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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS


MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LITERATURA COMPARADA

A VIAGEM DE SHADOW: DEUSES AMERICANOS E A (DES)ARQUEOLOGIA


DO HERÓI

Guilherme Buzatto

2019
Guilherme Buzatto

A VIAGEM DE SHADOW: DEUSES AMERICANOS E A (DES)ARQUEOLOGIA


DO HERÓI

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras,
área de concentração Literatura Comparada, sob a
orientação da Profa. Dra. Gabriela Silva, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Letras.

Frederico Westphalen, outubro de 2019.


UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,


aprova a dissertação de mestrado

A VIAGEM DE SHADOW: DEUSES AMERICANOS E A


DESARQUEOLOGIA DO HERÓI

Elaborada por Guilherme Buzatto

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________
Profa. Dra. Gabriela Silva (Orientadora)

_____________________________________________
Prof. Dr. Enéias Tavares (1º arguidor)

____________________________________________
Prof. Dr. Deonir Kurek (2º arguidor)

_____________________________________________
Prof. Dr. Rosângela Fachel de Medeiros (3º arguidor)

Frederico Westphalen, outubro de 2019.


AGRADECIMENTOS

A todos os professores, pelos ensinamentos, pela inspiração e pela


dedicação a essa atividade tão árdua e pouco valorizada, mas tão nobre.
À minha orientadora, Gabriela Silva, pelas aulas divertidas e produtivas, pela,
paciência, apoio, dedicação e por abraçar esse trabalho.
Aos colegas de Mestrado, por tornarem as quartas-feiras de aula mais leves.
Ao João Lucas Gutkoski Franco, pelo empréstimo do primeiro exemplar de
Deuses Americanos que li e pela amizade.
A todos os amigos, que felizmente são muitos, pela preocupação, pelo
incentivo, pela ajuda, pelas lembranças e pela falta que fazem.
Ao meu irmão Gustavo, pelos conselhos, pelas conversas, pelo
companheirismo, pelo canto e pelo violão.
Ao meu irmão Thiago, pelo incentivo às primeiras leituras, pelos livros e CDs
emprestados e pela amizade.
Ao meu sobrinho Matheus, pela parceria, pelo carinho e pelas risadas.
Ao meu sobrinho Mathias, pela alegria.
Aos meus pais, Nelson e Sidene, pelo amor, pela compreensão, pela
paciência, pelo apoio incondicional e pelos exemplos de caráter e honestidade.
À minha companheira, Ilse Maria Vivian, pelo dia-a-dia, pelos ensinamentos,
pelas indicações de leituras, pela luta e dedicação, por ser exemplo, por me mostrar
caminhos, por estar presente, por acreditar, pelo amor.
A J.R.R. Tolkien, J.K. Rowling e Patrick Rothfuss, pelos momentos de puro
deleite, por me transportarem a lugares mágicos, povoarem meu imaginário e me
abrirem o apetite pela literatura.
A Neil Gaiman, também por isso, pelos deuses e pelos sonhos.
“Haja ou não deuses, deles somos servos.”
Fernando Pessoa, Livro do desassossego.
RESUMO

Não por acaso, a fragmentariedade, a complexidade, o esvaziamento de sentidos e


a mobilidade das identidades no mundo contemporâneo têm sido objetos de estudo
nas variadas áreas do conhecimento. A literatura, nesse sentido, tem muito a
contribuir, pois, com sua capacidade mimética, ao mesmo tempo em que se
distancia, para capturar as diferenças, aproxima-se de universos sociais, culturais
e históricos, projetando, para além do conhecido, novas possibilidades de
conhecimento. Nessa perspectiva, o presente trabalho tem como objetivo geral
realizar o estudo da personagem e suas implicações narrativas na produção de
sentidos que formulam uma possível imagem do homem contemporâneo. A partir
da leitura do romance Deuses americanos, sob o viés comparatista, analisa-se a
personagem Shadow, protagonista da narrativa, a fim de observar como se constitui
a projeção da imagem do homem, considerando as aproximações e os
afastamentos com o que se convencionou chamar de herói, a partir das teorias de
Bernard Knox e Joseph Campbell. Deuses americanos consiste na trajetória
tortuosa de Shadow, um ex-presidiário, em meio a uma guerra ideológica que, por
sua vez, também põe em xeque a ética e suas verdades universais. O romance
apresenta deuses que são humanos (e não apenas humanizados), enfraquecidos e
de valores duvidosos, os quais lutam pela detenção do poder, e um homem que,
embora marginalizado, cumpre um papel fundamental no mundo. Verifica-se, na
construção da narrativa, a descentralização do discurso e fim das polaridades éticas
ou dicotômicas que norteiam a modernidade - a identidade de Shadow é dotada de
tal complexidade que não há espaço para simplificações nem fórmulas prontas, ela
encontra-se em percurso na vivência do próprio reconhecimento em meio à guerra
projetada pelo mundo. O trabalho justifica-se, assim, por constituir um estudo
reflexivo e analítico da obra literária que visa investigar os modos de representação
do mundo contemporâneo, seus modos de dialogar com a tradição e sua visão
enquanto prospecção de realidades futuras.
ABSTRACT

Not by chance, the fragmentation, the complexity, the emptying of meanings and the
mobility of identities in the contemporary world have been objects of study in the
various areas of knowledge. Literature, in this sense, has much to contribute
because, with its mimetic capacity, while distancing itself to capture differences, it
approaches social, cultural and historical universes, projecting, beyond that which is
familiar, new possibilities of knowledge. From this perspective, the present work
aims to study the character and its narrative implications in the production of
meanings that formulate a possible image of contemporary man. From the reading
of the novel American Gods, under the comparative bias, we analyze the character
Shadow, protagonist of the narrative, in order to observe how the projection of the
image of man is constituted, considering the approximations and the distances from
what is known, by convention, as hero, from the theories of Bernard Knox and
Joseph Campbell. American Gods is the tortuous trajectory of Shadow, a former
convict, in the midst of an ideological war that, in turn, also challenges ethics and its
universal truths. The novel features gods who are human (not just humanized),
weakened and of dubious values, struggling for power, and a man who, while
marginalized, plays a key role in the world. In narrative construction, discourse
decentralization and the end of the ethical or dichotomous polarities that guide
modernity are verified – Shadow's identity is endowed with such complexity that
there is no room for simplification or ready-made formulas, it is found in route in the
experiencing of its own recognition in the midst of the war projected by the world.
Thus, the work is justified by being a reflective and analytical study of the literary
work that aims to investigate the modes of representation of the contemporary world,
its modes of dialogue with tradition and its vision as a prospect for future realities.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 NEIL GAIMAN E DEUSES AMERICANOS 14

2 A ARTICULAÇÃO DA NARRATIVA E A DESARTICULAÇÃO DO


PROTAGONISMO 33

2.1 A articulação da narrativa 35

2.2 A desarticulação de Shadow 41

2.3 Shadow: um herói contemporâneo? 51

3 AS SOMBRAS DO HERÓI 61

3.1 O percurso do herói 68

4 A (DES)ARQUEOLOGIA DO HERÓI: SHADOW E OS DEUSES 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS 132

REFERÊNCIAS 136
10

INTRODUÇÃO

Como um movimento de ilusionismo em que a performance do mágico


chama a atenção da plateia para uma mão, enquanto a outra, ignorada, executa o
truque, a narrativa em Deuses Americanos é conduzida pelo protagonista Shadow,
o qual, além de se manter à margem do conflito apresentado na narrativa, conforme
se verá, encontra-se perdido e desorientado, enveredando a todo tempo por
caminhos falsos e becos sem saída. O protagonista na maior parte do tempo parece
incapaz de qualquer feito grandioso – e, no entanto, ele é o herói que previne o
acontecimento de uma catástrofe - o que seria um banho de sangue despropositado
entre deuses – e que dá solução aos crimes cometidos contra crianças na cidade
de Lakeside, que funciona como seu esconderijo e onde permanece em uma grande
porção da obra.
Explico meu interesse no enigmático Shadow. O personagem, que é o fio
condutor da narrativa, é um ex-condenado, recém liberto da prisão, pouco antes de
saber da morte de sua esposa. Esta era o único motivo que fomentava sua ligação
com o mundo externo ao presídio. Ao perder tudo o que tinha na vida, Shadow vaga
até encontrar uma figura estranha que lhe faz uma proposta (indecorosa). O
personagem torna-se um misto de motorista e capanga de um “homem”, sem noção
da real magnitude de sua identidade e influência.
O romance desenrola-se com uma série de viagens pelas mais diversas
paisagens americanas, trajeto percorrido pelos personagens em busca de aliados
para uma guerra que acontecerá entre deuses antigos e novos. O clima, ao longo
da narrativa, é de constante tensão e o leitor, acompanhando pela perspectiva de
Shadow, caminha para o momento em que está prestes a se cumprir a guerra.
Shadow é alguém que se encontra mutilado pelas perdas: a mulher e o melhor
amigo – esse lhe aguardava com um emprego – foram-lhe arrancados pelo destino.
Sem ter para onde ir, sem posses, sem objetivos, sem sonhos, sem motivos que o
movam, ele aceita a primeira proposta que lhe aparece, selando o seu destino a um
evento cujas estruturas teriam efeitos adversos sobre o mundo.
Nesse cenário, estão em questão os embates entre representações opostas
como o antigo e o novo, o espiritual e o mundano, a sacralidade e a tecnologia.
Essas dicotomias constroem o pano de fundo dos eventos que atingem a
11

personagem. O choque entre os valores desses universos simbólicos tem seu ápice
na narrativa como um Ragnarök1 pós-moderno. A pós-modernidade, por si só, é
onipresente. As relações entre os indivíduos, a representação e o comportamento
das divindades, tudo é onipresente. Como sustentação dos mitos, os homens
precisam ter muita crença ou fé. Os deuses, que são materializados na figura
humana, têm suas identidades em crise e suas sobrevivências dependem da fé dos
homens. Questionam-se por que continuar a habitar em um mundo que se
esqueceu deles; por que não dar passagem aos novos deuses, objetos de adoração
que surgem com os avanços tecnológicos e as sociedades de consumo em massa,
exemplificados por personagens como Techno Boy2 e Media3?
Além da interpretação analítica da personagem, guia-me, nos capítulos que
serão apresentados a seguir, a ideia de explorar os significados que ligam as
mitologias e o mundo contemporâneo, sobretudo com relação ao diálogo
estabelecido entre algumas persistentes simbologias e seus efeitos na constituição
das identidades contemporâneas. O romance em análise, conforme minha leitura,
versa principalmente sobre o trânsito de determinados valores sociais e espirituais,
sobre a crise das subjetividades, sobre a condição do homem que se situa nos
abismos “entre” lugares do mundo.
Deuses americanos, de Neil Gaiman, foi publicada pela primeira vez no ano
de 2001 nos Estados Unidos e na Inglaterra, na versão original em inglês. A obra
foi traduzida para o português por Ana Ban e lançada no Brasil, em 2002, pela
editora Conrad. Uma década mais tarde, em 2011, o livro foi publicado novamente
em Edição Preferida do Autor, numa versão ampliada incluindo extras; foi relançado
também no Brasil, agora pela editora Intrínseca, com nova tradução, feita por
Leonardo Alves, cuja edição, de 2016, é a que se utiliza neste estudo.

1
Ragnarök é o evento escatológico ocorrido na mitologia nórdica, formado por uma sequência de
eventos, iniciados por desastres naturais, que culminam em uma grande batalha final travada entre
os deuses e seus inimigos, conduzindo ao fim do mundo.
2
Techno Boy é o primeiro dos chamados deuses novos a aparecer no romance, já no capítulo DOIS,
descrito como um “jovem gordo” que “parecia recém saído da adolescência” (GAIMAN, 2016, p. 64),
fumando um cigarro que exala um cheiro de “peças queimadas de equipamentos elétricos”
(GAIMAN, 2016, p. 65).
3
Mais uma das divindades modernas, Media (palavra em inglês para “mídia”), introduzida no capítulo
SETE através de um aparelho de televisão em que Shadow assistia a um seriado, cuja personagem
foi utilizada para conversar com o protagonista. Nessa conversa, Media define a si mesma assim:
“Eu sou a mãe dos idiotas. Sou a televisão. Sou o olho que tudo vê, sou o mundo do raio catódico.
Sou a expositora de tetas. O pequeno altar em torno do qual a família se reúne para louvar”
(GAIMAN, 2016, p. 173).
12

A leitura que se propõe no presente trabalho toma como centrais três


hipóteses, as quais guiarão a análise do romance Deuses americanos: 1) a
construção da personagem Shadow constitui uma concepção de herói que,
dialogando pelas similitudes e diferenças com os modelos de herói já existentes,
evoca, dialoga, subverte, deforma e transforma antigas referências de herói – por
isso (des)arqueologia do herói; 2) a polaridade das noções de herói e de vilão, que
em muitos modelos sustentavam e organizavam a estrutura narrativa, não são
apenas subvertidas, mas esvaziadas de sentido, embora Shadow mantenha um
caráter heroico e um papel central na transformação do mundo; 3) a perspectiva
narrativa e a constituição de Shadow, pelo modo como é construída a figura do
protagonista, determinam o discurso de descentralização e fim das polaridades ou
dicotomias que sustentam a imagem do homem e como ele se percebe na
Modernidade.
A partir dessas hipóteses, organiza-se a divisão do trabalho da seguinte
forma: o primeiro capítulo, intitulado “Neil Gaiman e Deuses americanos”, tem como
objetivo evidenciar a trajetória do autor e de sua produção artística, de modo a
evidenciar as repercussões de sua figura e que constituem sentidos na composição
do romance em análise, bem como indicar ao leitor a minha compreensão da
narrativa, explicitando pontos essenciais do enredo que se traduzem na construção
da personagem e seus efeitos; o segundo capítulo, intitulado “A articulação da
narrativa e a desarticulação do protagonismo”, consiste na análise dos elementos
de configuração que trabalham para a criação da imagem de Shadow, cuja
composição, aparentemente à margem em relação a outros agentes da narrativa, é
fundamental na arquitetura do discurso do romance – o que conduziu minha leitura
para a comparação com outras formas de constituição da imagem do herói,
tradicionalmente marcadas pelo lugar que essa figura ocupa na narrativa.
Dessa forma, o terceiro capítulo, intitulado “As sombras do herói”, tem como
objetivo colocar em diálogo, a partir de alguns pontos que determinam a figura do
herói e com base em alguns modelos, as formas de construção dessa figura, suas
inversões, subversões ou deformações de acordo com as nuances sociais,
históricas e culturais que são implicadas nesse processo; por fim, o quarto capítulo,
intitulado “A (des)arqueologia do herói: Shadow e os deuses”, consiste no
aprofundamento da análise da personagem Shadow com o objetivo de evidenciar
como, pela desarticulação, da margem, subvertendo e mantendo pontos de contato
13

com a imagem do herói tradicional, Shadow constitui-se, com um caráter próprio e


original, um herói contemporâneo.
1 NEIL GAIMAN E DEUSES AMERICANOS

De forma muito adequada à época em que vive, a trajetória de Neil Gaiman


é bastante singular, de tal modo que caracterizá-lo como um escritor é dizer pouco
sobre sua figura e reduzir sua imagem. É claro, todos os seus projetos envolvem o
exercício da escrita, atividade à qual se dedica integralmente e que constitui com
exclusividade sua profissão, mas não seria o suficiente para se compreender a
dimensão do alcance de seu trabalho.
Antes de tudo, Gaiman é um grande leitor, tendo se tornado capaz de ler
desde a tenra idade de quatro anos. Segundo ele próprio,

Eu era um leitor. Eu amava ler. Ler coisas me dava prazer. Eu era muito
bom na maioria das matérias na escola, não porque eu tinha qualquer
aptidão particular para elas, mas porque normalmente no primeiro dia de
aula entregariam livros didáticos, e eu os leria - o que significa que eu sabia
o que estava por vir, porque eu teria lido4 (ABBEY, 2010, p. 66)

Foi através dessa exposição precoce à leitura que o hoje renomado escritor
descobriu em si a aspiração para perseguir sua atual profissão, sobretudo pelo
contato com os verdadeiros universos cujo adentramento é possibilitado através das
páginas de livros de grandes escritores como Tolkien e C.S. Lewis, os quais Gaiman
cita como os responsáveis pelo florescimento da sua vontade de imaginar e dar
forma, através da escrita, aos seus mundos próprios, às suas próprias histórias.
E foi assim que Gaiman deu início à sua carreira: escrevendo sobre aquilo
que lhe interessava, sem pontos de partidas e sem vislumbrar pontos de chegada,
até mesmo imitando, de certa forma, seus autores favoritos. Ele afirma que, ao reler
os livros favoritos da sua infância para seus filhos, deu-se conta do quanto tinha
tomado emprestado deles em seus escritos, como o ritmo ou até mesmo algumas
frases, tal era a forma que essas obras haviam se entranhado nele. No entanto,
para ele, o que diferencia cada autor é que cada pessoa, e somente elas mesmas,
podem contar suas próprias histórias, mesmo que para isso tenham que usar uma

4
I was a reader. I loved reading. Reading things gave me pleasure. I was very good at most subjects
in school, not because I had any particular aptitude in them, but because normally on the first day of
school they'd hand out schoolbooks, and I'd read them—which would mean that I'd know what was
coming up, because I'd read it (Tradução livre).
15

outra voz até encontrar a sua, conforme é possível entender na afirmação que
segue:

Conte a sua história. Não tente contar histórias que outras pessoas
poderiam contar. Porque como um escritor iniciante, você sempre começa
com vozes de outras pessoas - você tem lido outras pessoas por anos…
Mas, tão rápido quanto possível, comece a contar histórias que só você
pode contar - pois sempre haverá escritores melhores que você, escritores
mais espertos que você… Mas só você é você.5. (GAIMAN, 2017, ep. 106)

A leitura e o conhecimento foram determinantes para que Gaiman viesse a


dar forma a universos particulares, tão originais, estranhos e diversos, e fazendo
uso de tantas das mais variadas plataformas disponíveis, como os quadrinhos (The
Sandman, Death), filmes e séries de televisão (Neverwhere), além de formas mais
tradicionais, como contos e romances, pertencendo a este último gênero um de
seus mais destacados trabalhos, Deuses americanos.
Portanto, trata-se aqui de um autor prolífico, que transita entre mídias e se
utiliza de suas diversas possibilidades, o que resulta no hibridismo de gêneros
característico de suas obras. Nesse sentido, torna-se fácil deduzir o quão amplo é
o espectro de influências e intertextos possíveis de serem verificados em sua obra,
a partir da observação acerca da propriedade com a qual Gaiman é capaz de
transitar e se mover por entre diferentes formas, visto o conhecimento necessário,
com relação às variadas áreas, para que seja possível dar vida a uma narrativa
convincente e verossímil. É o que o próprio autor expressa ao falar sobre J.R.R.
Tolkien:

Se você gosta de fantasia e quer ser o próximo Tolkien, não leia grandes
fantasias Tolkieniescas. Tolkien não lia grandes fantasias Tolkieniescas,
ele lia livros sobre filologia finlandesa. Vá e leia fora de sua zona de
conforto, vá e aprenda coisas6(GAIMAN, 2017, ep. 106)

Em suma, é possível observar que o olhar de Gaiman, escritor britânico,


enuncia-se do universo cuja visão artística é produto direto de um tempo em que se

5
Tell your story. Don’t try and tell the stories that other people can tell. Because [as a] starting writer,
you always start out with other people’s voices — you’ve been reading other people for years… But,
as quickly as you can, start telling the stories that only you can tell — because there will always be
better writers than you, there will always be smarter writers than you … but you are the only you
(tradução livre).
6
If you like fantasy and you want to be the next Tolkien, don’t read big Tolkienesque fantasies —
Tolkien didn’t read big Tolkienesque fantasies, he read books on Finnish philology. Go and read
outside of your comfort zone, go and learn stuff (tradução livre).
16

vive a transculturação, a fragmentação da realidade e a transitoriedade dos sujeitos,


características estas encarnadas na figura de Shadow, personagem principal de
Deuses americanos.
Neil Gaiman nasceu em Hampshire, na Inglaterra, no ano de 1960, e já na
infância descobriu seu amor pelos livros e por bibliotecas. A elas o escritor dedica
grande crédito ao falar de sua formação, afirmando que

eu não seria quem eu sou sem bibliotecas. Eu era o tipo de criança que
devorava livros, e meus momentos mais felizes enquanto garoto eram
quando eu persuadia meus pais a me deixarem na biblioteca local a
caminho do trabalho, e eu passava o dia lá.7

Iniciou sua carreira de escritor atuando como jornalista, ainda em seu país
de origem. Alguns de seus primeiros trabalhos como escritor incluíam biografias,
como a da banda inglesa Duran Duran e a do escritor Douglas Adams, autor d'O
Guia do Mochileiro das Galáxias, cuja versão traduzida para o português
comercializada no Brasil leva o título Não entre em pânico: Douglas Adams e o guia
do mochileiro das galáxias.
Gaiman alcançou grande destaque internacional, primeiramente, como
roteirista de quadrinhos a partir de 1989, ano de início da publicação da aclamada
série Sandman, que se estendeu por 75 edições, sendo finalizada no ano de 1996.
Durante a vigência do período de seu lançamento, a série foi condecorada com
vasto número de prêmios de grande importância nos Estados Unidos, incluindo
nove Will Eisner Comic Industry Awards e três Harvey Awards, além de um notável
World Fantasy Award de Melhor História Curta em 1991, que confere à série a
distinção de ter sido a primeira história em quadrinhos a ganhar um prêmio literário.
Hoje, com um currículo extenso que inclui, além de histórias em quadrinhos
e os romances para adultos, Deuses americanos, Lugar nenhum, Anansi boys,
Belas maldições (uma coautoria com Terry Pratchett, seu conterrâneo), Stardust, O
oceano no fim do caminho, também livros infantis e infanto-juvenis, inúmeros
contos, roteiros e produções de séries televisivas, o autor goza de grande
popularidade junto ao público norte-americano e por todo o globo. Seu nome está

7
"I wouldn't be who I am without libraries. I was the sort of kid who devoured books, and my happiest
times as a boy were when I persuaded my parents to drop me off in the local library on their way to
work, and I spent the day there. I discovered that librarians actually want to help you: they taught me
about interlibrary loans" (tradução livre). Trecho retirado do site pessoal do autor, disponível no link:
http://www.neilgaiman.com/About_Neil/Biography. Acesso em: 04 set 2017.
17

frequentemente presente em listas de livros mais vendidos, gerando grandes


expectativas em torno dos projetos que levam sua marca.
Apesar de o autor ser especialmente bem quisto pelo público de gêneros
literários como ficção científica e fantasia, suas obras dificilmente podem ser
associadas aos limites de apenas um gênero. Exemplos disso são trabalhos como
Coraline e Deuses americanos, ambos vencedores, de forma simultânea, de
prêmios de diferentes naturezas, como o Hugo, o Nebula e o Bram Stoker. A obra
Coraline, inclusive, apesar de ser uma história infantil, chegou mesmo a ser
“originalmente considerada amedrontadora demais para crianças” 8.
Fiel à característica autoral de Gaiman de transcender gêneros literários, ao
mesmo tempo em que também reúne no mesmo universo seres mitológicos e
sobrenaturais de uma pluralidade de origens e culturas (figuram, por exemplo, como
personagens, deuses dos panteões nórdico, africano, egípcio antigo, nativo norte-
americano, entre outros), Deuses americanos, o quarto romance publicado pelo
autor, pode ser descrito resumidamente, dentre outras formas, como o produto de
uma reflexão acerca da cultura estadunidense nos anos finais do século XX, com o
advento do terceiro milênio já batendo à porta, escrita por um estrangeiro em
processo de ambientação no país em que passou a morar.
Neste sentido, o romance foi tema do trabalho de conclusão de mestrado de
Mark Hill, pela Universidade de New Orleans, intitulado Neil Gaiman’s American
gods: an outsider’s critique of American culture (Deuses americanos, de Neil
Gaiman: uma crítica da cultura americana por um forasteiro, em tradução livre), no
qual se observa:

Neste romance [Deuses americanos], Gaiman examina de perto o caráter


e a ideologia americanos através do uso de deuses apropriados de outras
culturas, refigurados em moldes americanizados. Através destes deuses,
os humanos que eles encontram e as representações das terras pelas
quais viajam, Gaiman nos entrega sua perspectiva estrangeira sobre a
identidade americana através de sua própria mitologia9 (HILL, 2005, p.1)

8
“Originally considered too frightening for children” (tradução livre). Trecho retirado do site pessoal
do autor. Disponível em: http://www.neilgaiman.com/About_Neil/Biography. Acesso em: 04 set 2017.
9
In this novel, Gaiman closely examines American character and ideology through his use of gods
appropriated from other cultures recast in Americanized molds. Through these gods, the humans
they encounter, and the depictions of the lands they travel, Gaiman gives us his own outsider’s
perspective on American identity through its own mythology (tradução livre).
18

Conforme já dito, o livro foi lançado pela primeira vez nos Estados Unidos no
mês de junho do ano de 2001. Às vésperas do início do verão no hemisfério norte,
o romance trazia já estampado na capa, bem como repetidamente ao longo da
narrativa, o prenúncio de uma grande tempestade. Com a perspectiva que se tem
hoje, passadas quase duas décadas inteiras desde o lançamento, os temas e o tom
do livro parecem proféticos, levando-se em conta principalmente os ataques às
Torres Gêmeas, em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, que ocorreriam
alguns meses mais tarde naquele ano, no dia 11 de setembro.
Em forma embrionária, no entanto, a obra já existia desde aproximadamente
uma década antes, como conta Gaiman na introdução à edição do livro lançada
posteriormente, em comemoração aos dez anos de sua publicação:

Eu me mudei para os Estados Unidos em 1992. Algo nasceu, então, num


recanto da minha mente. Havia algumas ideias isoladas que eu sabia que
eram importantes, mas que não pareciam ter qualquer relação entre si:
dois homens que se conhecem em um avião; o carro no gelo; a relevância
dos truques com moedas e, sobretudo, os Estados Unidos – aquele lugar
estranho e imenso onde eu agora estava morando, e que eu sabia que não
compreendia. No entanto, queria compreendê-lo. Mais do que isso: queria
descrevê-lo (GAIMAN, 2016, p. 7)

Portanto, Gaiman se muda para os Estados Unidos no início dos anos 90, no
auge do sucesso de Sandman, vindo de um país que possui com seu novo lar
alguns pontos de ligação, como a língua e a história compartilhada, tanto pelo
processo de colonização sofrido pelo país norte-americano, quanto pela
participação de ambos no mesmo lado nas duas grandes guerras ocorridas na
primeira metade do século. Por outro lado, existem também enormes diferenças
entre eles: a Inglaterra é um país consideravelmente menor, além de estar
localizado em uma ilha, por isso mesmo apartado e, no entanto, politicamente
pertencente ao continente europeu, cuja história documentada remonta há muitos
séculos anteriores à ocupação do Novo Mundo pelos povos ocidentais de matriz
europeia.
Durante o período em que escrevia o romance, enquanto se ambientava ao novo
lar, Gaiman viajou por vários lugares diferentes dentro do território dos Estados
Unidos, país que agora tinha se tornado sua nova casa. “Escrevi meu livro em
muitos lugares – casas na Flórida, uma cabana em um lago do Wisconsin, um
quarto de hotel em Las Vegas” (GAIMAN, 2016, p. 8), diz ele na introdução do
19

romance. Inspirando-se nos locais pelos quais passou em sua exploração, Gaiman
escolhe como cenários principalmente locais de passagem, o que reforça a
impressão de movimento constante, bem como da desestabilização de seu
protagonista. O leitor encontra Shadow principalmente em quartos de hotel, ou
posando por uma noite na casa de alguém que acabara de conhecer, ou dirigindo
por vários quilômetros em estradas secundárias, parando aqui e ali em bares e
restaurantes e outros lugares pitorescos como atrações de beira-de-estrada.
Talvez cause estranheza ao leitor imaginar que possa ser tão grande o
choque causado em um inglês pela nova residência em solo estadunidense, dada
principalmente a onipresença de elementos culturais característicos dos Estados
Unidos em quase todo o globo terrestre, especialmente no ocidente - a música em
diversos gêneros como o blues, o jazz, o rock n’ roll, o pop, o hip-hop; o cinema e a
televisão, representada pelos seriados, programas, como os talk shows, e canais,
como a MTV; a moda; as redes de fast food; e os shopping centers, apenas para
citar alguns dos símbolos norte-americanos que se espalharam e se reproduziram
mundo afora. Conforme se lê no artigo The discursive construction of Americanism
(“A construção discursiva do americanismo”, em tradução livre), publicado na revista
Discourse & Society por Thomas Ricento:

Muitas pessoas que moram nos Estados Unidos têm uma impressão da
identidade americana que se baseia nas narrativas sobre a história dos
Estados Unidos que elas leram nas escolas ou viram representadas na
televisão ou no cinema. Os “detalhes” se perdem em generalizações e
aquilo que evoluiu para se tornar a visão dominante sobre a “América” com
o tempo (e.g. como representada em textos escolares de história, ou na
mídia convencional), quer se goste ou não do que isso representa, é um
modelo, ou construção, coerente (ainda que reduzido, para não dizer
distorcido) do desenvolvimento e identidade nacional10 (RICENTO, 2003,
p. 614)

Porém, os Estados Unidos que o leitor visita ao ler Deuses Americanos não
é o mesmo país que habita o imaginário dos consumidores de seus produtos de
exportação; o romance, na verdade, reproduz uma visão muito peculiar dessa vasta
nação onde se cruzam muitos povos, culturas e histórias. O cenário é muito menos

10
“Many persons living in the U.S. have a sense of American identity that is based on the narratives
of U.S. history they read in school or saw enacted on television or in movies. The 'details' get lost in
the generalizations and what has evolved to become the mainstream view of 'America' over time (e.g.
as represented in school history texts, or the mainstream media), whether one likes what that
represents or not, is a coherent (if reduced, not to say distorted) model, or construction, of national
development and identity” (tradução livre).
20

homogêneo do que Hollywood deixa transparecer, e isso fica claro na narrativa de


Gaiman, bem como na seguinte declaração:

Eu queria que o livro fosse uma série de coisas. Queria escrever uma
história que fosse grandiosa, excêntrica e sinuosa, e escrevi, e ela era.
Queria escrever uma história que incluísse todas as partes dos Estados
Unidos pelas quais eu estava obcecado e encantado, que costumavam ser
os pedaços que nunca apareciam nos filmes e nas séries de tevê
(GAIMAN, 2016, p. 8)

“Grandiosa, excêntrica e sinuosa”: as palavras que o autor escolheu para


caracterizar a história que queria escrever vieram a se tornar bastante precisas. Ela
é, de fato, grandiosa, pelo menos no tamanho: a edição preferida do autor, traduzida
para o português e lançada no Brasil tem, ao todo, 574 páginas. Além disso, é uma
história que conta com deuses como alguns de seus personagens, entre outros
seres e criaturas mitológicas e fantásticas, cuja origem remonta a tempos
imemoriais da história da humanidade.
Entremeados por entre os capítulos que compõem o que será chamado aqui
de narrativa principal (a qual acompanha os passos de Shadow, personagem a ser
analisado com maior detalhamento), tem-se os relatos da chegada de diferentes
povos à América, que formam quase que uma revisão histórica do processo de
formação dos Estados Unidos enquanto nação - de maneira ficcional e, no entanto,
possivelmente mais próxima da verdade (ou pelo menos de uma das perspectivas
possíveis) do que a ditada pela narrativa histórica que representa uma visão
dominante, à qual se refere Ricento no trecho citado anteriormente.
Já a qualidade excêntrica se manifesta nas características das personagens,
nos diálogos e cruzamentos entre elas, de forma bastante representativa da
estranheza que se verifica quando se observa povos drasticamente diferentes
convivendo num mesmo território, sob uma mesma bandeira. Mas não apenas
nisso; o leitor também se depara com sonhos misteriosos e proféticos, mudanças
súbitas de cenário, diálogos entre Shadow e aparelhos televisores,
desaparecimento de pessoas em uma cidadezinha pacata do meio-oeste norte-
americano, atrações de beira-de-estrada bizarras (algumas das quais existem e
podem ser visitadas), e ao menos um zumbi (apesar de Laura, esposa falecida de
Shadow, não se parecer com as representações clichês de filmes de horror trash
21

dos anos 80, ela é um cadáver ambulante responsável por alguns homicídios ao
longo do livro).
Deuses americanos tem uma história que é sobretudo sinuosa. Os truques
de moeda, passatempo preferido de Shadow na prisão (e depois dela), são não
tanto um hobby quanto são uma metáfora do que a narrativa faz com o leitor:

[Shadow] Fez uma empalmada clássica e deixou a mão pender ao lado do


corpo, então endireitou a mão, encaixando a moeda na palma, entre os
dedos. Parecia que a moeda sempre estivera ali, presa entre o indicador e
o mindinho.
- Muito bem executado - comentou Wednesday.
- Ainda estou aprendendo. Já sei um monte de técnicas. A parte mais difícil
é fazer as pessoas olharem para a mão errada.
- É mesmo?
- É. É o que chamam de distração (GAIMAN, 2016, p. 112)

Como dito na introdução desse trabalho, o fragmento acima ilustra a grande


metáfora que se torna a imagem de Shadow e que representa a magnitude do
romance. A performance do mágico chama a atenção da plateia para uma mão,
enquanto a outra, ignorada, executa o truque; a narrativa em Deuses americanos,
conduzida por um protagonista como Shadow, que se mantém à margem do conflito
e se encontra perdido e desorientado pelas sucessivas perdas sofridas, envereda a
todo tempo por caminhos falsos e becos sem saída. O protagonista na maior parte
do tempo parece incapaz de qualquer feito grandioso – e, no entanto, ele é o herói
que previne o acontecimento de uma catástrofe – o que seria um banho de sangue
despropositado entre deuses – e que dá solução aos crimes cometidos contra
crianças na cidade de Lakeside, que funciona como seu esconderijo e onde
permanece em uma grande porção da obra.
Deuses americanos narra a história de deuses que habitam uma terra que
não é boa para eles. Deuses que foram levados até lá pelos povos que aportaram
nessa terra, através de suas crenças e rituais, de seus mitos e lendas, coisas essas
que os criam, alimentam e sustentam. “Quando as pessoas vieram para a América,
nós viemos junto. (...) Viemos na mente delas e fincamos raízes. Viajamos com os
colonos até o Novo Mundo do outro lado do oceano” (GAIMAN, 2016, p. 140), nas
palavras do sr. Wednesday11.

11
A palavra wednesday, que designa o dia da semana que em português se chama de quarta-feira,
em inglês se origina etimologicamente do nome do deus nórdico Odin – Odin’s day ou Wotan’s day.
O nome pelo qual se chama o deus ao longo do romance, portanto, é uma brincadeira com o dia em
22

A premissa do romance é uma inversão da lógica da Criação da tradição


judaico-cristã: os deuses é que nascem e passam a existir através da crença, da
imaginação das pessoas, estas é que são a fonte de seu poder. Com o passar do
tempo, os descendentes desses viajantes que fizeram da nova terra o seu lar, já
apegados, vão gradualmente esquecendo os deuses antigos; alguns ainda
permanecem vivos como memórias de um tempo e lugar distantes, portanto já sem
a mesma força e relevância real em suas vidas; e outros acabam por desaparecer
completamente, pois nem seus nomes são lembrados. É o que confirmam as
palavras de Wednesday na continuação de seu discurso:

A terra é vasta. Pouco tempo depois, nosso povo nos abandonou, passou
a nos tratar apenas como criaturas do Velho Mundo, como algo que não
os havia acompanhado até sua nova vida. Nossos verdadeiros fiéis
morreram ou pararam de acreditar, e nós, perdidos, assustados e
desamparados, fomos obrigados a sobreviver com qualquer resquício de
adoração e fé que encontrássemos. E a sobreviver da melhor forma
possível (GAIMAN, 2016, p. 140)

Novos deuses surgem com o tempo, frutos do desenvolvimento da civilização


que se forma nessa nova terra, de seus valores e hábitos modernos: deuses da
tecnologia, dos meios de comunicação e transporte, deuses urbanos. Mas a terra
não é boa para eles, tampouco: o culto e a adoração das pessoas mudam de foco
rapidamente, conforme as tendências e as modas, e também eles serão
substituídos. Nas palavras de Wednesday, mais uma vez:

(...) deuses novos estão ganhando força nos Estados Unidos, agarrando-
se a focos crescentes de fé: deuses do cartão de crédito e da rodovia, da
internet e do telefone, do rádio, do hospital e da televisão, deuses do
plástico e do bipe e do neon. Deuses orgulhosos, criaturas gordas e
estúpidas, envaidecidas com a própria novidade e importância.
(...)
Eles sabem que estamos aqui, e nos temem, e nos odeiam. Vocês se
enganam se acreditam que não. Eles vão nos destruir, se puderem. É hora
de nos unirmos. É hora de agirmos (GAIMAN 2016, p. 140)

que ele e Shadow se conheceram – uma quarta-feira, seu dia –, algo com que o deus brinca na
ocasião: “Vejamos. Bom, considerando que hoje certamente é o meu dia, que tal você me chamar
de Wednesday? Senhor Wednesday. Se bem que, com esse tempo lá fora, bem podia ser Thursday,
né?” (GAIMAN, 2016, p. 37). Ocorrido enquanto caía uma tempestade, no diálogo o deus também
brinca com a palavra thursday, quinta-feira, que, por sua vez, vem do nome de Thor, o deus nórdico
do trovão e seu filho.
23

Os trechos citados, além de oferecerem um vislumbre sobre a origem dos


deuses americanos, constituem uma convocação para uma guerra. Uma tensão
paira no ar: os deuses antigos, frustrados com sua situação indigna, saudosos de
seu esplendor e glória, precisam encontrar formas de sobrevivência, e para isso
precisam de qualquer migalha de adoração que consigam arrancar. O Sr.
Wednesday se aproveita deste estado acuado em que eles se encontram para
iniciar uma cruzada visando angariar adeptos à sua causa, tendo Shadow como seu
acompanhante: uma ofensiva contra os deuses novos que estão se tornando cada
vez mais poderosos, os quais, por sua vez, incitados por Mr. World, desejam
eliminar seus “concorrentes”, os deuses antigos que, apesar de enfraquecidos,
podem se tornar um problema caso se reúnam, por serem bastante numerosos e
mais experientes.
Desta forma, o que se percebe é uma verdadeira guerra fria: um jogo de
sedução e influência em que Shadow ora é vítima de sequestros e violência por
parte de agentes que desejam arrancar-lhe alguma informação sobre os planos de
Wednesday, ora é assediado para mudar para o lado “vencedor”.
Shadow não tem a mínima noção do que está acontecendo. Em sua última
semana na prisão, já contando os dias para sair, ele sente a tensão no ar: algo
parece estar prestes a acontecer e ele não sabe o quê.

A última semana foi a pior. Em alguns aspectos, foi pior do que todos os
três anos juntos. Shadow se perguntou se era por causa do clima: pesado,
inerte e frio. A sensação era de que havia uma tempestade a caminho, mas
ela nunca chegava. Estava tenso e ansioso, com um forte pressentimento
de que havia algo muito errado. No pátio de exercícios, o vento soprava
com força. Shadow achou que dava para sentir o cheiro de neve no ar
(GAIMAN, 2016, p. 22)

Expressões fazendo referência a uma tempestade que se aproxima formam


um mote que ecoa através da obra e, como o efeito que criam as nuvens negras
que se acumulam no céu, imagem evocada por essas palavras, também o clima
que perpassa a narrativa se torna pesado pela ameaça que se repete, resultando
numa sensação constante de tensão. Além de seu próprio sentimento em relação a
isso, Shadow também recebe um aviso de um colega detento, Sam Fetisher:

- Vem uma tempestade por aí - declarou Sam.


- Também acho - concordou Shadow. - Em pouco tempo deve começar a
nevar.
24

- Não esse tipo de tempestade. Estou falando de tempestades maiores do


que isso. Acredite em mim, garoto, é melhor você estar aqui dentro do que
lá na rua, quando essa tempestade chegar (Ibidem, p. 24)

Mas Shadow havia cumprido a sua pena, portanto dentro de poucos dias
sairia. Antes disso, recebe a notícia da morte da esposa em um acidente de carro,
e por isso é liberado mais cedo. Encontra o Sr. Wednesday, no avião que o levava
de volta para casa, que lhe faz uma proposta de emprego; confiando que seu melhor
amigo, Robbie, como prometido, estava segurando uma vaga em seu antigo
serviço, como preparador físico em uma academia, inicialmente se recusa a ouvir a
proposta daquele homem misterioso e desagradável que parece saber coisas sobre
sua vida sem que tenha lhe contado. Shadow desembarca em um aeroporto
qualquer antes de seu destino final, tentando despistar o homem, aluga um carro e
decide dirigir pelo resto do caminho.
Parando em um lugar chamado Jack’s Crocodile Bar para comer, Shadow se
depara novamente com o sr. Wednesday, que impossivelmente estava ali. Ele lhe
traz um jornal contendo a notícia da morte da esposa, e descobre que Robbie estava
no mesmo acidente. Sem a esposa e o melhor amigo, a única espécie de família
que tinha, se foi o emprego e, portanto, a única chance de vida digna que tinha,
considerando a dificuldade que um ex-condenado pode encontrar na busca por
trabalho e ressocialização. De repente, Wednesday se transforma em sua única
alternativa: suas condições são financeiramente favoráveis e, afinal de contas, ele
não tem mais para onde ir. É assim que, sem saber, ele se coloca no olho do
furacão.
Ao final se revela que a guerra não passa, na verdade, de uma farsa. Um
esquema montado entre Wednesday e Mr. World – que na verdade é Loki, outro
deus nórdico, disfarçado – com o objetivo de obter o máximo de poder possível
através de um grande massacre dedicado em sua homenagem – mais que isso: um
massacre de deuses. Para isso, Wednesday planeja inclusive a própria morte, o
que causa uma comoção entre os seus pretensos aliados, os deuses antigos, que
de uma vez por todas decidem entrar em combate, convencidos, pela morte de “um
dos seus”, da necessidade do movimento. Wednesday sabe que precisa de um
grande sacrifício, antes mesmo desse embate, para, morto, voltar a vida; e o mais
poderoso dos sacrifícios é aquele oferecido por livre e espontânea vontade por um
filho. Este filho é Shadow, ainda que este não o soubesse no momento em que
25

decide prestar o tributo de ser amarrado a uma árvore e lá permanecer por nove
dias e nove noites, sacrifício que o próprio Odin impôs a si mesmo, segundo a lenda
nórdica, para a obtenção de sabedoria.
Shadow nasceu e cresceu sendo criado apenas pela sua mãe, sem conhecer
o pai. Wednesday sabe que o laço de sangue entre eles torna o tributo que Shadow
decide (e vem até mesmo a desejar de bom grado) fazer ainda mais poderoso. Além
deste objetivo, o protagonista é usado todo o tempo como uma distração: a mão
que prende a atenção da plateia no truque de moedas.
Entretanto, por fim Shadow acaba cumprindo uma tarefa muito mais
importante do que aquela para a qual foi contratado. Depois de pagar o tributo, já
tendo morrido e decidido descansar pela eternidade, ele finalmente entende tudo.
É despertado do sono eterno por Easter12 e, após um momento de perplexidade,
decide agir. Vai até o local onde a batalha está sendo travada e interrompe a luta,
revelando a verdade aos deuses.
Shadow é um ser humano comum, sem qualidades extraordinárias. Não é
dotado de uma inteligência das mais acuradas, não tem objetivos muito claros nem
grandes ambições. Tudo o que ele queria era viver uma vida tranquila ao lado de
sua esposa. Quando ela morre mesmo seus escassos e ínfimos desejos se tornam
impossíveis. Sem rumo, sem perspectivas e sem nenhum brio, ele fica à deriva:
pega a primeira coisa que aparece no caminho e segue o fluxo. Os acontecimentos
mais estranhos possíveis acontecem e ele nem sequer demonstra muito espanto,
muito menos combatividade, vontade de controlar e mudar o próprio destino.
Trata-se de um personagem, portanto, bastante passivo, na medida em que
sofre vários contratempos, mas oferece pouca reação. Ele é protagonista da
narrativa, mas não, pelo menos na maior parte do tempo, da guerra em que se vê
envolvido. Não assume nem demonstra desejar assumir uma posição de liderança,
apenas obedece a ordens e evita fazer perguntas. Falta a ele, em larga escala, o
temperamento próprio dos heróis, e o leitor, espectador que é, ao ser guiado através
da narrativa pelas ações de Shadow, assiste a tudo, assim como ele, da margem.

12
A palavra Easter é comumente traduzida para o português como “Páscoa”, pois é o nome dado
em inglês à festividade cristã que celebra a ressurreição de Cristo após ser crucificado e morto; no
entanto, o período dessa importante data, no hemisfério norte, está relacionada ao equinócio da
primavera (e não do outono, como no hemisfério sul) e às antigas celebrações pagãs em
homenagem à deusa Eostre, que representa a fertilidade, o amor e o renascimento em mitologias
como a anglo-saxã, nórdica e germânica.
26

Não obstante, alguém que realiza um feito como o que ele realizou – um
homem, um mortal, que fala aos deuses, e eles o escutam, e interrompem sua luta,
evitando um desastre – faz por merecer o epíteto de herói.
Em razão disto, o que se propõe neste trabalho é analisar como Shadow, um
personagem tão representativo do homem contemporâneo em sua complexidade,
rodeado por forças que não consegue sequer compreender, quem dirá controlar,
consegue, ainda assim (e talvez, no seu caso, justamente em razão disso), se tornar
o herói que põe fim aos conflitos apresentados no romance. Para tanto, Shadow
precisa transcender a si mesmo - distanciar-se de si a ponto de se reconhecer tal
como é, para, então, transformar-se naquilo que precisa vir a ser.
O que o torna tão interessante a ponto de ser estudado é, de certa forma, o
quão desinteressante ele se mostra na maior parte do tempo - mesmo vivendo as
experiências mais insanas possíveis. Cercado por personagens tirados de contos
de fadas e testemunha de eventos sobrenaturais, ele não tem reações muito
condizentes com as de alguém que presencia tudo isso – especialmente alguém
que está destinado a ser herói (o que ele também, a exemplo de todo o resto, ignora
completamente).
Uma pessoa normal, em seu lugar, provavelmente enlouqueceria, morreria
de medo, tentaria fugir, gritaria; um herói, ou pelo menos um que se enquadra na
configuração ou caracterização de um herói, enfrentaria as intempéries com
bravura, investigaria, faria perguntas, tentaria resolver sua situação de alguma
forma mais ativa. Shadow, por outro lado, encara tudo com uma certa tranquilidade,
sem grandes arroubos de emoção ou reações de qualquer natureza, e segue
cumprindo sua função enquanto empregado de Wednesday, sem demonstrar
nenhuma vontade ou pressa de mudar o seu destino.
Tendo em vista o protótipo do herói épico, representado, por exemplo, por
personagens como Aquiles e Ulisses, heróis das grandes epopeias gregas, A Ilíada
e A Odisseia, respectivamente; o arquétipo do herói e sua jornada, estudados por
Joseph Campbell (2007); e as variações do que se concebe como (anti)herói ao
longo da história da literatura até a modernidade, observa-se que a personagem
contemporânea, aqui representada por Shadow, dialogando até certo ponto com
determinados modelos, projeta-se, não só como subversão das formas, mas como
entidade que só existe pela constante desconstrução das referências que
estabilizariam uma imagem de herói. Nesse sentido, com relação à construção da
27

personagem, observa-se Deuses americanos como uma obra de ruptura, produzida


entre o final do século XX e o início do XXI, que apresenta, pela perspectiva marginal
de Shadow, a narrativa das ruínas do mundo moderno e as decorrentes fissuras de
seus modelos de vida.
Shadow, também se pode dizer, se constitui nos limites entre o sonho e a
realidade. Isso porque os seus sonhos cumprem papel importante na narrativa,
sendo descritos a todo instante. Dessa forma, eles acabam por se tornar um dos
aspectos mais notáveis na construção desse personagem, uma vez que o leitor,
através das descrições, penetra na mente de Shadow em seus momentos de sono,
visitando seu inconsciente. Considerando que o personagem é um ser que se
constitui através da linguagem, aquele que lê Shadow passa a reconhecê-lo muito
mais pelos seus sonhos e reflexões do que por suas atitudes, as quais carecem de
resolução e vontade próprias, sendo ele um subordinado bastante obediente, que
se limita a seguir Wednesday e cumprir suas ordens, além de falar muito pouco.
Verifica-se, além disso, no interior da narrativa, a descentralização e fim das
polaridades éticas ou dicotomias que norteiam a modernidade – a identidade é
dotada de tal complexidade que não há espaço para simplificações nem fórmulas
prontas, ela se encontra em percurso na vivência do próprio reconhecimento em
meio à guerra ideológica projetada pelo mundo. Não existe um vilão ou um
“mocinho”. Shadow, por exemplo, no início da trama se encontra na prisão; em
nenhum momento ele reclama ter sofrido uma injustiça, o que leva à conclusão
lógica que aquele que será o herói da história cometeu anteriormente a ela um
crime. Aliás, uma de suas muitas conclusões em seu período de cárcere é a
seguinte:

Shadow chegou à conclusão de que não importava se a pessoa tinha ou


não cometido o crime pelo qual fora condenada. A experiência lá dentro
mostrou que todo mundo ali na cadeia tinha algum ressentimento: as
autoridades sempre haviam cometido algum equívoco, falado que a
pessoa fizera algo que ela não fez - ou que não fez exatamente do jeito
que falaram. O importante era que as autoridades haviam vencido.
Percebera isso logo nos primeiros dias, quando tudo, das gírias à comida
ruim, era novidade. Apesar da infelicidade e do horror absoluto e
esmagador do encarceramento, estava aliviado (GAIMAN, 2016, p. 17).

Shadow mostra-se, conforme o fragmento, muito exemplar de sua


personalidade, bastante ponderado e mesmo crítico sobre a própria condição e a
das outras pessoas aprisionadas. Além disso, apesar do “horror absoluto e
28

esmagador do encarceramento” (GAIMAN, 2016, p. 17), que se dá a conhecer


através do narrador em terceira pessoa (distante, portanto, da ação), nenhuma ação
resulta desse sentimento; paralelo a este, de forma paradoxal, Shadow sente alívio.
Em Deuses americanos, o leitor se vê diante de uma paisagem inóspita de
uma autoproclamada América que está à beira de uma verdadeira guerra. Mas,
nesse caso, não se tratam dos conflitos internacionais tão comuns na história dos
Estados Unidos em sua relação com os outros países do globo, mas sim de uma
guerra mais ampla, não-declarada de início, mas presente na atmosfera, sentida
por todos como uma tensão que paira no ar.
Da perspectiva adotada pela narrativa, vê-se transformar o amplo cenário da
viagem em um espaço movente, que se contrai perante os obstáculos encontrados
pelo protagonista. Conforme Maurice Blanchot (2013, p.12-3), ao tratar dos
procedimentos relativos à formulação do tempo no mundo narrado, o modo de
articulação da experiência, que afasta o narrador do lugar e do momento em que a
enunciação afirma, permite criar a ambiguidade temporal, mantendo-o como espaço
que quanto mais se percorre menos nítidas são suas fronteiras:

A imagem fascinante da experiência está, em certo momento, presente, ao


passo que essa experiência não pertence a nenhum presente, e até destrói
o presente em que parece introduzir-se. [...] Sempre ainda por vir, sempre
já passado, sempre presente num começo tão abrupto que nos corta a
respiração e, no entanto, abrindo-se como a volta e o reconhecimento
eterno.

Desde o início, quando Shadow ainda se encontra encarcerado, o prenúncio


de uma tempestade marca o suspense da trama, e essa promessa continua a
ameaçar durante quase toda a narrativa sem que ela de fato desabe, senão muito
mais adiante. No entanto, é o clima pesado, causado por essa sensação de que
algo terrível está para acontecer, que move as peças do jogo. A tensão que se cria
sobre a figura de Shadow decorre, inicialmente, da expectativa depositada no
personagem quando ele toma conhecimento da morte da esposa e, logo em
seguida, da traição dela com seu melhor amigo. A partir disso, os únicos laços que
Shadow mantinha com o mundo são rompidos. Ao sair da prisão, ele se encontra à
deriva.
A narrativa, portanto, consistirá no relato da experiência do trajeto percorrido
por Shadow; o percurso é o único modo de o personagem conhecer o próprio
destino, um trajeto sem direções, cuja empreitada significa não mais que
29

experienciar a própria passagem pelo mundo. O desconhecimento do destino e a


contingente metamorfose é, sem dúvida, o impulso da diegese. De acordo com
Blanchot, a transformação exigida para o reencontro do si, que constitui o próprio
conceito de narrativa, encontra-se no intervalo entre o que é real e o que é
imaginário para o herói:

É o próprio tempo da metamorfose, imaginário, canto enigmático que está


sempre à distância e que designa essa distância como um espaço a ser
percorrido, e o lugar aonde ele conduz como o ponto onde cantar deixará
de ser um logro. A narrativa quer percorrer esse espaço, e o que a move é
a transformação exigida pela plenitude vazia desse espaço, transformação
que, exercendo-se em todas as direções, decerto transforma
profundamente aquele que escreve, mas transforma na mesma medida a
própria narrativa e tudo o que está em jogo na narrativa em que, num certo
sentido, nada aconteça, exceto essa própria passagem. (BLANCHOT,
2005, 11-12)

Shadow, na trama, situa-se à margem de uma luta que é, sobretudo, cultural


e política. Há uma guerra entre divindades, antigas e novas. Os deuses antigos, que
chegaram às terras americanas trazidos pelas crenças daqueles que deixaram seus
países de origem, contra os deuses nascidos e criados em solo americano, frutos
da cultura norte-americana. Debatem-se, portanto, seres tão diferentes quanto Odin
e Media, num conflito de influência que poderá levar a parte derrotada ao
esquecimento e à obsolescência.
É uma característica de Gaiman trabalhar com mitologias e diversos seres
mitológicos em suas obras. Muitos dos personagens que habitam os Estados
Unidos de Deuses americanos já haviam figurado em outros trabalhos do autor,
como a série em quadrinhos Sandman. Porém, no romance eles aparecem com
uma nova roupagem, camuflados em meio à multidão, agindo quase que como
pessoas normais levando suas vidas diárias. Vestem-se com roupas comuns, como
se vê na descrição do sr. Wednesday em sua primeira aparição no livro. Antes
mesmo de eles serem apresentados, quando Shadow entra em um avião à procura
de seu assento, ao passar pela primeira classe há um “homem barbudo de terno
claro ao lado do assento vago” (GAIMAN, 2016, p. 33), assento o qual Shadow viria
a ocupar.
Os deuses também são obrigados, como qualquer ser humano, a arranjar
maneiras de ganhar dinheiro para sua subsistência. Após o assalto a um banco
30

realizado por Wednesday tendo Shadow como cúmplice, no segundo dia de


trabalho, o seguinte diálogo ocorre:

- Então é isso que você faz? - perguntou [Shadow]. - Para ganhar dinheiro?
- Raramente. Só quando preciso providenciar uma quantia considerável
em pouco tempo. Em geral, ganho dinheiro com pessoas que nunca
percebem que estão me pagando, e que nunca reclamam, e que, com
frequência, fazem fila para pagar mais quando eu volto (GAIMAN, 2016, p.
122)

O Sr. Wednesday, como se vê, garante seu sustento aplicando pequenos


golpes. Outros deuses, porém, a exemplo de dois deuses egípcios, exercem algum
ofício propriamente dito: no caso destes, agenciamento funerário: “(...) nós somos
de fato um negócio independente. Temos nosso próprio processo de
embalsamação, que é o melhor do país, mas só nós sabemos disso” (Ibidem, p.
191), é o que conta a Shadow o sr. Íbis13.
A premissa é que as divindades só continuam a viver e a existir através do
culto e da crença, os quais, com relação aos deuses antigos, vão minguando à
medida em que se passa a reverenciar deuses da tecnologia, da mídia, do consumo,
elementos que se tornam centrais na vida da sociedade norte-americana no século
XX, ganhando mais espaço nas mentes e corações das pessoas do que as antigas
crenças religiosas. Resta aos deuses antigos, portanto, angariar forças, reunir
aliados, unirem-se para que os novos deuses não dominem tudo, levando-os à
extinção.
Ao menos é o que Wednesday deseja que todos pensem, e para tanto se
empenha sacrificando até mesmo a própria vida na tentativa de convencer deuses
– e o leitor – da importância e necessidade de sua empreitada: uma última
resistência, uma investida final contra os novos deuses para suplantá-los ou ao
menos sofrer o próprio extermínio de forma digna e gloriosa, em batalha. No
entanto, tudo não passa de um embuste armado por Wednesday e Low Key
Lyesmith14 (ou Odin e Loki) que ambicionam angariar todo o poder advindo de um

13
O sr. Íbis é uma referência a Thot, deus egípcio do conhecimento e da escrita, representado
como um homem com cabeça de íbis, uma ave de bico longo e fino,
14
A expressão low key significa algo como “moderado”, “discreto”, e se parece sonoramente com a
pronúncia do nome Loki em inglês; o sobrenome Lyesmith é uma estilização das palavras lie
(“mentira”) e smith (de blacksmith, “ferreiro”); usada como adjetivo, a expressão lie smith pode ser
traduzida como, portanto, “forjador de mentiras”.
31

massacre entre deuses, deter e centralizar esse poder, garantindo apenas as


próprias subsistências.
Observa-se, mais uma vez, a importância da premissa do romance ser a de
que os deuses só existem e vivem através da adoração, de rituais e orações em
seu nome. É disso que se alimentam e daí vem a sua força e influência. Dito de
outro modo: enquanto forem lembrados, os deuses e outras criaturas advindas de
crenças populares viverão, não importa quantas mortes físicas sofram. Sendo
assim, Wednesday conclama seus aliados a uma guerra, e, através de seu auto
sacrifício, leva-os a dedicar a batalha ao seu nome.
O leitor é conduzido pela perspectiva de Shadow numa viagem pelo território
norte-americano, guiado por alguém recém-saído da prisão e recrutado pelo sr.
Wednesday como uma espécie de faz-tudo, servindo principalmente de motorista e
guarda-costas. Chama a atenção, no entanto, como, em uma leitura mais atenta, o
leitor poderá perceber o quão pouco Shadow realmente desempenha estas
funções. Em muitos casos, quem dirige o carro pelas estradas secundárias que
atravessam os Estados Unidos é o deus, não seu subalterno.
Da mesma forma, em grande parte da narrativa Shadow permanece em uma
cidade com outra identidade, escondido de seus perseguidores, esperando pela
vinda de Wednesday quando sua ajuda for necessária. Shadow, nessas horas,
acompanha-o enquanto ele se encontra com possíveis aliados sem entender o que
está acontecendo, apenas pressentindo algo de estranho nas pessoas com quem
estabelece contato. Este é outro aspecto que vem a se somar com os vários
elementos que tornam o romance algo único: a narrativa assume ares de road novel
enquanto as personagens pegam a estrada e adentram as mais variadas paisagens
e cidades, sobretudo pequenas. A narrativa transfigura as andanças do autor,
enquanto produzia a obra:

Terminei o primeiro capítulo durante uma viagem de trem de Chicago a


San Diego. E continuei viajando, e continuei escrevendo. Dirigi de
Minneapolis à Flórida por estradas secundárias, percorrendo caminhos
que imaginei que Shadow faria no livro. Eu escrevia e, às vezes, quando
empacava, pegava a estrada. Comi pasties na Península Superior do
Michigan e hushpuppies em Cairo, Illinois. Tentei ao máximo não escrever
sobre nenhum lugar pelo qual eu não tivesse passado (GAIMAN, 2016, p.
7)
32

Dessa forma, a América que se vê em Deuses americanos não é exatamente


aquela que já está impregnada no imaginário do público leitor, não é a América
retratada principalmente por Hollywood e suas megaproduções cinematográficas. A
narrativa guia o leitor para pontos menos privilegiados e desconhecidos do território
americano, o que torna a sua “viagem” mais instigante.
Deuses Americanos é uma obra cuja natureza não é possível identificar como
pertencente a um gênero específico, mas que trabalha com o entrelaçamento de
elementos históricos e ficcionais, concretos e surreais, simbólicos e mitológicos;
uma obra, portanto, como o personagem principal, que se vai construindo pela
ilusão de que tudo se encontra à deriva, como descrito pelo próprio Shadow, quando
fala de si mesmo.
Objetiva-se, dessa forma, a seguir, explicitar as formas de construção do
personagem através da figuração de Shadow, cuja busca de auto compreensão
consiste na trajetória tortuosa em meio a uma guerra ideológica que, por sua vez,
também põe em xeque a ética e suas verdades universais, mostrando deuses que
são humanos (e não apenas humanizados), enfraquecidos e de valores duvidosos,
os quais lutam pela detenção do poder. O imaginário e os sonhos cumprem um
papel fundamental na constituição da personagem que, em meio à batalha
ideológica do mundo, procura orientar-se.
2 A ARTICULAÇÃO DA NARRATIVA E A DESARTICULAÇÃO DO
PROTAGONISMO

Isso não é uma alegoria. Há uma luta muito obscura


travada entre toda narrativa e o encontro com as Sereias,
aquele canto enigmático que é poderoso graças a seu defeito.
Luta na qual a prudência de Ulisses, o que há nele
de verdade humana, de mistificação, de aptidão obstinada
a não jogar o jogo dos deuses, foi sempre utilizada e aperfeiçoada.
O que chamamos de romance nasceu dessa luta.
Maurice Blanchot, O livro por vir (2005).

Parece fazer sentido que uma análise que tem como escopo visualizar o
homem pelo personagem e sua relação com o tempo e o espaço parta da figura de
alguém como Neil Gaiman, autor de Deuses Americanos e criador do protagonista
Shadow, sobre os quais este trabalho se deterá de maneira mais aprofundada. Ao
tratar das leis da narrativa, o fragmento em epígrafe faz referência à viagem de
Ulisses e ao seu completo desconhecimento dos trajetos possíveis, o que eleva ao
primeiro plano de suas aventuras a vivência do percurso, de modo que, na Odisseia,
conforme Blanchot (2005, p. 6-7),

a palavra de ordem que se impõe aos navegantes é esta: que seja excluída
toda alusão a um objetivo e a um destino. Com toda razão, certamente.
Ninguém pode pôr-se a caminho com a intenção deliberada de atingir a
ilha de Capréia, ninguém pode rumar para essa ilha, e aquele que
decidisse fazê-lo só chegaria ali por acaso, um acaso ao qual estaria ligado
por um acordo difícil de entender. A palavra de ordem é, portanto: silêncio,
discrição, esquecimento.

Tal como Ulisses, Shadow está à deriva e, assim como afirma Blanchot sobre
o herói da épica, o protagonista de Deuses americanos apresenta uma “aptidão
obstinada a não jogar o jogo dos deuses” (BLANCHOT, 2005, p. 7). Imergir na
história de Shadow significa percorrer caminhos inseguros e obscuros, concebendo
a inexistência do ponto de partida ou do lugar de chegada, embora o leitor navegue
consciente de que há um lugar no qual seguramente se vai aportar. A verdade
humana que se extrai consiste, portanto, nos modos de vivência do percurso. É a
partir desse sentido que se enfatiza, aqui, a força da narrativa de Deuses
34

americanos, cuja construção privilegia os efeitos que tornam o leitor contemporâneo


ao acontecimento narrado:

o caráter da narrativa não é percebido quando nele se vê o relato


verdadeiro de um acontecimento excepcional, que ocorreu e que alguém
tenta contar. A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio
acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é
chamado para acontecer, acontecimento ainda porvir e cujo poder de
atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se.
(BLANCHOT, 2005, p.8)

Dessa perspectiva, desvendar a natureza da personagem, contemplando


sua complexidade e desvelando sua substância, significa acompanhar o percurso
de Shadow no trajeto de seu (re)conhecimento, cuja matéria será tomada e
discutida, portanto, sempre em devir, ou seja, com a consciência de que o
acontecimento, uma vez posto em narrativa, é um organismo que jamais cessa de
se modificar e se expandir.
A partir desse conceito de narrativa, convém lembrar o que afirma Terry
Eagleton (2006, p.19) com relação ao sentido assumido pela leitura quando essa é
compreendida no amplo movimento histórico que a constitui: “todas as obras
literárias, em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente,
pelas sociedades que as leem; na verdade, não há releitura de uma obra que não
seja também uma “reescritura””. A leitura, nesse sentido, nasce precisamente do
embate formado pelo choque cultural a que se sujeitam texto e leitor ao entrarem
em contato, pois, “quando a obra passa de um contexto histórico para outro, novos
significados podem ser dela extraídos, e é provável que eles nunca tenham sido
imaginados pelo seu autor ou pelo público contemporâneo dele.” (EAGLETON,
2006, p.108).
A abordagem da narrativa, por essa via, prevê a adoção de uma postura
hermenêutica, principalmente por se tratar, na relação entre leitor e texto, do contato
entre distintas culturas. Conforme Gadamer (1998, p.78), justamente pelo diálogo
com o que nos é estranho é que se atinge a consciência dos sentidos possíveis e
que podem ser alcançados:

Uma consciência formada pela atitude hermenêutica autêntica será à


partida receptiva às origens e ao caráter inteiramente estranho do que lhe
vem do exterior. Todavia, esta receptividade não se adquire por uma
“neutralidade” objetivista: não é possível, nem necessário, nem desejável
que nos coloquemos nós mesmos entre parêntesis. A atitude hermenêutica
35

supõe apenas uma tomada de consciência que, ao caracterizar as nossas


opiniões e os nossos preconceitos, os qualifica como tais, e lhes retira, do
mesmo lance, o seu caráter excessivo. E é realizando esta atitude que
damos ao texto a possibilidade de surgir na sua diferença e de manifestar
a sua verdade própria contra as ideias preconcebidas com que,
antecipadamente, o confrontávamos.

A leitura que se propõe no presente trabalho toma como centrais duas


hipóteses: a construção da personagem Shadow constitui uma concepção de herói
que, dialogando pelas similitudes e diferenças, evoca e subverte antigos modelos;
a perspectiva narrativa, pelo modo como organiza a figura do protagonista,
determina o discurso de descentralização e fim das polaridades ou dicotomias que
norteiam a modernidade. A polaridade das noções de herói e vilão não mais se
sustenta, de modo que, conforme afirma o protagonista de Deuses Americanos, “um
homem só pode dizer que é feliz quando morre”.

2.1 A articulação da narrativa

O romance se desenvolve ao longo de vinte capítulos indicados apenas pelo


número escrito por extenso, o que transmite uma sensação de contagem ao leitor,
como se o início de um novo capítulo fosse um passo mais próximo da tempestade
que se anuncia iminente.
Estes vinte capítulos numerados acompanham os passos de Shadow em sua
trajetória desde os últimos dias na prisão até a resolução de pelo menos dois
conflitos que se lhe apresentam ao longo do caminho: seu papel no grande
enfrentamento entre os deuses antigos e novos, a batalha final, o desabar da
tempestade que ao longo de todo o enredo paira sobre (e dentro de)as cabeças de
todos os personagens; e a solução do mistério do sumiço anual dos adolescentes
de Lakeside, cujos casos a população da pequena cidade nunca ligou um ao outro,
provavelmente pela influência da presença de Hinzelmann15 no lugar. Após isso, há

15
Hinzelmann é um morador de Lakeside, e é quem recebe Shadow em sua chegada à cidade; esse
personagem é inspirado por um kobold (um tipo de criatura semelhante a duendes e fadas originária
do folclore alemão) de mesmo nome; o Hinzelmann de Deuses americanos é retratado como um
senhor de idade amigável, conhecido de todo o povo de Lakeside, prestativo e que gosta de contar
histórias fantasiosas; porém, ele esconde um segredo perverso; é ele que rapta as crianças que
somem todos os anos, escondendo-as no porta-malas de um carro que fica todo o inverno sobre a
superfície de um lago congelado, até afundar quando começa o degelo. Sendo uma espécie de
criatura sobrenatural, da mesma forma que os deuses necessitam de rituais e sacrifícios para sua
sobrevivência, a morte dessas crianças é o tributo que mantém Hinzelmann vivo.
36

um posfácio, no qual Shadow se encontra em Reykjavik, na Islândia, onde ele se


encontra com Odin, que não é mais Wednesday - “Ele era eu, sim. Mas eu não sou
ele” (GAIMAN, 2016, p. 551).
O exposto acima compõe o que se pode chamar de “a narrativa principal” do
romance. Isto porque ela é entremeada de diversos capítulos “acessórios” que
desempenham diversas funções:
a) Há aqueles que recebem o nome de “Vinda à América” e são
acompanhados de uma data (“14000 A.C.”; “813 D.C.”; “1721”, por exemplo).
Nestes, acompanha-se a chegada de povos das mais diversas partes do globo à
América, os quais trazem consigo os seus deuses e suas crenças, sendo
responsáveis pela presença destes no Novo Continente. Em geral, eles compõem
um tipo de história extra-oficial da formação do povo e da cultura norte-americanos,
na medida em que mostram a aportação de povos europeus no continente séculos
antes do “descobrimento da América” por Cristóvão Colombo, por exemplo, ou a
chegada de povos nômades vindos da Sibéria que ali se instalam, no período pré-
histórico.
Em alguns destes capítulos, é possível identificar um narrador-personagem,
que, apesar disso, nesses casos atua como um narrador em terceira pessoa
onisciente, dada a distância em relação aos fatos que narra, como um contador de
histórias que se passaram há muito tempo: o sr. Íbis, alcunha pela qual responde
no romance Thoth, deus do panteão egípcio antigo - ou do “povo do Nilo”, como ele
mesmo prefere chamar: “‘Egípcios’ me remete ao povo que vive lá hoje em dia. Que
construiu suas cidades sobre nossos cemitérios e palácios. Acha que somos
parecidos?” (GAIMAN, 2016, P. 192) -, com quem Shadow trava conhecimento na
funerária onde trabalhou por alguns dias, em Cairo, no estado de Illinois (cap. Oito,
p. 189-223).
O sr. Íbis afirma manter um caderno de anotações, “Apenas para minha
própria apreciação. Relatos de vidas” (GAIMAN, 2016, p. 191), e alguns dos
capítulos referidos parecem sair diretamente de tal caderno, o que se pode afirmar
pela presença de frases grifadas em itálico remetendo a ele, a exemplo do início do
capítulo nomeado “Vinda à América - 1721”, que aparece após o final do capítulo
“Quatro”: “O que é importante entender sobre a história americana, escreveu o sr.
Íbis, em seu diário com capa de couro” (GAIMAN, 2016, p. 102).
37

Nestes casos em que se explicita a autoria do sr. Íbis, é possível notar uma
crítica mais explícita e contundente quanto a diversos aspectos da cultura
americana, desde à maneira como se deu a sua formação até os valores ainda
presentes na sua sociedade, bem como a forma como ela mesma se enxerga.

É uma bela ficção (...) a ideia de que os Estados Unidos foram fundados
por peregrinos que buscavam liberdade para acreditar no que desejassem,
de que eles vieram para o continente americano, espalharam-se,
procriaram e preencheram a terra vazia.
Na realidade, as colônias americanas serviam tanto como área de desova
quanto como área de fuga, um local de esquecimento. No tempo em que
era permitido enforcar alguém em Londres na “árvore tripla” de Tyburn pelo
roubo de doze pence, as Américas se tornaram um símbolo de clemência,
de segundas chances. Mas as condições de transporte eram tais que, para
alguns, era mais fácil pular do tronco desnudo e bailar no ar até a dança
acabar. Era como eles chamavam: transporte - por cinco anos, por uma
década, para sempre. Essa era a sentença. (GAIMAN, 2016, p. 102)

O que se segue a este trecho é o relato da vida de uma jovem chamada Essie
Tregowan, originária da Cornualha, região localizada no extremo sudoeste da
Inglaterra, a qual vive uma vida de proscrição, condenada em sua terra natal à
sentença de transporte referida pelo sr. Íbis, após diversos reveses e atos de
rebeldia, indo parar em Norfolk, na Virgínia, onde passa o resto de sua vida e morre.
Em outros capítulos de mesmo nome, o narrador não é identificável como
personagem. Trata-se de um narrador onisciente e mais distanciado, que descreve
cenas de povos aportando no território que hoje pertence aos Estados Unidos,
destacando sempre rituais e orações de seus indivíduos para com seus respectivos
deuses, evidenciando a chegada também dos últimos àquela terra, mas sem
maiores comentários ou críticas.
b) Além destes, há também capítulos que funcionam de maneira semelhante,
mas que não tratam de acontecimentos passados. São capítulos com títulos mais
variados, como “Algum lugar nos Estados Unidos”, “Enquanto isso, uma conversa”
ou apenas “Interlúdio (1, 2, 3…) ”, os quais podem vir ou não acompanhados de
uma informação acerca do horário em que a ação se passa. Tais capítulos surgem
para descrever cenas que ocorrem contemporaneamente aos eventos
protagonizados por Shadow, mas não necessariamente de maneira simultânea à
cena que sucedem, embora ocorra com frequência.
Estas cenas servem para cobrir eventos distantes de Shadow, mostrando
como agem e como sobrevivem alguns dos deuses e criaturas lendárias que
38

habitam no país nos tempos atuais à narrativa principal, tornando clara a hostilidade
daquela terra à sua presença, visto que aparecem à margem da sociedade,
frequentemente realizando trabalhos informais ou mesmo ilegais para o próprio
sustento. Inclusive, as funções que exercem nesta era quase sempre têm a ver com
as crenças que se tem deles, só que com muito menos prestígio que em épocas
ancestrais.
Pode-se citar como exemplo um capítulo acessório que aparece entre os
capítulos UM e DOIS, chamado de “Algum lugar nos Estados Unidos – Los Angeles,
23h26”. Esse capítulo é protagonizados por Bilquis, a Rainha do Sabá, que vaga
pelas ruas de Los Angeles travestida de prostituta, maneira através da qual ela
consegue seus “adoradores”. Ao ser abordada por um cliente na rua, ela o leva para
o seu quarto vermelho-escuro, cor de fígado cru, onde, enquanto transam, pede-lhe
que a adore, que profira palavras de louvor, que a chame de deusa e reze em seu
nome e, ao final, engole-o pela vagina
Histórias como a de Bilquis tornam evidente que os deuses que restaram no
mundo ao final do século XX, segundo o romance, foram relegados ao anonimato,
esquecidos por aqueles que os trouxeram à América – uma terra, conforme
afirmações reiteradas através da obra por diferentes personagens, ruim para os
deuses – que, portanto, se alimentam de sobras de adoração que conseguem
utilizando-se de artifícios e estratagemas, até mesmo meios ilícitos como a
extorsão.
Estes pequenos contos vão sendo apresentados ao leitor aos poucos,
enquanto Shadow segue sua trajetória sem entender muito bem tudo o que se
passa com ele, e muito menos o que são realmente aquelas pessoas que se
apresentam em seu caminho. O leitor vai gradualmente criando uma noção do
funcionamento do universo do romance desde antes de os deuses se revelarem
diante de Shadow no “Maior Carrossel do Mundo” (GAIMAN, 2016, p. 133), no
capítulo CINCO.
Além de servir como uma janela para cenas diárias de deuses pelos Estados
Unidos, alguns desses capítulos também trazem ao conhecimento do leitor
conversas de telefone entre outras personagens, como por exemplo no sub-capítulo
“Enquanto isso. Uma conversa.”, que sucede o capítulo NOVE, em que se passa
um interrogatório por parte dos “agentes da oposição” Stone e Wood pelo paradeiro
de Shadow, em ligação para Sam Black Crow, que havia viajado de carona com
39

ele quando ele rumava para Cairo, e ela para El Paso, no mesmo estado de Illinois
(o que, por sua vez, ocorre no capítulo SETE).
Os capítulos que têm esta característica guardam uma identidade maior com
a trama principal, pois se relacionam diretamente com os eventos dos quais Shadow
participa, apresentando personagens com as quais ele tem contato direto, ou ao
menos figurando como tema do assunto de que se fala. Já aqueles estrelados por
deuses e outras criaturas míticas, como o caso citado de Bilquis, ou o de Salim 16,
que aparece em um outro sub-capítulo intitulado “Algum lugar nos Estados Unidos”,
entre os capítulos SETE e OITO, estes têm uma relação menor com a narrativa
principal, tendo sua importância ligada mais à ambientação, ao modo como os
deuses e mitos são recebidos e se inserem na cultura americana, como eles se
comportam, a condição em que vivem, o que ajuda a contextualizar o leitor e
despertar nele uma empatia pela causa dos deuses antigos, que entram na guerra
em busca de mais poder e para evitar a sua completa obsolescência e extinção.
Há um total de dez capítulos escritos nos estilos descritos nos itens a e b.
Eles aparecem em meio aos capítulos que formam a narrativa principal, geralmente
ao final de um e antes do início do próximo. Porém, não há uma regularidade
determinada para sua utilização.
Os capítulos numerados que compõem a narrativa principal e os demais
capítulos auxiliares estão distribuídos em quatro partes:
A Parte Um recebe o título de “Sombras” (ou, em inglês, “Shadows”, em
referência ao protagonista). É composto pelo capítulo “UM”, seguido de “Algum
lugar nos Estados Unidos”, depois “DOIS”, “TRÊS”, “Vinda à América (813 D.C.) ”,
“QUATRO”, outro “Vinda à América (1721)”, “CINCO”, “SEIS”, “SETE”, mais um
“Algum lugar nos Estados Unidos” e “OITO”. Esta parte cobre os eventos que vão
desde a saída de Shadow da prisão até o momento em que Wednesday lhe busca
em Cairo, Illinois, entrega-lhe documentos falsos que usará, passando a se chamar
Mike Ainsel, e manda-o para Lakeside, onde deve morar e se manter quieto, sem
arrumar confusão.

16
Salim é um personagem de origem árabe que aparece brevemente em um dos capítulos
acessórios. Ele se encontra em Nova York a pedido do cunhado, para quem trabalha, vendendo
suvenires para empresas. Numa viagem de táxi, ele encontra com um jinn, ou gênio, uma entidade
sobrenatural da mitologia árabe: “Existem os anjos, e existem os homens, que Alá criou a partir do
barro, e existe o povo do fogo, os jinn” (GAIMAN, 2016, p. 186).
40

A Parte Dois se chama “Ainsel, eu mesmo” (no original, “My Ainsel”; aqui, há
um jogo de palavras: Mike Ainsel, nome cujo som em inglês se assemelha ao da
expressão my Ainsel, é o nome falso que Shadow utiliza no tempo em que reside
na cidade de Lakeside, cidade fictícia localizada, no romance, no estado de
Wisconsin. “My Ainsel” tem uma pronúncia que remete à expressão “My Own Self17”,
que pode ser traduzido como “meu próprio eu” ou, na escolha do tradutor que se lê
para fins deste trabalho, “eu mesmo”.
Começa no capítulo “NOVE” e segue a ordem numérica até o capítulo
“TREZE”. Entre os capítulos “NOVE” e “DEZ”, há um capítulo acessório chamado
“Enquanto isso, uma conversa”. Entre o “ONZE” e o “DOZE”, há um “Vinda à
América (1778)”. Entre o “DOZE” e o “TREZE”, há três “Interlúdios” em sequência,
o segundo e o terceiro identificados pelos números “2” e “3”. Após o fim do capítulo
“TREZE”, há mais um “Vinda à América (14000 a.C.). Depois disso, não há mais
capítulos acessórios durante o resto do livro. Nesta parte, Shadow fica bastante
tempo escondido em Lakeside sob a identidade de Mike Ainsel, às vezes
acompanhando Wednesday em algumas de suas viagens e retornando. É onde
passa praticamente todo o inverno, tendo chegado lá no dia do Natal, até o
momento em que Audrey (viúva do melhor amigo falecido de Shadow, Robbie) visita
Chad Mulligan (delegado de Lakeside) e reconhece Shadow como um assassino
procurado por todo o país, pela morte de dois agentes, crime que ele não cometeu,
e sim Laura. Ele então é preso, e pela televisão assiste a morte de Wednesday
enquanto espera ser resgatado;
A Parte Três é denominada “O momento da tempestade” e compreende
desde o capítulo “QUINZE” até o “DEZOITO”, e não contém nenhum dos capítulos
auxiliares não-numerados. Começa depois da morte de Wednesday e do resgate

17
A expressão “My Own Self” remete também a um antigo conto de origem inglesa de mesmo nome,
também encontrado sob o nome “My Ainsel” em algumas versões (JACOBS, 1894). Nesse conto,
uma fada, dizendo se chamar “My Own Self” (ou seja, “eu mesma”), brinca com um menino, que por
sua vez diz se chamar “Just My Own Self, too” (“apenas eu mesmo, também”); ao mexer no fogo da
lareira, o menino faz com que uma faísca queime a fada, machucando-a; quando ela grita, a mãe
dela pergunta o que aconteceu, então ela responde: “Just My Own Self hurt me!” (o que, traduzindo
para o português, resultaria em uma frase como “Apenas Eu Mesmo me machucou!”; lembrando que
em inglês não há flexão de gênero na palavra “self” como há em “mesmo” e “mesma”, portanto a
ambiguidade da frase é maior), e, assim, pelo jogo de palavras, o menino evitou problemas. A
escolha de Gaiman por denominar a Parte Dois de Deuses americanos em referência a esse conto
é uma brincadeira com a ambiguidade do nome falso que Shadow passa a usar: Mike Ainsel, na
pronúncia em inglês, soa levemente como “My Own Self”, o que é irônico na medida em que o nome
é usado para esconder a verdadeira identidade de Shadow, assim como no conto o menino esconde
o próprio nome dizendo se chamar “Just My Own Self”, enganando a fada.
41

de Shadow da prisão em Lakeside por Czernobog e o sr. Nancy. Os três encontram


os opositores para recuperar o corpo de Wednesday no centro geográfico dos
Estados Unidos, um lugar considerado neutro pela ausência completa de
sacralidade. Shadow presta tributo a Wednesday pendurado em uma árvore na
Virgínia, uma Árvore do Mundo, onde morre e ressuscita. Depois ele parte para a
House on the Rock, no Wisconsin, onde a batalha entre os deuses já havia
começado, e, atingido pela compreensão de se tratar de um golpe arquitetado por
Wednesday e Loki visando um grande ganho de poder às custas do sangue
derramado pelas divindades, ele a interrompe.
A Parte Quatro, enfim, é nomeada de “Epílogo: os mortos escondem alguma
coisa”. É composta pelos capítulos “DEZENOVE”, “VINTE” e pelo posfácio, e é a
parte dos acertos de contas: a guerra dos deuses já teve seu final, e Shadow parte
pela América para desatar alguns fios soltos: volta para Lakeside, onde ajuda a
resolver o mistério do sumiço das crianças, revelando que eram todos autoria de
Hinzelmann; depois disso, procura por Sam para vê-la pela última vez e,
encontrando-a acompanhada, faz escorregar um buquê de flores em suas mãos
sem que ela o veja, como despedida; por fim, vai até a casa de Czernobog em
Chicago, para honrar a dívida que ficou pendente entre eles por conta do primeiro
jogo de damas entre eles, o qual Shadow perdeu, ou seja, receber a martelada na
testa que deveria matá-lo. Czernobog apenas encosta a ponta da marreta na testa
de Shadow gentilmente, e dá a dívida como paga.

2.2 A desarticulação de Shadow

“Shadow”, em inglês, significa sombra. Mais de uma vez na trama,


personagens, ao serem a ele apresentados, manifestam reações de aprovação ao
seu nome. É o caso, por exemplo, de Zorya Vechernyaya, no capítulo quatro. Uma
das três mulheres que vivem com Czernobog em Chicago. Ela afirma: “Shadow.
Sombra. Bom nome. Minha hora chega quando as sombras se alongam. E você é
uma sombra bem grande. (...) Pode beijar minha mão” (GAIMAN, 2016, p. 85).
42

As Zoryi19são deusas provenientes da mitologia eslava, e simbolizam


diferentes horas do dia. Em consulta ao verbete na Encyclopedia of Russian &
Slavic mythic legend, lê-se a definição que se segue:

Nome coletivo que descreve as duas filhas de Dazhbog - Zorya


Utrennyaya, a deusa da alvorada, e Zorya Vechernyaya, a deusa do
crepúsculo. Algumas versões descrevem três filhas; mas a terceira, a
deusa da meia-noite, permanece não-nomeada. Apesar de cada Zorya ter
uma tarefa específica no palácio de seu pai, as três compartilham a
responsabilidade de guardar uma deidade sem nome que está acorrentada
à constelação da Ursa Maior (O Grande Urso); pois se esta se libertar, o
mundo chegará a um final.20 (DIXON-KENNEDY, 1998, p. 322)

Em Deuses Americanos, a deusa da meia-noite, que segundo a definição


acima não recebe um nome específico na mitologia eslava, aparece na figura de
Zorya Polunochnaya. Shadow só trava conhecimento com ela em uma cena que se
passa durante a madrugada em que dormia na casa das irmãs, quando ela o acorda
e vai com ele até o telhado onde, após conversarem, ela lhe presenteia com a lua
na forma de uma moeda de prata com a efígie da Estátua da Liberdade como
proteção.
Já Zorya Vechernyaya, como se viu, é a deusa do crepúsculo - por isso,
segunda ela, a sua hora é quando as sombras se alongam. Segundo a outra irmã,
Zorya Utrennyaya, “o crepúsculo é a hora das mentiras” (GAIMAN, 2016, p. 89), e
por isso sua irmã era a melhor delas para ler a sorte – pois sabia contar belas
mentiras.
Outra personagem que elogia o nome de Shadow é Easter, mais adiante, já
no capítulo onze. Por sua vez, ela o indaga sobre o motivo de chamarem-no assim.
Ele lhe responde:

- Quando eu era pequeno, morava com a minha mãe, e a gente era… quer
dizer, ela era… bem, era tipo uma secretária de algumas embaixadas
americanas, e a gente viajava de cidade em cidade por todo o norte da
Europa. Mas aí ela ficou doente e teve que se aposentar cedo, então
voltamos para os Estados Unidos. Eu nunca tinha nada para conversar
com as outras crianças, então ficava sempre atrás de algum adulto, sem

19
“Zoryi” é a forma plural do nome “Zorya”.
20
Collective name describing the two daughters of Dazhbog—Zorya Utrennyaya, the goddess of
dawn, and Zorya Vechernyaya, the goddess of dusk. Some accounts describe three daughters; but
the third, the goddess of midnight, remains nameless. Although each Zorya has a specific task to
carry out in her father’s palace, the three share the responsibility of guarding an unnamed deity who
is chained to the constellation Ursa Major (the Great Bear); for if he breaks loose, the world will come
to an end (tradução livre).
43

falar nada, feito uma sombra. Acho que eu só precisava de companhia.


Não sei. Eu era bem pequeno e magrinho. (GAIMAN, 2016, p. 297)

Ao ler a justificativa de Shadow para o seu nome, o leitor começa a entender


a caracterização do personagem empreendida por Gaiman. O nome revela, assim
como nas histórias míticas da antiguidade uma relação direta do herói com o seu
destino ou predestinação. James Wood, em How fiction works, fala sobre o ato de
dar nomes alegóricos a personagens como uma convenção:
É impressionante o quão resiliente tem sido a convenção de dar nomes
alegóricos a personagens. Mas isso se dá porque não é apenas
convencional. Há um sentimento verdadeiro de que nós somos aquilo de
que nos chamam, pelo menos desde o Velho Testamento em diante,
quando Deus renomeou Jacó como Israel, que significa aquele que lutou
com Deus21 (WOOD, 2008, p. 115)

Conforme Wood, os nomes alegóricos indicam uma tendência segundo a


qual os personagens são aquilo que os nomeia. O autor, inclusive, vai além, dizendo
que “a ficção não está sendo muito ficcional22” (WOOD, 2008, p, 115) ao fazer isso,
citando pessoas notáveis cujos nomes se relacionam com aquilo que elas são,
como William Wordsworth23. Nesse sentido, Shadow passou a ser assim chamado
pelo hábito de seguir os adultos quando criança, pois não possuía amigos da sua
idade. Mas até mesmo a forma como se comporta em seu momento atual condiz
com esse nome, afinal ele agora segue Wednesday por toda parte.
Como a própria Easter observa, Shadow cresceu. No entanto, em certos
aspectos, Shadow continua sendo uma sombra, não apenas no nome, mesmo que
“uma sombra bem grande” (GAIMAN, 2016, p. 85), como diz Zorya Vechernyaya.
Desde que o leitor passa a conhecê-lo, o protagonista não age muito por conta
própria.
Primeiro ele está na prisão, aguardando a sua liberdade; depois, com todas
as perdas que sofre, fica completamente sem rumo, não tendo mais família ou
emprego para os quais voltar; por isso, termina por aceitar a oferta de emprego de

21
“(...) it is astonishing how resilient has been the convention of giving characters allegorical names.
But that is because it is not only conventional. There is a real sense in which we are what we are
called, at least from the Old Testament onward, when God renamed Jacob Israel, which means that
he struggled with God (tradução livre no corpo do texto).
22
“Fiction is not being very fictional” (tradução livre).
23
Poeta inglês, o nome Wordsworth poderia ser traduzido aproximadamente como “de dignas
palavras” ou “de palavras dignas”.
44

um completo estranho, que lhe promete boas condições para ser uma espécie de
acompanhante. Por esse motivo, o que mais faz é aguardar e seguir ordens,
faltando-lhe motivações pessoais, dando sentido ao nome que remete à ideia de
sombra.
Isso fica bastante claro em uma conversa que Shadow tem com sua já
falecida esposa, Laura, no capítulo 12, quando já estava morando na cidade
ficcional de Lakeside, no Wisconsin, onde usava o nome de Mike Ainsel. Após
afirmar não saber se, mesmo não tendo morrido, ele estava de fato vivo, ela lhe diz:

Eu amo você (...). Você é meu fofinho. Mas, quando a gente morre de
verdade, consegue ver tudo com mais clareza. É como se não tivesse
ninguém aí, sabe? Você parece um buraco enorme em forma de homem
aberto no mundo. (...) Até quando a gente estava junto. Eu amava estar
com você porque você me adorava, fazia tudo por mim. Mas às vezes eu
entrava em um cômodo e achava que não tinha ninguém lá dentro. Aí eu
acendia a luz, ou apagava a luz, e me dava conta de que você estava lá,
sentado sozinho, sem ler, sem ver tevê, sem fazer nada. (GAIMAN, 2016,
p. 353)

Laura, valendo-se de sua condição atual, ou seja, da perspectiva de alguém


que já morreu, consegue expressar com mais exatidão aquilo que já sentia em
relação ao marido mesmo antes do afastamento do casal pela prisão. Fica claro que
a falta de inclinações individuais de Shadow, ainda que este fizesse de tudo para
agradá-la - de certa forma vivia para isso, sem qualquer outro projeto pessoal -
tornou-se um problema para ela, à medida que o apagava enquanto homem - o que
fica muito bem ilustrado ao caracterizá-lo como um “buraco em forma de homem
aberto no mundo”. Isto fica ainda mais explícito ao compará-lo com Robbie, com
quem ela o traiu:

A melhor coisa do Robbie era que ele era alguém. (...) Ele às vezes era um
cretino, e podia ser bem ridículo, e adorava que tivesse espelhos em volta
quando a gente fazia amor, para que pudesse se ver me comendo, mas
ele estava vivo, fofinho. Ele queria coisas. Ocupava o espaço. (GAIMAN,
2016, p.353)

Esta conversa serviria, mais tarde, como um gatilho para Shadow, que, ao
lembrar das palavras ditas por Laura, decidiria tomar atitudes mais enérgicas, como
quando decide que prestará o tributo a Wednesday. Ao ser questionado pelo sr.
Nancy por que faria isso, mesmo que não precisasse, Shadow lhe responde:
“Porque é o tipo de coisa que teria que ser feita por uma pessoa viva”. Depois disso,
45

“Shadow teve a sensação de que fizera algo muito grande e muito estranho, mas
não sabia por quê” (GAIMAN, 2016, p. 432).
Até esse momento, no entanto, Shadow está coerentemente ligado ao
significado de seu nome. Por isso, uma boa forma de compreendê-lo é observá-lo
em relação aos outros personagens da trama com quem interage, dado o seu o
caráter mais reflexivo do que ativo. É bastante curioso, na verdade, ter como
protagonista alguém tão inerte quanto o é Shadow na maior parte do tempo. Esse
traço pode ser melhor exemplificado por uma passagem da narrativa em um dado
momento em que Wednesday, entre irritado e divertido, indaga a Shadow: “- Por
que você nunca discute? (...) Por que não grita que isso é impossível? Por que você
só faz o que eu mando e leva tudo nessa calma do caralho?” (GAIMAN, 2016, p.
328). Mais ilustrativa ainda é a resposta de Shadow: “- Porque você não me paga
para fazer perguntas. (...) De qualquer forma, nada me surpreende muito depois do
que aconteceu com Laura”. (GAIMAN, 2016, p. 328-329.)
Questionado se o que o havia surpreendido tanto a respeito de Laura era o
fato de ela ter voltado dos mortos, de maneira muito interessante Shadow responde
que era, na verdade, era o fato de ela ter-lhe traído com seu melhor amigo. Quer
dizer: ter a confiança quebrada por sua amada, sua única certeza no mundo, era
inimaginável de tal forma para Shadow que o fato supera o evento fantástico de ter
um cadáver vagando pelo mundo, não de volta à vida de todo, mas reanimado,
capaz de se mover e agir.
A esposa-cadáver, inclusive, em certos momentos realiza ações muito mais
adequadas a um perfil heróico do que o próprio protagonista. Entende-se aqui como
dotado de perfil heroico um tipo de personagem ativo, não reativo; um tipo de
personagem que toma a frente nas situações problemáticas, agindo por conta
própria, que lidera e é seguido, ao invés de seguir. É Laura quem mata três homens
para devolver a liberdade a Shadow (GAIMAN, 2016, p. 153) depois deste ser
raptado, na sequência da cena em que Shadow “cavalga” junto aos deuses no maior
carrossel do mundo.
Shadow, pelo contrário, enquanto está trancado numa sala com os agentes
Wood e Stone reflete sobre a ideia de enfrentá-los: “Eu sou maior que os dois,
pensou. Eu dou conta deles. Mas eles estavam armados; e, mesmo se conseguisse,
de alguma forma, matá-los ou dominá-los, continuaria trancado naquela sala. (Mas
teria uma arma. Teria duas armas.) (Não.)” (GAIMAN, 2016, p. 149). Percebe-se
46

como ele entra num dilema consigo mesmo: ele sabe que é grande e forte e que
tem chances de dominar os agentes, se arriscar. Um dos traços que caracteriza o
perfil heroico é, justamente, agir no ímpeto, com bravura. Shadow, não por covardia,
mas por analisar a situação com certa frieza, mantém a cautela, sabendo que matar
os agentes não o ajudaria a sair dali. Além disso, ele estaria cometendo um duplo
homicídio se fizesse isso, e ele tinha prometido a si mesmo que não voltaria para a
cadeia.
Ou seja: há aí, de certa forma, uma inversão da ideia de herói ou príncipe
encantado, revestido por sua armadura reluzente e montado em seu cavalo, que
aparece no último instante para salvar a vulnerável princesa aprisionada no
aposento mais alto da torre mais alta, guardada por um dragão. Ao invés disso, o
leitor se depara com um homem grande e musculoso, amordaçado e humilhado,
espancado, impotente, sendo salvo por uma mulher morta.
Tal ato, aliás, é responsável por transformar Shadow em um foragido, um ex-
presidiário recém liberto agora procurado por todo o país como o suposto causador
dos homicídios que ele se recusou a tentar cometer, o que acarreta no seu exílio,
não voluntário, mas também sem qualquer relutância de sua parte, em Lakeside.
Dessa forma, é visível que Shadow passa por diversas situações em que
assume diferentes “funções” em decorrência dos eventos que sofre, além daquelas
já exercidas naturalmente por ele em decorrência de sua relação com as outras
personagens. Dentre essas funções, pode-se dizer que Shadow é, ao mesmo
tempo:
1) O prisioneiro grandalhão, forte e quieto, que aguarda pacientemente o
esgotamento do prazo de sua reclusão, ficando longe de confusões.
Sua atitude era de grande ajuda para tanto: “Não entendo você, Shadow. (...)
Você é quieto pra cacete. Educado demais. Você é paciente que nem os caras
velhos, mas tem o quê? Vinte e cinco? Vinte e oito?” (GAIMAN, 2016, p. 25) É o
que lhe diz um guarda certa feita, ao que Shadow responde que na verdade tem 32
anos. Depois de indagar-lhe ainda se ele era “cucaracho”, “cigano” ou se tinha
“sangue de preto” (perguntas que Shadow, aliás, não sabe responder), o guarda
ainda conclui: “É? Bom, só sei que você me assusta pra cacete” (GAIMAN, 2016, p.
25).
Shadow continua sendo provocado pelo guarda, mas, com resiliência, se
mantém quieto:
47

Era assim que sobrevivia: não respondia, não falava sobre estabilidade na
carreira para os guardas do presídio, nem questionava a natureza do
arrependimento, da reabilitação ou os índices de reincidência. Não fazia
nenhum comentário divertido ou sagaz e, só para garantir, quando
conversava com um agente do presídio, sempre que possível, não falava
nada. Só respondia quando lhe perguntavam algo. Cumprir a própria pena.
Sair. Voltar para casa. Tomar um banho quente e demorado de banheira.
Dizer para Laura que a ama. Recomeçar a vida. (GAIMAN, 2016, p. 25-26)

Talvez este seja o aspecto mais admirável sobre Shadow neste momento da
trama, pois demonstra ter força de vontade e disciplina tremendas para se manter
na linha e sair da prisão o mais cedo possível. As últimas frases do trecho acima
recortado chegam a assemelhar-se a um mantra que ele possivelmente repetia a si
mesmo para manter o foco, o que parece ainda mais incrível quando o leitor
descobre, mais adiante, o crime cometido por ele: “ - Aqui está escrito que você foi
condenado a seis anos por lesão corporal qualificada. Cumpriu três. Estava previsto
que você fosse solto na sexta-feira” (GAIMAN, 2016, p. 26), disse-lhe o diretor do
presídio logo antes de soltá-lo antecipadamente, ante a notícia da morte da esposa
de Shadow.
Ainda na prisão, também é possível perceber, através do narrador onisciente
em terceira pessoa, que, se Shadow não fala muito, mas é indicado que ele reflete
e abstrai determinados fatos que lhe ocorrem, o que se percebe através do uso e
até repetição de expressões como “Shadow chegou à conclusão de que” ou
“Shadow percebera que”, como no exemplo que segue:

Ele chegou à conclusão de que, para aqueles que não tinham sido
condenados à morte, a cadeia era, na melhor das hipóteses, apenas um
retiro temporário da vida - e por dois motivos. Primeiro, porque a vida se
esgueira para dentro da cadeia. Sempre há lugares que podem ser
explorados, mesmo quando o indivíduo é retirado de seu contexto habitual;
a vida segue, mesmo se for uma vida escrutinada, uma vida atrás das
grades. E, segundo, porque se o detento aguentar firme, algum dia alguém
vai ter que soltá-lo. (GAIMAN, 2016, p. 18)

Como se pode observar, trata-se de um pensamento bastante sagaz e de


relativa complexidade para alguém que é tomado muitas vezes como simplório. Seu
colega de cela, Low Key Liesmith, reage com surpresa quando Shadow demonstra
ter compreendido Heródoto, por exemplo: “Ei, você está aprendendo”, é o que o
48

primeiro diz ao último, quando este afirma que “Não se pode dizer que um homem
é feliz até ele estar morto” (GAIMAN, 2016, p. 19).
Assim, conclui-se que o protagonista possui ao menos essas duas virtudes:
uma dose de estoicismo25 e uma capacidade para a reflexão e contemplação;
qualidades essas que garantem que o personagem não seja confundido, ao menos
pelo leitor, como um tolo completo, ainda que elas pareçam estar adormecidas nele,
exceto em raros lampejos, a partir do momento em que toma conhecimento da
morte de Laura. Depois disso, seguem-se ainda alguns outros acontecimentos e
notícias que fazem ruir cada vez mais o seu mundo, e como que um estado de
choque recai sobre ele, que parece se manter sob atordoamento e torpor por quase
todo o romance.
2) O viúvo traído, em período de luto pela sua perda, mas também magoado
pelo que nem havia considerado possível e agora lhe era evidente, sem que sua
esposa nem ao menos estivesse mais viva para que pudessem discutir sobre o
adultério, brigar, romper ou perdoar;
3) O empregado recém contratado de Wednesday, um homem misterioso
que parecia saber tudo sobre sua vida, mais até que ele mesmo, alguém com quem
ele não simpatiza num primeiro momento, mas que lhe oferece uma chance que
parece impossível de ser recusada por alguém em sua condição;
4) O ex-presidiário que se arrependeu, pagou sua pena e só quer viver uma
vida tranquila, que se vê obrigado a participar de novos atos ilícitos em função da
atividade que agora exerce, obedecendo às ordens daquele que descobrirá depois
ser um deus na linha de frente de uma guerra com outros deuses, um cenário bem
distante da tranquilidade almejada;
5) Na visão dos outros deuses, criaturas mitológicas e todos aqueles de
alguma forma envolvidos com guerra, tanto aliados como adversários, Shadow
também passa a ser visto como “o novo homem de Wednesday”, o que o torna

25
O estoicismo, enquanto doutrina filosófica, foi fundado por Zenão de Cício em Atenas no século
III a.C. Segundo essa doutrina, o homem sábio tem como características fundamentais a
imperturbabilidade, a extirpação das paixões e a resignação diante do destino, do sofrimento, das
adversidades. Shadow demonstra bastante afinidade com esse pensamento, a exemplo da seguinte
passagem: “Já ouvira gente demais falando que não se podia reprimir os sentimentos, que era
preciso dar vazão às emoções, deixar a dor sair. Shadow achava que reprimir as emoções trazia
muitas vantagens. Acreditava que, se os sentimentos ficassem enterrados por tempo suficiente e a
uma profundidade suficiente, logo não sentiria mais nada” (GAIMAN, 2016, p. 70).
49

objeto de cobiça inclusive para lado adversário, que tenta aliciá-lo a todo momento
para defender a sua causa no lugar na causa do seu “empregador”.
Chega um momento em que Shadow até mesmo pergunta àquele que, na
ocasião em que a conversa ocorre, recém descobriu ser Loki, que havia sido o seu
companheiro de cela, Low Key Liesmith, e agora fazia as vezes de chofer das novas
divindades: “por que é que está todo mundo atrás de mim? Todos agem como se
eu fosse importante. Que importa o que eu faço?” (GAIMAN, 2016, p. 425).A isso,
responde Loki: “Você é um investimento. Você era importante para nós porque era
importante para Wednesday. Já quanto ao motivo… acho que ninguém desse lado
nunca descobriu. Ele sabia. Ele morreu. Só mais um dos mistérios da vida”
(GAIMAN, 2016, p. 425).
Da mesma forma, é visto, também por isso, como um perigo por esse mesmo
lado, como se ele pudesse saber de algo que eles não sabem, ou ser uma espécie
de arma ou peça-chave. Ele é tomado como alguém que possivelmente tem
habilidades ou poderes especiais, os quais, se tem, ele mesmo ignora.
Justamente por isso é que Shadow é perseguido, raptado, espancado e
interrogado em mais de um momento, situações em que, sinceramente, revela que
nada sabe, aumentando ainda mais o mistério em torno de si mesmo. Afinal, quem
é esta pessoa que surgiu de repente e se mostra tão leal?
O personagem também é objeto da curiosidade daqueles que Wednesday
pretende angariar como seus aliados, os quais quase sempre simpatizam com a
sua figura, talvez por alguma espécie de intuição de que possa existir algo guardado
dentro de quem é aparentemente forte apenas no físico, porém meio simplório no
intelecto. O sr. Nancy26, faz a seguinte observação a respeito de Shadow:

- Você é grandalhão - retrucou o sr. Nancy, encarando os olhos cinza-


claros de Shadow com seus olhos velhos cor de mogno - e bem jeitoso,
mas, preciso dizer, não parece muito esperto. Eu tenho um filho, e ele é

26
O sr, Nancy é introduzido no capítulo CINCO, e é descrito como “negro idoso com um terno
quadriculado chamativo e luvas amarelo-canário. Era um homem pequeno, um tipo de velhinho que
parecia ter encolhido com a idade” (GAIMAN, 2016, p. 129). Ele é bem-humorado, gosta de contar
piadas e histórias e dotado de certa malícia. Seu nome tem origem em uma lenda africana sobre
Anansi, uma espécie de ser sobrenatural em forma de aranha. Esse ser vivia num mundo que era
triste porque nele não existiam histórias, então ele sobe ao Céu com sua teia para obter as histórias
de Nyame, o Deus do Céu; esse deus lhe impõe tarefas impossíveis como condição para lhe fornecer
as histórias, as quais Anansi conseue cumprir, apesar de seu pequeno tamanho, valendo-se de sua
perspicácia para enganar e criar artifícios. É mais um dos personagens de Deuses americanos que
pode ser identificado como um trickster.
50

burro como se tivesse comprado a burrice numa promoção de dois por um,
e você me lembra ele. (GAIMAN, 2016, p. 131)

Shadow lhe responde que consideraria isso um elogio, tendo em vista ser
comparado a um membro da família do sr. Nancy, e a isso ele concede: “Pensando
bem, talvez você não seja a pior coisa que esse velho caolho já arranjou” (Ibidem,
p. 131).
O protagonista, aliás, de forma surpreendente até para Wednesday, acaba
sendo, quase sem querer, muito importante no processo de convencimento de
alguns deuses para a adesão à causa do deus de origem nórdica,algo bem
exemplificado pelo jogo de damas com Czernobog, que remete quase que
diretamente ao jogo de xadrez entre o soldado das cruzadas e a própria morte em
O sétimo selo, filme de Ingmar Bergman27; o jogo de damas acontece no capítulo
QUATRO e será explorado em maiores detalhes no terceiro capítulo deste trabalho,
por ser uma passagem em que Shadow mostra um lado mais intrépido seu,
apostando sua própria vida em prol da causa de Wednesday: “Se você ganhar, terá
a chance de me apagar, arrebentando meus miolos com um golpe de marreta”
(GAIMAN, 2016, p. 92-93). Em contrapartida, a condição de Shadow para
Czernobog era que ele se juntasse à causa: “Se eu ganhar, você vem com a gente”
(GAIMAN, 2016, p. 92). Eles jogaram duas partidas, uma vencida pelo deus, outra
por Shadow; nesta última, Shadow “arriscou nas jogadas”, “movia as peças sem
pensar, sem parar para refletir” (GAIMAN, 2016, p. 94). Aqui, portanto, sua postura
ganha traços do perfil heroico de que vem se falando.
6) Justamente por essa atenção que inadvertidamente atrai é que o
protagonista cumpre de forma bastante eficaz, sem o saber, a função que constitui,
na verdade, o principal motivo pelo qual é contratado por Wednesday: Shadow é
uma distração, uma ilusão criada pelo deus para dar veracidade à história que
espalha a todos, tanto “aliados” quanto “adversários”: a de que há de fato uma
guerra entre deuses prestes a acontecer, quando ao invés disso tudo não passa de
uma trama bem arquitetada entre o “Pai-de-todos” e seu único real comparsa, Loki,
visando a obtenção de poder através de um holocausto massivo (e voluntário!) de
deuses, antigos e novos;

27
O SÉTIMO selo. Direção de Ingmar Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri (SF), 1957. 1 DVD (96
min.).
51

7) O filho de Wednesday, não apenas pelo fato de o deus assumir um papel


de protetor e provedor de Shadow ao “acolhê-lo” sob sua responsabilidade, o que
por si só já poderia lhe configurar o status de uma figura paterna na vida do homem
que foi criado pela mãe, já falecida, e que se encontra totalmente perdido no
momento de seu encontro, mas também por Shadow ser, de fato, filho biológico de
Wednesday.

2.3 Shadow: um herói contemporâneo?

É possível que ao iniciar a leitura de um livro chamado Deuses Americanos


o leitor sinta um certo estranhamento ao se deparar com a figura de Shadow, um
presidiário que cumpre pena há três anos por conta de um roubo, que anseia por
voltar a viver uma vida normal ao lado de sua esposa Laura e retomar o seu
emprego na academia de seu melhor amigo, Robbie. Isto porque é normal que se
espere que uma história com um título tão imponente seja protagonizada por alguém
de igual imponência.
A relação que se estabelece entre o título da obra e a forma como Shadow
protagoniza a narrativa aponta os primeiros elementos a serem considerados para
que se compreenda o caminho de composição da personagem: a constituição da
pessoa Shadow só aparece, até certo ponto da trama, pela relação que se cria com
um tipo de sistema social e político, cujas leis são determinantes para o “ser” (ou no
não-ser) da pessoa Shadow. Por conta disso, além de analisar a constituição da
personagem, é preciso que se observe a figura do protagonista como um sujeito
que se situa à margem tanto no meio social por onde anda quanto na guerra para a
qual é chamado.
Shadow constitui-se na medida em que se encontra nas fronteiras das
relações de poder, emitindo sua voz e poucas ações a partir da margem. Torna-se
uma figura emblemática, pois ao mesmo tempo em que faz parte de um jogo que
se cria por opostos, isenta-se dele, quando não se identifica com as demais partes:
nem pertence à categoria dos homens, nem pertence à categoria dos deuses.
Estrategicamente, ele ocupa uma posição de contraponto ao discurso do sistema.

Eu sinto como se estivesse em um mundo com uma lógica própria. Com


suas próprias regras. É como quando estamos em um sonho e sabemos
que há regras que não devem ser quebradas, mas não sabemos quais são
52

nem o que significam. Não tenho a menor ideia do que estamos fazendo,
nem do que aconteceu hoje, nem de quase nada do que aconteceu desde
que saí da cadeia. Só estou seguindo o fluxo, sabe? (GAIMAN, 2016, p.
100)

As palavras são proferidas pelo próprio protagonista em uma cena


emblemática em que conversa com Zorya Polunochnaya, sobre o telhado da
residência do personagem em Chicago, sob a luz do luar, logo após despertar de
um de seus sonhos confusos e repletos de imagens simbólicas. Importante destacar
que a conversa ocorre apenas no segundo dia que se seguiu à liberação de Shadow
da prisão, mesmo dia em que encontra com Wednesday, pela primeira vez, no
avião. A residência de Czernobog e das Zoryi é a primeira parada de Shadow e
Wednesday após deixarem Eagle Point, onde Shadow participou do funeral de
Laura, e, portanto, é como que o ponto de partida da jornada em busca de aliados,
empreendida pelo deus e seu subordinado.
Shadow é um homem quieto. Na maior parte das vezes, só fala para
responder a perguntas, e de modo bastante direto, só o necessário. São muito raras
as vezes em que fala de si mesmo, de modo que o leitor passa a conhecê-lo
gradualmente através da obra, muito mais através de suas atitudes e reflexões em
determinadas situações, e de seu comportamento perante as outras personagens.
Só se tem acesso a seus pensamentos através do narrador, e na maioria das vezes
em que isso acontece, ele apenas reflete a realidade que o cerca.
É notável o trecho citado anteriormente, portanto, tanto pelo tom aberto e, de
certa forma, confessional que adota, quanto pela extensão de sua fala. Em poucas
(ou no seu caso, muitas) palavras, ele resume de forma precisa o que o leitor pôde
perceber sobre sua natureza até ali, já adentradas cem páginas do livro: alguém
que segue o fluxo, sem rumo próprio, que deixa que o acaso e os percalços do
caminho lhe guiem na falta de um norte próprio.
Mas Shadow também se mostra ciente de que o caminho que por ora
percorre não é o seu. Ou antes se coloca nesta posição. É o que ele deixa claro
para Wednesday muito antes, ao aceitar sua proposta de emprego, não sem antes
fazer suas próprias exigências, naquele que ele próprio caracteriza como o mais
longo discurso que havia feito nos últimos anos.

A minha vida, que nos últimos três anos esteve bem longe de ser a melhor
do mundo, acabou de sofrer mais uma reviravolta, só que dessa vez
53

mudou para pior. Agora eu preciso fazer algumas coisas. Quero ir ao


velório de Laura. Quero me despedir. Depois disso, se você ainda precisar
de mim, quero começar ganhando quinhentos dólares por semana. (...)
Você mencionou que talvez precise que algumas pessoas sejam
machucadas, Bom, eu vou fazer isso se elas estiverem tentando machucá-
lo. Mas não vou machucar ninguém por diversão ou por dinheiro. Não vou
voltar para a cadeia. Uma vez já foi suficiente. (GAIMAM, 2016, p. 51)

Até aí, Shadow impôs algumas condições para que o acordo com
Wednesday ocorresse, para, a seguir, selá-lo, ainda com ressalvas em relação à
sua opinião sobre seu novo empregador e justificando seu aceite devido ao estado
em que se encontra sua vida:

Não gosto de você, senhor Wednesday, ou qualquer que seja seu nome
de verdade. Não somos amigos. Não sei como você saiu daquele avião
sem que eu visse, nem como me seguiu até aqui. Mas estou
impressionado. Você tem classe. No momento, estou à deriva. Você
precisa saber que, quando nosso acordo terminar, eu vou embora. E, se
você me irritar, vou embora também. Até lá, trabalharei para você.
(GAIMAN, 2016, p. 51)

A passagem deixa bem claro que Shadow não simplesmente adere de forma
passiva ao que aparece em seu caminho, embora esse pareça ser o caso na maioria
das vezes, pela forma como ele obedece às ordens que lhe são impostas sem
muitos questionamentos. Ele tem suas desconfianças e seus temores, bem como
seus princípios. No momento em que dá sua palavra a Wednesday, ele se
posiciona, e o faz de maneira declarada e honesta, expressando muito bem os seus
limites e suas reservas, ainda que a posição que opta por ocupar (note-se que tem
o livre arbítrio para tanto) seja um tanto difusa, já que ela requer que ele siga
Wednesday e o obedeça, o que implica em despir-se do controle total de suas ações
para seguir a maré.
De acordo com Agamben, as engrenagens sociais contemporâneas
produzem dispositivos e estes por meio de suas próprias relações determinam o
distanciamento entre homem e mundo, o que faz com que o sujeito não se
reconheça e não reconheça o mundo:

O fato é que, segundo toda evidência, os dispositivos não são um


acidente em que os homens caíram por acaso, mas têm a sua raiz no
mesmo processo de “hominização” que tornou “humanos” os animais que
classificamos sob a rubrica homo sapiens. O evento que produziu o
humano constitui, com efeito, para o vivente algo como uma cisão que
reproduz de algum modo a cisão que a oikonomia havia introduzido em
54

Deus entre ser e ação. Esta cisão separa o vivente de si mesmo e da


relação imediata com o seu ambiente [...] (AGAMBEN, 2009, p. 43)

A referência aos deuses no título da obra e a própria indicação da autoria de


Gaiman, reconhecido por uma série em quadrinhos na qual figuram como homens
as personificações do Sonho, da Morte, do Destino, que é frequentemente tido como
um autor do gênero da fantasia, levam o leitor a não esperar nada menos que a
presença de um herói dotado de grande virtude que deva cumprir um destino
grandioso, um papel na resolução de um conflito que não pode ser cumprido por
um mero mortal. Espera-se, portanto, que o protagonista seja alguém especial, que
se destaca por alguma determinada virtude ou por poderes especiais e que
represente, de alguma forma, um grupo ou instituição.
Essa expectativa é bruscamente rompida. Shadow é o oposto disso: além de
não apresentar nenhum dom especial, o fato de ter sido condenado por um ato ilícito
demonstra que o seu caráter, apesar de não ser mau, é tão ou até mais falho que o
de qualquer ser humano comum com suas necessidades e seus pequenos dramas
diários. Em comparação, pode-se apresentar a ideia de um modelo de herói
estudada por Bernard Knox em seus estudos sobre o temperamento heroico,
baseados nos personagens centrais das tragédias de Sófocles:

Sófocles põe de encontro às limitações na estatura humana grandes


indivíduos que se recusam a aceitar essas limitações, e em seu fracasso
alcançam um estranho sucesso. Sua ação é completamente autônoma;
por estas ações e os resultados que produzem os deuses, que são os
guardiões dos limites que o herói desafia, não se responsabilizam 28.
(KNOX, 1964, p. 6)

Enquanto o herói de Sófocles se recusa a aceitar suas limitações humanas


e desafia o destino a ele imposto, aceitando todas as consequências advindas de
seus atos, preferindo o fracasso ao subjugo, Shadow, em grande parte do tempo,
pelo contrário, segue a maré, aceita ser subordinado de Wednesday e seguir o
caminho do deus ao invés de um caminho próprio. Eventualmente, esse caminho
acaba levando a um momento crítico em que Shadow deve fazer uma escolha, e
nesse momento ele demonstra seu heroísmo, tomando uma direção própria; mas

28
“Sophocles pits against the limitations on human stature great individuals who refuse to accept
those limitations, and in their failure achieve a strange success. Their action is fully autonomous; for
these actions and the results the gods, who are the guardians of the limits the hero defies, bear no
responsibility” (tradução livre).
55

até aí, por muito tempo ele se deixa ser levado, o que justifica a possibilidade de
abordá-lo como um herói que subverte o modelo.
Ele não é, por isso mesmo, alguém que promete, ao menos de início, ser
capaz de um ato heroico. Até mesmo seus anseios são bastante modestos, mesmo
para um homem comum: só deseja voltar para sua cidade natal, para seu
casamento, para seu emprego, sua velha vida. Nenhuma grande ambição governa
sua vontade. É o que se percebe pela leitura da lista de coisas que Shadow deseja
fazer após sair da prisão:

A lista de Shadow foi ficando cada vez menor com o passar do tempo.
Após dois anos, restavam apenas três itens.
Primeiro, ia tomar um banho de banheira. Ficar de molho mesmo, por um
bom tempo, um banho de verdade, com bolhas de sabão e tudo. Talvez
leria o jornal, talvez não. (...)
Segundo, ia se secar e vestir um roupão. Talvez chinelos. Gostava de se
imaginar com eles. Se fumasse, a essa altura estaria fumando um
cachimbo, mas ele não fumava. Pegaria a esposa nos braços (“Fofinho!”,
gritaria ela, com horror fingido e prazer genuíno, “O que você está
fazendo?”). Ele a levaria para o quarto e fecharia a porta. Pediriam pizza
se ficassem com fome.
Terceiro, depois que ele e Laura saíssem do quarto, quem sabe alguns
dias mais tarde, Shadow ia ficar na dele e evitar problemas para o resto da
vida. (GAIMAN, 2016, p. 19)

Como se vê, as expectativas de Shadow em relação à sua vida como um


indivíduo reintegrado na sociedade são bastante prosaicas: desfrutar de pequenos
prazeres que lhe são impossibilitados dentro do cárcere e viver uma vida tranquila.
Ele, porém, tem seus modestos desejos frustrados de uma forma bastante brutal e
traumática: ao ser liberto inesperadamente com dias de antecedência, descobre
que sua esposa, o grande amor de sua vida, com quem esperava passar o resto
dos seus dias sem se envolver em mais nenhuma confusão, havia morrido em um
acidente de carro:

- Shadow, vamos liberá-lo hoje no fim da tarde. Você vai sair uns dias mais
cedo. – O diretor falou isso sem nenhuma alegria, como se estivesse
proferindo uma sentença de morte. Shadow assentiu e esperou a pancada.
O diretor olhou para a folha de papel à sua frente. - Recebemos isto do
Johnson Memorial Hospital de Eagle Point. Sua esposa… Ela morreu
nessa madrugada. Acidente de carro. Sinto muito. (GAIMAN, 2016, p. 27)

Como sua pena estava já praticamente cumprida, ele pôde participar dos
rituais fúnebres e não voltar mais para a prisão. Um evento, por si só, deveras
impactante. Mais tarde, no entanto, ele toma conhecimento também da traição da
56

esposa com seu melhor amigo Robbie, que estava no mesmo acidente da esposa,
algo que é revelado pela viúva do amigo. Quem lhe dá a notícia do acidente é o sr.
Wednesday, entregando-lhe um jornal com a notícia:

A matéria da página trinta e sete era a primeira reportagem que Shadow


lia sobre a morte da esposa. Foi uma sensação estranha, como se
estivesse lendo sobre outra pessoa: Laura Moon, que a reportagem dizia
ter vinte e sete anos, e Robbie Burton, trinta e nove, estavam no carro de
Robbie numa rodovia interestadual. O veículo deu uma guinada e saiu da
faixa, entrando na contramão de frente para uma carreta, que colidiu com
a lateral do carro ao tentar desviar. Com o impacto, o veículo de Robbie foi
arremessado para fora da estrada, capotando até bater em uma placa e
parar de vez.
Os socorristas chegaram à cena em questão de minutos. Tiraram Robbie
e Laura dos destroços. Os dois chegaram mortos ao hospital. (GAIMAN,
2016, p. 46)

Assim, Shadow perde tudo aquilo que fez um dos guardas com quem havia
conversado em sua última semana na prisão, antes da tragédia, dizer: “- Você tem
sorte. Tem alguém para quem voltar, tem um trabalho à sua espera. Vai poder
superar tudo isso aqui. Ganhou uma segunda chance. Não a desperdice.”
(GAIMAN, 2016, p. 22). A segunda chance se esvaiu, mas havia ainda um detalhe.
Quando Shadow vai ao funeral de Laura, ele vê a viúva de Robbie, Audrey,
aproximar-se do caixão de sua esposa e cuspir em seu rosto. Ao indagar-lhe sobre
sua atitude, ela lhe responde: “Ninguém lhe contou? - Ela falava com uma voz
calma, sem emoção. - Sua mulher morreu com o pau do meu marido na boca,
Shadow.” (GAIMAN, 2016, p. 61).
Torna-se, então, razoável concluir que Shadow vai se compondo à medida
que perde; conforme a narrativa avança, as perdas vão se somando, e o que resta
depois disso é uma personagem esvaziada, destituída de aspectos importantes que
formavam sua identidade. As perdas vão se tornando conhecidas por ele, e ao
mesmo tempo pelo leitor, gradualmente, uma a uma: primeiro a morte de Laura;
logo adiante a de Robbie; depois a traição de ambas as partes entre si.
Após isso, as perdas continuam a ocorrer. Trabalhando com Wednesday, ele
perde a oportunidade de viver a vida tranquila que desejava, envolvendo-se até em
pequenos delitos. Também pelo seu envolvimento com o deus, ele é raptado,
interrogado e espancado. É salvo pela esposa morta, que se torna uma assassina
para ajuda-lo, mas quem se torna foragido é ele; por isso ele tem de fugir, e para
isso recebe uma identidade falsa, para se exilar com o nome de Mike Ainsel na
57

cidade fictícia de Lakeside, Ou seja: de certa forma, ele vem a perder de fato sua
identidade, inclusive seu nome, tendo de encenar o papel de outra pessoa. Algo
que ele demonstra aptidão para fazer, inclusive:

A mentira saía fácil, com convicção e naturalidade. Naquele momento,


sabia tudo sobre o grandalhão Mike Ainsel, e gostava do sujeito. Mike
Ainsel não tinha nenhum dos problemas de Shadow. Mike Ainsel nunca
fora casado. Nunca fora interrogado a bordo de um trem de carga pelo sr.
Wood e pelo sr. Stone. Mike Ainsel não conversava com a televisão (Quer
ver os peitos de Lucy?, repetiu uma voz na cabeça dele). Mike Ainsel não
tinha pesadelos, nem acreditava que vinha uma tempestade por aí.
(GAIMAN, 2016, p. 262)

Este trecho demonstra claramente que, para Shadow, ser um completo


desconhecido era muito mais fácil naquele momento do que ser ele mesmo,
tamanha a volta que sua vida sofrera. Importante lembrar que as perdas começaram
a acontecer antes mesmo do ponto em que a narrativa inicia: ele é privado de sua
liberdade, do trabalho, da companhia dos entes queridos, da vida que levava. Ainda
assim, evocando as palavras já citadas de Sam Fetisher, teria sido mais fácil
continuar na prisão, lugar ao qual já estava habituado, como se percebe na seguinte
passagem:

Não era um aeroporto grande, mas ele ficou impressionado com a


quantidade de gente circulando, só circulando. Viu as pessoas apoiarem
as malas no chão tranquilamente, viu carteiras serem enfiadas em bolsos
traseiros, viu bolsas serem colocadas com displicência debaixo de
cadeiras. Foi aí que se deu conta de que não estava mais na cadeia.
(GAIMAN, 2016, p. 30)

Logo, Shadow é uma personagem cuja identidade está em franca e contínua


desconstrução ao longo de todo o romance, e é apenas através da vivência, do
percurso pelo qual atravessa que Shadow poderá constituir-se novamente. Voltar a
ser o que era já está para ele inacessível; porém, o reencontro consigo mesmo, com
sua essência, é isto que o aguarda, e, de certa forma, é somente através desse
processo de desconstrução, por causa e não apesar das suas perdas, que isso será
possível.
Shadow não tem para onde retornar. Não reconhece seu passado, nem seu
presente e encontra-se sem futuro. Está, portanto, à deriva. Nenhum ente querido
está à sua espera do lado de fora. Aquelas que são suas razões para viver, as
esperanças que alimentou e que foram as âncoras que tornaram possível que sua
58

sanidade e racionalidade sobressaíssem à prisão, que permitiram que tivesse


exemplar comportamento, possibilitando sua liberdade precoce, não mais estariam
lá para recebê-lo. E, dentre os fatos, há o pior: o acidente ocorreu porque Laura
praticava sexo oral em Robbie, enquanto este dirigia, levando-o a perder o controle
do volante. Isto lhe é revelado mais tarde pela própria esposa que lhe aparece, já
morta porém de alguma forma animada, num quarto de hotel onde se hospedava.
O que esperar de um homem cuja vida é atingida por tais adversidades?
Suas reações às notícias dos eventos combinam com a figura taciturna que
enfrentou a prisão silenciosamente: apesar de toda a dor, nenhum acesso de raiva
ou atitude precipitada. Apenas um profundo desânimo e uma ausência de
perspectivas futuras. Shadow segue seu caminho procurando não pensar sobre
nada, somente fazendo uma coisa de cada vez: sai da prisão, pega seus voos, para
em algum lugar para comer, participa do velório da esposa e sofre com sua perda,
apesar de tudo.
Shadow aceita o emprego que Wednesday lhe oferece aparentemente por
não ter nada melhor para fazer. O emprego não é nada especial: passa a atuar
como um capanga, dirige, acompanha, presta favores, protege, às vezes investiga.
Shadow só quer receber um salário e se envolver no mínimo de confusão possível.
Ele quase se parece com uma personagem secundária e sem importância em uma
trama que envolve o enfrentamento entre divindades, não fosse o fato de que suas
ações são o foco da narrativa e, portanto, o olhar do leitor o acompanha bem de
perto. Mesmo sem dar créditos, o leitor percebe que deve esperar algo dele, apesar
da improbabilidade.
É possível perceber em Shadow características típicas de um sujeito
contemporâneo: alguém dotado de uma complexidade de caráter, que não pode ser
caracterizado simplesmente como mau ou bom pelo que se percebe das suas
ações. Sua identidade é fragmentada e está em um estado evidente de trânsito, já
que perdeu tudo e não tem para onde ir, além ter passado três anos em uma
penitenciária, isolado do restante da sociedade. Tudo isso o coloca em uma posição
fronteiriça em relação ao seu exterior e em relação a si mesmo, espaço que Homi
Bhabha (1998), ao tratar do senso de desorientação e despertencimento que
acomete o homem de fins do século XX, chama de “além”. O sentido que o teórico
cunha ao termo se sobrepõe aos tão controvertidos e deslizantes conceitos de
prefixo pós, como o pós-colonialismo, pós-modernismo, pós-feminismo, etc:
59

O “além” não é nem um novo horizonte, nem um abandono do


passado...Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no
meio do século, mas, neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de
trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras
complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e
exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de
desorientação, um distúrbio de direção, no “além”: um movimento
exploratório incessante, que o termo francês au-delà capta tão bem – aqui
e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para a frente e para trás.
(BHABHA, 1998, p.19)

É este homem o centro de uma história que possui como pano de fundo o
embate entre forças descomunais, e o papel que assume desde o início é o de um
peão, não de um líder, de um capitão. Protagonistas de romances fantásticos
normalmente são designados para o cumprimento de uma tarefa, são seres
escolhidos de quem todos esperam grandes feitos. Atuam à frente das linhas de
batalha, mobilizam as outras personagens. Victor Brombert (2001, p. 15), em um
livro dedicado a anti-heróis, oferece uma “noção do herói contra a qual parece reagir
uma parcela tão grande da literatura moderna”:

[Os heróis] vivem segundo um código pessol feroz, são obstinados diante
da adversidade; seu forte não é a moderação, mas sim a ousadia e mesmo
a temeridade. Heróis são desafiadoramente comprometidos com honra e
orgulho. Embora capazes de matar o monstro, eles mesmos são
frequentemente medonhos e até monstruosos. Testemunhas apavoram-se
com a “perversidade de suas ações violentas” e a estranheza de seu
destino. Quer se chame Aquiles, Édipo, Ajax, Electra ou Antígona – pois o
conceito heroico estende-se a mulheres excepcionais –, o herói ou heroína
é uma figura única, exemplar, cujo fado vai situá-lo ou situá-la no posto
avançado da experiência humana, e praticamente fora do tempo
(BROMBERT, 2001, p 15-16)

É a vivência segundo esse código pessoal feroz de que fala Brombert que o
coloca “no posto avançado da experiência humana”. Com intrepidez, os heróis
tomam a iniciativa diante das adversidades e servem de exemplo pelo seu
comprometimento com a honra, por isso se tornam líderes que atraem seguidores.
Essa posição de vanguarda não pode ser verificada em Shadow, seguidor e
não seguido, que não possui um objetivo, uma vontade que o governe, não
demonstra ter grandes sonhos nem querer ser alguém mais importante. Estaria
satisfeito em ser empregado de uma academia para sempre, desde que Laura
estivesse ao seu lado. O que o move é a sua sobrevivência, e ele se envolve quase
que por acidente em uma guerra que, com certeza, pelas suas proporções e
60

motivações, mudará todo o destino da humanidade e a forma como as pessoas


vivem, mesmo sem elas saberem disso, simplesmente porque tudo o que tinha
desapareceu e seu destino foi mudado de forma abrupta e irreversível. E, ainda
assim, ele não tinha a menor noção do que estava aceitando fazer parte.
À medida que o tempo passa e os eventos vão ocorrendo, a figura de
Shadow transforma-se. Ele tem sonhos estranhos, passa a perceber que há algo
de diferente nas pessoas com quem se depara. Percebe que há algo acontecendo.
Sua mulher morta caminha sobre a terra e fala com ele e ele pode tocá-la. Ele
adquire uma consciência das coisas que o cercam e, no fim, desempenha um papel
importante para o desfecho dos eventos. Ou seja, ele se torna o herói que a
narrativa necessita. A humanidade não é salva, pois não há uma salvação. Não há
“felizes para sempre”, pois não há um “para sempre”. Há apenas uma readequação
do estado das coisas, um alívio da tensão que pairava sobre todos.
Mas, ainda assim, o desastre maior não acontece, e Shadow é o
responsável, pois ele percebe qual o seu papel. E seu papel é algo que descobre
sozinho. No fim, Shadow se liberta da apatia e toma atitudes pela sua própria
vontade, assumindo o protagonismo, não do romance, que sempre foi seu pela luz
que lhe é jogada, mas do rumo das coisas. Shadow faz a diferença e o faz por conta
própria.
Shadow se torna um herói, sim. Mas um herói não reconhecido e que não se
reconhece como tal, um herói que não possui nenhuma condecoração ou indicação
de seu valor. Não é o líder de um povo. Não obtém vantagens pelos seus atos
heroicos. Não tem nenhum objetivo pessoal realizado. Shadow não ganha nenhuma
guerra, ele apenas evita que ela ocorra e cause os estragos que uma guerra causa.
Este é o seu heroísmo: evitar que haja um lado vencedor, alertar as divindades
sobre o absurdo que estava por acontecer, avisá-las das intenções dos arquitetos
de tal batalha.
3 AS SOMBRAS DO HERÓI

Tendo como norte a caracterização de Shadow como uma possível


refiguração do caráter heroico em moldes contemporâneos, interessa ao presente
estudo chamar à discussão alguns heróis notáveis presentes em grandes obras da
literatura ocidental através dos tempos, desde suas origens na épica e no teatro
grego, onde se encontra a gênese do que hoje se entende por “herói” na narrativa
ficcional.
Neste sentido, em Por que ler os clássicos?, Calvino, ao referir-se a Ulisses
no capítulo em que trata d’A Odisseia, de Homero, destaca o compromisso do herói
com seus objetivos, que nunca se deixa seduzir pelas distrações ou promessas que
lhe aparecem no caminho.

Em todas as situações Ulisses deve estar atento, se não quiser esquecer


de repente…Esquecer o quê? A Guerra de Tróia? O assédio? O cavalo?
Não; a casa, a rota de navegação, o objetivo da viagem. A expressão que
Homero usa nesses casos é “esquecer o retorno”.
Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de
seu destino: em resumo, não pode esquecer a Odisseia. (CALVINO, 1993,
p. 15)

É possível verificar aí a figura de uma personagem com um objetivo definido,


delineado, claro em seu horizonte, cuja determinação e bravura são o emblema de
seu destino e de quem ele representa. Não importam os percalços pelos quais
passará Ulisses, quantos serão os desvios ou quantos anos ainda levará sua
jornada: seu destino está traçado e o seu ponto de chegada é Ítaca. O seu percurso
contém, inevitavelmente, o retorno ao lar, à esposa Penélope e ao filho Telemâco,
e o herói enfrenta todas as intempéries tendo isso em mente, e assim resiste a todas
as tentações.
Conforme Georg Lukács, em A teoria do romance (2000, p. 67), devido à
imanência do mundo helênico, sem a distinção entre parte e todo, “o herói da
epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial
da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade”.
Nesse sentido, a série de aventuras vivida por Ulisses é quantitativa e, portanto,
adquire seu valor pela importância que assume como fortuna no complexo vital da
comunidade:
62

Quando a vida, como vida, encontra em si um sentido imanente, as


categorias da organicidade são as que tudo determinam: estrutura e
fisionomia individuais nascem do equilíbrio no condicionamento recíproco
entre parte e todo, e não da reflexão polêmica, voltada sobre si própria, da
personalidade solitária e errante. (LUKÁCS, 2000, p. 67)

Semelhante a Ulisses, Shadow anseia pelo retorno ao único lugar que tem
como referência no mundo. O seu lar é a companhia da esposa, Laura. Como
Ulisses, ele anseia para dar início à viagem. Assim como Ulisses, o objetivo que
norteia a vontade resoluta de Shadow, que o inspira a se comportar no cárcere para
ser liberto o mais cedo possível, é o amor que sente pela esposa. Entretanto, às
avessas do herói clássico, a viagem do protagonista de Deuses americanos é o
retorno à sociedade, cujas normas ditaram o seu isolamento. Enquanto ainda se
encontra na prisão, quando toma consciência da morte da esposa, rompe-se o
último fio que o ligava ao mundo. Shadow perde a última ou única referência de
retorno, onde poderia aportar.
Na contramão do caminho de Ulisses, que, com os objetivos da viagem tem
seu destino selado, despedaça-se o horizonte de Shadow. É desse ponto em diante
que a história realmente inicia: com um homem agora totalmente desorientado e
desvinculado de qualquer ordem ou sistema. O leitor, ao lado dele, embarca em
uma narrativa que não lhe fornece indícios sobre o seu curso ou sobre o fim para o
qual se destina o protagonista.
A leitura do protagonismo de Shadow em Deuses americanos evoca,
inevitavelmente, tanto a figura do herói clássico quanto a figura do herói moderno.
Não só porque a personagem, pela errância de ser, busca reconhecer-se, mas
também pelas ações decisivas de Shadow em relação à guerra que se instaura. A
figura de Ulisses n’A Odisseia, vista como a referência tradicional de herói,
proporciona parâmetros para o questionamento, portanto, do que se propõe no
romance de Neil Gaiman. Sobre a acepção de herói em Homero e, mais tarde, na
Grécia do século V a.C., observa Brombert (2001, p. 15):

A palavra “herói” (...) parece ter tido em Homero o sentido geral de “nobre”,
mas no quinto século a.C. o culto dos heróis havia surgido e se tornara
uma espécie de fenômeno religioso. Heróis eram homenageados e
reverenciados. Eram associados a uma era mítica em que se dizia que
homens e deuses entraram em íntimo contato. Heróis eram seres
excepcionais inscritos na lenda, cantados na poesia épica, representados
no teatro trágico.
63

A época em que Shadow vive se mostra determinante na impossibilidade de


existência de um herói como os que eram cultuados na Grécia clássica. Nem
mesmo a presença de deuses que vivem entre as pessoas na contemporaneidade
da obra de Gaiman torna esta uma era mítica como aquela à qual os gregos
associavam os heróis; na época vivida por Shadow, os deuses foram relegados
quase ao esquecimento pelas pessoas que o cultuavam, portanto seu poder foi
enfraquecido. Em consequência disso, mesmo a eles falta o caráter de
excepcionalidade de que os heróis clássicos gozavam.
Pela imagem de Shadow, transfigura-se tanto os sentidos do herói clássico
quanto os do herói moderno, chamando-os constantemente ao texto, pois embora
desorientado, sem rumo e à margem do sistema social do mundo ao qual deveria
pertencer, Shadow protagoniza a história de Deuses Americanos. De maneira
decisiva, é ele que intervém e salva o mundo na guerra dos deuses. Além disso, do
ponto de vista da estrutura narrativa e sua articulação, é pela perspectiva de
Shadow que o leitor adentra e visualiza esse universo, um mundo marcado pela luta
por poder.
D
O que lhe falta em grande medida, porém, é o que se pode chamar de
temperamento heróico, sobre o qual trata Bernard Knox, em seu livro
adequadamente intitulado The heroic temper - studies in sophoclean tragedy. A
obra, que consiste em um estudo sistemático dos protagonistas das tragédias de
Sófocles, a exemplo de Édipo, delineia algumas características que formam a
personalidade típica dos heróis, uma delas sendo a sua posição central nas tramas
em que tomam parte, como se lê a seguir:

O conceito moderno de drama trágico toma como garantida a existência


de uma única personagem central, cuja ação e sofrimento são o ponto focal
da peça - aquilo que chamamos de “herói trágico”. Para nós, é difícil
imaginar Hamlet sem o Príncipe da Dinamarca. Esta figura do herói trágico
é um legado herdado pela tragédia renascentista e neoclássica de Sêneca,
e, por sua vez, dos gregos. A teoria literária associada a isto reivindica
como sua fonte, correta ou erroneamente, A poética de Aristóteles, onde
uma famosa passagem parece, à maioria dos críticos, deixa implícito que
a tragédia apresenta a “inversão” de uma única personagem29 (KNOX,
1964, p. 01)

29
“The modern concept of tragic drama takes for granted the existence of a single central character,
whose action and suffering are the focal point of the play - what we call ‘the tragic hero’. For us it is
difficult to imagine Hamlet without the Prince of Denmark. This figure of the tragic hero is a legacy
inherited by Renaissance and Neo-classical tragedy from Seneca, and so from the Greeks. The
64

Tendo por base a definição de herói trágico posta por Bernard Knox, é
possível observar em Shadow a figura única de ação e sofrimento, cuja personagem
é o ponto focal da trama de Deuses Americanos, pois é a partir dele e em seu
entorno que o enredo acontece, o que evidencia o seu protagonismo. Segundo
Knox, seria mesmo uma invenção de Sófocles a presença de uma única
personagem dominante como centro do dilema trágico, algo tão característico em
sua técnica que se poderia chamar de sofocliana a corrente principal da tragédia
europeia, desde seu tempo.
É interessante notar, no entanto, uma diferença básica entre a maioria das
peças de Sófocles e a narrativa contemporânea de Neil Gaiman que se verifica na
escolha feita por este para o título de sua obra. Como aponta Knox,

Até mesmo os títulos designados às peças de Sófocles sugerem que essa


peculiaridade de seu drama foi notada na antiguidade. Não sabemos quem
designou tais títulos, ou, em regra, quando eles foram designados, mas
eles claramente refletem uma impressão comum (e, no todo, precoce) da
natureza de sua dramaturgia. Das sete tragédias existentes, seis levam no
título o nome da figura central; apenas uma, As Traquínias, leva o nome
do coro, e essa é a única das sete que não se baseia claramente na figura
do herói trágico30 (KNOX, 1964, p. 01)

Um bom exemplo disso a que o autor se refere é a peça mais conhecida cuja
autoria é atribuída ao dramaturgo grego, Édipo Rei, que leva o nome de seu
protagonista. Em contraste a isso, o romance protagonizado por Shadow leva o
título de Deuses Americanos o que, se levarmos em conta a lógica apontada por
Bernard Knox, poderia indicar que o protagonista, por sua vez, não se trataria de
um herói trágico.
De fato, não há nada de “trágico” em Shadow, ao menos não na acepção
clássica da palavra, à maneira de Édipo. Shadow passa, sim, por uma reviravolta,
mas não há propriamente uma inversão tal qual exige a forma da tragédia; também

literary theory which is associated with it claims as its source, rightly or wrongly, the Poetics of
Aristotle, where a famous passage seems to most critics to imply that tragedy presents the ‘reversal’
of a single character” (tradução minha).
30
“Even the titles assigned to Sophocles’ plays suggest that this peculiarity of his drama was
recognized in the ancient world. We do not know who assigned these titles, nor, as a rule, when they
were assigned, but they clearly reflect some common (and, on the whole, early) impression of the
nature of his dramaturgy. Of the seven extant tragedies, six are named after the central figure; only
one, the Trachiniae, after the chorus, and that is the only one of the seven which is not clearly based
on the figure of a tragic hero” (tradução minha).
65

ele vive seu momento de revelação, talvez até epifania, porém nada como a catarse
que se verifica nas peças de Sófocles, e a maneira como ocorre é muito mais diluída
nas páginas da narrativa de Gaiman.
Se for adotado como referência o período da narrativa em que Shadow se
submete ao sacrifício de ficar amarrado a uma árvore por nove dias e nove noites
em tributo à morte de Wednesday, esse momento de revelação e epifania se
espalha desde o capítulo Quinze até o Dezoito, da página 437 à 489, quando
Shadow, após já morto, é “acordado” por Easter. Nesse ínterim, ele conversa com
diversas criaturas e viaja ao mundo dos mortos, onde sua vida é julgada e seu
destino na morte escolhido. Tudo isso vem a aumentar sua compreensão sobre os
eventos vividos desde sua saída da prisão e a farsa montada por Wednesday e Mr.
World/Lowkey Lyesmith - Odin e Loki - para então, reanimado, decidir o que fazer
com seu novo conhecimento.
Diferente dos momentos catárticos e vertiginosos que ocorrem nas tragédias
de Sófocles, a exemplo da “frenética velocidade da revelação final em Édipo Rei31”
(KNOX, 1964, p. 7), portanto, o momento de revelação em Deuses Americanos não
é sucedido por atitudes desesperadas e convulsivas. Basta observar a reação de
Shadow à sua própria compreensão: “Foi então que Shadow entendeu. Entendeu
tudo, era de uma simplicidade gritante. Balançou a cabeça, deu uma risadinha e
balançou a cabeça mais um pouco, e a risadinha virou uma gargalhada” (GAIMAN,
2016, p. 486). Ele ainda teria de ser praticamente convencido por Easter a tomar
uma atitude diante do conflito que já se desenrolava, relutante que estava em deixar
de lado o sono eterno ao qual já tinha se entregue:

- Você se lembra? - perguntou a mulher. - Você se lembra do que


descobriu?
- Sim. Mas vou esquecer. Como um sonho. Sei disso. Perdi meu nome e
perdi meu coração. E você me trouxe de volta.
- Sinto muito - disse a mulher, pela segunda vez. - Eles vão lutar daqui a
pouco. Os velhos deuses e os novos.
- E vocês querem que eu lute por vocês? Perdeu seu tempo.
- Eu lhe trouxe de volta porque era isso que eu precisava fazer - respondeu
a mulher. - É o que eu posso fazer. É o que faço de melhor. E agora o que
você vai fazer é o que tiver que fazer. Você decide. Eu fiz a minha parte
(GAIMAN, 2016, p. 490)

31
“(...) the frantic speed of the final revelation in the Oedipus Tyrannus” (tradução minha).
66

Édipo reage de maneira bem mais enérgica ao finalmente tornar-se


consciente, depois de inúmeras entrevistas, da maneira como se deu seu trágico
destino. As palavras que ele profere dão conta de demonstrar a dimensão crítica de
suas emoções; não há reserva de sentimentos, nem economia ponderada de
atitudes:

Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram


os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-
se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com
quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 1998,
p. 82).

O herói então sai correndo em direção ao palácio, e quando torna a aparecer


em cena, seus olhos estão perfurados, o que se deu pelas suas próprias mãos. Esta
atitude trágica se deve pela posição do herói no drama sofocliano, como
centralizador das ações e único responsável pelas consequências advindas delas.
Não há vislumbre de uma razão ou explicação dentro de um plano maior, ou
esperança de um futuro melhor após a revelação, para Édipo, de que ele é o
criminoso que procurava; nem ele mesmo decide pelo próprio perdão, o que, na
condição de rei, até mesmo lhe caberia, visto que a decisão era sua. O tirano é tão
implacável consigo mesmo quanto o seria com qualquer de seus súditos e sua
atitude poderia ser melhor descrita pelo ditado popular “aqui se faz, aqui se paga”.
Conforme Knox,

Num drama sofocliano, nunca estamos conscientes, como sempre o


estamos com Ésquilo, da natureza complexa da ação do herói, seu lugar
na trama de eventos por gerações passadas e futuras, sua relação com o
plano divino cujo resultado é tal trama. O herói sofocliano atua num vácuo
aterrorizador, um presente perante o qual não há futuro que conforte ou
passado que guie, um isolamento no tempo e no espaço que impõe sobre
o herói a responsabilidade total por sua ação e suas respectivas
consequências. É precisamente este o fato que torna possível a grandeza
dos heróis sofoclianos; a fonte de suas ações se encontra apenas neles
mesmos, e em nenhum outro lugar; a grandeza dessas ações é apenas
sua. Sófocles nos apresenta pela primeira vez aquilo que reconhecemos
como “herói trágico”: alguém que, sem a ajuda de deuses e face à oposição
humana, toma uma decisão que vem da camada mais profunda de sua
natureza individual, com physis, e então mantém tal decisão cega, feroz e
heroicamente ao ponto da autodestruição32. (KNOX, 1964, p. 5)

32
“In a Sophoclean drama we are never conscious, as we always are with Aeschylus, of the complex
nature of the hero’s action, its place in the sequence of events over generations past and future, its
relation to the divine plan of which that sequence is the result. The Sophoclean hero acts in a terrifying
vacuum, a present which has no future to comfort and no past to guide, an isolation in time and space
which imposes on the hero the full responsibility for his own action and its consequences. It is
67

Édipo, assim, cumpre com sua palavra. Em comparação a ele, Shadow não
é dono de uma palavra à qual possa cumprir com tamanha resolução, pelo menos
em grande parte do romance Deuses Americanos. Não há também como se falar
em responsabilizá-lo pelos seus atos, pois não foram ações suas que deram causa
ao conflito para o qual, no entanto, é atraído. Shadow poderia se escusar e deixar
que os deuses sofressem, como Édipo, as consequências do destino que suas
próprias escolhas lhes trouxeram. E, por muito tempo, nada na narrativa realmente
indica que Shadow faria qualquer coisa diferente: ele é um subordinado, ele
obedece ordens, ele não reclama ou se indigna. Ele não é como os heróis de
Sófocles, que bradam e teimam em enfrentar o seu destino, por pior que seja, desde
que obedecendo sua própria natureza. Shadow não tem a convicção da própria
identidade necessária para isso.
Ainda assim, e, paradoxalmente, apesar de lhe faltar a mesma resolução
dura e inflexível, ele se submete, sim, a sacrifícios tão autodestrutivos quanto
aqueles dos heróis sofoclianos: ele aposta sua vida num jogo de damas com
Czernobog para convencê-lo a aceitar o pedido de Wednesday.

- Seu mestre [Wednesday] quer que eu vá com vocês. Quer minha ajuda
nessa loucura que inventou. Eu prefiro morrer.
- E você quer fazer uma aposta. Tudo bem. Se eu ganhar, você vem com
a gente.
- Pode ser. Mas só se aceitar minha contrapartida quando perder.
- E qual seria?
A expressão de Czernobog não se alterou.
- Se eu ganhar, quero apagar você. Com a marreta. Primeiro, você se
ajoelha. E eu acerto um golpe, arrebento seus miolos, e você não se
levanta mais.
(...)
- [Wednesday] Isso aqui está ficando ridículo. Vir aqui foi um erro. Shadow,
vamos embora.
(...)
- Não - retrucou Shadow. Não tinha medo de morrer. Não era como se
tivesse motivos para viver. Tudo bem. Eu aceito. Se você ganhar, terá a
chance de me apagar, arrebentando meus miolos com um golpe de
marreta. (GAIMAN, 2016, ps. 92-93)

precisely this fact which makes possible the greatness of the Sophoclean heroes; the source of their
action lies in them alone, nowhere else; the greatness of the action is theirs alone. Sophocles
presents us for the first time with what we recognize as ‘tragic hero’:one who, unsupported by the
gods and in the face of human opposition, makes a decision which springs from the deepest layer of
his individual nature, with physis, and then blindly, ferociously, heroically maintains that decision even
to the point of self-destruction” (tradução livre).
68

Shadow perde esta aposta e, não contente, propõe um novo jogo com as
mesmas condições, alegando que o deus, por não manejar sua marreta há muito
tempo, pode ter perdido o jeito e talvez não consiga matá-lo na primeira tentativa.
Na segunda oportunidade, Shadow vence e o deus eslavo embarca na empreitada
enganosa de Wednesday.
Nesta passagem é possível localizar em Shadow pelo menos um pouco do
que caracteriza um herói, conforme o entendimento de Knox. Ele é intrépido, corre
riscos e até se diverte com isso, pela forma como se comporta no segundo jogo de
damas:

Dessa vez, Shadow arriscou nas jogadas. Aproveitava as mais ínfimas


oportunidades, movia peças sem pensar, sem parar para refletir. E, dessa
vez, enquanto jogava, Shadow sorria - e, sempre que Czernobog movia
uma peça, Shadow sorria ainda mais. (Ibidem, p. 94)

Aqui se vê uma sombra do que Shadow poderia se tornar, do herói que o


leitor espera encontrar em uma jornada épica. Mas não é o que acontece nos
próximos capítulos: ele só voltará a demonstrar atitude semelhante após a morte de
Wednesday, muito mais tarde, quando decide pagar tributo a ele, o que o leva
também a falecer.
Porém, é no percurso de Shadow que se podem verificar incidentes que,
segundo Joseph Campbell (2007), constituem estágios comuns na trajetória de
heróis da maioria das tradições e culturas existentes. A vivência desse percurso é
o que caracteriza o arquétipo do herói, o qual será estudado a seguir.

3.1 O percurso do herói

Campbell, em O herói de mil faces, designa como unidade nuclear do que


chama de monomito - termo cunhado originalmente por James Joyce em Finnegan’s
wake - a fórmula separação-iniciação-retorno, presente nos rituais de passagem e
ampliadas no “percurso padrão” da aventura mitológica do herói. O autor resume
desta forma:

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios


sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva;
o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer
benefícios aos seus semelhantes. (CAMPBELL, 2007, p. 36)
69

Em outras palavras, o herói perfaz uma jornada, uma travessia em que ele
simbolicamente se distancia, rompe com seu status quo – separação – e,
caminhando por uma estrada até então desconhecida para ele, cheia de surpresas
e novas criaturas, tem de transpor inúmeros obstáculos – iniciação –, para, então,
retornar ao seu lugar de origem com um aprendizado que o modificou – retorno – e
espalhar as dádivas desse aprendizado para o seu povo.
Nesta esteira, o caminho atravessado por Shadow será avaliado através da
verificação da presença, nele, dos estágios do ciclo cosmogônico do monomito, o
que se pode comprovar a partir da interpretação da simbologia das etapas do
percurso do herói, com a respectiva aproximação da jornada pessoal do
personagem de Gaiman a esse percurso.
Campbell demonstra todos os estágios que compõem o percurso do herói
através da análise de uma multiplicidade de personagens advindos de escrituras
sagradas religiosas – a Bíblia dos cristãos, o Corão dos muçulmanos, os Vedas dos
hindus –, mitologias – grega, romana, nórdica, africanas, orientais –, literatura – a
épica e as tragédias gregas, o drama shakespeariano – e até mesmo história –
Napoleão –, identificando na trajetória dessas personagens, e através dos símbolos
que elas carregam consigo, cada etapa desse percurso. Todos esses mitos, lendas
e personalidades, por mais diversas que sejam as particularidades dos povos que
representam, que se traduzem na maneira como são representados, possuindo
suas marcas culturais, seus símbolos, pela maneira como os caminhos que eles
percorrem, as dificuldades que enfrentam e os resultados que obtêm, se parecem,
são todos como que diferentes faces de um mesmo herói – fenômeno que se
denominou monomito. Nas palavras de Campbell:

O ciclo cosmogônico é apresentado com surpreendente consistência nos


escritos sagrados de todos os continentes e dá à aventura do herói uma
nova e interessante conotação – pois agora parece que a perigosa jornada
não foi um trabalho de obtenção, mas de reobtenção, não de descoberta,
mas de redescoberta. Os poderes divinos, procurados e perigosamente
obtidos, segundo nos é revelado, sempre estiveram presentes no coração
do herói. Ele é o ‘filho do rei’ que veio para saber quem é e, assim, passou
a exercitar o poder que lhe cabe”. (CAMPBELL, 2007, p. 42-43)

Ao caracterizar a jornada do herói como um trabalho de reobtenção e


redescoberta, dando ênfase ao prefixo “re” – obter e descobrir novamente –, o
70

estudioso britânico revela um traço de ancestralidade e parentesco entre figuras


míticas de diferentes nações, lugares e tempos. O herói, enquanto “filho do rei”, traz
em seu interior o conhecimento de sua condição e de seu destino. O que ele
necessita, então, é redescobrir-se: procurar-se em seu âmago e revelar-se, a si e a
todos.
Nesse sentido, é simbólico que Shadow, em Deuses Americanos, seja filho
de Wednesday, isto é, de Odin, o pai-de-todos do panteão escandinavo. Ser filho
biológico de um deus naturalmente o destaca entre os demais seres humanos,
ainda que nenhum poder ou habilidade especial advenha daí, em seu caso. Tudo o
que recebe de seu pai é a orfandade, até o momento em que o encontra no avião
e, depois, decide passar a acompanhá-lo, sem consciência de que se trata de seu
pai.
Até o momento em que o texto revela a ascendência de Shadow, o fato dele
ter sido marcado pelo destino para iniciar sua jornada, se envolver no imbróglio dos
deuses, dá a impressão de ter ocorrido, não por qualquer razão que o destacasse
enquanto alguém capaz de grandes feitos, mas talvez pela mera conveniência de
se tratar de um alvo fácil – um homem perdido que não tem para onde ir nem o que
fazer. Porém, o conhecimento de seu vínculo de sangue com o deus inverte a lógica,
e o leitor passa a acreditar que tudo o que acontece com ele se dá pelo fato de ser
quem é.
Segundo Campbell (2007, p. 41), “O herói composto do monomito é uma
personagem dotada de dons excepcionais”. Tal particularidade, no caso de
Shadow, requer alguma especulação sobre a natureza do que seriam seus dons
excepcionais, afinal seus atos que evocam algo de heroísmo são escassos e
pulverizados ao longo da narrativa: um jogo de damas arriscado contra um deus em
que aposta sua própria vida aqui (GAIMAN, 2016, p. 92-94), uma ação de justiça
social em que devolve uma quantia de dinheiro a uma garçonete para compensar
uma subtração por parte de Wednesday lá (GAIMAN, 2016, p. 301); são ações que
se dão em momentos muito diferentes, com um longo período de tempo transcorrido
entre uma e outra, e que não geram um grande impacto na narrativa, senão à
medida em que ilustram tanto um potencial que está adormecido em Shadow,
quanto um caráter que tende a fazer justiça. Sobre o jogo de damas, inclusive,
Wednesday classifica desta maneira: “Foi bom. Muito, muito idiota da sua parte.
Mas bom” (GAIMAN, 2016, p. 97) e, mais tarde, ao elogiar novamente a ação de
71

Shadow, ele diz “Eu o convenceria mais cedo ou mais tarde, mas você o deixou
mais motivado do que eu teria conseguido” (GAIMAN, 2016, p. 113).
Isso até o momento em que passa pelo sacrifício em que fica amarrado a
uma “Árvore do Mundo” (GAIMAN, 2016, p. 430) por nove dias e nove noites,
momento em que passa pelo mundo dos mortos e retorna. A partir daí, há uma
concentração de atitudes de sua parte que podem ser vistas como plenamente
heroicas; porém, isso se dá num momento bem avançado da narrativa, já na terceira
parte do livro, denominada de “O momento da tempestade”.
Tendo isso em vista, são mais classificáveis como “dons excepcionais”, no
caso de Shadow, o fato de que, apesar de sua aparente “normalidade”, ou antes
falta de “excepcionalidade”, o destino dá mostras de tê-lo escolhido como campeão:
ele tem sonhos proféticos e recebe ajuda de deuses e outros seres sobrenaturais,
que o protegem e guiam em muitos momentos, como quando está passando pelo
submundo e o sr. Íbis, em sua forma mitológica de pássaro, se oferece para ser seu
psicompompo – “um sinônimo rebuscado de acompanhante” (GAIMAN, 2016, p.
456), em suas próprias palavras – e, quando Shadow lhe indaga por que faz isso,
alegando que nunca acreditara neles (nos deuses), obtém como resposta: “Não
importa que você não acreditasse em nós. Nós ainda acreditávamos em você”
(GAIMAN, 2016, p. 457). Tal afirmação é uma demonstração de fé e esperança,
sentimentos geralmente reservados a humanos em relação a seus deuses, e não o
contrário. Ademais, em um romance em que a crença dos mortais em seus mitos é
a razão de sua existência enquanto seres sociais, é de se supor que a fé de um
deus em um mortal produza também algum efeito sobre o último.
Conclui-se, assim, que Shadow possui como dons, pelo menos: sua
ascendência divina; o fato de ter sido escolhido para acompanhar Wednesday e,
assim, estar sempre na companhia de deuses, o que implica em envolver-se em
seus assuntos, ser testemunha de eventos sobrenaturais e ingressar, por vezes,
nos “Bastidores” (“Imagine que é como estar nos bastidores. Como se fosse um
teatro, ou coisa parecida. Acabei de nos tirar da plateia, agora estamos caminhando
pelos bastidores. É um atalho” (GAIMAN, 2016, p. 332)); uma certa clarividência,
manifestada através de sonhos; e a fé dos deuses em si depositada.
Além dos referidos dons excepcionais que possui, de acordo com Campbell,
o herói é, também, “ele mesmo o centro do mundo, o ponto umbilical através do
qual as energias da eternidade irrompem no plano temporal” (CAMPBELL, 2007, p.
72

46), e o efeito de sua aventura bem-sucedida é “a abertura e a liberação do fluxo de


vida no corpo do mundo” (CAMPBELL, 2007, p. 43), mundo este que sofre de uma
“deficiência simbólica” (CAMPBELL, 2007, p. 41), razão pela qual o herói nele se
encontra.
Como já se expôs, Shadow, apesar de protagonizar a narrativa, participa do
conflito entre os deuses de uma perspectiva marginal, não como uma figura na linha
de frente das ações, mas como um subalterno que mais testemunha do que age.
No entanto, para Campbell (2007, p. 48), o Centro do Mundo é ubíquo: “o Todo está
em todos os lugares e qualquer lugar pode tornar-se a sede do poder. Qualquer
folha de grama pode assumir, no mito, a figura do salvador”. Neste sentido, não há,
portanto, contradição entre a marginalidade de Shadow em relação ao embate entre
os deuses e sua centralidade enquanto “ponto de liberação do fluxo de vida no corpo
do mundo”, ou seja, aquele que é responsável pela desobstrução que permite que
a energia vital flua e cure o mundo que padece de deficiência simbólica.
Em outras palavras, ao empreender sua jornada, seguindo,
inadvertidamente, os estágios pelos quais passa o monomito, Shadow, correndo
pela margem, no ponto mais crítico da narrativa, desloca-se até o centro, o local
onde está tendo lugar a batalha final, e a interrompe, dissipando, assim, as nuvens
negras da tempestade que se debruçava sobre o mundo.
Cabe, então, analisar mais pormenorizadamente essa jornada empreendida
por Shadow, a exemplo de outros “portadores simbólicos do destino de Todos”
(CAMPBELL, 2007, p. 40), que se dão em três grandes estágios e são assim
subdivididos:
A separação ou partida, o primeiro grande estágio, é composto por: 1) “O
chamado da aventura”; 2) “A recusa do chamado”; 3) “O auxílio sobrenatural”; 4) “A
passagem pelo primeiro limiar”; e 5) “O ventre da baleia”.
A iniciação, também chamado de estágio das provas e vitórias, se compõe
assim: 1) “O caminho das provas”; 2) “O encontro com a deusa”; 3) “A mulher como
tentação”; 4) “A sintonia com o pai”; 5) “A apoteose”; e 6) “A bênção última”.
Por fim, o retorno e reintegração à sociedade assim se divide: 1) “A recusa
do retorno”; 2) “A fuga mágica”; 3) “O resgate com ajuda externa”; 4) “A passagem
pelo limiar do retorno”; 5) “Senhor dos dois mundos”; e 6) “Liberdade para viver”.
Cada um dos três grandes estágios e suas respectivas subdivisões possuem
um significado simbólico dentro do percurso do herói. No caso de Shadow, esses
73

estágios são percorridos não como se ele subisse uma escada em que pisasse em
cada degrau, um por vez, até atingir o topo onde teria atravessado, por fim, todos
os estágios. Não se trata, portanto, de uma trajetória linear. Não obstante, é possível
identificar, se não todos, pelo menos a maioria desses estágios no caminho que
Shadow traça. Tendo isso como norte, o que segue é uma análise comparativa de
cada um desses marcos na jornada do herói monomítico em relação aos momentos
em que eles podem ser localizados em Deuses Americanos.
Tomando como ponto de partida, então, o primeiro grande estágio, qual seja,
o da separação ou partida, tem-se como um primeiro passo o “chamado à aventura”,
que consiste na presença de uma personagem, geralmente com poderes
sobrenaturais ou estrangeira, “de fora”, que, portanto, tem conhecimento de outras
realidades ignoradas até então pelo herói.
Wednesday, nesse sentido, é o primeira personagem que se pode identificar
como o que Campbell chama de arauto ou guia. Segundo o autor de O herói de mil
faces, “O arauto ou agente que anuncia a aventura, por conseguinte, costuma ser
sombrio, repugnante ou aterrorizador, considerado maléfico pelo mundo; (...) Pode
ser igualmente uma figura misteriosa coberta por um véu – o desconhecido”
(CAMPBELL, p. 62). Há “uma atmosfera de irresistível fascínio em torno da figura
que aparece subitamente como guia. (...) O elemento que tem de ser encarado, e
que, de alguma forma, é profundamente familiar ao inconsciente – apesar de
desconhecido, surpreendente e até assustador para a personalidade consciente, se
dá a conhecer; e aquilo que antes tinha sentido pode tornar-se estranhamente sem
valor” (CAMPBELL, p. 64).
Wednesday, em sua primeira aparição na narrativa, quando o leitor ainda
não sabe quem é ele, faz um sinal mostrando seu relógio para Shadow, quando
este passa por ele, de forma parecida com o coelho branco em Alice no país das
maravilhas (CARROLL, 2010, p. 15-16) – só que em Deuses americanos, o deus
atribui o atraso a Shadow, e não a si mesmo, como o coelho: “O tempo
definitivamente urge – disse o homem. – Mas, não, não estou com pressa. Estava
apenas preocupado com a possibilidade de que você não conseguisse embarcar”
(GAIMAN, 2016, p. 34). Ambas as figuras – coelho branco e Wednesday –
desempenham em suas respectivas obras, o papel do arauto, aquela figura
misteriosa que chama o herói à aventura.
74

O deus corresponde com a descrição. Ele é um desconhecido, mas sabe


coisas sobre Shadow as quais ele próprio acabara de tomar conhecido, e também
coisas que ele ainda desconhecia. Sabe sobre a morte de Laura e Robbie, sabe
que Shadow acabara de sair da prisão, e que, portanto, não seria fácil para ele
conseguir um novo emprego. Shadow não sente nenhuma simpatia por ele nesse
momento; inclusive, na primeira oportunidade, deixa o avião e aluga um carro para
terminar a viagem até Eagle Point. Na primeira parada, no Jack’s Crocodile Bar,
Wednesday está lá esperando por ele – como se o perseguisse, porém sempre se
adiantando a ele.
Até mesmo a aparência física de Wednesday traz algo “sombrio,
aterrorizador ou repugnante” – seu “sorriso enorme que não transmitia simpatia
nenhuma” (GAIMAN, 2016, p. 34), seus olhos díspares, que levam Shadow a
concluir que um deles era de vidro (p. 49). Esses olhos também podem ser
responsáveis por provocar a familiaridade inconsciente a que Campbell se refere,
afinal se trata de um traço marcante da figura mítica do deus Odin, além da
brincadeira com o seu nome: wednesday, que corresponde à quarta-feira no
português, em inglês significa, etimologicamente, “dia de Odin”:

“Wednesday tem três partes ou morfemas (Wedene- + -s + day), que


emanaram do inglês arcaico wodnesdæg ‘Woden’s day’, uma tradução
germânica emprestada do latim dies Mercurii ‘dia de Mercúrio’. (...)
Historicamente, a primeira parte Wedne- veio do inglês arcaido Woden
(madeira) ou Odin, ‘deus teutônico chefe, o Pai-de-Todos, louco, inspirar,
elevar-se espiritualmente33’” (JASSEM, 2018, p. 282-283).
Shadow, que não espera encontrar um deus no avião – mesmo porque
“Shadow não era supersticioso. Não acreditava em nada que não pudesse ver”
(GAIMAN, 2016, p. 20) – não racionaliza essas coisas, porém ele já as viu em algum
lugar. Prova disso é que ao entrar no Maior Carrossel do Mundo, no capítulo “SEIS”,
e ver aqueles que acompanhava em suas formas divinas e lendárias, Shadow
reconhece Wednesday como sendo Odin, depois que este lhe diz seus nomes e
símbolos:

Você sabe quem eu sou, Shadow? – perguntou Wednesday. Ele estava


montado no lobo, empertigado. Seu olho direito parecia brilhar, vivo, e o

33
Wednesday has three parts or morphemes (Wedene- + -s + day), which emanated from Old
English wodnesdæg 'Woden's day', a Germanic loan-translation of Latin dies Mercurii 'day of
Mercury'. (...) Historically, the first part Wedne- came from Old English Woden (wood) or Odin 'chief
Teutonic god, the All-Father, mad, inspire, arouse spiritually'” (tradução livre).
75

esquerdo era opaco. Ele trajava um manto, e um capuz cobria sua cabeça,
ocultando seu rosto em meio às sombras. – Eu falei que lhe diria meus
nomes. É assim que me chamam. Alegria da Guerra, Sombrio, Saqueador
e Terceiro. Eu sou o Caolho. Sou chamado de O Mais Alto, e de o Adivinho.
Sou Grímnir e o Encapuzado. Sou o Pai de Todos, e sou Gondlir, Portador
da Varinha. Meus nomes são tantos quanto os ventos, meus tótulos são
tantos quanto as formas de morrer. Meus corvos são Hugin e Munin:
Pensamento e Memória; meus lobos são Freki e Geri; meu cavalo é o
cadafalso. (GAIMAN, 2016, p. 136)

Assim Wednesday se apresenta naquele momento a Shadow, e o


protagonista sabe que tudo isso significa e que se trata de Odin. Logo, é de se
concluir que as lendas são familiares a Shadow, e, por isso, ele as reconhece
quando são invocadas pelo deus através de seus outros nomes e atributos. Ainda
incrédulo, o herói, nesse momento, indaga-se: “Em que devo acreditar?, pensou
Shadow, e a voz que o respondeu veio de algum lugar nas profundezas do mundo,
um ribombo grave: – Acredite em tudo” (GAIMAN, 2016, p. 136).
Estas palavras, o chamado para que Shadow acredite em tudo, são
proferidas pelo homem-búfalo que aparece recorrentemente em seus sonhos e que,
nesse outro nível, mais inconsciente, também pode ser visto como um arauto. Logo
ao sair da prisão, no primeiro avião que embarca, antes daquele em que encontra
Wednesday, Shadow adormece e se vê, em sonho, “na terra e sob a terra”, na
companhia de um ser que “tinha uma cabeça de búfalo peluda e fedida, com olhos
úmidos enormes. O corpo era de um homem, ensebado e lustroso”. Esta criatura
anuncia que “mudanças se aproximam” e que “certas decisões precisarão ser
tomadas”, para depois conclamar a Shadow: “– Acredite. (...) Para sobreviver, você
precisa acreditar” (GAIMAN, 2016, p. 31).
Essa figura misteriosa que aparece em sonhos a Shadow, no momento em
que convoca Shadow a acreditar em tudo, além de anunciar mudanças e tomadas
de decisões iminentes, simboliza que o personagem está, a partir desse momento,
simbolicamente deixando seu território familiar e adentrando o desconhecido, sendo
esse desconhecido aquilo que se pode interpretar como a aventura (palavra que
deriva do latim ad ventura – “aquilo que vem pela frente”) a que Campbell se refere.
A visão do homem-búfalo pode ser identificada como “o surgimento espontâneo da
figura do arauto na psique que está pronta para a transformação” (CAMPBELL,
2007, p. 63); em seu interior, Shadow já estaria se preparando para mudanças em
seu ser que, consciente e racionalmente, ainda não conseguia avistar. Isso vai ao
encontro da ideia de a jornada do herói se tratar de uma jornada de redescoberta e
76

reobtenção discutida anteriormente – em seu âmago, o herói sabe quem é, pois ele
já viveu essa jornada inúmeras vezes sob outras formas; ele é o “filho do rei”, O
herói de mil faces.
Assim, se o temperamento de Shadow, sua aparente passividade e
aceitação do próprio destino, confundem o leitor que porventura espera um
protagonismo mais enérgico, alguém que ao menos tentasse, em contrapartida
domar, dominar, se apossar do próprio destino, o universo onírico, inconsciente da
personagem, com suas visões proféticas, não deixa dúvida de que a personagem
já se encontra em processo de busca por si mesmo. Os elementos que circundam
Shadow em seus sonhos com o homem-búfalo, o aspecto cavernoso – “na terra e
sob a terra” –, a fogueira, a criatura de aspecto mitológico à sua frente e as palavras
proferidas por esta, tudo isso evoca um verdadeiro ritual de iniciação e passagem.
O protagonista, portanto, recebe o chamado para a aventura, tanto por meio
do homem-búfalo em sonho, quanto por meio de Wednesday, a quem Shadow
encontra, após despertar do sonho, no avião seguinte em que embarca, de forma
repentina e misteriosa. O então desconhecido lhe diz coisas estranhas que prova
ser verdadeiras e, além disso, tem um trabalho para Shadow; o herói recusa num
primeiro momento, mas, dadas as circunstâncias, acaba cedendo.
Dessa forma, ele cumpre o primeiro passo no percurso do herói, o qual
“significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do
seio da sociedade para uma região desconhecida” (CAMPBELL, 2007, p. 66), dando
início, então, à sua separação, à sua partida, primeiro estágio da unidade nuclear
do monomito.
Dando sequência, o passo seguinte desse estágio da separação seria,
segundo Campbell (2007, p. 66-67), a recusa do chamado, no qual aquele que
recebe esse chamado endurece seu coração e opta por não aceder – “a recusa é
essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse
próprio”. Aquele que recusa o chamado, desta forma, encara o futuro “em termos
de obtenção e proteção do atual sistema de ideais, virtudes, objetivos e vantagens”.
Como já referido, Shadow flerta com essa alternativa. Após ter estado na
prisão e cumprido sua pena, ganhando novamente a liberdade, não lhe apraz a
perspectiva de correr qualquer risco de retornar ao cárcere. Portanto, alçar-se rumo
ao desconhecido, para ele, não é uma opção muito convidativa. Além do mais, no
momento em que recebe a proposta de Wednesday, Shadow não tinha
77

conhecimento ainda da morte de Robbie; acreditava que seu emprego antigo na


academia da qual o amigo era proprietário ainda o esperava, como este lhe havia
prometido. Portanto, o desejo mesmo de Shadow, e seu primeiro impulso, manter
as vantagens que sua situação atual apresentava – aproveitar essa segunda chance
de levar uma vida tranquilo, sem percalços, que raramente é proporcionada a
pessoas em casos semelhantes.
Entretanto, Wednesday mostra-lhe o jornal com a notícia das mortes tanto
de Laura quanto de Robbie, e Shadow se vê completamente sozinho. De repente,
torna-se difícil recusar a oportunidade oferecida e, ainda que a contragosto, ele
aceita seguir o deus. A partir daí, não demora muito para Shadow receber o
chamado “auxílio sobrenatural”, etapa seguinte, ainda dentro da partida.

Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da


jornada do herói se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é
uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o
protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se.
(CAMPBELL, 2007, p. 74)

Shadow obtém seu primeiro amuleto já na noite em que aceita a proposta de


emprego de Wednesday, no Jack’s Crocodile Bar, portanto ainda na mesma data
em que saíra da prisão, mais cedo. Após fechar o contrato com o Pai de Todos,
fazer suas exigências, selar o acordo bebendo três doses de hidromel e lutar com
Mad Sweeney, um leprechaun, este “tirou do ar uma moeda grande, dourada e
brilhante” (GAIMAN, 2016, p. 52), com a qual lhe presenteia” . No dia seguinte,
Shadow joga essa moeda sobre o túmulo de Laura, como forma de homenageá-la,
já que não conseguiu fazê-lo com palavras:

Ele queria dizer algo a Laura e estava disposto a esperar até descobrir o
que era. Aos poucos, o mundo começou a perder luz e cor. Os pés de
Shadow estavam ficando dormentes, enquanto as mãos e o rosto doíam
por causa do frio. Ele enfiou as mãos ainda mais fundo nos bolsos para se
aquecer, e os dedos envolveram a moeda de ouro.
Ele se aproximou da cova.
- Isto é para você – disse.
Algumas pás de terra já haviam sido jogadas em cima do caixão, mas ainda
faltava um bocado para encher o buraco. Ele jogou a moeda de ouro na
cova de Laura e depois um pouco de terra em cima para esconder o objeto
da ganância alheia. Limpou a terra das mãos e disse:
- Boa noite, Laura. – Depois de um instante, acrescentou: - Sinto muito.
(GAIMAN, 2016, p. 62-63)
78

Um dia depois, Shadow recebe outra moeda, dessa vez de prata, na noite
em que passou na residência de Czernobog e das Zoryi, em Chicago. Numa cena
simbolicamente carregada que se passa nos limiares entre o sonho e o despertar,
no terraço da residência, Zorya Polunochnaya, a irmã da meia-noite, “pega “ a lua
e a entrega a Shadow para mantê-lo em segurança, pedindo-lhe que não se desfaça
dela com fez com a anterior (GAIMAN, 2016, p. 101). Antes disso, ela havia lhe
dito:

Você recebeu proteção uma vez, mas a perdeu. Você a deu para outra
pessoa. Teve o sol nas suas mãos. E isso é como a própria vida. Só posso
dar uma proteção muito mais fraca. A filha, não o pai. Mas qualquer ajuda
vale. Não é? (GAIMAN, 2016, p. 100-101)

Assim, revela-se que a moeda dourada que Shadow recebeu de Mad


Sweeney era o sol, o pai, e a moeda prateada que recebeu de Zorya Polunochnaya
era a lua, a filha; uma ajuda masculina e uma feminina, portanto. Além disso,
segundo a deusa eslávica, o sol é como a própria vida; recordando que Shadow
não propriamente a perdeu, mas deu-a como presente de despedida a Laura, e que
esta, mais tarde, se levanta da cova e conversa com Shadow em vários momentos,
além de ser sua principal assistência num sentido mais prático, matando seus
sequestradores e libertando-o, por exemplo e, mais tarde, desempenhando papel
importante no desfecho da trama ao atravessar Loki com uma lança, é como se o
amuleto masculino se convertesse em mais uma ajuda feminina.
Acerca da figura feminina como proteção sobrenatural, Campbell (2007, p.
76) invoca seres tão diversos quanto a anciã solícita; a fada-madrinha; a Virgem
Maria para os cristãos; Beatriz, d’A divina comédia; Ariadne, cujo fio guia Teseu pelo
labirinto do Minotauro; entre outras, afirmando ainda o seguinte:

O herói que estiver sob a proteção da Mãe Cósmica nada sofrerá. (...) Essa
figura representa o poder benigno e protetor do destino. A fantasia é uma
garantia – uma promessa de que a paz do Paraíso, conhecida pela
primeira vez no interior do útero materno, não se perderá, de que ela
suporta o presente e está no futuro e no passado (...).

As moedas que Shadow recebe – os amuletos que surgem como um auxílio


sobrenatural –, de acordo com a leitura de Campbell sobre a trajetória do herói, são
assim identificados como o próprio destino a intervir em favor de Shadow. O poder
79

benigno da Mãe Cósmica, o aspecto feminino maternal do universo, se manifesta


triplamente nesse momento da narrativa:
1) Laura, reanimada pelo Sol, intervirá em vários momentos, eliminando
obstáculos, como nos exemplos mencionados acima, mas também dialogando com
Shadow, fazendo-o perceber-se, conscientizar-se da própria inação, despertando
sua vontade de fazer coisas que alguém que está vivo;
2) A moeda de prata lhe é entregue por uma deusa, Zorya Polunochnaya,
que manifesta o intuito de, dessa forma, protegê-lo, zelar por ele;
3) A moeda de prata representa a Lua – a filha, como disse Zorya
Polunochnaya –, e, além disso, traz a efígie da Estátua da Liberdade. Quando
Shadow está amarrado em uma sala em que é interrogado e espancado pelos
agentes Wood e Stone, que representam os deuses modernos, ao se ver sozinho,
o protagonista volta sua atenção para a moeda de prata que está em sua mão.
“Ainda um pouco adormecido e delirante, a moeda, e a noção de liberdade, e a lua,
e Zorya Polunochnaya, tudo se entrelaçou em um raio de luz prateada que descia
das profundezas celestiais, e ele subiu correndo pelo raio, para longe do luto e do
medo, para longe da dor e, felizmente, de volta para os sonhos...” (GAIMAN, 2016,
p. 150). Depois desse pensamento, ao acordar, Laura está ali ao seu lado, e ele é
libertado.
De maneira semelhante ao que foi afirmado sobre os sonhos que Shadow
tem, o recebimento de amuletos, portanto de auxílio sobrenatural, dá ainda mais
indícios do status do protagonista enquanto escolhido, campeão do destino, aquele
a quem os seus dons são oferecidos. Tal qual uma Excalibur, a qual só poderia ser
retirada da rocha e portada por aquele que dela fosse digno, amuletos como as
moedas que representam o Sol e a Lua e que oferecem proteção a quem os carrega
supostamente só são oferecidos àquele que, também, por sua vez, seja merecedor
dessa proteção especial.
Além dos amuletos, a ajuda sobrenatural pode se manifestar sob a forma de
acompanhantes, guias, figuras que acompanham o herói em sua jornada. Campbell
(2007, p. 77) associa essa função principalmente a figuras masculinas, de caráter
que classifica como “mercurial”, as quais figuram nas diferentes mitologias:

Não é incomum que o ajudante sobrenatural assuma a forma masculina.


(...) As mitologias mais elevadas desenvolvem o papel na grande figura do
guia, do mestre, do barqueiro, do condutor de almas para o além. No mito
80

clássico, esse guia é Hermes-Mercúrio; no mito egípcio, costuma ser Tot


(o deus em forma de íbis, o deus em forma de babuíno); e, na mitologia
cristã, o Espírito Santo. Goethe apresenta o guia masculino, no Fausto,
como Mefistófeles – e não é incomum que o aspecto perigoso da figura
“mercurial” seja enfatizado; pois ele é o condutor do espírito inocente para
os reinos da provação.

Carl G. Jung, no livro Os arquétipos e o inconsciente coletivo, dedica um


capítulo à psicologia da figura do trickster, a qual ele identifica ao mito clássico do
deus Mercúrio, que possui certas características como “sua tendência às
travessuras astutas, em parte divertidas, em parte malignas (veneno!), sua
mutabilidade, sua dupla natureza animal-divina, sua vulnerabilidade a todo tipo de
tortura e – last but not least – sua proximidade da figura de um salvador” (JUNG,
2000, p. 251).
Na mitologia nórdica, costuma-se reservar descrição similar a esta a Loki,
que figura como personagem de Deuses Americanos em Low Key Lyesmith (nome
que pode ser traduzido como “artífice de mentiras discreto” – muito similar à
descrição ao Mercúrio de Jung), o já mencionado ex-companheiro de cela de
Shadow, que vem a se revelar também como Mr. World, o líder da “oposição”.
Convém lembrar que Low Key Lyesmith-Mr. World-Loki é, além de tudo, o parceiro
de Wednesday no golpe que ambos aplicam nos outros deuses. Enquanto colega
de prisão de Shadow, é Low Key que lhe empresta o livro de Heródoto que Shadow
cita em certa altura, Histórias – “Não se pode dizer que um homem é feliz até ele
estar morto” –, além de contar piadas de humor negro e, ao sair da prisão, deixar
moedas escondidas para que Shadow pudesse praticar seus truques (GAIMAN,
2016, p. 18-20). Nesse sentido, ele mesmo desempenha, por certo tempo, o papel
de acompanhante, de certa forma guiando Shadow na vida atrás das grades.
No entanto, merece destaque o papel performado por Wednesday, tanto em
relação a Shadow quanto à obra como um todo. É ele a perfeita figura mercurial no
romance de Gaiman. Ele é a companhia mais constante de Shadow – portanto, num
sob esse ponto de vista, ele é um acompanhante, um guia de Shadow, ainda que
este tenha sido contratado pelo deus para esta função; além do mais, é através dele
que o protagonista é apresentado a todos os outros deuses e levado a experenciar
os “bastidores” – que mais abaixo será discutido no estágio da “travessia do primeiro
limiar”. Wednesday mais de uma vez realiza furtos para conseguir dinheiro, sempre
através do uso do engano e da trapaça – são exemplos o roubo do banco em
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Chicago, em que recebe assistência de Shadow, ambos se fazendo passar por


policiais, e a subtração do pagamento à garçonete, casos já citados aqui
anteriormente. O deus também tem a habilidade de mudar de expressão para
parecer frágil, artifício que também utiliza para praticar furtos:

Shadow observou Wednesday ficar cada vez mais confuso e constrangido.


De repente, ele lhe pareceu muito velho. A moça lhe devolveu o dinheiro e
passou a compra no cartão, depois estornou o valor e pegou o dinheiro,
depois devolveu o dinheiro e passou outro cartão. Wednesday estava
claramente à beira das lágrimas, um senhor idoso desamparado diante da
marcha implacável do plástico no mundo moderno. (GAIMAN, 2016, p. 58)

Shadow viria a concluir, em outro momento, no qual Wednesday parecera


“totalmente sincero” a respeito do que lhe dizia, que o ditado que diz que “quem
consegue fingir sinceridade consegue qualquer coisa” é verdadeiro (GAIMAN, 2016,
p. 303). Essas qualidades apresentadas por Wednesday vão ao encontro das
características do trickster descritas por Jung – mutabilidade, gosto por travessuras
astutas –, bem como do guia mencionado por Campbell.
Outros acompanhantes surgem no caminho de Shadow. Sobretudo quando
ele morre na Árvore do Mundo e faz sua travessia pelo mundo dos mortos.
Interessante é que dois desses acompanhantes são mulheres, em contraposição à
afirmação de Campbell de que esse papel costuma ser desempenhado, nas
mitologias, por figuras masculinas. A primeira mulher a guiá-lo nesse momento é,
novamente, Zorya Polunochnaya; após, Bastet, a quem Shadow conheceu sob a
forma de uma gata quando esteve em Cairo, Illinois, trabalhando na funerária com
os srs. Íbis e Jacal; a terceira figura que o guia pelo submundo é, justamente, o sr.
Íbis, que se oferece como psicopompo – convém lembrar que o sr. Íbis é uma
representação do deus egípcio Tot, mencionado por Campbell no trecho citado mais
acima e se trata, dessa vez, de mais uma figura masculina a guiar Shadow.
Nesse ponto, se faz oportuno seguir adiante ao próximo passo da viagem do
herói: a “passagem pelo primeiro limiar”. Ao descer a escada de degraus imensos
que pareciam ter sido escavados e percorridos por gigantes, junto à base da qual
Zorya Polunochnaya o esperava para ser sua primeira acompanhante, Shadow
atravessa o limiar e adentra uma região desconhecida:

Tendo as personificações do seu destino a ajudá-lo e a guiá-lo, o herói


segue em sua aventura até chegar ao “guardião do limiar”, na porta que
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leva à área da força ampliada. Esses defensores guardam o mundo nas


quatro direções – assim como em cima e embaixo –, marcando os limites
da esfera ou horizonte de vida presente do herói. Além desses limites,
estão as trevas, o desconhecido e o perigo (...). (CAMPBELL, 2007, p. 82)

Shadow atravessa essa passagem do primeiro limiar sem que haja essa
figura do guardião referida por Campbell, que tentaria lhe impedir a passagem ou
ao menos avisar-lhe dos riscos que ele está por encontrar. Um exemplo clássico
dessa espécie de guardião é Cérbero, o monstruoso cão de três cabeças que
guarda a entrada para o Hades, o mundo dos mortos da mitologia grega. O
protagonista de Deuses Americanos atravessa entrada semelhante a essa sem
passar por monstro algum. No entanto, ele recebe um alerta de Zorya
Polunochnaya: “– Todas as suas perguntas podem ter resposta, se é isso que você
quer. Mas, depois que se descobre as respostas, não há como deixar de saber quais
são. Você precisa compreender isso” (GAIMAN, 2016, p. 448).
Segundo Campbell, um dos sentidos da presença de um guardião na entrada
do limiar é o aspecto de proteção. “É melhor não desafiar o vigia dos limites
estabelecidos”, diz ele, “E, no entanto, somente ultrapassando esses limites,
provocando o outro aspecto, destrutivo, dessa mesma força, o indivíduo passa, em
vida ou na morte, para uma nova região da experiência” (CAMPBELL, 2007, p. 85).
Assim, Shadow, passando pelo limiar, adentra essa região de perigos, guardada
por forças vigilantes com as quais deve lidar, e o faz tendo recebido o aviso de que
não deixará de saber as respostas para suas perguntas. Em outras palavras, as
mudanças pelas quais está por passar são permanentes, ele não poderá esquecer
delas.
Já tendo adentrado essa região, atravessado esse primeiro limiar, que é,
simplesmente, o limite, portanto já tendo dado o “primeiro passo na sagrada área
da fonte universal”, uma área de “campos livres para a projeção de conteúdos
inconscientes” (CMPBELL, 2007, p. 83), Shadow está no interior do “ventre da
baleia”, o quinto e último nível da separação.

A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma


esfera de renascimento é simbolizada na imagem mundial do útero, ou
ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do
limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu.
(CAMPBELL, 2007, p. 91)
83

Esse nível representa a necessidade de o herói passar por um processo de


auto aniquilação para, a partir disso, renascer metamorfoseado. Shadow chega a
esse estágio através de um sacrifício muito grande, que se assemelha à crucificação
de Jesus Cristo; o herói de Deuses Americanos, entretanto, não visa, nesse
momento, purgar os pecados do mundo, mas tão somente velar pela morte de
Wednesday. Não obstante, seu sacrifício ainda assim demonstra o desapego do
herói pelo próprio ego, o que o permite ir e voltar pelos horizontes do mundo, e é aí
que reside seu poder.
O primeiro passo dentro do segundo grande estágio do percurso do herói,
denominado de iniciação, é, justamente, o “caminho de provas”, os perigos que o
herói encontra em sua travessia pela região desconhecida. Isso significa que, não
somente o herói deve ser capaz de um grande auto sacrifício, como também deve
se provar capaz de passar por obstáculos para fazer o seu caminho de volta. “Tendo
cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas
curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de
provas” (CAMPBELL, 2007, p. 102).
O local em que Shadow se encontra corresponde a esse cenário: “A árvore
tinha sumido, e o mundo tinha sumido, e o céu cinzento da manhã tinha sumido. O
céu estava cor de meia-noite. Uma única estrela brilhava no alto, uma luz intensa e
inconstante, e mais nada” (GAIMAN, 2016, p. 447). Zorya Polunochnaya pergunta
como ele está e ele responde: “Não sei. Devo estar em outro sonho estranho na
árvore. Tenho tido esses sonhos doidos desde que saí da cadeia” (GAIMAN, 2016,
p. 448). O fato de que Shadow pensa estar em um sonho revela o aspecto de
paisagem onírica do local onde se acha; porém, o alerta feito, de modo solene, pela
deusa que o acompanha sobre as respostas que ele pode encontrar e que o
modificarão vem em resposta à suposição dele.
Diante de Shadow, a trilha se bifurcava, e ele soube que teria que optar por
um caminho. Zorya anuncia que um caminho é o das verdades difíceis, e o outro,
das belas mentiras, e que nenhum deles é seguro. Shadow hesita, mas decide: “–
Verdades – respondeu. – Já cheguei longe demais para ter apenas mentiras”
(GAIMAN, 2016, p. 449). A deusa lhe diz que há um preço: ele tem de entregar o
seu nome verdadeiro. Este nome não é revelado ao leitor, mas ela o toma dele
puxando-o de dentro de sua cabeça.
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Ele, então, segue pelo caminho indicado e vê a si mesmo em vários


momentos-chave de sua vida. Na cadeia enquanto ouvia a notícia da morte de
Laura; o momento em que cometia o crime que o levara a prisão: a agressão aos
homens que não haviam pago a ele o dinheiro pela sua participação em um roubo
– sua participação consistira em dirigir para eles; o julgamento que determinou sua
sentença, o qual não levou em conta o assalto, somente a agressão; o momento
em que sua mãe morria no hospital, em que ele estava sentado ao lado dela, lendo
um livro bem grosso – “Shadow queria sacudir aquele seu eu, o menino introvertido
que tinha sido, fazê-lo segurar a mão da mãe, falar com ela, fazer alguma coisa
antes que ela se fosse” (GAIMAN, 2016, p. 451); uma discussão entre ele e a mãe,
agora mais nova e ainda antes de haver adoecido, em que Shadow perguntava
sobre seu pai; e, enfim, a noite de sua concepção: primeiro, ele vê sua mãe muito
jovem, “pouco mais que uma criança”, dançando com um homem que ele reconhece
como Wednesday: “Shadow não ficou nem um pouco surpreso ao reconhecer o
homem dançando com a mãe. O sujeito não tinha mudado muito em trinta e três
anos” (GAIMAN, 2016, p. 452).
Essa é a primeira das provas pelas quais Shadow tem que passar: ele deixa
para trás o seu próprio nome, o seu nome verdadeiro, o que indica que ele já deixou,
definitivamente, de ser quem era. Ele então assiste a momentos importantes de sua
vida de uma outra perspectiva, como um espectador, de modo a reconhecer e
encarar suas verdades. Dito de outro modo, ele precisa, nesse momento,
abandonar simbolicamente a si mesmo para, só então, reconhecer-se por completo,
desde o momento em que foi gerado.
Passado esse primeiro momento, Shadow encontra com Bastet, que lhe
mostra que ele agora tem de escolher entre três caminhos que tem adiante: “– (...)
Um dos caminhos vai deixá-lo sábio. Outro vai fazê-lo completo. E outro, morto”
(GAIMAN, 2016, p. 453). Shadow resolve confiar nela e deixar que escolha por ele;
o custo do caminho escolhido é o coração dele, o qual deixa que a deusa egípcia
pegue. Ele vai pela trilha que ela designou, a do meio, e não estava com medo: “O
medo tinha morrido na árvore, junto com Shadow. Não restava mais medo, nem
ódio, nem dor. Restava apenas a essência” (GAIMAN, 2016, p. 255).
Esse estado em que se encontra, em que resta apenas sua mais pura
essência, corresponde com o que Campbell (2007, p. 105) afirma ser o segundo
estágio do Caminho, no vocabulário dos místicos: o estágio da “purificação do eu”,
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em que há uma purificação dos sentidos, que se tornam humildes, enquanto que os
interesses e energias se concentram em coisas transcendentais. Num vocabulário
mais moderno,

(...) trata-se do processo de dissolução transcendência ou transmutação


das imagens infantis do nosso passado pessoal. Em nossos sonhos, os
perigos, gárgulas, provações, auxiliares secretos e guias ainda são
encontrados à noite; e podemos ver refletidos, em suas formas, não
apenas todo o quadro da nossa presente situação, como também a
indicação daquilo que devemos fazer para ser salvos.

Shadow, assim, já revisitou o seu passado e perdeu seu nome e seu coração.
Metaforicamente, foi purificado de seus sentimentos e de seus interesses nas coisas
mundanas. Ele agora está limpo, e também ciente de todo o quadro de sua presente
situação, em especial sobre a paternidade de Wednesday. Então, de posse apenas
de sua essência, ele segue sua travessia na escuridão, e o que ele encontra é um
lago subterrâneo, e, sobre ele, um barco baixo e achatado, conduzido por uma
figura alta, com uma “cabeça de pássaro bem pequena sobre um pescoço comprido,
com um pescoço curto e alto” (GAIMAN, 2016, p. 455). É o sr. Íbis que está ali para
guiá-lo pela última etapa, para ser seu psicopompo.

Todos nós temos muitas funções, muitas formas de existir. Quando penso
em mim mesmo, eu me vejo como um erudito que leva uma vida pacata e
compõe historietas e sonha com um passado que pode ou não jamais ter
existido. E isso é verdade, de certa forma. Mas também sou, em uma de
minhas atribuições, como muitos dos outros com quem você optou por se
relacionar, um psicopompo. Acompanho os vivos até o mundo dos mortos.
(GAIMAN, 2016, p. 457)

Interessante notar a observação do sr. Íbis de que ele, em sua atribuição


naquele momento, é como muitos dos outros com quem Shadow optou por se
relacionar. Como tem sido argumentado ao longo deste capítulo, o protagonista teve
muitos acompanhantes ao longo do romance até esse ponto da narrativa, muitos
seres a guiá-lo, tanto em sonho quanto acordado. Todos contribuíram para o
caminho que teve de percorrer até sua realização última, mesmo aqueles que, como
Wednesday, tinham outras intenções. Neste caso em particular, Shadow era uma
peça importante em um jogo complexo de movimentos ilusórios, alguém que estava
ali para ser uma distração e para, ao final, ser sacrificado. E a estratégia teria
funcionado perfeitamente, não fosse o protagonista ter sido capaz de transcender a
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si mesmo. Outros personagens, como o próprio sr. Íbis, apesar de não terem com
ele o mesmo vínculo familiar do deus nórdico, se deixam cativar e o auxiliam por se
afeiçoarem a ele – o deus egípcio chega mesmo a solicitar que fosse ele o
acompanhante de Shadow até o mundo dos mortos.
Assim, na companhia do sr. Íbis, Shadow chega diante do deus-chacal
Anúbis, o sr. Jacal, que também havia conhecido na funerária em Cairo, Illinois. Ali,
toda a sua vida é examinada, todos os seus atos que lhe causavam vergonha, culpa,
remorso. Depois disso, seu coração é posto em uma das bandejas de uma balança,
enquanto na outra é colocada uma pena – pena esta que o sr. Jacal, ainda em
Cairo, revelara a Shadow ser bem pesada. “Mandamos fazer sob encomenda. A
pessoa tinha que ser bem maligna para virar a balança com aquela coisa” (GAIMAN,
2016, p. 202).
A pena e o coração de Shadow, por fim, se equilibram, e com isso ele ganha
o direito de escolher o próprio destino, e ele o faz: “– Quero descansar – disse
Shadow. – É isso o que eu quero. Não quero nada. Nem céu, nem inferno, nada.
Só quero que acabe” (GAIMAN, 2016, p. 460). E Shadow, mesmo que por um breve
momento, recebe o que pediu.
Nesse ponto, algumas observações devem ser feitas. O fato de o coração de
Shadow se equilibrar com a pena, tendo em consideração o conhecimento que se
tem, por meio do sr. Jacal, sobre o peso da pena, demonstra apenas que Shadow
não é uma pessoa maligna; portanto, não aponta para a existência de uma virtude
redentora nele, pelo menos não nesse momento, pelo menos não se comparada
àquilo que pesa em seu coração. Então, pode-se afirmar que, no mínimo, Shadow
é tão cheio de falhas quanto de virtudes, e por isso seu coração e a pena se
equilibram. Ele não é isento disso. Há um anticlímax produzido por essa revelação,
que pode ser traduzido pelas palavras de Bastet:

- Então pronto – anunciou Bastet, com um leve tom de pesar. – Só mais


uma caveira para a pilha. Que pena. Eu tinha esperança de que você fosse
fazer algum bem, tendo em vista a atual circunstância. É como assistir a
um acidente de carro e câmera lenta e não ter poder algum para impedir.
(GAIMAN, 2016, p. 460)

Não fica claro se Shadow poderia ter optado, por poder escolher o próprio
destino, de livre e espontânea vontade, retornar à vida nesse instante, mas pela
reação de Bastet, logo após o veredito da balança, portanto antes de Shadow
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anunciar sua escolha, denota que aquilo significava que o protagonista apenas
morrera, como tantos outros – “só mais uma caveira para a pilha” –, o que dá a
entender que qualquer um dos destinos que Shadow poderia escolher seria em
relação à sua vida após a morte. Por conta disso, não é possível afirmar se Shadow
teria escolhido retornar e acertar as contas, como no final ele o faz, caso essa opção
lhe tivesse sido dada, pois não foi uma opção: ele foi despertado.
Assim, é sabido que Shadow não permanece morto como desejara. As
etapas seguintes do grande estágio da iniciação – à exceção da terceira,
denominada “a mulher como tentação” – têm a ver com o momento da ressurreição
vivido por Shadow. Essas etapas são as seguintes: “o encontro com a deusa”; “a
sintonia com o pai”; “apoteose”; e “a bênção última”. Se nas etapas anteriores foi
possível localizar pontualmente, na figura de personagens e instantes do romance,
correspondências diretas, como foi o caso dos amuletos e dos guias, nas etapas
que seguem, o significado, aquilo que elas simbolizam, têm uma repercussão muito
maior dentro da obra de Gaiman, sendo por sua vez mais difícil encontra-las
cristalizadas em figuras específicas.
Na divisão feita por Campbell (2007, p. 111), a etapa posterior ao caminho
de provas se chama “o encontro com a deusa”. “A aventura última, quando todas
as barreiras e ogros foram vencidos, costuma ser representada como um
casamento místico (hierógamos) da alma-herói triunfante com a Rainha-Deusa do
Mundo”. Essa etapa simboliza o “final feliz” da jornada do herói, o momento de
colher os frutos das sementes plantadas, e é possível vê-la representada quase que
ad nauseam em narrativas ficcionais, principalmente no cinema e nas novelas de
televisão, quando muitos personagens se encontram reunidos na mesma
celebração de um casamento entre o mocinho e a mocinha. A “deusa”, neste caso,
corresponde ao

modelo dos modelos de perfeição, a resposta a todos os desejos, de onde


provêm as bênçãos da busca terrena ou divina de todo o herói. É a mãe, a
irmã, a amante, a noiva. Tudo o que o mundo possui de sedutor, tudo o
que nele for promessa de gozo, constitui indício de sua existência tanto
nas profundezas do sono, quanto nas florestas e cidades do mundo.
(GAIMAN, 2016, p. 112)

Portanto, pode-se concluir que o encontro ou casamento com a deusa


simboliza a concretização dos desejos do herói, a obtenção daquilo que o seduz,
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do que lhe traz prazer, o que se realiza como forma de prêmio ou recompensa pelos
perigos vividos e suplantados, pelo sacrifício e abnegação pessoal. Como diz
Campbell, a existência mesma de uma figura correspondente à da deusa revela, na
verdade, a presença de elementos que capturam a vontade do herói, que
constituem para ele objetos de desejo.
A maneira como esse aspecto da jornada do herói é trabalhado por Gaiman
em Deuses Americanos é descentralizada, na medida em que não há um ponto de
culminação, de realização última, concentrado na celebração de uma união, por
exemplo. Ao contrário disso, logo no início, há uma ruptura de uma união
preexistente, de Shadow com Laura.
Viu-se que Shadow, na cadeia, “passou muito tempo pensando no quanto
amava a esposa” (GAIMAN, 2016, p. 17) e que ele sintetizou todos os seus maiores
desejos em uma lista do que iria fazer quando fosse solto, lista esta que tinha como
conteúdo três itens apenas: 1) tomar um longo banho de banheira, com direito a
bolhas de sabão; 2) após se secar e vestir um roupão, levaria sua esposa para o
quarto, pegando-a nos braços, e fecharia a porta; 3) depois que eles saíssem do
quarto, ele ficaria na dele, evitando problemas pelo resto da vida.
Estes constituem os objetos de desejo do protagonista do romance de
Gaiman. Entretanto, ele viria a realizar somente o primeiro item, na primeira
oportunidade que teve, no hotel em que esteve hospedado em Eagle Point, após o
funeral de Laura. Os outros dois itens ficaram indisponibilizados pela morte de Laura
e Robbie e pelo aceite do trabalho que Wednesday lhe oferecera.
Logo, há uma ruptura entre Shadow e seus desejos, pois eles ficam
impossibilitados. A “deusa” de Shadow, no sentido usado por Campbell, nesse
momento é Laura, e, apesar de eles já serem casados, o longo afastamento
causado pelo encarceramento resultaria, caso ela continuasse viva, em uma
reunião; consistiria na realização do encontro com a deusa, na recompensa de
Shadow por ter aguentado seu tempo na cadeia, cumprido sua pena, com
resiliência, refletindo sobre seus erros e ficando longe de problemas que pudessem
lhe causar um aumento de pena. Porém, ele passa por isso e, no fim, no momento
de receber essa recompensa, ela se perde e, como consequência, sua verdadeira
aventura começa.
A aventura nesse ponto consiste em basicamente apenas seguir
Wednesday. Eles visitam Czernobog e as Zoryi em Chicago, depois partem em
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direção à House on the Rock, onde se localiza o Maior Carrossel do Mundo; há uma
reunião entre vários deuses ali, onde Wednesday tenta convencê-los de que há uma
guerra iminente e que eles precisam se preparar para a batalha. Depois disso,
Shadow é sequestrado e Laura aparece para salvá-lo. Esse é o segundo encontro
entre o casal depois do funeral em que Shadow lhe presenteia com a moeda de
ouro que provavelmente é responsável pela sua reanimação. Na conversa que eles
têm nessa ocasião, Shadow segue um conselho dado por Zorya Polunochnaya, e
pergunta a Laura o que ela quer. Ela lhe pede que faça com que ela volte a viver, e
ele promete tentar (GAIMAN, 2016, p. 154).
Com isso, a jornada de Shadow ganha um novo propósito: encontrar uma
maneira de devolver a vida verdadeira a Laura, pois ele se sente em dívida por ela
estar cuidando dele. É isso que o motiva a, por vezes, sair um pouco da linha; ele
continua fazendo o que Wednesday manda, indo aonde ele determina, esperando
onde lhe é solicitado esperar. Mas ele passa a ter uma dúvida, uma razão para fazer
perguntas. Essa dúvida não se traduz em questionar Wednesday e sua empreitada,
que ele só descobre ser uma farsa após retornar de sua própria morte, portanto isso
não se torna uma razão para se rebelar; ainda assim, torna-se uma busca individual,
algo que ele quer realizar por conta própria, mesmo que o a pessoa beneficiada
seja Laura, e não diretamente ele.
Além dessa busca pessoal, cabe relembrar que Laura também é responsável
por provocar Shadow quando lhe diz que ele não parecia, aos olhos delas,
realmente vivo: ele parecia com “um buraco em forma de homem aberto no mundo”,
ela dissera. Essa provocação faz com que ele deseje fazer coisas que alguém que
está vivo faria, e é esse pensamento que o leva a decidir se sacrificar por
Wednesday, que, consequentemente, é a causa da verdadeira transformação final
de Shadow.
Essa identificação de Laura como um agente que põe Shadow em
movimento, em busca de coisas, que faz ele querer coisas, relaciona-se com mais
um aspecto da figura da “deusa” de que fala Campbell: “A mulher representa, na
linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é
aquele que aprende. (...) Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o
prendem.” (CAMPBELL, 2007, p. 117).
Pode-se dizer, assim, que Laura desempenha, ao provocar Shadow, o papel
mitológico da mulher que guia, protege e ensina ao herói, fazendo com que ele
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rompa os próprios grilhões na tentativa de conquistá-la. No caso do protagonista de


Deuses Americanos, essa conquista consistiria conseguir devolver-lhe a vida e
passar a ter propósitos e vontades próprias, ser alguém, e não apenas um buraco
no mundo.
No capítulo “DEZESSETE”, que inicia após a vida de Shadow, amarrado à
árvore, já ter se extinguido, depois mesmo de ele já ter sido julgado por Anúbis e
escolhido seu destino final, há uma passagem em que a narrativa adota, ainda com
narração em terceira pessoa, o ponto de vista de Laura. Sob essa perspectiva,
revela-se o seguinte:

Às vezes, os vivos reluziam em sua mente com a serenidade de uma vela,


e às vezes ardiam como tochas. Quando isso acontecia, era fácil evitá-los
e, de vez em quando, de encontrá-los. Lá naquela árvore, Shadow havia
brilhado com uma luz própria muito estranha.
Ela o criticara por não estar vivo naquela vez, no dia em que tinham
caminhado de mãos dadas. Tinha a esperança de, talvez, ver uma fagulha
de emoção pura, algo que indicasse que o homem com quem se casara
era um homem de verdade, alguém vivo. E não vira absolutamente nada.
(...)
Agora, morrendo na árvore, Shadow estava completamente vivo. Ela vira
a vida se esvair do corpo, e ele parecia nítido e real. E pedira para ela lhe
fazer companhia, para passar a noite inteira ali. Ele a perdoara... talvez
tivesse perdoado. Não importava. Shadow havia mudado; era a única
certeza de Laura. (GAIMAN, 2016, p. 465)

Nesse trecho, pode-se perceber que parte da conquista de Shadow já se


realizara: ao passo que sua vida se esgotava, ele estava vivo como nunca, e Laura
pôde testemunhar isso pela luz que ele emitia, que ela conseguia enxergar por estar
morta. Mais do que nunca ele parecia nítido e real; não era mais, portanto, um
buraco no mundo. Antes mesmo de iniciar sua descida à escuridão do submundo,
ou seja, de atravessar o limiar e adentrar o “estômago da baleia”, onde deveria
enfrentar o caminho dos perigos e das provas, Shadow já havia, como observa
Laura, mudado.
Antes de sua via se extinguir por completo, o protagonista diz a sua esposa,
que estava com sede, que ela fosse à casa próxima à Árvore do Mundo e pedisse
água às três mulheres que ali viviam, as quais haviam sido responsáveis por
amarrar Shadow no tronco. Laura faz isso, e a água que ela bebe a modifica. “As
águas do tempo, que vêm da fonte do destino, do Poço de Urd, não são as águas
da vida. Não exatamente. Mas abastecem as raízes da Árvore do Mundo. E não
existe água como aquela” (GAIMAN, 2016, p. 468). Após beber essa água, Laura
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acorda na sala de sua casa, e ela está respirando, e há sangue fresco saindo de
um arranhão em sua mão, e ela sabe aonde tem de ir: “Tinha bebido das águas do
tempo, que vê da fonte do destino. Via a montanha em sua mente” (GAIMAN, 2016,
p. 468). Ela se encaminha então para o local da batalha, onde se encontra com o
sr. World, que lhe informa que o efeito da água não vai durar muito. “As Nornas só
lhe deram um gostinho do passado. E esse gostinho daqui a pouco vai se dissolver
no presente (...)” (GAIMAN, 2016, p. 497).
Conclui-se daí que a água que Shadow ordenou que fosse dada de beber à
Laura deu a ela, mesmo que temporariamente, uma vida de verdade, com sangue
correndo nas veias e respiração. Assim, ele realizou outro pedido que ela lhe havia
feito. Shadow vem a descobrir, logo depois de ser revivido, ao montar em um
pássaro do trovão, como trazê-la definitivamente de volta à vida: usando uma pedra
de águia, a qual pode ser retirada de dentro do crânio de uma dessas criaturas, os
pássaros do trovão (GAIMAN, 2016, p. 499). Ele conta isso a Laura e ela fica feliz,
mas pede-lhe que faça o contrário, e ele arranca a moeda de ouro que está
pendurada por uma corrente ao seu pescoço, e ela morre (GAIMAN, 2016, p. 511).
Portanto, o “encontro com a deusa”, em Deuses Americanos, não se traduz
em um “felizes para sempre”, como ocorre nos contos de fadas. Mas há um esforço
do herói no sentido de realizar os desejos da mulher amada, e o herói se mostra
capaz de atender a esses desejos, conquistando, simbolicamente, o seu amor. A
morte de Laura nos braços de Shadow, é, importante frisar, um atendimento a um
desejo final dela. Shadow faz isso contra sua própria vontade, pois ele gostaria que
ela vivesse, mas ele faz o que ela lhe pede, o que demonstra, mais uma vez, um
ato de abnegação, prova de que Shadow tem o “coração gentil” que se requer do
herói na conquista da deusa:

A deusa guardiã do poço inesgotável (...) requer que o herói seja dotado
daquilo que os trovadores e menestréis denominavam “coração gentil”. Ela
não pode ser compreendida nem apropriadamente servida pelo desejo
animal de um Actéon, nem pela repulsa insolente de um Fergus, mas
apenas pela gentileza (...).
O encontro com a deusa (que está encarnada em toda mulher) é o teste
final do talento de que o herói é dotado para a bênção do amor (caridade:
amor fati), que é a própria vida, aproveitada como o invólucro da
eternidade. (CAMPBELL, 2007, p. 118-119)

Antes de morrer, Shadow e Laura dizem um ao outro, uma vez mais, que se
amam. É um gesto que, dadas as circunstâncias, sela tanto uma união quanto um
92

casamento. Tanto Shadow quanto Laura já estiveram mortos anteriormente; agora,


eles estavam, por um breve momento, vivos e juntos novamente. E nessa ocasião,
o amor está, mais uma vez, presente e mais vivo do que nunca. Como diz Campbell,
o amor é a própria vida; logo, a conquista do amor é a conquista da vida, uma
conquista que a morte não pode suplantar. É dessa maneira, às avessas, que
Shadow tem seu “encontro com a deusa”.
A etapa seguinte também apresenta a mulher como tema, porém de uma
forma diferente: é “a mulher como tentação”, aquilo que surge diante do herói para
desviá-lo de seu caminho. O maior exemplo disso no romance de Gaiman é quando
Mídia, uma das divindades modernas, conversa com Shadow por meio de uma
televisão, encarnada na pele de uma personagem de série televisiva. Ela lhe diz
que quer que ele trabalhe para ela e tenta convencê-lo usando o argumento de que
o lado que Shadow estava defendendo estava fadado ao fracasso:

Você precisa entender meu ponto de vista, Shadow: nós somos a próxima
moda. Somos shoppings, enquanto seus amigos são atrações fajutas de
beira de estrada. Olha, somos até lojas virtuais, enquanto seus amigos
estão sentados no acostamento vendendo frutas de pomar caseiro em uma
carroça. Não, eles não chegam nem a vendedores de frutas. Eles vendem
chicotes de cocheiros. Consertam corseletes de osso de baleia. Nós
somos o agora e o amanhã. Seus amigos não são nem mais o ontem.
(GAIMAN, 2016, p. 174)

Depois disso, ela ainda oferece a Shadow o dobro, o triplo, cem vezes mais
do que ele recebia de Wednesday e, ao final, pergunta se ele “já teve vontade de
ver os peitos da Lucy”, personagem da TV que ela ora encarnava, desabotoando
sua blusa. Ela tenta Shadow, portanto, com a novidade, a promessa de relevância,
de fazer parte da moda, e também com dinheiro e, por fim, sexo. Mas nada disso o
cativa:

Percebeu que gostava mais de Wednesday e do sr. Nancy do que da


oposição por um simples motivo: os velhos deuses podiam ser pilantras
fajutos, e a comida podia ser uma merda, mas pelo menos eles não
entoavam clichês o tempo todo.
E ele preferia uma atração de beira de estrada, por mais fajuta, mas
acabada, mais lamentável que fosse, a qualquer shopping. (GAIMAN,
2016, p 175)

Esse é um momento importante pois revela um traço notável do protagonista:


ele não age exclusivamente por interesse, deixando-se levar para onde o vento
93

sopra. As vantagens que lhe foram oferecidas poderiam representar para ele, na
situação em que estava, uma maior garantia de estabilidade, se o que estava
procurando era levar uma vida tranquila. Desde que saíra da cadeia e se juntara a
Wednesday, ele já havia sido raptado e espancado duas vezes, e nenhuma
vantagem real havia sido obtida, além do salário que recebia. A vida que estava
vivendo era uma vida proscrita, fugindo do perigo, viajando por estradas
secundárias, dormindo em hotéis.
Mas ele se mantém leal, não apenas a Wednesday e aos outros deuses
antigos, mas objetivamente a seus princípios. Shadow escolhe se manter no
caminho que vinha percorrendo até ali porque, apesar de tudo, é o lado que mais
lhe apraz. De uma perspectiva ampla, quando se conhece o desenlace da narrativa,
isso não parece muito relevante, pois não importa, realmente, de que lado Shadow
está, visto que, por se tratar de uma farsa entre Odin e Loki, onde ele estivesse ele
estaria sob o comando do deus. Porém, a lealdade dele aos deuses antigos é
importante pelo simples fato de que, para a guerra acontecer, Wednesday teria que
encenar sua própria morte e, para poder voltar, precisaria que alguém lhe pagasse
tributo na árvore, e Shadow havia se comprometido, quando contratado, a fazer
isso.
Segundo Carlos Ceia, “o herói é marcado por uma projeção ambígua: por um
lado, representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, social e
ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em que representa
facetas e virtudes que o homem comum não consegue, mas gostaria de atingir34”
Sendo uma dessas virtudes, a lealdade é um aspecto importante do caráter de um
herói, e ela também o previne de seguir por um curso que o desviaria da trajetória
que ele precisa percorrer para cumprir os passos de sua transformação. Mudar de
lado agora seria o mesmo que recusar o chamado, ou dar as costas a ele, seduzido
pela oportunidade de obtenção e manutenção das vantagens percebidas no estado
atual.
A mulher como tentação é, na verdade, mais uma personificação do caminho
de provas e perigos, dos obstáculos que o herói tem de transpor, e se assemelha,
nesse sentido, ao canto das sereias presentes n’A Odisseia, entre outras figuras
femininas que aparecem no caminho de Ulisses e o convidam a descansar em sua

34
Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/heroi/. Acesso em: 10 out 2019
94

companhia ao invés de continuar lutando suas incansáveis batalhas na tentativa de


retornar, dez anos depois, a uma casa que ele não sabe que estará à sua espera.
Superada essa fase, o próximo passo é a “sintonia com o pai”. A essência
desta etapa consiste, segundo Campbell (2007, p. 128), no abandono do apego ao
próprio ego, sendo necessário ao herói adquirir confiança na sua figura paterna, e
dessa confiança derivar esperança para suportar a crise que momentaneamente
enfrenta. Outro aspecto dessa sintonia reside no ato simbólico da entrega, feita pelo
pai ao filho, das técnicas, obrigações e prerrogativas de seu ofício. Significa, em
resumo, a transformação do filho em pai, de criança em adulto, e essa passagem
costuma ser simbolizada pela morte e ressurreição do herói, como se ele deixasse
para trás uma casca e surgisse em nova forma, completo e investido nos poderes
do pai: “o filho investido do ofício afasta-se de sua mera condição humana e
representa uma força cósmica impessoal. Ele é aquele que nasceu duas vezes:
tornou-se, ele mesmo, o pai” (CAMPBELL, 2007, p. 133).
A sintonia com o pai em Deuses Americanos é atingida por Shadow quando
ele decide pagar tributo pela morte de Wednesday ficando amarrado à Árvore do
Mundo por nove dias e nove noites. Esse sacrifício é uma imitação do mesmo ato
executado pelo deus Odin na mitologia nórdica. Gaiman, adaptando as lendas
nórdicas contidas nas Eddas, tanto em suas versões em prosa quanto em poesia,
é, também, autor do livro intitulado Mitologia nórdica, onde descreve esse sacrifício
de Odin:

Odin é o mais poderoso e o mais velho dos deuses.


Ele conhece muitos segredos. Abriu mão de um de seus olhos em troca de
sabedoria. E foi além: por poder e pelo conhecimento da magia das runas,
sacrificou a si mesmo.
Odin se enforcou na Árvore do Mundo, Yggdrasill, e ficou pendurado em
um galho por nove noites. Seu torso foi perfurado pela ponta de uma lança
– um ferimento gravíssimo. Os ventos agarraram e açoitaram seu corpo
dependurado. Ele nada comeu durante os nove dias e as nove noites, e
nada bebeu. Ficou ali, sozinho, com dor, a vida se esvaindo pouco a pouco.
Em meio ao frio e à agonia, já à beira da morte, seu sacrifício rendeu um
fruto sombrio: no êxtase da dor, Odin olhou para baixo, e as runas lhe
foram reveladas. Ele as compreendeu, assimilando seu poder e
significado. Então a corda se partiu, e, com um grito, Odin caiu da árvore.
Ele passou a entender a magia. E o mundo passou a lhe pertencer.
(GAIMAN, 2017, p. 19-20)

Vê-se que, na mitologia nórdica, Odin se sacrifica tendo como propósito o


conhecimento de certos segredos, bem como a obtenção de poder e o
95

conhecimento da magia das runas. Em seu caso, ele se enforca com uma corda
amarrada a um galho da Yggdrasill, a Árvore do Mundo, e tem seu corpo perfurado
por uma lança. Ao fim dos nove dias e nove noites, tendo passado sede e fome, no
êxtase da dor, as runas lhe são reveladas e ele obtém o mundo, libertando-se da
corda que o amarrava. Em Deuses Americanos, Wednesday faz referência a esse
sacrifício, numa passagem em que recita versos descrevendo os encantos que ele
aprendeu passando por essa experiência, concluindo que foi “um sacrifício meu
para mim mesmo, e os mundos se abriram para mim” (GAIMAN, 2016, p. 279).
O tributo prestado por Shadow na Árvore do Mundo norte-americana, que se
localiza na Virgínia, “bem longe de tudo, nos fundos de uma fazenda” (GAIMAN,
2016, p. 433), possuindo como identificação apenas uma placa dizendo FREIXO no
portão que dava acesso à fazenda, é espelhado no sacrifício de Odin. Em seu caso,
ele não é amarrado pelo pescoço em um galho, mas suspenso por cordas atadas à
árvore e ao seu corpo, completamente nu. A exemplo de Odin, Shadow permanece
ali por nove dias e nove noites, sem comer ou beber nada, e seu corpo também é
perfurado por uma lança. Sua vida se esvai nessa árvore, mas também ele vive um
momento de êxtase em que se sente mais vivo do que estivera em toda sua vida:

Relâmpagos cortantes se espalhavam pelo céu, acima da árvore, e os


trovões se dispersavam em uma vibração onipresente, estouros e rugidos
ocasionais explodindo como bombas distantes ao longo da noite, e o vento
puxava Shadow, tentava arrancá-lo da árvore, açoitando a pele,
penetrando na carne; e, no auge da tempestade – e Shadow sabia, no
fundo da alma, que a tempestade havia começado de fato, a verdadeira
tempestade, e que agora que ela havia chegado não restava nada a fazer
além de aguentar firme: todos eles, velhos deuses e novos, espíritos,
potências, mulheres e homens...
Naquele momento, Shadow sentiu uma estranha alegria e começou a rir,
enquanto a chuva lavava sua pele, e os raios ardiam e os trovões urravam
tão alto que ele mal conseguia ouvir a própria voz. Ele riu e exultou.
Estava vivo. Nunca havia sentido aquilo antes. Nunca. (GAIMAN, 2016, p.
440)

O sacrifício, no entanto, não é seu para si mesmo; é um tributo pago a


Wednesday. Desde o início ele planejara a morte de Shadow, bem como a sua
própria. Sabia que seria necessário para convencer os deuses antigos a se unirem.
Estava entre as atribuições determinadas a Shadow no momento da celebração do
contrato entre eles:
96

Você trabalha para mim. Você me protege. Você me ajuda. Você me leva
de um lugar a outro. De vez em quando, você investiga... vai a alguns
lugares e faz perguntas por mim. Compra suprimentos. Em uma
emergência, mas só em uma emergência, você machuca pessoas que
precisam ser machucadas. No caso improvável de eu vir a morrer, você
prestará tributo a mim. E, em troca, eu tomarei providências para que suas
necessidades sejam devidamente atendidas. (GAIMAN, 2016, p. 50)

O fato de Shadow ser filho de Wednesday é, também, um ponto muito


importante para o sacrifício. O deus se alimenta das mortes dedicadas a ele, e a
morte de um filho, oferecida de livre e espontânea vontade, tem mais poder ainda.
“Eu precisava de você, meu filho. Sim. Meu próprio filho” (GAIMAN, 2016, p. 504).
E assim, sua vontade é, de fato atendida.
Mas é uma forma estranha de sintonia com o pai: se a atitude de Shadow é
nobre, carregando a virtude de ser oferecida de bom grado, o tributo também
carrega o vício de ter sido arquitetado como estratagema de Wednesday. O que era
para ser uma vitória para o deus, que serviria para trazê-lo de volta à vida – visto
que “No ramo dos deuses (...), não é a morte que importa. É a oportunidade de
ressurreição [grifos do autor]” (GAIMAN, 2016, p. 416) – acaba sendo a sua derrota.
Shadow faz o sacrifício, paga o tributo, morre e retorna – e retorna modificado e
ciente de tudo. Havia compreendido os planos de Wednesday, e aparece a tempo
de intervir e parar a batalha.
Não obstante, a etapa da sintonia foi cumprida, e os dons que dela advêm
foram obtidos. Shadow sofre o mesmo martírio do pai: vai ao encontro dele, abrindo
sua alma além do terror, transcendendo, assim, a vida. “Ele contempla a face do pai
e compreende. E, assim, os dois entram em sintonia” (CAMPBELL, 2007, p. 142).
Os dois últimos estágios da iniciação, “apoteose” e “a bênção última”, dizem
respeito aos frutos colhidos pelo herói ao final de sua iniciação; são os dons que ele
recebe por ter enfrentado os perigos e as provas, superado os obstáculos, resistido
às tentações; são, enfim, os poderes que ele desenvolve, os quais o tornam forte o
suficiente para derrotar o inimigo que parecia insuperável. Da mesma forma que
Odin, após sacrificar-se, passa a entender a magia e as runas, o herói que emerge
das sombras nas quais esteve submerso retorna modificado, aperfeiçoado.
Shadow, na árvore, conheceu o êxtase da vida, como se subisse ao céu; logo
após, desceu até as profundezas, e conheceu verdades sobre si mesmo, e entregou
seu nome e seu coração, restando só a essência; por fim, até a última foi entregue,
e assim ele acolheu a morte. Teria continuado assim, se não tivesse sido solicitado:
97

Whiskey Jack, que é representado como um homem de uma tribo indígena e


descreve a si mesmo, quando Shadow pergunta se ele é um deus, como “um
símbolo cultural” (GAIMAN, 2016, p. 485), aparece no Lugar Que Não Era, onde
Shadow escolheu ficar após a morte, para interromper o Nada que ele escolheu ser
e fazer, para avisá-lo que estavam vindo acordá-lo. Nessa conversa, Whiskey Jack
observa que o que os deuses estavam para fazer não seria uma batalha, e sim um
banho de sangue, e aí Shadow atinge a última compreensão que lhe faltava – do
que se tratava tudo aquilo.
Na fazendo onde fica a árvore onde Shadow jaz, Easter e Hórus chegam, e
a mulher, que representa a vida e a fertilidade, com a ajuda do deus egípcio, que
reina sobre os céus e os vivos, cooperam para trazer o protagonista de volta à vida.
Dali em diante, todos os seus atos são realizados com muita naturalidade: ao ver o
pássaro do trovão que trouxera os deuses até ali e seria sua montaria para o local
da batalha, ele o cumprimenta como se tivesse feito isso todos os dias de sua vida:
“(...) abriu e boca e grasnou um voto de alegria e boas vindas” (GAIMAN, 2016, p.
494) e, depois disso, monta nele sem hesitar, sem medo, mesmo tendo sido
alertado de que era como “montar um relâmpago” (GAIMAN, 2016, p. 495).
Sobre a “bênção última”, diz Campbell (2007, p. 163): “A facilidade com que
a aventura é realizada aqui significa que o herói é um homem superior, um rei nato.
(...) Onde o herói comum teria um teste diante de si, o eleito não encontra nenhum
empecilho e não comete erros”. Essa naturalidade que Shadow demonstra após
despertar é prova de que ele retorna como esse homem superior de que fala
Campbell. Ele não hesita mais – sabe o que tem de fazer, e faz. Essa superioridade
é resultado da bênção última, a “graça” obtida pelo herói após superar os
obstáculos, morrer e ressuscitar.

A agonia da ultrapassagem das limitações pessoais é a agonia do


crescimento espiritual. A arte, a literatura, o mito, o culto, a filosofia e as
disciplinas ascéticas são instrumentos destinados a auxiliar o indivíduo a
ultrapassar os horizontes que o limitam e a alcançar esferas de percepção
em permanente crescimento. (...) Por fim, a mente quebra a esfera
limitadora do cosmo e alcança uma percepção que transcende todas as
experiências da forma – todos os simbolismos, todas as divindades: a
percepção do vazio inelutável. (CAMPBELL, 2007, p. 177-178)

Shadow, por seguir o conselho do homem-búfalo e acreditar em tudo, por


abandonar seu próprio ego e auto imolar-se num ato de supremo desapego de si,
98

aprender as revelações sobre a própria vida, escolher o descanso eterno livre de


qualquer sensação, deixar de ser matéria – e até mesmo disso desistir, aceitando
voltar por entender que era necessário (mesmo tendo relutado por um momento) –
ultrapassa todas as suas limitações pessoais, realizando seu crescimento espiritual.
Nesse ponto, o herói Shadow já se encontra, portanto, devidamente iniciado,
e o retorno já está se desenrolando. Este terceiro grande estágio é o ato final do
percurso do herói, pelo qual o círculo monomítico se completa: as graças obtidas
pelo herói devem ser compartilhadas com o povo, derramadas sobre a terra,
voltando para a humanidade, a fim de que ela se renove. É como que um sacrifício
final, pois, ao chegar ao ápice, o herói, ao invés de guardar tudo para si e descansar
sobre seus louros, humildemente retorna, trazendo consigo seus dons e os
distribuindo.
Essa, aliás é a grande problemática do retorno, pois não é uma atitude fácil
de ser tomada; o herói lutou suas batalhas e atingiu a graça – que pode ser tanto
um estado de beatitude, de suprema iluminação, como o Nirvana, ou o descanso
eterno na morte, sem mais dor ou sofrimento. Ele mereceu essa recompensa, e ele
tem a oportunidade de se manter assim por toda a eternidade.
Desse modo, retomem-se os níveis que compõe o grande estágio do retorno:
“a recusa do retorno”; “a fuga mágica”; “o resgate com auxílio externo”; “a passagem
pelo limiar do retorno”; “senhor dos dois mundos”; e, por fim, “liberdade para viver”.
Os quatro primeiros níveis dizem respeito a essa dificuldade em se empreender o
retorno, sendo que “a passagem pelo limiar do retorno” é a própria dificuldade em
si, e os três primeiros designam diferentes situações que podem ocorrer. Já os dois
últimos níveis são consequências do retorno que se ligam intimamente aos passos
da “apoteose” e da “bênção última” do estágio anterior.
O nível da “recusa do retorno” se dá quando o herói efetivamente não deseja
o próprio regresso. Campbell cita o exemplo de Muchukunda, um antigo rei-
guerreiro hindu: “O rei Muchukunda, diz a história, estava muito cansado após a
batalha: tudo o que pediu foi a garantia de um sono sem fim e de que toda pessoa
que viesse a acordá-lo fosse transformada em cinzas pelo primeiro olhar que ele
dirigisse” (CAMPBELL, 2007, p. 196).
Como já se viu, a escolha de Shadow, após sua morte, terminada a travessia
pelo submundo e já tendo sua vida escrutinada por Anúbis e seu coração pesado
na balança, decide pelo nada: só queria que tudo acabasse. Assim como o pedido
99

de Muchukunda, sua dádiva é atendida (embora ele não tenha se resguardado,


como o rei hindu, pela ameaça de transformar em cinzas aquele que lhe tentasse
acordar). Shadow estava em um Lugar Que Não Era, no Nada, e não tinha mais
forma nem matéria: ele mesmo era nada. “Podia ter passado de minutos ou dez mil
anos lá, naquele Lugar Que Não Era. Não fazia diferença. O tempo não era mais
um conceito necessário. Não se lembrava mais de seu verdadeiro nome. Sentia-se
vazio e purificado, naquele lugar que não era um lugar” (GAIMAN, 2016, p. 483).
Porém, “nem o Nada dura para sempre”. Ele ouve a voz de Whiskey Jack,
que fala com ele e o avisa que estão vindo revivê-lo. Nesse momento, a primeira
reação de Shadow é repeli-lo: “Me deixe em paz. É o que eu queria. Para mim, já
chega. (...) Está acabado, ponto final”. Mas Whiskey Jack responde-lhe: “Nada
disso. (...) Nunca é assim” (GAIMAN, 2016, p. 483). Na sequência, Shadow e
Whiskey Jack já não estão mais no Nada: estão na casa deste, onde o primeiro já
esteve anteriormente, junto com Wednesday. Lá, eles têm a conversa que termina
com a percepção de Shadow sobre o plano de seu pai e aí, resignado, ele decide
retornar.
Portanto, assim como hesitou em atender ao chamado, no início da jornada,
Shadow hesita por um momento em fazer o retorno, tendo já alcançado aquilo que
desejava – algo que ele nem sabia que desejava até ter obtido, embora desde o
começo ele pontava para a vontade de levar uma vida tranquila, e o Nada era uma
consumação dessa tranquilidade, para além da vida e do tempo. No entanto, essas
duas quase-recusas têm caráteres bem distintos: a recusa ao chamado leva em
conta, justamente, a manutenção de uma situação vantajosa em termos terrenos
para o herói, cuja motivação pode ser localizada no medo: medo de arriscar voltar
à prisão, medo de enfrentar o desconhecido. Já a recusa ao retorno se dá porque o
herói atinge um estado de compreensão do todo, do eterno, do imutável, e as coisas
que em vida eram relevantes já não têm a mesma força. Reside aí o primeiro
problema do herói na “passagem pelo limiar do retorno”, segundo Campbell (2007,
p. 215):

O primeiro problema do herói que retorna consiste em aceitar como real,


depois de ter passado por uma experiência da visão de completeza, que
traz satisfação à alma, as alegrias e tristezas passageiras, as banalidades
e obscenidades da vida. (...) Assim como sonhos que se afiguraram
importantes à noite podem parecer, à luz do dia, meras tolices, assim
100

também o poeta e o profeta podem descobrir-se bancando os idiotas diante


de um júri de sóbrios olhos.

Já não há mais medo, portanto, em Shadow. O retorno não passa, para ele,
de uma inconveniência, pois, sob sua nova perspectiva, obtida por essa
“experiência da visão de completeza”, e da satisfação por ela gerada, os problemas
que ficaram para trás já não fazem sentido para sua mente: são minúsculos e
banais. Daí decorre, também, o segundo problema, para o herói, do retorno: pois
assim que retorna, o desafio é, tendo voltado à vida terrena, tomado das velhas
sensações terrenas de dor, alegria, tristeza, sofrimento, prazer, manter o
aprendizado obtido da percepção da plenitude.

Do ponto de vista dos olímpicos, era após era da história terrena


transcorre, de modo que, onde os homens veem apenas a mudança e a
morte, os bem-aventurados contemplam a forma imutável, o mundo sem
fim. Mas o problema reside em manter esse ponto de vista diante de uma
dor ou prazer terrenos imediatos. O sabor dos frutos do conhecimento
temporal afasta a concentração do espírito do centro da era para a crise
periférica do momento. O equilíbrio da perfeição é perdido, o espírito
fraqueja e o herói cai (CAMPBELL, 2007, p. 218-219)

Em outras palavras, se a visão da plenitude pode resultar em óbice ao


retorno, ao mesmo tempo, o aprendizado obtido é necessário para desatar os nós
deixados para trás; portanto, ele não pode ser esquecido. Logo, o herói deve tomar
cuidado para não se deixar afetar pela condição humana que mais uma vez impõe
limitações em torno de sua alma.
A interrupção do Nada de Shadow por parte de Whiskey Jack já é, também,
um indício de outro nível do retorno, o do “resgate com auxílio externo”, que diz
respeito à necessidade de o herói ser resgatado pela intervenção de outras
personagens para que sua volta seja realizada.

O herói pode ser resgatado de sua aventura sobrenatural por meio da


assistência externa. Isto é, o mundo tem de ir ao seu encontro e recuperá-
lo. Pois a bênção do domicílio profundo não é abandonada com facilidade
em favor da autodispersão do estado vígil. (...) E, no entanto, enquanto se
estiver vivo, a vida chamará(CAMPBELL, 2007, p. 206)

Shadow, assim, é um exemplo do herói que precisa que o mundo vá ao seu


encontro para recuperá-lo desse domicílio profundo. São três as personagens que
surgem cumprindo o papel desse auxílio externo, como já se viu: Whiskey Jack,
101

Easter e Hórus. O primeiro vai até o próprio Lugar Que Não É onde Shadow se
encontra, invadindo e perturbando o seu Nada, enquanto os outros dois vão até
onde está o corpo físico de Shadow; lá, Hórus voa aos céus e dispersa as nuvens
para que o sol aqueça o protagonista, enquanto Easter, num beijo, sopra a vida para
dentro dele. Essa ajuda que o herói recebe demonstra, nesse estágio da jornada

a continuidade da operação da força sobrenatural auxiliar que tem


acompanhado o eleito em todo o curso de suas provas. Tendo sua
consciência sucumbido, o inconsciente, não obstante, produz seus
próprios equilíbrios, e eis que o herói renasce para o mundo de onde veio.
Em lugar de salvar seu ego, tal como ocorre no padrão da fuga mágica, ele
o perde e, no entanto, por meio da graça, recebe-o de volta. (CAMPBELL,
2007, p. 212-213)

Retoma-se aqui a ideia do “auxílio sobrenatural”, nível contido no primeiro


estágio, da partida, revelando que, por se tratar de alguém, como se viu, eleito pelo
destino, este intervém em seu favor sempre que ele precisa, e, para cumprir seu
destino final, a etapa da iniciação deve ser superada para que, através das bênçãos
que traz consigo em seu retorno, o herói cumpra o seu destino abrindo e liberando
o fluxo de vida no corpo do mundo.
Dessa forma, com o auxílio externo do mundo a resgatá-lo, Shadow
atravessa o limiar do retorno, trazendo consigo o aprendizado sobre si mesmo, bem
como sobre as motivações de Wednesday, que permitirá que ele interceda pelos
demais deuses e evite a catástrofe. O que o torna “senhor dos dois mundos”, nome
dado ao penúltimo nível do retorno, e assim de toda a jornada do herói, é
precisamente a habilidade adquirida de ir e vir da vida para a morte e da morte para
a vida.

A liberdade de ir e vir pela linha que divide os mundos, de passar da


perspectiva da aparição no tempo para a perspectiva do profundo causal
e vice-versa – que não contamina os princípios de uma com os da outra e,
no entanto, permite à mente o conhecimento de uma delas em virtude do
conhecimento da outra – é o talento do mestre. (CAMPBELL, 2007, p.225)

Neste sentido, o conhecimento da perspectiva do profundo causal, obtido por


Shadow na jornada pelas profundezas de seu inconsciente, é o que lhe possibilita,
por sua vez, o conhecimento daquilo que deve ser feito na perspectiva da aparição
no tempo, ou seja, no mundo habitado pelos homens – e, no caso de Deuses
Americanos, habitado também pelos deuses, os quais se comportam como homens,
102

preocupados, como ora estão, com a própria sobrevivência naquela terra que não
é boa para deuses, os Estados Unidos, ou seja, apegados ao próprio ego, à sua
existência terrena em meio aos homens; tentam permanecer lembrados, pois o seu
esquecimento significa a sua extinção.
Mas é um homem que, superando essa condição humana, transpondo os
dois mundos, deve alertá-los da tolice que estão por cometer, pois ela só servirá de
alimento a um deus que se sustenta das mortes dedicadas a ele: Odin. E é esse
homem que, para este fim, sacrifica sua vida e sua morte, indo e voltando por entre
os mundos. Esse sacrifício é o requisito necessário para desenvolver o chamado
“talento do mestre”.

O indivíduo, por meio de prolongadas disciplinas espirituais, renuncia


completamente aos vínculos com suas limitações e idiossincrasias,
esperanças e temores pessoais, já não resiste à auto aniquilação, que
constitui o pré-requisito do renascimento na percepção da verdade, e
assim fica pronto, por fim, para a grande sintonia. (CAMPBELL, 2007, p.
231)

A consequência da “apoteose” vivida na iniciação, portanto, é o talento


desenvolvido pelo herói: através do ato de auto aniquilação, ele dissolve suas
ambições pessoais, e, por isso mesmo, conquista a “liberdade para viver”, etapa
final da jornada do herói. Em outras palavras, essa etapa consiste no atingimento
do objetivo último do mito, que consiste em dissipar a incompreensão do homem
acerca de sua natureza, do cosmo e de si mesmo, promovendo uma reconciliação
entre vontade universal e consciência individual, o que se dá pela percepção da
relação que existe entre os fenômenos do tempo, que são passageiros, e a vida
imperecível, que vive e morre em todas as coisas.

O homem, no mundo da ação, não mantém o vínculo que o situa no centro


do princípio da eternidade se se mostrar ansioso por colher a recompensa
de suas façanhas; mas se deixa-las, e aos seus frutos, aos pés do Deus
Vivo, é por eles liberado, tal como o é, pelo sacrifício, das amarras do mar
da morte. (CAMPBELL, 2007, p. 232)

Shadow em nenhum momento é guiado pelo colhimento das recompensas


de suas façanhas; mais provável é que ele nem reconheça seus atos como
façanhas. A maneira como ele age, tendo retornado da morte, é despretensiosa,
como se ele apenas seguisse o curso das coisas. Ele desperta, reconhece o mundo
à sua volta, se habitua ao próprio corpo, em um momento de pura contemplação
103

que faz Easter imaginar “quão grande seria a distância que Shadow percorrera, e o
que voltar havia lhe custado” (GAIMAN, 2016, p. 494). Ele conversa e depois monta
no pássaro do trovão com naturalidade, sem hesitação ou desconfiança e, sem
perguntar a ninguém o que deve fazer (ele já sabe), parte para o local onde a batalha
já se iniciou. Ele aproveita a viagem: “– Isso é o máximo! – gritou ele, em meio ao
rugido da tormenta” (GAIMAN, 2016, p. 498), diverte-se mesmo estando prestes a
adentrar um campo de guerra.
Uma vez no local, ele encontra com Wednesday e Loki, e conversa com eles,
e o tom em sua voz é seguro, até peremptório por vezes, como quando ordena que
Wednesday saia das sombras da caverna onde se encontra: “– Você pode sair –
disse, para a caverna. – Onde quer que esteja. Apareça. (...) Estou cansado de ser
feito de bobo – anunciou. – Apareça de uma vez. Quero ver você” (GAIMAN, 2016,
p. 503). Ele não se sente nem um pouco intimidade pelo fato de estar conversando
com dois deuses, um deles seu pai. A conversa é de igual para igual. Repare-se
bem no tom acusador que ele utiliza, como se estivesse em um julgamento,
apontando os crimes dos réus: “Vocês não traíram nenhum dos dois lados em nome
do outro. Traíram os dois”; “Vocês queriam um massacre. Precisavam de um
sacrifício de sangue. Um sacrifício de deuses” (GAIMAN, 2016, p. 504).
Após essa conversa, ele tem de se encaminhar para o centro da batalha, que
ocorre nos Bastidores, um lugar onde ele nunca tinha estado sozinho. Mas ele sabe
o que fazer:

Lembrou-se da sensação no Carrossel, tentou reproduzi-la, mas em um


momento diferente no tempo...
Lembrou-se de como virou com o trailer, fazendo um ângulo reto em
relação a tudo. Tentou capturar aquela sensação...
E aí aconteceu, foi fácil, sem nenhum desvio.
Foi como atravessar uma membrana, como emergir de águas profundas
para o ar. Com um passo, saiu da trilha para turistas na montanha e foi...
Para um lugar de verdade. Estava nos Bastidores. (GAIMAN, 2016, p. 506)

Retoma-se, aqui, a ideia da “bênção última”: a facilidade com que o herói se


move, fala, faz as coisas significa que, passada toda a sua jornada de separação,
iniciação e retorno, ele se tornou, de fato, um ser superior, pois ele conhece a si
mesmo. Sem dificuldade, portanto, ele entra nos Bastidores, e vê toda a situação
com clareza: ele consegue sentir os paradigmas se transformando; reconhece todos
104

os deuses antigos e os novos, e conseguia ver a arrogância e ao mesmo tempo o


medo destes últimos. E sentiu pena de todos (GAIMAN, 2016, p. 506-507).
E ele, então, se encaminha até o centro da arena e fala, mais uma vez, com
tranquilidade: “– Sabem – comentou para o nada, tranquilo –, isto não é uma guerra.
Essa nunca foi a intenção. E, se vocês acham que isto é uma guerra, estão se
iludindo” (GAIMAN, 2016, p. 508). Ele expõe o plano de Wednesday e eles
acreditam. A tempestade se dissipa e a batalha termina, antes de começar de
verdade.
Assim, conclui-se que a trajetória percorrida por Shadow em Deuses
Americanos, pelo cumprimento dos três grandes estágios do ciclo cosmogônico do
herói do monomito, conforme designados por Campbell (2007), passando por
diversas das etapas em que os estágios se subdividem, constitui a faceta heroica
da personagem de Gaiman, não obstante se tratar, ao mesmo tempo, de um homem
contemporâneo, que é marcado pelas heterogeneidades culturais e diásporas de
seu tempo, conforme se verá no capítulo a seguir.
4 A (DES)ARQUEOLOGIA DO HERÓI: SHADOW E OS DEUSES

Viu-se anteriormente alguns elementos que, ao serem atribuídos a uma


personagem, conduzem o leitor a percebê-la como uma figura heroica,
especialmente através da análise do temperamento heroico, baseada nos estudos
de Knox (1964) sobre o herói trágico de Sófocles, bem como da jornada do herói
descrita por Campbell (2007) no ciclo cosmogônico do monomito. Shadow,
dialogando pelas diferenças e similitudes, pode ser tido como uma versão
desconstruída ou contemporânea do herói, dada a sua adequação um tanto quanto
inadequada aos padrões acima descritos.
Se o foco do capítulo anterior se mostrou a realização de uma arqueologia
do herói, retomando os aspectos que formam esse arquétipo tão onipresentemente
representado em personagens desde o início dos tempos na literatura, salientando
aquilo que há em Shadow que o aproxima de tal figura, aqui o objetivo é analisar
como, em seu peculiar percurso heroico, o protagonista de Deuses americanos, de
forma emblemática, a evoca, subverte, deforma e transforma.

Foi evidenciado o percurso do herói na trajetória de Shadow pelo


reconhecimento de elementos como, por exemplo: o encontro com um
desconhecido que faz um chamado à aventura, ou seja, incita o protagonista a
deixar o seu mundo conhecido em direção a uma realidade desconhecida, que se
traduz no conhecimento de segredos que o fazem perceber a própria realidade por
outros ângulos; o auxílio sobrenatural conferido pela presença de personagens que
oferecem proteção sob a forma de amuletos, conselhos, ensinamentos ou mesmo
que se comportam como guias; o caminho repleto de obstáculos que, se superados,
conduzem o herói a uma transformação simbolizada pela sua morte e renascimento;
o retorno, numa forma evoluída de si mesmo, com a obtenção do conhecimento
necessário para resolver o problema que assola o mundo de onde o herói foi antes
separado.
A partir de agora, serão analisados mais de perto alguns aspectos referentes
à construção da identidade de Shadow, observando passagens sobre sua infância
caracterizada pela solidão advinda das constantes mudanças de residência, o que
o privou da possibilidade de constituir um lar propriamente dito, além da ausência
106

de uma figura paterna; também serão discutidos aspectos da nacionalidade e etnia


do personagem de Gaiman, os quais são marcados por uma desestabilidade gerada
pela “força revolucionadora da modernidade” (HALL, 2006, p. 97), que causa a
dissolução de coisas como nacionalismo e etnia, em favor de “valores e identidades
mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais” (HALL, 2006, p. 97). Em
outras palavras, “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada
e estável, está se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006,
p.12).
Sob o viés cultural, Shadow não tem conhecimento de seu passado; quando
perguntado, várias vezes sobre sua etnia, ele responde que não sabe; sua pele é
descrita como “cor de café”; seus olhos são cinza claros; ele é filho de um deus
escandinavo; ele é americano, mas morou com a mãe em várias embaixadas pela
Europa – ele não tem um “centro”; seus pontos de referência estão espalhados,
fragmentados.
No capítulo OITO, Shadow está em Cairo, no estado de Illinois, na
companhia de Íbis, Jacal e Bastet (sob forma de gata), onde se refugiara após a
fuga do local onde estava sendo interrogado pelos agentes Wood e Stone,
aguardando a vinda de Wednesday para buscá-lo e servindo como empregado
nesse ínterim. Num dos serviços que presta aos deuses/agentes funerários, o
protagonista se encarrega de transferir o corpo de uma falecida da maca até a mesa
do necrotério “erguendo-a dentro do saco opaco como uma criança adormecida”.
Jacal observa que eles possuíam uma mesa de transferência, não sendo necessário
havê-la carregado pelos braços, mas Shadow responde que não havia problema,
pois era grande e não se incomodava com o esforço. Assim que Shadow dá essa
resposta a Jacal, os três parágrafos seguintes, através do narrador em terceira
pessoa, são dedicados a revelar aspectos da infância do protagonista, que
desconstroem, para o leitor, essa visão que a personagem parece ter de si mesmo,
ou, antes, adota, como forma de se autoafirmar:

Quando criança, Shadow fora pequeno demais para a idade,


desengonçado. A única fotografia de sua infância que Laura tinha achado
boa o bastante para colocar em uma moldura era de uma criança séria,
com cabelo embolado e olhos escuros, de pé ao lado de uma mesa cheia
de bolos e biscoitos. Shadow achava que a foto tinha sido tirada em uma
festa de Natal de alguma embaixada, já que estava usando gravata-
107

borboleta e suas melhores roupas, parecendo até um boneco. Observava


solenemente o mundo de adultos que o cercava. (GAIMAN, 2016, p. 204)

A narração em terceira pessoa desta passagem não deixa claro que se a


memória da infância surge na mente do protagonista no momento em que a ação
se passa, uma vez que não há, no texto, nenhuma expressão que explicite que o
personagem “lembrou” ou “recordou” de algo, nem tampouco se trata de um
monólogo interno à maneira de um fluxo de consciência; no entanto, o fato desse
narrador distanciado e onisciente revelar ao leitor essas características de Shadow
quando criança, logo após ele próprio ter se colocado da maneira como o fez –
afirmando categoricamente: “Eu sou grande. Não me incomoda” –, pode ser visto
como uma estratégia do texto visando tornar aparente que ele não fora sempre
assim como agora se mostra.
Ele tinha, na verdade, sido uma criança pequena demais para sua idade e
desengonçada, em contraste com o adulto grande e com “cara de não-se-meta-
comigo” (GAIMAN, 2016, p. 17) descrito para o leitor logo nas duas primeiras linhas
do romance, no capítulo UM. Assim, percebe-se que a maneira como a narrativa se
estrutura visa à gradual desconstrução do personagem, uma vez que transmite uma
ideia aparentemente estável sobre o protagonista de início, formando uma imagem
sobre ele que mais tarde, passadas quase duzentas páginas, mostra-se, se não de
todo equivocada, ao menos não tão simples. Essa imagem continua sendo
desconstruída conforme o texto avança:

Tinham se mudado vezes demais, Shadow e a mãe. Primeiro, pela Europa,


de embaixada em embaixada, onde a mãe trabalhava como comunicadora
para o Serviço Exterior, transcrevendo e enviando telegramas
confidenciais pelo mundo todo; e depois, quando Shadow tinha oito anos,
pelos Estados Unidos, onde a mãe, doente com irregularidade demais para
conseguir um emprego fixo, se mudara de cidade em cidade, um ano aqui,
outro ali, arranjando trabalhos temporários sempre que se sentia bem. Eles
nunca ficavam em um mesmo lugar por tempo suficiente para que Shadow
fizesse amigos, se sentisse em casa, relaxasse. E Shadow fora uma
criança pequena... (GAIMAN, 2016, p. 204)

Mais informações sobre a infância de Shadow são fornecidas ao leitor, as


quais o ajudam a ter uma compreensão maior sobre a personalidade do
protagonista no momento que atravessa em sua vida e a forma como se relaciona
com o lugar e as pessoas com quem convive. Ele é alguém que foi criado apenas
pela mãe, sem a presença de um pai; os dois nunca fixaram raízes; até os oito anos,
108

período que cobre boa parte de sua infância, portanto, moraram em vários lugares
pela Europa, o que significa que Shadow, apesar de ser americano pelo fato de ser
filho de mãe americana, atuante no exterior a serviço do governo americano – o que
se depreende pela sua profissão, descrita como “comunicadora para o Serviço
Exterior” –, não morou (e talvez nem tenha nascido, o que não fica explícito) nos
Estados Unidos em um período importante da sua formação enquanto indivíduo.
A questão da nacionalidade de Shadow, de suas origens “desenraizadas” e
do lugar que ocupa de uma maneira geral, será discutida de forma mais
aprofundada mais adiante nesta análise. Por ora, destaca-se os efeitos que esse
modo de vida causou nele enquanto criança e as consequências disso em sua
personalidade enquanto adulto. Pôde-se perceber que Shadow nunca teve, na
infância, muitas oportunidades para formar vínculos fortes, seja com os lugares
onde morou, seja com as pessoas com quem conviveu. Segundo o texto, eles
“nunca ficavam em um mesmo lugar por tempo suficiente para que Shadow fizesse
amigos, se sentisse em casa, relaxasse”. Logo, conclui-se que a personagem viveu
sob tensão durante toda a infância, sem poder nem mesmo “relaxar”.
A ausência de amizades e a natureza do emprego da mãe, reforçados pela
afirmação do narrador de que ele “observava solenemente o mundo de adultos que
o cercava” denotam uma criança solitária, que passava mais tempo com pessoas
muito mais velhas que ele do que com outras crianças – o que fica ainda mais
evidente mais adiante quando Shadow explica o porquê de ser assim denominado,
por estar “sempre atrás de algum adulto” (GAIMAN, 2016, p. 297) – e, portanto,
muito quieta, além de muito pequena, o que lhe causava problemas com outras
crianças: além da fragilidade e exposição ao prevalecimento de crianças maiores
por sua estatura, destacava-o como alvo o estatuto constante da criança forasteira
– o colega novo que chega, vindo “de fora”, que é encarado com desconfiança por
aqueles que já permanecem em um determinado local por mais tempo, constituindo
um grupo homogêneo, que o recém chegado “invade” de repente.
Essa atitude das outras crianças em relação ao Shadow criança é confirmada
no parágrafo seguinte, que assim começa: “Na primavera de seu décimo terceiro
ano de vida os garotos da cidade onde morava implicavam com ele, obrigando-o a
entrar em brigas que sabiam que não tinham como perder” (GAIMAN, 2016, p. 204-
205). Até a primavera de seus treze anos, então, Shadow foi uma criança retraída
e pequena que apanhava de outras crianças maiores que ele. Porém, uma mudança
109

estava por ocorrer, uma que repercutiria pelo resto de sua vida, mudando-a por
completo:

Daí veio o verão, seu décimo terceiro verão, longo e mágico, que passou
evitando os garotos maiores, nadando na piscina pública da cidade, lendo
livros da biblioteca à beira da piscina. No começo do verão, Shadow mal
sabia nadar. No fim de agosto, dava voltas e mais voltas na piscina com
toda a tranquilidade, pulando da plataforma alta, desabrochando em um
marrom escuro entranhado de sol e de água. Em setembro, voltara às
aulas e descobrira que os meninos que haviam infernizado sua vida eram
coisinhas pequenas e molengas, incapazes de continuar incomodando. Os
dois que tentaram brigar com ele tiveram que aprender boas maneiras com
uma dura, rápida e dolorosa lição. (GAIMAN, 2016, p. 205)

Além da modificação física de Shadow, possibilitada principalmente pela


explosão hormonal responsável pelas transformações pelas quais os adolescentes
passam, aliada, em seu caso, à prática intensa da natação durante o verão, é
possível vislumbrar aí dois aspectos interessantes sobre a personagem: sua relação
com os livros, atividade à qual mais se dedicou nesse período, junto à natação; e a
cor de sua pele, desabrochada em um “marrom escuro entranhado de sol e água”
(GAIMAN, 2016, p. 205). A esta última característica será dada maior destaque mais
adiante, ao serem avaliados alguns aspectos culturais que formam a identidade de
Shadow.
Quanto à sua relação com os livros, não pode ser considerado mero detalhe
que uma personagem, ainda mais se for levado em conta ter sido criada por um
autor como Gaiman – cuja própria relação com os livros já foi brevemente exposta
anteriormente –, dotada de tal complexidade de caráter como Shadow, tenha
encontrado refúgio, durante uma infância tão difícil e solitária, nos livros. É um
detalhe que não pode, sobretudo, passar batido ao leitor, também pela íntima
relação dos livros com o saber, com o conhecimento e a inteligência.
Retomando mais uma vez o princípio da obra, a personagem é apresentada
ao leitor simplesmente como alguém grande e que inspira temor pela expressão de
seu rosto. Privilegia-se, num primeiro momento, defini-lo por seus atributos físicos,
o que por si só já induz o leitor à conclusão de que o corpo dessa personagem tem
uma importância maior do que sua inteligência. Além disso, encontra-se preso, o
que conduz à impressão lógica que se está diante de alguém que fez más escolhas
na vida. Uma de suas principais ocupações na prisão, para passar o tempo, foi
manter-se em forma, o que também se revela já no primeiro parágrafo da obra, e,
110

como se sabe, seu emprego antes da prisão era de preparador físico em uma
academia, emprego este que estava sendo mantido para ele, por Robbie, para
quando saísse.
Verifica-se, assim, um esforço da narrativa no sentido de formar, de início, a
imagem de alguém que se constitui por uma ênfase no corpo, no físico, na força, o
que, numa análise influenciada pelo conhecimento prévio de personagens
estereotipadas que apresentam semelhantes qualidades, leva à constatação de que
a relevância disso se dá em detrimento do uso da razão e da lógica, da presença
de um intelecto mais acentuado. Por isso mesmo, o fato de Shadow demonstrar ter
lido e compreendido Heródoto, ainda na prisão, causa surpresa em Low Key
Lyesmith; isso também já é um indício para o leitor, no primeiro capítulo mesmo, de
que as primeiras impressões podem ser enganosas, mas só no oitavo capítulo se
revela que a leitura era um hábito constante do adolescente Shadow. A partir disso,
fica mais difícil acreditar na aparente simploriedade do protagonista, podendo-se
concluir que se trata mais de uma espécie de defesa utilizada deliberadamente por
ele, interpretação que pode ser derivada do seguinte trecho:

Foi quando Shadow percebeu que tinha se redefinido: não podia mais ser
um garoto quieto, que fazia o possível para não aparecer e não atrapalhar.
Era grande demais para isso, óbvio demais. No fim do ano, já fazia parte
do time de natação e do time de levantamento de peso, e o técnico de
triatlo começara a cortejá-lo. Shadow gostava de ser grande e forte. Aquilo
lhe proporcionava uma identidade. Tinha sido uma criança tímida, não era
de falar, lia muito, e isso fora muito doloroso. Agora era um cara grande e
burro, e ninguém esperava que ele fosse capaz de nada além de levar um
sofá de um cômodo para outro, sem nenhuma ajuda.
Pelo menos ninguém até Laura. (GAIMAN, 2016, p. 205)

Importante a atribuição da palavra “redefinido” nesse contexto: não apenas


Shadow se redefiniu perante as outras crianças, voltando das férias de verão
renovado, como que metamorfoseado, maior e mais forte, mais temível e
respeitado, fazendo com que não lhe causassem mais problemas; Shadow se
redefiniu também perante si mesmo, na forma como ele próprio se definia. Seu valor
como indivíduo, como parte de um corpo social, mudara: de alguém que procurava
se esconder, que não queria atrapalhar, ficar no caminho, ele passa a ser alguém
cujo tamanho e notoriedade não só impossibilitam que aja dessa maneira, por
chamar muita atenção, como lhe conferem como que um novo poder: a
possibilidade da exploração de seu corpo como atividade. Passara a ser alguém
111

cogitado e atuante como membro de equipes esportivas, fator muito valorizado nas
escolas estadunidenses, bem como na sociedade daquele país de forma geral, o
que muda completamente seu status.
Percebe-se, também, que Shadow gosta da transformação pela qual passa.
Ele considera mais fácil ser “grande e burro”, sem despertar nas pessoas com quem
convive nenhuma expectativa quanto a sua capacidade intelectual. Preferia ser visto
como alguém cuja capacidade se restringe a poder levar um sofá de um cômodo a
outro sem ajuda, ou uma pessoa morta, como em Cairo, de uma maca a uma mesa
de necrotério com relativa facilidade. Essa é a maneira como ele escolhe se portar
e se posicionar, e ele o faz conscientemente, pois isso lhe é menos doloroso do que
ser a criança tímida que lê muito.
Isso não significa, por si só, que a leitura perdeu, de repente, todo o espaço
que ocupava na vida da personagem. Significa, apenas, que não é esse um aspecto
que ela busca dar relevo ao se apresentar para outras pessoas. Shadow não se
esforça em parecer mais inteligente do que as outras personagens conseguem
perceber num primeiro momento; no entanto, um contato mais contínuo com ele
deixa seus interlocutores no mínimo intrigados, como deixa transparecer Sam Black
Crow em certo momento da conversa que as duas personagens travam enquanto
Shadow dirigia até Cairo:

“– Sabe – confessou ela, com o olhar meio perdido –, eu não entendo. Não
entendo esse seu jeito de falar, essas palavras que você usa e tal. Primeiro
você é um grandalhão meio mané, depois lê minha mente, e agora a gente
começa a falar de Heródoto”. (GAIMAN, 2016, p. 168)

É possível verificar aí uma discrepância entre o que Shadow aparenta ser


antes e depois de alguns minutos de conversa. Considerando que o diálogo entre
essas duas personagens é um dos mais longos no romance, iniciando na p. 162 e
terminando na p. 170, e que é aquele em que Shadow se mostra mais à vontade e
falante (talvez pelo fato de ter certeza de sua interlocutora se tratar de uma humana,
algo sobre o que ele a questiona, além de ela se mostrar também bastante aberta
e interessada), pode-se concluir que não são muitas as pessoas que chegam a ter
essa percepção de Shadow como, nas palavras de Sam, “um cara peculiar” (p. 167)
e “bem doido”, mas “legal” (p. 171).
112

Os outros encontros que Shadow tem com humanos comuns (isto é, que não
são deuses ou seres lendários) no romance se dão sob circunstâncias especiais,
que não permitem a ele a mesma abertura. Alguns desses momentos aparecem no
primeiro capítulo, em que ele ainda está na prisão, período em que ele faz um
esforço para se manter calado e não falar muito de si, pois não quer arranjar
problemas; em outro momento, ele está residindo em Lakeside sob uma outra
identidade, a de Mike Ainsel, e obedecendo a ordem de Wednesday de se manter
discreto. Ele conversa com certa frequência com alguns cidadãos, como o delegado
Chad Muligan, porém tudo o que fala sobre si é parte do disfarce que assume, algo
para o que ele demonstra grande desenvoltura, como demonstrado acima, na p. 56,
no recorte que faz referência à forma como Shadow conseguia contar a mentira com
facilidade, convicção e naturalidade35.
Quanto aos deuses, já se fez referência, na p. 49, a um diálogo do
protagonista com o sr. Nancy, em que o deus num momento o julga pela falta de
inteligência, para depois reconhecer que talvez isso não seja verdade. O mesmo
deus, em outro momento, afirma: “Sempre que eu penso que você não tem como
entender, já que é burro feito uma porta, você vem e me surpreende” (GAIMAN,
2016, p. 431), como reação ao fato de Shadow demonstrar que entendia o que eram
os Bastidores.
Cabe recordar, também, da aposta entre o protagonista e outro deus,
Czernobog, e as duas partidas de damas que os dois disputaram, ao que também
já se fez referência: não obstante sua derrota na primeira delas, Shadow desafia o
deus para mais uma e o vence, em um jogo que, tal como o xadrez, tem íntima
relação com a capacidade de raciocínio lógico com a qual seus praticantes são
dotados. Não só isso, mas também a perspicácia que Shadow demonstra ao
persuadi-lo da possível necessidade de uma segunda chance para matá-lo,
alegando que se passara muito tempo desde que o deus manejara sua marreta e
poderia ter perdido o jeito, o que o leva a aceitar uma segunda partida sob os

35
Impossível não fazer referência, aqui, como essa facilidade que o protagonista demonstra para
contar uma mentira e assumir uma outra identidade o aproxima da figura de seu pai, Wednesday,
uma personagem tão marcada pela habilidade em contar mentiras, dar golpes e enganar quem quer
que seja para conseguir o que deseja (inclusive, e especialmente, os deuses, que são as principais
vítimas em potencial de sua armação junto a Loki). Uma vez mais se percebe a “sintonia com o pai”,
uma das subdivisões do estágio da iniciação estudado no capítulo anterior, acerca do percurso do
herói, segundo o qual uma das tarefas do herói é, simbolicamente, aprender o ofício de seu pai e
receber dele os instrumentos para completar sua missão, de acordo com Campbell (2007).
113

mesmos termos. Frieza, raciocínio lógico, perspicácia e persuasão: não são


atributos encontrados com muita frequência em personagens caracterizados pela
força bruta e considerados, como se diz de Shadow algumas vezes (até por ele
mesmo), “burros”.
Exemplos como os mencionados deixam transparecer as contradições entre
a “máscara” que Shadow utiliza, possibilitada pela sua aparência física segundo a
qual escolhe, conscientemente, como demonstrado, agir de acordo, e sua
verdadeira natureza, a qual, sem excluir esses atributos físicos, que são, por sua
vez, autênticos, traz, na verdade, aliado a eles, em um nível mais profundo,
soterrado sob essa camada mais visível (talvez até em um nível inconsciente), os
reflexos da criança pequena e tímida que se refugiava em livros para evitar as
agressões sofridas, que deixaram de ser um problema depois de seu
desenvolvimento físico.
O fato de Shadow possivelmente associar o tempo que passava em suas
leituras com o indivíduo frágil que sofria abusos de outras crianças e se sentia
solitário e desprovido de um lar propriamente dito constitui uma explicação razoável
para sua redefinição como um “cara grande e burro” representar para ele uma
evolução e uma identidade que assume. Associada a isso, uma lembrança a
respeito de sua mãe que o protagonista revisita após sua morte na Árvore do
Mundo, enquanto percorre o limiar entre a vida e a morte, ao tomar o caminho das
verdades difíceis indicado por Zorya Polunochnaya:

No leito do hospital, a mãe está morrendo de novo – como morrera quando


Shadow tinha dezesseis anos –, e, sim, ali estava ele, um garoto de
dezesseis anos grande e desajeitado, com espinhas na pele cor de café
com leite, sentado ao lado da cama, incapaz de olhar para a mãe, lendo
um livro barato e grosso. Shadow ficou curioso com o título do livro e
contornou o leito para ver melhor. Parou entre a cama e a cadeira, e seus
olhos se alternaram entre os dois, enquanto o garoto grandalhão, curvado
na cadeira, mergulhava em O arco-íris da gravidade36, tentando escapar
da morte da mãe fugindo para a Londres da Blitz – e a loucura fictícia do
livro não servia nem de fuga nem de desculpa. (GAIMAN, 2016, p. 451)

36
Romance escrito pelo norte-americano Thomas Pynchon, publicado em 1973, notável pela sua
extensão (de mais de 700 páginas) e complexidade estrutural, contendo centenas de personagens
e múltiplas vozes narrativas, que se distinguem em tom e estilo, sendo assim considerado um
romance pós-moderno. Encontra-se elencado em uma lista dos 100 melhores romances em língua
inglesa organizada pela revista Time (considerados apenas os romances publicados a partir de 1923,
ano do início da publicação da revista, até 2010, ano da publicação da lista).
114

Percebe-se como mais uma memória negativa da personagem é associada


ao seu hábito de leitura – uma atitude da qual se envergonhava, de não encarar a
morte da mãe, de não fazer nenhum gesto como segurar sua mão, dizer algo ou
fazer qualquer coisa enquanto sua vida se esvaía numa cama de hospital, em vez
disso se deixando perder para dentro de um livro, ou pelo menos tentando, sem
sucesso, visto que “não servia nem de fuga nem de desculpa”.
A consequência dessa tentativa vã de fuga utilizando-se dos livros, ligada a
uma experiência tão traumática quanto a morte da mãe, sua única família, quando
ainda era um adolescente, é a perda da confiança na ficção, que resulta em uma
ruptura quase que definitiva entre Shadow e os livros: “Depois disso, Shadow meio
que perdeu o hábito de ler. Não dava para confiar na ficção. De que serviam os
livros, se não ofereciam nenhuma proteção contra uma coisa daquelas?” (GAIMAN,
2016, p. 451)
Tendo em vista que essa memória só é revisitada, no romance, em morte,
numa passagem em que a personagem encara, além dessa, outras “verdades
difíceis” – momentos cruciais em sua vida, que, além de marcar grandes mudanças,
evocam sentimentos negativos como raiva, culpa e vergonha –, pode-se concluir
que a lembrança, já bastante remota, ficara relegada a um passado distante,
esquecida ou pelo menos pouco acessada. A ruptura com os livros, seja esta uma
escolha consciente ou uma atitude tomada inconscientemente, pode ser
interpretada como uma forma de escapar à dolorosa lembrança do falecimento da
mãe.
O hábito inicia a ser retomado, pelo que se pode verificar no texto, apenas
quando Shadow já se encontra preso, com 32 anos de idade, quando, não por
acaso, Low Key Lyesmith lhe empresta um exemplar de Histórias, de Heródoto.
Shadow, de forma emblemática, alegou, de início, que não lia livros – uma meia-
verdade – mas, ainda que relutante, “começou a ler mesmo assim e, quando viu,
não conseguia mais parar” (GAIMAN, 2016, p. 20).
O protagonista, aliás, chama a atenção por não ser um preso comum. Viu-se
como Sam considera estranho que, percebendo-o de início como um “grandalhão
meio mané”, a seguir ele “leia sua mente”, ou, em outras palavras, demonstre
capacidade para, a partir de uma simples observação, tirar conclusões corretas a
seu respeito. Supõe, corretamente, que ela está na faculdade, “Onde com certeza
cursa história da arte e estudos de gênero e provavelmente faz esculturas em
115

bronze. E deve trabalhar em um café, para ajudar a pagar o aluguel” (GAIMAN,


2016, p. 166), o que é confirmado pela reação de surpresa de Sam: “Cacete, como
foi que você fez isso?” (GAIMAN, 2016, p. 166) –, além de, após isso, começar a
conversar sobre Heródoto.
Da mesma forma, retoma-se um trecho já citado anteriormente no capítulo 2,
observando que até mesmo um guarda da prisão se demonstra confuso em relação
a Shadow, afirmando não o entender, pois, apesar de jovem, o protagonista se
comporta “como os mais velhos”: o guarda utiliza os adjetivos “paciente”, “quieto” e
“educado” (GAIMAN, 2016, p. 25)., características que fazem com que ele se
assuste. Essa atitude se reflete também na forma como o discurso de Shadow se
diferencia em relação aos de seus pares.
Já dentro do ônibus que o levava da cadeia para uma rodoviária, logo após
ser solto, Shadow se recorda de seu primeiro companheiro de cela, Johnnie Larch.
Este lhe conta sobre uma ocasião em que já havia sido liberado da prisão depois
de cinco anos como prisioneiro; porém, ao tentar comprar uma passagem de avião,
a atendente negou-se a entregá-la a ele, tendo como justificativa o vencimento de
sua carteira de motorista, que por isso não serviria para comprovar sua identidade.
Larch então reagiu agressivamente, dizendo que “não aceitaria uma falta de
respeito daquelas. Não dava para aceitar falta de respeito na cadeia” (GAIMAN,
2016, p. 28). Como consequência disso, Johhnie Larch acaba retornando à prisão,
onde Shadow o conhece. A moral da história, segundo Larch, era que não se devia
irritar os empregados de aeroportos. Ao ouvir isso, Shadow responde:

- Tem certeza de que não era algo como “certos comportamentos que se
mostram adequados em um ambiente específico, como uma cadeia,
podem não ser adequados, ou, na verdade, podem até ser nocivos,
quando se está fora desse ambiente”? (GAIMAN, 2016, p. 29)

Percebe-se aí uma marca de ponderação na personalidade de Shadow que


contrasta, ao menos em um julgamento precoce, com o fato de ele ser, tanto quanto
seu interlocutor naquele momento, um prisioneiro. Aqui se identifica, portanto, uma
estratégia de Gaiman na construção da personagem que leva o leitor a identificar
Shadow como alguém que destoa daqueles que o rodeiam, efeito que se obtém a
partir do diálogo entre duas personagens, a partir da comparação entre suas
respectivas vozes.
116

A diferença entre elas se torna ainda mais gritante com a reação de Johnnie
Larch à observação de Shadow: “- Não, presta atenção no que eu estou falando,
cara – dissera Johnnie Larch -, não irrite as vadias dos aeroportos” (GAIMAN, 2016,
p. 29). Neste contexto, o discurso de Shadow, pelo modo como é articulado, se
distingue bastante da linguagem utilizada pelo seu ex-companheiro de cela,
marcada por gírias, como “cara”, e expressões chulas, como “vadias”, ao se referir
às mulheres. É possível verificar a “diversidade social de linguagens” característica
do gênero romanesco, conforme Bakhtin, que afirma:

O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas


artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. (...) E é graças
a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes
diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo
objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os
discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das
personagens não passam de unidades básicas de composição com a
ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance. (BAKHTIN, 2002,
p. 74-75)

A exemplo do que foi afirmado a respeito do diálogo entre Shadow e Johnnie


Larch, percebe-se o plurilinguismo social de que fala Bakhtin no intercurso entre o
protagonista e todas as demais personagens da obra, especialmente Wednesday,
com quem passa a maior parte do tempo, bem como outros deuses, que se
constituem como essas vozes diferentes que formam os temas orquestrados no
romance.
Em meio a esta diversidade social de linguagens que forma Deuses
Americanos, a voz de Shadow se faz ouvir quase sempre na forma de reflexões
como a destacada acima, que pensam e desconstroem a realidade em que vive.
Nem sempre essas reflexões são externadas, com o protagonista efetivamente
dizendo o que pensa, como na passagem acima; como já foi dito, Shadow se
esforçava, enquanto prisioneiro, em ficar calado para não arrumar confusões, e,
mais tarde, já como subordinado de Wednesday, ele mantém esse modo de
proceder, guardando a maioria de suas constatações para si. Ao leitor, no entanto,
através da ação do narrador, é dado o conhecimento do seu posicionamento nesses
casos; em outros, suas atitudes dão conta disso.
Bastante ilustrativo do último caso é uma passagem em que Shadow percebe
que Wednesday engana uma garçonete, contando o dinheiro diante dela para que
ela o “visse” entregar a quantia correta, mas na verdade utilizando-se de um artifício
117

para pagar-lhe menos dinheiro. Vendo isso, Shadow lança mão de seu próprio
artifício, fazendo parecer que juntava uma nota que teria caído no chão para
entregar à garçonete, quando na verdade estava dando do próprio dinheiro. Shadow
provavelmente teria dado como feita a justiça sem maiores comentários, não fosse
o próprio deus confrontá-lo a respeito, e, diante disso, Shadow mantém firme sua
posição.

- O que foi aquela palhaçada com os dez dólares?


- Você pagou a menos. Descontam do salário dela, se não tiver o dinheiro
todo.
- E por que você se importa?
Wednesday parecia realmente furioso.
- Bom, eu não ia gostar que fizessem isso comigo. A garçonete não havia
feito nada de errado. (GAIMAN, 2016, p. 301)

Uma vez mais, Shadow demonstra empatia diante de alguém sendo


injustiçado, e sua atitude é repará-la de uma maneira que passa quase
despercebida, à exceção de Wednesday. O deus leva a discussão adiante,
contando vários detalhes sobre a vida da garçonete com a intenção de convencer
Shadow de que, ao contrário do que este disse, ela havia feito, sim, muitas coisas
erradas, mas ele não se convence: “- Você roubou dez pratas daquela garota, e eu
dei dez pratas para ela – insistiu Shadow, com teimosia. – Era a coisa certa a fazer,
e eu fiz” (GAIMAN, 2016, p. 302). Ele demonstra aqui, em uma das poucas vezes
em que age e fala abertamente, até esse momento, uma inclinação para fazer
justiça, ainda que de forma tímida. Revela-se aí, portanto, um aspecto de sua
personalidade que o aproxima da figura heroica em termos de motivação, o que é
de diluído pela forma como escolhe proceder, ainda “nas sombras”.
Além disso, pode-se perceber pela mesma passagem como as relações
entre as ações de Shadow e o comportamento das divindades determinam a
imagem dele percebida pelo leitor. Ele, Shadow, em sua mortalidade e falibilidade
humanas, com todo o peso de seus erros do passado que terminaram por levá-lo à
prisão; com suas mágoas pelas perdas de seus entes queridos; ainda assim, é ele
que demonstra ter um senso de justiça ao não permitir que a garçonete tenha o
salário descontado pela falta de dez dólares no paagamento, em contraste com o
deus Odin, que, apesar de seu caráter divino, é quem engana e rouba na ocasião,
pensando apenas em si próprio, na sua subsistência, não importando o prejuízo
sofrido por quem é enganado.
118

Até agora, pôde-se observar como Deuses americanos inicia com uma
descrição bastante direta sobre Shadow. Logo no primeiro parágrafo, o leitor é
informado que ele passara três anos na cadeia, que é um homem grande e taciturno,
cuja preocupação, nesse período, fora se manter em forma, aprender truques com
moedas e pensar na esposa. A partir disso, tem-se uma impressão enganosa de
que se está diante de uma personagem simples, até mesmo plana. Porém, tal
impressão vai se desfazendo aos poucos, conforme se avança na leitura.
Apesar de sua força e tamanho, ressaltadas em sua descrição, Shadow é
ponderado, não busca resolver tudo à base da violência; pelo contrário, procura se
afastar disso. Em diversos momentos, como já exposto, outras personagens, como
Sam Black Crow e o sr. Nancy, são surpreendidas pela sua capacidade analítica,
após terem-no julgado pela sua aparência e pelo seu silêncio. Pôde-se concluir,
também, que na verdade Shadow prefere assim: após seu rápido crescimento aos
treze anos, o que ele encarou como uma verdadeira redefinição de si mesmo, ele
abraça a sua nova condição de ser grande e forte, pois isso lhe conferia determinada
identidade.
Percebe-se aí que a questão identitária é um problema para Shadow: quando
se vê de posse de um novo status, em que suas novas habilidades se provam úteis
ao lhe proporcionarem um propósito, ele se agarra a isso, não hesitando em deixar
de lado os velhos hábitos. Em outras palavras, ser o “cara grande e burro” confere
a Shadow um “sentido de si” estável, algo ainda inédito em sua vida. Agindo dessa
forma, ele passa a se sentir seguro, deixando de ser alvo dos colegas que o
importunavam e conhecendo uma finalidade para a qual empregar seus esforços.
Porém, a crise de identidade de Shadow se mostra mais profunda à medida
em que demonstra não saber, e nem ao menos se interessar, pelas suas origens.
Duas vezes ele é questionado acerca da etnia a que se filia: na primeira delas, o
guarda da prisão que se diz assustado com Shadow, ao observar que sua
educação, seu silêncio e sua paciência o tornam parecido, nesses aspectos, com
os prisioneiros mais velhos, é levado, por isso, a questioná-lo: “E você é o quê?
Cucaracho? Cigano?”, para depois afirmar “Vai ver tem sangue de preto” (GAIMAN,
2016, p. 25). Aparentemente, a filiação a uma dessas etnias, diferentes da do
próprio guarda e na opinião deste, de alguma forma poderia ter relação com o fato
de Shadow se portar de maneira tranquila, ao contrário de outros presos com a
mesma faixa de idade dele, causando, assim, temor no guarda.
119

Outra situação em que fica implícita, apesar de incerta, a etnia de Shadow é


em seu longo diálogo com Sam. A menina lhe pergunta se possui sangue indígena
em dois momentos diferentes da conversa. No primeiro deles, ela está fazendo
perguntas sobre ele, tentando conhecer quem é o sujeito que estava lhe dando
carona, e ela justifica a pergunta “Você tem sangue indígena” dizendo: “É que
parece um pouco” (GAIMAN, 2016, p. 165).
Aqui, a ideia que fica subentendida é que há algo perceptível na aparência
de Shadow, provavelmente a cor da pele, que poderia indicar uma ascendência
indígena, o que ajuda também a esclarecer as perguntas feitas pelo guarda. Sobre
isso, a pele de Shadow é descrita com a expressão “cor de café” na página 450 e,
antes, na página 205, sua redefinição em um garoto grande é acompanhada da
expressão “desabrochado em um marrom escuro entranhado de sol e de água”.
Num segundo momento da conversa, Sam questiona Shadow: “Tem certeza
de que não tem ascendência indígena?” (GAIMAN, 2016, p. 168). O interessante
nessa nova interpelação é que ela aparece em seguida a outra pergunta: “Como
soube que eu fazia esculturas em bronze”, ao que Shadow responde: “Chutei. Só
falei por falar”. Pode-se interpretar, a partir disso, que aquilo que suscita novamente
essa dúvida em Sam é o fato de Shadow parecer ter conhecimento de coisas que
ela não havia revelado a ele como que por adivinhação, ou um sentido muito
aguçado de observação. A garota revela, mais tarde na mesma conversa, ter, ela
mesma, ascendência cherokee, uma tribo indígena norte-americana, por parte de
seu pai, o que indica que ela não é de todo ingênua em sua ideia sobre a possível
filiação de Shadow ter relação com a habilidade por ele demonstrada.
Não obstante, nessas duas conversas em que sua etnia é questionada,
Shadow demonstra ignorância a esse respeito. A resposta conferida a Sam traz
indícios um pouco mais reveladores a serem discutidos: “Não que eu saiba. É
possível. Nunca conheci meu pai. Mas acho que minha mãe teria falado se ele fosse
de alguma tribo nativo-americana. Talvez” (GAIMAN, 2016, p. 168). Percebe-se que
Shadow admite ser possível a hipótese de ter sangue indígena, uma vez que nunca
conhecera o pai, apesar de afirmar pensar que sua mãe lhe teria informado algo a
respeito se fosse o caso, pensamento esse que, por sua vez, não é calcado em uma
forte convicção, a julgar pelo “talvez” que Shadow adiciona ao final.
Sabendo-se que, na verdade, o pai de Shadow é Wednesday, a versão
americana de um deus escandinavo, não parece provável que essa herança venha
120

dele. No entanto, Shadow parece ignorar a hipótese de que tal proveniência poderia
vir do lado da mãe, a quem conheceu. Também não se tem em momento algum
uma descrição física materna em que tal hipótese poderia ser apoiada. Restam
como únicos indícios de caráter mais concreto, até esse momento, portanto, as
desconfianças a esse respeito por parte de Sam e do guarda.
Mais adiante, no capítulo DOZE, em uma das viagens em que Shadow
acompanha Wednesday, a dupla dirigia pelo estado de Dakota do Sul, em uma
região de reserva indígena, quando, após um desvio pelos “bastidores”, eles visitam
a propriedade de Whiskey Jack37, um nativo-americano que não se identifica como
um deus, mas como um símbolo cultural. Adiantando-se a Wednesday, o indígena
demonstra saber o que o deus nórdico pretende em sua visita, e de pronto se recusa
a tomar parte na guerra. Seu interesse na conversa, na verdade, se volta para
Shadow, a quem observa: “– Sabia que vocês não têm como chegar aqui sem que
eu queira?” (GAIMAN, 2016, p. 338), algo que o protagonista imediatamente “se
deu conta de que sabia”.
Whiskey Jack demonstra saber que Shadow está “caçando alguma coisa” e
que “quer quitar uma dívida”, o que se refere à busca do protagonista por uma
maneira de trazer Laura de volta à vida, algo que ela lhe pedira. Além disso, ele
pede que Shadow lhe conte o sonho que tivera recentemente: “– Eu estava
escalando uma torre de crânios. Pássaros gigantes voavam em volta dela. Saíam
raios das asas deles. Os pássaros me atacaram. A torre caiu.” (GAIMAN, 2016, p.
338). A partir dessa informação, Whiskey Jack afirma “– Nem todo mundo sonha
com os Wakinyau, os pássaros do trovão (...) Sentimos o eco aqui” (GAIMAN, 2016,
p. 338).
O fato de que não é possível chegar ao lugar onde mora Whiskey Jack sem
que ele queira, somado ao interesse em Shadow levam à conclusão lógica de que,
se o protagonista estava ali, é porque o indígena queria assim; além disso, a
afirmação de que não é possível a qualquer pessoa sonhar com o pássaro do
trovão, animal mitológico ligado às lendas indígenas norte-americanas, dá a

37
Uma corruptela do nome de origem indígena Wisakedjak, trata-se de um herói cultural da tribo
indígena norte-americana Cree. Apesar de ser mais um dos personagens em deuses americanos
que em suas respectivas culturas são identificados como tricksters (termo que pode ser traduzido
aproximadamente como “pregadores de peças”), Wisakedjak é retratado nas lendas como um ser
benevolente, amigo e professor da humanidade, nunca destrutivo ou perigoso. Fonte:
http://www.native-languages.org/wisakejak.htm. Acesso em: 29 set 2019.
121

entender que Shadow possui algo que o torna digno daquele sonho; nota-se, assim,
que a construção narrativa, embora não declare explicitamente, funciona no sentido
de, gradualmente, levar o leitor a perceber que deve haver, de fato, alguma
ancestralidade indígena na personagem, visto que, mais de uma vez, ele é
questionado sobre essa possibilidade, e a ele é permitido acesso tanto a uma área
geográfica controlada pela vontade de um nativo, quanto a sonhos contendo seres
ligados a esses povos.
Conhecendo a busca de Shadow e sendo informado da natureza de seu
sonho, em uma conversa “sem palavras, sem a boca, sem som” (GAIMAN, 2016, p.
339), Whiskey Jack aconselha o protagonista da seguinte forma:

- Eia. É verdade. Se você caçar o pássaro do trovão, pode trazer sua


esposa de volta. Mas ela pertence ao lobo, aos lugares mortos, não deve
andar pela terra.
- Como você sabe? – perguntou Shadow.
Os lábios de Whiskey Jack não se moveram.
- O que o Búfalo falou para você?
- Para eu acreditar.
- Um bom conselho. Você vai seguir?
- Acho que sim. Não sei.
(...)
- Quando você encontrar sua tribo, venha me ver de novo – instruiu
Whiskey Jack. – Eu posso ajudar. (GAIMAN, 2016, p. 338-339)

Whiskey Jack, dessa forma, admite ser possível que Shadow traga Laura de
volta à vida se caçar os pássaros do trovão, mas adverte-o de que ela não pertence
mais ao mundo dos vivos. Além disso, o índio o inquire sobre o Búfalo, que aparece
recorrentemente em sonhos a Shadow, sendo um dos principais guias da
personagem através do romance. O búfalo, assim como os pássaros do trovão, é
um animal sagrado para os índios norte-americanos, o que é mais um indício da
possível origem de Shadow. Por último, Whiskey Jack convida Shadow a retornar
àquele lugar quando encontrasse “sua tribo”; ele não coloca a questão como uma
hipótese, “se” o protagonista encontrar sua tribo, mas “quando”, como se não
houvesse dúvida de que existe uma tribo a que ele pertença, restando apenas
encontrá-la.
Shadow retorna para a casa de Whiskey Jack quando este o desperta de seu
Nada, no capítulo DEZOITO, após sua morte. Nesse segundo encontro, o índio se
refere a Shadow chamando-o de “primo” (GAIMAN, 2016, p. 483), indicando
parentesco entre eles; ao mesmo tempo, quando fala sobre problemas trazidos pelo
122

homem branco à América, ele usa o pronome “vocês” e a expressão “seu povo”, o
que por sua vez indica familiaridade de Shadow também com esse grupo: “Vocês
vieram aqui para a América, pegaram nossa cana-de-açúcar, nossas batatas, nosso
milho, aí vieram vender batatas fritas e pipoca doce, e nós é que ficamos doentes”
(p. 484), é uma de suas acusações; “Vocês são preguiçosos demais para olhar em
volta e ver onde estão, ler as montanhas e as nuvens, então precisam espalhar
placas para tudo que é lado” (p. 485), é outra.
Assim, é possível pensar em Shadow como uma personagem que contém
traços de diversas culturas, simultaneamente pertencendo e despertencendo a elas,
uma condição que o coloca como uma figura limítrofe, cujas origens culturais se
localizam na fronteira, conforme Bhabha (2005).
Aqui convém lembrar que, tão problemática quanto a questão da
ancestralidade de Shadow, tem-se a questão do local a que pertence. Como se viu,
Shadow e a mãe se mudavam constantemente durante toda sua infância até o
momento em que ela morre, quando o protagonista tinha 16 anos. Num primeiro
momento, até seus 8 anos de idade, residiram em vários lugares da Europa, quando
a mãe trabalhava em embaixadas americanas nessas localidades; só depois dessa
idade Shadow assou a residir efetivamente nos Estados Unidos, mas mesmo assim
sem se fixar em nenhum local. Ele é americano, pois sua mãe é americana; além
disso, é o país onde morou a maior parte de sua vida. Entretanto, o seu olhar diante
da sociedade da qual faz parte segue sendo, pelo menos em parte, o olhar de um
forasteiro, alguém que mais se acostumou com o local em que vive do que pertence,
de fato, a ele.
Ilustrativo da falta de um local ao qual pertence é um diálogo que Shadow
tem, na cadeia, com Sam Fetisher, um prisioneiro mais velho, primeiro personagem
do romance a anunciar a chegada de uma tempestade, afirmando que seria melhor
para Shadow permanecer na prisão, aconselhando-o a “ficar na sua”. Fetisher, no
mesmo diálogo, pergunta de onde Shadow é. A primeira resposta de Shadow é “–
Eagle Point. Indiana” (GAIMAN, 2016, p. 24).
Eagle Point é a cidade onde Shadow residia com Laura, que mesmo o próprio
Shadow, em outra ocasião, reconheceria não ser, de fato seu lugar, ao ser
perguntado por Wednesday se sentiria falta do lugar que estavam deixando: “Da
cidade? Não. Tem lembranças demais de Laura. Eu não criei muitas raízes. Nunca
123

passei muito tempo parado no mesmo lugar quando era pequeno. Só vim pra cá
com vinte e poucos anos. Esta é a cidade de Laura”.(GAIMAN, 2016, p. 83).
Ao ouvir a resposta de Shadow, Sam Fetisher acusa-o de “mentiroso de
merda”, alegando que queria saber “sua origem de verdade”, então ele reformula a
pergunta: “De onde são seus velhos?” (GAIMAN, 2016, p. 24). Dessa vez, a
resposta de Shadow é “Chicago”, onde sua mãe havia morado quando criança, e
onde ela morrera. Shadow, mais uma vez, tem de recorrer ao local de origem de
outra pessoa para falar de “sua origem de verdade”, desta vez da mãe, o que parece
ser até mais importante na opinião de Sam Fetisher, considerando que ele não
perguntou onde Shadow nascera, mas sim de onde eram seus pais. Porém, a
ligação de Shadow com essa cidade se resume a ser o lugar onde sua mãe vivera
quando criança e o lugar em que ele próprio habitara por algum tempo, enquanto a
mãe morria, mas onde, a exemplo de todos os outros lugares, nunca estabelecera
raízes.
Conclui-se, assim, que, se Shadow não possui sequer uma origem cultural
bem definida, tão incerta quanto é a sua origem em termos de localização
geográfica. É possível afirmar que o trânsito entre lugares é a posição mais
constante que ele ocupa, nunca parado, sempre em movimento. Assim é, por
consequência, sua identidade: movediça, caracterizada mais pela amalgamação de
uma diversidade de influências de origens incertas do que por especificidades de
locais determinados.
Isso é possibilitado por um processo de mudanças estruturais e institucionais
ocorridos a partir da “modernidade tardia” (HALL, 2006, p. 14) que tem como
resultado o colapso das identidades que asseguravam uma conformidade subjetiva
com as necessidades objetivas da cultura, tornando mais problemático, variável e
provisório o processo de identificação através do qual as identidades culturais são
projetadas. Esse processo resulta na produção do sujeito pós-moderno, o qual,
conceitualmente, não possui uma identidade permanente, fixa ou essencial.
Segundo Hall (2006, p. 13), “a identidade plenamente unificada, completa, segura
e coerente é uma fantasia”, ou seja, essa identidade unificada seria resultado de
uma “narrativa do eu” construída pelo próprio sujeito com o intuito, mesmo que
inconsciente, de criar pontos de sustentação para a própria identidade.
Encontramos em Giddens uma definição que é pertinente a respeito da sociedade
e da identidade que aqui é apresentado em relação a Shadow: as sociedades
124

tradicionais configuram-se como perpetuação da experiência de gerações;


continuidade do passado; práticas sociais recorrentes (1990, p. 37) e contrapõem-
se às sociedades modernas: “sociedades de mudança constante, rápida e
permanente”; forma altamente reflexiva de vida; ritmo e alcance da mudança:
interconexão entre áreas diferentes do globo = toda superfície da terra atingida por
ondas de transformação social (GIDDENS, 1990, p. 6).
Sob essa perspectiva, pode-se afirmar que Deuses Americanos versa sobre
o trânsito em que se encontra o sujeito na busca de reconhecer-se, mas, mais do
que vislumbrar a si próprio, almeja alcançar os sentidos da obscura existência, cuja
realidade contempla sempre da margem. Num contexto de apropriação do que é
passado e contemporâneo, do que é móvel e paradoxalmente fixo. Shadow está
neste âmbito transitório do tempo e do espaço não definido.
Assim, Shadow compõe-se pelo panorama simbólico dos entre-lugares que
temporalizam a personagem, os quais, ao confrontar passado e futuro, possibilitam
repensar a (des)arqueologia do herói. A relação entre presente e passado e os
artefatos construídos pela civilização, motivo da guerra vivida por Shadow, figuram
na narrativa através de deuses primitivos e arcaicos e a modernidade funcional do
mundo tecnológico. Com relação a esse embate de forças, que também se
constituem como dispositivos sociais, Agamben associa a noção de
contemporâneo:

Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o


moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais
arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto
porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-
histórico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar,
aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo
e o arcaico. É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao
presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não
regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no
presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é
incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la.
Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo
vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa
daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema
proximidade), neste não conseguimos viver. A atenção dirigida a esse não-
vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse
sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos (AGAMBEN, 2009,
p. 70).

É exatamente viver o não-vivido do presente, que é relançado do passado, o


que faz de Shadow a figura do herói: ele decide fazer algo que não era uma
125

incumbência ou algo para o qual estava sendo preparado primordialmente. A


arqueologia do herói, nesse caso, não regride, mas se desfaz por completo: essa é
a sua via de acesso ao presente. Alguns contratempos lhe colocaram em uma
posição que lhe possibilitou tomar consciência do mundo. E ele poderia ter somente
desempenhado suas funções, sem ultrapassá-las. Mas não é a escolha de agir que
lhe confere o heroísmo, e sim o fato de ter experimentado o desconhecido, o vazio,
o não-vivido e ter sobrevivido. A (des)arqueologia de Shadow começa quando ele
passa a desconhecer e não controlar o próprio destino e termina quando,
experimentado o mistério do não-ser, ele cumpre o seu destino.
Delineando os passos percorridos por Shadow em sua trajetória,
identificando-a com as etapas do percurso arquetípico do herói, tomando como base
os estudos de Campbell (2007), foi possível perceber que há um movimento de
separação do protagonista de seu próprio mundo; ao iniciar sua jornada, ele se
afasta da realidade como ele a conhece até ali, passa por testes e dificuldades que
o vão preparando para um sacrifício final, para o qual a própria vida é oferecida; tal
ato simboliza, como se viu, a sintonia do herói com o pai, que nada mais é, na
verdade, do que o reencontro do herói consigo mesmo, em sua essência. Mas sua
missão não termina aí: se sua partida e iniciação atingem seu fim com o
autoconhecimento, simbolizado pela morte e ressurreição, resta, enfim, completar
o ciclo retornando à realidade que havia sido deixada para trás, para distribuir as
bênçãos obtidas no processo, pondo fim ao problema que afligia o mundo, o que se
verifica em Deuses americanos pela intervenção de Shadow na batalha dos deuses
e na solução dos crimes cometidos em Lakeside.
Assim como a condição peculiar de Shadow de alguém que, ao mesmo
tempo em que é americano, possui um olhar “de fora” por ter vivido grande parte de
seus anos iniciais em embaixadas pela Europa, o torna apto a possuir um olhar
crítico e diferenciado em relação ao ambiente e à sociedade que ele próprio integra,
possibilitado pela essa posição única que é simultaneamente distanciada e próxima,
também a relação do protagonista com o tempo em que vive, bem como diante da
vida e da morte, é posta em perspectiva pelo caminho que ele percorre. Observe-
se o que diz Agamben (2009, p. 58-59) sobre o contemporâneo:

Pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente


contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem
está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual;
126

mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e


desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e
apreender o seu tempo.

Conclui-se que, segundo o filósofo italiano, deve haver uma “discronia” entre
o sujeito e o tempo em que vive para que ele seja, de fato, contemporâneo. O autor
esclarece que essa discronia não significa que alguém, por se tratar de uma pessoa
nostálgica, seja contemporânea por se sentir pertencente a um outro tempo no
passado, nesse caso; pelo contrário, o contemporâneo tem consciência de que,
apesar dessa não-coincidência com o próprio tempo, ele “lhe pertence
irrevogavelmente, sabe que não pode fugir de seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Não obstante, a peculiar relação com o próprio tempo do contemporâneo, que a ele
pertence, mas com ele não se identifica, é precisamente o que permite que sua
apreensão do tempo em que vive seja mais acurada. Mais uma vez nas palavras
de Agamben (2009, p. 59):

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio


tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de
uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito
plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem
perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Tendo como fundamente esse entendimento sobre a contemporaneidade,


sobre o caráter de ser ou não contemporâneo, é possível afirmar que Shadow, ao
percorrer sua jornada, cumprindo os estágios do herói do monomito de separação-
iniciação-retorno, após fazer sua descida e ascender novamente, torna-se, então,
contemporâneo, pois é a transformação pela qual passa que confere a ele uma nova
atitude, bem como uma nova visão sobre seu tempo; distanciando-se do mundo em
que vivia, o novo ângulo pelo qual passa a encarar o estado em que deixara as
coisas lhe permite apreender o tempo ao qual pertence de maneira mais ampla, e,
assim, enxergar coisas que antes não via.
“É que acabei de ver os índios escondidos” (GAIMAN, 2016, p. 487), é o que
ele afirma a Whiskey Jack, enquanto, já tendo deixado o Nada, aguardava ser
despertado por Easter e Hórus, em referência a uma espécie de jogo em que se
deve procurar os índios escondidos em ilustrações em que são desenhados de
maneira a se confundirem com o cenário. Em outras palavras, o jogo a que Shadow
127

se refere serve como uma metáfora para o fato de que, com os novos
conhecimentos obtidos, ele consegue enxergar, agora, onde antes via apenas uma
paisagem, os índios escondidos: o que parecia ser uma verdadeira guerra entre
deuses antigos e novos era apenas um esquema de dois deuses para obter o poder
gerado pelas mortes, verdadeiros sacrifícios na medida em que dedicam a batalha
a Odin, dos restantes.
Tornar-se verdadeiramente contemporâneo, portanto, no sentido empregado
por Agamben (2009, p. 61), é uma condição para que Shadow possa curar a ferida
que ameaça o seu tempo. O contemporâneo “é essa fratura, é aquilo que impede o
tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra”.
Conforme visto, a personagem que protagoniza Deuses americanos,
enquanto fruto de um tempo como o do final do século XX, sofre muitos de seus
dilemas; as mudanças estruturais que, segundo Hall (2006), vêm transformando o
mundo desde esse período, criaram um tipo de sujeito descentrado, fragmentado,
destituído de classe, etnia ou nacionalidade, ao menos como localizações sólidas
de identidade social. Esse tipo de sujeito está bem representado por Shadow, que
não sabe ao certo sua etnia e sua nacionalidade, apesar de definida pelas
convenções que permitem que seja considerado cidadão americano, poderia ser
discutida dadas as complexidades que a envolvem – afinal, a que país pertence
uma pessoa que até os 8 anos não estabeleceu base fixa, transitando entre vários
lugares diferentes? Assim, Shadow não pode ser um herói em termos clássicos,
como o que se percebe na épica grega, de acordo com o entendimento de Lukács:

“O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre


considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino
pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição e
completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um
todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão
isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de
descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”
(LUKÁCS, 2000, p. 67)

Falta a um sujeito como Shadow essa unidade, o pertencimento a uma


comunidade a ponto de se confundir com ela, formar com ela um todo homogêneo.
O indivíduo, que segundo Lukács não é possível pela organicidade do todo do
cosmos épico, tampouco é possível de ser visto, no fim do século XX, como o foi no
Iluminismo, segundo Hall (2006, p. 10): “totalmente centrado, unificado, dotado das
128

capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consistia num núcleo


interior”; esse indivíduo total, completo, segundo o estudioso inglês, após uma série
de eventos responsáveis pelo descentramento do sujeito 38, dá lugar ao sujeito pós-
moderno, fragmentado, dotado não de uma identidade unificada e estável, “mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (HALL, 2006,
p. 12).
Sustentando, porém, o caráter heroico demonstrado por Shadow ao
sacrificar-se por um propósito maior, colocando em risco sua própria vida por uma
causa que nem ao menos era particularmente sua, mas para a qual havia sido
arrastado por Wednesday, seu pai, para servir como distração e fonte de poder
através desse mesmo sacrifício; e, além disso, tendo sido demonstrada a
adequação dele ao arquétipo do herói estudado por Campbell (2007); propõe-se
aqui, em conclusão, considerar Shadow como pertencente a uma nova categoria de
herói possibilitada pela complexidade do cenário contemporâneo com suas
identidades móveis e diaspóricas: um herói contemporâneo, que, apesar de, pela
sua complexidade identitária, não representar um povo específico, como é o caso
do herói da épica grega, talvez justamente por isso tenha uma capacidade mais
universal de representar a humanidade como um todo.
Shadow é, a propósito, como o campeão escolhido pelo Búfalo que o guia
em sonhos, um signo da terra (com inicial minúscula, mesmo; “terra” como tradução
de land, não Earth, o planeta Terra). Um dos motes repetidos por todo o romance é
o fato de os Estados Unidos não serem uma terra boa para deuses. Já foi citada
uma passagem em que o próprio Wednesday o disse; outro personagem a dizê-la
foi o Búfalo, num dos sonhos de Shadow:

- Esta não é uma terra de deuses – declarou o homem-búfalo.


Mas Shadow sabia, no sonho, que já não era o homem-búfalo quem falava:
era o fogo, eram os estalos e o calor da própria chama que se dirigiam a
ele, naquele lugar escuro sob a terra.
- Esta terra, um mergulhador a ergueu das profundezas do oceano –
disseram as chamas. – Uma aranha a teceu a partir da própria essência
da terra. Um corvo a defecou. Esta terra é o corpo tombado de um pai,
seus ossos são montanhas, seus olhos são lagos.
A voz das chamas fez uma pausa, então completou:
- Esta é uma terra de sonhos e de fogo. (GAIMAN, 2016, p. 238-239)

38
Hall (2006) cita 5 eventos responsáveis pelo descentramento do sujeito: as tradições do
pensamento marxista; a descoberta do inconsciente por Freud; o trabalho linguístico de Ferdinand
de Saussure; os estudos do filósofo Michel Foucault, particularmente sobre o chamado “poder
disciplinar”; e o impacto do feminismo como crítica teórica e movimento social.
129

Note-se que a narrativa do Búfalo para a origem da terra de que fala, a


América, apresenta uma versão em que não há participação de deus algum na
criação: ela foi erguida das profundezas por um mergulhador, provavelmente um
ser humano, portanto; foi tecida, a partir da própria essência da terra, por uma
aranha, defecada por um corvo, ou seja, pelo trabalho de animais comuns; ela é o
corpo tombado (morto?) de um pai, suas formações geológicas são partes de seu
corpo.
Um terceiro personagem, Whiskey Jack, afirma que “Este não é um país bom
para deuses. Meu povo percebeu isso logo cedo. Tem os espíritos criadores que
encontraram ou fizeram ou cagaram essa terra, mas pense só: quem é que vai
louvar o Coiote?” (GAIMAN, 2016, p. 485). Por esse motivo, segundo ele, seu povo
nunca louvou deuses, mas a terra, pois dela se origina tudo o que é necessário para
a subsistência daqueles que caminham sobre ela:

Então é claro que meu povo entendeu que talvez haja alguma coisa por
trás de tudo o que existe, um criador, um grande espírito, e meu povo
agradece a ele, porque é sempre bom agradecer. Mas nunca construiu
igreja nenhuma. Meu povo não precisava disso. A terra era a igreja. A terra
era a religião. A terra era mais antiga e mais sábia do que o povo que
caminhava nela. A terra dava salmão, milho, búfalos e pombos-
passageiros. Dava o arroz selvagem e o picão-verde. Dava melões e
abóboras e perus. E meu povo é filho da terra, como o porco-espinho, o
gambá e o gaio-azul”. (GAIMAN, 2016, p. 486)

Tendo em vista que em Deuses americanos há o pressuposto de que os


deuses são originados da crença das pessoas neles, é isso que lhes dá vida e
alimenta, e a falta disso os enfraquece, e assim, no caso de seu esquecimento, eles
desaparecem, a terra assume um caráter permanente do qual as divindades não
são dotadas. Whiskey Jack, quando Shadow observa que o lugar onde eles estão
(a casa do indígena) é um bom lugar e lamenta não poder permanecer ali com ele,
pois deve retornar para o local da batalha dos deuses, afirma: “Veja só, os deuses
morrem quando são esquecidos. As pessoas também. Mas a terra continua aqui.
Os lugares bons e os ruins. A terra não vai a lugar algum. E nem eu” (GAIMAN,
2016, p. 487).
Depois da intervenção de Shadow na batalha dos deuses, quando tudo já
tinha sido pacificado, ele parte em direção à Flórida, levando o sr. Nancy para casa.
130

Antes de voltar para o norte, ele passa uma noite ali mesmo, e nessa ocasião sonha
uma vez mais com o Búfalo, que lhe fala:

- Você fez bem – sussurrou o homem-búfalo, sem mover os lábios.


- Não sei o que eu fiz – respondeu Shadow.
- Você fez a paz. Pegou nossas palavras e as tomou para si. Nenhum deles
nunca tinha entendido que eles estavam aqui, porque é conveniente para
nós que eles estejam aqui. Mas a gente podia mudar de ideia. E talvez
mude mesmo.
- Você é um deus? – perguntou Shadow.
O homem-búfalo balançou a cabeça. Por um instante, parecia que a
criatura tinha achado graça.
- Eu sou a terra – respondeu o homem-búfalo. (GAIMAN, 2016, p. 518)

Aqui, portanto, há a revelação feita pelo Búfalo de que ele “é” a terra, o que
significa que, nesse sentido, pode-se interpretar que a própria terra guiou Shadow,
o tempo todo, em sua jornada. O protagonista foi recrutado para trabalhar para um
deus, servindo como uma peça em seu jogo, sim; mas, ao mesmo tempo, em seu
inconsciente, recebeu ensinamentos da própria terra, na figura do Búfalo. A terra,
que é a própria igreja e objeto de adoração do povo nativo norte-americano, o povo
de Whiskey Jack, escolheu Shadow para intervir na guerra insana de deuses contra
deuses, quase como se este fosse um agente infiltrado sem saber, e o herói “pegou
suas palavras e as tomou para si” e teve sucesso em uma empreitada que não era
de seu interesse particular, mas dos deuses, antigos e novos, que disputavam por
relevância, e da terra, que fez de Shadow um agente pacificador porque, como disse
a ele, era conveniente para ela que os deuses estivessem ali.
No sonho, o Búfalo usa o pronome pessoal “nós” para falar dos seus
interesses: “porque é conveniente para nós que estejam aqui”. Pode-se interpretar
o uso da primeira pessoa do plural como uma forma de abarcar, como coletividade,
tudo o que faz parte da terra, especialmente suas criaturas, o que inclui os humanos.
Afinal, é a partir imaginação dos últimos que são produzidos os deuses; é desse
“nós” que se originam “eles”. Porém, o Búfalo também afirma que Shadow “pegou
nossas palavras e as tomou para si”, como se o protagonista não fizesse,
propriamente, parte desse “nós”.
É possível que Shadow seja parcialmente, como filho de uma humana e de
um deus, Wednesday, afinal, parte do que o Búfalo inclui em “nós”, enquanto, por
outro lado, parte dele integra o que seriam “eles”. Nesse caso, cabia a Shadow uma
escolha, no momento em que havia se descoberto filho de Wednesday e também
131

descoberto seus planos; poderia ter permanecido leal a ele e o ajudado, ao invés
de intervir em favor da paz e do bem da maioria. De um ponto de vista particular,
isso até poderia ter-lhe sido mais vantajoso, sendo Wednesday o seu provedor nos
últimos tempos, tivesse Shadow pensado em termos práticos.
Enfim, é precisamente a escolha de Shadow que o torna o herói que aqui se
defende. Afinal, quando ele começa a tomar decisões e agir, o que acontece a partir
de sua vontade de se parecer mais com alguém que está vivo, em resposta ao
comentário de Laura a seu respeito, suas escolhas e ações são feitas de vontade
própria, mas elas favorecem mais a outros do que a si próprio: o sacrifício na árvore
é para Wednesday; o retorno da morte é para fazer a paz num mundo que ele já
havia deixado. O caráter contemporâneo reside na possibilidade de se ter em
Shadow, um homem de identidade fragmentada, esse herói, pela sua capacidade
de se distanciar do próprio tempo, o que lhe permite manter “fixo o olhar no seu
tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
O que permite que se construa essa des(arqueologia) ou arqueologia às
avessas do herói são justamente os elementos que o constituem como um ser
humano aparentemente comum e ao mesmo tempo um herdeiro dos deuses a quem
é predestinado sacrificar-se e repor a ordem das coisas no mundo humano e divino.
Ao elaborar seu percurso é evidentemente associável à ideia aristotélica de herói,
aquele que representa um povo, que recebe uma missão a cumprir e que deve
percorrer sua própria existência em busca dos sinais e das “etapas” a cumprir.
Pensar num herói contemporâneo, parece a priori, algo dissonante do que se vive.
Entretanto, ao analisar a constituição de Shadow alcança-se algo que pertence
justamente ao tempo hodierno: entender como o homem contemporâneo continua
à mercê de deuses e mitos, reorganizando-se, servindo as mais diferentes formas
de pensar e organizar a vida mundana à luz da mesma necessidade dos antigos:
somos dependentes dos deuses, seja qual for a sua natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisar Deuses americanos tendo seu protagonista como objeto de


interesse mais importante não é tão óbvio quanto pode parecer; afinal, são inúmeros
os caminhos possibilitados pela obra, que Gaiman construiu lançando mão dos mais
diversos artifícios.
Cada personagem secundário parece possuir um significado maior que o
papel que desempenha, pela alta carga simbólica que carrega; cada capítulo é
introduzido por uma epígrafe retirada de trechos de canções, poemas ou outros
livros que oferecem novas possibilidades de interpretação à medida em que são
rastreados e desvendados, assim como os títulos de livros e canções citados ao
longo no interior da narrativa ao longo da obra; esses elementos adicionam mais
cores ao romance, que acaba por se tornar ainda maior do que as histórias que
conta, com potenciais desdobramentos pela relação com seus intertextos.
Quando às histórias narradas, no plural, por sua vez, também são muitas; há
os relatos de viajantes que chegam no território americano com suas crenças,
rituais, diferentes tipos de seres sobrenaturais, além, claro, dos deuses; há,
também, as anedotas e os relatos contados por alguns dos personagens – nota-se
uma preferência de Gaiman pela escolha, por um lado, de personagens
zombeteiros, espertos e trapaceiros, e por outro, de personagens afeitos à contação
de histórias, quando não as duas coisas em uma só. São os casos de Wednesday,
Nancy, Íbis, Hinzelmann, Whiskey Jack, para citar somente alguns com maior
destaque. Também os seus hábitos de oradores conferem mais sabor ao texto, que
se torna praticamente uma história de histórias.
Tantas são as coisas que poderiam ser abordadas, e nenhuma delas parece
irrelevante no contexto geral, pois elas não apenas embelezam e tornam a narrativa
mais aprazível, como também se conectam, de alguma maneira, aos conflitos
vividos por Shadow.
A escolha pelo personagem principal como centro desse estudo se deu,
primeiramente, pela estranheza gerada pelo seu protagonismo apagado. Em uma
primeira leitura, Shadow me pareceu inicialmente apenas um pretexto para que os
temas que o rodeiam pudessem ser desenvolvidos tendo nele um espectador
133

parcialmente neutro, pelo seu envolvimento indireto com a guerra de deuses que se
formava. A importância do personagem parecia questionável: como é que ele
poderia contribuir para qualquer um dos lados, com todas as suas limitações e
sofrimentos? Com a revelação dos planos de Wednesday e de que ele precisava
de Shadow como uma distração e como sacrifício, as coisas fizeram mais sentido;
no entanto, os planos do deus não deram certo, justamente pela intervenção de seu
filho.
Foi a aparente contradição entre o modo como Shadow se porta ao longo da
narrativa e a importância dos seus feitos ao final dela que primeiro me suscitou a
ideia de que poderia estar diante de uma nova espécie, ou pelo menos uma espécie
diferente, de herói. Apenas em leituras posteriores, já tendo tomado conhecimento
dos estudos culturais, pude perceber as diversas nuances que compõem a
identidade de Shadow. Ele sempre me parecera perdido, mas essa nova
perspectiva me fez descobrir níveis mais profundos em sua crise de identidade; e,
de alguma forma, apesar de não ter tido tantos infortúnios quanto o personagem de
Gaiman, o seu sentimento de despertencimento em relação ao mundo me pareceu
muito familiar.
Para compreendê-lo melhor, portanto, estudei o que constitui um herói, quais
suas características, quais são seus principais modelos e, sobretudo, o que se
requer de alguém para que se torne herói; essa é a questão-chave desta análise:
Shadow, em comparação com outros heróis, parece não se encaixar nos mesmos
moldes; por mais que todo herói percorra uma trajetória na qual se desenvolve e se
torna uma versão aperfeiçoada de si mesmo, na maioria dos casos o heroísmo já
aparece latente: há um esforço do herói, enquanto aprendiz, para se tornar aquilo
que deseja ser. O caso de Shadow é diferente: seu aprendizado decorre de uma
aceitação de seu destino e da maneira como suporta as adversidades, o que
eventualmente o leva a desenvolver-se, sem que ele espere por isso.
O heroísmo pode parecer algo muito positivo e nobre, que surge de uma
vontade de reparar os danos e injustiças do mundo; mas o que pode ser facilmente
ignorado é o destino trágico que está associado a todo herói que segue seu código
de conduta até o limite, o quanto seu modo de lidar com as coisas pode ser
destrutivo para si mesmo e para as pessoas próximas a ele. Além do mais, pode-
se argumentar que a maioria dos heróis tenta alcançar a paz através da guerra,
considerando que as principais características que os descrevem tornam-nos
134

propensos ao combate, à violência: eles são corajosos, destemidos, impetuosos,


aventureiros, indignam-se e enfurecem-se com facilidade. Não são, portanto,
pacificadores, pelo menos não predominantemente.
É sobretudo aí que Shadow se distingue dos demais heróis: o ato de
heroísmo dele não consistiu em vencer a guerra para nenhum dos lados, deuses
antigos ou novos, mas fazê-los perceber a quem realmente favorecia aquela tolice,
quem lucraria com as mortes, independente de qual lado defendessem os mortos.
Shadow é um pacificador: desde o início, quando está na prisão, fica claro que ele
só deseja paz e tranquilidade, ficar longe de problemas. Não é isso que ele encontra
ao sair, mas ele consegue passar por todo o processo com o mínimo de violência
empregada.
Há, ainda, a questão identitária: Shadow representa toda a mobilidade da
contemporaneidade, pela sua falta de raízes e pela impossibilidade de defini-lo por
meio de conceitos como nacionalidade, etnia ou religião. Talvez seja isso que
possibilite sua condição de pacificador: sem bandeiras para defender, sem uma
comunidade específica à qual pertença, sua causa é universal; não tendo um lugar
para onde voltar, qualquer lugar pode ser sua morada. O personagem de Gaiman
lembra as coisas que John Lennon nos conclama a imaginar: um mundo sem
países, sem religiões (os deuses podem continuar existindo, se nos lembrarmos
deles), sem posses.
Quando Deuses americanos foi publicado, o mundo era dominado pela
paranoia, reforçada pelos ataques de 11 de setembro às Torres Gêmeas; a eclosão
de uma 3ª Guerra Mundial parecia iminente; a desconfiança do governo americano
em relação aos estrangeiros atingiu níveis absurdos. Quase 20 anos depois, o medo
e o caos daquele período parecem estar mais presentes do que nunca, e a obra de
Gaiman segue popular, tendo ganhado uma nova edição e ocupando prateleiras de
destaque nas principais livrarias, além de ter sido transformada em uma série de
televisão.
Propus, neste estudo, uma (des)arqueologia do herói, através da
ressignificação deste arquétipo pela maneira como Shadow a ele se adequa e ao
mesmo tempo o desconstrói. Para tanto, usei autores consagrados e diferentes
abordagens da figura do herói, que desde a poética de Aristóteles, percorrem a
literatura de diferentes épocas representando a formação da identidade de um povo,
sustentando sua história e suas crenças. A ideia central desta análise, é uma
135

arqueologia precedida por um prefixo de negação, pois o próprio herói configura-se


sob a égide da modernidade sem conhecer a objetivo final de sua meta. Destarte,
em Shadow, vislumbro muitos dilemas de nosso tempo, mas também uma
esperança: que o seu exemplo inspire o respeito e a tolerância entre aqueles que o
conhecerem.
E que não precisemos de sombras para nos salvar.
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