecido por livre e espontânea vontade por um
filho. Este filho é Shadow, ainda que este não o soubesse no momento em que
25
decide prestar o tributo de ser amarrado a uma árvore e lá permanecer por nove
dias e nove noites, sacrifício que o próprio Odin impôs a si mesmo, segundo a lenda
nórdica, para a obtenção de sabedoria.
Shadow nasceu e cresceu sendo criado apenas pela sua mãe, sem conhecer
o pai. Wednesday sabe que o laço de sangue entre eles torna o tributo que Shadow
decide (e vem até mesmo a desejar de bom grado) fazer ainda mais poderoso. Além
deste objetivo, o protagonista é usado todo o tempo como uma distração: a mão
que prende a atenção da plateia no truque de moedas.
Entretanto, por fim Shadow acaba cumprindo uma tarefa muito mais
importante do que aquela para a qual foi contratado. Depois de pagar o tributo, já
tendo morrido e decidido descansar pela eternidade, ele finalmente entende tudo.
É despertado do sono eterno por Easter12 e, após um momento de perplexidade,
decide agir. Vai até o local onde a batalha está sendo travada e interrompe a luta,
revelando a verdade aos deuses.
Shadow é um ser humano comum, sem qualidades extraordinárias. Não é
dotado de uma inteligência das mais acuradas, não tem objetivos muito claros nem
grandes ambições. Tudo o que ele queria era viver uma vida tranquila ao lado de
sua esposa. Quando ela morre mesmo seus escassos e ínfimos desejos se tornam
impossíveis. Sem rumo, sem perspectivas e sem nenhum brio, ele fica à deriva:
pega a primeira coisa que aparece no caminho e segue o fluxo. Os acontecimentos
mais estranhos possíveis acontecem e ele nem sequer demonstra muito espanto,
muito menos combatividade, vontade de controlar e mudar o próprio destino.
Trata-se de um personagem, portanto, bastante passivo, na medida em que
sofre vários contratempos, mas oferece pouca reação. Ele é protagonista da
narrativa, mas não, pelo menos na maior parte do tempo, da guerra em que se vê
envolvido. Não assume nem demonstra desejar assumir uma posição de liderança,
apenas obedece a ordens e evita fazer perguntas. Falta a ele, em larga escala, o
temperamento próprio dos heróis, e o leitor, espectador que é, ao ser guiado através
da narrativa pelas ações de Shadow, assiste a tudo, assim como ele, da margem.
12
A palavra Easter é comumente traduzida para o português como “Páscoa”, pois é o nome dado
em inglês à festividade cristã que celebra a ressurreição de Cristo após ser crucificado e morto; no
entanto, o período dessa importante data, no hemisfério norte, está relacionada ao equinócio da
primavera (e não do outono, como no hemisfério sul) e às antigas celebrações pagãs em
homenagem à deusa Eostre, que representa a fertilidade, o amor e o renascimento em mitologias
como a anglo-saxã, nórdica e germânica.
26
Não obstante, alguém que realiza um feito como o que ele realizou – um
homem, um mortal, que fala aos deuses, e eles o escutam, e interrompem sua luta,
evitando um desastre – faz por merecer o epíteto de herói.
Em razão disto, o que se propõe neste trabalho é analisar como Shadow, um
personagem tão representativo do homem contemporâneo em sua complexidade,
rodeado por forças que não consegue sequer compreender, quem dirá controlar,
consegue, ainda assim (e talvez, no seu caso, justamente em razão disso), se tornar
o herói que põe fim aos conflitos apresentados no romance. Para tanto, Shadow
precisa transcender a si mesmo - distanciar-se de si a ponto de se reconhecer tal
como é, para, então, transformar-se naquilo que precisa vir a ser.
O que o torna tão interessante a ponto de ser estudado é, de certa forma, o
quão desinteressante ele se mostra na maior parte do tempo - mesmo vivendo as
experiências mais insanas possíveis. Cercado por personagens tirados de contos
de fadas e testemunha de eventos sobrenaturais, ele não tem reações muito
condizentes com as de alguém que presencia tudo isso – especialmente alguém
que está destinado a ser herói (o que ele também, a exemplo de todo o resto, ignora
completamente).
Uma pessoa normal, em seu lugar, provavelmente enlouqueceria, morreria
de medo, tentaria fugir, gritaria; um herói, ou pelo menos um que se enquadra na
configuração ou caracterização de um herói, enfrentaria as intempéries com
bravura, investigaria, faria perguntas, tentaria resolver sua situação de alguma
forma mais ativa. Shadow, por outro lado, encara tudo com uma certa tranquilidade,
sem grandes arroubos de emoção ou reações de qualquer natureza, e segue
cumprindo sua função enquanto empregado de Wednesday, sem demonstrar
nenhuma vontade ou pressa de mudar o seu destino.
Tendo em vista o protótipo do herói épico, representado, por exemplo, por
personagens como Aquiles e Ulisses, heróis das grandes epopeias gregas, A Ilíada
e A Odisseia, respectivamente; o arquétipo do herói e sua jornada, estudados por
Joseph Campbell (2007); e as variações do que se concebe como (anti)herói ao
longo da história da literatura até a modernidade, observa-se que a personagem
contemporânea, aqui representada por Shadow, dialogando até certo ponto com
determinados modelos, projeta-se, não só como subversão das formas, mas como
entidade que só existe pela constante desconstrução das referências que
estabilizariam uma imagem de herói. Nesse sentido, com relação à construção da
27
- Então é isso que você faz? - perguntou [Shadow]. - Para ganhar dinheiro?
- Raramente. Só quando preciso providenciar uma quantia considerável
em pouco tempo. Em geral, ganho dinheiro com pessoas que nunca
percebem que estão me pagando, e que nunca reclamam, e que, com
frequência, fazem fila para pagar mais quando eu volto (GAIMAN, 2016, p.
122)
13
O sr. Íbis é uma referência a Thot, deus egípcio do conhecimento e da escrita, representado
como um homem com cabeça de íbis, uma ave de bico longo e fino,
14
A expressão low key significa algo como “moderado”, “discreto”, e se parece sonoramente com a
pronúncia do nome Loki em inglês; o sobrenome Lyesmith é uma estilização das palavras lie
(“mentira”) e smith (de blacksmith, “ferreiro”); usada como adjetivo, a expressão lie smith pode ser
traduzida como, portanto, “forjador de mentiras”.
31
Parece fazer sentido que uma análise que tem como escopo visualizar o
homem pelo personagem e sua relação com o tempo e o espaço parta da figura de
alguém como Neil Gaiman, autor de Deuses Americanos e criador do protagonista
Shadow, sobre os quais este trabalho se deterá de maneira mais aprofundada. Ao
tratar das leis da narrativa, o fragmento em epígrafe faz referência à viagem de
Ulisses e ao seu completo desconhecimento dos trajetos possíveis, o que eleva ao
primeiro plano de suas aventuras a vivência do percurso, de modo que, na Odisseia,
conforme Blanchot (2005, p. 6-7),
a palavra de ordem que se impõe aos navegantes é esta: que seja excluída
toda alusão a um objetivo e a um destino. Com toda razão, certamente.
Ninguém pode pôr-se a caminho com a intenção deliberada de atingir a
ilha de Capréia, ninguém pode rumar para essa ilha, e aquele que
decidisse fazê-lo só chegaria ali por acaso, um acaso ao qual estaria ligado
por um acordo difícil de entender. A palavra de ordem é, portanto: silêncio,
discrição, esquecimento.
Tal como Ulisses, Shadow está à deriva e, assim como afirma Blanchot sobre
o herói da épica, o protagonista de Deuses americanos apresenta uma “aptidão
obstinada a não jogar o jogo dos deuses” (BLANCHOT, 2005, p. 7). Imergir na
história de Shadow significa percorrer caminhos inseguros e obscuros, concebendo
a inexistência do ponto de partida ou do lugar de chegada, embora o leitor navegue
consciente de que há um lugar no qual seguramente se vai aportar. A verdade
humana que se extrai consiste, portanto, nos modos de vivência do percurso. É a
partir desse sentido que se enfatiza, aqui, a força da narrativa de Deuses
34
15
Hinzelmann é um morador de Lakeside, e é quem recebe Shadow em sua chegada à cidade; esse
personagem é inspirado por um kobold (um tipo de criatura semelhante a duendes e fadas originária
do folclore alemão) de mesmo nome; o Hinzelmann de Deuses americanos é retratado como um
senhor de idade amigável, conhecido de todo o povo de Lakeside, prestativo e que gosta de contar
histórias fantasiosas; porém, ele esconde um segredo perverso; é ele que rapta as crianças que
somem todos os anos, escondendo-as no porta-malas de um carro que fica todo o inverno sobre a
superfície de um lago congelado, até afundar quando começa o degelo. Sendo uma espécie de
criatura sobrenatural, da mesma forma que os deuses necessitam de rituais e sacrifícios para sua
sobrevivência, a morte dessas crianças é o tributo que mantém Hinzelmann vivo.
36
Nestes casos em que se explicita a autoria do sr. Íbis, é possível notar uma
crítica mais explícita e contundente quanto a diversos aspectos da cultura
americana, desde à maneira como se deu a sua formação até os valores ainda
presentes na sua sociedade, bem como a forma como ela mesma se enxerga.
É uma bela ficção (...) a ideia de que os Estados Unidos foram fundados
por peregrinos que buscavam liberdade para acreditar no que desejassem,
de que eles vieram para o continente americano, espalharam-se,
procriaram e preencheram a terra vazia.
Na realidade, as colônias americanas serviam tanto como área de desova
quanto como área de fuga, um local de esquecimento. No tempo em que
era permitido enforcar alguém em Londres na “árvore tripla” de Tyburn pelo
roubo de doze pence, as Américas se tornaram um símbolo de clemência,
de segundas chances. Mas as condições de transporte eram tais que, para
alguns, era mais fácil pular do tronco desnudo e bailar no ar até a dança
acabar. Era como eles chamavam: transporte - por cinco anos, por uma
década, para sempre. Essa era a sentença. (GAIMAN, 2016, p. 102)
O que se segue a este trecho é o relato da vida de uma jovem chamada Essie
Tregowan, originária da Cornualha, região localizada no extremo sudoeste da
Inglaterra, a qual vive uma vida de proscrição, condenada em sua terra natal à
sentença de transporte referida pelo sr. Íbis, após diversos reveses e atos de
rebeldia, indo parar em Norfolk, na Virgínia, onde passa o resto de sua vida e morre.
Em outros capítulos de mesmo nome, o narrador não é identificável como
personagem. Trata-se de um narrador onisciente e mais distanciado, que descreve
cenas de povos aportando no território que hoje pertence aos Estados Unidos,
destacando sempre rituais e orações de seus indivíduos para com seus respectivos
deuses, evidenciando a chegada também dos últimos àquela terra, mas sem
maiores comentários ou críticas.
b) Além destes, há também capítulos que funcionam de maneira semelhante,
mas que não tratam de acontecimentos passados. São capítulos com títulos mais
variados, como “Algum lugar nos Estados Unidos”, “Enquanto isso, uma conversa”
ou apenas “Interlúdio (1, 2, 3…) ”, os quais podem vir ou não acompanhados de
uma informação acerca do horário em que a ação se passa. Tais capítulos surgem
para descrever cenas que ocorrem contemporaneamente aos eventos
protagonizados por Shadow, mas não necessariamente de maneira simultânea à
cena que sucedem, embora ocorra com frequência.
Estas cenas servem para cobrir eventos distantes de Shadow, mostrando
como agem e como sobrevivem alguns dos deuses e criaturas lendárias que
38
habitam no país nos tempos atuais à narrativa principal, tornando clara a hostilidade
daquela terra à sua presença, visto que aparecem à margem da sociedade,
frequentemente realizando trabalhos informais ou mesmo ilegais para o próprio
sustento. Inclusive, as funções que exercem nesta era quase sempre têm a ver com
as crenças que se tem deles, só que com muito menos prestígio que em épocas
ancestrais.
Pode-se citar como exemplo um capítulo acessório que aparece entre os
capítulos UM e DOIS, chamado de “Algum lugar nos Estados Unidos – Los Angeles,
23h26”. Esse capítulo é protagonizados por Bilquis, a Rainha do Sabá, que vaga
pelas ruas de Los Angeles travestida de prostituta, maneira através da qual ela
consegue seus “adoradores”. Ao ser abordada por um cliente na rua, ela o leva para
o seu quarto vermelho-escuro, cor de fígado cru, onde, enquanto transam, pede-lhe
que a adore, que profira palavras de louvor, que a chame de deusa e reze em seu
nome e, ao final, engole-o pela vagina
Histórias como a de Bilquis tornam evidente que os deuses que restaram no
mundo ao final do século XX, segundo o romance, foram relegados ao anonimato,
esquecidos por aqueles que os trouxeram à América – uma terra, conforme
afirmações reiteradas através da obra por diferentes personagens, ruim para os
deuses – que, portanto, se alimentam de sobras de adoração que conseguem
utilizando-se de artifícios e estratagemas, até mesmo meios ilícitos como a
extorsão.
Estes pequenos contos vão sendo apresentados ao leitor aos poucos,
enquanto Shadow segue sua trajetória sem entender muito bem tudo o que se
passa com ele, e muito menos o que são realmente aquelas pessoas que se
apresentam em seu caminho. O leitor vai gradualmente criando uma noção do
funcionamento do universo do romance desde antes de os deuses se revelarem
diante de Shadow no “Maior Carrossel do Mundo” (GAIMAN, 2016, p. 133), no
capítulo CINCO.
Além de servir como uma janela para cenas diárias de deuses pelos Estados
Unidos, alguns desses capítulos também trazem ao conhecimento do leitor
conversas de telefone entre outras personagens, como por exemplo no sub-capítulo
“Enquanto isso. Uma conversa.”, que sucede o capítulo NOVE, em que se passa
um interrogatório por parte dos “agentes da oposição” Stone e Wood pelo paradeiro
de Shadow, em ligação para Sam Black Crow, que havia viajado de carona com
39
ele quando ele rumava para Cairo, e ela para El Paso, no mesmo estado de Illinois
(o que, por sua vez, ocorre no capítulo SETE).
Os capítulos que têm esta característica guardam uma identidade maior com
a trama principal, pois se relacionam diretamente com os eventos dos quais Shadow
participa, apresentando personagens com as quais ele tem contato direto, ou ao
menos figurando como tema do assunto de que se fala. Já aqueles estrelados por
deuses e outras criaturas míticas, como o caso citado de Bilquis, ou o de Salim 16,
que aparece em um outro sub-capítulo intitulado “Algum lugar nos Estados Unidos”,
entre os capítulos SETE e OITO, estes têm uma relação menor com a narrativa
principal, tendo sua importância ligada mais à ambientação, ao modo como os
deuses e mitos são recebidos e se inserem na cultura americana, como eles se
comportam, a condição em que vivem, o que ajuda a contextualizar o leitor e
despertar nele uma empatia pela causa dos deuses antigos, que entram na guerra
em busca de mais poder e para evitar a sua completa obsolescência e extinção.
Há um total de dez capítulos escritos nos estilos descritos nos itens a e b.
Eles aparecem em meio aos capítulos que formam a narrativa principal, geralmente
ao final de um e antes do início do próximo. Porém, não há uma regularidade
determinada para sua utilização.
Os capítulos numerados que compõem a narrativa principal e os demais
capítulos auxiliares estão distribuídos em quatro partes:
A Parte Um recebe o título de “Sombras” (ou, em inglês, “Shadows”, em
referência ao protagonista). É composto pelo capítulo “UM”, seguido de “Algum
lugar nos Estados Unidos”, depois “DOIS”, “TRÊS”, “Vinda à América (813 D.C.) ”,
“QUATRO”, outro “Vinda à América (1721)”, “CINCO”, “SEIS”, “SETE”, mais um
“Algum lugar nos Estados Unidos” e “OITO”. Esta parte cobre os eventos que vão
desde a saída de Shadow da prisão até o momento em que Wednesday lhe busca
em Cairo, Illinois, entrega-lhe documentos falsos que usará, passando a se chamar
Mike Ainsel, e manda-o para Lakeside, onde deve morar e se manter quieto, sem
arrumar confusão.
16
Salim é um personagem de origem árabe que aparece brevemente em um dos capítulos
acessórios. Ele se encontra em Nova York a pedido do cunhado, para quem trabalha, vendendo
suvenires para empresas. Numa viagem de táxi, ele encontra com um jinn, ou gênio, uma entidade
sobrenatural da mitologia árabe: “Existem os anjos, e existem os homens, que Alá criou a partir do
barro, e existe o povo do fogo, os jinn” (GAIMAN, 2016, p. 186).
40
A Parte Dois se chama “Ainsel, eu mesmo” (no original, “My Ainsel”; aqui, há
um jogo de palavras: Mike Ainsel, nome cujo som em inglês se assemelha ao da
expressão my Ainsel, é o nome falso que Shadow utiliza no tempo em que reside
na cidade de Lakeside, cidade fictícia localizada, no romance, no estado de
Wisconsin. “My Ainsel” tem uma pronúncia que remete à expressão “My Own Self17”,
que pode ser traduzido como “meu próprio eu” ou, na escolha do tradutor que se lê
para fins deste trabalho, “eu mesmo”.
Começa no capítulo “NOVE” e segue a ordem numérica até o capítulo
“TREZE”. Entre os capítulos “NOVE” e “DEZ”, há um capítulo acessório chamado
“Enquanto isso, uma conversa”. Entre o “ONZE” e o “DOZE”, há um “Vinda à
América (1778)”. Entre o “DOZE” e o “TREZE”, há três “Interlúdios” em sequência,
o segundo e o terceiro identificados pelos números “2” e “3”. Após o fim do capítulo
“TREZE”, há mais um “Vinda à América (14000 a.C.). Depois disso, não há mais
capítulos acessórios durante o resto do livro. Nesta parte, Shadow fica bastante
tempo escondido em Lakeside sob a identidade de Mike Ainsel, às vezes
acompanhando Wednesday em algumas de suas viagens e retornando. É onde
passa praticamente todo o inverno, tendo chegado lá no dia do Natal, até o
momento em que Audrey (viúva do melhor amigo falecido de Shadow, Robbie) visita
Chad Mulligan (delegado de Lakeside) e reconhece Shadow como um assassino
procurado por todo o país, pela morte de dois agentes, crime que ele não cometeu,
e sim Laura. Ele então é preso, e pela televisão assiste a morte de Wednesday
enquanto espera ser resgatado;
A Parte Três é denominada “O momento da tempestade” e compreende
desde o capítulo “QUINZE” até o “DEZOITO”, e não contém nenhum dos capítulos
auxiliares não-numerados. Começa depois da morte de Wednesday e do resgate
17
A expressão “My Own Self” remete também a um antigo conto de origem inglesa de mesmo nome,
também encontrado sob o nome “My Ainsel” em algumas versões (JACOBS, 1894). Nesse conto,
uma fada, dizendo se chamar “My Own Self” (ou seja, “eu mesma”), brinca com um menino, que por
sua vez diz se chamar “Just My Own Self, too” (“apenas eu mesmo, também”); ao mexer no fogo da
lareira, o menino faz com que uma faísca queime a fada, machucando-a; quando ela grita, a mãe
dela pergunta o que aconteceu, então ela responde: “Just My Own Self hurt me!” (o que, traduzindo
para o português, resultaria em uma frase como “Apenas Eu Mesmo me machucou!”; lembrando que
em inglês não há flexão de gênero na palavra “self” como há em “mesmo” e “mesma”, portanto a
ambiguidade da frase é maior), e, assim, pelo jogo de palavras, o menino evitou problemas. A
escolha de Gaiman por denominar a Parte Dois de Deuses americanos em referência a esse conto
é uma brincadeira com a ambiguidade do nome falso que Shadow passa a usar: Mike Ainsel, na
pronúncia em inglês, soa levemente como “My Own Self”, o que é irônico na medida em que o nome
é usado para esconder a verdadeira identidade de Shadow, assim como no conto o menino esconde
o próprio nome dizendo se chamar “Just My Own Self”, enganando a fada.
41
- Quando eu era pequeno, morava com a minha mãe, e a gente era… quer
dizer, ela era… bem, era tipo uma secretária de algumas embaixadas
americanas, e a gente viajava de cidade em cidade por todo o norte da
Europa. Mas aí ela ficou doente e teve que se aposentar cedo, então
voltamos para os Estados Unidos. Eu nunca tinha nada para conversar
com as outras crianças, então ficava sempre atrás de algum adulto, sem
19
“Zoryi” é a forma plural do nome “Zorya”.
20
Collective name describing the two daughters of Dazhbog—Zorya Utrennyaya, the goddess of
dawn, and Zorya Vechernyaya, the goddess of dusk. Some accounts describe three daughters; but
the third, the goddess of midnight, remains nameless. Although each Zorya has a specific task to
carry out in her father’s palace, the three share the responsibility of guarding an unnamed deity who
is chained to the constellation Ursa Major (the Great Bear); for if he breaks loose, the world will come
to an end (tradução livre).
43
21
“(...) it is astonishing how resilient has been the convention of giving characters allegorical names.
But that is because it is not only conventional. There is a real sense in which we are what we are
called, at least from the Old Testament onward, when God renamed Jacob Israel, which means that
he struggled with God (tradução livre no corpo do texto).
22
“Fiction is not being very fictional” (tradução livre).
23
Poeta inglês, o nome Wordsworth poderia ser traduzido aproximadamente como “de dignas
palavras” ou “de palavras dignas”.
44
um completo estranho, que lhe promete boas condições para ser uma espécie de
acompanhante. Por esse motivo, o que mais faz é aguardar e seguir ordens,
faltando-lhe motivações pessoais, dando sentido ao nome que remete à ideia de
sombra.
Isso fica bastante claro em uma conversa que Shadow tem com sua já
falecida esposa, Laura, no capítulo 12, quando já estava morando na cidade
ficcional de Lakeside, no Wisconsin, onde usava o nome de Mike Ainsel. Após
afirmar não saber se, mesmo não tendo morrido, ele estava de fato vivo, ela lhe diz:
Eu amo você (...). Você é meu fofinho. Mas, quando a gente morre de
verdade, consegue ver tudo com mais clareza. É como se não tivesse
ninguém aí, sabe? Você parece um buraco enorme em forma de homem
aberto no mundo. (...) Até quando a gente estava junto. Eu amava estar
com você porque você me adorava, fazia tudo por mim. Mas às vezes eu
entrava em um cômodo e achava que não tinha ninguém lá dentro. Aí eu
acendia a luz, ou apagava a luz, e me dava conta de que você estava lá,
sentado sozinho, sem ler, sem ver tevê, sem fazer nada. (GAIMAN, 2016,
p. 353)
A melhor coisa do Robbie era que ele era alguém. (...) Ele às vezes era um
cretino, e podia ser bem ridículo, e adorava que tivesse espelhos em volta
quando a gente fazia amor, para que pudesse se ver me comendo, mas
ele estava vivo, fofinho. Ele queria coisas. Ocupava o espaço. (GAIMAN,
2016, p.353)
Esta conversa serviria, mais tarde, como um gatilho para Shadow, que, ao
lembrar das palavras ditas por Laura, decidiria tomar atitudes mais enérgicas, como
quando decide que prestará o tributo a Wednesday. Ao ser questionado pelo sr.
Nancy por que faria isso, mesmo que não precisasse, Shadow lhe responde:
“Porque é o tipo de coisa que teria que ser feita por uma pessoa viva”. Depois disso,
45
“Shadow teve a sensação de que fizera algo muito grande e muito estranho, mas
não sabia por quê” (GAIMAN, 2016, p. 432).
Até esse momento, no entanto, Shadow está coerentemente ligado ao
significado de seu nome. Por isso, uma boa forma de compreendê-lo é observá-lo
em relação aos outros personagens da trama com quem interage, dado o seu o
caráter mais reflexivo do que ativo. É bastante curioso, na verdade, ter como
protagonista alguém tão inerte quanto o é Shadow na maior parte do tempo. Esse
traço pode ser melhor exemplificado por uma passagem da narrativa em um dado
momento em que Wednesday, entre irritado e divertido, indaga a Shadow: “- Por
que você nunca discute? (...) Por que não grita que isso é impossível? Por que você
só faz o que eu mando e leva tudo nessa calma do caralho?” (GAIMAN, 2016, p.
328). Mais ilustrativa ainda é a resposta de Shadow: “- Porque você não me paga
para fazer perguntas. (...) De qualquer forma, nada me surpreende muito depois do
que aconteceu com Laura”. (GAIMAN, 2016, p. 328-329.)
Questionado se o que o havia surpreendido tanto a respeito de Laura era o
fato de ela ter voltado dos mortos, de maneira muito interessante Shadow responde
que era, na verdade, era o fato de ela ter-lhe traído com seu melhor amigo. Quer
dizer: ter a confiança quebrada por sua amada, sua única certeza no mundo, era
inimaginável de tal forma para Shadow que o fato supera o evento fantástico de ter
um cadáver vagando pelo mundo, não de volta à vida de todo, mas reanimado,
capaz de se mover e agir.
A esposa-cadáver, inclusive, em certos momentos realiza ações muito mais
adequadas a um perfil heróico do que o próprio protagonista. Entende-se aqui como
dotado de perfil heroico um tipo de personagem ativo, não reativo; um tipo de
personagem que toma a frente nas situações problemáticas, agindo por conta
própria, que lidera e é seguido, ao invés de seguir. É Laura quem mata três homens
para devolver a liberdade a Shadow (GAIMAN, 2016, p. 153) depois deste ser
raptado, na sequência da cena em que Shadow “cavalga” junto aos deuses no maior
carrossel do mundo.
Shadow, pelo contrário, enquanto está trancado numa sala com os agentes
Wood e Stone reflete sobre a ideia de enfrentá-los: “Eu sou maior que os dois,
pensou. Eu dou conta deles. Mas eles estavam armados; e, mesmo se conseguisse,
de alguma forma, matá-los ou dominá-los, continuaria trancado naquela sala. (Mas
teria uma arma. Teria duas armas.) (Não.)” (GAIMAN, 2016, p. 149). Percebe-se
46
como ele entra num dilema consigo mesmo: ele sabe que é grande e forte e que
tem chances de dominar os agentes, se arriscar. Um dos traços que caracteriza o
perfil heroico é, justamente, agir no ímpeto, com bravura. Shadow, não por covardia,
mas por analisar a situação com certa frieza, mantém a cautela, sabendo que matar
os agentes não o ajudaria a sair dali. Além disso, ele estaria cometendo um duplo
homicídio se fizesse isso, e ele tinha prometido a si mesmo que não voltaria para a
cadeia.
Ou seja: há aí, de certa forma, uma inversão da ideia de herói ou príncipe
encantado, revestido por sua armadura reluzente e montado em seu cavalo, que
aparece no último instante para salvar a vulnerável princesa aprisionada no
aposento mais alto da torre mais alta, guardada por um dragão. Ao invés disso, o
leitor se depara com um homem grande e musculoso, amordaçado e humilhado,
espancado, impotente, sendo salvo por uma mulher morta.
Tal ato, aliás, é responsável por transformar Shadow em um foragido, um ex-
presidiário recém liberto agora procurado por todo o país como o suposto causador
dos homicídios que ele se recusou a tentar cometer, o que acarreta no seu exílio,
não voluntário, mas também sem qualquer relutância de sua parte, em Lakeside.
Dessa forma, é visível que Shadow passa por diversas situações em que
assume diferentes “funções” em decorrência dos eventos que sofre, além daquelas
já exercidas naturalmente por ele em decorrência de sua relação com as outras
personagens. Dentre essas funções, pode-se dizer que Shadow é, ao mesmo
tempo:
1) O prisioneiro grandalhão, forte e quieto, que aguarda pacientemente o
esgotamento do prazo de sua reclusão, ficando longe de confusões.
Sua atitude era de grande ajuda para tanto: “Não entendo você, Shadow. (...)
Você é quieto pra cacete. Educado demais. Você é paciente que nem os caras
velhos, mas tem o quê? Vinte e cinco? Vinte e oito?” (GAIMAN, 2016, p. 25) É o
que lhe diz um guarda certa feita, ao que Shadow responde que na verdade tem 32
anos. Depois de indagar-lhe ainda se ele era “cucaracho”, “cigano” ou se tinha
“sangue de preto” (perguntas que Shadow, aliás, não sabe responder), o guarda
ainda conclui: “É? Bom, só sei que você me assusta pra cacete” (GAIMAN, 2016, p.
25).
Shadow continua sendo provocado pelo guarda, mas, com resiliência, se
mantém quieto:
47
Era assim que sobrevivia: não respondia, não falava sobre estabilidade na
carreira para os guardas do presídio, nem questionava a natureza do
arrependimento, da reabilitação ou os índices de reincidência. Não fazia
nenhum comentário divertido ou sagaz e, só para garantir, quando
conversava com um agente do presídio, sempre que possível, não falava
nada. Só respondia quando lhe perguntavam algo. Cumprir a própria pena.
Sair. Voltar para casa. Tomar um banho quente e demorado de banheira.
Dizer para Laura que a ama. Recomeçar a vida. (GAIMAN, 2016, p. 25-26)
Talvez este seja o aspecto mais admirável sobre Shadow neste momento da
trama, pois demonstra ter força de vontade e disciplina tremendas para se manter
na linha e sair da prisão o mais cedo possível. As últimas frases do trecho acima
recortado chegam a assemelhar-se a um mantra que ele possivelmente repetia a si
mesmo para manter o foco, o que parece ainda mais incrível quando o leitor
descobre, mais adiante, o crime cometido por ele: “ - Aqui está escrito que você foi
condenado a seis anos por lesão corporal qualificada. Cumpriu três. Estava previsto
que você fosse solto na sexta-feira” (GAIMAN, 2016, p. 26), disse-lhe o diretor do
presídio logo antes de soltá-lo antecipadamente, ante a notícia da morte da esposa
de Shadow.
Ainda na prisão, também é possível perceber, através do narrador onisciente
em terceira pessoa, que, se Shadow não fala muito, mas é indicado que ele reflete
e abstrai determinados fatos que lhe ocorrem, o que se percebe através do uso e
até repetição de expressões como “Shadow chegou à conclusão de que” ou
“Shadow percebera que”, como no exemplo que segue:
Ele chegou à conclusão de que, para aqueles que não tinham sido
condenados à morte, a cadeia era, na melhor das hipóteses, apenas um
retiro temporário da vida - e por dois motivos. Primeiro, porque a vida se
esgueira para dentro da cadeia. Sempre há lugares que podem ser
explorados, mesmo quando o indivíduo é retirado de seu contexto habitual;
a vida segue, mesmo se for uma vida escrutinada, uma vida atrás das
grades. E, segundo, porque se o detento aguentar firme, algum dia alguém
vai ter que soltá-lo. (GAIMAN, 2016, p. 18)
primeiro diz ao último, quando este afirma que “Não se pode dizer que um homem
é feliz até ele estar morto” (GAIMAN, 2016, p. 19).
Assim, conclui-se que o protagonista possui ao menos essas duas virtudes:
uma dose de estoicismo25 e uma capacidade para a reflexão e contemplação;
qualidades essas que garantem que o personagem não seja confundido, ao menos
pelo leitor, como um tolo completo, ainda que elas pareçam estar adormecidas nele,
exceto em raros lampejos, a partir do momento em que toma conhecimento da
morte de Laura. Depois disso, seguem-se ainda alguns outros acontecimentos e
notícias que fazem ruir cada vez mais o seu mundo, e como que um estado de
choque recai sobre ele, que parece se manter sob atordoamento e torpor por quase
todo o romance.
2) O viúvo traído, em período de luto pela sua perda, mas também magoado
pelo que nem havia considerado possível e agora lhe era evidente, sem que sua
esposa nem ao menos estivesse mais viva para que pudessem discutir sobre o
adultério, brigar, romper ou perdoar;
3) O empregado recém contratado de Wednesday, um homem misterioso
que parecia saber tudo sobre sua vida, mais até que ele mesmo, alguém com quem
ele não simpatiza num primeiro momento, mas que lhe oferece uma chance que
parece impossível de ser recusada por alguém em sua condição;
4) O ex-presidiário que se arrependeu, pagou sua pena e só quer viver uma
vida tranquila, que se vê obrigado a participar de novos atos ilícitos em função da
atividade que agora exerce, obedecendo às ordens daquele que descobrirá depois
ser um deus na linha de frente de uma guerra com outros deuses, um cenário bem
distante da tranquilidade almejada;
5) Na visão dos outros deuses, criaturas mitológicas e todos aqueles de
alguma forma envolvidos com guerra, tanto aliados como adversários, Shadow
também passa a ser visto como “o novo homem de Wednesday”, o que o torna
25
O estoicismo, enquanto doutrina filosófica, foi fundado por Zenão de Cício em Atenas no século
III a.C. Segundo essa doutrina, o homem sábio tem como características fundamentais a
imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a resignação diante do destino, do sofrimento, das
adversidades. Shadow demonstra bastante afinidade com esse pensamento, a exemplo da seguinte
passagem: “Já ouvira gente demais falando que não se podia reprimir os sentimentos, que era
preciso dar vazão às emoções, deixar a dor sair. Shadow achava que reprimir as emoções trazia
muitas vantagens. Acreditava que, se os sentimentos ficassem enterrados por tempo suficiente e a
uma profundidade suficiente, logo não sentiria mais nada” (GAIMAN, 2016, p. 70).
49
objeto de cobiça inclusive para lado adversário, que tenta aliciá-lo a todo momento
para defender a sua causa no lugar na causa do seu “empregador”.
Chega um momento em que Shadow até mesmo pergunta àquele que, na
ocasião em que a conversa ocorre, recém descobriu ser Loki, que havia sido o seu
companheiro de cela, Low Key Liesmith, e agora fazia as vezes de chofer das novas
divindades: “por que é que está todo mundo atrás de mim? Todos agem como se
eu fosse importante. Que importa o que eu faço?” (GAIMAN, 2016, p. 425).A isso,
responde Loki: “Você é um investimento. Você era importante para nós porque era
importante para Wednesday. Já quanto ao motivo… acho que ninguém desse lado
nunca descobriu. Ele sabia. Ele morreu. Só mais um dos mistérios da vida”
(GAIMAN, 2016, p. 425).
Da mesma forma, é visto, também por isso, como um perigo por esse mesmo
lado, como se ele pudesse saber de algo que eles não sabem, ou ser uma espécie
de arma ou peça-chave. Ele é tomado como alguém que possivelmente tem
habilidades ou poderes especiais, os quais, se tem, ele mesmo ignora.
Justamente por isso é que Shadow é perseguido, raptado, espancado e
interrogado em mais de um momento, situações em que, sinceramente, revela que
nada sabe, aumentando ainda mais o mistério em torno de si mesmo. Afinal, quem
é esta pessoa que surgiu de repente e se mostra tão leal?
O personagem também é objeto da curiosidade daqueles que Wednesday
pretende angariar como seus aliados, os quais quase sempre simpatizam com a
sua figura, talvez por alguma espécie de intuição de que possa existir algo guardado
dentro de quem é aparentemente forte apenas no físico, porém meio simplório no
intelecto. O sr. Nancy26, faz a seguinte observação a respeito de Shadow:
26
O sr, Nancy é introduzido no capítulo CINCO, e é descrito como “negro idoso com um terno
quadriculado chamativo e luvas amarelo-canário. Era um homem pequeno, um tipo de velhinho que
parecia ter encolhido com a idade” (GAIMAN, 2016, p. 129). Ele é bem-humorado, gosta de contar
piadas e histórias e dotado de certa malícia. Seu nome tem origem em uma lenda africana sobre
Anansi, uma espécie de ser sobrenatural em forma de aranha. Esse ser vivia num mundo que era
triste porque nele não existiam histórias, então ele sobe ao Céu com sua teia para obter as histórias
de Nyame, o Deus do Céu; esse deus lhe impõe tarefas impossíveis como condição para lhe fornecer
as histórias, as quais Anansi conseue cumprir, apesar de seu pequeno tamanho, valendo-se de sua
perspicácia para enganar e criar artifícios. É mais um dos personagens de Deuses americanos que
pode ser identificado como um trickster.
50
burro como se tivesse comprado a burrice numa promoção de dois por um,
e você me lembra ele. (GAIMAN, 2016, p. 131)
Shadow lhe responde que consideraria isso um elogio, tendo em vista ser
comparado a um membro da família do sr. Nancy, e a isso ele concede: “Pensando
bem, talvez você não seja a pior coisa que esse velho caolho já arranjou” (Ibidem,
p. 131).
O protagonista, aliás, de forma surpreendente até para Wednesday, acaba
sendo, quase sem querer, muito importante no processo de convencimento de
alguns deuses para a adesão à causa do deus de origem nórdica,algo bem
exemplificado pelo jogo de damas com Czernobog, que remete quase que
diretamente ao jogo de xadrez entre o soldado das cruzadas e a própria morte em
O sétimo selo, filme de Ingmar Bergman27; o jogo de damas acontece no capítulo
QUATRO e será explorado em maiores detalhes no terceiro capítulo deste trabalho,
por ser uma passagem em que Shadow mostra um lado mais intrépido seu,
apostando sua própria vida em prol da causa de Wednesday: “Se você ganhar, terá
a chance de me apagar, arrebentando meus miolos com um golpe de marreta”
(GAIMAN, 2016, p. 92-93). Em contrapartida, a condição de Shadow para
Czernobog era que ele se juntasse à causa: “Se eu ganhar, você vem com a gente”
(GAIMAN, 2016, p. 92). Eles jogaram duas partidas, uma vencida pelo deus, outra
por Shadow; nesta última, Shadow “arriscou nas jogadas”, “movia as peças sem
pensar, sem parar para refletir” (GAIMAN, 2016, p. 94). Aqui, portanto, sua postura
ganha traços do perfil heroico de que vem se falando.
6) Justamente por essa atenção que inadvertidamente atrai é que o
protagonista cumpre de forma bastante eficaz, sem o saber, a função que constitui,
na verdade, o principal motivo pelo qual é contratado por Wednesday: Shadow é
uma distração, uma ilusão criada pelo deus para dar veracidade à história que
espalha a todos, tanto “aliados” quanto “adversários”: a de que há de fato uma
guerra entre deuses prestes a acontecer, quando ao invés disso tudo não passa de
uma trama bem arquitetada entre o “Pai-de-todos” e seu único real comparsa, Loki,
visando a obtenção de poder através de um holocausto massivo (e voluntário!) de
deuses, antigos e novos;
27
O SÉTIMO selo. Direção de Ingmar Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri (SF), 1957. 1 DVD (96
min.).
51
nem o que significam. Não tenho a menor ideia do que estamos fazendo,
nem do que aconteceu hoje, nem de quase nada do que aconteceu desde
que saí da cadeia. Só estou seguindo o fluxo, sabe? (GAIMAN, 2016, p.
100)
A minha vida, que nos últimos três anos esteve bem longe de ser a melhor
do mundo, acabou de sofrer mais uma reviravolta, só que dessa vez
53
Até aí, Shadow impôs algumas condições para que o acordo com
Wednesday ocorresse, para, a seguir, selá-lo, ainda com ressalvas em relação à
sua opinião sobre seu novo empregador e justificando seu aceite devido ao estado
em que se encontra sua vida:
Não gosto de você, senhor Wednesday, ou qualquer que seja seu nome
de verdade. Não somos amigos. Não sei como você saiu daquele avião
sem que eu visse, nem como me seguiu até aqui. Mas estou
impressionado. Você tem classe. No momento, estou à deriva. Você
precisa saber que, quando nosso acordo terminar, eu vou embora. E, se
você me irritar, vou embora também. Até lá, trabalharei para você.
(GAIMAN, 2016, p. 51)
A passagem deixa bem claro que Shadow não simplesmente adere de forma
passiva ao que aparece em seu caminho, embora esse pareça ser o caso na maioria
das vezes, pela forma como ele obedece às ordens que lhe são impostas sem
muitos questionamentos. Ele tem suas desconfianças e seus temores, bem como
seus princípios. No momento em que dá sua palavra a Wednesday, ele se
posiciona, e o faz de maneira declarada e honesta, expressando muito bem os seus
limites e suas reservas, ainda que a posição que opta por ocupar (note-se que tem
o livre arbítrio para tanto) seja um tanto difusa, já que ela requer que ele siga
Wednesday e o obedeça, o que implica em despir-se do controle total de suas ações
para seguir a maré.
De acordo com Agamben, as engrenagens sociais contemporâneas
produzem dispositivos e estes por meio de suas próprias relações determinam o
distanciamento entre homem e mundo, o que faz com que o sujeito não se
reconheça e não reconheça o mundo:
28
“Sophocles pits against the limitations on human stature great individuals who refuse to accept
those limitations, and in their failure achieve a strange success. Their action is fully autonomous; for
these actions and the results the gods, who are the guardians of the limits the hero defies, bear no
responsibility” (tradução livre).
55
até aí, por muito tempo ele se deixa ser levado, o que justifica a possibilidade de
abordá-lo como um herói que subverte o modelo.
Ele não é, por isso mesmo, alguém que promete, ao menos de início, ser
capaz de um ato heroico. Até mesmo seus anseios são bastante modestos, mesmo
para um homem comum: só deseja voltar para sua cidade natal, para seu
casamento, para seu emprego, sua velha vida. Nenhuma grande ambição governa
sua vontade. É o que se percebe pela leitura da lista de coisas que Shadow deseja
fazer após sair da prisão:
A lista de Shadow foi ficando cada vez menor com o passar do tempo.
Após dois anos, restavam apenas três itens.
Primeiro, ia tomar um banho de banheira. Ficar de molho mesmo, por um
bom tempo, um banho de verdade, com bolhas de sabão e tudo. Talvez
leria o jornal, talvez não. (...)
Segundo, ia se secar e vestir um roupão. Talvez chinelos. Gostava de se
imaginar com eles. Se fumasse, a essa altura estaria fumando um
cachimbo, mas ele não fumava. Pegaria a esposa nos braços (“Fofinho!”,
gritaria ela, com horror fingido e prazer genuíno, “O que você está
fazendo?”). Ele a levaria para o quarto e fecharia a porta. Pediriam pizza
se ficassem com fome.
Terceiro, depois que ele e Laura saíssem do quarto, quem sabe alguns
dias mais tarde, Shadow ia ficar na dele e evitar problemas para o resto da
vida. (GAIMAN, 2016, p. 19)
- Shadow, vamos liberá-lo hoje no fim da tarde. Você vai sair uns dias mais
cedo. – O diretor falou isso sem nenhuma alegria, como se estivesse
proferindo uma sentença de morte. Shadow assentiu e esperou a pancada.
O diretor olhou para a folha de papel à sua frente. - Recebemos isto do
Johnson Memorial Hospital de Eagle Point. Sua esposa… Ela morreu
nessa madrugada. Acidente de carro. Sinto muito. (GAIMAN, 2016, p. 27)
Como sua pena estava já praticamente cumprida, ele pôde participar dos
rituais fúnebres e não voltar mais para a prisão. Um evento, por si só, deveras
impactante. Mais tarde, no entanto, ele toma conhecimento também da traição da
56
esposa com seu melhor amigo Robbie, que estava no mesmo acidente da esposa,
algo que é revelado pela viúva do amigo. Quem lhe dá a notícia do acidente é o sr.
Wednesday, entregando-lhe um jornal com a notícia:
Assim, Shadow perde tudo aquilo que fez um dos guardas com quem havia
conversado em sua última semana na prisão, antes da tragédia, dizer: “- Você tem
sorte. Tem alguém para quem voltar, tem um trabalho à sua espera. Vai poder
superar tudo isso aqui. Ganhou uma segunda chance. Não a desperdice.”
(GAIMAN, 2016, p. 22). A segunda chance se esvaiu, mas havia ainda um detalhe.
Quando Shadow vai ao funeral de Laura, ele vê a viúva de Robbie, Audrey,
aproximar-se do caixão de sua esposa e cuspir em seu rosto. Ao indagar-lhe sobre
sua atitude, ela lhe responde: “Ninguém lhe contou? - Ela falava com uma voz
calma, sem emoção. - Sua mulher morreu com o pau do meu marido na boca,
Shadow.” (GAIMAN, 2016, p. 61).
Torna-se, então, razoável concluir que Shadow vai se compondo à medida
que perde; conforme a narrativa avança, as perdas vão se somando, e o que resta
depois disso é uma personagem esvaziada, destituída de aspectos importantes que
formavam sua identidade. As perdas vão se tornando conhecidas por ele, e ao
mesmo tempo pelo leitor, gradualmente, uma a uma: primeiro a morte de Laura;
logo adiante a de Robbie; depois a traição de ambas as partes entre si.
Após isso, as perdas continuam a ocorrer. Trabalhando com Wednesday, ele
perde a oportunidade de viver a vida tranquila que desejava, envolvendo-se até em
pequenos delitos. Também pelo seu envolvimento com o deus, ele é raptado,
interrogado e espancado. É salvo pela esposa morta, que se torna uma assassina
para ajuda-lo, mas quem se torna foragido é ele; por isso ele tem de fugir, e para
isso recebe uma identidade falsa, para se exilar com o nome de Mike Ainsel na
57
cidade fictícia de Lakeside, Ou seja: de certa forma, ele vem a perder de fato sua
identidade, inclusive seu nome, tendo de encenar o papel de outra pessoa. Algo
que ele demonstra aptidão para fazer, inclusive:
É este homem o centro de uma história que possui como pano de fundo o
embate entre forças descomunais, e o papel que assume desde o início é o de um
peão, não de um líder, de um capitão. Protagonistas de romances fantásticos
normalmente são designados para o cumprimento de uma tarefa, são seres
escolhidos de quem todos esperam grandes feitos. Atuam à frente das linhas de
batalha, mobilizam as outras personagens. Victor Brombert (2001, p. 15), em um
livro dedicado a anti-heróis, oferece uma “noção do herói contra a qual parece reagir
uma parcela tão grande da literatura moderna”:
[Os heróis] vivem segundo um código pessol feroz, são obstinados diante
da adversidade; seu forte não é a moderação, mas sim a ousadia e mesmo
a temeridade. Heróis são desafiadoramente comprometidos com honra e
orgulho. Embora capazes de matar o monstro, eles mesmos são
frequentemente medonhos e até monstruosos. Testemunhas apavoram-se
com a “perversidade de suas ações violentas” e a estranheza de seu
destino. Quer se chame Aquiles, Édipo, Ajax, Electra ou Antígona – pois o
conceito heroico estende-se a mulheres excepcionais –, o herói ou heroína
é uma figura única, exemplar, cujo fado vai situá-lo ou situá-la no posto
avançado da experiência humana, e praticamente fora do tempo
(BROMBERT, 2001, p 15-16)
É a vivência segundo esse código pessoal feroz de que fala Brombert que o
coloca “no posto avançado da experiência humana”. Com intrepidez, os heróis
tomam a iniciativa diante das adversidades e servem de exemplo pelo seu
comprometimento com a honra, por isso se tornam líderes que atraem seguidores.
Essa posição de vanguarda não pode ser verificada em Shadow, seguidor e
não seguido, que não possui um objetivo, uma vontade que o governe, não
demonstra ter grandes sonhos nem querer ser alguém mais importante. Estaria
satisfeito em ser empregado de uma academia para sempre, desde que Laura
estivesse ao seu lado. O que o move é a sua sobrevivência, e ele se envolve quase
que por acidente em uma guerra que, com certeza, pelas suas proporções e
60
Semelhante a Ulisses, Shadow anseia pelo retorno ao único lugar que tem
como referência no mundo. O seu lar é a companhia da esposa, Laura. Como
Ulisses, ele anseia para dar início à viagem. Assim como Ulisses, o objetivo que
norteia a vontade resoluta de Shadow, que o inspira a se comportar no cárcere para
ser liberto o mais cedo possível, é o amor que sente pela esposa. Entretanto, às
avessas do herói clássico, a viagem do protagonista de Deuses americanos é o
retorno à sociedade, cujas normas ditaram o seu isolamento. Enquanto ainda se
encontra na prisão, quando toma consciência da morte da esposa, rompe-se o
último fio que o ligava ao mundo. Shadow perde a última ou única referência de
retorno, onde poderia aportar.
Na contramão do caminho de Ulisses, que, com os objetivos da viagem tem
seu destino selado, despedaça-se o horizonte de Shadow. É desse ponto em diante
que a história realmente inicia: com um homem agora totalmente desorientado e
desvinculado de qualquer ordem ou sistema. O leitor, ao lado dele, embarca em
uma narrativa que não lhe fornece indícios sobre o seu curso ou sobre o fim para o
qual se destina o protagonista.
A leitura do protagonismo de Shadow em Deuses americanos evoca,
inevitavelmente, tanto a figura do herói clássico quanto a figura do herói moderno.
Não só porque a personagem, pela errância de ser, busca reconhecer-se, mas
também pelas ações decisivas de Shadow em relação à guerra que se instaura. A
figura de Ulisses n’A Odisseia, vista como a referência tradicional de herói,
proporciona parâmetros para o questionamento, portanto, do que se propõe no
romance de Neil Gaiman. Sobre a acepção de herói em Homero e, mais tarde, na
Grécia do século V a.C., observa Brombert (2001, p. 15):
A palavra “herói” (...) parece ter tido em Homero o sentido geral de “nobre”,
mas no quinto século a.C. o culto dos heróis havia surgido e se tornara
uma espécie de fenômeno religioso. Heróis eram homenageados e
reverenciados. Eram associados a uma era mítica em que se dizia que
homens e deuses entraram em íntimo contato. Heróis eram seres
excepcionais inscritos na lenda, cantados na poesia épica, representados
no teatro trágico.
63
29
“The modern concept of tragic drama takes for granted the existence of a single central character,
whose action and suffering are the focal point of the play - what we call ‘the tragic hero’. For us it is
difficult to imagine Hamlet without the Prince of Denmark. This figure of the tragic hero is a legacy
inherited by Renaissance and Neo-classical tragedy from Seneca, and so from the Greeks. The
64
Tendo por base a definição de herói trágico posta por Bernard Knox, é
possível observar em Shadow a figura única de ação e sofrimento, cuja personagem
é o ponto focal da trama de Deuses Americanos, pois é a partir dele e em seu
entorno que o enredo acontece, o que evidencia o seu protagonismo. Segundo
Knox, seria mesmo uma invenção de Sófocles a presença de uma única
personagem dominante como centro do dilema trágico, algo tão característico em
sua técnica que se poderia chamar de sofocliana a corrente principal da tragédia
europeia, desde seu tempo.
É interessante notar, no entanto, uma diferença básica entre a maioria das
peças de Sófocles e a narrativa contemporânea de Neil Gaiman que se verifica na
escolha feita por este para o título de sua obra. Como aponta Knox,
Um bom exemplo disso a que o autor se refere é a peça mais conhecida cuja
autoria é atribuída ao dramaturgo grego, Édipo Rei, que leva o nome de seu
protagonista. Em contraste a isso, o romance protagonizado por Shadow leva o
título de Deuses Americanos o que, se levarmos em conta a lógica apontada por
Bernard Knox, poderia indicar que o protagonista, por sua vez, não se trataria de
um herói trágico.
De fato, não há nada de “trágico” em Shadow, ao menos não na acepção
clássica da palavra, à maneira de Édipo. Shadow passa, sim, por uma reviravolta,
mas não há propriamente uma inversão tal qual exige a forma da tragédia; também
literary theory which is associated with it claims as its source, rightly or wrongly, the Poetics of
Aristotle, where a famous passage seems to most critics to imply that tragedy presents the ‘reversal’
of a single character” (tradução minha).
30
“Even the titles assigned to Sophocles’ plays suggest that this peculiarity of his drama was
recognized in the ancient world. We do not know who assigned these titles, nor, as a rule, when they
were assigned, but they clearly reflect some common (and, on the whole, early) impression of the
nature of his dramaturgy. Of the seven extant tragedies, six are named after the central figure; only
one, the Trachiniae, after the chorus, and that is the only one of the seven which is not clearly based
on the figure of a tragic hero” (tradução minha).
65
ele vive seu momento de revelação, talvez até epifania, porém nada como a catarse
que se verifica nas peças de Sófocles, e a maneira como ocorre é muito mais diluída
nas páginas da narrativa de Gaiman.
Se for adotado como referência o período da narrativa em que Shadow se
submete ao sacrifício de ficar amarrado a uma árvore por nove dias e nove noites
em tributo à morte de Wednesday, esse momento de revelação e epifania se
espalha desde o capítulo Quinze até o Dezoito, da página 437 à 489, quando
Shadow, após já morto, é “acordado” por Easter. Nesse ínterim, ele conversa com
diversas criaturas e viaja ao mundo dos mortos, onde sua vida é julgada e seu
destino na morte escolhido. Tudo isso vem a aumentar sua compreensão sobre os
eventos vividos desde sua saída da prisão e a farsa montada por Wednesday e Mr.
World/Lowkey Lyesmith - Odin e Loki - para então, reanimado, decidir o que fazer
com seu novo conhecimento.
Diferente dos momentos catárticos e vertiginosos que ocorrem nas tragédias
de Sófocles, a exemplo da “frenética velocidade da revelação final em Édipo Rei31”
(KNOX, 1964, p. 7), portanto, o momento de revelação em Deuses Americanos não
é sucedido por atitudes desesperadas e convulsivas. Basta observar a reação de
Shadow à sua própria compreensão: “Foi então que Shadow entendeu. Entendeu
tudo, era de uma simplicidade gritante. Balançou a cabeça, deu uma risadinha e
balançou a cabeça mais um pouco, e a risadinha virou uma gargalhada” (GAIMAN,
2016, p. 486). Ele ainda teria de ser praticamente convencido por Easter a tomar
uma atitude diante do conflito que já se desenrolava, relutante que estava em deixar
de lado o sono eterno ao qual já tinha se entregue:
31
“(...) the frantic speed of the final revelation in the Oedipus Tyrannus” (tradução minha).
66
32
“In a Sophoclean drama we are never conscious, as we always are with Aeschylus, of the complex
nature of the hero’s action, its place in the sequence of events over generations past and future, its
relation to the divine plan of which that sequence is the result. The Sophoclean hero acts in a terrifying
vacuum, a present which has no future to comfort and no past to guide, an isolation in time and space
which imposes on the hero the full responsibility for his own action and its consequences. It is
67
Édipo, assim, cumpre com sua palavra. Em comparação a ele, Shadow não
é dono de uma palavra à qual possa cumprir com tamanha resolução, pelo menos
em grande parte do romance Deuses Americanos. Não há também como se falar
em responsabilizá-lo pelos seus atos, pois não foram ações suas que deram causa
ao conflito para o qual, no entanto, é atraído. Shadow poderia se escusar e deixar
que os deuses sofressem, como Édipo, as consequências do destino que suas
próprias escolhas lhes trouxeram. E, por muito tempo, nada na narrativa realmente
indica que Shadow faria qualquer coisa diferente: ele é um subordinado, ele
obedece ordens, ele não reclama ou se indigna. Ele não é como os heróis de
Sófocles, que bradam e teimam em enfrentar o seu destino, por pior que seja, desde
que obedecendo sua própria natureza. Shadow não tem a convicção da própria
identidade necessária para isso.
Ainda assim, e, paradoxalmente, apesar de lhe faltar a mesma resolução
dura e inflexível, ele se submete, sim, a sacrifícios tão autodestrutivos quanto
aqueles dos heróis sofoclianos: ele aposta sua vida num jogo de damas com
Czernobog para convencê-lo a aceitar o pedido de Wednesday.
- Seu mestre [Wednesday] quer que eu vá com vocês. Quer minha ajuda
nessa loucura que inventou. Eu prefiro morrer.
- E você quer fazer uma aposta. Tudo bem. Se eu ganhar, você vem com
a gente.
- Pode ser. Mas só se aceitar minha contrapartida quando perder.
- E qual seria?
A expressão de Czernobog não se alterou.
- Se eu ganhar, quero apagar você. Com a marreta. Primeiro, você se
ajoelha. E eu acerto um golpe, arrebento seus miolos, e você não se
levanta mais.
(...)
- [Wednesday] Isso aqui está ficando ridículo. Vir aqui foi um erro. Shadow,
vamos embora.
(...)
- Não - retrucou Shadow. Não tinha medo de morrer. Não era como se
tivesse motivos para viver. Tudo bem. Eu aceito. Se você ganhar, terá a
chance de me apagar, arrebentando meus miolos com um golpe de
marreta. (GAIMAN, 2016, ps. 92-93)
precisely this fact which makes possible the greatness of the Sophoclean heroes; the source of their
action lies in them alone, nowhere else; the greatness of the action is theirs alone. Sophocles
presents us for the first time with what we recognize as ‘tragic hero’:one who, unsupported by the
gods and in the face of human opposition, makes a decision which springs from the deepest layer of
his individual nature, with physis, and then blindly, ferociously, heroically maintains that decision even
to the point of self-destruction” (tradução livre).
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Shadow perde esta aposta e, não contente, propõe um novo jogo com as
mesmas condições, alegando que o deus, por não manejar sua marreta há muito
tempo, pode ter perdido o jeito e talvez não consiga matá-lo na primeira tentativa.
Na segunda oportunidade, Shadow vence e o deus eslavo embarca na empreitada
enganosa de Wednesday.
Nesta passagem é possível localizar em Shadow pelo menos um pouco do
que caracteriza um herói, conforme o entendimento de Knox. Ele é intrépido, corre
riscos e até se diverte com isso, pela forma como se comporta no segundo jogo de
damas:
Em outras palavras, o herói perfaz uma jornada, uma travessia em que ele
simbolicamente se distancia, rompe com seu status quo – separação – e,
caminhando por uma estrada até então desconhecida para ele, cheia de surpresas
e novas criaturas, tem de transpor inúmeros obstáculos – iniciação –, para, então,
retornar ao seu lugar de origem com um aprendizado que o modificou – retorno – e
espalhar as dádivas desse aprendizado para o seu povo.
Nesta esteira, o caminho atravessado por Shadow será avaliado através da
verificação da presença, nele, dos estágios do ciclo cosmogônico do monomito, o
que se pode comprovar a partir da interpretação da simbologia das etapas do
percurso do herói, com a respectiva aproximação da jornada pessoal do
personagem de Gaiman a esse percurso.
Campbell demonstra todos os estágios que compõem o percurso do herói
através da análise de uma multiplicidade de personagens advindos de escrituras
sagradas religiosas – a Bíblia dos cristãos, o Corão dos muçulmanos, os Vedas dos
hindus –, mitologias – grega, romana, nórdica, africanas, orientais –, literatura – a
épica e as tragédias gregas, o drama shakespeariano – e até mesmo história –
Napoleão –, identificando na trajetória dessas personagens, e através dos símbolos
que elas carregam consigo, cada etapa desse percurso. Todos esses mitos, lendas
e personalidades, por mais diversas que sejam as particularidades dos povos que
representam, que se traduzem na maneira como são representados, possuindo
suas marcas culturais, seus símbolos, pela maneira como os caminhos que eles
percorrem, as dificuldades que enfrentam e os resultados que obtêm, se parecem,
são todos como que diferentes faces de um mesmo herói – fenômeno que se
denominou monomito. Nas palavras de Campbell:
Shadow, ele diz “Eu o convenceria mais cedo ou mais tarde, mas você o deixou
mais motivado do que eu teria conseguido” (GAIMAN, 2016, p. 113).
Isso até o momento em que passa pelo sacrifício em que fica amarrado a
uma “Árvore do Mundo” (GAIMAN, 2016, p. 430) por nove dias e nove noites,
momento em que passa pelo mundo dos mortos e retorna. A partir daí, há uma
concentração de atitudes de sua parte que podem ser vistas como plenamente
heroicas; porém, isso se dá num momento bem avançado da narrativa, já na terceira
parte do livro, denominada de “O momento da tempestade”.
Tendo isso em vista, são mais classificáveis como “dons excepcionais”, no
caso de Shadow, o fato de que, apesar de sua aparente “normalidade”, ou antes
falta de “excepcionalidade”, o destino dá mostras de tê-lo escolhido como campeão:
ele tem sonhos proféticos e recebe ajuda de deuses e outros seres sobrenaturais,
que o protegem e guiam em muitos momentos, como quando está passando pelo
submundo e o sr. Íbis, em sua forma mitológica de pássaro, se oferece para ser seu
psicompompo – “um sinônimo rebuscado de acompanhante” (GAIMAN, 2016, p.
456), em suas próprias palavras – e, quando Shadow lhe indaga por que faz isso,
alegando que nunca acreditara neles (nos deuses), obtém como resposta: “Não
importa que você não acreditasse em nós. Nós ainda acreditávamos em você”
(GAIMAN, 2016, p. 457). Tal afirmação é uma demonstração de fé e esperança,
sentimentos geralmente reservados a humanos em relação a seus deuses, e não o
contrário. Ademais, em um romance em que a crença dos mortais em seus mitos é
a razão de sua existência enquanto seres sociais, é de se supor que a fé de um
deus em um mortal produza também algum efeito sobre o último.
Conclui-se, assim, que Shadow possui como dons, pelo menos: sua
ascendência divina; o fato de ter sido escolhido para acompanhar Wednesday e,
assim, estar sempre na companhia de deuses, o que implica em envolver-se em
seus assuntos, ser testemunha de eventos sobrenaturais e ingressar, por vezes,
nos “Bastidores” (“Imagine que é como estar nos bastidores. Como se fosse um
teatro, ou coisa parecida. Acabei de nos tirar da plateia, agora estamos caminhando
pelos bastidores. É um atalho” (GAIMAN, 2016, p. 332)); uma certa clarividência,
manifestada através de sonhos; e a fé dos deuses em si depositada.
Além dos referidos dons excepcionais que possui, de acordo com Campbell,
o herói é, também, “ele mesmo o centro do mundo, o ponto umbilical através do
qual as energias da eternidade irrompem no plano temporal” (CAMPBELL, 2007, p.
72
estágios são percorridos não como se ele subisse uma escada em que pisasse em
cada degrau, um por vez, até atingir o topo onde teria atravessado, por fim, todos
os estágios. Não se trata, portanto, de uma trajetória linear. Não obstante, é possível
identificar, se não todos, pelo menos a maioria desses estágios no caminho que
Shadow traça. Tendo isso como norte, o que segue é uma análise comparativa de
cada um desses marcos na jornada do herói monomítico em relação aos momentos
em que eles podem ser localizados em Deuses Americanos.
Tomando como ponto de partida, então, o primeiro grande estágio, qual seja,
o da separação ou partida, tem-se como um primeiro passo o “chamado à aventura”,
que consiste na presença de uma personagem, geralmente com poderes
sobrenaturais ou estrangeira, “de fora”, que, portanto, tem conhecimento de outras
realidades ignoradas até então pelo herói.
Wednesday, nesse sentido, é o primeira personagem que se pode identificar
como o que Campbell chama de arauto ou guia. Segundo o autor de O herói de mil
faces, “O arauto ou agente que anuncia a aventura, por conseguinte, costuma ser
sombrio, repugnante ou aterrorizador, considerado maléfico pelo mundo; (...) Pode
ser igualmente uma figura misteriosa coberta por um véu – o desconhecido”
(CAMPBELL, p. 62). Há “uma atmosfera de irresistível fascínio em torno da figura
que aparece subitamente como guia. (...) O elemento que tem de ser encarado, e
que, de alguma forma, é profundamente familiar ao inconsciente – apesar de
desconhecido, surpreendente e até assustador para a personalidade consciente, se
dá a conhecer; e aquilo que antes tinha sentido pode tornar-se estranhamente sem
valor” (CAMPBELL, p. 64).
Wednesday, em sua primeira aparição na narrativa, quando o leitor ainda
não sabe quem é ele, faz um sinal mostrando seu relógio para Shadow, quando
este passa por ele, de forma parecida com o coelho branco em Alice no país das
maravilhas (CARROLL, 2010, p. 15-16) – só que em Deuses americanos, o deus
atribui o atraso a Shadow, e não a si mesmo, como o coelho: “O tempo
definitivamente urge – disse o homem. – Mas, não, não estou com pressa. Estava
apenas preocupado com a possibilidade de que você não conseguisse embarcar”
(GAIMAN, 2016, p. 34). Ambas as figuras – coelho branco e Wednesday –
desempenham em suas respectivas obras, o papel do arauto, aquela figura
misteriosa que chama o herói à aventura.
74
33
Wednesday has three parts or morphemes (Wedene- + -s + day), which emanated from Old
English wodnesdæg 'Woden's day', a Germanic loan-translation of Latin dies Mercurii 'day of
Mercury'. (...) Historically, the first part Wedne- came from Old English Woden (wood) or Odin 'chief
Teutonic god, the All-Father, mad, inspire, arouse spiritually'” (tradução livre).
75
esquerdo era opaco. Ele trajava um manto, e um capuz cobria sua cabeça,
ocultando seu rosto em meio às sombras. – Eu falei que lhe diria meus
nomes. É assim que me chamam. Alegria da Guerra, Sombrio, Saqueador
e Terceiro. Eu sou o Caolho. Sou chamado de O Mais Alto, e de o Adivinho.
Sou Grímnir e o Encapuzado. Sou o Pai de Todos, e sou Gondlir, Portador
da Varinha. Meus nomes são tantos quanto os ventos, meus tótulos são
tantos quanto as formas de morrer. Meus corvos são Hugin e Munin:
Pensamento e Memória; meus lobos são Freki e Geri; meu cavalo é o
cadafalso. (GAIMAN, 2016, p. 136)
reobtenção discutida anteriormente – em seu âmago, o herói sabe quem é, pois ele
já viveu essa jornada inúmeras vezes sob outras formas; ele é o “filho do rei”, O
herói de mil faces.
Assim, se o temperamento de Shadow, sua aparente passividade e
aceitação do próprio destino, confundem o leitor que porventura espera um
protagonismo mais enérgico, alguém que ao menos tentasse, em contrapartida
domar, dominar, se apossar do próprio destino, o universo onírico, inconsciente da
personagem, com suas visões proféticas, não deixa dúvida de que a personagem
já se encontra em processo de busca por si mesmo. Os elementos que circundam
Shadow em seus sonhos com o homem-búfalo, o aspecto cavernoso – “na terra e
sob a terra” –, a fogueira, a criatura de aspecto mitológico à sua frente e as palavras
proferidas por esta, tudo isso evoca um verdadeiro ritual de iniciação e passagem.
O protagonista, portanto, recebe o chamado para a aventura, tanto por meio
do homem-búfalo em sonho, quanto por meio de Wednesday, a quem Shadow
encontra, após despertar do sonho, no avião seguinte em que embarca, de forma
repentina e misteriosa. O então desconhecido lhe diz coisas estranhas que prova
ser verdadeiras e, além disso, tem um trabalho para Shadow; o herói recusa num
primeiro momento, mas, dadas as circunstâncias, acaba cedendo.
Dessa forma, ele cumpre o primeiro passo no percurso do herói, o qual
“significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do
seio da sociedade para uma região desconhecida” (CAMPBELL, 2007, p. 66), dando
início, então, à sua separação, à sua partida, primeiro estágio da unidade nuclear
do monomito.
Dando sequência, o passo seguinte desse estágio da separação seria,
segundo Campbell (2007, p. 66-67), a recusa do chamado, no qual aquele que
recebe esse chamado endurece seu coração e opta por não aceder – “a recusa é
essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse
próprio”. Aquele que recusa o chamado, desta forma, encara o futuro “em termos
de obtenção e proteção do atual sistema de ideais, virtudes, objetivos e vantagens”.
Como já referido, Shadow flerta com essa alternativa. Após ter estado na
prisão e cumprido sua pena, ganhando novamente a liberdade, não lhe apraz a
perspectiva de correr qualquer risco de retornar ao cárcere. Portanto, alçar-se rumo
ao desconhecido, para ele, não é uma opção muito convidativa. Além do mais, no
momento em que recebe a proposta de Wednesday, Shadow não tinha
77
Ele queria dizer algo a Laura e estava disposto a esperar até descobrir o
que era. Aos poucos, o mundo começou a perder luz e cor. Os pés de
Shadow estavam ficando dormentes, enquanto as mãos e o rosto doíam
por causa do frio. Ele enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos para se
aquecer, e os dedos envolveram a moeda de ouro.
Ele se aproximou da cova.
- Isto é para você – disse.
Algumas pás de terra já haviam sido jogadas em cima do caixão, mas ainda
faltava um bocado para encher o buraco. Ele jogou a moeda de ouro na
cova de Laura e depois um pouco de terra em cima para esconder o objeto
da ganância alheia. Limpou a terra das mãos e disse:
- Boa noite, Laura. – Depois de um instante, acrescentou: - Sinto muito.
(GAIMAN, 2016, p. 62-63)
78
Um dia depois, Shadow recebe outra moeda, dessa vez de prata, na noite
em que passou na residência de Czernobog e das Zoryi, em Chicago. Numa cena
simbolicamente carregada que se passa nos limiares entre o sonho e o despertar,
no terraço da residência, Zorya Polunochnaya, a irmã da meia-noite, “pega “ a lua
e a entrega a Shadow para mantê-lo em segurança, pedindo-lhe que não se desfaça
dela com fez com a anterior (GAIMAN, 2016, p. 101). Antes disso, ela havia lhe
dito:
Você recebeu proteção uma vez, mas a perdeu. Você a deu para outra
pessoa. Teve o sol nas suas mãos. E isso é como a própria vida. Só posso
dar uma proteção muito mais fraca. A filha, não o pai. Mas qualquer ajuda
vale. Não é? (GAIMAN, 2016, p. 100-101)
O herói que estiver sob a proteção da Mãe Cósmica nada sofrerá. (...) Essa
figura representa o poder benigno e protetor do destino. A fantasia é uma
garantia – uma promessa de que a paz do Paraíso, conhecida pela
primeira vez no interior do útero materno, não se perderá, de que ela
suporta o presente e está no futuro e no passado (...).
Shadow atravessa essa passagem do primeiro limiar sem que haja essa
figura do guardião referida por Campbell, que tentaria lhe impedir a passagem ou
ao menos avisar-lhe dos riscos que ele está por encontrar. Um exemplo clássico
dessa espécie de guardião é Cérbero, o monstruoso cão de três cabeças que
guarda a entrada para o Hades, o mundo dos mortos da mitologia grega. O
protagonista de Deuses Americanos atravessa entrada semelhante a essa sem
passar por monstro algum. No entanto, ele recebe um alerta de Zorya
Polunochnaya: “– Todas as suas perguntas podem ter resposta, se é isso que você
quer. Mas, depois que se descobre as respostas, não há como deixar de saber quais
são. Você precisa compreender isso” (GAIMAN, 2016, p. 448).
Segundo Campbell, um dos sentidos da presença de um guardião na entrada
do limiar é o aspecto de proteção. “É melhor não desafiar o vigia dos limites
estabelecidos”, diz ele, “E, no entanto, somente ultrapassando esses limites,
provocando o outro aspecto, destrutivo, dessa mesma força, o indivíduo passa, em
vida ou na morte, para uma nova região da experiência” (CAMPBELL, 2007, p. 85).
Assim, Shadow, passando pelo limiar, adentra essa região de perigos, guardada
por forças vigilantes com as quais deve lidar, e o faz tendo recebido o aviso de que
não deixará de saber as respostas para suas perguntas. Em outras palavras, as
mudanças pelas quais está por passar são permanentes, ele não poderá esquecer
delas.
Já tendo adentrado essa região, atravessado esse primeiro limiar, que é,
simplesmente, o limite, portanto já tendo dado o “primeiro passo na sagrada área
da fonte universal”, uma área de “campos livres para a projeção de conteúdos
inconscientes” (CMPBELL, 2007, p. 83), Shadow está no interior do “ventre da
baleia”, o quinto e último nível da separação.
em que há uma purificação dos sentidos, que se tornam humildes, enquanto que os
interesses e energias se concentram em coisas transcendentais. Num vocabulário
mais moderno,
Shadow, assim, já revisitou o seu passado e perdeu seu nome e seu coração.
Metaforicamente, foi purificado de seus sentimentos e de seus interesses nas coisas
mundanas. Ele agora está limpo, e também ciente de todo o quadro de sua presente
situação, em especial sobre a paternidade de Wednesday. Então, de posse apenas
de sua essência, ele segue sua travessia na escuridão, e o que ele encontra é um
lago subterrâneo, e, sobre ele, um barco baixo e achatado, conduzido por uma
figura alta, com uma “cabeça de pássaro bem pequena sobre um pescoço comprido,
com um pescoço curto e alto” (GAIMAN, 2016, p. 455). É o sr. Íbis que está ali para
guiá-lo pela última etapa, para ser seu psicopompo.
Todos nós temos muitas funções, muitas formas de existir. Quando penso
em mim mesmo, eu me vejo como um erudito que leva uma vida pacata e
compõe historietas e sonha com um passado que pode ou não jamais ter
existido. E isso é verdade, de certa forma. Mas também sou, em uma de
minhas atribuições, como muitos dos outros com quem você optou por se
relacionar, um psicopompo. Acompanho os vivos até o mundo dos mortos.
(GAIMAN, 2016, p. 457)
si mesmo. Outros personagens, como o próprio sr. Íbis, apesar de não terem com
ele o mesmo vínculo familiar do deus nórdico, se deixam cativar e o auxiliam por se
afeiçoarem a ele – o deus egípcio chega mesmo a solicitar que fosse ele o
acompanhante de Shadow até o mundo dos mortos.
Assim, na companhia do sr. Íbis, Shadow chega diante do deus-chacal
Anúbis, o sr. Jacal, que também havia conhecido na funerária em Cairo, Illinois. Ali,
toda a sua vida é examinada, todos os seus atos que lhe causavam vergonha, culpa,
remorso. Depois disso, seu coração é posto em uma das bandejas de uma balança,
enquanto na outra é colocada uma pena – pena esta que o sr. Jacal, ainda em
Cairo, revelara a Shadow ser bem pesada. “Mandamos fazer sob encomenda. A
pessoa tinha que ser bem maligna para virar a balança com aquela coisa” (GAIMAN,
2016, p. 202).
A pena e o coração de Shadow, por fim, se equilibram, e com isso ele ganha
o direito de escolher o próprio destino, e ele o faz: “– Quero descansar – disse
Shadow. – É isso o que eu quero. Não quero nada. Nem céu, nem inferno, nada.
Só quero que acabe” (GAIMAN, 2016, p. 460). E Shadow, mesmo que por um breve
momento, recebe o que pediu.
Nesse ponto, algumas observações devem ser feitas. O fato de o coração de
Shadow se equilibrar com a pena, tendo em consideração o conhecimento que se
tem, por meio do sr. Jacal, sobre o peso da pena, demonstra apenas que Shadow
não é uma pessoa maligna; portanto, não aponta para a existência de uma virtude
redentora nele, pelo menos não nesse momento, pelo menos não se comparada
àquilo que pesa em seu coração. Então, pode-se afirmar que, no mínimo, Shadow
é tão cheio de falhas quanto de virtudes, e por isso seu coração e a pena se
equilibram. Ele não é isento disso. Há um anticlímax produzido por essa revelação,
que pode ser traduzido pelas palavras de Bastet:
Não fica claro se Shadow poderia ter optado, por poder escolher o próprio
destino, de livre e espontânea vontade, retornar à vida nesse instante, mas pela
reação de Bastet, logo após o veredito da balança, portanto antes de Shadow
87
anunciar sua escolha, denota que aquilo significava que o protagonista apenas
morrera, como tantos outros – “só mais uma caveira para a pilha” –, o que dá a
entender que qualquer um dos destinos que Shadow poderia escolher seria em
relação à sua vida após a morte. Por conta disso, não é possível afirmar se Shadow
teria escolhido retornar e acertar as contas, como no final ele o faz, caso essa opção
lhe tivesse sido dada, pois não foi uma opção: ele foi despertado.
Assim, é sabido que Shadow não permanece morto como desejara. As
etapas seguintes do grande estágio da iniciação – à exceção da terceira,
denominada “a mulher como tentação” – têm a ver com o momento da ressurreição
vivido por Shadow. Essas etapas são as seguintes: “o encontro com a deusa”; “a
sintonia com o pai”; “apoteose”; e “a bênção última”. Se nas etapas anteriores foi
possível localizar pontualmente, na figura de personagens e instantes do romance,
correspondências diretas, como foi o caso dos amuletos e dos guias, nas etapas
que seguem, o significado, aquilo que elas simbolizam, têm uma repercussão muito
maior dentro da obra de Gaiman, sendo por sua vez mais difícil encontra-las
cristalizadas em figuras específicas.
Na divisão feita por Campbell (2007, p. 111), a etapa posterior ao caminho
de provas se chama “o encontro com a deusa”. “A aventura última, quando todas
as barreiras e ogros foram vencidos, costuma ser representada como um
casamento místico (hierógamos) da alma-herói triunfante com a Rainha-Deusa do
Mundo”. Essa etapa simboliza o “final feliz” da jornada do herói, o momento de
colher os frutos das sementes plantadas, e é possível vê-la representada quase que
ad nauseam em narrativas ficcionais, principalmente no cinema e nas novelas de
televisão, quando muitos personagens se encontram reunidos na mesma
celebração de um casamento entre o mocinho e a mocinha. A “deusa”, neste caso,
corresponde ao
do que lhe traz prazer, o que se realiza como forma de prêmio ou recompensa pelos
perigos vividos e suplantados, pelo sacrifício e abnegação pessoal. Como diz
Campbell, a existência mesma de uma figura correspondente à da deusa revela, na
verdade, a presença de elementos que capturam a vontade do herói, que
constituem para ele objetos de desejo.
A maneira como esse aspecto da jornada do herói é trabalhado por Gaiman
em Deuses Americanos é descentralizada, na medida em que não há um ponto de
culminação, de realização última, concentrado na celebração de uma união, por
exemplo. Ao contrário disso, logo no início, há uma ruptura de uma união
preexistente, de Shadow com Laura.
Viu-se que Shadow, na cadeia, “passou muito tempo pensando no quanto
amava a esposa” (GAIMAN, 2016, p. 17) e que ele sintetizou todos os seus maiores
desejos em uma lista do que iria fazer quando fosse solto, lista esta que tinha como
conteúdo três itens apenas: 1) tomar um longo banho de banheira, com direito a
bolhas de sabão; 2) após se secar e vestir um roupão, levaria sua esposa para o
quarto, pegando-a nos braços, e fecharia a porta; 3) depois que eles saíssem do
quarto, ele ficaria na dele, evitando problemas pelo resto da vida.
Estes constituem os objetos de desejo do protagonista do romance de
Gaiman. Entretanto, ele viria a realizar somente o primeiro item, na primeira
oportunidade que teve, no hotel em que esteve hospedado em Eagle Point, após o
funeral de Laura. Os outros dois itens ficaram indisponibilizados pela morte de Laura
e Robbie e pelo aceite do trabalho que Wednesday lhe oferecera.
Logo, há uma ruptura entre Shadow e seus desejos, pois eles ficam
impossibilitados. A “deusa” de Shadow, no sentido usado por Campbell, nesse
momento é Laura, e, apesar de eles já serem casados, o longo afastamento
causado pelo encarceramento resultaria, caso ela continuasse viva, em uma
reunião; consistiria na realização do encontro com a deusa, na recompensa de
Shadow por ter aguentado seu tempo na cadeia, cumprido sua pena, com
resiliência, refletindo sobre seus erros e ficando longe de problemas que pudessem
lhe causar um aumento de pena. Porém, ele passa por isso e, no fim, no momento
de receber essa recompensa, ela se perde e, como consequência, sua verdadeira
aventura começa.
A aventura nesse ponto consiste em basicamente apenas seguir
Wednesday. Eles visitam Czernobog e as Zoryi em Chicago, depois partem em
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direção à House on the Rock, onde se localiza o Maior Carrossel do Mundo; há uma
reunião entre vários deuses ali, onde Wednesday tenta convencê-los de que há uma
guerra iminente e que eles precisam se preparar para a batalha. Depois disso,
Shadow é sequestrado e Laura aparece para salvá-lo. Esse é o segundo encontro
entre o casal depois do funeral em que Shadow lhe presenteia com a moeda de
ouro que provavelmente é responsável pela sua reanimação. Na conversa que eles
têm nessa ocasião, Shadow segue um conselho dado por Zorya Polunochnaya, e
pergunta a Laura o que ela quer. Ela lhe pede que faça com que ela volte a viver, e
ele promete tentar (GAIMAN, 2016, p. 154).
Com isso, a jornada de Shadow ganha um novo propósito: encontrar uma
maneira de devolver a vida verdadeira a Laura, pois ele se sente em dívida por ela
estar cuidando dele. É isso que o motiva a, por vezes, sair um pouco da linha; ele
continua fazendo o que Wednesday manda, indo aonde ele determina, esperando
onde lhe é solicitado esperar. Mas ele passa a ter uma dúvida, uma razão para fazer
perguntas. Essa dúvida não se traduz em questionar Wednesday e sua empreitada,
que ele só descobre ser uma farsa após retornar de sua própria morte, portanto isso
não se torna uma razão para se rebelar; ainda assim, torna-se uma busca individual,
algo que ele quer realizar por conta própria, mesmo que o a pessoa beneficiada
seja Laura, e não diretamente ele.
Além dessa busca pessoal, cabe relembrar que Laura também é responsável
por provocar Shadow quando lhe diz que ele não parecia, aos olhos delas,
realmente vivo: ele parecia com “um buraco em forma de homem aberto no mundo”,
ela dissera. Essa provocação faz com que ele deseje fazer coisas que alguém que
está vivo faria, e é esse pensamento que o leva a decidir se sacrificar por
Wednesday, que, consequentemente, é a causa da verdadeira transformação final
de Shadow.
Essa identificação de Laura como um agente que põe Shadow em
movimento, em busca de coisas, que faz ele querer coisas, relaciona-se com mais
um aspecto da figura da “deusa” de que fala Campbell: “A mulher representa, na
linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é
aquele que aprende. (...) Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o
prendem.” (CAMPBELL, 2007, p. 117).
Pode-se dizer, assim, que Laura desempenha, ao provocar Shadow, o papel
mitológico da mulher que guia, protege e ensina ao herói, fazendo com que ele
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acorda na sala de sua casa, e ela está respirando, e há sangue fresco saindo de
um arranhão em sua mão, e ela sabe aonde tem de ir: “Tinha bebido das águas do
tempo, que vê da fonte do destino. Via a montanha em sua mente” (GAIMAN, 2016,
p. 468). Ela se encaminha então para o local da batalha, onde se encontra com o
sr. World, que lhe informa que o efeito da água não vai durar muito. “As Nornas só
lhe deram um gostinho do passado. E esse gostinho daqui a pouco vai se dissolver
no presente (...)” (GAIMAN, 2016, p. 497).
Conclui-se daí que a água que Shadow ordenou que fosse dada de beber à
Laura deu a ela, mesmo que temporariamente, uma vida de verdade, com sangue
correndo nas veias e respiração. Assim, ele realizou outro pedido que ela lhe havia
feito. Shadow vem a descobrir, logo depois de ser revivido, ao montar em um
pássaro do trovão, como trazê-la definitivamente de volta à vida: usando uma pedra
de águia, a qual pode ser retirada de dentro do crânio de uma dessas criaturas, os
pássaros do trovão (GAIMAN, 2016, p. 499). Ele conta isso a Laura e ela fica feliz,
mas pede-lhe que faça o contrário, e ele arranca a moeda de ouro que está
pendurada por uma corrente ao seu pescoço, e ela morre (GAIMAN, 2016, p. 511).
Portanto, o “encontro com a deusa”, em Deuses Americanos, não se traduz
em um “felizes para sempre”, como ocorre nos contos de fadas. Mas há um esforço
do herói no sentido de realizar os desejos da mulher amada, e o herói se mostra
capaz de atender a esses desejos, conquistando, simbolicamente, o seu amor. A
morte de Laura nos braços de Shadow, é, importante frisar, um atendimento a um
desejo final dela. Shadow faz isso contra sua própria vontade, pois ele gostaria que
ela vivesse, mas ele faz o que ela lhe pede, o que demonstra, mais uma vez, um
ato de abnegação, prova de que Shadow tem o “coração gentil” que se requer do
herói na conquista da deusa:
A deusa guardiã do poço inesgotável (...) requer que o herói seja dotado
daquilo que os trovadores e menestréis denominavam “coração gentil”. Ela
não pode ser compreendida nem apropriadamente servida pelo desejo
animal de um Actéon, nem pela repulsa insolente de um Fergus, mas
apenas pela gentileza (...).
O encontro com a deusa (que está encarnada em toda mulher) é o teste
final do talento de que o herói é dotado para a bênção do amor (caridade:
amor fati), que é a própria vida, aproveitada como o invólucro da
eternidade. (CAMPBELL, 2007, p. 118-119)
Antes de morrer, Shadow e Laura dizem um ao outro, uma vez mais, que se
amam. É um gesto que, dadas as circunstâncias, sela tanto uma união quanto um
92
Você precisa entender meu ponto de vista, Shadow: nós somos a próxima
moda. Somos shoppings, enquanto seus amigos são atrações fajutas de
beira de estrada. Olha, somos até lojas virtuais, enquanto seus amigos
estão sentados no acostamento vendendo frutas de pomar caseiro em uma
carroça. Não, eles não chegam nem a vendedores de frutas. Eles vendem
chicotes de cocheiros. Consertam corseletes de osso de baleia. Nós
somos o agora e o amanhã. Seus amigos não são nem mais o ontem.
(GAIMAN, 2016, p. 174)
Depois disso, ela ainda oferece a Shadow o dobro, o triplo, cem vezes mais
do que ele recebia de Wednesday e, ao final, pergunta se ele “já teve vontade de
ver os peitos da Lucy”, personagem da TV que ela ora encarnava, desabotoando
sua blusa. Ela tenta Shadow, portanto, com a novidade, a promessa de relevância,
de fazer parte da moda, e também com dinheiro e, por fim, sexo. Mas nada disso o
cativa:
sopra. As vantagens que lhe foram oferecidas poderiam representar para ele, na
situação em que estava, uma maior garantia de estabilidade, se o que estava
procurando era levar uma vida tranquila. Desde que saíra da cadeia e se juntara a
Wednesday, ele já havia sido raptado e espancado duas vezes, e nenhuma
vantagem real havia sido obtida, além do salário que recebia. A vida que estava
vivendo era uma vida proscrita, fugindo do perigo, viajando por estradas
secundárias, dormindo em hotéis.
Mas ele se mantém leal, não apenas a Wednesday e aos outros deuses
antigos, mas objetivamente a seus princípios. Shadow escolhe se manter no
caminho que vinha percorrendo até ali porque, apesar de tudo, é o lado que mais
lhe apraz. De uma perspectiva ampla, quando se conhece o desenlace da narrativa,
isso não parece muito relevante, pois não importa, realmente, de que lado Shadow
está, visto que, por se tratar de uma farsa entre Odin e Loki, onde ele estivesse ele
estaria sob o comando do deus. Porém, a lealdade dele aos deuses antigos é
importante pelo simples fato de que, para a guerra acontecer, Wednesday teria que
encenar sua própria morte e, para poder voltar, precisaria que alguém lhe pagasse
tributo na árvore, e Shadow havia se comprometido, quando contratado, a fazer
isso.
Segundo Carlos Ceia, “o herói é marcado por uma projeção ambígua: por um
lado, representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e
ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em que representa
facetas e virtudes que o homem comum não consegue, mas gostaria de atingir34”
Sendo uma dessas virtudes, a lealdade é um aspecto importante do caráter de um
herói, e ela também o previne de seguir por um curso que o desviaria da trajetória
que ele precisa percorrer para cumprir os passos de sua transformação. Mudar de
lado agora seria o mesmo que recusar o chamado, ou dar as costas a ele, seduzido
pela oportunidade de obtenção e manutenção das vantagens percebidas no estado
atual.
A mulher como tentação é, na verdade, mais uma personificação do caminho
de provas e perigos, dos obstáculos que o herói tem de transpor, e se assemelha,
nesse sentido, ao canto das sereias presentes n’A Odisseia, entre outras figuras
femininas que aparecem no caminho de Ulisses e o convidam a descansar em sua
34
Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/heroi/. Acesso em: 10 out 2019
94
conhecimento da magia das runas. Em seu caso, ele se enforca com uma corda
amarrada a um galho da Yggdrasill, a Árvore do Mundo, e tem seu corpo perfurado
por uma lança. Ao fim dos nove dias e nove noites, tendo passado sede e fome, no
êxtase da dor, as runas lhe são reveladas e ele obtém o mundo, libertando-se da
corda que o amarrava. Em Deuses Americanos, Wednesday faz referência a esse
sacrifício, numa passagem em que recita versos descrevendo os encantos que ele
aprendeu passando por essa experiência, concluindo que foi “um sacrifício meu
para mim mesmo, e os mundos se abriram para mim” (GAIMAN, 2016, p. 279).
O tributo prestado por Shadow na Árvore do Mundo norte-americana, que se
localiza na Virgínia, “bem longe de tudo, nos fundos de uma fazenda” (GAIMAN,
2016, p. 433), possuindo como identificação apenas uma placa dizendo FREIXO no
portão que dava acesso à fazenda, é espelhado no sacrifício de Odin. Em seu caso,
ele não é amarrado pelo pescoço em um galho, mas suspenso por cordas atadas à
árvore e ao seu corpo, completamente nu. A exemplo de Odin, Shadow permanece
ali por nove dias e nove noites, sem comer ou beber nada, e seu corpo também é
perfurado por uma lança. Sua vida se esvai nessa árvore, mas também ele vive um
momento de êxtase em que se sente mais vivo do que estivera em toda sua vida:
Você trabalha para mim. Você me protege. Você me ajuda. Você me leva
de um lugar a outro. De vez em quando, você investiga... vai a alguns
lugares e faz perguntas por mim. Compra suprimentos. Em uma
emergência, mas só em uma emergência, você machuca pessoas que
precisam ser machucadas. No caso improvável de eu vir a morrer, você
prestará tributo a mim. E, em troca, eu tomarei providências para que suas
necessidades sejam devidamente atendidas. (GAIMAN, 2016, p. 50)
Já não há mais medo, portanto, em Shadow. O retorno não passa, para ele,
de uma inconveniência, pois, sob sua nova perspectiva, obtida por essa
“experiência da visão de completeza”, e da satisfação por ela gerada, os problemas
que ficaram para trás já não fazem sentido para sua mente: são minúsculos e
banais. Daí decorre, também, o segundo problema, para o herói, do retorno: pois
assim que retorna, o desafio é, tendo voltado à vida terrena, tomado das velhas
sensações terrenas de dor, alegria, tristeza, sofrimento, prazer, manter o
aprendizado obtido da percepção da plenitude.
Easter e Hórus. O primeiro vai até o próprio Lugar Que Não É onde Shadow se
encontra, invadindo e perturbando o seu Nada, enquanto os outros dois vão até
onde está o corpo físico de Shadow; lá, Hórus voa aos céus e dispersa as nuvens
para que o sol aqueça o protagonista, enquanto Easter, num beijo, sopra a vida para
dentro dele. Essa ajuda que o herói recebe demonstra, nesse estágio da jornada
preocupados, como ora estão, com a própria sobrevivência naquela terra que não
é boa para deuses, os Estados Unidos, ou seja, apegados ao próprio ego, à sua
existência terrena em meio aos homens; tentam permanecer lembrados, pois o seu
esquecimento significa a sua extinção.
Mas é um homem que, superando essa condição humana, transpondo os
dois mundos, deve alertá-los da tolice que estão por cometer, pois ela só servirá de
alimento a um deus que se sustenta das mortes dedicadas a ele: Odin. E é esse
homem que, para este fim, sacrifica sua vida e sua morte, indo e voltando por entre
os mundos. Esse sacrifício é o requisito necessário para desenvolver o chamado
“talento do mestre”.
que faz Easter imaginar “quão grande seria a distância que Shadow percorrera, e o
que voltar havia lhe custado” (GAIMAN, 2016, p. 494). Ele conversa e depois monta
no pássaro do trovão com naturalidade, sem hesitação ou desconfiança e, sem
perguntar a ninguém o que deve fazer (ele já sabe), parte para o local onde a batalha
já se iniciou. Ele aproveita a viagem: “– Isso é o máximo! – gritou ele, em meio ao
rugido da tormenta” (GAIMAN, 2016, p. 498), diverte-se mesmo estando prestes a
adentrar um campo de guerra.
Uma vez no local, ele encontra com Wednesday e Loki, e conversa com eles,
e o tom em sua voz é seguro, até peremptório por vezes, como quando ordena que
Wednesday saia das sombras da caverna onde se encontra: “– Você pode sair –
disse, para a caverna. – Onde quer que esteja. Apareça. (...) Estou cansado de ser
feito de bobo – anunciou. – Apareça de uma vez. Quero ver você” (GAIMAN, 2016,
p. 503). Ele não se sente nem um pouco intimidade pelo fato de estar conversando
com dois deuses, um deles seu pai. A conversa é de igual para igual. Repare-se
bem no tom acusador que ele utiliza, como se estivesse em um julgamento,
apontando os crimes dos réus: “Vocês não traíram nenhum dos dois lados em nome
do outro. Traíram os dois”; “Vocês queriam um massacre. Precisavam de um
sacrifício de sangue. Um sacrifício de deuses” (GAIMAN, 2016, p. 504).
Após essa conversa, ele tem de se encaminhar para o centro da batalha, que
ocorre nos Bastidores, um lugar onde ele nunca tinha estado sozinho. Mas ele sabe
o que fazer:
período que cobre boa parte de sua infância, portanto, moraram em vários lugares
pela Europa, o que significa que Shadow, apesar de ser americano pelo fato de ser
filho de mãe americana, atuante no exterior a serviço do governo americano – o que
se depreende pela sua profissão, descrita como “comunicadora para o Serviço
Exterior” –, não morou (e talvez nem tenha nascido, o que não fica explícito) nos
Estados Unidos em um período importante da sua formação enquanto indivíduo.
A questão da nacionalidade de Shadow, de suas origens “desenraizadas” e
do lugar que ocupa de uma maneira geral, será discutida de forma mais
aprofundada mais adiante nesta análise. Por ora, destaca-se os efeitos que esse
modo de vida causou nele enquanto criança e as consequências disso em sua
personalidade enquanto adulto. Pôde-se perceber que Shadow nunca teve, na
infância, muitas oportunidades para formar vínculos fortes, seja com os lugares
onde morou, seja com as pessoas com quem conviveu. Segundo o texto, eles
“nunca ficavam em um mesmo lugar por tempo suficiente para que Shadow fizesse
amigos, se sentisse em casa, relaxasse”. Logo, conclui-se que a personagem viveu
sob tensão durante toda a infância, sem poder nem mesmo “relaxar”.
A ausência de amizades e a natureza do emprego da mãe, reforçados pela
afirmação do narrador de que ele “observava solenemente o mundo de adultos que
o cercava” denotam uma criança solitária, que passava mais tempo com pessoas
muito mais velhas que ele do que com outras crianças – o que fica ainda mais
evidente mais adiante quando Shadow explica o porquê de ser assim denominado,
por estar “sempre atrás de algum adulto” (GAIMAN, 2016, p. 297) – e, portanto,
muito quieta, além de muito pequena, o que lhe causava problemas com outras
crianças: além da fragilidade e exposição ao prevalecimento de crianças maiores
por sua estatura, destacava-o como alvo o estatuto constante da criança forasteira
– o colega novo que chega, vindo “de fora”, que é encarado com desconfiança por
aqueles que já permanecem em um determinado local por mais tempo, constituindo
um grupo homogêneo, que o recém chegado “invade” de repente.
Essa atitude das outras crianças em relação ao Shadow criança é confirmada
no parágrafo seguinte, que assim começa: “Na primavera de seu décimo terceiro
ano de vida os garotos da cidade onde morava implicavam com ele, obrigando-o a
entrar em brigas que sabiam que não tinham como perder” (GAIMAN, 2016, p. 204-
205). Até a primavera de seus treze anos, então, Shadow foi uma criança retraída
e pequena que apanhava de outras crianças maiores que ele. Porém, uma mudança
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estava por ocorrer, uma que repercutiria pelo resto de sua vida, mudando-a por
completo:
Daí veio o verão, seu décimo terceiro verão, longo e mágico, que passou
evitando os garotos maiores, nadando na piscina pública da cidade, lendo
livros da biblioteca à beira da piscina. No começo do verão, Shadow mal
sabia nadar. No fim de agosto, dava voltas e mais voltas na piscina com
toda a tranquilidade, pulando da plataforma alta, desabrochando em um
marrom escuro entranhado de sol e de água. Em setembro, voltara às
aulas e descobrira que os meninos que haviam infernizado sua vida eram
coisinhas pequenas e molengas, incapazes de continuar incomodando. Os
dois que tentaram brigar com ele tiveram que aprender boas maneiras com
uma dura, rápida e dolorosa lição. (GAIMAN, 2016, p. 205)
como se sabe, seu emprego antes da prisão era de preparador físico em uma
academia, emprego este que estava sendo mantido para ele, por Robbie, para
quando saísse.
Verifica-se, assim, um esforço da narrativa no sentido de formar, de início, a
imagem de alguém que se constitui por uma ênfase no corpo, no físico, na força, o
que, numa análise influenciada pelo conhecimento prévio de personagens
estereotipadas que apresentam semelhantes qualidades, leva à constatação de que
a relevância disso se dá em detrimento do uso da razão e da lógica, da presença
de um intelecto mais acentuado. Por isso mesmo, o fato de Shadow demonstrar ter
lido e compreendido Heródoto, ainda na prisão, causa surpresa em Low Key
Lyesmith; isso também já é um indício para o leitor, no primeiro capítulo mesmo, de
que as primeiras impressões podem ser enganosas, mas só no oitavo capítulo se
revela que a leitura era um hábito constante do adolescente Shadow. A partir disso,
fica mais difícil acreditar na aparente simploriedade do protagonista, podendo-se
concluir que se trata mais de uma espécie de defesa utilizada deliberadamente por
ele, interpretação que pode ser derivada do seguinte trecho:
Foi quando Shadow percebeu que tinha se redefinido: não podia mais ser
um garoto quieto, que fazia o possível para não aparecer e não atrapalhar.
Era grande demais para isso, óbvio demais. No fim do ano, já fazia parte
do time de natação e do time de levantamento de peso, e o técnico de
triatlo começara a cortejá-lo. Shadow gostava de ser grande e forte. Aquilo
lhe proporcionava uma identidade. Tinha sido uma criança tímida, não era
de falar, lia muito, e isso fora muito doloroso. Agora era um cara grande e
burro, e ninguém esperava que ele fosse capaz de nada além de levar um
sofá de um cômodo para outro, sem nenhuma ajuda.
Pelo menos ninguém até Laura. (GAIMAN, 2016, p. 205)
cogitado e atuante como membro de equipes esportivas, fator muito valorizado nas
escolas estadunidenses, bem como na sociedade daquele país de forma geral, o
que muda completamente seu status.
Percebe-se, também, que Shadow gosta da transformação pela qual passa.
Ele considera mais fácil ser “grande e burro”, sem despertar nas pessoas com quem
convive nenhuma expectativa quanto a sua capacidade intelectual. Preferia ser visto
como alguém cuja capacidade se restringe a poder levar um sofá de um cômodo a
outro sem ajuda, ou uma pessoa morta, como em Cairo, de uma maca a uma mesa
de necrotério com relativa facilidade. Essa é a maneira como ele escolhe se portar
e se posicionar, e ele o faz conscientemente, pois isso lhe é menos doloroso do que
ser a criança tímida que lê muito.
Isso não significa, por si só, que a leitura perdeu, de repente, todo o espaço
que ocupava na vida da personagem. Significa, apenas, que não é esse um aspecto
que ela busca dar relevo ao se apresentar para outras pessoas. Shadow não se
esforça em parecer mais inteligente do que as outras personagens conseguem
perceber num primeiro momento; no entanto, um contato mais contínuo com ele
deixa seus interlocutores no mínimo intrigados, como deixa transparecer Sam Black
Crow em certo momento da conversa que as duas personagens travam enquanto
Shadow dirigia até Cairo:
“– Sabe – confessou ela, com o olhar meio perdido –, eu não entendo. Não
entendo esse seu jeito de falar, essas palavras que você usa e tal. Primeiro
você é um grandalhão meio mané, depois lê minha mente, e agora a gente
começa a falar de Heródoto”. (GAIMAN, 2016, p. 168)
Os outros encontros que Shadow tem com humanos comuns (isto é, que não
são deuses ou seres lendários) no romance se dão sob circunstâncias especiais,
que não permitem a ele a mesma abertura. Alguns desses momentos aparecem no
primeiro capítulo, em que ele ainda está na prisão, período em que ele faz um
esforço para se manter calado e não falar muito de si, pois não quer arranjar
problemas; em outro momento, ele está residindo em Lakeside sob uma outra
identidade, a de Mike Ainsel, e obedecendo a ordem de Wednesday de se manter
discreto. Ele conversa com certa frequência com alguns cidadãos, como o delegado
Chad Muligan, porém tudo o que fala sobre si é parte do disfarce que assume, algo
para o que ele demonstra grande desenvoltura, como demonstrado acima, na p. 56,
no recorte que faz referência à forma como Shadow conseguia contar a mentira com
facilidade, convicção e naturalidade35.
Quanto aos deuses, já se fez referência, na p. 49, a um diálogo do
protagonista com o sr. Nancy, em que o deus num momento o julga pela falta de
inteligência, para depois reconhecer que talvez isso não seja verdade. O mesmo
deus, em outro momento, afirma: “Sempre que eu penso que você não tem como
entender, já que é burro feito uma porta, você vem e me surpreende” (GAIMAN,
2016, p. 431), como reação ao fato de Shadow demonstrar que entendia o que eram
os Bastidores.
Cabe recordar, também, da aposta entre o protagonista e outro deus,
Czernobog, e as duas partidas de damas que os dois disputaram, ao que também
já se fez referência: não obstante sua derrota na primeira delas, Shadow desafia o
deus para mais uma e o vence, em um jogo que, tal como o xadrez, tem íntima
relação com a capacidade de raciocínio lógico com a qual seus praticantes são
dotados. Não só isso, mas também a perspicácia que Shadow demonstra ao
persuadi-lo da possível necessidade de uma segunda chance para matá-lo,
alegando que se passara muito tempo desde que o deus manejara sua marreta e
poderia ter perdido o jeito, o que o leva a aceitar uma segunda partida sob os
35
Impossível não fazer referência, aqui, como essa facilidade que o protagonista demonstra para
contar uma mentira e assumir uma outra identidade o aproxima da figura de seu pai, Wednesday,
uma personagem tão marcada pela habilidade em contar mentiras, dar golpes e enganar quem quer
que seja para conseguir o que deseja (inclusive, e especialmente, os deuses, que são as principais
vítimas em potencial de sua armação junto a Loki). Uma vez mais se percebe a “sintonia com o pai”,
uma das subdivisões do estágio da iniciação estudado no capítulo anterior, acerca do percurso do
herói, segundo o qual uma das tarefas do herói é, simbolicamente, aprender o ofício de seu pai e
receber dele os instrumentos para completar sua missão, de acordo com Campbell (2007).
113
36
Romance escrito pelo norte-americano Thomas Pynchon, publicado em 1973, notável pela sua
extensão (de mais de 700 páginas) e complexidade estrutural, contendo centenas de personagens
e múltiplas vozes narrativas, que se distinguem em tom e estilo, sendo assim considerado um
romance pós-moderno. Encontra-se elencado em uma lista dos 100 melhores romances em língua
inglesa organizada pela revista Time (considerados apenas os romances publicados a partir de 1923,
ano do início da publicação da revista, até 2010, ano da publicação da lista).
114
- Tem certeza de que não era algo como “certos comportamentos que se
mostram adequados em um ambiente específico, como uma cadeia,
podem não ser adequados, ou, na verdade, podem até ser nocivos,
quando se está fora desse ambiente”? (GAIMAN, 2016, p. 29)
A diferença entre elas se torna ainda mais gritante com a reação de Johnnie
Larch à observação de Shadow: “- Não, presta atenção no que eu estou falando,
cara – dissera Johnnie Larch -, não irrite as vadias dos aeroportos” (GAIMAN, 2016,
p. 29). Neste contexto, o discurso de Shadow, pelo modo como é articulado, se
distingue bastante da linguagem utilizada pelo seu ex-companheiro de cela,
marcada por gírias, como “cara”, e expressões chulas, como “vadias”, ao se referir
às mulheres. É possível verificar a “diversidade social de linguagens” característica
do gênero romanesco, conforme Bakhtin, que afirma:
para pagar-lhe menos dinheiro. Vendo isso, Shadow lança mão de seu próprio
artifício, fazendo parecer que juntava uma nota que teria caído no chão para
entregar à garçonete, quando na verdade estava dando do próprio dinheiro. Shadow
provavelmente teria dado como feita a justiça sem maiores comentários, não fosse
o próprio deus confrontá-lo a respeito, e, diante disso, Shadow mantém firme sua
posição.
Até agora, pôde-se observar como Deuses americanos inicia com uma
descrição bastante direta sobre Shadow. Logo no primeiro parágrafo, o leitor é
informado que ele passara três anos na cadeia, que é um homem grande e taciturno,
cuja preocupação, nesse período, fora se manter em forma, aprender truques com
moedas e pensar na esposa. A partir disso, tem-se uma impressão enganosa de
que se está diante de uma personagem simples, até mesmo plana. Porém, tal
impressão vai se desfazendo aos poucos, conforme se avança na leitura.
Apesar de sua força e tamanho, ressaltadas em sua descrição, Shadow é
ponderado, não busca resolver tudo à base da violência; pelo contrário, procura se
afastar disso. Em diversos momentos, como já exposto, outras personagens, como
Sam Black Crow e o sr. Nancy, são surpreendidas pela sua capacidade analítica,
após terem-no julgado pela sua aparência e pelo seu silêncio. Pôde-se concluir,
também, que na verdade Shadow prefere assim: após seu rápido crescimento aos
treze anos, o que ele encarou como uma verdadeira redefinição de si mesmo, ele
abraça a sua nova condição de ser grande e forte, pois isso lhe conferia determinada
identidade.
Percebe-se aí que a questão identitária é um problema para Shadow: quando
se vê de posse de um novo status, em que suas novas habilidades se provam úteis
ao lhe proporcionarem um propósito, ele se agarra a isso, não hesitando em deixar
de lado os velhos hábitos. Em outras palavras, ser o “cara grande e burro” confere
a Shadow um “sentido de si” estável, algo ainda inédito em sua vida. Agindo dessa
forma, ele passa a se sentir seguro, deixando de ser alvo dos colegas que o
importunavam e conhecendo uma finalidade para a qual empregar seus esforços.
Porém, a crise de identidade de Shadow se mostra mais profunda à medida
em que demonstra não saber, e nem ao menos se interessar, pelas suas origens.
Duas vezes ele é questionado acerca da etnia a que se filia: na primeira delas, o
guarda da prisão que se diz assustado com Shadow, ao observar que sua
educação, seu silêncio e sua paciência o tornam parecido, nesses aspectos, com
os prisioneiros mais velhos, é levado, por isso, a questioná-lo: “E você é o quê?
Cucaracho? Cigano?”, para depois afirmar “Vai ver tem sangue de preto” (GAIMAN,
2016, p. 25). Aparentemente, a filiação a uma dessas etnias, diferentes da do
próprio guarda e na opinião deste, de alguma forma poderia ter relação com o fato
de Shadow se portar de maneira tranquila, ao contrário de outros presos com a
mesma faixa de idade dele, causando, assim, temor no guarda.
119
dele. No entanto, Shadow parece ignorar a hipótese de que tal proveniência poderia
vir do lado da mãe, a quem conheceu. Também não se tem em momento algum
uma descrição física materna em que tal hipótese poderia ser apoiada. Restam
como únicos indícios de caráter mais concreto, até esse momento, portanto, as
desconfianças a esse respeito por parte de Sam e do guarda.
Mais adiante, no capítulo DOZE, em uma das viagens em que Shadow
acompanha Wednesday, a dupla dirigia pelo estado de Dakota do Sul, em uma
região de reserva indígena, quando, após um desvio pelos “bastidores”, eles visitam
a propriedade de Whiskey Jack37, um nativo-americano que não se identifica como
um deus, mas como um símbolo cultural. Adiantando-se a Wednesday, o indígena
demonstra saber o que o deus nórdico pretende em sua visita, e de pronto se recusa
a tomar parte na guerra. Seu interesse na conversa, na verdade, se volta para
Shadow, a quem observa: “– Sabia que vocês não têm como chegar aqui sem que
eu queira?” (GAIMAN, 2016, p. 338), algo que o protagonista imediatamente “se
deu conta de que sabia”.
Whiskey Jack demonstra saber que Shadow está “caçando alguma coisa” e
que “quer quitar uma dívida”, o que se refere à busca do protagonista por uma
maneira de trazer Laura de volta à vida, algo que ela lhe pedira. Além disso, ele
pede que Shadow lhe conte o sonho que tivera recentemente: “– Eu estava
escalando uma torre de crânios. Pássaros gigantes voavam em volta dela. Saíam
raios das asas deles. Os pássaros me atacaram. A torre caiu.” (GAIMAN, 2016, p.
338). A partir dessa informação, Whiskey Jack afirma “– Nem todo mundo sonha
com os Wakinyau, os pássaros do trovão (...) Sentimos o eco aqui” (GAIMAN, 2016,
p. 338).
O fato de que não é possível chegar ao lugar onde mora Whiskey Jack sem
que ele queira, somado ao interesse em Shadow levam à conclusão lógica de que,
se o protagonista estava ali, é porque o indígena queria assim; além disso, a
afirmação de que não é possível a qualquer pessoa sonhar com o pássaro do
trovão, animal mitológico ligado às lendas indígenas norte-americanas, dá a
37
Uma corruptela do nome de origem indígena Wisakedjak, trata-se de um herói cultural da tribo
indígena norte-americana Cree. Apesar de ser mais um dos personagens em deuses americanos
que em suas respectivas culturas são identificados como tricksters (termo que pode ser traduzido
aproximadamente como “pregadores de peças”), Wisakedjak é retratado nas lendas como um ser
benevolente, amigo e professor da humanidade, nunca destrutivo ou perigoso. Fonte:
http://www.native-languages.org/wisakejak.htm. Acesso em: 29 set 2019.
121
entender que Shadow possui algo que o torna digno daquele sonho; nota-se, assim,
que a construção narrativa, embora não declare explicitamente, funciona no sentido
de, gradualmente, levar o leitor a perceber que deve haver, de fato, alguma
ancestralidade indígena na personagem, visto que, mais de uma vez, ele é
questionado sobre essa possibilidade, e a ele é permitido acesso tanto a uma área
geográfica controlada pela vontade de um nativo, quanto a sonhos contendo seres
ligados a esses povos.
Conhecendo a busca de Shadow e sendo informado da natureza de seu
sonho, em uma conversa “sem palavras, sem a boca, sem som” (GAIMAN, 2016, p.
339), Whiskey Jack aconselha o protagonista da seguinte forma:
Whiskey Jack, dessa forma, admite ser possível que Shadow traga Laura de
volta à vida se caçar os pássaros do trovão, mas adverte-o de que ela não pertence
mais ao mundo dos vivos. Além disso, o índio o inquire sobre o Búfalo, que aparece
recorrentemente em sonhos a Shadow, sendo um dos principais guias da
personagem através do romance. O búfalo, assim como os pássaros do trovão, é
um animal sagrado para os índios norte-americanos, o que é mais um indício da
possível origem de Shadow. Por último, Whiskey Jack convida Shadow a retornar
àquele lugar quando encontrasse “sua tribo”; ele não coloca a questão como uma
hipótese, “se” o protagonista encontrar sua tribo, mas “quando”, como se não
houvesse dúvida de que existe uma tribo a que ele pertença, restando apenas
encontrá-la.
Shadow retorna para a casa de Whiskey Jack quando este o desperta de seu
Nada, no capítulo DEZOITO, após sua morte. Nesse segundo encontro, o índio se
refere a Shadow chamando-o de “primo” (GAIMAN, 2016, p. 483), indicando
parentesco entre eles; ao mesmo tempo, quando fala sobre problemas trazidos pelo
122
homem branco à América, ele usa o pronome “vocês” e a expressão “seu povo”, o
que por sua vez indica familiaridade de Shadow também com esse grupo: “Vocês
vieram aqui para a América, pegaram nossa cana-de-açúcar, nossas batatas, nosso
milho, aí vieram vender batatas fritas e pipoca doce, e nós é que ficamos doentes”
(p. 484), é uma de suas acusações; “Vocês são preguiçosos demais para olhar em
volta e ver onde estão, ler as montanhas e as nuvens, então precisam espalhar
placas para tudo que é lado” (p. 485), é outra.
Assim, é possível pensar em Shadow como uma personagem que contém
traços de diversas culturas, simultaneamente pertencendo e despertencendo a elas,
uma condição que o coloca como uma figura limítrofe, cujas origens culturais se
localizam na fronteira, conforme Bhabha (2005).
Aqui convém lembrar que, tão problemática quanto a questão da
ancestralidade de Shadow, tem-se a questão do local a que pertence. Como se viu,
Shadow e a mãe se mudavam constantemente durante toda sua infância até o
momento em que ela morre, quando o protagonista tinha 16 anos. Num primeiro
momento, até seus 8 anos de idade, residiram em vários lugares da Europa, quando
a mãe trabalhava em embaixadas americanas nessas localidades; só depois dessa
idade Shadow assou a residir efetivamente nos Estados Unidos, mas mesmo assim
sem se fixar em nenhum local. Ele é americano, pois sua mãe é americana; além
disso, é o país onde morou a maior parte de sua vida. Entretanto, o seu olhar diante
da sociedade da qual faz parte segue sendo, pelo menos em parte, o olhar de um
forasteiro, alguém que mais se acostumou com o local em que vive do que pertence,
de fato, a ele.
Ilustrativo da falta de um local ao qual pertence é um diálogo que Shadow
tem, na cadeia, com Sam Fetisher, um prisioneiro mais velho, primeiro personagem
do romance a anunciar a chegada de uma tempestade, afirmando que seria melhor
para Shadow permanecer na prisão, aconselhando-o a “ficar na sua”. Fetisher, no
mesmo diálogo, pergunta de onde Shadow é. A primeira resposta de Shadow é “–
Eagle Point. Indiana” (GAIMAN, 2016, p. 24).
Eagle Point é a cidade onde Shadow residia com Laura, que mesmo o próprio
Shadow, em outra ocasião, reconheceria não ser, de fato seu lugar, ao ser
perguntado por Wednesday se sentiria falta do lugar que estavam deixando: “Da
cidade? Não. Tem lembranças demais de Laura. Eu não criei muitas raízes. Nunca
123
passei muito tempo parado no mesmo lugar quando era pequeno. Só vim pra cá
com vinte e poucos anos. Esta é a cidade de Laura”.(GAIMAN, 2016, p. 83).
Ao ouvir a resposta de Shadow, Sam Fetisher acusa-o de “mentiroso de
merda”, alegando que queria saber “sua origem de verdade”, então ele reformula a
pergunta: “De onde são seus velhos?” (GAIMAN, 2016, p. 24). Dessa vez, a
resposta de Shadow é “Chicago”, onde sua mãe havia morado quando criança, e
onde ela morrera. Shadow, mais uma vez, tem de recorrer ao local de origem de
outra pessoa para falar de “sua origem de verdade”, desta vez da mãe, o que parece
ser até mais importante na opinião de Sam Fetisher, considerando que ele não
perguntou onde Shadow nascera, mas sim de onde eram seus pais. Porém, a
ligação de Shadow com essa cidade se resume a ser o lugar onde sua mãe vivera
quando criança e o lugar em que ele próprio habitara por algum tempo, enquanto a
mãe morria, mas onde, a exemplo de todos os outros lugares, nunca estabelecera
raízes.
Conclui-se, assim, que, se Shadow não possui sequer uma origem cultural
bem definida, tão incerta quanto é a sua origem em termos de localização
geográfica. É possível afirmar que o trânsito entre lugares é a posição mais
constante que ele ocupa, nunca parado, sempre em movimento. Assim é, por
consequência, sua identidade: movediça, caracterizada mais pela amalgamação de
uma diversidade de influências de origens incertas do que por especificidades de
locais determinados.
Isso é possibilitado por um processo de mudanças estruturais e institucionais
ocorridos a partir da “modernidade tardia” (HALL, 2006, p. 14) que tem como
resultado o colapso das identidades que asseguravam uma conformidade subjetiva
com as necessidades objetivas da cultura, tornando mais problemático, variável e
provisório o processo de identificação através do qual as identidades culturais são
projetadas. Esse processo resulta na produção do sujeito pós-moderno, o qual,
conceitualmente, não possui uma identidade permanente, fixa ou essencial.
Segundo Hall (2006, p. 13), “a identidade plenamente unificada, completa, segura
e coerente é uma fantasia”, ou seja, essa identidade unificada seria resultado de
uma “narrativa do eu” construída pelo próprio sujeito com o intuito, mesmo que
inconsciente, de criar pontos de sustentação para a própria identidade.
Encontramos em Giddens uma definição que é pertinente a respeito da sociedade
e da identidade que aqui é apresentado em relação a Shadow: as sociedades
124
Conclui-se que, segundo o filósofo italiano, deve haver uma “discronia” entre
o sujeito e o tempo em que vive para que ele seja, de fato, contemporâneo. O autor
esclarece que essa discronia não significa que alguém, por se tratar de uma pessoa
nostálgica, seja contemporânea por se sentir pertencente a um outro tempo no
passado, nesse caso; pelo contrário, o contemporâneo tem consciência de que,
apesar dessa não-coincidência com o próprio tempo, ele “lhe pertence
irrevogavelmente, sabe que não pode fugir de seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Não obstante, a peculiar relação com o próprio tempo do contemporâneo, que a ele
pertence, mas com ele não se identifica, é precisamente o que permite que sua
apreensão do tempo em que vive seja mais acurada. Mais uma vez nas palavras
de Agamben (2009, p. 59):
se refere serve como uma metáfora para o fato de que, com os novos
conhecimentos obtidos, ele consegue enxergar, agora, onde antes via apenas uma
paisagem, os índios escondidos: o que parecia ser uma verdadeira guerra entre
deuses antigos e novos era apenas um esquema de dois deuses para obter o poder
gerado pelas mortes, verdadeiros sacrifícios na medida em que dedicam a batalha
a Odin, dos restantes.
Tornar-se verdadeiramente contemporâneo, portanto, no sentido empregado
por Agamben (2009, p. 61), é uma condição para que Shadow possa curar a ferida
que ameaça o seu tempo. O contemporâneo “é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra”.
Conforme visto, a personagem que protagoniza Deuses americanos,
enquanto fruto de um tempo como o do final do século XX, sofre muitos de seus
dilemas; as mudanças estruturais que, segundo Hall (2006), vêm transformando o
mundo desde esse período, criaram um tipo de sujeito descentrado, fragmentado,
destituído de classe, etnia ou nacionalidade, ao menos como localizações sólidas
de identidade social. Esse tipo de sujeito está bem representado por Shadow, que
não sabe ao certo sua etnia e sua nacionalidade, apesar de definida pelas
convenções que permitem que seja considerado cidadão americano, poderia ser
discutida dadas as complexidades que a envolvem – afinal, a que país pertence
uma pessoa que até os 8 anos não estabeleceu base fixa, transitando entre vários
lugares diferentes? Assim, Shadow não pode ser um herói em termos clássicos,
como o que se percebe na épica grega, de acordo com o entendimento de Lukács:
38
Hall (2006) cita 5 eventos responsáveis pelo descentramento do sujeito: as tradições do
pensamento marxista; a descoberta do inconsciente por Freud; o trabalho linguístico de Ferdinand
de Saussure; os estudos do filósofo Michel Foucault, particularmente sobre o chamado “poder
disciplinar”; e o impacto do feminismo como crítica teórica e movimento social.
129
Então é claro que meu povo entendeu que talvez haja alguma coisa por
trás de tudo o que existe, um criador, um grande espírito, e meu povo
agradece a ele, porque é sempre bom agradecer. Mas nunca construiu
igreja nenhuma. Meu povo não precisava disso. A terra era a igreja. A terra
era a religião. A terra era mais antiga e mais sábia do que o povo que
caminhava nela. A terra dava salmão, milho, búfalos e pombos-
passageiros. Dava o arroz selvagem e o picão-verde. Dava melões e
abóboras e perus. E meu povo é filho da terra, como o porco-espinho, o
gambá e o gaio-azul”. (GAIMAN, 2016, p. 486)
Antes de voltar para o norte, ele passa uma noite ali mesmo, e nessa ocasião sonha
uma vez mais com o Búfalo, que lhe fala:
Aqui, portanto, há a revelação feita pelo Búfalo de que ele “é” a terra, o que
significa que, nesse sentido, pode-se interpretar que a própria terra guiou Shadow,
o tempo todo, em sua jornada. O protagonista foi recrutado para trabalhar para um
deus, servindo como uma peça em seu jogo, sim; mas, ao mesmo tempo, em seu
inconsciente, recebeu ensinamentos da própria terra, na figura do Búfalo. A terra,
que é a própria igreja e objeto de adoração do povo nativo norte-americano, o povo
de Whiskey Jack, escolheu Shadow para intervir na guerra insana de deuses contra
deuses, quase como se este fosse um agente infiltrado sem saber, e o herói “pegou
suas palavras e as tomou para si” e teve sucesso em uma empreitada que não era
de seu interesse particular, mas dos deuses, antigos e novos, que disputavam por
relevância, e da terra, que fez de Shadow um agente pacificador porque, como disse
a ele, era conveniente para ela que os deuses estivessem ali.
No sonho, o Búfalo usa o pronome pessoal “nós” para falar dos seus
interesses: “porque é conveniente para nós que estejam aqui”. Pode-se interpretar
o uso da primeira pessoa do plural como uma forma de abarcar, como coletividade,
tudo o que faz parte da terra, especialmente suas criaturas, o que inclui os humanos.
Afinal, é a partir imaginação dos últimos que são produzidos os deuses; é desse
“nós” que se originam “eles”. Porém, o Búfalo também afirma que Shadow “pegou
nossas palavras e as tomou para si”, como se o protagonista não fizesse,
propriamente, parte desse “nós”.
É possível que Shadow seja parcialmente, como filho de uma humana e de
um deus, Wednesday, afinal, parte do que o Búfalo inclui em “nós”, enquanto, por
outro lado, parte dele integra o que seriam “eles”. Nesse caso, cabia a Shadow uma
escolha, no momento em que havia se descoberto filho de Wednesday e também
131
descoberto seus planos; poderia ter permanecido leal a ele e o ajudado, ao invés
de intervir em favor da paz e do bem da maioria. De um ponto de vista particular,
isso até poderia ter-lhe sido mais vantajoso, sendo Wednesday o seu provedor nos
últimos tempos, tivesse Shadow pensado em termos práticos.
Enfim, é precisamente a escolha de Shadow que o torna o herói que aqui se
defende. Afinal, quando ele começa a tomar decisões e agir, o que acontece a partir
de sua vontade de se parecer mais com alguém que está vivo, em resposta ao
comentário de Laura a seu respeito, suas escolhas e ações são feitas de vontade
própria, mas elas favorecem mais a outros do que a si próprio: o sacrifício na árvore
é para Wednesday; o retorno da morte é para fazer a paz num mundo que ele já
havia deixado. O caráter contemporâneo reside na possibilidade de se ter em
Shadow, um homem de identidade fragmentada, esse herói, pela sua capacidade
de se distanciar do próprio tempo, o que lhe permite manter “fixo o olhar no seu
tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
O que permite que se construa essa des(arqueologia) ou arqueologia às
avessas do herói são justamente os elementos que o constituem como um ser
humano aparentemente comum e ao mesmo tempo um herdeiro dos deuses a quem
é predestinado sacrificar-se e repor a ordem das coisas no mundo humano e divino.
Ao elaborar seu percurso é evidentemente associável à ideia aristotélica de herói,
aquele que representa um povo, que recebe uma missão a cumprir e que deve
percorrer sua própria existência em busca dos sinais e das “etapas” a cumprir.
Pensar num herói contemporâneo, parece a priori, algo dissonante do que se vive.
Entretanto, ao analisar a constituição de Shadow alcança-se algo que pertence
justamente ao tempo hodierno: entender como o homem contemporâneo continua
à mercê de deuses e mitos, reorganizando-se, servindo as mais diferentes formas
de pensar e organizar a vida mundana à luz da mesma necessidade dos antigos:
somos dependentes dos deuses, seja qual for a sua natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
parcialmente neutro, pelo seu envolvimento indireto com a guerra de deuses que se
formava. A importância do personagem parecia questionável: como é que ele
poderia contribuir para qualquer um dos lados, com todas as suas limitações e
sofrimentos? Com a revelação dos planos de Wednesday e de que ele precisava
de Shadow como uma distração e como sacrifício, as coisas fizeram mais sentido;
no entanto, os planos do deus não deram certo, justamente pela intervenção de seu
filho.
Foi a aparente contradição entre o modo como Shadow se porta ao longo da
narrativa e a importância dos seus feitos ao final dela que primeiro me suscitou a
ideia de que poderia estar diante de uma nova espécie, ou pelo menos uma espécie
diferente, de herói. Apenas em leituras posteriores, já tendo tomado conhecimento
dos estudos culturais, pude perceber as diversas nuances que compõem a
identidade de Shadow. Ele sempre me parecera perdido, mas essa nova
perspectiva me fez descobrir níveis mais profundos em sua crise de identidade; e,
de alguma forma, apesar de não ter tido tantos infortúnios quanto o personagem de
Gaiman, o seu sentimento de despertencimento em relação ao mundo me pareceu
muito familiar.
Para compreendê-lo melhor, portanto, estudei o que constitui um herói, quais
suas características, quais são seus principais modelos e, sobretudo, o que se
requer de alguém para que se torne herói; essa é a questão-chave desta análise:
Shadow, em comparação com outros heróis, parece não se encaixar nos mesmos
moldes; por mais que todo herói percorra uma trajetória na qual se desenvolve e se
torna uma versão aperfeiçoada de si mesmo, na maioria dos casos o heroísmo já
aparece latente: há um esforço do herói, enquanto aprendiz, para se tornar aquilo
que deseja ser. O caso de Shadow é diferente: seu aprendizado decorre de uma
aceitação de seu destino e da maneira como suporta as adversidades, o que
eventualmente o leva a desenvolver-se, sem que ele espere por isso.
O heroísmo pode parecer algo muito positivo e nobre, que surge de uma
vontade de reparar os danos e injustiças do mundo; mas o que pode ser facilmente
ignorado é o destino trágico que está associado a todo herói que segue seu código
de conduta até o limite, o quanto seu modo de lidar com as coisas pode ser
destrutivo para si mesmo e para as pessoas próximas a ele. Além do mais, pode-
se argumentar que a maioria dos heróis tenta alcançar a paz através da guerra,
considerando que as principais características que os descrevem tornam-nos
134
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