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Clécio Lemos
Pós-Doutor em Direito pela Columbia University (2019). Doutor em Direito pela PUC-Rio,
com período sanduíche na Università degli Studi di Padova (2018). Lattes:
[http://lattes.cnpq.br/4912344889000121_]. ORCID: 0000-0003-3316-2375.
cleciojus@gmail.com
Sumário:
1. Introdução
O estudo da Criminologia não deve ser feito com base em uma premissa evolucionista.
Não se deve pressupor que haja uma linha contínua de progresso nos pensamentos
criminológicos, em que uma escola sucessivamente incorpora os equívocos das escolas
anteriores e dá um passo à frente. Inegavelmente, o que existe são permanências de
certas premissas, surgimento de novas perspectivas, batalhas epistemológicas em que
fatalmente certas visões são esquecidas ou não suficientemente incorporadas, enquanto
outras prevalecem.
Ao que tudo indica, ainda não foram exploradas em todo seu potencial as contribuições
da perspectiva teórica de Michel Foucault para o campo criminológico. Podemos perceber
uma boa aceitação de sua análise sobre a conexão entre a expansão do uso das prisões
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no século XVIII e o dispositivo disciplinar, mas poucos autores se dedicaram a explorar
os alcances possíveis de sua filosofia para compreender a justiça penal do presente
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Foucault e o economismo penalógico
(VORUZ, 2010).
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Para atender a tal tarefa, certamente não basta ler “Vigiar e punir” e seus quatro cursos
mais diretamente ligados ao tema penal. Suas visões inovadoras para a filosofia política
se estendem sobre todo seu percurso acadêmico nas décadas de 1960 a 1980, e não há
uma verdadeira sistematização delas. É preciso, portanto, encarar toda a complexidade
dessas longas páginas para extrair algumas de suas mais valiosas conclusões, cabendo
aqui destacar suas quatro grandes críticas ao mainstream da filosofia política de nosso
tempo: o humanismo, o economismo, o estado-centrismo e o repressivismo (LEMOS,
2019).
Neste trabalho iremos focar na crítica ao que ele mesmo denominou de “economismo”.
Como consta em várias de suas obras e cursos, o autor notou uma insistência de certa
visão que privilegia a economia como fonte de análise dos acontecimentos políticos e
que, curiosamente, é compartilhada até mesmo por autores que se entendem como
pertencentes a polos opostos (liberais e marxistas) (FOUCAULT, 2010, p. 13).
Sendo isso verdade, no intento de investigar como as críticas foucaultianas podem ser
relevantes para pensar uma criminologia para o século XXI, surge uma pergunta inicial:
é possível afirmar que o economismo se inseriu como parâmetro também nas análises
penalógicas?
2. O economismo penalógico
Após um longo período de predomínio das escolas liberal e positivista nas narrativas
sobre justiça penal, destaca-se, no século XX, o surgimento de outra forma de análise
cujo foco não era mais nos processos de criminalidade (etiologia), mas, sim, nos
processos de criminalização (reação social). Distanciando-se do foco tradicional na
investigação das causas das práticas criminosas, uma nova criminologia foi sendo
gestada visando problematizar o funcionamento penal como veículo de controle social
(BATISTA, 2011, p. 74).
Enfim, sob essa ótica, a punição já não é uma simples resposta institucional que visa
frear condutas nocivas à sociedade, ela é um veículo de controle que exerce um papel
escuso, inconfessável. O pressuposto de que a justiça penal visa à “defesa social” é
posto em xeque e surge todo um novo olhar que desconfia do Estado e quer trazer para
a superfície as funções não oficiais das penas.
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Foucault e o economismo penalógico
Talvez a primeira grande narrativa nesse sentido tenha sido a do soviético Eugeny
Pasukanis. Em 1926, ele publica a obra em que formula uma pesada crítica ao
contratualismo jurídico, pondo no cerne da questão a teoria marxista de que o Estado
representa grupos privilegiados, que os supostos “interesses do conjunto da sociedade
são deformações conscientes da realidade” (PASUKANIS, 1989, p. 152).
Para o autor, a luta de classes se realiza pela teoria do direito e “a jurisdição criminal do
Estado burguês é o terror de classe organizado”. Ou seja, a pena com fins protetivos é
mera ideologia, falseamento, já que o poder judicial usa seus instrumentos como forma
de submissão da classe operária (PASUKANIS, 1989, p. 151).
Daí se depreenderia a base material da qual brotam todas as diretrizes. O que existe
seria uma superestrutura jurídica, que serve ao “terreno de relações de produção e de
propriedade determinadas”. Por isso as penas seriam essencialmente funcionais à matriz
econômica, elas visariam proteger a predominância da classe burguesa no seio social
mediante o domínio que suas propriedades possibilitam (PASUKANIS, 1989, p. 61).
Exatamente por isso, um novo modelo jurídico só poderia ser viável quando alteradas as
relações materiais, restando inúteis as tentativas de modificação por meio da mera
crítica teórica. Segundo aponta, somente a concretização do socialismo permitiria alterar
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os conceitos jurídicos.
Veja-se, portanto, como surge com base em Marx uma análise das funções da pena
lastreada na estrutura de classes da sociedade, da qual partiriam não apenas as formas
jurídicas e políticas, mas o próprio jeito com que as pessoas pensam suas realidades e
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se movem diante delas.
Podemos dizer que tal forma de leitura se manteve discreta no debate criminológico
ocidental, vindo à tona com maior fôlego somente quando publicada a nova edição, em
1969, do livro “Punição e Estrutura Social”, dos professores da escola de Frankfurt Georg
Rusche e Otto Kirchheimer.
A publicação original data de 1939, porém, nessa época, os autores tiveram que se
refugiar nos EUA por conta da ascensão do nacional-socialismo. Então, só se encontrou
terreno fértil para tais discussões três décadas depois, momento em que ela passa a ser
reconhecida como a fundadora da “economia política da pena” (DE GIORGI, 2018, p. 2).
Anunciando um estudo da pena por fora de seu “viés ideológico e de seu escopo
jurídico”, acreditam ter encontrado provas de que as verdadeiras relações na mecânica
das punições decorrem de suas bases materiais determinantes, fazendo com que os
discursos de luta contra o crime sejam de menor relevância para compreender as
mudanças que se operam nas penas (RUSCHE et al., 2004, p. 19).
Segundo a obra, as taxas de criminalidade basicamente não são afetadas pelas políticas
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Foucault e o economismo penalógico
criminais, assim como as políticas criminais não são influenciadas pelos índices de
prática criminosa, indicando a total desconexão entre os fins declarados das penas e os
seus fins efetivos. As legislações refletiriam na verdade mudanças no mercado de
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trabalho, essa seria a função (RUSCHE et al., 2004, p. 273).
Bem por isso, sentenciam: “todo sistema de produção tende a descobrir formas
punitivas que correspondem às suas relações de produção”. Eis uma tentativa de traçar
a regra geral de leitura das penas, uma vinculação estrita entre economia e justiça
criminal, de maneira que a intensidade e o tipo de punição sempre são determinados
pelas “forças econômicas”, acima de todas as outras forças sociais (RUSCHE et al., 2004,
p. 20).
Sem dúvidas, a segunda edição da obra pode ser reconhecida como uma das principais
influências do movimento que seria intitulado Criminologia Crítica, por isso, também vale
investigar aqui um de seus mais destacados representantes. Alessandro Baratta, autor
de grande relevância na Europa e no Brasil, publica, em 1982, sua obra mais importante
para apresentar o que ele entendia como uma “teoria materialista” do desvio e da
criminalização (BARATTA, 2002, p. 159).
Precisamente por isso, considera que as teorias jurídicas muito pouco podem fazer no
tocante à mudança da justiça penal, pois seria “impossível enfrentar o problema da
marginalização criminal sem incidir na estrutura da sociedade capitalista”. Eis o
amálgama fundamental de se compreender: a pena atende ao capital (BARATTA, 2002,
p. 190).
Aqui, mais uma vez, confirma-se a permanência do economismo nos discursos sobre a
pena, por meio de um grande expoente dos pensamentos criminológicos da segunda
metade do século XX. Todavia, ainda estaria por surgir sua expressão mais famosa, sua
face de maior repercussão nos debates internacionais.
Como o próprio autor indica, essa obra alcançou uma “trajetória meteórica” nos debates
acadêmicos, todavia, ganharia uma pequena revisão em seu livro seguinte para conectar
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Foucault e o economismo penalógico
Em “Punir os pobres”, o autor defende que não houve nenhum aumento de criminalidade
nos EUA desde a década de 1970, de modo que a única maneira de compreender o “giro
punitivo” seria associar as punições com o aumento da pobreza, decorrente da
contenção das despesas do Estado com a área social e pela imposição do trabalho
assalariado precário: “nova norma de cidadania para aqueles encerrados na base da
polarizada estrutura de classes” (WACQUANT, 2007a, p. 15).
A união entre política social e política penal está na base da estrutura de classes e
lugares, de maneira que a técnica punitiva de controle da desordem induzida pela
fragmentação do trabalho é “eminentemente produtiva”. Portanto, a explicação só
poderia advir de uma atenção às novas regras da economia (WACQUANT, 2007a, p. 63).
O novo estilo de Leviatã traz como missão um novo regime econômico, baseado na
hipermobilidade do capital, flexibilidade do trabalho, redução de gastos com o
bem-estar, só conseguindo se sustentar com o uso da máquina carcerária. Eis a resposta
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do grupo dirigente contra a massa marginalizada, uma resposta seletiva de perseguição
das classes baixas e imunização das classes média e alta, constituindo a metáfora do
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“Estado Centauro”.
A toda evidência, não se trata de uma análise pontual sobre o que ocorreu nos EUA, o
autor está convencido de que descobriu em verdade uma fórmula aplicável como baliza
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para entender todos os fluxos punitivos internacionais das últimas décadas. Não por
outro motivo, o autor aponta que a estagnação das prisões nos países nórdicos se deve
essencialmente ao fato de que eles mantiveram suas políticas de bem-estar social e não
sucumbiram à neoliberalização do trabalho, eis a sua prova definitiva (WACQUANT,
2014, p. 79).
Ou seja, ainda que de forma mais refinada, fazendo eventual alusão a debates sobre
controle racial, a teoria de Wacquant encontra seu sustento primordial no economismo.
Ainda que tente conectar a elevação das penas ao enredo social, usando termos como
“Estado social” e “insegurança social”, é indisfarçável o fato de que suas explicações
acabam sempre por se centralizar na pobreza como elemento crucial da ascensão penal.
A bem de se dizer, não há dúvidas que o conceito de “pobreza” é essencialmente
econômico.
Sendo o economismo a matriz vitoriosa no campo crítico das ciências sociais, não à toa a
tese de Wacquant caiu nas graças da maior parte da academia e assim se tornou a visão
penalógica mais referendada dos dias atuais. Sendo ele o autor mais recente que
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Foucault e o economismo penalógico
Vale registrar ao fim que, passando pelos quatro autores, fica claro que o economismo
faz-se presente na penalogia ocidental no mínimo há um século, encontrando-se
profundamente enraizado na forma com que uma boa parte da comunidade científica de
viés crítico faz a leitura política da justiça penal.
3. Foucault e o contrapositivismo
Em verdade, ele era um opositor de todas as formas de positivismo, sendo esse embate
um dos nortes essenciais da sua forma de investigação da realidade. Foi nesse sentido
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que o Foucault defendeu o uso de um “contrapositivismo”, significando uma proposta
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que critica os positivismos sem acabar por cair em outras formas positivistas.
O que movia a filosofia foucaultiana era realizar uma “história política das veridicções”,
não se apegando a uma nova forma rígida de dizer verdadeiro (veridicção). Seu
problema era demonstrar como determinadas formas de ver a realidade surgem de
acordo com cada contexto e logo identificar as condições dessas “verdades”, mas sem
que para tanto fosse necessário pretender descobrir a verdade final, ou a “verdade
verdadeira” (FOUCAULT, 2018, p. 10-11).
Por isso sua permanente negativa em oferecer uma nova “teoria do conhecimento”,
chegando mesmo a dizer que sua genealogia produzia “anticiências” (FOUCAULT, 2010b,
p. 9), para fugir da pretensão de criar uma nova instância teórica unitária e hierárquica
em nome de um conhecimento verdadeiro. Pelo mesmo motivo, em outra ocasião
sugeriu que sua filosofia era uma “anarqueologia”, cuja essência é fugir dos
universalismos de qualquer espécie (FOUCAULT, 2014, p. 73-74).
Preocupado com as mais diversas expressões positivistas, desde cedo Foucault apontou
o problema das análises políticas estritamente centralizadas na economia, identificando
algumas de suas origens mais diversas. Vagando por textos de autores aparentemente
tão distintos, como David Ricardo e Karl Marx, seu trabalho arqueológico identificou uma
linha de similitude que remonta às noções de “raridade e de trabalho” como forma
central de compreensão do poder (FOUCAULT, 2007, p. 359-360).
“Isto porque, para que existam as relações de produção que caracterizam as sociedades
capitalistas, é preciso haver, além de um certo número de determinações econômicas,
estas relações de poder e estas formas de funcionamento de saber. Poder e saber
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Foucault e o economismo penalógico
Isso permite situar uma ideia de poder desapegada de qualquer referência universalista,
conectando o poder aos “jogos de verdade” de cada tempo histórico. A condução das
relações humanas não tem uma matriz estável e natural, ela se cria em referência a
regimes pontuais de pensamento, por isso é um “saber-poder”.
O poder não pode ser lido como estando numa posição “superestrutural”, porque está
desde já onde se produzem as condições e as demandas econômicas, ele não pode ser
refém da função de “proteger, conservar ou reproduzir relações de produção”
(FOUCAULT, 2010c, p. 43).
Foucault refuta que as relações de poder estejam numa “posição de exterioridade” com
respeito a outras formas de relação (econômica, sexual, racial), concebendo que essas
próprias formas só se realizam por meio de jogos de força (partilhas, desequilíbrios,
seleções). Há uma imanência do poder, ele está no interior e é constitutivo das relações
humanas (FOUCAULT, 2011, p. 104; LEMOS, 2020a).
Como o poder não pode se situar fora das relações, bem como não pode ser
essencializado em nenhuma característica, ele não é algo que se possa ter propriedade.
Ele é estratégico, tem fluidez para se modificar, encontrar novos caminhos e novos
fundamentos, novas causas e novas funções (ROSE et al., 2006).
O poder não se dá, nem se troca, ele somente “se exerce”, ou seja, ele é uma relação de
força instável que depende não apenas da posição que alguém ocupa, ele depende de
um efeito para ser reconhecido como norma. Depende que haja condução de condutas
(FOUCAULT, 2010b, p. 15).
Uma leitura que considera a política como mera consequência das “forças de produção,
luta de classe e estruturas ideológicas” ignora o fato de que essas mesmas ocorrências
dependem de mecanismos correlatos de dominação. As forças econômicas só existem
porque estão em relações complexas e circulares com outras formas de sujeição
(FOUCAULT, 1995, p. 236).
Dizer o contrário seria afirmar que o trabalho é a essência do homem, o que seria mais
uma inegável universalização. Não é o trabalho que produz a disciplina, é o poder
disciplinar que está na própria formação do trabalho como o entendemos no capitalismo.
Por isso o próprio conceito de “trabalho” seria estranho a outras épocas da humanidade
(FONTANA et al., 2010, p. 237).
Stanley Cohen parece ter sido um dos primeiros a notar como certas leituras
criminológicas aparentemente de vanguarda, ao fazerem uma crítica do positivismo
oitocentista, acabavam caindo em um determinismo sociológico: “circunstâncias
materiais, a persuasão da ideologia burguesa, o potencial para a biografia ser ossificada
pelo aparato de controle”. Segundo aponta, essas teorias apenas inverteram as
premissas positivistas que elegiam como inimigas (COHEN, 1988, p. 128).
O autor identifica que o debate “materialistas versus idealistas”, que circulava nos
cenários políticos há mais de um século, acabou por se instalar também na penalogia,
remetendo a todo um novo jogo de análises que se petrifica na referência obrigatória ao
mercado em todo e qualquer tipo de variação na justiça penal.
Uma análise bem precisa sobre o tema foi igualmente oferecida por Alessandro de Giorgi
em um de seus mais recentes artigos. Nele, traz uma crítica contundente à tradição
reducionista da economia política da pena, na qual se criou uma referência mecânica da
atuação penal como reguladora da pobreza (DE GIORGI, 2018).
Uma análise que pretende prever todos os ciclos punitivos a partir da “estrutura”
econômica da sociedade acaba por estabelecer uma relação causal de direção única,
negligencia uma análise mais complexa, preservando a já tão criticada separação entre
“estrutura e cultura” (DE GIORGI, 2018, p. 11).
O professor italiano nota que o exclusivo foco no aspecto instrumental materialista acaba
gerando um foco muito estreito, ignorando todo o campo simbólico que perfaz os
diversos fluxos de poder, que às vezes estão próximos do mercado, às vezes não.
Advoga que, a despeito da relevância da questão econômica para entender alguns dos
mais importantes câmbios no setor penal, é necessário complexificar a análise
conjugando as demais estratégias governamentais de regulação social e os processos de
reprodução cultural promovidos pelos discursos (DE GIORGI, 2018, p. 19).
A dita sofisticação vem do fato de que Wacquant apresenta muitos dados relacionados
ao crescimento carcerário, alguns deles que inclusive se enquadrariam tipicamente no
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campo “simbólico”, tal como a ascensão de certos discursos criminológicos, mas que
ao fim todos se referem à mesma função de promoção e preservação de um formato
institucional criador de marginalizados. Apesar de uma riqueza no detalhamento de
vários elementos que promovem o encarceramento em massa, todos acabam por se
manter em referência final a um molde econômico. Daí sua estreiteza, seu positivismo.
Uma pesquisa que pretenda estabelecer laços estritos entre pena e funções
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Foucault e o economismo penalógico
A dita “tese vencedora” replicada a partir de Wacquant oferece uma análise simplificada
do contexto punitivo das últimas décadas, com isso se apresenta como um “dualismo
superficialmente atrativo”. Ainda que se considere toda a relevância da questão de
classe no campo penal, não se pode aderir a um empirismo funcional binário, em que
tudo aparentemente pode ser explicado a partir da oposição entre políticas inclusivas de
bem-estar e políticas excludentes neoliberais (MATTHEWS, 2014, p. 32-57).
Ao centralizar a análise na economia, tal tese também traz como falha a insuficiente
explicação de como as instituições sociais e políticas constituem o enredo geral do que
se chama Neoliberalismo. Por esse motivo, Lacey classifica a teoria de Wacquant entre
as mais descuidadas defesas da tese da penalidade neoliberal, já que representa um
deficit institucional e uma vagueza conceitual, criando uma supergeneralização (LACEY,
2013).
Segundo defende, tal tese gera uma infeliz tendência de reificar o Neoliberalismo e seus
efeitos, não demonstrando como o campo econômico se relaciona sistematicamente com
os demais. Carece, ao fim, de uma analítica que traga todos os elementos e suas
condições históricas de existência, não demonstrando que o enredo dito “neoliberal”
depende de uma série de poderes e instituições para sustentar suas práticas e seus
arranjos (LACEY, 2013, p. 263).
É preciso entender, portanto, que as estratégias penais não podem ser lidas como mera
ferramenta das prioridades da classe dirigente. As táticas penais são criadoras de
subjetivações e “espaçotemporalidades” que podem estar, em algum nível, conectadas
com as relações econômicas, mas que não podem ser totalmente explicadas por elas
(VALVERDE, 2017, p. 136).
Uma análise comparativa do neoliberalismo com outras épocas remete ao fato de que
alguns de seus traços não são verdadeiramente únicos, que várias das suas condições de
existência existiram em outros momentos e lugares sem levar à “penalidade neoliberal”.
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Além disso, diante de gráficos indicativos das taxas de aprisionamento dos EUA e dos
países europeus, pode-se demonstrar que a tese de Wacquant sobre a “tempestade de
fogo global” das punições lastreadas na exportação do modelo econômico
norte-americano não se comprova. Pondo lado a lado os países de capitalismo avançado
que assimilaram políticas econômicas aproximadas nas últimas décadas, nenhum outro
local se compara às taxas e variações de aprisionamento norte-americano. Sendo cabível
concluir: “sob o escrutínio conceitual, histórico e comparativo, a tese da penalidade
neoliberal se desmancha no ar” (LACEY, 2013, p. 263-273).
Tudo indica, em suma, que a expressão mais famosa atual do economismo na análise da
função das penas já encontra alguma contestação no campo acadêmico internacional,
sendo aos poucos desnudado seu reducionismo como um alerta para novas
investigações da área.
Como ensina Foucault, uma análise não positivista das relações de poder (governo) deve
conectá-las com os saberes (verdade) e os modos de constituição do sujeito
(subjetivação), tomando como método a referência recíproca entre os três eixos e a
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constante possibilidade de mudança deles.
Caso se leve a sério essa proposta, parece lógico que chegamos a uma grande
consequência da superação do economismo penalógico: sendo todas as causas
relevantes, é possível construir inúmeras frentes contra o ímpeto punitivo. Estudos não
positivistas permitem pensar várias novas resistências.
É instigante perceber como uma visão que vincula as penas às exclusões decorrentes do
modelo econômico acaba levando a uma conclusão paralisante aos penalistas, qual seja,
a ideia de que se não mudamos o regime econômico também nada se pode modificar
nas práticas punitivas. Sendo uma causalidade rígida, a inexistência de alterações no
quadro econômico inviabilizaria novidades no quadro penal.
É bem esse o motivo pelo qual Sebastian Scheerer pontua que os debates abolicionistas
pareciam sempre ter que se defrontar com o argumento de que a mudança do sistema
penal só pode ser pensada na Escandinávia. Se a base é puramente “materialista”,
cria-se um fechamento propositivo (SCHEERER, 1989, p. 28).
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Foucault e o economismo penalógico
Se o poder penal, assim como qualquer outro poder, não tem uma origem ou
fundamento imutável, não se ancora em nenhuma causa “natural” ou obrigatória, sobra
evidente sua potencial fragilidade, pois ele só faz sentido diante dos jogos de verdade e
modos de subjetivação que o sustentam. Não havendo nenhum “direito universal” que
remeta a formas insuperáveis de poder, cabe mais uma vez a lição de Foucault:
devemos “tentar fazer intervir sistematicamente, não a suspensão de todas as certezas,
portanto, mas a não-necessidade de todo poder” (FOUCAULT, 2014, p. 72).
4. Considerações finais
De fato, não há como divorciar o estudo das mecânicas punitivas contemporâneas sem
se atentar para os modelos econômicos e seus efeitos sociais. A miséria e toda sua carga
valorativa promovem, sem dúvidas, reflexos de larga escala e devem ser consideradas
como elementos essenciais para interpretar as mudanças ocorridas no seio das penas.
Todavia, como demonstrado, uma penalogia do século XXI não pode se reduzir a
nenhuma forma de positivismo. O economismo penalógico, de longa tradição nos
debates sobre justiça penal, é uma presença marcante ainda hoje e precisa ser
discutido.
Desvendada sua falha epistemológica com base nas críticas de Foucault, foi possível
averiguar que leituras como a de Wacquant não se sustentam diante da necessidade de
análises complexas, multifatoriais, e que estão conscientes da necessidade de conectar
as relações de poder com as racionalidades inerentes.
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Foucault e o economismo penalógico
Sendo dispensada a pretensão de encontrar uma penalogia fixa em uma regra geral, um
funcionalismo de causa última restrita, foi notório concluir a necessidade de uma
compreensão plural do exercício das punições no século XXI, aberta a considerar vários
fatores relevantes para os fluxos punitivos, sem se manter limitada a uma causa final
exclusiva, surgindo disso uma abertura para pensar múltiplas resistências à expansão da
rede penal.
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5 .Ver também o artigo de 1933 de Georg Rusche, republicado pela revista Social Justice
(RUSCHE, 2014).
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Foucault e o economismo penalógico
6 .Vale destacar que, para Nicola Lacey, a base da teoria de Wacquant é reminiscente da
versão marxista de “hegemonia de classe” (LACEY, 2013, p. 267).
8 .Os estudos do autor incluem também o Brasil (WACQUANT, 2007b), mas sobre as
particularidades do grande encarceramento brasileiro, vale a leitura de Dal Santo
(2019).
10 .Também inspirado nesse conceito de Foucault, Bernard Harcourt defende uma “teria
contracrítica” (HARCOURT, 2018, p. 15-42).
12 .“Uma análise marxista, por exemplo, tenderia a afirmar que os relógios foram
inventados para disciplinar os trabalhadores na pontualidade. Foucault não nega que os
relógios sirvam de fato a esse propósito; mas ele insiste que não há nada inevitável
nessa função ou efeito específico” (VALVERDE, 2017, p. 19).
14 .Alessandro De Giorgi finaliza seu artigo defendendo uma “economia política da pena
pós-reducionista” (DE GIORGI, 2018, p. 17).
16 .Acerca da variação nas práticas criminosas nos EUA neoliberal, verificar também em
estudo específico de John Pfaff (2017).
18 .“Em resumo: mais ou menos prisões no mundo (um mais ou menos, repito, mais
apreciável simbólica do que materialmente), não parece ter muito a ver com a
criminalidade, com a ampliação ou com a restrição do universo de excluídos do trabalho,
com as variações nas representações sociais da periculosidade nas grandes periferias do
mundo. Ou melhor, esse fato tem a ver também com tudo isso, mas no sentido de que,
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Foucault e o economismo penalógico
19 .Aqui vale ressaltar algumas das inúmeras iniciativas de incluir outras pautas de
segregação na esteira da penalogia, como a questão de gênero (CAMPOS, 2017;
MONTENEGRO, 2016; ANDRADE, 2012) e racial (DAVIS, 2003; PIRES, 2017; CARVALHO
et al., 2017).
20 .“E vocês estão vendo que, na medida em que se trata de analisar as relações entre
modos de veridicção, técnicas de governamentalidade e formas de práticas de si, a
apresentação de pesquisas assim como uma tentativa para reduzir o saber ao poder,
para fazer do saber a máscara do poder, em estruturas onde o sujeito não tem lugar,
não pode ser mais que pura e simples caricatura. Trata-se, ao contrário, da análise das
relações complexas entre três elementos distintos, que não se reduzem uns aos outros,
que não se absorvem uns aos outros, mas cujas relações são constitutivas umas das
outras. Esses três elementos são: os saberes, estudados na especificidade da sua
veridicção; as relações de poder, estudados não como uma emanação de um poder
substancial e invasivo, mas nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é
governada; e enfim os modos de constituição do sujeito através das práticas de si. É
realizando esse tríplice deslocamento teórico – do tema do conhecimento para o tema da
veridicção, do tema da dominação para o tema da governamentalidade, do tema do
indivíduo para o tema das práticas de si – que se pode, assim me parece, estudar as
relações entre verdade, poder e sujeito, sem nunca reduzi-las umas às outras”
(FOUCAULT, 2011b, p. 10).
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