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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

JULIETTE SCARLET GALVÃO AIRES SANTOS

“NINGUÉM FICA PRA TRÁS!”: O CURSINHO POPULAR MARIELLE FRANCO


COMO AÇÃO EDUCATIVA

NATAL
2021
JULIETTE SCARLET GALVÃO AIRES SANTOS

“NINGUÉM FICA PRA TRÁS!”: O CURSINHO POPULAR MARIELLE FRANCO COMO


AÇÃO EDUCATIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestra em Antropologia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes.

NATAL
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Santos, Juliette Scarlet Galvão Aires.


"Ninguém fica pra trás!": o cursinho popular Marielle Franco
como ação educativa / Juliette Scarlet Galvão Aires Santos. -
2021.
164f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes.

1. Etnografia - Dissertação. 2. Movimento Social -


Dissertação. 3. Cursinho Popular - Dissertação. I. Lopes, Paulo
Victor Leite. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 39:37

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


JULIETTE SCARLET GALVÃO AIRES SANTOS

“NINGUÉM FICA PRA TRÁS!”: O CURSINHO POPULAR MARIELLE FRANCO COMO


AÇÃO EDUCATIVA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestra em Antropologia.

Aprovada em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________
Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes
Orientador
PPGAS - UFRN

___________________________________________
Profa. Dra. Angela Mercedes Facundo Navia
Examinadora Interna
PPGAS - UFRN

___________________________________________
Profa. Dra. Irene Alves de Paiva
Examinadora Externa
PPGCS - UFRN

___________________________________________
Profa. Dra. Mikelly Gomes da Silva
Examinadora Externa

___________________________________________
Profa. Dra. Elisete Schwade
Suplente
PPGAS – UFRN
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, quero agradecer às pessoas que me fizeram chegar até aqui,


incentivando e investindo nos meus estudos mesmo com todos os percalços da vida, mainha e
painho. Obrigada por não desistirem de mim quando diversas vezes eu mesma desisti, obrigada
por acreditarem no meu potencial, por me ajudarem diariamente e por esse lar afetuoso e
acolhedor que nós construímos no dia a dia. Nós, educadoras/es populares, sabemos a
importância da família, das redes de afeto e do ambiente no processo educacional. Obrigada
também a voinha, titia e prima, por todo o afeto, todo apoio e todo amor. Vocês me fazem
querer buscar o melhor de mim.
Gostaria de agradecer também à minha turma do mestrado de 2019.1. Foram meses
difíceis para nós (para alguns/as mais do que para outros/as), mas na medida do possível
estávamos nos ajudando e isso foi essencial para o início dessa caminhada na pós-graduação.
Agradeço especialmente às/os amigas/os e colegas que estão comigo desde a graduação. Jamais
esquecerei o grupo de estudos que montamos em 2018 para as provas de seleção do mestrado.
E a maioria de nós conseguiu, estudamos juntos/as e passamos. Provando, pois, que o
individualismo e a competitividade são algumas das muitas mentiras dessa ideologia neoliberal
que sustenta um sistema capitalista miserável. A verdade é que não somos sozinhos/as, não
conseguimos ser e funcionamos muito melhor em coletividade.
Um agradecimento especial ao meu amigo e companheiro das jornadas (da vida e da
universidade), Rolfran. Obrigada por me apresentar ao meu campo, obrigada por todas as nossas
trocas informais e formais (as entrevistas). Com você e seus apontamentos, eu consegui maturar
muitas coisas primordiais para a pesquisa – e para mim mesma. É maravilhoso crescer
profissionalmente ao seu lado.
Agradeço muito ao meu orientador, Paulo. Eu adoro a relação que construímos e
agradeço imensamente por você incentivar (e não tentar podar) minha autonomia. Agradeço
por seu cuidado e atenção, pelas discussões necessárias e construtivas. Você é uma das minhas
excelentes referências profissionais, tanto no trabalho de orientação como no trabalho da
docência. Obrigada por aceitar trabalhar nesta pesquisa comigo.
Agradeço às professoras Angela Facundo, Irene Alves de Paiva e Mikelly Gomes por
aceitarem compor a banca de defesa da dissertação e, especialmente, à Angela e Irene por
também terem composto a banca de qualificação. Seus apontamentos foram primordiais para a
maturação e o aprimoramento deste texto dissertativo. Além disso, nutro profunda admiração e
respeito por serem excelentes professoras e me sinto feliz pela aprendizagem que tive com
vocês ao longo da graduação e da pós.
Um outro agradecimento ao Emancipa, a todas as pessoas que fazem parte desta
dissertação e às que não estão nela – por questões de recorte – mas que também fazem parte
desse processo. Eu sempre vou ter um sentimento especial de gratidão pelo Emancipa. Aquele
ditado de “primeiro amor a gente não esquece”, então, digamos que o Emancipa foi meu
primeiro amor “educacional e militante”. A educadora que sou hoje e que serei amanhã, sempre
terá muito do Emancipa. Obrigada por ser esse espaço de formação para tantas pessoas que
como eu estão se descobrindo na docência.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Brasil) -
CAPES pela bolsa de financiamento desta pesquisa. É fundamental destacar que pesquisa
científica também é trabalho e as bolsas são nossos salários. E é um trabalho onde não temos
direito a férias, nem ao décimo terceiro, nem à carteira assinada. Trabalhamos todo dia em prol
de algo que é maior do que nós. Em tempos de desvalorização da ciência, ataques às instituições
de financiamento e à educação, é necessário reafirmar que ninguém deveria trabalhar sem
estrutura material e financeira para tal. Nós, cientistas, precisamos de condições dignas de
trabalho e o Estado é quem deve garantir isso.
Por fim, agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN pelos sete
anos de formação acadêmica de excelência. Até o momento, são duas graduações e uma pós
em andamento, e posso afirmar que eu não seria quem sou hoje se não fosse por tudo que me
foi possível viver na – e pela – UFRN. Estamos em um contexto no qual é necessário reafirmar
o óbvio, então: toda a educação, desde a básica até a superior, precisa e deve ser pública e
popular. Apenas assim é possível formar pessoas verdadeiramente conscientes e críticas de seu
lugar na sociedade. Apesar dos tempos cruéis que vivenciamos, seguimos em luta para que mais
estudantes populares ocupem as graduações e pós-graduações das universidades públicas
brasileiras.
RESUMO

Este trabalho é resultado de uma etnografia realizada no Cursinho Popular Marielle Franco, da
Rede Emancipa, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, com ênfase na atuação que tive em
campo, de forma presencial e cotidiana, durante o ano de 2019. A Rede se reivindica enquanto
um movimento social de educação popular que se organiza nacionalmente através,
principalmente, de cursinhos populares preparatórios para o Enem e vestibulares, voltados à
população vulnerável socioeconomicamente, negra e estudantes oriundos da rede pública de
ensino. A pesquisa investigou algumas questões que circundam a existência do cursinho: como
se dão as práticas educativas quando se faz necessário a crítica e denúncia do caráter excludente
dos vestibulares e Enem e, ao mesmo tempo, a proposta de viabilizar o acesso das camadas
populares às Universidades Públicas? Como lidar com esse conflito quando os/as estudantes
dos cursinhos populares, comumente, são excedentes que ficam de fora das vagas? Além disso,
quais os usos e apropriações da categoria “educação popular”, considerando a interlocução
entre o movimento social e a militância partidária no cursinho e na rede? Isto posto, lancei luz
a algumas elaborações discursivas, estratégias de organização e conflitos observados em
campo, evidenciando o caráter plural, dinâmico e multifacetado do Cursinho Marielle Franco.

Palavras-chave: Cursinho Popular. Emancipa. Movimento Social. Etnografia. Política.


ABSTRACT

This work is the result of an ethnography carried out at the Cursinho Popular Marielle Franco,
from Rede Emancipa, in the city of Natal, Rio Grande do Norte, with an emphasis on the
performance that I had in the field, in person and on a daily basis, during the year 2019. Rede
claims itself as a social movement of popular education that is organized nationally, mainly
through popular preparatory courses for the Enem and entrance exams, aimed at the
socioeconomically vulnerable population, black people and students from the public school
system. The research investigated some questions that surround the existence of the course:
how educational practices take place when it is necessary to criticize and denounce the
exclusionary character of entrance exams and Enem and, at the same time, the proposal to
enable the access of the lower classes to Universities Public? How to deal with this conflict
when the students of popular courses, commonly, are surpluses that are left out of the vacancies?
In addition, what are the uses and appropriations of the “popular education” category,
considering the dialogue between the social movement and the party militancy in the cram and
the network? That said, I shed light on some discursive elaborations, organizational strategies
and conflicts observed in the field, showing the plural, dynamic and multifaceted character of
Cursinho Marielle Franco.

Keywords: Cursinho Popular. Emancipa. Social Movement. Ethnography. Policy.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Caderno de Formação de Educadores Populares....................................... 63


Figura 2 – Corredor entre as salas da UERN.............................................................. 67
Figura 3 – Aula Inaugural.......................................................................................... 69
Figura 4 – Encerramento do primeiro momento da Aula Inaugural no pátio da
UERN....................................................................................................... 70
Figura 5 – Grade horária............................................................................................ 86
Figura 6 – Arraiá da Marielle..................................................................................... 100
Figura 7 – Faixa à direita produzida pelo Grupo de Ação na Aula Inaugural do 2º
semestre.................................................................................................... 102
Figura 8 – Encerramento do primeiro momento da Aula Inaugural do 2º semestre.... 102
Figura 9 – Danças Urbanas........................................................................................ 111
Figura 10 – Oficina Tsunami da Educação.................................................................. 115
Figura 11 – Círculo sobre a Amazônia......................................................................... 115
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 11
1.1 Desafios metodológicos da pesquisa................................................................... 15
1.2 O resgate à categoria “excedentes”..................................................................... 18
1.3 Sobre o Marielle Franco...................................................................................... 21
1.4 Uma pesquisadora em campo, estratégia da pesquisa e divisão dos capítulos. 24

2 “QUE A UNIVERSIDADE SE PINTE DE POVO”: A LUTA PELA


EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA COMO UM DIREITO SOCIAL......... 28
2.1 Debates e transformações no acesso ao Ensino Superior no Brasil.................. 28
2.1.1 Rede Emancipa...................................................................................................... 35
2.1.2 Outras configurações da Rede Emancipa............................................................... 39
2.2 Os sentidos e expressões da Educação Popular: resgate conceitual e
histórico da categoria........................................................................................... 42
2.3 Construção de valores, perspectivas de mudanças: de estudantes a
educadores/as, a busca por uma educação transformadora............................. 50

3 CONSTRUINDO UM CAMPO, TECENDO TRAJETÓRIAS...................... 61


3.1 Primeiros contatos e ambientação dos espaços................................................. 61
3.1.1 Os espaços na UERN, Aula Inaugural e as turmas de estudantes......................... 66
3.1.2 Aula Inaugural....................................................................................................... 69
3.1.3 Turmas de estudantes............................................................................................ 71
3.2 A equipe do cursinho Marielle Franco e as formas de atuação: núcleos
interdisciplinares e “metodologias alternativas”............................................... 73
3.2.1 PSOL, MES, Juntos e Sandro Pimentel como colaboradores............................... 73
3.2.2 Professores/as e coordenação................................................................................ 75
3.2.2.1 O Marielle sob a coordenação de Will................................................................. 75
3.2.2.2 Algumas figuras da equipe docente....................................................................... 77
3.2.2.3 Perfil da equipe docente........................................................................................ 82
3.2.3 Núcleos interdisciplinares, formas de atuação e experimentação de metodologias
“alternativas”......................................................................................................... 83
3.2.3.1 Planejamentos das aulas e experimentação de metodologias................................ 84
3.2.4 Perfil dos/as estudantes......................................................................................... 86
3.2.5 Da ponte pra cá: a Zona Norte de Natal................................................................ 93
3.2.6 A equipe estudantil: organização política, distanciamentos, evasão..................... 98
3.2.6.1 O Grupo de Ação................................................................................................... 99
3.2.6.2 O caso de Lorenzo e a insatisfação com o Marielle............................................ 102
3.2.6.3 Evasão de Estudantes............................................................................................ 104
3.3 Círculos e Oficinas: formação educativa e formação militante...................... 106
3.3.1 Definição, metodologia e orientação para os Círculos e as Oficinas.................... 109
3.3.2 Oficina de Danças Urbanas................................................................................... 110
3.3.3 Oficina da Aula Inaugural no segundo semestre................................................... 111
3.3.4 Oficina sobre feminismo....................................................................................... 112
3.3.5 Círculo Tsunami da Educação............................................................................... 114

4 CAPÍTULO 4 – ENTRE O MOVIMENTO SOCIAL E O PARTIDO:


EDUCAÇÃO POPULAR OU EDUCAÇÃO PARTIDÁRIA?......................... 117
4.1 O debate antirracista e feminista no Marielle.................................................... 117
4.2 O “perfil Emancipa”: Representatividade feminina e negra do cursinho....... 119
4.2.1 Rogéria.................................................................................................................. 120
4.2.2 Jaci......................................................................................................................... 123
4.2.3 Tati......................................................................................................................... 127
4.3 Formação de quadros políticos para a militância.............................................. 130
4.3.1 “As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a Casa Grande”....................... 136
4.4 Interlocuções, candidaturas e direcionamento do Emancipa........................... 140
4.4.1 Candidatura de Tati e instrumentalização do Emancipa......................................... 143
4.4.2 Direcionamento do Emancipa................................................................................ 148

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CURSINHO MARIELLE COMO AÇÃO


EDUCATIVA....................................................................................................... 153

REFERÊNCIAS.................................................................................................. 159
11

1 INTRODUÇÃO

De início, é necessário explanar sobre meu envolvimento com o campo que começa com
minha trajetória universitária. Ingressei nas Ciências Sociais em 2014, no bacharelado, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e concluí essa primeira graduação em
2017. Neste mesmo ano, fui aprovada na segunda graduação, a licenciatura das Ciências
Sociais. Quando comecei meu primeiro curso, envolvi-me com várias militâncias, mas
principalmente com o movimento estudantil, devido ao meu constante fluxo pela universidade
que consistiu não só em estudar, como também em trabalhar com projetos de pesquisa e
extensão, estágios e em bolsas de apoio técnico.
Quando decidi que precisaria ingressar na licenciatura e comecei o curso em 2018, meu
amigo Rolfran (que fez o mesmo percurso acadêmico) convidou-me para dar aulas de
sociologia com ele no cursinho popular da Rede Emancipa, o Marielle Franco. Nessa época,
não aceitei porque ainda não tinha vontade de dar aula, também porque minha rotina semanal
estava cansativa, com as aulas da licenciatura à noite e a bolsa de apoio técnico pela manhã.
Isso não me permitiria dedicar os sábados para o trabalho no cursinho.
Em 2019, quando ingressei no mestrado, Rolfran me pediu novamente para dar as aulas
no cursinho, porque ele precisaria sair. Neste ano, eu já estava com uma rotina mais tranquila,
sentia a necessidade de me experimentar na docência e tinha a curiosidade de descobrir o que,
na prática, seria essa “educação popular” que o cursinho reivindicava para si. Achei interessante
também o principal conflito que norteava a existência do cursinho Marielle: o fato de ser um
cursinho preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que faz uma crítica ao
caráter excludente dos exames de seleção como modalidade de ingresso ao Ensino Superior, ao
mesmo tempo que assume para os/as estudantes1 que, devido às desigualdades educacionais do
país, a maioria deles/as não consegue passar, por isso o objetivo do cursinho não é só a luta pelo
ingresso na universidade pública, é pela igualdade de oportunidades no acesso.
Esse conflito foi explanado algumas vezes por Rolfran em nossas conversas e também
por Will, à época coordenador do Marielle, na reunião do início de 2018 quando tive o primeiro
contato com o cursinho. Ao conhecer um pouco mais da Rede Emancipa, que é a rede nacional

1
Quando digo que isso é “assumido” para os/as estudantes, significa que o cursinho não oculta a materialidade
das desigualdades educacionais no país e discute com os/as estudantes sobre como isso resulta em uma parcela da
população de “excedentes” que não conseguem acessar as universidades públicas por causa de uma raça e classe
delimitada. Inclusive, o cursinho enfatiza que sua existência se dá para lutar contra essa realidade e colocar os/as
excedentes “para dentro”. Esse ponto poderá ser visto no capítulo 2, quando falarei um pouco sobre a Aula
Inaugural de 2019.
12

na qual os cursinhos se organizam, descobri o quanto esse movimento social é imenso e plural.
Comecei a refletir no quanto seria interessante fazer uma pesquisa acadêmica sobre este campo
e também refletir sobre que tipo de pesquisadora acadêmica eu gostaria de ser.
Assim como a maioria dos/as estudantes de origem popular, fui a primeira da minha
família a ingressar numa universidade pública, meu pai e minha mãe dedicaram muitos anos de
suas vidas para que eu chegasse nesse lugar que, na perspectiva dela e dele, iria me proporcionar
um “futuro melhor”. O estímulo aos meus estudos, motivado pela promessa do “futuro melhor”
e da ascensão social pela Educação Superior, o sonho de ver uma filha “formada na federal”,
dialoga com o que Lima (2020, p. 176) aponta como sendo uma estratégia para que os/as
filhos/as adentrem à universidade e conheçam outro lugar que não o da submissão. Isso
evidencia também a relação de amor e gratidão, no caso, o estímulo ao ingresso na universidade
como um sinônimo de amor e o agradecimento que perpassa toda a trajetória acadêmica dos/as
filhos/as (LIMA, 2020).
Essa trajetória acadêmica atravessada por militância, agradecimentos e a carga
simbólica de ser a primeira da família a ingressar numa Universidade Pública e concluir uma
graduação, me levou a uma identificação ainda maior com todas essas discussões do cursinho
Marielle e pensei: “Que acadêmica/pesquisadora eu gostaria de ser?”. Afinal, ingressar numa
pós-graduação não era um projeto de vida, mas já que havia chegado até este ponto, comecei a
me questionar sobre “o que fazer com essa pós”. E a resposta veio com a minha decisão de atuar
como educadora popular no Marielle. Como diz uma amiga: “a gente precisa saber a qual classe
quer servir” e, sabendo disso, decidi trabalhar nesta pesquisa sobre educação nos movimentos
sociais dentro da Antropologia.
A escolha pelo Cursinho Marielle Franco como campo do trabalho foi pelo meu acesso
a ele como professora de sociologia e também pelo objetivo de ampliar a pesquisa para a Rede
Emancipa após o mestrado. Nesse caso, o mestrado com um campo localizado e focado numa
perspectiva local (o cursinho), seria o pontapé inicial para um possível desdobramento adotando
uma perspectiva geral (a Rede). A experiência como professora e o prazer em experienciar esta
docência dentro de um cursinho popular foram facilitadores para minha inserção no campo
como pesquisadora, mas também, em muitos momentos, foram obstáculos. Antes de adentrar
essa discussão, farei uma explanação sobre a metodologia adotada.
O trabalho de campo teve cunho essencialmente qualitativo e envolveu uma rotina fixa
de estar no cursinho todos os sábados e produzir o diário de campo aos domingos. Alguns dias
costumava passar os dois turnos, manhã e tarde, mesmo tendo privilegiado o turno vespertino
para dar aulas. É importante salientar que o cursinho não acontecia apenas em seu espaço físico
13

onde esteve localizado em 2019, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
ele acontecia em muitos outros espaços: nos grupos de WhatsApp, nas redes sociais como
Instagram, nos eventos de militância como palestras e rodas de conversa, onde geralmente
pessoas da coordenação participaram representando o Movimento Social Emancipa, nos atos
de rua onde as pessoas vestiam camisas e levaram bandeiras do Emancipa, no bar, onde íamos
beber após o término das atividades do sábado, além de outros espaços aos quais não tive
acesso.
Dito isso, é possível perceber o quanto este campo é imenso e que, obviamente, eu não
tive condições materiais para captar tudo. Por isso, optei por um recorte espacial e temporal,
respectivamente: a UERN e suas adjacências (bar, os atos de rua), geralmente foram nesses
espaços físicos que eu pude transitar. O recorte de tempo foi o ano de 2019, porém é necessário
fazer uma observação neste ponto.
Em 2020, mesmo antes da pandemia de Covid-19 chegar ao Brasil, paralisando as
atividades presenciais do cursinho, havia decidido privilegiar a escrita da dissertação, mas isso
não significou que deixei de estar em campo, continuei como professora e pesquisadora. Com
o advento da pandemia que obrigou o Marielle a aderir ao ensino remoto virtual, minha única
opção foi continuar o campo pelas redes sociais. Continuei com enfoque na escrita, isso me
deixou menos imersa no cotidiano do cursinho do que em 2019. Realizei, ao longo de 2020,
entrevistas pelo WhatsApp com alguns/os dos/as professores/as, coordenadoras e ex-
colaboradoras/es, além de dar mais atenção aos grupos virtuais nos quais estou inserida.
Para realizar essa imersão no campo, foi importante refletir sobre como relacionar os
fazeres de pesquisadora, professora e militante sem perder o rigor com o trabalho científico. No
caso do envolvimento político, isso aconteceu à medida do envolvimento emocional construído
que fez o cursinho tornar-se mais do que um campo: uma dimensão importante e significativa
da minha vida.
Em uma pesquisa antropológica, o trabalho de campo é o principal método para se
construir uma etnografia. Nesse sentido, o trabalho de campo pode ser compreendido como
uma vivência carregada de uma intensa dimensão de subjetividade, pois todo o trabalho de
produção de conhecimento se passa através de uma relação subjetiva (BRANDÃO, 2007). A
relação interpessoal e a subjetividade são partes fundamentais para a construção etnográfica.
Brandão (2007) argumenta que o envolvimento pessoal do/a pesquisador/a com as pessoas em
seu campo fornece os dados para um trabalho científico aprofundado.
Na antropologia, o método para o trabalho de campo no qual a/o pesquisador/a deve
observar e colher dados sem intermediações é chamado de “observação participante”. Brandão
14

(2007) se aprofunda nesse conceito e trabalha com a perspectiva de uma “pesquisa participante”
a qual implica em tratar o envolvimento, entre pesquisador/a e pessoas pesquisadas, como
material científico. Nesse sentido, a dimensão subjetiva do/a pesquisador/a e as relações
construídas em campo devem ser partes integrantes do trabalho, pois entende-se que, na prática,
não há como fazer essa separação (entre objetividade e subjetividade).
Peirano (2014) traz elucidações sobre essa questão quando discute a respeito do “método
etnográfico”. Quando a autora aponta que “a pesquisa de campo não tem momento certo para
começar e acabar. Esses momentos são arbitrários por definição e dependem (...) da
potencialidade do estranhamento, do insólito da experiência”, é possível pensar a etnografia
para além do “método”, como uma “formulação teórico-etnográfica” (PEIRANO, 2014, p.
379). É, pois, recorrendo à essa elaboração de Peirano (2014) que reflito sobre a construção
teórico-etnográfica da pesquisa.
A “participação” do pesquisador em campo é concebida como uma convivência íntima
e prolongada (SILVA, 2006) proporcionando a/o pesquisador/o uma coleta de dados carregada
de densidade e intersubjetividade. Assumir a dimensão das relações intersubjetivas na pesquisa,
traz consigo questionamentos apontados por Silva (2006) como a necessidade do/a
antropólogo/a refletir até que ponto a relação estabelecida com as/os pessoas em campo afeta
as interpretações produzidas no texto etnográfico.
Estando ciente de que a subjetividade e a afetividade são fatores condicionantes, precisei
buscar um aporte teórico que me proporcionasse uma maior reflexividade sobre como sustentar
esse envolvimento com o campo dentro do rigor necessário para construir um trabalho
científico. Foi assim que recorri às leituras sobre a Metodologia de Investigação-ação
Participativa (IAP) a partir da perspectiva trabalhada por Fals Borda (2013). A Investigação-
ação Participativa é uma produção teórico-prática de pesquisadores/as latino-americanos/as que
objetivam engajar a pesquisa científica com ações políticas.
A produção do conhecimento a partir da metodologia IAP emerge do contexto
sociopolítico latino-americano e considera o histórico de como se constituiu as nações na
América Latina buscando, pois, uma problematização dos cânones da ciência que emergem nos
contextos das nações europeias e estadunidense. Fals Borda (2013) examina os processos de
produção do conhecimento científico e trabalha com a perspectiva da ciência como um produto
cultural humano que responde às necessidades coletivas e a objetivos determinados pelas
classes dominantes.
Nesse sentido, a Investigação-ação Participativa reflete sobre a produção de uma ciência
emergente (FALS BORDA, 2013), que deve ser crítica a respeito da ciência produzida pelas
15

classes hegemônicas e comprometida com as lutas populares. Esse compromisso perpassa tanto
o engajamento com a produção de um conhecimento científico não-hegemônico dentro da
disputa epistemológica com a ciência dominante, como também as lutas travadas no âmbito da
sociedade civil. Desse modo, a Investigação-ação Participativa combina a pesquisa científica
com a ação política e a prática militante.
Além disso, há uma aproximação importante entre a pedagogia de Paulo Freire (adotada
pelos cursinhos da Rede Emancipa e pelo Marielle Franco desde seu marco inicial em 2017)
com as reflexões de Fals Borda (2013). Essa aproximação é discutida por Mota Neto (2018)
que aponta a IAP como uma modalidade de educação popular devido ao seu papel
impulsionador de movimentos sociais de base (MOTA NETO, 2018).
No artigo de Moretti e Adams (2011), também há uma reflexão teórica sobre a
aproximação entre “pesquisa participativa” (na qual a IAP encaixa-se como uma das
modalidades) e educação popular.
Para tanto, Paulo Freire e Orlando Fals Borda são apresentados como importantes
interlocutores dos processos educativos/políticos/organizativos na emancipação do
espelho eurocêntrico. Compreende-se que a América Latina e a Europa são unidades
de conflituosidade, e que as experiências, os métodos e as pedagogias de insurgências,
ao valorizarem o outro conhecimento ante a colonialidade do norte, tornam-se
fundantes na reinvenção da emancipação social. (MORETTI; ADAMS, 2011, p. 447)

A educação popular e a pesquisa participativa aparecem ambas como “experiências do


sul” e são compreendidas como componentes mobilizadores de cunho
pedagógico/político/organizativo que se encontra no horizonte dos movimentos de resistência
e transformação social (MORETTI; ADAMS, 2011, p. 451). Esse “sul” é referente à chamada
América Latina e há um movimento de descolonialidade do conhecimento a partir do
acionamento e usos dessas categorias.
Nesse sentido, a tentativa de combinar a investigação social (por meio da pesquisa
participativa) com o trabalho educacional e ação emancipadora aparece como uma forma de
romper com a relação dominadora que se prolonga na colonialidade do conhecimento
(MORETTI; ADAMS, 2011) a qual é chamada a partir da categoria “espelho eurocêntrico”.
Sendo assim, pretende-se criar novas leituras de mundo a partir de nossos referenciais locais.

1.1 Desafios metodológicos da pesquisa

No processo de triplo fazer da pesquisa, ao mesmo tempo em que tive “facilidades”,


pois consegui adentrar espaços e acessar pessoas que apenas como pesquisadora eu não
conseguiria, esse mesmo envolvimento proporcionado pela metodologia incorreu em desafios.
16

Isso porque fazer ciência é diferente de fazer militância e, por mais que seja necessário produzir
uma pesquisa engajada politicamente, ainda assim a pesquisa científica exige um rigor, uma
linguagem técnica e uma propensão a dúvidas e questionamentos que a militância não exige. A
questão é que “ciência a gente faz com dúvida, militância a gente faz com convicção”2 e houve
momentos em que isso se transformou num conflito para meu trabalho.
O envolvimento militante fez com que eu, muitas vezes, tivesse dificuldades em elaborar
questionamentos mais aprofundados sobre os discursos que são produzidos dentro do cursinho,
assim como me fez, em alguns momentos, perder de vista o foco da pergunta principal
norteadora da pesquisa: como se dão as práticas educativas no interior do cursinho popular,
sabendo-se que a existência deste é atravessada pelo conflito entre fazer uma crítica ao caráter
excludente dos Vestibulares e Enem e, ao mesmo tempo, propor-se a viabilizar o acesso das
camadas populares às Universidades Públicas? E como lidar com esse conflito quando os/as
estudantes dos cursinhos populares são justamente os “excedentes do vestibular”3, ou seja,
estudantes que comumente ficam de fora das vagas?
A temática da pesquisa também incorreu em desafios para ser realizada dentro da
Antropologia. A partir de um levantamento bibliográfico sobre a área da Antropologia da
Educação, que comecei a fazer em março de 2019, quando dei início à pesquisa de campo no
cursinho Marielle Franco, pude perceber que há poucas produções sobre educação fora do
contexto escolar, além disso, a maioria das pesquisas nessa área é direcionada para um debate
cujo enfoque é cultura e diversidade dentro dos contextos escolares.
Vejamos a citação a seguir:
Para essa população, a escola é ainda um valor e pensá-la exige ter presente dois
lados: um que é o aluno e o professor como sujeitos socioculturais, outro que é a
própria escola em sua dupla dimensão – espaço de regras, normas, obrigações,
deveres, mas também, de vida, relacionamentos, descobertas, acontecimentos. Assim,
falar de diferença exige, então, que se pergunte: quem é diferente? Quando? Como?
Por quê? (GUSMÃO, 2011, p. 35)

O trecho acima faz parte de um artigo sobre a emergência de uma Antropologia da


Educação produzido por Gusmão (2011), um dos nomes de maior referência na área. A
discussão que busco fazer, além de não seguir por esse eixo, também não se situa no contexto
das escolas. Ao perceber, então, que a discussão sobre educação fora do contexto escolar é
incipiente na Antropologia e perceber, também, as poucas produções teóricas na Antropologia
Brasileira sobre Educação nos Movimentos Sociais e sobre Educação Popular, acredito ser de
profunda relevância acadêmica construir este trabalho dentro dos marcos da Antropologia. Essa

2
Frase que Rolfran falou em uma de nossas conversas sobre esses conflitos e desafios da pesquisa.
3
Abordarei a noção mais à frente.
17

dissertação, portanto, tem como objetivo estabelecer diálogos com a área da Antropologia da
Educação que apontem para outros caminhos além dos já consolidados contextos escolares e
culturais.
No artigo “Antropologia e Educação: Culturas e Identidades na Escola”, Tosta (2011)
tece um diálogo acerca de como os conceitos de cultura e identidade se interseccionam dentro
do campo da educação, especificamente no ambiente escolar. A autora argumenta que a
Antropologia, enquanto uma ciência que se faz no exercício da alteridade e preocupada com as
diferenças, têm repercussão no cotidiano escolar à medida em que trabalha sob o prisma da
educação como cultura e a escola como um lugar de identidades em movimento (TOSTA, 2011,
p. 42).
Percebo essa centralidade dada à educação escolar, dentro da Antropologia, não apenas
na produção de artigos e outros escritos acadêmicos, como também na organização temática de
alguns eventos. Trago como exemplo, após uma breve pesquisa no site da Reunião Brasileira
de Antropologia (RBA), o que pude encontrar na edição de 2014 no Grupo de Trabalho (GT)
intitulado “Antropologia e Educação: construindo diálogos na interface”. De acordo com o
resumo, o GT objetivou discutir sobre a relação entre a antropologia e a educação, a importância
de a Antropologia voltar-se teoricamente e empiricamente para a Educação, destacou-se os
aspectos da “multiculturalidade” e “relações interculturais”, “culturas escolares” e “transmissão
de saberes escolares e não escolares” para o debate. Nesse GT, dos 20 trabalhos submetidos,
apenas três pesquisavam sobre educação não escolar e não institucionalizada.
Na edição de 2020 da RBA, o GT sobre educação fecha-se, em seu próprio título, dentro
dos contextos da educação escolar: “Diálogos nas fronteiras: a Educação e a Escola como
objetos de investigação na Antropologia”. O resumo destaca novamente os “debates entre
antropologia e educação” e a ênfase na pesquisa sobre ensino da antropologia, escolas,
diferença e diversidade cultural, educação indígena e, como consta no excerto, “pedagogias
diferenciadas”.
Essa proposição antropológica de “entender o fenômeno da educação (...) como um
processo que remete às aprendizagens nas culturas” (excerto encontrado no resumo do GT da
RBA 2020), incomoda-me devido à limitação que estabelece em torno de uma área enorme e
diversa como a educação. Isso porque há outros aspectos, além do cultural4, e outras relações a
serem compreendidas na educação a partir de um olhar antropológico, são elas: política, social,

4
Por “cultural” refiro-me ao enfoque dado às relações sociais de produção subjetiva e simbólica. Não acredito
que, na prática, haja uma distinção entre cultura, política, instituições etc., pois todas estão interrelacionadas e são
interdependentes. A distinção que faço é apenas para destacar o direcionamento da dissertação.
18

institucional, além da relação com o Estado, os Movimentos Sociais, sociedade civil.


Outro incômodo é transformar a educação em um “objeto de investigação”, quando na
verdade esta é uma área amplamente consolidada, com inúmeras subáreas que já se dedicam à
investigação da educação sob diferentes caminhos, contextos e aspectos. Por isso, meu objetivo
enquanto pesquisadora é um trabalho sobre educação não escolar e não institucionalizada a
partir de uma perspectiva antropológica com enfoque nas temáticas política e social, e a relação
da educação com os movimentos sociais.
A propósito de conclusão, é preciso tornar nítido que diversas noções utilizadas ao
longo do trabalho são categorias êmicas, sendo objetivo desta dissertação também refletir sobre
seus usos e apropriações. São exemplos essas: “educação popular”, “movimento social
Emancipa”, “movimento social dos cursinhos pré-vestibulares populares”, “movimento social
das periferias”. Seja no cotidiano do cursinho, seja nas redes sociais ou nas produções teóricas
e científicas, como no caso dos estudos sobre o movimento social de pré-vestibulares o qual
será discutido no primeiro capítulo, pude observar a centralidade dessas noções no meu campo
de pesquisa.

1.2 O resgate à categoria “excedentes”

Neste momento, faz-se necessário, por objetivo político, um resgate à categoria de


“excedentes” que usarei em determinados momentos, especialmente durante o primeiro
capítulo, para me referir às/os estudantes de cursinhos populares que estão pleiteando uma vaga
nas universidades públicas. Na dissertação de Almeida (2016), intitulada “Pré-vestibulares
populares: Estratégia de Acesso dos Excedentes à Educação Superior”, analisa-se os pré-
vestibulares populares “em função dos excedentes dos vestibulares e a tensão entre a relação
inclusão-exclusão das universidades” (ALMEIDA, 2016, p. 3).
Para Almeida (2016), as fundamentações que movem os/as agentes organizadores/as
dos pré-vestibulares populares são os ideários de justiça social com ênfase na crítica à exclusão
das camadas populares do acesso à educação superior pública.
Na história da educação brasileira, constata-se um processo de naturalização de uma
ideia como necessidade, a realização de um concurso como o “vestibular” como
mecanismo de ingresso e distribuição das vagas do ensino superior. Compreende-se
que o vestibular e os critérios de seleção do concurso ocultam os “excedentes” das
universidades, ou seja, a quantidade de estudantes que se encontram privados do
acesso à educação superior pública. (ALMEIDA, 2016, p. 70)

Ao analisar os vestibulares como um “filtro social”, que é uma das principais críticas
feita pelos cursinhos da Rede Emancipa ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de
19

grande parte dos outros cursinhos populares, compreendemos os pré-vestibulares (tanto as


iniciativas populares quanto privadas) como um “mecanismo extraoficial da política brasileira”
(ALMEIDA, 2016, p. 70). O autor ressalta que os cursinhos (pré-vestibulares) não possuem
nenhuma normatização institucional nas políticas educacionais, não há mecanismos legais que
regulam seu funcionamento de modo que esse expediente de ensino pode ser considerado
“clandestino”, por ser historicamente desconsiderado no sistema nacional de educação. O autor
ainda destaca que o fenômeno dos cursinhos representa uma “crise institucional do sistema
educacional brasileiro”, sendo “filhos ilegítimos do vestibular que reverberariam a lógica de
desigualdade” (ALMEIDA, 2016, p. 76).
Nesse sentido, os cursinhos são concebidos como uma estratégia de classe. No âmbito
das instituições privadas, servem à manutenção da lógica dominante de “triagem” na qual
apenas “os/as melhores/as” e “mais aptos/as” poderiam ingressar na educação superior pública.
O cursinho privado, assim, serviria para a “preparação” desse público, mas, na prática, serve a
quem tem condições de pagar. Já nas iniciativas de caráter popular há uma apropriação dessa
ação educativa para lutar pelo direito social de acesso das camadas populares às universidades
públicas.
Em meados da década de 60, Almeida (2016) discute que os vestibulares funcionavam
com a característica de “exame de admissão”, ou seja, havia uma média específica que os/as
estudantes precisavam obter para serem aprovados/as nos cursos pleiteados. A categoria de
“excedentes” referia-se a estudantes que atingiam as médias, mas não eram convocados/as e
ficavam nas “listas de espera”. Esse fenômeno começou a acontecer porque o número de
aprovados/as nas universidades extrapolou o número de vagas. Assim, os/as excedentes
começaram a se mobilizar em consonância com os movimentos estudantis da época que
levantaram a bandeira de luta “por mais vagas na universidade” e “verba pública para o ensino
público” (ALMEIDA, 2016, p. 73).
O nome na lista dos aprovados garantia a legitimidade da reivindicação da educação
como um direito social. Devido ao fator dos excedentes, a pauta de “mais vagas”
constituiu-se como bandeira do movimento estudantil. A ditadura militar, com o
discurso de que o ensino superior custava muito caro, defendia a “expansão com
contenção”. No período autoritário, uma das mudanças implementadas foi a adoção
de novos critérios para o vestibular. De exame passou a concurso, questão que fez
com que o mecanismo avaliativo não fosse mais a obtenção de nota mínima necessária
para a aprovação na prova. O concurso vestibular consolidou-se como classificatório
(...) Assim, as maiores notas têm direito às vagas. (ALMEIDA, 2016, p. 75)

Nos vestibulares recentes e, atualmente, no Enem também há uma “lista de espera” com
candidatos/as que, em cursos de menor concorrência, são aprovados/as nas chamadas
subsequentes devido à desistência dos/as ingressantes da primeira chamada oficial. Porém, cabe
20

destacar que até nas listas de espera atuais há o sistema de classificação. O autor chama atenção
para essa estratégia, de tornar os vestibulares com característica de concurso, como uma forma
de naturalizar a escassez de vagas e hierarquização dos cursos de maior prestígio social o que
corroborou para o “arrefecimento organizativo dos sem universidade” (ALMEIDA, 2016, p.
76).
Os cursinhos da Rede Emancipa conclamam que é necessário a expansão das vagas, de
que o Enem e outros vestibulares perpetuam a lógica meritocrática de desigualdade educacional
e que a educação pública superior é um direito social. Por isso, optei pelo resgate à categoria
de “excedentes” para reiterar que todo/a estudante fora da universidade pública é um/a
excedente. Compreender a educação superior como um direito permite-nos entender as
reivindicações do chamado Movimento Social dos Cursinhos Populares.
Nesse sentido, o Cursinho Marielle Franco, que é um espaço de educação popular do
movimento social Rede Emancipa, traz como uma de suas bandeiras de luta o investimento
público nas universidades públicas e a crítica ao caráter segregador de classe dos exames de
admissão chamados “vestibular” e, mais recentemente, o Enem. É necessário atentar para a
questão da categoria êmica evocada pelo Emancipa com sua logo oficial: “Rede Emancipa:
Movimento Social de Educação Popular”.
Oliveira (2011) aponta que nesse campo o adjetivo “popular” converte-se em
qualificativo de uma “educação peculiar”. E ressalta as dificuldades de explicitação do termo
“popular” visto seu uso indiscriminado para designar ações no campo educacional voltado para
a população de jovens e adultos/as e as tentativas de diluir o caráter de classe de tais iniciativas
(OLIVEIRA, 2011, p. 165).
Nesse sentido, a educação popular no Brasil e na América Latina tem sua trajetória
marcada pela ênfase nas práticas educativas que se desenvolvem fora da escola. Não
obstante, a luta dos movimentos populares por escola pública de qualidade vem
contribuindo para que seja rompida essa separação estanque, exigindo um lugar
efetivo para a educação do povo na escola. (OLIVEIRA, 2011, p. 164)

A partir da análise do uso político que o Cursinho Marielle e a Rede Emancipa fazem
da categoria “educação popular”, compreendo que o popular se encaixa na concepção de uma
“educação sociotransformadora” cujo elemento de distinção em relação às outras modalidades
de educação é a proposta e práxis direcionada para a efetiva transformação da sociedade, do ser
humano e do Estado com um projeto político-pedagógico-ideológico que trabalha o
conhecimento a partir de uma intencionalidade estritamente política (OLIVEIRA, 2011, p.
21

165). Assim, a luta do Marielle enquanto movimento social é pela educação do povo5 na
universidade, ou seja, para que “a universidade se pinte de povo” o povo precisa entrar, e
permanecer, na universidade.

1.3 Sobre o Marielle Franco

O cursinho Marielle Franco faz parte de uma rede nacional denominada Rede
Emancipa. Sua identidade visual é marcada pela cor verde, letreiro branco e, a partir de 2018,
o rosto de Marielle Franco passou a ser adotado pela rede6. Em seu site oficial7, há uma carta
de apresentação:
A Rede Emancipa é um movimento social de educação popular que desde 2007
constrói um importante trabalho voltado à educação de jovens de escolas públicas. O
principal foco de atuação da Rede Emancipa tem sido a organização de cursinhos
populares pré-universitários para atender à demanda represada dos estudantes de
escolas públicas pelo acesso ao ensino superior em geral, e às universidades públicas
em particular. Nos cursinhos, além de refletir sobre o conteúdo exigido pelos
vestibulares de uma maneira que esteja de acordo com o contexto vivido pelos
estudantes, também é priorizada a educação transformadora que ofereça o máximo de
instrumentos para que estes pensem as suas realidades de maneira crítica e
emancipadora. (Rede Emancipa, QUEM SOMOS)

A Rede conta com 67 cursinhos pelos estados São Paulo (SP), Rio Grande do Sul (RS),
Rio Grande do Norte (RN), Rio de Janeiro (RJ), Paraná (PR), Pará (PA), Minas Gerais (MG) e
Distrito Federal (DF). Em SP, onde o Emancipa teve seu marco inicial, há o maior número de
cursinhos, 29. Aqui no RN, atualmente, são 5 cursinhos. O Marielle Franco foi o primeiro, teve
início em 2017, e é o pilar do movimento social no estado. Ao longo de 2019, iniciou-se o
Cursinho Luciano Flavio em Ceará-Mirim, município do RN, e em 2020 o Cursinho Popular
de Mãe Luiza e o Cursinho Popular Felipe Camarão, em Natal, além do Cursinho Currais
Novos, no interior do RN.
Nas redes sociais, como Instagram e Facebook, busca-se integrar todos os cursinhos,
não se fazendo distinção entre eles, então o nome dos perfis está como “Rede Emancipa - RN”,
mesmo em 2019, quando havia apenas o cursinho Marielle. A questão é que na prática há uma
metonímia, poucas pessoas chamam o cursinho Marielle pelo seu nome e muitas chamam por

5
É importante mencionar que, embora a categoria “povo” não seja muito utilizada ao longo da dissertação, das
vezes em que me referir a ela – como neste momento – evoco o conceito trabalhado por Oliveira (2011, p. 161) de
“povo” enquanto vocábulo designador de sujeitos políticos coletivos. Esta nota se faz necessária devido à imensa
diversidade conceitual dessa categoria, inclusive, remetendo à forte tradição populista (OLIVEIRA, 2011). Essas
questões serão exploradas no capítulo 1 desta dissertação.
6
Marielle Franco foi uma socióloga e política brasileira, eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2016 com filiação
ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
7
Consultar: https://redeemancipa.org.br/.
22

“Emancipa”. Todavia, como o propósito desta dissertação é fazer um estudo local, sobre um
cursinho, optei por chamá-lo “Marielle” em diversos momentos. É importante frisar que há
muitas particularidades em cada cursinho, mesmo sendo uma rede nacional, mas também há
muitas generalidades que respondem aos princípios nacionais do movimento social.
O Cursinho Marielle Franco nasceu no início de 2017 impulsionado por seus dois
primeiros coordenadores, Will e Danilo (o segundo havia sido professor em outros cursinhos
da Rede Emancipa em São Paulo - SP), que recrutaram alguns/as professores/as e deram início
a esse projeto. Will era estudante de pedagogia na UFRN e pesquisador da educação popular.
Danilo era professor de geografia e atuava no gabinete do então vereador Sandro Pimentel
(PSOL).
Em 2019, o Marielle funcionou na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN) aos sábados, das 8h às 16:20h, mesclando aulas no formato convencional, com os
conteúdos exigidos pelo Enem, e espaços para práticas educativas com o propósito de formação
política, como os círculos e oficinas. Esses espaços também servem como formas de resolução
para lidar com o conflito que atravessa a existência do cursinho: a apropriação do expediente
educacional chamado cursinho que exige do Marielle os espaços de educação formal cujo
trabalho é a preparação dos/as estudantes para o Enem e a reivindicação de uma educação
popular que extrapola a matriz de referência curricular.
Especificamente nos círculos há uma ênfase na formação política dos/as estudantes, o
estímulo ao debate sobre as desigualdades educacionais, sociais, e onde explicita-se a posição
política do movimento social, além de discutir a organização interna do cursinho. Nas oficinas,
por se pretender um espaço de maior ludicidade e descontração, não há a mesma ênfase dos
círculos, mas ainda assim acontece de se ter atividades com o mesmo caráter.
Uma frase que, a meu ver, ficou marcada em um círculo, verbalizada por Danilo, foi:
“o Emancipa existe para deixar de existir”. Ao explicá-la, ele aponta que as lutas nas quais o
cursinho se envolve, tem um horizonte e a pretensão de uma finitude: quando o acesso à
educação superior pública for democrático e popular, quando não houver mais “excedentes” e
todos/as tiverem as mesmas oportunidades educacionais, o Emancipa deixará de existir.
Nas salas de aula, apesar de serem os espaços elencados como da “educação formal”,
também houve tentativas coletivas de subversão dos modelos tradicionais de ensino com a
adoção de propostas em torno de uma “metodologia interdisciplinar” e aulas temáticas tendo
em vista o estímulo à criticidade dos conteúdos. Além das tentativas individuais de cada
professor/a com seus próprios métodos de ensino. É importante enfatizar que, embora houvesse
a orientação pedagógica em torno do referencial teórico-metodológico de Paulo Freire, não
23

houve uma construção coletiva dos planos de ensino ao longo do ano. Apesar das propostas
iniciais de criar uma “coordenação pedagógica” com o objetivo de pensar essas questões, ela
não foi colocada em prática, deixando os planos de ensino e de aula, a critério individual de
cada docente.
Camila Barbosa dos Santos, uma das “colaboradoras”8 do Marielle e militante do
coletivo de juventude JUNTOS do partido PSOL, escreveu sua monografia em 2017 sobre o
Cursinho Marielle Franco. O trabalho, apresentado como requisito para conclusão de sua
graduação em Pedagogia, traz importantes relatos de coordenadores/as9 da época e um breve
panorama do cursinho em seus primórdios, já que foi produzido por Camila no primeiro ano de
funcionamento.
Reproduzo abaixo uma das falas do coordenador geral, Carlos, presente na monografia,
quando lhe é questionado acerca de sua motivação para trabalhar voluntariamente no cursinho:
Carlos: “(...) acabou sendo por um compromisso mais político, digamos assim,
principalmente com a população que eu quero trabalhar e quero estudar que é a
população negra, e a partir desse compromisso eu vi uma possibilidade no emancipa
de tá contribuindo com essa população, não apenas escrevendo, pesquisando ou me
autoformando, saca? Então, parte desse compromisso também. Apesar de eu estar
desestimulado, de certa forma, com a educação, o emancipa surge, nesse sentido,
como uma prática, uma ação de emancipação. (SANTOS, 2017, p. 19)

Percebe-se, desde então, as ideações iniciais de um dos coordenadores para o projeto e


a educação popular aparecendo nas entrelinhas como uma categoria norteadora da construção
pedagógica no cursinho. Ao longo da pesquisa, pude presenciar inúmeros sentidos e usos,
dentro do cursinho, dessa categoria. Além de percebê-lo como um espaço de multiplicidades
que é significado por cada pessoa que o constrói de diferentes formas e a partir de diversos
propósitos.
Em 2019, o cursinho contou com um grande corpo docente, embora nem todos/as
tivessem uma certa organicidade – que compreendo como regularidade na construção das
tarefas e no fazer do trabalho – por isso, apresentarei os/as professores/as a partir de certos
recortes, como a convivência que pude ter com eles/as. Nem todos/as aparecerão aqui na
dissertação, por isso é importante destacar que o universo do cursinho é muito mais plural do
que o que coube nestas laudas.
O mesmo é válido para o corpo estudantil, a transitoriedade aqui ainda é maior e a
evasão é uma característica estrutural, não apenas do Marielle como de outros cursinhos da
Rede. No entanto, alguns/as estudantes se destacaram por ter atuações que extrapolaram o papel

8
Categoria que será explicada no segundo capítulo.
9
Todos/as aparecem com pseudônimos.
24

de “aluno/a”. Rogéria é o caso mais exemplar. Hoje10 é coordenadora e uma das vozes do
movimento social no estado. Também houve atuações mais “tímidas” de outros/as estudantes
que se envolveram na dimensão política do cursinho, essas serão trazidas no segundo capítulo.
A coordenação é o corpo mais estável do Marielle. Em 2019, com a chegada de Tati
Ribeiro, coordenadora nacional da Rede e com experiência anterior em cursinhos em São Paulo,
ganhou um rosto feminino e negro, com Tati dividindo as tarefas ao lado de Jaci, uma das
professoras de química, e Rogéria. Will, que até meados de abril de 2019 atuou como
coordenador geral, afastou-se do cursinho e do movimento social. Em seu tempo de atuação,
ele dividiu as tarefas com Danilo, que, de acordo com os relatos, foi o quadro menos regular da
coordenação, pois mantinha um fluxo de afastamentos e retornos no cursinho.
A composição da coordenação a partir de 2019 é um dado importante para se
compreender os rumos do movimento social no estado e a organização interna do cursinho –
tema que exploro no capítulo três. É importante destacar que com a interrupção das aulas
presenciais devido à pandemia de Covid-19 em 2020, muita coisa mudou e muito ficou para
trás, assim como coisas novas foram construídas e novas direções foram tomadas. Também
repercuto algumas dessas questões na conclusão desta dissertação.

1.4 Uma pesquisadora em campo, estratégia da pesquisa e divisão dos capítulos

Meu processo de tornar-me pesquisadora em campo foi custoso. Devido a todas as


intersecções que mencionei anteriormente, demorou mais de um ano, desde a inserção no
cursinho em março de 2019, para que eu realmente me visse nesse ofício. Não obstante, sempre
fui metódica em relação ao trabalho e estabeleci uma rotina para conseguir produzir a escrita
dos diários de campo.
Logo no início, entre março e abril de 2019, tentei me adaptar às anotações no
caderninho enquanto estava no cursinho. Anotava trechos de diálogos e situações para, no dia
seguinte, poder fazer uma descrição mais densa. Esse método não deu certo. O cursinho é um
lugar de trânsitos intensos, várias pessoas entram e saem e eu estava sempre conversando com
alguém. Mesmo nos momentos em que estava sozinha, refletia sobre qual imagem eu queria
transmitir para as pessoas com as quais eu estava trabalhando e construindo relações.
Cheguei à conclusão de que, ficar sentada reclusa em um canto escrevendo em um bloco
de anotações não era nem um pouco atraente, além de transmitir uma mensagem de soberba e

10
Escrevi essa parte em março de 2021.
25

distanciamento. Um corpo em movimento é diferente de um corpo firme e imóvel. O jeito de


se movimentar expressa diferentes códigos. A vestimenta daquele corpo também fala. Por isso,
a imagem de um corpo imerso em sua escrita e distante, em um lugar com constante trânsito e
diversas pessoas, transmite essa mensagem que avalio como próximo à soberba, enquanto um
corpo com olhos atentos ao/s outro/s, um corpo que sorri para esse/a outro/a e conversa, tem
mais facilidade de se inserir no espaço e ser aceito.
Nascimento (2019) também problematiza a questão dos sentidos e efeitos do corpo no
fazer etnográfico, especificamente o corpo da antropóloga, partindo de uma perspectiva
feminista. Tecendo o diálogo com a categoria mestiza de Gloria Anzaldúa, Nascimento (2019,
p. 465) enfatiza a necessidade de tornar o corpo visível no processo da experiência de campo e
propõe uma “etnografia mestiza”: apropriar-se do lugar da ambiguidade e da fronteira como
condição intelectual.
Isto posto, para mim, ser simpática, conversadeira e estar atenta às pessoas à minha volta
não foi nenhuma dificuldade, porque é o meu estado natural em qualquer ambiente onde eu
goste de estar, queira estar e me sinta confortável. Porém, é válido ressaltar que quando larguei
a ideia das anotações durante o campo isso dificultou um pouco a produção dos diários. No dia
seguinte, eu só podia contar com minha memória – que em alguns momentos estava
comprometida devido às idas ao bar com a equipe ao final do trabalho no cursinho. Em especial,
ela era insuficiente em alguns aspectos como lembrar com exatidão os diálogos e mesmo
algumas situações que eu deixei passar.
Mesmo assim, aos domingos (ou segundas) estava construindo o diário. Na maioria das
vezes, os fiz digitalizados, em outras vezes gravei vídeos relatando tudo que havia acontecido
no cursinho. Infelizmente, esses vídeos foram perdidos quando meu computador antigo morreu,
mas como eram poucos, não chegou a comprometer a escrita da dissertação. Em 2020, fiz muito
uso do WhatsApp para entrevistar algumas pessoas que atuaram e atuam no cursinho; com Will
conduzi uma entrevista presencial.
Ao refletir sobre o lugar de “fronteira”, Nascimento (2019, p. 469) levanta a ideia de
um trabalho artesanal que se assume enquanto incompleto, parcial e fronteiriço. É justamente
esse o posicionamento que busco assumir nesta pesquisa. Na incompletude de uma etnografia
que está em constante fazer, busquei atuar com meu corpo em campo de modo a fazer dele tanto
uma ferramenta de imersão, como também dialogar com os riscos, desencontros e
vulnerabilidades (NASCIMENTO, 2019) convenientes à formulação teórico-etnográfica
(PEIRANO, 2014).
O diálogo com as pessoas sobre meu ofício como pesquisadora ocorreu de forma natural
26

e logo que comecei minha atuação em 2019 conversei com professores/as, coordenação e alguns
alunos/as sobre minha pesquisa. Existe uma literatura expressiva sobre os cursinhos da Rede
Emancipa – MENDES, 2011; ROPAÍN, 2019; TANGERINO, 2018; SANTOS, 2017; etc. –
então não foi uma surpresa ter uma pesquisadora atuante. Conquanto, acredito que, assim como
eu sempre me enxerguei mais como professora do que como pesquisadora, as pessoas no
cursinho também me enxergavam dessa forma.
Um outro momento do trabalho de campo também envolveu imersão na literatura sobre
ele. Desde 2019, faço levantamentos de trabalhos que envolvam os cursinhos da Rede
Emancipa. A maioria são dissertações, artigos submetidos em eventos científicos e algumas
teses, todos que encontrei são da área da educação. A leitura dessas produções, levou-me a
conhecer mais a fundo meu campo, ampliou meus olhares e reflexões.
Por último, uma questão mais recente que surgiu na fase final de escrita da dissertação,
foi sobre colocar ou não pseudônimos nas pessoas. Discuti sobre isso na minha banca de
qualificação, com meu orientador e com algumas interlocutoras. Algumas delas afirmaram
preferir que eu utilizasse o nome real, mas fiquei com receio de alguma exposição indevida. Foi
só quando dialoguei sobre isso com uma amiga e interlocutora da pesquisa, Rogéria, que percebi
o quanto não fazia sentido os pseudônimos nesse contexto em que todas as pessoas já são
públicas.
Há redes sociais do cursinho com nomes, fotografias, rostos, além dos documentos
oficiais no qual constam os nomes da equipe vinculados à Rede Emancipa. Somado a isso, há
também muitas figuras públicas, como a própria coordenadora Tati. Então, decidi por deixar os
nomes reais, até porque acredito que são pessoas que precisam ser conhecidas e ouvidas.
Destaco apenas o caso do pseudônimo Tomaz (que será apresentado no terceiro capítulo),
utilizado para um professor que, durante uma entrevista, não quis ter seu verdadeiro nome
publicizado.
A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, priorizo um debate teórico
acerca do contexto social no qual os cursinhos populares nascem e se expandem pelo Brasil,
quais objetivos, motivações e atores por trás dessas formas de atuação e como a Rede Emancipa
com o cursinho Marielle Franco se localizam nessa conjuntura. Ademais, apresento um debate
histórico-conceitual sobre as categorias “educação popular” e “movimento social”, além de
algumas expressões e usos delas dentro da militância.
No segundo capítulo, começo a abordagem teórico-etnográfica apresentando o cursinho
Marielle Franco e sua composição, tal qual: as pessoas atuantes, os espaços, educativos e de
27

socialização, as práticas educativas. Neste capítulo, que é o mais extenso devido à dimensão do
cursinho, faço um recorte temporal do ano de 2019 e espacial limitando-me à UERN, a critério
de recorte analítico, pois, com um campo dessas proporções, seria inviável analisar tudo. Trago,
juntamente, uma discussão conceitual sobre as categorias “favela” e “periferia” por
compreender esses territórios como imprescindíveis à disputa política do Emancipa.
No terceiro e último capítulo, trago um debate sobre o “perfil Emancipa” e os
cruzamentos com os debates gestados na militância antirracista e feminista. Além de discutir
sobre a relação entre o movimento social e a militância partidária que, ao longo de 2020, foi
materializada na candidatura à vereadora de Tati Ribeiro em Natal, e analiso as interlocuções
entre o cursinho e o partido.
28

2 “QUE A UNIVERSIDADE SE PINTE DE POVO”11: A LUTA PELA EDUCAÇÃO


SUPERIOR PÚBLICA COMO UM DIREITO SOCIAL

Neste capítulo, pretendo explanar em qual contexto social os cursinhos populares se


situam no Brasil e como os cursinhos da Rede Emancipa se localizam nesse debate. Busco fazer
um diálogo com as categorias “educação popular” e “movimento social” para compreender, ao
longo da dissertação, como o cursinho se apropria delas em seu repertório político, além de
apresentar algumas expressões e usos da educação popular por movimentos sociais que
convergem em termos de propostas político-pedagógicas com o Cursinho Marielle e a Rede
Emancipa.

2.1 Debates e transformações no acesso ao Ensino Superior no Brasil

De início, é necessário compreender que o ingresso nas universidades brasileiras


(públicas e algumas privadas) dá-se por meio de processos seletivos, ou seja, exames de seleção
nos quais candidatos/as fazem uma prova cujo objetivo oficial é testar o nível de aprendizagem
da educação básica e o domínio de habilidades requisitadas ao curso almejado. Porém, na
prática, os exames servem para filtrar o excesso da demanda pelas universidades, dada a
desproporcionalidade entre a grande demanda e a reduzida oferta de vagas.
No Brasil, apesar do ensino superior público ser amplamente reconhecido pela
excelência, há um processo, encabeçado por governos neoliberais e elites, em torno da
privatização da Educação Superior através do sucateamento das universidades públicas e da
expansão do Ensino Superior privado (com faculdades e universidades12).
De acordo com o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2020, lançado pelo Instituto
Semesp e publicado no site Agência Brasil13, que revela o perfil de estudantes das instituições
de ensino superior brasileiras, a maior parte dos/as alunos/as provém de escolas públicas. No

11
Frase atribuída a Ernesto Che Guevara, líder revolucionário latino-americano, que se tornou um jargão no
Movimento Estudantil. Disponível em: https://psol50sp.org.br/2009/10/pintando-a-universidade-com-as-cores-
do-povo-uma-homenagem-a-che/. Acesso em: 11 ago, 2021.
12
O Ministério da Educação (MEC) diferencia as instituições de educação superior em faculdades, centros
universitários e universidades. As universidades se caracterizam pela indissociabilidade das atividades de ensino,
pesquisa e extensão e são pluridisciplinares. Os centros universitários, assim como as universidades, caracterizam-
se pela pluridisciplinaridade, porém são menores e não tem a mesma exigência de programas de pós-graduação.
As faculdades têm seus cursos focados em um determinado ramo de ensino e conhecimento, tem menos cursos e
uma infraestrutura mais compacta.
13
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/mapa-do-ensino-superior-aponta-
para-maioria-feminina-e-branca. Acesso em: 11 ago, 2021.
29

caso do ensino superior privado, 68,5% cursaram o ensino médio em escolas públicas e 31,5%
no privado. Já em relação ao ensino superior público, 60,1% vieram do ensino médio público e
39,9% do privado.
Esse perfil também pode ser visto na V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e
Cultural dos(as) Graduandos(as) das IFES, realizado pelo FONAPRACE14, vinculado à
ANDIFES15, durante o ano de 2018 e publicado em 2019. Esta pesquisa aponta que 64,7% de
graduandos/as das instituições de ensino superior federais são provenientes do ensino médio
público, enquanto 35,3% são do privado16. Esse quadro pode ser compreendido a partir das
transformações no acesso ao ensino superior e da implantação da política de expansão dos
Institutos Federais no Brasil entre 2004 e 2016.
Os Institutos Federais são instituições da rede federal de educação profissional e
tecnológica (EPT) que, durante o governo Lula, teve quadruplicado o número de unidades em
funcionamento, devido às políticas de redução das iniquidades sociais e territoriais, educação
alinhada às necessidade locais (de cada município) e estímulo à permanência de profissionais
qualificados/as no interior do país (FAVERI; PETTERINI; BARBOSA, 2018).
De acordo com Faveri, Petterini, Barbosa (2018, p. 136), há indicativos de que durante
os anos de implantação dos campi de IFs houve uma elevação de até 5% na escolaridade média
dos municípios (FAVERI; PETTERINI; BARBOSA, p. 139), além do crescimento da renda
per capita, do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do emprego formal e do emprego
público nos municípios.
É necessário também destacar a expansão das Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES) nesse contexto, como mostra a pesquisa do ANDIFES/FONAPRACE (2019). Com a
ampliação do número de IFES, interiorização dos campi, maior mobilidade territorial via
ENEM e a reserva de vagas por meio de cotas para estudantes oriundos de escolas públicas

14
FONAPRACE é o Fórum Nacional de Pró-reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis foi criado em 1987
e tem como objetivos: formular políticas e diretrizes básicas que permitam ações na área de assuntos comunitários
e estudantis a nível regional e nacional; assessorar a Andifes; defender a educação pública; promover e apoiar
pesquisas, estudos, congressos, conferências, seminários e eventos afins.
15
ANDIFES é a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior foi criada em
1989 e é a representante oficial das universidades federais na interlocução com o governo federal.
16
É importante destacar que não há dados em relação ao percentual de ocupação dos/as estudantes por cursos e
que o perfil socioeconômico de alunos/as difere nesse aspecto. Por exemplo, o curso de Ciências Sociais tem um
perfil de estudantes totalmente diferente de Engenharia Civil, assim como em Pedagogia é diferente de Medicina
(isso em termos de condições socioeconômicas, gênero, raça e faixa etária). Dentro de um mesmo curso, a própria
mudança de turno pode afetar esse perfil, estudantes que precisam conciliar o trabalho/emprego com a graduação,
geralmente optam pelo noturno. Estudantes populares tendem a ingressar em cursos de menor concorrência e tais
cursos são, primordialmente, da área de Humanas e Licenciaturas. Enquanto nos cursos de maior concorrência e
maior prestígio social (como Medicina, Direito, Engenharia Civil), não há tanta capilaridade para estudantes
populares. Como se pode ver, são muitas variáveis dentro dessas porcentagens.
30

(ANDIFES/FONAPRACE, p. 10), desenha-se um quadro com fortes mudanças no acesso às


universidades públicas, embora as desigualdades educacionais não tenham deixado de existir.
Esse quadro, como vimos, sofreu mudanças significativas e positivas com a
implementação das políticas de ação afirmativa e a adoção do Enem como exame nacional de
seleção para todas as universidades. Porém, vale lembrar que nem sempre o Enem foi a principal
modalidade de acesso ao ensino superior, pois, durante muito tempo, cada universidade pública
realizava seus próprios exames de admissão de acordo com seus próprios editais e currículos.
Utilizando como exemplo a realidade da cidade de Natal até meados de 2011, o acesso à UFRN
e à UERN só era possível a partir dos vestibulares convencionais, realizados pela Comissão
Permanente de Processos Seletivos (Comperve). Nessa época, cada universidade brasileira
possuía seus próprios exames de seleção. Meu primeiro vestibular foi em 2011, quando busquei
uma vaga no curso de Direito da UFRN.
Em relação às formas de operacionalização desse exame, diferente do Enem no qual se
escolhe o curso a partir de sua nota, no vestibular convencional escolhia-se os cursos (primeira
e segunda opção) no ato da inscrição, e disputar-se-ia uma vaga no curso preenchido como
primeira opção. Eram três dias de prova, todas as disciplinas tinham 12 questões objetivas: no
primeiro dia eram as Ciências Exatas e Língua Estrangeira (espanhol, francês ou inglês), no
segundo dia as Ciências Humanas, Linguagens (português e literatura) e a redação, no terceiro
dia eram as provas discursivas referentes à área escolhida. Por exemplo, no meu caso, que optei
por Direito, curso enquadrado na área Humanística II, fiz as provas de história, geografia e
língua estrangeira (inglês).
O panorama apresentado sobre as antigas provas da Comperve foi para chamar atenção
ao caráter ainda mais excludente desses exames. O modelo conteudista17 das questões, diferente
do Enem que busca uma maior reflexividade e diálogo entre as disciplinas, a complexidade das
provas discursivas, além da necessidade de escolha de um curso a priori, tornava ainda mais
difícil para estudantes oriundos de escolas públicas e de classes populares o ingresso nas
universidades. Longe de querer argumentar em favor do modelo de seleção do Enem, que
também é segregador e continua vedando à população de baixa renda o acesso aos cursos de
maior concorrência, é necessário, no entanto, pontuar a realidade ainda mais elitista dos
vestibulares convencionais e como isso foi um argumento forte para a adoção do Enem como
exame nacional de admissão.
Barros (2014) desenvolve a ideia de “ditadura do vestibular” para argumentar como o

17
Modelo de ensino que consiste na memorização dos conteúdos para solucionar problemas propostos em
detrimento à reflexividade das questões (QUINALIA et al., 2013).
31

sistema socioeconômico capitalista constrói uma “ideologia da mobilidade social” na qual é


necessário conseguir o máximo de escolaridade para ser bem-sucedido em uma meritocracia.
Isso cria um regime disciplinar nas instituições escolares da Educação Básica, especificamente
a partir do 6º ano do ensino fundamental, moldado com o intuito de servir como subsídio para
o vestibular. Ou seja, essa forma de ingresso na Educação Superior dita o foco dos currículos
dos ensinos fundamental e médio (BARROS, 2014, p. 10).
Importante mencionar que os chamados “cursinhos” oferecidos inicialmente por redes
de ensino privada18 surgem como um lucrativo negócio no sentido de acirrar a competição entre
os/as estudantes por uma vaga nas universidades públicas. Dessa forma, a qualidade das escolas
privadas começa a ser medida pelo número de estudantes aprovados/as no vestibular,
especialmente para os cursos mais concorridos. Assim, como se não bastasse uma grade
curricular na educação básica voltada a um exame de seleção excludente, ainda surge o
fenômeno de cursinhos privados cuja principal marca é um alto número de aprovação.
Desde a sua criação, o sistema de seleção à Educação Superior no Brasil converteu-
se em um problema complexo, impregnado por barreiras às vezes ocultas, mas
bastante eficientes. Conforme expôs Cunha (1982), na medida em que se elevou o
quantitativo de candidatos aos cursos superiores, por meio desse mecanismo de
seleção ora se procurou expandir, ora se procurou conter a demanda. Desse modo, tal
como um pêndulo, ele se deslocou da posição de abertura para a de fechamento,
atendendo às necessidades políticas e econômicas de diferentes momentos históricos.
(BARROS, 2014, p. 11)

Nesse sentido, ao final da década de 90, começou a acontecer o processo de


“alargamento do acesso à universidade” com o investimento em políticas públicas ligadas à
expansão de vagas para as instituições de Ensino Superior (BARROS, 2014, p. 15). Neste
ínterim, ocorre a criação do Enem em 1998 com a intenção inicial de avaliar anualmente o
conjunto de conhecimentos e habilidades dos/as estudantes recém-saídos do Ensino Médio que
serviria para a criação de políticas pontuais no intuito de melhoria da educação básica brasileira
(QUINALIA et al., 2013). Essas avaliações iriam ocorrer com uma prova, contendo questões
objetivas e redação, a qual observaria as competências e habilidades associadas aos conteúdos
do ensino básico com uma metodologia interdisciplinar – além da aplicação, no ato de inscrição
na prova, de um questionário socioeconômico (2013).
De início, a prova do Enem tinha caráter facultativo, até que em meados de 2009 o
Exame sofreu uma mudança de paradigma e passou a ser chamado de “Novo Enem”. Pela

18
É importante destacar que falo a partir de um recorte de classe específico, pois, ao trazer os cursinhos privados,
refiro-me àqueles que se consolidaram como grandes redes voltadas às classes média e alta. Contudo, é necessário
não enrijecer o pensamento nessa dicotomia (popular x privado) e compreender que o privado precarizado existe
e também é de acesso das camadas populares.
32

proposta de reformulação do Ministério da Educação (MEC), a avaliação passa também a ser


utilizado como “uma forma de seleção unificada nos processos seletivos das universidades
públicas federais” (QUINALIA et al., 2013, p. 70). O objetivo era democratizar o acesso às
universidades públicas e promover maior mobilidade acadêmica dos/as estudantes por todas as
regiões do país. Além disso, há o fator da democratização econômica, pois concentrar o
processo de admissão nas universidades em apenas um, evita gastos dispendiosos com o
pagamento da taxa de inscrição de diferentes exames.
Em 2010, com a criação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), ferramenta online que
cruza dados das vagas nas instituições públicas com a nota dos/as estudantes, e pela qual se faz
as inscrições e pleiteia-se vagas (BARROS, 2014), o MEC transforma o Enem em um
“vestibular nacional” para substituir os vestibulares convencionais. Aos poucos, as
universidades vão aderindo ao Enem como único método de seleção. A UFRN, por exemplo,
só abandona de vez o vestibular da Comperve em 2013. Até lá, inclusive em 2011, a UFRN
utilizou os dois exames com metade das vagas de cada curso para cada um.
É importante salientar que embora a proposta de adoção nacional do Enem fosse a
democratização do acesso ao Ensino Superior, isso ainda está longe de se tornar uma realidade,
como sugere Barros (2014) no excerto abaixo:
Para a especialista em Políticas Públicas de Educação, “se os vestibulares unificados
anteriores eram excludentes, utilizar o Enem não quebra essa lógica” (p. 1). Em
concordância, a pedagoga Sandra Zákia Sousa, da Universidade Cidade de São Paulo
[UNICID] e colaboradora da USP, “o Enem dificilmente terá potencial de alterar as
chances de ingresso dos menos favorecidos ao ensino superior. Portanto, não é por
meio dele que se produzirá maior justiça” (MANIR, 2009, p. 1). (BARROS, 2014, p.
26)

Outro ponto importante para se destacar são as tentativas de expansão da rede privada
de Ensino Superior no Brasil com a suposta ideia de democratização da educação. Um exemplo
disso foi a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), em 2004, que proporciona
bolsas de estudo, integrais ou parciais, para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio
completo na rede pública ou em condição de bolsista integral na rede privada, utilizando como
critério de seleção as notas do Enem. Parece tentador acreditar que esse programa diminui as
desigualdades educacionais do país e amplia as oportunidades de acesso, mas a realidade é que
ele serve como um instrumento para o fortalecimento da iniciativa privada, fazendo com que as
classes populares continuem de fora das universidades públicas.
Segundo Mendes (2012, p. 5):
Se por um lado este programa [Prouni] permitiu o acesso de um grande contingente
de jovens, antes alijados do ensino superior pelas mensalidades impagáveis do setor
privado, bem como pela alta seletividade e concorrência dos vestibulares públicos,
não podemos deixar de mencionar que consolidou uma dinâmica de segmentação do
33

ensino superior, reservando instituições [privadas] sem compromisso com a pesquisa


científica e com menor quantidade de professores titulados para os setores mais pobres
da população. (MENDES, 2012, p. 5)

Com isso, o quadro continua sendo segregador e não democrático: a população


vulnerável socioeconomicamente é relegada ao ensino de qualidade “inferior” das Instituições
de Ensino Superior (IES) privadas. Em direção oposta, a população mais favorecida, e com as
melhores oportunidades educacionais, continua tendo melhor oportunidade de acessar o ensino
e a pesquisa de excelência das IES públicas nos cursos de maior prestígio social e que tem maior
empregabilidade no mercado de trabalho.
Em relação às políticas de ação afirmativa, no Brasil, a Lei das Cotas foi promulgada
em agosto de 2012 como medida legal e obrigatória que determina para todas as Universidades,
Institutos e Centros federais a reserva de 50% de vagas para estudantes da rede pública, dentro
dessas vagas há o percentual para estudantes pretos/as, pardos/as e indígenas (GUARNIERI;
SILVA, 2017). A Lei também determinou um prazo de até quatro anos para as instituições
adequarem-se e aderirem às cotas como modalidade de ingresso.
É importante destacar que, mesmo antes de se tornar lei federal, algumas universidades
adotaram as cotas, a exemplo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com o
Programa de Cotas de 2003. Em 2006, chegou-se a ter 43 universidades com adesão; já em
2010, eram 83 instituições de ensino superior com Cotas (GUARNIERI; SILVA, 2017).
O ano de 2001 foi um marco inicial em função de um importante evento em Durban
que manchou internacionalmente a “boa reputação” da nação brasileira (...) Trata-se
da III Conferência contra Xenofobia e Discriminação sediada em Durban na África
do Sul. Esse evento contou com a participação de representantes do movimento negro
brasileiro que denunciaram ao mundo os efeitos perniciosos do “racismo à brasileira”,
que apesar de aparentemente silenciosos estariam bastante vivos nos discursos
naturalizados os quais sustentariam a condição de marginalidade e desigualdade entre
brancos e negros. (GUARNIERI; SILVA, 2017, p. 184)

Após a Conferência de Durban, as ações afirmativas como política reparatória e de


combate ao racismo adquirem relevância no âmbito institucional da política brasileira. Contudo,
a discussão sobre essas ações que visam diminuir as desigualdades educacionais para as
populações negra e indígena foi – e continua sendo – uma pauta de luta alavancada pela
sociedade civil organizada, e não dos governos brasileiros. A adoção das cotas pelas
universidades e posteriormente como lei federal só foi possível devido ao engajamento e
pressão dos movimentos sociais. É também no interior desses movimentos que, como afirma
Mendes (2012), décadas antes começaram a surgir os Cursinhos Pré-vestibulares Popular.
O aumento de concluintes do ensino médio ocorrido a partir dos anos 1990 trouxe
consigo uma expansão da demanda por ensino superior (...) A alta concorrência do
vestibular, aliada à desvantagem frente aos estudantes de escolas particulares (que
orientam o currículo especificamente com a finalidade de aprovação neste exame),
34

são fatores que contribuíram para que em diversas localidades brasileiras fossem
organizados cursinhos a baixo ou nenhum custo, voltado para estudantes de escolas
públicas. Assim nascem os cursinhos populares, comunitários ou alternativos.
(MENDES, 2012, p. 2)

Os cursinhos pré-vestibulares populares (PVP), também chamados comunitários,


surgem diante dessa problemática de expansão da educação superior e a desigualdade no acesso.
Zago (2008) discute que essas iniciativas, desde os anos 90, visavam protestar contra essa
realidade, produzir ações de combate às desigualdades na educação e tinham como principal
objetivo a democratização do ensino.
De acordo com um levantamento de dados de 2001, presente em Zago (2008), estima-
se que havia 800 núcleos de cursinhos populares pelo Brasil, com maior incidência na região
sudeste. A autora também aponta algumas características importantes dos PVPs que, apesar de
variarem nas formas de organização, mantêm alguns princípios basilares. São eles: atendimento
ao público de estudantes oriundos de escolas públicas e em vulnerabilidade socioeconômica;
em sua maioria são gratuitos ou possuem uma taxa de de 5% a 10% do salário mínimo para
despesas básicas; possuem propostas pedagógicas que privilegiam a formação de consciência
crítica e cidadã, além da grade curricular exigida pelas provas do vestibular19; trabalho
voluntário do corpo docente e administrativo, como as coordenações; e a maioria dos cursinhos
não tem uma sede própria, funcionando em locais diversificados como escolas, universidades,
instituições religiosas, associações comunitárias etc. (ZAGO, 2008, p. 152).
Zago (2008) também destaca que os principais atores responsáveis pelas experiências
dos PVPs foram a igreja católica, o movimento estudantil, o movimento sindical, o movimento
comunitário e o movimento negro. No caso do movimento sindical e comunitário, destaca-se
as iniciativas de educação popular por meio dos cursinhos pré-vestibulares como tendo, dentre
seus objetivos, a preparação e renovação de dirigentes e de formas de ação (ZAGO, 2008, p.
153). Isso se assemelha, em partes, ao que é possível encontrar nos cursinhos da Rede
Emancipa, no sentido de aliar as práticas educativas à formação militante.
Um outro ponto interessante diz respeito ao protagonismo do movimento negro e da
igreja católica através da Pastoral do Negro. A também chamada Pastoral Afro-Brasileira da
Igreja Católica surge pelas lutas desenvolvidas nas comunidades eclesiais de base, espalhando-
se nas décadas de 70 e 80 por todo o país. Os pré-vestibulares originários tanto da Pastoral
quanto do movimento negro voltam-se para a população negra e de baixa renda (ZAGO, 2008).
De acordo com Zago (2008), o movimento de pré-vestibulares “étnico” surge com o

19
Essa característica é tomada pela autora como um elemento diferenciador entre um “cursinho popular” e um
“cursinho gratuito”.
35

nome de Pré-vestibular para Negros, a partir da reflexão de entidades negras.


Um exemplo é o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC), do Rio de Janeiro.
Seus primeiros núcleos surgiram na baixada fluminense em 1993. O primeiro deles
foi concebido e organizado por um grupo de educadores oriundos da pastoral do negro
da igreja católica. (ZAGO, 2008, p. 153)

A autora também destaca que há diversas vertentes dentro do PVNC, destacando as


religiosas e a político-partidária, e que essas duas produziram tensões que levaram a
rompimentos, dando origem, por exemplo, ao Pré-vestibular Comunitário da Rocinha, cujas
mudanças na postura político-pedagógica buscou adotar perspectivas além das questões raciais
(ZAGO, 2008).
Há um trabalho muito interessante de Paulo (2005) sobre os PVNC do Rio de Janeiro
(RJ). Algumas características desse movimento são a divisão de vários núcleos organizados a
partir de uma Carta de Princípios em comum, elaborada pelos/as participantes em 1998. Há
ainda uma segunda versão da carta de 18 de abril de 1999 (PAULO, 2005). No terceiro capítulo
exploro um pouco mais o PVNC e, principalmente, suas convergências com o Marielle. Nesse
momento, acho válido compreender o protagonismo do movimento negro que, além de ter como
objetivo incentivar estudantes pretos e pardos a ingressarem no ensino superior, também
buscava formar lideranças políticas (PAULO, 2005). O PVNC também teve um importante
convênio com a PUC-Rio desde 199720, conquistando bolsas de estudo integrais para seus/as
estudantes, além do vínculo com Organizações Não Governamentais (ONGs) como a
Educafro21, por exemplo, que se originou a partir das experiências de PVNCs.
Esse foi um breve panorama do surgimento dos pré-vestibulares populares, com isso,
foi possível perceber a pluralidade de iniciativas e de atores envolvidos. Nesse contexto, a Rede
Emancipa encaixa-se como uma das iniciativas desse campo, havendo uma enorme
multiplicidade de cursinhos, cada um com suas dinâmicas que variam a depender da conjuntura
municipal, estadual, das dinâmicas urbanas e das pessoas atuantes. A seguir, trago um resgate
do percurso da Rede Emancipa desde seu nascimento, realizado a partir de pesquisa
bibliográfica.

2.1.1 Rede Emancipa

20
De acordo com a autora, o convênio ainda durava à época de sua pesquisa.
21
De acordo com o texto de apresentação “Quem somos”, presente no site Educafro, trata-se de “uma ONG com
o objetivo de reunir pessoas voluntárias, solidárias e beneficiárias pela inclusão de negros/as empobrecidos/as nas
universidades públicas, além de ter como orientação político-pedagógica uma formação cidadã e acadêmica nos
cursinhos comunitários, apresentar propostas de políticas públicas e ações afirmativas aos poderes executivo,
legislativo e judiciário, transformação social e organização de grupos populares”. Disponível em:
https://www.educafro.org.br/site/quem-somos/. Acesso em: 11 ago, 2021.
36

Como mencionei na introdução, a Rede Emancipa é um movimento social de educação


popular que, atualmente, conta com 67 cursinhos espalhados por diversos estados do país,
porém, com uma demasiada concentração na região Sudeste, especificamente em São Paulo,
cidade de sua origem. Os antecedentes da Rede Emancipa remontam ao “Cursinho da Poli”,
organizado a partir da Universidade de São Paulo (USP). Conforme Tangerino (2018), em 1987
esse Cursinho começa a funcionar no prédio da Escola Politécnica daquela universidade, sob a
gestão do Grêmio Politécnico e da Escola Politécnica até 1992. Em Tangerino (2018), há um
trecho de uma entrevista com um professor22 que foi presidente do Grêmio Politécnico em 1996,
ano em que o cursinho saiu das dependências da USP, na qual ele conta um pouco de como foi
essa mudança e os embates políticos que provocou. Abaixo irei reproduzir uma parte desta
entrevista:
Em 1987 surge o Cursinho da Poli, pequeno, dentro da própria USP, usando os
espaços da USP. Ficamos lá até 1996 [...] Tinha uma linha muito forte de política de
extensão universitária, uma responsabilidade para além de só “formar engenheiro para
ser rico na vida” [...] Com a saída da USP e a negativa de cursinhos comerciais em
nos fornecer material, tivemos a urgência de criar nosso próprio material pedagógico
[...] Um grupo de professores de renome supervisionou esse material didático, o
Polisaber [...] Somos o maior CP do Brasil. Mantido hoje por um instituto e uma
Fundação (Polisaber), somos hoje uma ONG. 90% dos nossos alunos são egressos de
escola pública. Nossa mensalidade mais barata está na faixa de R$ 300 por mês, a
mensalidade mais barata de cursinho em São Paulo. Contamos com um departamento
de serviço social e mediante critério socioeconômico concedemos bolsas e descontos.
(TANGERINO, 2018, p. 34)

Com isso, o Poli tornou-se então um dos maiores cursinhos populares de São Paulo – o
que, como vimos a partir da referência a mensalidade na citação acima, pareceu se distanciar
com o passar dos anos. Tangerino (2018) inicia um debate sobre como esse processo de
mudanças e transformação em uma ONG, repercutiu para uma apropriação privada do projeto
social, como pode ser averiguado no trecho abaixo:
O Cursinho da Poli sempre se destacou pelo seu caráter não mercantil. No entanto, a
partir de 1997 ele sofreu mudanças substanciais em sua estrutura que desembocaram
na apropriação privada de seu projeto social [...] Essa captura englobou a credibilidade
social que o CP havia conquistado, bem como o uso do prestígio da maior
universidade do país – a USP. (TANGERINO, 2018, p. 34)

O Grêmio da Poli-USP reage a isso iniciando uma tentativa de retomada do Cursinho a


partir do movimento estudantil. Nesse processo, destaca-se o geógrafo Maurício Costa, um dos
fundadores da Rede Emancipa. No excerto de sua entrevista à Tangerino (2018), ele afirma que
após a tentativa de retomada do Cursinho Poli por alguns professores/as, que acarretou a

22
Chamado Gilberto Alvarez Giusepone Júnior.
37

demissão de alguns, surgiram dois novos projetos: o Cursinho do Grêmio da Poli-Usp, na


tentativa de retomar o projeto original, e a Rede Emancipa (TANGERINO, 2018, p. 36). Sobre
o percurso histórico da Rede Emancipa, Ropaín (2019) fala:
A Rede Emancipa nasceu como um movimento social de cursinhos populares no ano
de 2007. O primeiro cursinho nasceu em Itapevi, na Grande São Paulo, a partir da
mobilização de um grupo de jovens, estudantes universitários e professores,
principalmente de instituições públicas ou estudantes bolsistas de universidades
privadas, preocupados com os projetos de vida dos adolescentes nas periferias, a
situação da educação pública e a democratização das universidades públicas [...] O
primeiro cursinho, sob o nome do ambientalista Chico Mendes, começou as aulas em
2008. Desde então, a Rede cresceu em número de educadores, educandos e iniciativas.
Em 2009 inaugurou um cursinho popular em Porto Alegre (RS), porém o primeiro
processo de ampliação aconteceu em 2010, com a fundação de várias unidades em
São Paulo. Já o ano 2011 marcou a expansão do Emancipa para outros estados além
de São Paulo, pois foi inaugurado outro cursinho em Porto Alegre (RS) e a primeira
unidade em Belém (PA), nos anos seguintes no estado do Pará foram criados vários
cursinhos populares. (ROPAÍN, 2019, p. 59)

Um dos desafios para a Rede, ainda de acordo com Ropaín (2019, p. 68), são o
financiamento, os recursos e os sustentos das ações. Isso porque uma das principais consignas
do movimento é a autogestão e autonomia a fim de evitar a burocratização e a cooptação para
outros fins que desvirtuem a Rede e seus cursinhos do compromisso com a educação popular e
com a população vulnerabilizada. Sobre essa questão, Ropaín (2019) coloca:
Para o trabalho da tese de doutorado de Cloves Castro (2011) que indaga sobre o
movimento socioespacial de cursinhos populares desde uma perspectiva geográfica,
o pesquisador entrevista Maurício Costa, uma das lideranças da Rede Emancipa, e
pergunta sobre o sustento das ações do movimento. A resposta de Maurício Costa
(2010) seria crucial para entender o aspecto de financiamento da Rede. Ele respondeu
que para sustentar as ações “a gente ‘se vira’ já que nosso objetivo não é o capital, não
é o lucro” (p. 296). Assim, se poderia sublinhar o caráter precário que atravessa a luta
popular atualmente, que tenta confrontar a lógica comercial ou de mercado apesar da
escassez de recursos materiais. (ROPAÍN, 2019, p. 69)

Embora acredite que afirmações como essa do “caráter precário que atravessa a luta
popular” precisam ser mais bem analisadas e dissecadas, é interessante perceber a narrativa
oficial das lideranças em relação ao caráter “autônomo do financiamento da Rede e seus
cursinhos”, visto que esse mesmo discurso também é reproduzido por coordenadores/as do
Cursinho Marielle que entrevistei. Porém, a questão do financiamento é alvo de algumas
controvérsias e críticas.
Em uma matéria de 2017 do jornal eletrônico Esquerda Diário23, vinculado ao partido
de esquerda Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT), há uma crítica à Rede

23
Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Luciana-Genro-e-Emancipa-Juntos-com-a-Odebrecht-E-
assim-o-combate-ao-capitalismo. Acesso em: 11 ago, 2021.
38

Emancipa por ter recebido financiamento do conglomerado empresarial Odebrecht24. A matéria


foi divulgada no contexto de acusações feitas à Luciana Genro – deputada estadual, fundadora
do PSOL e da ONG Emancipa no Rio Grande do Sul (RS) – referentes ao recebimento de “caixa
dois25” da Odebrecht. Na mesma matéria, há um vídeo no qual Luciana Genro se defende das
acusações, explicando sobre a troca de e-mails com o executivo Alexandrino Alencar26,
alegando que sua parceria com a Odebrecht se deu porque a mesma foi responsável por
financiar, em 2013, a ONG Emancipa.
O principal ponto a se atentar na matéria do Esquerda Diário é a crítica às relações de
Luciana com a Odebrecht e aceitação de um financiamento sem levar em conta que um
conglomerado empresarial como a Odebrecht não aceitaria financiar um projeto social como o
Emancipa sem interesses políticos, ainda mais mediante à conjuntura sociopolítica que o país
atravessava naquele momento, ano das manifestações de Junho de 201327.
Alguns outros pontos, referentes ao vídeo de Luciana Genro, que achei interessantes foi
o próprio fato de no RS o Emancipa ter a configuração de uma ONG e os/as professores/as
atuantes receberem salários. Luciana não especificou o valor pago ao corpo docente, mas
alegou, inclusive, que aceitou o financiamento para conseguir fazer os pagamentos. No trecho
8’20” do vídeo, Luciana comenta sobre uma troca de e-mails datada no dia 14 de novembro de
2013:
Luciana Genro: “Em 2013, a Odebrecht contribuiu, isso está lá no site do Emancipa,
a Odebrecht repassou recursos para contribuir com o pagamento dos professores que
atuavam no Emancipa [...] Então, eu me dirigi ao Alexandrino nos seguintes termos
[começa a leitura de um papel no qual estaria digitalizado os e-mails]: ‘Alexandrino,
tudo bem? Te escrevo para saber como andam as coisas, se podemos ter alguma
expectativa na continuidade da nossa parceria, mesmo com valores reduzidos, ainda
não temos os resultados do Enem, entretanto, estamos nos preparando para o ano
que vem e se não tivermos uma perspectiva terei que demitir os professores em
dezembro, pois nossos recursos terminam em janeiro e não podemos ficar com
dívidas’.”

24
É válido lembrar a delação da Odebrecht na operação Lava Jato, a mesma que foi um pilar fundamental para o
golpe de 2016 contra a ex-presidente Dilma Rousseff, e que o MES/PSOL (corrente política de Luciana Genro) e
a própria Luciana, à época, foram apoiadores da Lava Jato (inclusive, isso foi reafirmado por ela no vídeo da
matéria).
25
A expressão “caixa dois” se refere a recursos financeiros não contabilizados e não declarados aos órgãos de
fiscalização competentes ao Poder Executivo.
26
Ex-diretor de relações institucionais da Odebrecht, apontado como figura central nas negociações e mediações
com atores externos à empresa, como parlamentares e direções partidárias.
27
O ano de 2013 foi marcado por intensas, longas e grandes manifestações de rua devido à crescente insatisfação
com os rumos sociais do país. As reivindicações, principalmente em torno de melhores condições de mobilidade
urbana e transporte, habitação, educação e saúde, foram diversas e reverberaram de forma negativa na popularidade
da então presidente Dilma Rousseff. Além das narrativas progressistas e mais à esquerda do espectro político,
houve também uma onda de manifestações reacionárias, inclusive com setores da direita ocupando as ruas (o que
posteriormente tornou-se um repertório comum para os movimentos reacionários).
39

O trabalho voluntariado sempre foi um pilar para os cursinhos da Rede; inclusive no


Marielle, todo o trabalho do corpo docente é voluntário. As motivações são, como mencionado
anteriormente, a manutenção do caráter autônomo do cursinho. Saber que há uma ONG em um
estado que se organiza a partir de trabalho remunerado demonstra o tanto de multiplicidade
existente nos cursinhos da Rede. É válido destacar que a gratuidade para os/as estudantes
permanece, como a própria Luciana Genro menciona em certo momento do vídeo.
Como se pode ver, embora carreguem o mesmo semblante, compartilhem de um mesmo
propósito e tenham compromisso com um mesmo projeto político-pedagógico, cada cursinho
enfrenta seus próprios desafios e articula suas próprias estratégias. No Rio Grande do Sul, a
estratégia encontrada pelo Emancipa foi se tornar uma ONG, aqui no Rio Grande do Norte,
como veremos no segundo capítulo, a relação institucional com o antigo mandato do deputado
estadual Sandro Pimentel do PSOL, pode ser considerado um ponto estratégico para driblar
alguns desafios estruturais.
Contudo, essas relações institucionais e partidárias, além de estratégicas, também
acarretam algumas problemáticas e, algumas vezes, rupturas de cursinhos e militantes com a
Rede. O trabalho de Tangerino (2018) é interessante por trazer como foco de análise o Cursinho
Popular Florestan Fernandes que, em 2016, rompeu com a Rede Emancipa devido à
divergências ideológicas no tocante à formulação da política da Rede que, segundo eles, “não
era construída em fóruns e espaços abertos de coordenação compostos por representantes das
unidades e sim, por coordenadores integrantes do Movimento Esquerda Socialista (MES)28,
inviabilizando a disputa do movimento pela base” (TANGERINO, 2018, p. 39).
Essas rupturas não são incomuns. Mendes (2011) destaca a controvérsia no Cursinho
Chico Mendes, em Itapevi, São Paulo, em torno do apoio, ou não, da candidatura, nas eleições
de 2010, a deputado federal de um dos fundadores da Rede Emancipa. A controvérsia deu-se
entre os/as professores/as com uma “disputa de versões” e um problema político que culminou
na ruptura com a Rede Emancipa e criação do Cursinho Popular de Itapevi. Tais acontecimentos
apontam para a imbricada relação entre a Rede, o partido e essa corrente, MES, tema que
analisei no capítulo três desta dissertação.

2.1.2 Outras configurações da Rede Emancipa

É importante destacar que a Rede não se organiza apenas com cursinhos, apesar de ser

28
Corrente do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
40

majoritariamente com eles que o Emancipa cresce e se expande pelo Brasil. Trarei algumas
outras iniciativas e formas de organização que surgiram, principalmente em 2020. Isso porque
com o distanciamento social, interrupção das aulas presenciais e as instituições de ensino
aderindo ao modelo de aulas remotas virtuais, os cursinhos populares precisaram se reinventar.
Nas considerações finais deste trabalho, apresentarei um panorama mais geral de como a
pandemia de Covid-19 impactou o Marielle e todo seu corpo docente, estudantil e coordenação,
as dificuldades e desafios para continuar trabalhando e a esmagadora evasão de estudantes e
professores/as ao longo do ano.
A primeira iniciativa que trago é da Universidade Emancipa. Abaixo, colocarei um
trecho da carta de apresentação presente no site oficial da Rede Emancipa29.
Você já pensou em cursar uma universidade que tenha como prioridade utilizar o
melhor do conhecimento acadêmico para melhorar a vida de seu povo? E que tenha
como pilares a gratuidade, o compromisso social e a educação democrática e popular?
Com o apoio de intelectuais, professores universitários e profissionais das mais
diversas áreas surge a Universidade Emancipa como espaço de formação política,
pedagógica e cultural popular, com o objetivo de escancarar as portas do
conhecimento aprisionado nas universidades e se transformar em ferramenta de
transformação e defesa da educação pública, gratuita e de qualidade como direito de
todas e todos. Por outro lado, este projeto também é uma proposta de engajamento da
intelectualidade no processo mais amplo de educação popular. (VEM AÍ A
UNIVERSIDADE EMANCIPA, Rede Emancipa)

Com essa carta de apresentação, é possível encontrar nítidas semelhanças com o projeto
da Escola Nacional Florestan Fernandes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST). Essa escola, um marco para o avanço do projeto de educação popular do MST, foi
inaugurada em janeiro de 2005 e começou a ser construída em 2000, no município Guararema
em São Paulo, de acordo com Biondi (2006):
A criação da escola permitiu a ampliação do diálogo entre diversas universidades
públicas, especialmente a USP, e os movimentos sociais. Pensada e construída sob a
percepção de que a reforma agrária e o direito à educação estão intimamente ligados
(...) Os cursos da escola vão dos livres aos de pós-graduação, passando pelos de
graduação e especialização. As parcerias que viabilizam cada um deles são várias,
contemplando desde financiamentos oriundos do Ministério do Desenvolvimento
Agrário até convênios com instituições de ensino médio e superior que garantem a
certificação das autoridades educacionais. A exceção são os cursos livres, elaborados
e aprovados no âmbito da escola. (BIONDI, 2006, p. 15)

A Escola Florestan tem alguns princípios norteadores de seu projeto político-


pedagógico que são: a autogestão, a disciplina consciente e a liberdade para produzir
conhecimento (BIONDI, 2006). A escola também é gestionada pelos próprios integrantes do
MST que colaboram em diversos setores como administração, cozinha, pedagogia, manutenção,

29
Disponível em: https://redeemancipa.org.br/2017/07/vem-ai-a-universidade-emancipa/. Acesso em: 11 ago,
2021.
41

cultura, dentre outros. Também há um intenso envolvimento de professores/as da USP e


outros/as professores/as universitários/as, além de intelectuais que colaboram com a escola.
É provável que a escola Florestan tenha sido uma ampla fonte de inspiração para a
Universidade Emancipa que surge em julho de 2017 e cujas similaridades e princípios de
diálogo com a universidade pública brasileira, são convergentes. Segundo consta no site da
Rede Emancipa, o primeiro encontro da Universidade aconteceu na Escola Estadual Carlos
Ayres30, na cidade de São Paulo, com o tema “Educação e Política - Círculo de Inauguração da
Universidade Emancipa”. O projeto também conta com a participação de professores/as
universitários/as, militantes da Rede e intelectuais, e tem como objetivo difundir e ampliar o
debate acadêmico fora das universidades.
Em julho de 2020, a Universidade Emancipa, em parceria com a Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, realizou o curso de extensão online “Entender o mundo hoje: pandemia e
periferias", que contou com nove encontros temáticos. O curso, gratuito e aberto ao público,
aconteceu pelas redes da Universidade Emancipa no Facebook, Instagram e YouTube.
Além desse curso, a Rede Emancipa também organizou, em abril de 2020, o “Círculo
Nacional de Formação de Quadros - Marxismo e Periferias”, com aulas que foram transmitidas
pelo canal da Rede no YouTube e encontros semanais, nas quartas-feiras, às 19h. Achei
interessante que, na própria chamada do curso no site, enfatizou-se que era “voltado
prioritariamente aos militantes da Rede Emancipa”, tanto estudantes, quanto docentes e
coordenações, e foi a primeira vez que vi a Rede utilizar a expressão “quadros” para designar
militantes. Isso porque esse é um termo do repertório partidário que não costuma fazer parte da
linguagem31, por exemplo, do cursinho Marielle. Isso, somada a outras observações que venho
fazendo, me fez refletir sobre uma possível mudança de direcionamento do Emancipa em 2020
com ênfase na construção de militância.
Além da Universidade Emancipa, há também os projetos de cursinhos voltados à
População Privada de Liberdade, são eles o Emancipa Degase, na cidade Rio de Janeiro (RJ), e
o Emancipa Horizontes, em Natal. No RJ, atua-se em quatro unidades do sistema
socioeducativo: Escola João Luiz Alves (EJLA), Centro de Socioeducação Dom Bosco, Centro
de Socioeducação Prof. Antônio Carlos Gomes da Costa (PACGC) e Centro de Socioeducação
Ilha do Governador (CENSE-ILHA). Em Natal, a atuação, durante o segundo semestre de 2019,
foi na Cadeia Pública de Natal (CPN), localizada no bairro Potengi, Avenida Itapetinga, perto

30
A Universidade Emancipa ainda não conta com um espaço físico próprio, de modo que, assim como nos
cursinhos, acaba sendo utilizado a estrutura de escolas e universidades (públicas) para os encontros.
31
Pessoalmente, nunca presenciei esse termo sendo utilizado no cursinho.
42

da UERN. A diferença entre os projetos é que no RJ se trabalha dentro do sistema


socioeducativo, com adolescentes em conflito com a lei; já aqui em Natal, a CPN é uma unidade
prisional para homens adultos. Ambos os cursinhos se voltam à preparação para o Enem para
Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL)32. Em Natal, a iniciativa começou em 26 de outubro
de 2019.

2.2 Os sentidos e expressões da Educação Popular: resgate conceitual e histórico da


categoria

Categorias como “movimento social”, “educação popular”, “movimentos populares”,


do ponto de vista teórico, estão envolvidas numa grande teia de significados com múltiplos
sentidos e expressões que variam a depender da época, do contexto social e de quais atores
reivindicam-nas. O cursinho Marielle Franco pode ser compreendido como uma das diversas
expressões de educação popular, dentro do enorme contingente de iniciativas existentes no
Brasil, assim como a Rede Emancipa é uma das expressões de movimento social, mais
especificamente, um movimento popular urbano, partindo da contextualização de Doimo
(1995).
No livro “A Vez e a Voz do Popular” (DOIMO, 1995) há uma análise histórica sobre
essas categorias percorrendo a trajetória que culminou em tantas ramificações. Em relação ao
surgimento da categoria “movimento social”, Doimo (1995) escreve:
Criada por volta de 1840 para designar o surgimento do movimento operário europeu
(Scherer-Warren, 1987), posteriormente desenvolvida no âmbito do marxismo para
representar a organização racional da classe trabalhadora em sindicatos e partidos
empenhados na transformação das relações capitalistas de produção, essa categoria
adquiriu, bem antes da crise do socialismo real e a queda do muro de Berlim, a
capacidade de referir-se a uma multiplicidade de novas formas de participação.
(DOIMO, 1995, p. 37)

É possível ver que a categoria nasce no âmbito do marxismo e do movimento operário


e, ao longo das décadas, adquire outros significados à medida em que novas expressões vão
surgindo de acordo com o contexto sociocultural. No Brasil, Doimo (1995, p. 38) aponta que
inicialmente foram concebidas como experiências de movimentos sociais, os movimentos de
reivindicação urbana e as lutas urbanas, daí decorre a categoria “movimentos urbanos”.
O termo “popular” surge no mesmo contexto dos chamados movimentos urbanos,
ambos são utilizados como nomenclatura para designar as experiências participativas não

32
Consultar: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/enem-ppl.
43

oriundas do universo operário-sindical. Doimo (1995, p. 38) denomina isso como um “processo
movimentalista instaurado no Brasil no campo popular entre os anos 1975 e 1990”.
Das fissuras provocadas pelas diferentes interpretações teórico-conceituais e a
polarização entre as diferentes configurações dos movimentos sociais, uns apegados à clássica
“valorização da racionalidade política” advinda do movimento operário e outros à “negação da
institucionalidade”, surge a “crise do conceito de movimento social” que culmina em uma
distinção entre os “novos” e “velhos” (DOIMO, 1995). Em seu argumento, os “novos”
aproximam-se dos movimentos sociais de caráter autônomo e autogestionado que são bastante
expressivos hoje em dia, e os “velhos” seriam as configurações institucionalizadas como o
partido, sindicatos e afins.
A partir dessas novas configurações de movimentos sociais, surge a noção de “popular”
com ênfase nos mesmos princípios de autonomia e autogestão, negação à institucionalidade e
o apelo ainda mais forte ao sentido de “povo”, outrora abandonado pelos velhos movimentos
sociais devido a sua imprecisão teórica e à tradição populista de governos que durante muito
tempo reivindicavam o “povo” em busca de amparo às suas políticas de alianças de classe
(DOIMO, 1995). Assim, as categorias popular e povo tornam-se chave para credibilidade dos
novos movimentos sociais, como observa a autora:
Logo, no entanto, o sentido de povo é amplamente recuperado e reelaborado: de
clientela cativa, passa a ser visto como aquele que não se deixa cooptar e manipular;
de massa amorfa, torna-se um coletivo organizado e predisposto à participação
continuada na luta por seus interesses; de um ser subordinado ao Estado-nação e às
vanguardas políticas, brota o ser autônomo e independente; de mero objeto das
instituições de representação política, emerge o sujeito realizador da democracia de
base e direta e propositor de políticas alternativas em torno dos direitos humanos e
sociais. (DOIMO, 1995, p. 124)

Desse modo, o crescente movimento popular passa, pois, a ter como princípio
organizativo o resgate à capacidade organizativa do povo. Porém, quem seria esse “povo”?
Como resposta ao questionamento, os novos movimentos “elegem” as populações em
vulnerabilidade socioeconômica e empobrecidas que acabam dando corpo a essa categoria
abstrata e, assim, a exigência dos movimentos passa a ser por uma atuação com esses segmentos
da sociedade. É possível perceber que essa ideia reverbera ainda hoje. Ana Maria Doimo
escreveu o livro na década de 90 e, à época, já alertava sobre os riscos, para os próprios
movimentos sociais, da genericidade e universalização dessas categorias sem um
aprofundamento adequado.
Outro fator problematizado por Doimo (1995, p. 45) é a hostilidade em relação à
racionalidade política e ao Estado, ainda mais considerando que “a base social está mais
44

próxima do Estado do que se poderia pensar à primeira vista, já que é composta por segmentos
que retiram do Estado condições para sua sobrevivência”. Tal afirmação, aponta para a
necessidade de avaliar criticamente o papel do Estado nas dinâmicas sociais, não só como um
agente produtor de desigualdades, mas também como o agente responsável por repará-las.
Em meio ao princípio político de participação e organização autônoma do povo, surge
a educação popular como “um novo modo de fazer política que reconheça o indivíduo como
cidadão e não como subordinado a relações de favor e tutela” (DOIMO, 1995, p. 128). Ela
prossegue:
Caracteriza um tipo de exercício pedagógico “popular”, fundado na tentativa de diluir
as dicotomias dirigente-dirigido e sujeito-objeto, próprias, respectivamente, do
processo político e dos métodos de ensino-aprendizagem ou de conhecimento (...)
Antes invariavelmente associada a experiências de alfabetização de adultos, a
educação popular passa, a partir de meados dos anos 70, a ser preferencialmente
utilizada em seu sentido estritamente organizativo-conscientizador e a agregar novos
valores ético-políticos como a “democracia de base” e “autonomia”. (DOIMO, 1995,
p. 128-129)

A autora destaca o imenso volume de documentos em educação popular produzidos


entre 1983 e 1985, e Paulo Freire como “o grande mito de toda essa produção” (DOIMO, 1995,
p. 131). Um outro ponto importante a se destacar nessa discussão, é a elaboração de uma
concepção de educação popular a partir da Teologia da Libertação, o que coloca o cristianismo
e a igreja católica como um dos principais atores no tocante à configuração do que concebemos
como educação popular hoje.
É controverso pensar a apropriação da educação popular por setores da igreja católica.
De acordo com Doimo (1995), esse processo se inicia em meio à crise da escola católica que se
coloca a serviço da “educação libertadora” em busca de uma “‘escola católica ideal’ que tivesse
a ‘identidade católica’ afinada com a chamada ‘opção preferencial pelos pobres’ e fosse capaz
de exercer uma ‘função transformadora das estruturas sociais’” (DOIMO, 1995, p. 134).
Assim, a igreja católica, ao longo dos anos 80, teve uma influência expressiva dentro da
educação popular até meados da década de 90, quando começa a ter um investimento dos
movimentos populares na criação de entidades formais. Com isso, o movimento popular se
desvincula institucionalmente da igreja, tal qual começa um processo de desprendimento dos
princípios éticos cristãos (DOIMO, 1995). Antes de entrar no debate mais contemporâneo a
respeito da educação popular dentro dos movimentos sociais, transcrevo uma reflexão
importante da autora que permanece extremamente atual:
O propalado movimento popular, tão cantado em prosa e verso, não significa mais do
que uma categoria de auto-identificação de um campo multicentrado de redes
movimentalistas, recobertas por um repertório comum de linguagem; um campo que,
a despeito do apelo universalizante, circunscreve um universo particular de relações e
45

representações, reelaboradas por várias identidades internas que entre si disputam os


recursos de poder aí produzidos. (DOIMO, 1995, p. 213)

A partir disso, é possível romper com a tendência à reificação dessas categorias e


compreendê-las em sua dimensão cambiável, oscilante e, principalmente, como um terreno
passível de disputas teórico-conceituais e diferentes apropriações que irão resultar em
significados diversos os quais devem ser compreendidos a partir de uma contextualização.
Partindo agora para um debate mais contemporâneo e apresentando um esboço da
relação entre educação e movimentos sociais nos dias de hoje, Gohn (2011, p. 333) fala sobre
movimentos sociais como “fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes”. E aponta
algumas entidades que, não só formalizaram essa relação durante a década de 70 e
intensificaram o processo a partir dos anos 90, como também a trouxeram para o campo
científico. Algumas delas são: a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais (ANPOCS), a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação (ANPEd), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade
Brasileira de Sociologia (SBS) e as Conferências Brasileiras de Educação (CBEs).
Um ponto a se atentar nessa passagem cronológica de Doimo (1995) a Gohn (2011) é
que se outrora os movimentos sociais e a educação popular tinham como princípio basilar a
autogestão, assumindo um caráter autonomista de repulsa à institucionalidade e com forte
influência da igreja devido a sua Teologia da Libertação, hoje em dia vemos um outro caminho
sendo traçado: a busca por institucionalidade a partir da criação de entidades formais e,
consequentemente, o diálogo com o Estado, um caráter mais científico e um distanciamento
dos valores cristãos.
Sobre esse ponto, Rios (2018) discute a reorganização estratégica do ativismo que
culminou na institucionalidade, dentro do período chamado “pós-transição democrática” com
o recorte de 1985-2016. Abaixo, trago um trecho da discussão:
Com o fechamento de oportunidade política estatal – ou seja, o esvaziamento dos
conselhos e demais espaços de negociação política – durante o governo de Fernando
Collor de Mello, os agentes extragovernamentais se reorientaram em termos de
estratégia de ação frente à nova conjuntura política nacional (...) Nessa conjuntura, as
organizações e os militantes apostam em dupla estratégia: fortalecer seus vínculos
com suas bases na sociedade civil, ao mesmo tempo em que se fizeram presentes nas
esferas municipais e estaduais, em administrações e governos abertos às demandas
dos movimentos sociais. Deve-se notar que as redes de relações construídas nas
“trincheiras ideológicas” de oposição ao regime militar foram decisivas para inserção
de alguns ativistas em escalões intermediários de governos locais. (RIOS, 2018, p.
264)

Essa estratégia de construir pontes, diálogos e galgar espaços dentro da política


institucional e governamental, principalmente nas esferas estaduais e locais (RIOS, 2018),
46

direcionou os movimentos sociais à institucionalidade. Com isso, Rios (2018) aponta que,
enquanto estratégia política, os movimentos sociais tiveram tensionamentos e precisaram
apostar numa correlação de forças que lhes fosse favorável através de “captação de recursos
junto a organismos internacionais” e reorganização em ONGs.
Rios (2018) exprime ainda que o novo quadro político nacional 33 acarreta na maior
focalização das demandas sociais e diversificação do ativismo político (p. 269), além de ações
mais extensas, especialmente as de fins educacionais, mencionando os cursinhos populares
como “projetos sociais de forte potencial mobilizatório, apresentando alternativas sociais e
novas expectativas de futuro via educação superior”, além de ser o lócus “gestados os discursos
em defesa das ações afirmativas que emergem no Brasil nos anos finais do século XX” (p. 270).
Com isso, é possível inferir que os movimentos sociais também assumem novos
repertórios políticos como: o ideário civilizatório, a defesa da democracia, a luta por novas
culturas políticas de inclusão e o reconhecimento da diversidade cultural (GOHN, 2011, p. 336).
Nesse contexto, a área da educação aparece como uma fonte de grandes mobilizações e
protestos. Gohn (2011), analisando não apenas o cenário nacional como ampliando a reflexão
para a América Latina, aponta que no contexto das reformas neoliberais na educação, o
movimento estudantil reaparece como um ator importante dentro dos movimentos populares,
ressaltando algumas movimentações como: a Revolta dos Pinguins no Chile34 em 2006, que
serviram de inspiração para alguns métodos utilizados nas mobilizações estudantis brasileiras
como ocupações de escolas e universidades públicas35, e os “bacharelados populares” na
Argentina que eclodiu no início dos anos 2000 com ações denominadas “fábricas recuperadas”
por trabalhadores/as nas quais criaram-se espaços para atividades educativas de formação
(GOHN, 2011, p. 340).
O movimento dos bacharelados populares na Argentina é um importante campo para
analisar a experiência de educação popular no interior de uma luta organizada e autogestionada.
Areal e Terzibachian (2012) definem os bacharelados como uma “experiência educativa de tipo
comunitária” e escrevem sobre a origem da luta:
A crise econômica não admitia o ingresso das classes populares nas escolas privadas.

33
Esse “novo quadro político nacional” ao qual Rios (2018) se refere considera as diversas mudanças provocadas
pós-2013 com suas intensas jornadas, e pós-2016 com o golpe político-institucional ocorrido neste ano, mas que
teve início em 2015, acarretando um amplo processo político que mobilizou movimentos sociais à esquerda e à
direita, com manifestações progressistas e reacionárias.
34
Onda de manifestações dos/as estudantes secundaristas, conhecidos/as como “pinguins”, que reivindicaram, a
partir de métodos como protesto nas ruas e ocupações de escolas, a gratuidade na educação e no transporte urbano,
além de outras reformas no sistema educacional herdado da ditadura militar. Consultar: http://ubes.org.br/2016/ha-
10-anos-pinguins-marchavam-no-chile-como-isso-mudou-a-educacao/.
35
É válido lembrar as grandes ocupações realizadas pelo movimento estudantil brasileiro em 2016.
47

Foi então que essas classes começaram a lançar as bases de uma educação
autogestionada. É possível encontrar aqui o surgimento dos bacharelados populares
(...) No mencionado cenário de crise generalizada, ampliou-se o espectro de
experiências educativas do tipo comunitária (...) As mesmas se desenvolveram
fundamentalmente em fábricas recuperadas por trabalhadores/as e escolas projetadas
pelo movimento piquetero36 tentando revitalizar o debate e alternativas próprias da
tradição de educação popular. (AREAL; TERZIBACHIAN, 2012, p. 519, tradução
nossa)

No âmbito da crise socioeconômica que se desenrolou na Argentina desde os anos 90,


devido ao modelo de organização social imposto pelas políticas neoliberais de privatização,
flexibilização das leis trabalhistas e afins, o Estado havia reduzido ainda mais os esforços por
garantir bens sociais à população vulnerável. Esse cenário ocasionou revoltas populares em
2001 com a reorganização de movimentos sociais e as ações de retomada das fábricas (AREAL;
TERZIBACHIAN, 2012).
A experiência de educação popular dos bacharelados surge com o objetivo de formar
sujeitos políticos conscientes das desigualdades do sistema capitalista, com elementos para
desnaturalizar a realidade que os rodeia (AREAL; TERZIBACHIAN, 2012, p. 521). Areal e
Terzibachian (2012), ao longo do artigo, citam Paulo Freire como uma inspiração para a base
político-pedagógica dos bacharelados. Em suas palavras:
Nos termos de Freire, trata-se de transformar o aluno em educando, entendendo que o
educando se torna realmente tal quando conhece o conteúdo e não na medida em que
o educador deposita a descrição dos conteúdos (Freire 1993:44) (...) Foi esta a base
político-pedagógica definida na primeira instância da luta. A mesma se construiu
retomando os aportes teóricos mencionados e enriquecendo-os a partir da reflexão
sobre as práticas desenvolvidas pelos próprios atores envolvidos. (AREAL;
TERZIBACHIAN, 2012, p. 521, tradução nossa)

Como se pode ver, embora haja uma diversidade de apropriações da categoria educação
popular, Paulo Freire é um grande expoente e a partir do qual se fazem a maioria das
significações de experiências, inclusive do Cursinho Marielle e da Rede Emancipa. A seguir,
faço uma breve leitura sobre a noção de pedagogia freireana que se consolidou como uma
referência basilar para os movimentos populares (tanto no Brasil como em outros países da
América Latina).
Boleiz Júnior (2012), em sua tese de doutorado, faz uma investigação bibliográfica
sobre os trabalhos pedagógicos de Célestin Freinet e Paulo Freire, relacionando as
convergências entre os projetos no tocante à educação popular e as aproximações de suas

36
O “movimento piquetero” define-se como um agrupamento de ativistas que utilizam como forma de protesto o
bloqueio de ruas, rotas e avenidas impossibilitando a circulação normal por essas vias. Inicia-se com a
reivindicação de trabalhadores/as argentinos/as desempregados/as pela sua reincorporação nas fábricas de onde
haviam sido demitidos/as. Hoje em dia, o “piquete” é uma modalidade de protesto amplamente incorporada pelos
movimentos sociais. (AREAL; TERZIBACHIAN, 2012)
48

trajetórias enquanto educadores, além dos diálogos metodológicos entre ambos. Paulo Freire
desenvolveu um trabalho de alfabetização de adultos a partir da metade dos anos 50,
especialmente na região Nordeste, onde, inicialmente, participou da fundação do Movimento
de Cultura Popular (MCP) na cidade de Recife (PE).
Esse projeto ganhou maior visibilidade a partir da experiência de Freire no município
de Angicos (interior do RN), já no início dos anos 60, com uma sistematização em 40 encontros
e um método que substituiu as aulas tradicionais por “círculos de cultura” (este debate sobre a
experiência de Angicos será levantado no próximo tópico). Quanto a Célestin Freinet, foi um
pedagogo francês que desenvolveu, também, um trabalho de alfabetização a partir dos anos
1920 na comuna francesa Le Bar-sur-Loup com crianças de uma escola na zona rural.
Boleiz Júnior (2012, p. 34) desenvolve sua análise partindo de uma “concepção rigorosa
de educação” que compreende o processo educativo não como um campo estéril e sim como
um processo de “apropriação dos saberes, conhecimentos, técnicas, valores e do mundo da
cultura (...) Um educar-se que proporciona aos seres humanos sua necessária atualização
histórico-cultural”. Há uma preocupação com a acepção científica da educação que, para Boleiz
Júnior (2012), consiste numa “atualização histórico-cultural para a constituição de sujeitos
históricos”.
Dados os dois projetos de Freire e Freinet, Boleiz Júnior (2012) parte de uma
compreensão de educação popular, baseada na noção de Freinet, como aquela que assume um
compromisso político com as classes populares. Sobre essa noção que Freinet desenvolveu em
meados dos anos 40 por meio de obras como “A educação do trabalho”, Boleiz Júnior (2012)
escreve:
Cabe aqui destacar o caráter dado por Freinet à noção de Educação Popular, que
bastante se diferencia da noção que a expressão assumiu em nosso contexto
contemporâneo. Para Freinet, uma educação popular é aquela que assume um
compromisso direto com as classes populares, com os trabalhadores e seus anseios,
visando à formação de cidadãos felizes e comprometidos com os valores e interesses
de sua classe social. Freinet é claro ao referir-se ao movimento por uma educação
adequada à realidade das classes populares, quando argumenta que após o término da
Segunda Guerra Mundial, “a classe popular começava a sua luta para a adaptação da
educação dos seus filhos às suas necessidades específicas” (FREINET, 1969, p. 19,
grifos meus). Neste ponto, os modos de pensar de Freinet e Freire se encontram e
complementam. (BOLEIZ JÚNIOR, 2012, p. 35)

Assim como Freire buscou o compromisso com as classes populares brasileiras em seu
projeto de alfabetização que marcou o campo da educação, Freinet fez o mesmo movimento na
França, décadas antes. Boleiz Júnior (2012) traz uma metáfora de Freinet que acho belíssima,
na qual o educador compara o trabalho com os/as educandos/as ao trabalho dos/as
camponeses/as na terra de plantio. Segue o trecho retirado dos escritos de Freinet:
49

Nós, camponeses, não afirmamos: tal terra é improdutiva porque é profundamente má


e habitada pelo demônio. É preciso, antes de semeá-la, exorcizá-la e modificar sua
natureza. Sabemos por experiência que toda terra, por mais estéril que aparente ser,
não deixa de conter em si elementos extraordinários de vida. Mas precisamos primeiro
descobri-los e depois, em vez de lhes contrariar e impedir a ação, utilizá-los
racionalmente, ajudá-los a frutificar no sentido de suas virtualidades e de suas
possibilidades. (FREINET, 1998, p. 141 apud BOLEIZ JÚNIOR, 2012, p. 36)

É válido lembrar que Freinet desenvolveu seu trabalho pedagógico no meio rural e
relacionava, tanto em suas produções teóricas como em seu projeto de escola popular, a prática
educativa ao labor, criando inclusive uma “pedagogia do trabalho”. Por isso, a metáfora da terra
de plantio serve à compreensão da prática educativa – essa preconizada por Freinet e Freire –
como um processo de semeadura e colheita. A aprendizagem e o conhecimento como algo que
precisa ser gestado, enquanto a colheita é uma surpresa, e não um resultado que deve ser
alcançado pelo/a educador/a, o importante é semear.
Alguns conceitos e termos utilizados por Freinet e Freire são importantes de serem
lembrados neste momento porque fazem parte do vocabulário político-pedagógico do Marielle
e também de outras experiências com a educação popular que veremos adiante. Por exemplo,
Freinet falava de uma educação comprometida com a realidade dos/as educandos/as, é
impossível não pensar nos círculos de cultura de Freire, espaço educativo que ele usava para
conhecer a realidade dos/as alfabetizandos/as e partir dela para iniciar o processo de
conhecimento das palavras.
Um outro ponto que Freinet fala é sobre a importância da família e da comunidade no
processo educacional e, por isso, a necessidade do/a educador/a se comprometer também com
essas dimensões da vida dos/as educandos/as (BOLEIZ JÚNIOR, 2012). Lembrei do princípio
de "territorialização" da Rede Emancipa que muito foi debatido no Cursinho Marielle em 2019,
que abordarei no próximo capítulo). Em suma, a Rede compreende que a educação não se
encerra nos muros escolares ou universitários, precisando ir além, erguendo diálogos com a
família e comunidade dos/as estudantes. Para isso, os cursinhos têm como tarefa política
engendrar essa territorialização dentro das periferias, não estando apenas presentes no espaço
físico da escola ou universidade na qual conduzem suas práticas educativas, como também fazer
presença nos bairros e comunidades, vivenciando esses territórios.
Uma das categorias de Freire mais reproduzidas é “dialogicidade”. Em uma das frases
presentes em Pedagogia do Oprimido, Freire fala que “ninguém educa ninguém, ninguém educa
a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1994, p. 44),
esse é o processo dialógico da educação teorizado pelo educador. Em suas palavras:
Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece,
não quando o educador-educando se encontra com os educandos-educadores em uma
50

situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai
dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação
em torno do conteúdo programático da educação. Para o “educador-bancário”, na sua
antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo,
que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus
alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa. Para o
educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da
educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser
depositado nos educandos, mas a revolução organizada, sistematizada e acrescentada
ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. (FREIRE,
1994, p. 53)

Para Freire, a dialogicidade é condição para realização da educação porque a educação


é o processo de transformação da natureza humana (BOLEIZ JÚNIOR, 2012). Essa finalidade
transformadora só consegue ser alcançada por meio da conscientização dos/as educandos/as,
ou seja, sua compreensão do mundo e de seu lugar nele, e isso só é possível utilizando o diálogo
como ferramenta educacional.
É necessário pontuar que, tanto Freire quanto Freinet, afirmaram não serem criadores
de nenhum “método” e que desejaram ser reinterpretados e recriados, não copiados (BOLEIZ
JÚNIOR, 2012). Embora muito se fale do “método freireano”, há sempre de se destacar que
esse “método” diverge e muda a partir de suas diferentes apropriações pelos movimentos sociais
e populares. Boleiz Júnior (2012) utiliza “técnicas” para se referir a algumas das estratégias de
ambos durante seus trabalhos. Em relação às “técnicas” de Freire, uma delas apropriada e
reinterpretada pelo Marielle, destaco os círculos de cultura como: “fonte de descoberta dos
conhecimentos que todos possuem” (BOLEIZ JÚNIOR, 2012, p. 132).

2.3 Construção de valores, perspectivas de mudanças: de estudantes a educadores/as, a


busca por uma educação transformadora

Gadotti (2013) recuperou em seu artigo alguns momentos históricos do projeto de Paulo
Freire em Angicos, em 1963, enfatizando o significado político-pedagógico dessa experiência
para o campo da educação, dos movimentos sociais e da própria concepção de educação
popular. Somando à reflexão de Gadotti, destaco também a importância e a potência da região
Nordeste no campo da educação popular, pois, além de ser o terreno onde nasceu esse projeto
que viria a revolucionar o que se concebe como educação, também é um território profícuo
culturalmente e politicamente com uma diversidade de grupos sociais que lutam contra o
epistemicídio e a política de violência regional do Estado brasileiro.
Tal política, que é promovida desde a configuração do Brasil enquanto uma “nação” e
das fronteiras que delimitam territórios como “regiões”, explora os recursos naturais e humanos
51

do Nordeste em prol do desenvolvimento econômico dos territórios ao sul37. Esses,


hegemonizados a partir de uma noção política do “ser brasileiro” que tem como maior
referência e projeção midiática o eixo Rio de Janeiro/São Paulo, assentam suas bases na
estigmatização das populações pertencentes ao norte, ou seja, às regiões delimitadas como
Nordeste e Norte – além das periferias dos seus próprios territórios.
Albuquerque Júnior (2011, p. 51) afirma, no começo da discussão de seu livro “A
Invenção do Nordeste”, que “o Nordeste é filho da ruína da antiga geografia do país,
segmentada entre ‘Norte’ e ‘Sul’”. Com isso, ele introduz um estudo sobre o regionalismo
enquanto uma formação discursiva-naturalista, assentada no pensamento que cruza natureza e
raça, que institui uma realidade sobre a região. Assim, a imagética associada às populações ao
norte é construída historicamente a partir de um “regionalismo de inferioridade” por ser um
território de “hábitat desfavorável” (a problemática da seca torna-se característica fundante
dessa ideia) e por abrigar uma maioria de povos negros, mestiços e indígenas – em oposição à
São Paulo que aparece nessa percepção como exemplo bem-sucedido do eugenismo e,
consequentemente, é tomado como modelo de superioridade (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2011).
À vista disso, Albuquerque Júnior (2011) aponta o Nordeste38 como uma produção
imagético-discursiva gestada historicamente em relação a uma dada área do país (p. 62). Esse
processo de “recorte regional” é necessário ao “dispositivo das nacionalidades”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 65) que estabelece fronteiras para subordinar os
territórios, então concebidos como “regiões”, e promover uma conceituação homogênea em
torno da ideia de identidade nacional. Na tentativa de hegemonizar um modelo a ser adotado
como nacionalidade, os regionalismos se chocam e o norte, especificamente o atual Nordeste,
é narrado como incivilizado, contraposto à civilidade do sul.
Sobre as bases da experiência de Angicos, Gadotti (2013) aponta:
A história de Angicos tem importantes antecedentes. Já nos anos 50 do século
passado, Paulo Freire percebeu que os métodos utilizados na alfabetização de adultos
eram os mesmos utilizados para alfabetizar crianças. Com a experiência que já havia
tido, trabalhando no SESI, em Recife, via que isso era pedagogicamente inadequado,
além de humilhar os alfabetizandos. Em julho de 1958, Paulo Freire apresentava as
bases teóricas de seu sistema de alfabetização de adultos no II Congresso Nacional de
Educação de Adultos, realizado no Rio de Janeiro, como coordenador do relatório do
grupo de trabalho sobre “A educação de adultos e as populações marginais: o
problema dos mocambos”. Este relatório “é o germe de toda a literatura ético-político-

37
Por “ao sul” refiro-me às populações que não pertencem às regiões Nordeste e Norte do país.
38
O termo “nordeste” começa a ser utilizado a partir de 1919 para designar a área de atuação da Inspetoria Federal
de Obras Contra as Secas (IFOCS) sujeita às estiagens. O intuito era demandar maior atenção do poder público
federal a essa área. A partir disso, o Nordeste torna-se uma produção à parte do Norte (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2011, p. 81).
52

crítica de Paulo da educação para a transformação” (FREIRE, 2006, p. 126).


(GADOTTI, 2013, p. 49)
Gadotti (2013) também destaca o contexto social que precedeu a experiência em
Angicos, apontando que havia uma mobilização popular em todo o nordeste brasileiro. Como
mencionei anteriormente, em 1960, foi criado o Movimento de Cultura Popular (MCP) em
Recife, durante a gestão do então prefeito Miguel Arraes, e teve Paulo Freire como um dos
idealizadores. O MCP “associava a cultura popular à luta política, conscientizando as massas e
alfabetizando por meio de círculos de cultura. O MCP sediou a primeira experiência do Sistema
Paulo Freire” (GADOTTI, 2013, p. 49-50).
Na mesma época, especificamente em 1961, nasceu em Natal a campanha De Pé no
Chão Também se Aprende a Ler. Em entrevista a SciELO39, Moacyr de Goés40 apontou que a
campanha foi um “movimento popular que operou dentro de um aparelho de Estado”. Isso
porque o movimento De Pé no Chão desenvolveu-se na Secretaria Municipal de Educação e,
até meados de 1964, implicou um fortalecimento da Escola Pública Municipal da cidade. Goés
afirma que a campanha extrapolou sua proposta inicial de erradicação do analfabetismo,
convertendo-se numa política de cultura e educação popular.
Além dessas experiências, houve, em 1962, a Campanha de Educação Popular da
Paraíba (CEPLAR), assessorada por Paulo Freire e a equipe do Serviço de Extensão Cultural
da Universidade do Recife. A Campanha foi criada em João Pessoa por estudantes
universitários/as e profissionais recém-formados/as para a alfabetização de adultos (GADOTTI,
2013, p. 50). Gadotti destaca que Freire manteve essa proposta de utilizar estudantes
universitários/as como alfabetizadores/as em Angicos. Pensando no Cursinho Marielle, apesar
de não ser uma premissa, é interessante perceber como a maioria da equipe docente é composta
por universitários/as e que essa capilaridade, em torno desse grupo de estudantes, é recorrente
nos cursinhos da Rede.
Quando Paulo Freire iniciou como diretor de seu Programa de Alfabetização de
Angicos, com parceria entre o Serviço Cooperativo de Educação do Rio Grande do Norte
(SECERN) e o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife (SEC/UR), convidou
o então presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE/RN), e estudante de Direito, Marcos
Guerra para formar, junto a outros/as universitários/as, a primeira equipe de alfabetizadores/as
(monitores/as) do projeto (GADOTTI, 2013, p. 51).

39
Consultar: GOÉS, Moacyr de. Entrevista com o Prof. Moacyr de Góes. Rio de Janeiro, janeiro, 1992. Paidéia,
Ribeirão Preto, n. 3, maio, 2012.
40
Um dos professores e mobilizadores da campanha que, por três vezes, assumiu Secretarias de Educação em
Natal (1960 a 1964), Rio de Janeiro (1987 a 1988) e novamente em Natal (1989).
53

Gadotti (2013), explica como se deu o “método Paulo Freire” ou “sistema Paulo Freire”
de alfabetização:
“Este método dispensa o uso de cartilha. Começa com uma pesquisa junto ao grupo
que se pretende alfabetizar, quando é feita a coleta de um universo vocabular que
corresponda a situações sociológicas existenciais do grupo. Esse universo tem, em
média, 400 palavras. A coleta é feita através de conversas informais, explicando aos
futuros alunos que assim eles estão ajudando a fazer o programa das aulas, dando a
eles um sentido de participação ativa” (SECERN, 1963, p. 2). Paulo Freire tinha razão
ao se insurgir contra uma certa mitificação do seu método. Ele tinha pavor de
reducionismos porque eles estiolam a complexidade da realidade. Nada de dogmas
metodológicos. Ele tinha aprendido com a fenomenologia que devemos “ir as coisas”,
à realidade, ler primeiro o mundo. (GADOTTI, 2013, p. 58-59)

Como afirma Gadotti (2013, p. 59), o método de Freire precisava ser submetido ao crivo
da práxis, sendo sempre experimental, mas também havia orientações metodológicas como: a
“investigação temática” na qual se buscava o universo vocabular do/a aluno/a. A “tematização”,
ou seja, a escolha de “temas geradores” pela turma de alunos/as e pelos/as educadores/as. E a
“problematização” desses temas que ocorriam no espaço dos círculos de cultura e pelo qual
buscava-se alcançar uma visão científica das temáticas, além do compartilhar de vivências
dos/as educandos/as.
Gadotti (2013) aponta como a experiência de Angicos se tornou maior e excedeu as
fronteiras do município, sendo levada para outras cidades do RN como: Mossoró, Caicó,
Macau, e também para fora do RN nas cidades de: Osasco (SP), Belo Horizonte (MG), Aracaju
(SE), Porto Alegre (RS). Angicos também desencadeou o “projeto-piloto” do Programa
Nacional de Alfabetização (PNA), instituído em janeiro de 1964 durante a presidência de João
Goulart. Porém, o PNA foi interrompido em abril desse mesmo ano pelo golpe de Estado que
culminou no início da Ditadura Civil-Militar no Brasil.
O projeto político-pedagógico de alfabetização de Freire também era ideológico
(GADOTTI, 2013). Angicos não foi apenas uma experiência de alfabetização, como também
uma experiência de educação para a transformação dos contextos sociais vividos e libertação
do pensamento. Angicos repercute ainda hoje nas políticas educacionais tanto da educação
popular quanto da educação formal escolar (GADOTTI, 2013, p. 61), e foi terreno fértil para
semear a educação popular no Brasil e na América Latina.
Pensar a noção de educação transformadora implica em lembrar a formação omnilateral
que também é uma proposta de educação nascida no seio do pensamento marxista. A síntese da
proposta marxiana se expressa no vínculo entre educação e trabalho, mais precisamente, o
trabalho transforma-se em princípio educativo (DELLA FONTE, 2014, p. 387).
A formação omnilateral fala sobre uma forma de conceber a experiência humana com
54

a educação em sua completude. Para tornar a questão mais elucidativa, utilizando como
exemplo o senso-comum, há uma forte distinção entre o trabalho “intelectual” e o trabalho
“braçal”. Embora em seus extremos, ambos não sejam valorizados enquanto labor41, há alguns
fatores que desequilibram a balança. Por exemplo, trabalhadores/as informais ou autônomos/as,
trabalhadoras no serviço doméstico, trabalhadores do transporte urbano como rodoviários,
trabalhadores da conservação e limpeza urbana como garis, trabalhadores/as das empresas de
telemarketing, detém as piores condições de trabalho dentro das relações capitalistas porque
ocupam postos considerados puramente “braçais”, nos quais não há necessidade de atividade
intelectual, e esses postos têm um forte recorte de raça e classe.
Para organizar essa separação no mundo objetivo, a educação formal é atravessada por
diversas desigualdades que já foram discutidas acima. Uma delas é a dificuldade de acesso ao
ensino superior e a alguns cursos específicos. A formação que temos hoje em dia, dentro dos
moldes de produção capitalista, é chamada unilateral, pois há separações e dicotomias que
impedem o ser humano de alcançar um conhecimento integral. A educação omnilateral opõe-
se a isso, nas palavras de Della Fonte (2014):
Em contraste, a formação humana é omnilateral e universal: ela produz e reproduz a
natureza inteira, livre da carência imediata, o que o permite, por exemplo, criar
“segundo as leis da beleza” (ibid., p. 85); e sua atividade vital é consciente. O trabalho
é sua ação transformadora sobre a natureza e ela envolve vontade e consciência (...)
O trabalho é, portanto, uma ação corporal intencional e, como tal, envolve a plenitude
das capacidades intelectuais e sensitivas do ser humano. É este agir corporal
transformador que mobiliza e demanda o pensar, isto é, a construção da consciência.
(DELLA FONTE, 2014, p. 389)

Nesse sentido, a contraposição à formação educativa unilateral ocorre com a superação


da alienação (DELLA FONTE, 2014), ou seja, o trabalho alienante e a educação alienante que
não põe em perspectiva as problemáticas sociais, não estimula a criticidade nos/as estudantes e
que não se faz pelo diálogo. Por isso, Freire, Freinet e outros pensadores/as da educação popular
insistiram na dialogicidade do processo educativo42. Alguns/as utilizando outros termos, já que
o conceito de “dialógico” foi teorizado por Freire e reapropriado após ele, mas todos/as tiverem
em mente uma educação participativa na qual os/as educandos/as tenham participação ativa.
A concepção de omnilateralidade é apropriada, principalmente, pela pedagogia
histórico-crítica, pois permite “criticar as tendências educacionais hegemônicas, em particular
aquelas que reproduzem a concepção burguesa de ser humano e mundo, e estruturar

41
Refiro-me, por exemplo, ao trabalho intelectual de um/a cientista, pesquisador/a, do/a pós-graduando/a.
Dificilmente esse trabalho é reconhecido como tal e comumente o/a trabalhador/a intelectual é alçado à categoria
de “estudante”. Enquanto o “trabalho braçal” em sua extremidade, detém as piores condições de exploração no
sistema capitalista.
42
Autores/as como Carlos Rodrigues Brandão, Carlos Lyra e Amanda Motta Castro.
55

fundamentos para a sua própria proposição” (DELLA FONTE, 2014, p. 392). Dermeval Saviani
é o pedagogo brasileiro responsável por criar a teoria da pedagogia histórico-crítica que consiste
na compreensão da questão educacional com base no desenvolvimento histórico objetivo
(SAVIANI, 1991), como marxista, sua abordagem metodológica é o materialismo histórico-
dialético.
A crítica da pedagogia histórico-crítica põe em evidência o caráter reprodutivista da
educação escolar, isto é, o papel de reprodução das relações sociais de produção (SAVIANI,
1991, p. 78). Em suas palavras:
Em verdade, o que fazia, no fundo, a concepção crítico-reprodutivista? Considerava a
sociedade capitalista, de classes, como algo não suscetível a transformações, um
fenômeno que se justifica em si mesmo: uma estrutura que se impõe compactamente,
portanto, de forma não contraditória (...) A questão era, pois, a seguinte: como
compreender a educação nesse movimento histórico? Tratava-se de percebê-la como
também determinada por contradições internas à sociedade capitalista na qual se
inseria, podendo não apenas ser um elemento de reprodução, mas um elemento que
impulsionasse a tendência de transformação dessa sociedade (SAVIANI, 1991, p. 79).

É possível, pois, perceber que, de todas as experiências e teorizações vistas até o


momento, a chave para pensar uma educação popular é a “transformação”. Não apenas em sua
dimensão coletiva, como também na dimensão individual, a transformação pessoal e
transformar a própria educação. Todas as experiências educativas têm esse horizonte e o
Cursinho Marielle apropria-se disso com efetividade. De estudantes a educadores/as, ao longo
dos próximos capítulos, trarei relatos nos quais a experiência transformadora de atuação aparece
com bastante ênfase e recorrência – como desejo e/ou prática.
Dois exemplos de movimentos sociais que concebem a educação como parte de uma
luta por transformação social e realizam projetos pedagógicos extremamente relevantes no
campo da educação popular são o MST e os Movimentos Feministas com a Pedagogia
Feminista. Mencionei acima a Escola Florestan Fernandes do MST como forte influência para
a Universidade Emancipa, mas o fato é que não dá para falar de educação popular sem
mencionar o MST. A importância de sua luta, dos projetos político-pedagógicos e princípios
educativos são norteadores para qualquer movimento que reivindique a educação popular como
parte de seu repertório político.
O MST integra a agenda política educacional da educação do campo, a qual é fruto das
demandas de organizações sociais dos/as trabalhadores/as rurais. Tais demandas expressam
uma nova concepção sobre o “campo”, o/a camponês/a e o/a trabalhador/a rural, em
contraponto à visão associada ao “arcaico” e ao “atraso”, busca-se valorizar os conhecimentos
e modos de viver da prática social dos/as camponeses/as em suas terras (SOUZA, 2008).
As ações do MST começam a se tornar mais expressivas em meados dos anos 1980 com
56

a ampliação de número de ocupações e assentamentos, tornando as questões educacionais


dos/as camponeses/as mais visíveis, além da produção de documentos que reivindicavam a
construção de uma política pública de educação no campo (SOUZA, 2008). Ainda de acordo
com a autora:
A partir da criação do Setor de Educação (1987), responsável pela organização e
sistematização de propostas e práticas pedagógicas nas escolas localizadas nos
assentamentos da reforma agrária e nos acampamentos, o MST passou por um
processo de fortalecimento na demanda e proposição de ações ligadas à política
educacional. A educação foi conquistando lugar no interior do próprio MST, que tinha
as estratégias políticas e a ocupação da terra como prioridades. As primeiras
inquietações originaram-se em torno das crianças dos acampamentos e dos
assentamentos, evidenciando a necessidade da construção de escolas e da inserção das
crianças no ambiente da educação formal. (SOUZA, 2008, p. 1094)

A partir dessas inquietações, a educação torna-se uma área prioritária para o MST e
assim nasce um dos projetos mais sólidos de educação popular do país. A Escola Florestan
Fernandes não foi a única construção do movimento. Em seu site oficial43, consta mais de duas
mil escolas públicas construídas em acampamentos e assentamentos, mais de cem cursos de
graduação em parceria com universidades públicas, além das Escolas Itinerantes para crianças,
adolescentes, jovens e adultos em “situação de itinerância”, ou seja, são construídas para toda
a população acampada que está em contexto de luta pela desapropriação de terras improdutivas.
Os barracos das Escolas Itinerantes também funcionam como um centro de encontros de toda a
comunidade.
Algumas das propostas do modelo de educação do MST ajudam a refletir sobre as
práticas educativas dentro do Cursinho Marielle. Ao longo do segundo capítulo, trarei algumas
práticas educativas alternativas ao modelo formal chamadas “círculos” e “oficinas”. Os círculos
são, evidentemente, inspirados nos círculos de cultura de Paulo Freire, já as oficinas preenchem
um espaço outrora chamado de “tempo livre” que é inspirado em algumas experiências
educativas do MST.
O tempo livre, nas discussões do MST, significa o tempo de não-trabalho e é um espaço
onde se reorganiza práticas de cultura e lazer criando condições para o desenvolvimento de
expressões culturais coletivas, envoltas em práticas corporais, e diferentes usos do tempo
(FERREIRA; NASCIMENTO, 2016). No cursinho, o tempo livre é um intervalo (que não
exceda uma hora) sem atividades disciplinares para que os/as estudantes, professores/as e
coordenadores/as não apenas tenham um momento de descanso, como também consigam
interagir uns/as com os/as outros/as.

43
Consultar: https://mst.org.br/educacao/.
57

Em 2019, as oficinas foram atividades opcionais organizadas nesse intervalo de tempo


livre para incentivar essas práticas de lazer e cultura, já que o tempo livre comumente ficava
ocioso. Na formação educativa do MST, o tempo livre serve à construção de processos de
formação político-ideológica que compreende o lazer, a cultura e o esporte também como
expressões de práticas educativas que não estão desatreladas do ensino técnico-científico
(FERREIRA; NASCIMENTO, 2016). Por isso, nas atividades das oficinas do Marielle, sempre
há um objetivo educacional que envolva a participação lúdica dos/as estudantes, educadores/as
e oficineiros/as44.
Também no capítulo dois, menciono uma oficina que ministrei junto amigas sobre
feminismo durante a realização da atividade final de um curso da Universidade Livre Feminista
(ULF)45. A ULF foi criada em 2009 e é uma das experiências no extenso campo da pedagogia
feminista. A organização é vinculada às ONGs: Centro Feminista de Estudos e Assessoria
(CFEMEA), Cunhã - Coletivo Feminista e SOS Corpo - Instituto Feminista para Democracia,
além de outras ativistas, educadoras e artistas autônomas que integram o projeto. À época que
realizei o curso (em 2019), em caráter semipresencial, a ULF já adotava bases para o ambiente
EaD (Educação à Distância), com a utilização de uma metodologia que aposta no
compartilhamento de vivências em um espaço de diálogo entre mulheres.
A dialogicidade sempre esteve muito presente enquanto premissa basilar para os
movimentos feministas, especialmente aqueles que trabalham com educação. Silva (2010), em
seu livro “Experiências em Pedagogia Feminista”, aponta que:
Esta pedagogia que ficou conhecida como Educação Popular tem muito em comum
com o trabalho educativo feminista. Difere, segundo Portella e Gouveia, no sentido
de que, no feminismo, “privilegiam-se as micro-dimensões sociais sem perder de vista
a sua relação com o macrossocial. Os conteúdos da esfera privada merecem atenção
especial (...) o campo dos afetos, da sexualidade e das relações de parentesco é
pensado como um lugar onde as relações de poder estão presentes e devem ser tratadas
politicamente”. (SILVA, 2010, p. 16)

Devido a essa politização da esfera microssocial, a dialogicidade é um conceito basilar


para o feminismo. Lorde (1982), em uma entrevista com o tema “O sadomasoquismo na
comunidade lésbica”, falou a famosa frase que se tornou um jargão para muitos movimentos
feministas: “o pessoal é político”. Em suas palavras: “nós devemos observar os caminhos e
implicações de nossas vidas. Se nós estamos falando de feminismo, então todo pessoal é político
e nós devemos sujeitar tudo em nossa vida a um escrutínio” (LORDE, 1982, p. 4).

44
Como são chamadas as pessoas que ministram as oficinas. Como veremos no segundo capítulo, nem todas são
educadoras/es ou professoras/es.
45
Consultar: https://feminismo.org.br/proposta/.
58

Assim, a escuta política torna-se uma ferramenta para os movimentos sociais que tecem
diálogos embasados em teorizações formuladas. É evidente que o feminismo é plural, tanto em
quantidade de movimentos sociais como também na diversidade de teorias, por isso, o foco aqui
não é fazer uma análise sobre o feminismo e sim trazer algumas experiências educativas que
dialogam com a educação popular.
Um exemplo foi a iniciativa movida pela SOS Corpo entre os anos 2000 e 2006 com o
programa de formação construído com organizações locais de mulheres, como o Centro de
Mulheres de Água Preta, situado na Mata Sul e fundado em 1987, da região Zona da Mata46 em
Pernambuco (PE). O foco das ações do programa era a realização de atividades de capacitação
profissional que oferecia cursos de artesanato, cursos de pintura, de capacitação para
cabeleireira, cursos de informática, além de oficinas de leitura, inglês, teatro, percussão e
música (CAMURÇA, 2010, p. 65 apud SILVA, 2010, p. 65).
O objetivo dessas atividades, que eram complementadas com espaços de formação
política, era a chamada “formação para a cidadania”, ou seja, atividades educativas dirigidas às
mulheres levando em consideração o contexto que vivenciam e suas necessidades, além da
discussão das questões de ordem social (CAMURÇA, 2010, p. 65 apud SILVA, 2010, p. 65).
Camurça (2010) aponta que as práticas educativas “tomam como referência a trajetória
histórica das mulheres (...) tomamos como questão pedagógica a produção de conhecimento de
mulheres sobre mulheres” (p. 68 apud SILVA, 2010, p. 68). Essa perspectiva é muito similar
às concepções de educação popular teorizada por Freire e apropriada pelo Cursinho Marielle,
significa partir da experiência dos/as educandos/as e chamá-los/as à participação ativa no
processo. Sobre isso, Camurça (2010) prossegue:
Entre as características da pedagogia feminista, destacamos a similaridade com a
educação popular e sua proposta de prática educativa transformadora, tendo como
inspiração central os conceitos de opressão, exploração, dominação, discriminação e
desigualdades de gênero (...) A prática educativa do SOS Corpo esteve caracterizada
como uma prática que coloca “ênfase nas atividades de grupo, no formato
participativo e no uso de metodologias que articulam subjetividade e racionalidade,
experiência pessoal e conhecimento teórico e técnico”. (CAMURÇA, 2010, p. 69
apud SILVA, 2010, p. 69)

As atividades coletivizadas, “em grupo”, são muito importantes dentro de um processo


educativo, especialmente na educação popular, pois põe em diálogo os/as participantes do
processo, por isso, além dos espaços do cursinho que mencionei como “alternativos à educação
formal”, dentro da própria sala de aula, objetiva-se um processo de aprendizagem coletiva.
À guisa de exemplo, em todos os meus planos de aula, busquei inserir atividades

46
Região de monocultivo de cana-de-açúcar.
59

dinâmicas, ou em grupo ou em dupla, com os/as estudantes. Com isso, buscava transformar as
aulas em um espaço de debate e aprendizagem dialógica e sempre enfatizei para os/as alunos/as
que Sociologia é uma área de conhecimento na qual o debate é primordial. Fazia isso para levar
à compreensão de que eu não era a única com algo a ensinar, os/as colegas também fariam isso.
Outros/as professores/as também buscaram inserir atividades coletivas nas aulas e assim tornar
o processo mais dinâmico.
Essas práticas denotam a construção de novos valores na educação e não ocorriam
apenas no expediente de ensino. O Cursinho Marielle, especialmente em 2019, buscou se
apropriar das discussões feministas não apenas para orientar suas práticas educativas, como
também para construir novos modelos de organização coletiva. Um exemplo disso foi uma
situação ocorrida durante o primeiro semestre de 2020 envolvendo assédio moral de um
professor em relação a algumas professoras e coordenadoras.
Não acompanhei a situação porque à época estava afastada do cursinho 47, mas, de
acordo com os relatos que pude acompanhar nos grupos de WhatsApp e em conversas
individuais, o professor Júlio48, que estava me substituindo nas aulas de Sociologia49, ao longo
de reuniões com a equipe, e mesmo nos grupos de WhatsApp, com seu comportamento gerava
incômodo nas professoras, pois costumava dirigir-se a elas com arrogância, silenciando-as em
muitos momentos. Pelo que eu soube, houve tentativas de diálogo com ele, mas tendo em vista
que seu comportamento não mudou, e ele apenas se posicionou dessa forma com mulheres, as
professoras e as coordenadoras, em reunião, decidiram por afastá-lo do Emancipa. Após uma
conversa privada com uma das coordenadoras na qual ela comunicou a ele sobre a reunião e a
decisão, Júlio retirou-se dos grupos.
Esse é um dos exemplos de valores que são construídos nos movimentos sociais e
ultrapassam matrizes curriculares. São questões referentes à transformação de estruturas sociais
possíveis a partir de uma educação popular que questiona essas estruturas e reflete sobre elas.
Neste capítulo, busquei debater sobre as mudanças no acesso ao ensino superior no Brasil, pois
essa é uma das lutas do Cursinho Marielle, inserindo a Rede Emancipa nesse contexto social.
Ademais, fiz um apanhado do percurso teórico envolvendo as categorias educação
popular e movimento social para desmistificar a reificação e debater em torno de uma das

47
Devido a questões psicológicas agravadas pela pandemia e isolamento social, e também questões materiais
relacionadas à ausência de equipamentos tecnológicos adequados para dar aula no modelo virtual remoto, preferi
me distanciar das atividades do cursinho e só retornei em meados de julho de 2020.
48
Pseudônimo.
49
Fomos colegas de graduação, mas nunca tivemos proximidade. Ele já havia me procurado no início do ano de
2020 comentando sobre o interesse em participar do Emancipa como professor em um dos cursinhos, por isso
encaminhei seu contato para as coordenadoras.
60

concepções mais apropriadas atualmente pelos movimentos, inclusive a Rede Emancipa e seus
cursinhos, a pedagogia de Paulo Freire. A partir de algumas experiências de educação popular,
que servem como inspiração e fonte de diálogos, é possível agora adentrar nos interiores do
Marielle para compreender esse universo.
61

3 CONSTRUINDO UM CAMPO, TECENDO TRAJETÓRIAS

Neste capítulo, inicio a discussão etnográfica sobre o cursinho Marielle, evidenciando


seus espaços, algumas pessoas que o constroem, os primeiros contatos que tive, seus núcleos
de atuação e suas práticas educativas e de formação política. Em meio a isso, farei uma
discussão sobre as categorias “favela” e “periferia”, além de discutir o que a região da Zona
Norte de Natal implica para o cursinho. Isso porque o Emancipa também se reivindica enquanto
um “Movimento Social de Periferias”, então a periferia é seu campo primordial de atuação,
assim como os territórios periféricos tornam-se centrais à disputa política.
A Zona Norte, como veremos adiante, é uma das regiões de Natal deprimida
socioeconômica, por isso, é lá que o Marielle tem seu marco inicial e se mantém no território.
Para um maior adensamento etnográfico, trarei também entrevistas com professores/as e ex-
coordenadores, além de utilizar algumas imagens, fotografadas por mim e por outras pessoas,
durante alguns sábados no cursinho. É válido ressaltar que este será um capítulo extenso e é
necessário fazê-lo dessa forma para conseguir apreender toda a multiplicidade, amplitude e
diversidade do cursinho, entre suas muitas idas, vindas e retornos. De antemão, assumo que não
foi fácil etnografar tamanha transitoriedade.

3.1 Primeiros contatos e ambientação dos espaços

A primeira reunião que participei do cursinho Marielle foi no início de 2018, na praça
de alimentação do shopping Via Direta50. Foi lá que conheci Will, à época coordenador do
Marielle Franco, pedagogo em formação e militante do MES/PSOL que era a figura de destaque
do Emancipa em Natal. Fui adicionada por ele em alguns grupos de WhatsApp do cursinho,
acompanhava de forma esporádica as mensagens com o intuito de, em algum momento,
começar a atuar como professora. Era notório já pelos grupos o constante trânsito da equipe, as
idas e vindas de professores/as. Quando decidi, em meados de março de 2019, tornar o cursinho
meu campo da pesquisa, tinha em mente o quanto seria difícil mapear um circuito tão grande e
inconstante.

50
Localizado no bairro de Lagoa Nova, em Natal, bem próximo ao campus central da UFRN e ao lado da parada
final do ônibus circular que serve à Universidade.
62

No dia 23 de fevereiro de 2019, tive meu segundo contato com o Marielle. Neste dia,
aconteceu a Formação Emancipa51, um momento que é organizado sempre ao início do ano
antes de iniciar o semestre, voltado ao debate político-pedagógico sobre a construção do
cursinho, com novos e antigos professores/as dispostos a atuar e apresentação das propostas da
Rede Emancipa. O encontro aconteceu na sede do PSOL, localizada na Rua Apodi, bairro
Cidade Alta, Natal, onde costuma ocorrer algumas reuniões do cursinho.
A escolha das reuniões acontecerem nesse espaço pode ser compreendida,
principalmente, pelo viés do conforto e da mobilidade, pois a sede consegue abrigar um número
razoável de pessoas e está localizado num lugar de fácil acesso (o centro da cidade), além de
ter a estrutura de uma casa com banheiro, cozinha, varanda, dentre outros cômodos. As reuniões
costumam ser decididas no grupo geral do WhatsApp e a sede quase sempre é o lugar escolhido
por essas razões.
Além disso, o uso desse espaço é viabilizado pelas pessoas do cursinho que também são
militantes do partido, neste caso, Tati, Danilo e, até o início do ano de 2019, Will. Isso faz com
que a sede do PSOL também seja um dos espaços onde o cursinho acontece, além de ser
revelador da relação entre o cursinho e o PSOL, já apontada no capítulo anterior e melhor
explorada no terceiro capítulo da dissertação.
Mesmo sem anotações sobre essa formação52, fiz um breve resgate na memória sobre
algumas situações, porque considero este um dos momentos primordiais para compreender o
cursinho como um movimento social. Cheguei ao curso de formação, que acontecia desde o
período da manhã, no horário da tarde e atrasada, devido às fortes chuvas na cidade neste dia.
Ao chegar, deparei-me com alguns novos rostos e com o rosto conhecido de Will.
Desses rostos reconheci Lidiane, uma antiga professora de filosofia do cursinho
Marielle que estava na reunião que participei em 2018. Estavam presentes também Danilo, Tati
e Diego (professor de história) que, naquele momento, discutiam alguns textos do caderno de
formação que recebemos para orientar os debates nesses cursos. O caderno tem formato de zine,
na capa há uma ilustração com a frase “Educar, Organizar, Agir” e na página inicial há o índice
elencando os tópicos que conta com textos diversos, alguns textos acadêmicos de Silvio
Almeida, Angela Davis e Paulo Freire. Além de conter as propostas de organização e a Carta
de Princípios.

51
Não tenho anotações sobre este dia porque ainda não havia decidido atuar como pesquisadora.
52
Pois à época ainda não tinha certeza se tornaria esta minha pesquisa da dissertação. Ingressei no mestrado com
outro projeto.
63

Figura 1 – Caderno de Formação de Educadores Populares

Fonte: Acervo da autora (2020)

Tati, Will e Danilo integravam (no caso de Tati ainda integra) a coordenação do cursinho
Marielle, são militantes do Movimento Esquerda Socialista (MES), uma tendência interna do
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e também trabalham53 no gabinete de Sandro
Pimentel54. Tati é coordenadora nacional da Rede Emancipa e saiu de São Paulo para morar em
Natal em 2019 com a tarefa de ajudar na construção do cursinho Marielle e expandir os
cursinhos da Rede Emancipa no estado.
Danilo também é professor de geografia no cursinho, porém, diferente de Tati e Will,
sua atuação era mais episódica55 do que rotineira. Ele não costumava participar do cotidiano do
cursinho com tanta frequência e precisou se ausentar na metade do primeiro semestre de 2019.
Assim como Tati, Danilo também veio de São Paulo para morar em Natal em 2016 a trabalho
pelo partido, no caso, ele tinha como tarefa atuar no mandato de Sandro Pimentel. No ano
seguinte, junto a Will, fundou o Emancipa em Natal.

53
Will saiu do trabalho no gabinete e do PSOL na mesma época que deixou o cursinho. Tati e Danilo ainda
trabalhavam com Sandro Pimentel, em seu gabinete, durante a maior parte do período de escrita desta dissertação.
54
Sandro Pimentel foi eleito vereador de Natal, em 2012 e 2016, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
Em 2018 foi eleito deputado estadual, assumindo a cadeira na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte em
2019. Em outubro de 2020, teve seu mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e, mesmo após meses
de lutas travadas no âmbito do Judiciário com um pedido de embargo de declaração e nas ruas com atos de
apoiadores/as, a decisão judicial pela cassação se manteve.
55
Por “atuação episódica” me refiro a quem não vivencia o cotidiano do cursinho, mas também não está em
afastamento porque aparece vez ou outra para cumprir alguma tarefa. Alguns professores/as e estudantes costumam
ter essa atuação por motivos diversos.
64

É interessante observar que a coordenação do cursinho Marielle, desde seu início até o
ano de 202056, esteve com militantes do PSOL. Esse dado me fez refletir sobre como é estreita
a relação entre militância partidária e o movimento de cursinhos pré-vestibular popular. Não
apenas no tocante aos cursinhos da Rede Emancipa, mas há também outros casos que podemos
utilizar para analisar essa relação, por exemplo, o cursinho Podemos Mais57 está vinculado ao
Levante Popular da Juventude, tendência interna da Consulta Popular, organização próxima ao
Partido dos Trabalhadores (PT), e o Cursinho Popular Lima Barreto 58, vinculado ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Inclusive, o Podemos Mais começou sua atuação em Natal no
final de 2019 e retomou as atividades no formato remoto virtual durante o segundo semestre de
2020.
Com a chegada de Tati, a ideia era dividir as atribuições da coordenação que antes
ficavam centralizadas em Will, entre ela, Will e Danilo. Contudo, com a saída de Will (cerca
de três meses após a Aula Inaugural) e afastamento de Danilo, essa nova coordenação não se
concretizou. Nas palavras de Tati, a saída de Will foi uma “ruptura” para a qual nem ela (nem
ninguém no cursinho) estava pronta. Will, em entrevista que fiz com ele em 05 de fevereiro de
202159, falou sobre os motivos que o levou a deixar o cursinho e sobre o que o Emancipa
significa para ele hoje em dia:
Will: Olha, eu sinto um carinho grande pelo Emancipa porque eu aprendi muita coisa
e me permitiu fazer muita coisa. A primeira delas é coordenar. Eu nunca tinha
coordenado nada até o momento, assim, de movimento social e cursinho preparatório,
aí pra mim, eu sou muito grato pela oportunidade de pôr em prática os ensinamentos
que eu tive em relação à educação popular. Agora, acho que pra mim, eu tenho um
sentimento de gratidão ao movimento em si, mas não passa disso. Até porque eu vejo
os limites da direção do movimento e esses limites acabam impedindo que eu consiga
sentir alguma coisa a mais ou vislumbrar algo a mais… um movimento
qualitativamente maior [...] Um dos motivos, por exemplo, que eu saí foi porque eu
percebi que não dava pra eu ficar sozinho tentando colocar em prática uma educação
popular que só eu tinha interesse, então, o movimento consequentemente ia crescer e
outros coordenadores estariam no cursinho. Eu acredito na educação popular e
qualquer outra coisa além disso, não tá na minha alçada. Não desperta minha paixão.

Na mesma entrevista, Will revelou que iniciou seu trabalho na militância, através do
movimento estudantil na UFRN, atuando no Centro Acadêmico da Pedagogia60. Além disso,
contou que começou a estudar sobre educação popular através de um grupo de estudos, quando

56
Destaquei esse período de tempo porque, com o nascimento de novos cursinhos em 2020, novas coordenações
também surgiram e nem todas são militantes do PSOL.
57
Consultar: https://podemosmais.com.br/.
58
Consultar: https://pcb.org.br/portal2/18895/cursinho-popular-lima-barreto-uma-frente-de-
trabalho-junto-aos-jo vens-da-periferia/.
59
Fiz essa entrevista pessoalmente com Will, nos encontramos na praça de alimentação do Shopping Via Direta,
seguindo todos os protocolos de segurança para minimizar os riscos de transmissão da Covid-19.
60
Will não chegou a concluir o curso.
65

bolsista de iniciação científica, no Centro de Educação da UFRN. Em nossa


conversa/entrevista, Will apontou suas discordâncias com os rumos que a “direção” (como ele
chamou a coordenação, tanto nacional quanto estadual) da Rede Emancipa encaminha aos
cursinhos e sobre o planejamento coletivo dentro do Marielle em sua época. Reproduzo abaixo
parte do nosso diálogo:
Will: Acho que o ponto-chave desse planejamento é o Projeto Político Pedagógico
(PPP) do Emancipa que, até então, enquanto eu tava lá, não existia 61. E nacionalmente,
também era uma coisa que não existia, porque eu fui a primeira pessoa, estudante de
Pedagogia, a participar de uma coordenação, outras pessoas eram da licenciatura e as
pessoas da licenciatura não tem o mesmo contato com o PPP do que os pedagogos. E
aí foi quando eu expus essa necessidade, porque eu via o quanto era necessário ter um
Projeto Político Pedagógico pra gente definir nossos propósitos de forma mais clara e
a partir dessa definição, a gente conseguir ter um planejamento alinhado. E aí esse era
um entrave bastante grande quando a gente ia se reunir porque no início era algo muito
aberto… Cada professor planejava o que queria colocar na sala de aula, até porque
isso também é uma forma de atrair os professores, né? Cê se sente mais livre pra dar
sua aula, uma coisa que não acontece em escolas privadas e talvez nem nas públicas.
Aí, apesar de ser um atrativo pra os professores, eles também reconheciam essa
dificuldade e a necessidade de ter um planejamento coletivo... Aí avançou pouco [a
proposta do PPP], mas não por falta de disposição dos professores, foi mais por falta
de tempo, ter encaixe suficiente de agendas pra conseguir sentar e planejar um PPP…
As aulas em si já não davam, quem dirá um PPP
Juliette: Uma coisa que eu sempre fiquei muito preocupada, com essa falta do
planejamento coletivo, é que parece que cê tá fazendo uma coisa espontaneísta… E
que, no fim das contas, acaba sendo, mas não era pra ser assim. Deveria tentar o
máximo possível fazer esse planejamento coletivo acontecer pra reduzir ao máximo o
espontaneísmo. E assim tentar chegar a essa almejada educação popular que, apesar
de ser uma categoria disputada pelo movimento, ainda não é posta em prática
Will: Sobre isso, o Emancipa poderia ser bem mais articulado se a direção [nacional
e estadual] tivesse interesse [...] Uma das coisas que me incomodava era que eu me
sentia muito sozinho na missão de coordenação. Primeiro, pela formação [como
pedagogo]. Quem tava mais organicamente na coordenação era eu e Danilo e, assim...
Danilo licenciatura e uma atuação mais voltada pro mandato, uma atuação mais
partidária. E era sempre algo que não havia muita comunicação entre a gente… Eu
via necessidade de uma coordenação de fato: coordenar pessoas e processos
educacionais... E eu me sentia sozinho me preocupando com isso [...] A própria visão
também do que é educação popular... Pra Danilo e pra direção nacional do Emancipa,
educação popular é construção de base, trabalho de base, é a mesma coisa. Então, com
esse entendimento sobre educação popular, que é muito reducionista, fica difícil você
tentar ter alguma esperança de que o caminho vai ser outro se não o do trabalho de
base.

Quando, no primeiro capítulo, discuto conceitualmente a categoria “educação popular”


é para pensar seus diferentes usos e apropriações. Assim como é perceptível no trecho da
entrevista de Will, a concepção dele caminha em convergência com o modelo teórico-
metodológico proposto por Paulo Freire e em muito evoca as características comunitárias,
abordadas por Doimo (1995), dos movimentos populares e a relação com a institucionalidade,
como evidenciado por Rios (2018).

61
Ainda não existe, apesar de haver vontade por parte de alguns/as professores/as (inclusive eu) de pôr em prática.
66

Embora Will também fosse um quadro do partido, quando ele menciona a dificuldade
no diálogo com Danilo cuja atuação, em sua percepção, era mais partidária, há uma relação de
oposição à sua que estava mais direcionada à construção pedagógica. O conflito se dá porque
Danilo aparece como a figura que se apropria da categoria educação popular de uma outra forma
– denominada por Will, em outro momento da entrevista, como “educação partidária” que
discuto no capítulo três – e assim acontece uma disputa de narrativa em torno de qual a
apropriação correta e como usá-la dentro do cursinho.
Essa entrevista com Will foi extremamente elucidativa e a partir dela será possível
compreender muitos processos educacionais que acontecem no Marielle, inclusive grande parte
de seus “problemas estruturais” que serão adiante. A questão da reivindicação em torno da
categoria de educação popular e sua aplicabilidade é um desafio para todos/as do cursinho.
Constatamos com o resgate histórico-conceitual do primeiro capítulo que não há uma definição
única sobre ela, então, estando em disputa teórica, é compreensível que também seja disputada
na prática cotidiana do movimento social.
Além da coordenação, o Marielle também é organizado através dos núcleos
disciplinares que serão melhor trabalhados mais à frente. Através dos núcleos, o corpo docente
organiza o planejamento curricular para trabalhar com os conteúdos das disciplinas. Em 2019,
a intenção inicial é que cada núcleo tivesse um/a coordenador/a que se reuniria em uma data e
horário estabelecidos previamente para reuniões quinzenais com a coordenação geral, mas essa
ideia não deu certo na prática devido às incompatibilidades de horários dos/as professores/as.
No dia 09 de março de 2019, participei do planejamento das aulas semestrais do núcleo
de Humanas que aconteceu no condomínio da então professora de filosofia, Lidiane, no bairro
Ponta Negra. Participaram também Tati e Danilo, Diego e Élcio, professores de história, e
Paulo, novo professor de geografia, que se manteve durante um tempo no cursinho com Petrus,
que já atuava anteriormente também em geografia. Ambos estudavam juntos na graduação em
geografia da UFRN e foi a primeira experiência deles na docência.
Sobre a professora Lidiane, embora eu não tenha tido proximidade com ela, pois ela se
afastou do cursinho no início de 2019, pelo que eu pude entender a partir dos relatos de
professores/as antigos/as, ela era uma professora bastante atuante e costumava ser querida
pelos/as estudantes. Nos breves contatos que tivemos, ela se mostrou solícita e simpática.

3.1.1 Os espaços na UERN, Aula Inaugural e as turmas de estudantes


67

Até o segundo semestre de 2018, o cursinho Marielle funcionava na Escola Municipal


Iapissara Aguiar de Souza, no bairro Potengi, Zona Norte de Natal. Devido a questões quanto
ao uso do espaço da escola62, o cursinho precisou sair de lá e passou alguns meses sem um
lugar. Um tempo depois, o então deputado estadual Sandro Pimentel conseguiu o espaço no
campus da UERN aos sábados para o Emancipa, que, em princípio, tornar-se-ia um projeto de
extensão da universidade. O objetivo de tornar-se uma atividade extensionista não se efetivou,
mas ainda assim o espaço foi cedido com algumas problemáticas que em breve serão discutidas.
Esse espaço foi elaborado pela militância do cursinho a partir do discurso de “ocupar
simbolicamente uma Universidade Pública”. Esse foi também um dos motivos que levou a
equipe a se instalar na UERN. Além disso, a universidade oferecia uma ótima infraestrutura em
termos de salas, materiais para as aulas, espaços abertos e segurança.
O campus da UERN fica localizado na Avenida Dr. João Medeiros Filho, conhecida
como Estrada da Redinha, na Zona Norte de Natal. O campus é pequeno (se comparado ao da
UFRN no bairro Candelária, Zona Sul de Natal), sua estrutura física possui amplos espaços
abertos e amplas áreas de circulação com cobertura. O prédio onde nos reuníamos é circundado
por uma área muito verde. Na metade do ano de 2019, foi instalado um redário, entre as árvores
de frente à avenida, com redes de nylon. O lugar é ótimo, principalmente ao fim da tarde,
quando o sol já não toca aquela área e a brisa (devido à arborização) é fria. Era um dos espaços
de descanso no intervalo entre as atividades, principalmente para quem costumava passar o
sábado inteiro no cursinho.
Figura 2 – Corredor entre as salas da UERN

Fonte: Acervo da autora (2019)

62
A Escola Municipal Iapissara Aguiar de Souza precisou repor aulas aos sábados por causa de um período de
greve, por isso, as aulas do cursinho Marielle se tornaram inviáveis em decorrência das limitações físicas para
abrigar as duas atividades ao mesmo tempo.
68

A infraestrutura do campus é simples, com 13 salas, auditório e miniauditório,


biblioteca, laboratórios, banheiros e uma ampla área de convivência, onde aconteceu a primeira
Aula Inaugural e onde acontecia o almoço coletivo, chamado de “bandejão”. Nessa área, que
chamarei de “pátio”, estão dispostas algumas mesas de madeira com quatro/três cadeiras e
alguns sofás de pallet. Móveis decorativos que podem proporcionar uma sensação de intimismo
e conforto.
A disposição das mesas e cadeiras no pátio (organizadas para a socialização entre um
grupo) costumava ser ocupada por diferentes “grupinhos”, principalmente nos horários do
bandejão. No início do ano, os/as estudantes formaram seus grupos de afinidade a partir da
divisão por salas. Cada grupinho ocupava uma mesa, mas havia grupos que buscavam se
distanciar, procurando outros espaços fora do pátio ou se ficassem no pátio, buscavam ficar
longe das mesas. Os não estudantes, ou seja, professores/as e coordenação, costumavam sentar-
se à mesma mesa.
Ao longo do ano, à medida que aumentou a evasão de alunos/as, os grupos de estudantes
foram diminuindo e se integrando, assim como alguns/as começaram a se enturmar com
professores/as e coordenação. Isso pôde ser percebido na composição de grupos do pátio porque
os/as estudantes que se “enturmaram” começaram a sentar na mesa com os professores/as e
coordenação. A primeira aluna a se enturmar foi Rogéria e outros/as alunos/as próximos a ela.
O bandejão surgiu em 2018 devido à necessidade de estudantes que precisavam passar
o dia no cursinho e não tinham como comprar ou levar comida. Lembro-me, inclusive, de
Rolfran falar sobre isso quando ele era professor no cursinho. Em 2019, tínhamos um grupo no
WhatsApp, chamado Bandejão, para organizar esse almoço coletivo. Cada um/a que pudesse
levaria um prato de comida para dividir com os demais e no grupo eram organizadas listas com
o que cada um/a levaria.
Nos primeiros sábados, alguns/as professores/as e a coordenação até juntaram as mesas
do pátio para que todos/as pudessem comer juntos/as. Porém, na prática, o bandejão funcionou
poucas vezes, na maioria dos sábados os/as estudantes levavam suas marmitas para dividir com
seus pares e muitos/as (estudantes e também professores/as) não se engajaram no grupo de
Whatsapp para organizar o almoço coletivo.
Ademais, ao longo do texto, quando faço a distinção por papéis de “professores/as” e
“coordenação”, tende-se a pensar que essas fronteiras eram bem delimitadas e nítidas, mas, na
prática, não eram. Em relação à coordenação, todos/as sabiam que era Tati porque,
principalmente após a saída de Will, era ela quem estava em constante contato com estudantes,
69

atendendo às demandas e passando o dia todo no cursinho, todos os sábados. Porém, em relação
aos professores/as, principalmente devido à transitoriedade que já foi falada aqui, havia
confusões.
No início do ano, por exemplo, quando estávamos no horário do almoço, um aluno de
uma sala à qual eu ainda não tinha dado aula, perguntou-me: “você tá em qual sala?”,
confundindo-me com uma estudante. Eu ri e disse que era professora, ele riu também e falou
que “não parecia”. Ao longo da vivência no cotidiano do cursinho, os papéis se tornaram mais
sólidos, os/as estudantes reconheciam “aquela ali é a professora de sociologia” e o mesmo
acontecia com outros/as professores/as.

3.1.2 Aula inaugural

As aulas inaugurais são os momentos de apresentação da proposta político-pedagógica


da Rede Emancipa, é também o momento de recepção dos/as estudantes e de apresentação da
equipe. Um momento primordial para os cursinhos da Rede. A primeira Aula Inaugural de 2019
aconteceu no dia 16 de março, no turno da manhã, 9h às 12h. O pátio estava cheio, dezenas de
estudantes distribuíam-se por cadeiras de plástico que ocupavam uma boa parte do espaço. As
cadeiras estavam postas de modo que todos/as pudessem ouvir quem, e ver o que, estava à
frente: as bandeiras do Emancipa, duas delas com o rosto de Marielle estampado, e as falas da
equipe e dos/as militantes ao microfone.

Figura 3 – Aula Inaugural

Fonte: Acervo da autora (2019)


70

Figura 4 – Encerramento do primeiro momento da Aula Inaugural no pátio da UERN

Fonte: Desconhecida (2019)

Danilo iniciou as apresentações com uma interessante “dinâmica das cadeiras”


(remetendo à tradicional brincadeira da Dança das Cadeiras). Ele convidou quatro estudantes a
disputarem uma cadeira, fazendo daquele momento uma metáfora para iniciar o debate, central
à Rede Emancipa, sobre as desigualdades sociais no acesso ao Ensino Superior. A cadeira
representava o diminuto número de vagas e as estudantes – dançando em círculos ao redor dela
para poderem sentar – seriam concorrentes à vaga. A fala dele finalizou com a elucidação da
proposta do cursinho: não é apenas inserir estudantes populares na universidade pública, é
também a luta pela “ampliação das cadeiras”, ou seja, do número de vagas, para que todo/as
pudessem ingressar.
Após Danilo, Tati fez uma fala em que destacou sua atuação política enquanto mulher
negra e a relação entre o racismo e as desigualdades na formação educacional, apontando para
as oportunidades de a população negra ingressar no Ensino Superior. Will, na sequência, fez
uma breve apresentação – de si e do Marielle desde 2017 – menos inflamada do que as
anteriores, e chamou cada um de nós, professores/as presentes, a nos apresentarmos. Dois
“colaboradores”63 do cursinho Marielle também tiveram seu momento de apresentação: uma
militante do Juntos (movimento juvenil do MES/PSOL) e Sandro Pimentel. Ao término deste
primeiro momento, Bia, uma das professoras de português, recitou um poema em homenagem

63
Como são apresentados/as pela coordenação.
71

à Marielle Franco e todos/as que estavam presentes tiraram uma foto segurando a placa alusiva
à Rua Marielle Franco64.
O momento seguinte foi de confirmação das matrículas e divisão dos/as estudantes por
salas. O semestre começou com cinco turmas cheias (entre 30 e 40 estudantes), chamadas de
B1, B2, B3, C1 e C2 (numeração das salas da UERN). Em relação às turmas, apesar de elas não
terem se mantido até o fim do ano devido à evasão de estudantes que fez com que algumas
ficassem juntas (por exemplo: C1 e C2 se tornaram só um C, assim como as turmas B), foi
interessante perceber como, de início, cada uma tinha sua peculiaridade.

3.1.3 Turma de estudantes

A turma C1 tinha alguns/as dos/as estudantes mais expressivos/as e quem mais se


destacava era Rogéria65. Ela tinha uma sede de questionamento que estimulava os colegas da
turma a fazerem o mesmo. Era uma turma que, particularmente, eu gostava muito de dar aula.
Pelo fato de eu lecionar sociologia e ser adepta de uma metodologia mais dialogada, os
questionamentos delas/es tornavam as aulas mais dinâmicas. Porém, para outros/as colegas
docentes, a turma não era muito bem-vista por causa de seu perfil inquieto e pouco atento às
aulas (mas muito atentos/as a qualquer assunto que pudesse gerar um debate).
As turmas B1 e C2 eram as mais quietas. A quietude dos/as estudantes que estão apenas
de corpo presente na sala e também daqueles que estão muito adaptados ao modelo
convencional de aula expositiva. Nas minhas aulas, eu costumava tentar metodologias que
fizessem os/as estudantes interagir. Planejava dinâmicas e jogos a fim de estimular debates e
reflexões nos quais eu tivesse papel de mediadora. Porém, o cotidiano da sala de aula, às vezes,
mostra-se muito diferente do que idealizamos.
A concepção de educação bancária como instrumento de opressão e hierarquização do
saber (FREIRE, 1994) e dos papéis em sala de aula (professor/a, aluno/a e as expectativas de
comportamento que cada papel gera) molda toda a nossa trajetória enquanto estudantes, desde
a Educação Básica até a Superior. Nossos corpos e mentes adaptam-se a esse modelo de modo
que é difícil sairmos dele. É difícil falar em sala de aula, quando passamos uma vida inteira

64
Essa placa tornou-se um símbolo de diversos protestos principalmente após a imagem de três homens, dois
deputados filiados ao Partido Social Liberal (PSL) e o governador afastado do Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC),
destruindo uma dessas placas e celebrando o feito, ter sido publicada nas redes.
65
Rogéria será melhor apresentada no próximo capítulo.
72

acostumados a apenas ouvir, é difícil refletir em sala de aula, quando passamos toda a vida
absorvendo as reflexões de outrem: o/a docente.
De certo modo também é confortável, inclusive para estudantes, apenas sentar na sala e
esperar a aula acabar. Tive alguns/as professores/as durante a minha graduação que tentaram
metodologias dialogadas, mas algumas vezes eu estava cansada demais para ser participativa
ou simplesmente com preguiça (porque, como falei, o modelo de aula tradicional é mais
cômodo). Por isso, embora eu ficasse um pouco frustrada quando o planejamento da aula não
saía como esperado, buscava compreender a realidade das turmas.
A turma B2 era a mais inquieta e que menos interagia com as aulas de professores/as.
Suas interações eram entre si com conversas sorrateiras, saídas da sala, risadas discretas. Já a
turma B3, ainda que também tivesse esse perfil, também tinha figuras expressivas que
interagiam com a aula quando o assunto poderia gerar um debate. Além disso, as turmas B3 e
B2 eram as mais homogêneas em termos de faixa etária. A maioria eram adolescentes, diferente
da C1 que tinha maior oscilação de idade, sendo a maioria adultos. Em termos de gênero, a
maioria das estudantes eram mulheres (como será mostrado com dados mais adiante). Em
termos de raça, a maioria de estudantes é não-branca (também será mostrado em dados
quantitativos). As mulheres e os/as estudantes não-brancos/as tiveram o menor índice de evasão
ao longo do ano.
Em relação à disparidade da evasão no tocante ao gênero, o Dossiê Mulheres Negras
(MARCONDES et al., 2013) aponta que, em muitos estudos sobre o tema, percebe-se que o
desempenho educacional de mulheres, nas várias modalidades de ensino, costuma ser melhor
comparada aos homens. Aponta-se, entre as causas para explicar este “relativo sucesso
feminino”, a necessidade dos homens de ingressar mais cedo no mercado de trabalho devido à
pressão das famílias ou devido à pobreza.
Por fim, é importante destacar como se deu nossa relação com os espaços da UERN no
ano de 2019 e que acabou por motivar, em partes, a decisão de sair do campus e retornar a uma
escola em 202066. Em tese, tínhamos todos os espaços do prédio disponíveis para o cursinho
aos sábados. Costumávamos utilizar as salas de aula, o pátio e os banheiros. Todos os sábados,
os vigilantes do campus abriam e fechavam as salas, os banheiros e qualquer outro espaço que
viéssemos a utilizar, de modo que eles tinham o controle dos nossos horários de saída e entrada.

66
Iniciamos o ano de 2020 na Escola Estadual Walter Duarte Pereira, bairro Potengi na Zona Norte. Devido à
pandemia e a interrupção das aulas presenciais em todas as instituições de ensino, só tivemos uma aula nesta
escola, no dia 14 de março.
73

Ao longo do ano, houve ocasiões de conflitos com vigilantes da UERN que geraram
alguns incômodos para as pessoas do cursinho, e provavelmente também para eles. Segundo
relatos que chegaram a mim através de Tati, alguns vigilantes começaram a seguir estudantes e
exercer uma postura de vigilância, geralmente isso acontecia próximo às 16h, horário que estava
perto de encerrar as aulas e atividades do cursinho. Essa atitude foi interpretada como uma
demarcação dos/as estudantes como “estranhos” naquele espaço e potencialmente perigosos.
Na metade do ano, começaram as festas juninas no campus (para as pessoas da UERN,
não para nós do cursinho), de modo que o pátio começou a ser ocupado pela decoração, mesas
e palco da festa – coube a nós ocupar os corredores entre as salas, não podendo mais utilizar o
pátio. A festa junina também forçou nossas aulas a terminar até uma hora mais cedo, devido ao
som muito alto que atrapalhava as aulas.
Além disso, houve situações, na metade do ano, em que algumas salas passaram por
uma breve reforma e a coordenação do cursinho foi avisada com apenas um dia de antecedência.
Tivemos que improvisar um “aulão” no miniauditório, com todas as turmas juntas, o que mexeu
na dinâmica da grade horária do dia e deixou os/as estudantes dispersos/as e
desconcentrados/as.
Essas problemáticas serviram como argumento para a mudança de local do Marielle,
que, em 2020, começou na Escola Estadual Walter Duarte Pereira. Outra razão apontada pela
coordenação, é a tentativa de construir uma relação do cursinho com a comunidade do bairro
no qual ele está inserido. Esse é um dos princípios da Rede Emancipa, que também se proclama
como um Movimento Social das Periferias, e o argumento em torno da coordenação é que o
espaço da UERN não proporciona uma integração com o cotidiano da população do bairro
Potengi.

3.2 A equipe do Cursinho Marielle Franco e as formas de atuação: núcleos


interdisciplinares e “metodologias alternativas”

3.2.1 PSOL, MES, Juntos e Sandro Pimentel como colaboradores

Neste ponto, apresentarei algumas pessoas da equipe que vivenciaram o cotidiano do


cursinho Marielle Franco em 2019. Tati, Jaci e Rogéria serão apresentadas com mais ênfase no
próximo capítulo, portanto, pretendo agora apresentar outras figuras. É necessário pontuar que
não tenho condições de apresentar todos/as que atuaram no cursinho devido à transitoriedade e
o grande fluxo de pessoas. Apresentarei aquelas que tiveram uma vivência cotidiana, outras
74

com quem tive mais contato e algumas pessoas conhecidas como “colaboradores/as”, assim
chamadas pela coordenação do cursinho. São pessoas que, embora não vivenciem o cotidiano,
tem uma atuação importante em outras esferas propiciando muitas vezes condições materiais
para desviar dos problemas estruturais do cursinho. No capítulo três veremos como essa
colaboração é produzida dentro de uma estreita relação partidária.
Mencionei anteriormente que a Aula Inaugural contou com a presença de uma militante
do JUNTOS e Sandro Pimentel. A primeira questão a se considerar aqui é que a colaboração
do JUNTOS não é aleatória, assim como o vínculo entre a Rede Emancipa e o MES/PSOL.
Entre outras oportunidades, isso é perceptível, por exemplo, nos atos de rua, protestos,
passeatas. É comum vermos as duas bandeiras juntas: a amarela do MES/JUNTOS/PSOL e a
verde do Emancipa. Por isso, com o intuito de evidenciar essa relação, em eventos públicos do
Emancipa, como a Aula Inaugural, algum/a militante do MES/PSOL costuma estar lá e fazer
uma apresentação de si e da corrente partidária.
Desse modo, o primeiro colaborador que trago aqui é o próprio PSOL e o outro
colaborador é Sandro Pimentel. Embora não participe do cotidiano do cursinho, ele é
evidenciado como um importante aliado para o movimento social por ocupar uma cadeira na
Assembleia Legislativa do RN, e ser um elo com a política e setores institucionais de órgãos
estatais, tanto que foi através dele que em 2019 o cursinho conseguiu um espaço na UERN.
Danilo, em entrevista realizada no dia 04 de fevereiro de 2021 pelo Google Meet, tratou
um pouco sobre a entre Sandro Pimentel e o Marielle:
Danilo: O Sandro é um cara do interior, que foi morar em casa de estudante, que foi
acessar a universidade [UFRN] com quarenta anos porque era vigilante dela,
funcionário dela, foi fazer sua graduação já mais velho, então, dá pra enxergar o
Sandro em alguns alunos nossos que voltam a estudar depois de muito tempo
trabalhando, pensando no sonho de entrar na universidade… Talvez por isso ele não
só ajudava o Emancipa financeiramente, como havia também uma ajuda indireta. Por
exemplo, primeiro eu era o chefe de gabinete do Sandro, então eu dedicava minhas
sextas e meus sábados pro Emancipa. Então, ele abria mão de um funcionário dele, se
tinha reunião que seria com o chefe de gabinete na sexta, ele ia. Se tivesse duas
reuniões ou ele ia nas duas ou ele remarcaria uma, ele não pediria pra mim. Da mesma
que a ajuda estrutural, tipo com impressão67, essas coisas, nunca faltou. Assim como
nos festivais do Emancipa, se precisava de um som, o cara fazia questão de pegar o
som que ele tinha na casa dele e ir lá e instalar... Então, os apoios acabam girando em
torno disso.

Tati, em algumas conversas, também chegou a mencionar esse apoio indireto de Sandro
ao cursinho no tocante à disponibilidade de funcionalidade. Ela, que também trabalha no
gabinete, chegou a dizer que não teria o mesmo tempo para dedicar ao Marielle se Sandro não

67
Impressão dos materiais utilizados para as atividades educacionais. Por exemplo, eu muitas vezes usei esse
estoque para imprimir as listas de exercícios e outras atividades que preparava para os/as estudantes, assim como
outros/as professores/as.
75

viabilizasse esse tempo. E é notório que essa viabilidade só é possível porque há uma
interlocução entre a figura política de Sandro Pimentel com o Emancipa. Há um apoio mútuo
entre a institucionalidade representada por Sandro que provém algumas condições materiais de
existência ao cursinho e o apoio ideológico do movimento social ao seu mandato e sua figura
política.
Não tenho acesso a como as outras pessoas atuantes na equipe interpretam a aparição
episódica dos/as colaboradores/as, mas, desde a época em que atuo no cursinho, nunca
presenciei grandes conflitos em torno dessa relação. Com efeito, como veremos no capítulo
três, em períodos eleitorais nos quais a interlocução com o partido se faz mais presente,
alguns/as professores/as costumavam demonstrar apoio, e aqueles/as que se eximiram não
buscavam contestar. Isso em relação tanto à candidatura de Sandro Pimentel como, de forma
mais evidente, durante a candidatura de Tati, até porque ela é o principal rosto do cursinho e a
quem foi delegada a competência de representá-lo nas disputas eleitorais de 2020.

3.2.2 Professores/as e coordenação

3.2.2.1 O Marielle sob a coordenação de Will

Trato de forma mais aprofundada o debate sobre a coordenação no capítulo três. Nele,
atento à importância desse espaço como construção política e imagética do movimento social e
as interlocuções, a partir dele, entre o cursinho e a institucionalidade. Por ora, farei apenas
algumas considerações iniciais sobre o que significa essa coordenação dentro do Marielle e
sobre a relevância de Will enquanto figura central, antes da chegada de Tati. É válido ressaltar
que, acerca do período de Will enquanto coordenador, são ponderações de uma pessoa que
esteve “de fora” do processo, como observadora distante e não como atuante.
Inicialmente, Will e Danilo integravam a coordenação e foram eles que deram o pontapé
inicial para a construção do Emancipa em Natal. Apesar de ambos terem sua atuação como
coordenadores (e no caso de Danilo também como professor de geografia), de acordo com os
relatos de professores/as que trabalharam no cursinho desde o início em 2017, Will era a pessoa
que tocava a maioria das atividades, sendo descrito por alguns/as como “a pessoa que fez o
Emancipa acontecer”.
A coordenação do Marielle, desde 2017, funciona como um elo entre a
institucionalidade partidária e a qualidade comunitária do cursinho. Também é um espaço de
interlocução entre o cursinho e a Rede. Para quem está dentro do Marielle, a coordenação tem
76

como funcionalidade nos organizar estruturalmente e tem como papel encarnar o projeto
político-pedagógico para orientar as práticas educativas. É perceptível que são muitas as
atribuições de uma coordenação, ainda mais levando em consideração o volume de pessoas cujo
fluxo é inconstante. Por isso, mais acima trouxe uma conversa com Tati na qual ela destaca que
não teria como dedicar o mesmo tempo ao Marielle se Sandro, seu patrão dentro das relações
trabalhistas, não viabilizasse esse tempo. Por este mesmo motivo, Will dedicou uma grande
parte da sua vida ao cursinho.
É interessante observar a importância política de Will à frente do Marielle e, de antemão,
atentar a como o “perfil Emancipa” – que será trabalhado no próximo capítulo – é assentado,
desde o início, na militância antirracista. À época havia dois coordenadores, e observando os
marcadores identitários no corpo de Will, por ser um homem negro, gay e nordestino, ao
contrário de Danilo, um homem branco, heterossexual e sudestino (paulista), é perceptível que
a narrativa política em torno do projeto político-pedagógico do cursinho torna-se mais
verossímil e palatável para diversos segmentos da militância68 com Will encabeçando-a.
A importância dos marcadores de raça, de sexualidade e as “clivagens regionais”69 dá-
se devido as pautas que anunciam, cujo debate gira em torno, respectivamente: do racismo
estrutural na sociedade brasileira, da opressão social de grupos cuja orientação sexual,
identidade e expressão de gênero são dissidentes dos padrões estabelecidos a partir de uma
lógica heteronormativa e das violências regionais engendradas a partir da produção, pelo
Estado, pela cultura, pela linguagem, do “regionalismo de inferioridade”, em relação ao
Nordeste, a partir de recortes espaciais que reproduzem relações de poder (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2011).
Sendo uma figura central e o rosto do Emancipa na cidade entre 2017 e 2019 (antes de
sua saída), Will espelhou debates gestados dentro do cursinho e uma apropriação da educação
popular que foi, em certa medida70, aplicada por ele durante sua coordenação e incorporada
como narrativa oficial do cursinho por quem observava “de fora”. Conforme o direcionamento
de Will, que sempre demonstrou uma maior disposição à formação pedagógica do que política,
apontava ao horizonte das propostas pedagógicas freireanas e na mesma medida ofuscava as
relações do cursinho com o partido, atraía-se àqueles/as autonomistas, anarquistas e pessoas

68
Essa questão será melhor trabalhada no capítulo três quando farei um debate com Bourdieu (2004) sobre
delegação e fetichismo político.
69
Categoria utilizada pela pesquisadora Carla Akotirene.
70
Como mencionei anteriormente, havia uma disputa de narrativa em torno da categoria e, além disso, o
direcionamento da Rede e a própria intercessão do partido. De maneira que não dá para afirmar a apropriação de
Will como prevalecente. Ainda mais porque, em diversos momentos da entrevista trazidos ao longo do trabalho,
ele mesmo afirmou as dificuldades que teve para coordenar.
77

sem vinculação ideológica, mas engajadas na educação. Por isso, em 2019, nota-se na equipe
docente uma grande diversidade de profissionais que, aliás, contrasta com o perfil da
coordenação e do corpo estudantil.
Will mobilizou os aspectos mais comunitários da concepção de educação popular,
então, era comum evocar características como altruísmo e coletividade no modo como a
proposta político-pedagógica do cursinho era apregoada. Não pretendo dizer com isso que tais
características sumiram do repertório habitual ao cursinho, elas ainda são mobilizadas pelo
movimento social, porém, a própria proporção que o Emancipa tomou no RN, somado a um
“giro” orientado à política institucional (como veremos no próximo capítulo), altera essa
imagem construída outrora durante a gestão de Will.

3.2.2.2 Algumas figuras da equipe docente71

Começando a apresentação dos/as professores/as por núcleos e pelo de Humanas, uma


das professoras deste núcleo sou eu. Formada no bacharelado em Ciências Sociais pela UFRN,
cursando a licenciatura em Ciências Sociais e o mestrado em Antropologia Social, me inseri no
cursinho como professora de sociologia. Outro professor de sociologia que entrou comigo em
2019 é João Victor, também estudante de Ciências Sociais. No recrutamento do início do ano,
onde tentamos captar mais professores/as, chamei alguns colegas de curso e João foi um dos
que se dispôs, à época ele estava no segundo ano da graduação.
Os professores de história, Diego e Élcio, estão no cursinho há mais tempo. Diego está
desde o início, em 2017. Ao longo do ano ele foi o facilitador de muitas oficinas no cursinho
com seu projeto de jogos pedagógicos RPG72, inclusive, participamos de algumas juntas. Diego
sempre foi bastante atuante, tanto nas aulas, como também nas reuniões e nos acompanhando
nas idas ao barzinho. À época, ele estava numa pós-graduação em arquitetura e é graduado em
história. Já Élcio trabalha como professor de história em instituições escolares da rede privada.
Ambos têm marcadores sociais parecidos, são homens, brancos e heterossexuais, mas perfis
diferentes, Diego é mais reservado, Élcio mais extrovertido.

71
É válido ressaltar que não tenho condições de apresentar toda a equipe docente. Já mencionei as transitoriedades
do cursinho, o que torna inviável, para mim, conhecer todo o quadro, então, priorizei as pessoas com quem tive
maior contato e que atuaram no cursinho em 2019.
72
Jogos de RPG (abreviação para a expressão Role Playing Games) são jogos de interpretação de papéis no qual
cada jogador interpreta um personagem e cria narrativas a partir de um cenário.
78

Em entrevista realizada com Élcio pelo WhatsApp em 19 de outubro de 202073, ele falou
sobre motivações e compreensões sobre o cursinho e sobre sua atuação anterior com alguns
projetos cuja proposta orientava-se pela educação popular.
Élcio: Minha motivação foi inicialmente continuar atuando com educação,
compreender os desafios para ingresso no Ensino Superior, ouvir e aprender com
estudantes. Compreendo a Rede Emancipa como um Movimento Social em constante
transformação, mesmo tendo a educação como prática, sua capacidade de articulação
entre ações políticas, econômicas, sociais e culturais é sua capacidade de continuar
sua existência.

Élcio desde 2019 é bastante atuante no cursinho e agora em 2020, assumiu muitas
demandas. Sobre suas outras experiências como educador popular e como se sente dando aula
no Emancipa, Élcio disse:
Élcio: Sim, em 2016/2017 [sobre sua atuação anterior como educador popular]. No
Cursinho da Mística, juntamente com Grupo Teatral de Dramaturgia Rural, em
Santana de Parnaíba-SP, nossas ações eram articuladas entre voluntariado-
permacultura-dramaturgia-educação. Assim, me sinto bem [Sobre como se sente
dando aula no cursinho]. Capaz de propiciar que cada pessoa possa compreender que
a construção coletiva é parte de um de muitos processos de crescimento pessoal,
embora desafios pessoais, seja individual ou de terceiros, fazem compreender que a
continuidade não é necessariamente uma obrigação, porque a aula é o momento único,
mas as ações e rotinas são necessárias para que esses momentos continuem e
possibilitem as transformações necessárias, o bem coletivo do movimento.

Sobre o núcleo de Tecnológicas, há o professor de química Mike e os professores de


física Diego e Sérgio. Mike também está no cursinho desde o início e, apesar de ter se afastado
no início do ano de 2019, ele costumava ser bastante atuante nos anos anteriores. Mike é uma
“bicha pintosa”74 que é bastante expressivo e expansivo, formado na licenciatura em química
pela UFRN. Em entrevista realizada pelo Telegram, Mike falou um pouco sobre sua atuação,
motivações e sobre o que o cursinho representa em sua perspectiva.
Mike: Essa pergunta sobre ‘o que é o Emancipa pra mim’ é muito... [pausa] Eu acho
que teve momentos. Durante a minha trajetória no Emancipa, eu já tive vários
pensamentos distintos sobre o que é o Emancipa. Só que se você perguntar pra mim o
que é o Emancipa hoje, pra mim ele representa o espaço onde eu posso agir de maneira
política e social. Pra mim é esse o espaço, o espaço da educação popular, é minha
profissão que é ser educador, não digo nem tanto ser professor, mas ser educador
mesmo, no sentido integral da palavra. Ser o cara que além de discutir conteúdos
programáticos, discute a realidade dos alunos, da sociedade. Pra mim, o Emancipa é
esse espaço.

73
Realizei nesta mesma data entrevistas virtuais pelo WhatsApp e Telegram também com Mike (professor de
química), Bia e Denise (professoras de Letras – Língua Portuguesa). Devido ao isolamento social provocado pela
pandemia de Covid-19, não tive como manter a mesma proximidade e relacionamento que tive com as pessoas do
cursinho em 2019, então, muita coisa perdeu-se nesse processo, e as redes sociais não foram suficientes para suprir
as faltas. Optei, pois, por entrevistas curtas, com questões amplas, para não tomar muito tempo das pessoas,
deixando-as à vontade para responder como achassem mais viável (áudio ou escrita).
74
O termo “bicha pintosa”, no jargão usado pelas pessoas LGBTI+, indica um homem gay com trejeitos
afeminados.
79

Achei interessante a distinção que Mike faz sobre ser “educador” e “professor” porque
introduz o debate sobre as práticas educativas do movimento social. Em diversos momentos,
eu também cheguei a fazer as mesmas relações e nas vezes que me afirmei como “educadora”
foi para destacar meu trabalho na educação popular, como se o “professora” não fosse suficiente
para isso. E, de fato, para os propósitos de um projeto político-pedagógico que reivindica a
educação popular, não o é. A categoria “educador/a” relaciona-se de um modo mais amplo à
construção de práticas educativas de formação com um caráter popular, enquanto “professor/a”
revela um caráter mais tecnicista do ofício, pois se relaciona com as práticas educativas de
escolarização.
Em seu texto Educação e Participação Comunitária, Freire (2001) debruça-se sobre uma
análise crítica da prática educativa e da compreensão de uma participação comunitária que está
intimamente relacionada ao fazer educativo popular.
Me parece que o primeiro aspecto a sublinhar é que a prática educativa é uma
dimensão necessária da prática social, como a prática produtiva, a cultural, a religiosa
etc. Enquanto prática social, a prática educativa, em sua riqueza, em sua
complexidade, é fenômeno típico da existência, por isso mesmo, fenômeno
exclusivamente humano. Daí, também, que a prática educativa seja histórica e tenha
historicidade. (FREIRE, 2001, p. 34)

Enquanto prática social, a prática educativa é reveladora de uma orientação política que
é pessoal, institucional e organizacional. A escola, enquanto instituição reprodutora de uma
ideologia social, com seus mecanismos de funcionamento interno que se baseiam – não apenas
– em hierarquização de papéis, mecanismos de controle e coerção, reproduz isso – em maior ou
menor medida, a depender de diversos fatores e de como o/a docente conduz suas práticas - em
suas práticas educativas de escolarização. Enquanto o movimento social, que seja orientado por
um viés progressista, como é o caso do Emancipa, reproduz em suas práticas educativas de
formação alguns componentes fundamentalmente democráticos que são orientados por valores
construídos na militância. Freire (2001) fala sobre uma “diretividade da educação” que não
permite, nem induz, à falsa neutralidade e coloca como imperativo a participação do sujeito
educando/a em seu processo de aprendizagem.
Mike foi um dos primeiros professores/as do cursinho mantendo-se nele desde 2017,
assim como Bia (professora de português) e Diego (professor de história)75. Ele também conta
como conheceu o cursinho:
Mike: Em 2017, aparece numa página de Facebook um anúncio informando que um
cursinho chamado Emancipa tava precisando de professores de química para dar aula
no formato voluntário. E aí o que aconteceu, era uma oportunidade perfeita pra eu

75
Bia e Diego estiveram afastados do cursinho em 2020, mas foram bastante atuantes em 2019. Mike precisou se
ausentar no segundo semestre de 2019, mas voltou em 2020.
80

colocar em prática tudo que… [pausa] Assim, “dar aula” é toda a questão do “ser
professor” [...] Você só aprende a ser professor quando você tá na posição de
professor, quando você dá aula [...] Pra mim, aquele momento era o aprimoramento
da minha profissão e aí a coisa do voluntário tinha sido um pouco da experiência que
senti em 2015 [projeto voluntário de uma professora universitária com estudantes da
licenciatura para dar aulas em uma escola que não tinha o quadro de professores/as
completo] que você passa pela sensação de tá retribuindo para a sociedade.

É notório, na fala de Mike, como o Emancipa – reflito aqui de forma ampla, não apenas
o cursinho Marielle – pode representar muito e pode ser várias coisas para várias pessoas.
Em relação aos professores de física, é importante destacar que evidenciar as
sexualidades dos professores elencados a seguir, especialmente pondo-as em contraponto com
Mike, foi uma forma de demonstrar as diferentes expressões de masculinidades e quais as
implicações no cotidiano do cursinho, tendo em vista que há relações de trabalho e de amizade
sendo construídas entre todos/as. Em relação às professoras, imagino que todas sejam
heterossexuais, com exceção de Bia que mencionou ser bissexual em uma conversa, mas não é
possível afirmar com certeza, pois não foram perguntas que fiz a elas. Além disso, a única
professora que analisei com uma expressão de feminilidade destoante fui eu, por estar há anos
em um processo de desfeminilização76 perceptível na minha estética a partir, prontamente, de
alguns marcadores como o cabelo curto e as roupas largas.
Sérgio é o típico “hetero brincalhão” que constantemente faz piadas (sempre de forma
comedida para não soar ofensivo) e é alvo dos deboches de todos/as no cursinho que usam esses
marcadores sociais para fazer brincadeiras com ele. Diego é mais reservado, tem um estereótipo
do “hétero de humanas”: roupas largas, cabelo longo com dread, discurso revolucionário na
ponta da língua. Imagem esta que não costuma ser muito associada a professores de exatas.
Diego ainda estava na graduação em física e Sérgio, já formado, atuava como professor em
escolas.
Sobre o professor de matemática, Jomack, ele foi o único professor dessa disciplina ao
longo do ano. Jomack, tem seus 40 anos e já possui uma trajetória na docência. Destaca-se por
ser o professor mais velho num espaço onde o perfil etário de professores/as é jovem (entre 20
e 30 anos). Talvez esse seja um dos motivos pelos quais não tive muito contato com Jomack ao
longo do ano, como também o fato de ele ser mais reservado. Jomack chegava no cursinho no
horário de sua aula e saía quando sua aula acabava, às vezes participa de alguns círculos 77 ou
oficinas, mas nunca o vi em espaços de socialização como o bar.

76
Consultar: https://qgfeminista.org/o-tabu-da-rejeicao-as-normas-de-beleza/.
77
Lembro-me da presença dele no círculo que mediei sobre Criminalização da LGBTfobia.
81

Sobre o núcleo de Linguagens, foi o núcleo mais defasado devido à disponibilidade das
professoras. Bia está no cursinho desde 2017, é graduanda em Letras - Língua Portuguesa e
também é professora em instituições escolares, além de dar aulas particulares. Bia é expansiva,
extrovertida e divertida. Ela, Jaci e Tati eram as que quase sempre iam para o barzinho ao fim
da tarde. Os relatos de Bia sobre sua experiência no cursinho são carregados de muito afeto.
Com Denise e Salviana, não tive a oportunidade de ter muito contato em 2019. Salviana ainda
encontrei mais vezes, nas reuniões e uma vez no bar.
No segundo semestre, uma nova professora entrou no cursinho para integrar a equipe
de linguagens dando aulas de redação. Mari entrou a pedido de Tati, apesar de ser formada em
jornalismo, à época trabalhava com ela e também é militante do MES/PSOL. É interessante
como, em muitos momentos, o partido aparece como um viabilizador da educação popular. No
caso, quando em 2018 o cursinho ficou sem um lugar porque precisou sair da escola Iapissara,
Sandro Pimentel, enquanto figura política institucional, viabilizou o acesso à UERN. E, no caso
desta professora Mari, reflito que sua atitude de dar aulas para preencher o quadro foi mais uma
tarefa militante do que uma tarefa de ofício (até por ela não ser formada numa licenciatura), e
as aulas foram importantes para diminuir o déficit na disciplina. Ou seja, o partido aparece
como uma infraestrutura necessária ao cursinho.
Em entrevista, Bia e Denise falaram um pouco sobre sua trajetória no Emancipa.
Bia: Quando eu soube do Emancipa, eu tinha acabado de entrar na universidade e eu
estudei em escola pública, né? Então, eu não fazia ideia do ‘baque’ que seria [ingressar
na universidade] e aí eu desenvolvi ansiedade e tinha ataques de pânico ao menos uma
vez na semana, mas eu não queria tomar medicação [...] E aí, conversando com uma
das meninas da minha turma, Renata, ela falou do Emancipa. De início, eu nem liguei,
passou despercebido. E aí minha psicóloga disse: “Beatriz, já que você se recusa a ir
num psiquiatra pra ele lhe passar medicação, tente ter algumas distrações, algumas
atividades”. E aí, eu fui perguntar à Renata como tinha sido esse ‘rolé’ do Emancipa,
aí ela me explicou e eu fui. No primeiro dia eu já me apaixonei completamente, então,
o que o Emancipa é pra mim [referindo-se à minha pergunta], foi totalmente minha
válvula de escape, meu porto seguro, eu sempre me emociono quando falo do
Emancipa porque me tirou de uma fossa, sem igual, me ajudou demais. Então, acho
que pra mim o Emancipa é isso, amor, alegria, sentimentos bons [...] Eu costumo dizer
que o Emancipa me tornou a professora que eu sempre quis ser e achei que jamais
seria. Eu sinto que lá eu tenho uma liberdade de realmente ser professora [...] Não é
uma coisa robótica, sabe? Não é engessado.

É interessante como o cursinho aparece aqui como um “espaço de cura” e de


“liberdade”. Assim como de “experimentação”, professores/as novos/as que começam a se
experimentar na docência no Emancipa. Meu caso, inclusive, se enquadra neste.
Denise: [Minha motivação] Foi fazer trabalho voluntário e retribuir um pouco à
sociedade a formação que tive. O Emancipa é mais do que um cursinho popular, é um
movimento social com objetivo de emancipar as pessoas das periferias ou em
vulnerabilidade social, fazendo delas cidadãs críticas e co-partícipes da política na
sociedade. A entrada na universidade compõe uma dessas formas de emancipação [...]
82

Sinto-me bem [Sobre como se sente dando aula no cursinho] e contribuindo com a
sociedade de alguma forma.

A perspectiva de “retribuição”, que também aparece na fala de Mike e é tema presente


no capítulo três, é muito importante porque é norteadora de muitas motivações para os/as
professores/as. Por isso, trouxe acima um trecho da entrevista com a professora de Letras
Denise que também relatou suas outras experiências, anteriores ao Marielle, como educadora
popular, dando aulas em um projeto da UFRN chamado “Elo Universitário”, que hoje em dia
não existe mais, e durante um ano atuando com oficinas de letramento no CEDECA Casa
Renascer78, uma ONG localizada no bairro Petrópolis em Natal que atua com crianças e
adolescentes em situações de risco.
É possível perceber que, dentre as motivações elencadas, há muito o sentimento de
voluntariado, confiança no cursinho enquanto um movimento social com potência política para
transformar realidades, experimentação da docência em um espaço de maior liberdade e um
“descobrimento de si”, no sentido de se descobrir enquanto profissional da educação e atuar de
forma mais desejável. Will, em entrevista, também falou sua percepção enquanto coordenador
sobre isso:
Will: No Emancipa aparecia muitos professores novatos, ou seja, não novatos no
Emancipa, mas que estavam ainda aprendendo a lecionar, tendo uma primeira
experiência. Isso era muito presente no Emancipa e era uma informação que pra mim
valia à pena pelo fato de que, primeiro que eles iriam se atrair pelo projeto e também
porque iam crescer na profissão a partir da experiência no Emancipa. E no
recrutamento isso era um ponto importante que eu colocava porque eu também tinha
essa vibe de tá incentivando os professores a dar aula mesmo, é tanto que tinha
algumas professoras que eu dava uma atenção mais nesse sentido, meio que pra
segurar um pouco a barra com elas em relação ao nervosismo, a como chamar elas pra
dar aula, pensando nessa perspectiva de que era o primeiro contato com a sala de aula
e, portanto, era uma experiência, talvez, um pouco angustiante.

3.2.2.3 Perfil da equipe docente79

O perfil docente, de modo geral, é bastante diverso e difere muito do perfil de estudantes
e do “perfil Emancipa”. Em partes, isso se deve ao caráter voluntariado do cursinho que precisa
acolher quem está disposto a contribuir80, mas também acredito que, como mencionei
anteriormente, a forma como Will mobilizou a educação popular para o público externo foi
muito atraente, especialmente para pessoas mais apaixonadas.

78
Consultar: https://www.facebook.com/CedecaCasaRenascer.
79
Aqui tomo como recorte a equipe de 2019.
80
Obviamente com as devidas ressalvas.
83

Em relação à faixa etária, os/as professores/as, em sua maioria, são jovens entre 20 e 30
anos. Em termos de gênero, observei que a maioria (pelo menos aquela com atuação mais
frequente) foi composta por homens, era perceptível que havia mais professores presentes do
que professoras. Em termos de raça, a maioria foram pessoas brancas, à guisa de exemplo: todas
as professoras de Linguagens são brancas, no núcleo de Exatas, apenas Jaci e Mike não são
brancos, do núcleo de Humanas, apenas Paulo não é branco. Jomack, único professor de
matemática, é branco. Já em termos de regionalidade, até onde sei, apenas Danilo, Élcio e Mari
eram sudestinos.
É necessário, contudo, pontuar que esse é um perfil aproximado e não exato, pois,
diferente do perfil discente que pude dispor de dados quantitativos, em relação ao docente não
tive esse acesso e, até onde sei, esses dados não são recolhidos pela coordenação. Trago essa
perspectiva aproximada para ilustrar a diversidade presente no cursinho e sua ampla abertura
que acolhe diferentes pessoas com diferentes propósitos e concepções políticas sobre a
educação. Essa característica de agregar, convocar e acolher também é uma estratégia política
importante para o crescimento do movimento social e foi decisiva para sua expansão aqui nas
terras potiguares.

3.2.3 Núcleos interdisciplinares, formas de atuação e experimentação de metodologias


“alternativas”

Por se tratar de um movimento social, nas práticas educativas dentro da sala de aula
costuma-se investir em metodologias alternativas que tornem viável o ensino dos conteúdos
pré-estabelecidos em diretrizes curriculares embasados numa discussão crítica da realidade.
Isso torna as aulas muito flexíveis e livres, mas também, devido aos problemas estruturais dos
cursinhos da Rede Emancipa81, algumas vezes desorganizadas. Esses fatores costumam
incomodar alguns/as professores/as mais experientes que podem se mostrar inflexíveis por não
compreender, ou por discordarem da proposta político-pedagógica dos cursinhos.
Um exemplo é o caso do professor de matemática Jomack. As aulas dele eram uma das
que os/as estudantes reclamavam, entre as reivindicações, na linguagem deles/as, apareciam
termos como “aula chata” e “não entendo nada”. Mesmo com o diálogo entre Jomack e a

81
A partir da pesquisa bibliográfica, foi possível perceber que alguns problemas percebidos no cursinho Marielle
Franco não são particulares e sim gerais dos cursinhos da Rede Emancipa. Problemas como a dificuldade em ter
uma equipe de professores/as e coordenação regular, a evasão de estudantes, os problemas com as instituições de
ensino que disponibilizam seu espaço para as aulas do Emancipa aos sábados, o trabalho voluntário que às vezes
se reflete em ações espontaneístas e descompromissadas. Para saber mais, consultar Mendes (2011).
84

coordenação, ele tinha um método de ensino não muito aberto a intervenções. Esse ponto leva
à discussão sobre o que denominei como metodologias “alternativas” que está relacionada à
composição dos núcleos interdisciplinares.
Assim como o Enem é dividido em quatro áreas de conhecimento, a equipe em 2019
teve a decisão de se dividir em quatro núcleos, os mesmos do Enem, e apostar em aulas
interdisciplinares dentro de cada um deles. Os núcleos foram Ciências Humanas e suas
Tecnologias, com professores/as de sociologia, história e geografia; Ciências da Natureza e suas
Tecnologias, com professores/as de química, física e biologia; Linguagens, com professores/as
de literatura, redação, gramática, inglês e espanhol (essas duas últimas ocorreram bem menos,
de espanhol, se não me engano, só houve duas aulas); e Matemática e suas Tecnologias, com
professoras/es de matemática (que no caso foi apenas Jomack).
Contudo, algumas disciplinas não tiveram professores/as e alguns/as precisaram
ministrar disciplinas que não eram de sua área por conta da defasagem, um dos problemas
estruturais nos cursinhos da Rede. Por exemplo, em relação ao núcleo de linguagens, os/as
estudantes reclamavam muito da falta de aula, sobretudo de redação, que é primordial na prova
do Enem. Nas aulas de matemática, muitas vezes Jomack não tinha disponibilidade e então Jaci
ou Sérgio davam aulas de matemática. Em relação a disciplinas como biologia, espanhol e
inglês, foram pouquíssimas aulas ao longo do ano devido à falta de professores/as e quem
costumava ministrar algumas dessas disciplinas tinha pouca disponibilidade.

3.2.3.1 Planejamentos das aulas e experimentação de metodologias

Na reunião de planejamento do núcleo de Humanas no dia 09 de março, estabelecemos


algumas propostas de interdisciplinaridade e de trabalhar os conteúdos a partir de eixos
temáticos. Proposta esta que estava em conformidade com outros núcleos como o de Ciências
Exatas. Algumas outras decisões da reunião foram de aumentar o tempo de aula de 50 minutos
para uma hora e 40 minutos, devido ao escasso número de professores/as com o qual o cursinho
iniciou o ano.
Os eixos temáticos elencados para nosso núcleo foram: Indivíduo e Sociedade,
Democracia e Cidadania, Direitos Humanos, Movimentos Sociais, Formação Econômica e
Social Brasileira, Ideologia, Gênero e Sexualidade, Globalização, Política e Poder, Modo de
Produção e Trabalho, Meio Ambiente e Comunicação. Quando definimos esses eixos,
estávamos pensando em temas que pudessem ser trabalhados por todas as disciplinas a partir
de seu próprio viés científico (no caso, geografia, sociologia, filosofia e história).
85

Como, nesta reunião, tínhamos professores/as de cada disciplina presentes, discutimos


como cada tema poderia dialogar em conjunto, já que a proposta era pôr em prática as aulas
interdisciplinares e estimular a construção de uma sala de aula na qual elaborassem planos de
aula coletivamente, inclusive, dividindo a mesma aula – algo que na prática não funcionou, até
chegamos a dividir a sala de aula, mas elaborar plano de aula conjuntamente não deu certo.
Nesse caso, o que me refiro como metodologias “alternativas” são as propostas de
interdisciplinaridade, aulas temáticas e aulas em conjunto.
Em relação às aulas por eixos temáticos, considero que tenha funcionado muito bem
para o núcleo de Humanas, visto que foi possível abarcar a extensa lista de conteúdos exigidos
pelo Enem em torno de eixos amplos. Em relação à interdisciplinaridade e aulas conjuntas, o
núcleo que obteve êxito foram as Ciências da Natureza. Em entrevista, Mike falou um pouco
sobre como surgiu a ideia da interdisciplinaridade:
Mike: Uma coisa que aconteceu muito em 2017 era assim: professor ‘fulano’ faltou,
não vai poder vir etc., não vai poder ter aula desse ‘fulano’, então a gente precisa
colocar alguém. Normalmente eu era essa pessoa porque, até então, eu podia ficar o
sábado todo ali no Emancipa, eu ia de manhã, era um dos primeiros a chegar e um dos
últimos a sair porque, enfim, eu gostava da presença da galera, eu tinha essa liberdade,
esse privilégio, de ter tempo [para passar o dia inteiro no cursinho 82]. E aí acontecia
muito de eu ter de ir para sala de aula pra suprir essa aula, e aí às vezes não era só eu
que tava lá, tinha outros professores também. Daí eu falava assim: ‘Boy’, vamo dar
uma aula disso? Geralmente isso acontecia mais com quem era da minha área,
biologia, física, por questão de afinidade de área. Aí, sei lá, a professora de biologia
falava: Bora! Aí a gente ia pra sala e dava aula junto. Aí em 2017 a gente foi
construindo isso, de ir pra sala de aula, com mais de uma disciplina, pra trabalhar o
mesmo assunto. Aí em 2018 a gente já vem com um planejamento, pensando aulas
que poderiam ser casadas [entre diferentes disciplinas]. Então, em 2018, é o primeiro
cenário onde aparece, de forma bem superficial, essa ideia de interdisciplinaridade
[...] Em 2019, esse movimento ele se concretiza, de fato, vira prática, a gente sai do
planejamento e vai pra prática, de realmente fazer essas aulas.

Os/as estudantes adoravam as aulas interdisciplinares de Mike, Jaci, Sérgio e Diego, ela
e eles tinham uma dinâmica muito boa em sala, trabalhando os conteúdos de forma
interdisciplinar. Se antes as disciplinas de exatas costumavam ter maior evasão dos/as
estudantes, a adoção dessa metodologia tornou essas as aulas que os/as alunos/as mais se
engajaram.
Em contrapartida, o núcleo de Humanas não teve êxito em adotar a interdisciplinaridade
e poucas vezes conseguimos ter aulas conjuntas. Acredito que devido à pouca integração entre
os/as professores/as, diferente do núcleo de Exatas no qual todos/as já se conheciam e atuavam
no cursinho em anos anteriores. Nas Humanas tivemos muitos professores/as novos/as: eu, João
Victor, Paulo e Petrus, assim como professores/as antigos/as que se afastaram: Lidiane e Danilo.

82
Neste ponto, Mike enfatiza que nem todos/as professores/as tinham a mesma disponibilidade para passar muito
tempo no cursinho devido às demandas pessoais, então, já que ele podia, dispunha-se a ficar.
86

Geralmente, as aulas coletivas ou em dupla eram organizadas pelos/as professores/as por meio
de trocas de mensagens virtuais.
Uma das duplas mais queridas pelos/as estudantes eram os professores Paulo e Petrus
da geografia. Inclusive, os/as alunos/as relataram à coordenação gostar mais das aulas deles
juntos do que separados83. Diego e Élcio também davam aula juntos, mas ambos eram da
história. Ou seja, houve bons momentos de sala de aula compartilhada, mas pouca
interdisciplinaridade. Ao longo do segundo semestre, eu e Diego fizemos algumas aulas juntas,
assim como elaboramos algumas oficinas.
Em relação ao tempo de aula, ao longo do primeiro semestre, os/as estudantes se
queixaram e reclamaram por serem muito longas e cansativas, por isso no segundo semestre,
com um quadro maior de docentes, retomaram-se às aulas de 45 minutos. A grade horária
geralmente dividia-se em três aulas, mas à medida em que estudantes começaram a evadir essas
aulas diminuíram. Abaixo, colocarei dois exemplos de grade horária, do início (sábado, 13 de
abril) ao final do ano (sábado, 28 de setembro).

Figura 5 – Grade horária

Fonte: Acervo da autora (2020)

Na figura à direita, de setembro, a divisão “1º semestre” e “2º semestre” deu-se porque
os/as estudantes ingressantes no início do ano ficaram em uma sala e os/as novatos/as em outra.

3.2.4 Perfil dos/as estudantes

83
Não tive conhecimento se eles souberam desses comentários que os/as alunos/as faziam.
87

Para traçar um perfil, pelo menos do início do ano de 2019, recorri a alguns dados
quantitativos referentes à faixa etária, gênero, raça e bairros de residência dos/as estudantes do
Marielle. Sobre o procedimento de inscrição que eles/as realizam, há um período, no primeiro
e no segundo semestre, onde as inscrições ficam abertas no site84 e os/as estudantes (novatos/as
e antigos/as), para ingressar em qualquer cursinho da Rede Emancipa, se inscrevem de forma
online, escolhendo o cursinho de sua cidade ou entrando em contato com a coordenação e se
inscrevendo presencialmente.
Tanto na inscrição via internet, quanto na inscrição presencial, há uma série de
perguntas que os/as estudantes respondem85 sobre: gênero, data de nascimento, endereço
(cidade e bairro onde residem), se tem filhos/as, escolaridade (se concluiu a Educação Básica,
se já ingressou na Superior), em qual escola cursou os Ensinos Fundamental e Médio (e se
particular ou pública), raça, se a mãe e pai sabem ler e qual nível de escolaridade, renda familiar,
se trabalha (e qual carga horária) ou já trabalhou, se tem curso de língua estrangeira e
informática, se tem acesso a computador e internet, qual curso pretendem fazer pelo Enem e
em qual universidade.
Esses dados ficam armazenados com as coordenações (locais e nacional) em forma de
planilha e ajudam a ter um conhecimento do perfil de estudantes e suas necessidades, e,
consequentemente, ajudam cada cursinho a construir seu projeto pedagógico. Quem tem acesso
às planilhas de inscrição dos/as estudantes é a coordenação dos cursinhos. As planilhas, além
de passarem pela coordenação local, passam também pela coordenação nacional da Rede. Tati,
gentilmente, me enviou a planilha referente ao ano de 2019 do Marielle Franco para a pesquisa
da dissertação. Não pretendo discutir todos os dados, até porque alguns são confidenciais,
apenas recorro a alguns marcadores para o desenho do “perfil”.
De acordo com a planilha de dados dos/as estudantes ingressantes no Marielle em 2019,
houve um total de 562 inscritos (somando os dois períodos, primeiro e segundo semestres). Em
relação ao gênero, 411 declararam gênero “feminino”, 148 “masculino” e 3 marcaram a opção
“outros”. Esse dado é muito interessante, pois lança a luz sobre a questão do forte marcador de
gênero feminino no cursinho.
Em relação à faixa etária, na planilha este dado é referente à data de nascimento, trago
abaixo duas tabelas organizativas, a primeira referente à composição etária:

84
Consultar: https://redeemancipa.org.br/.
85
No início do segundo semestre, apenas novos/as ingressantes preenchem o formulário.
88

Tabela 1 – Composição etária dos estudantes ingressantes no Marielle em 2019


Ano de nascimento Quantidade de estudantes

2005-2000 281

1999-1994 189

1993-1988 58

1987-1982 20

1981-1976 8

1975 < 2
Fonte: Elaborada pela autora (2021)

Como se pode ver, a maioria são pessoas jovens que nasceram entre 1990 e 2005 (esse
é o ano de nascimento da pessoa mais nova, de acordo com a planilha). Os/as estudantes com
maior faixa etária constaram nos anos 1961 e 1955.
A segunda tabela é referente à composição racial:

Tabela 2 – Composição racial dos estudantes ingressantes no Marielle em 2019

Autoatribuição86 Quantidade de estudantes

Amarelo 23

Branco 152

Indígena 4

Pardo 283

Preto 81
Fonte: Elaborada pela autora (2021)

Ao todo, temos um número de 410 estudantes declarados/as não-brancos/as, contando


com os 19 estudantes que marcaram a categoria “outro” (ou seja, nenhuma dessas opções
elencadas para a composição racial e étnica).
Em relação aos locais de residência dos/as estudantes, em Natal, apareceram: Rua Alto
da Torre, no bairro Redinha (Zona Norte), bairro Lagoa Azul (Zona Norte), bairro Pajuçara
(Zona Norte), bairro Areia Preta (Zona Leste), bairros Lagoa Azul e Nossa Senhora da

86
O critério de autoatribuição étnico-racial, ou autodeclaração, refere-se ao sistema classificatório empregado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a identificação étnica e racial da população.
89

Apresentação (Zona Norte), bairro Bom Pastor (Zona Oeste), bairro Cidade Alta (Zona Leste),
bairro Felipe Camarão (Zona Oeste), bairro Igapó (Zona Norte), bairro Planalto (Zona Oeste),
bairro Alecrim (Zona Leste), conjunto Panatis no bairro Potengi (Zona Norte), bairro Dixt-Sept
Rosado (Zona Oeste), bairro Quintas (Zona Oeste), bairros Pitimbu e Capim Macio (Zona Sul),
bairros Cidade da Esperança e Nordeste (Zona Oeste), bairro Rocas (Zona Leste) e bairro
Salinas (Zona Norte).
De acordo com a planilha, 38 estudantes residem na Região Metropolitana de Natal,
conhecida como Grande Natal, nos municípios de Parnamirim, São Gonçalo do Amarante,
Extremoz e Macaíba. Apareceram também os municípios Ceará-mirim, Poço Branco e João
Câmara. É interessante analisar que a UERN, como já foi mencionado, está localizada numa
avenida que cruza o bairro Potengi e a maioria dos/as estudantes de Natal estão distribuídos
pelos bairros Potengi, Lagoa Azul, Nossa Senhora da Apresentação e Pajuçara (todos na Zona
Norte).
Dos/as estudantes residentes na Região Metropolitana, a maioria está distribuída por
Extremoz e São Gonçalo do Amarante, municípios onde a mancha urbana da conurbação se
une à Zona Norte. Em Junior e Nascimento (2016), há uma citação interessante de Souza (2000)
na qual aponta-se que o atual espaço urbano da Zona Norte, em meados do século XX, pertencia
às cidades de São Gonçalo do Amarante e Extremoz, eram terrenos de sítios e fazendas e não
se apresentavam como um aglomerado urbano até a década de 70 (SOUZA, 2000, p. 18 in
JÚNIOR; NASCIMENTO, 2016, p. 4).
É válido destacar que, desses bairros em Natal, os únicos que apresentam um índice de
qualidade de vida87 alto, e por isso são os locais de residência da maioria das classes média e
alta natalense, são: Pitimbu, Capim Macio e Areia Preta. Os índices mais baixos estão nos
bairros: Salinas, Redinha e Felipe Camarão. Os outros bairros apresentam índice de médio a
baixo e constituem, junto com os bairros Salinas, Redinha e Felipe Camarão, a periferia
natalense. É válido destacar que a vivência nesses bairros não é homogênea, o bairro Potengi
tem o Índice de Qualidade de Vida mais alto da Zona Norte (apesar de ser considerado na faixa
“médio”), há um investimento público e do setor de comércio e imobiliário maior neste bairro
do que em outros dessa região, como, por exemplo, a Redinha.
A questão da localização geográfica é um dado relevante para pensar como a mobilidade
urbana está associada às condições socioeconômicas de uma população. Por exemplo, quando
trago que a maioria dos/as estudantes da Região Metropolitana estão em municípios conurbados

87
Consultar: ARAÚJO; CÂNDIDO. Índices de Qualidade de Vida Urbana de Natal-RN. Revista Geoconexões,
ano 1, vol.1, 2015
90

à Zona Norte e que a maioria dos/as estudantes de Natal residem no bairro, ou nas proximidades,
onde está a UERN, é para discutir como qualidade de vida está interligada à mobilidade urbana
e ambas dependem das condições socioeconômicas. Quem depende de transporte coletivo para
ter mobilidade na cidade, trava uma luta diária que afeta também a formação educacional. Por
isso, o cursinho Marielle, como outros cursinhos da Rede Emancipa, localiza-se nas periferias
da cidade. A escolha do Cursinho Marielle se localizar na Zona Norte (ZN) é estratégica porque
Natal é uma cidade cortada por um rio88 e a ZN é uma região apartada do resto da cidade, não
por estar do outro lado do rio, mas por não ser a prioridade do investimento público.
Nesse sentido, o artigo de Júnior e Nascimento (2016) sobre os problemas de
infraestrutura na Avenida João Medeiros Filhos pode elucidar melhor essa questão. Neste
trabalho, os autores fazem uma análise sobre como a mobilidade urbana se apresenta como um
dos principais desafios das cidades e traz como área de estudo a Zona Norte e, precisamente, a
Avenida João Medeiros.
Estudar e trabalhar são atividades desafiadoras num contexto onde o planejamento
urbano é ausente ou ineficaz e prejudica a mobilidade urbana como é o caso da Zona
Norte de Natal, o crescimento acelerado deste espaço não foi acompanhado pelas
políticas públicas resultantes do planejamento urbano ocasionando graves problemas
estruturais urbanos diante de uma expressiva ocupação populacional. (JÚNIOR;
NASCIMENTO, 2016, p. 3)

Essa colocação inicial atenta para a importante discussão, presente no artigo e que acho
importante fazê-la aqui, sobre a mobilidade urbana em áreas periféricas. De início, é importante
salientar uma informação interessante presente no artigo, a Avenida João Medeiros recebe uma
circulação considerável do tráfego da Zona Norte, é uma “via estrutural arterial de circulação”,
sendo assim classificada pelo poder público municipal (JÚNIOR; NASCIMENTO, 2016, p. 4).
Uma outra informação interessante é que o termo, “Estrada da Redinha”, fazia referência ao
contexto rural no qual a ZN estava inserida até meados da década de 70 (JÚNIOR;
NASCIMENTO, 2016).
Nesse sentido, a avenida João Medeiros assume um papel de centralidade para a ZN,
pois devido à expansão urbana dessa região a antiga Estrada da Redinha tornou-se o principal
corredor de acessibilidade que funciona como escoamento de bairros volumosos como Potengi,
Nossa Senhora da Apresentação, Lagoa Azul, Pajuçara (JÚNIOR; NASCIMENTO, 2016). É
perceptível nos últimos anos como setores de comércio e imobiliário expandiram em torno da
João Medeiros e, na contramão desse crescimento, o poder público municipal não investiu em
planejamento urbano para comportar esse crescimento e desafogar a avenida.

88
Rio Potengi.
91

A João Medeiros concentra, além da UERN, o Complexo Cultural da Zona Norte, o


Partage Norte Shopping, uma agência dos Correios, um supermercado Nordestão, além de
diversos comércios como bares e lanchonetes, dentre outros investimentos imobiliários que,
junto com o intenso fluxo da população residente dos bairros em seu entorno, dependentes da
avenida, pressionam o fluxo do tráfego tornando a vida da população que precisa trabalhar,
estudar e também ter momentos de lazer, extremamente problemática, pois são horas perdidas
em engarrafamentos em seu trajeto – além de ônibus lotados e demorados, devido ao que Júnior
e Nascimento (2016) categorizam como a centralidade conferida pelo poder público à “política
do automóvel”.
Essa política é basicamente uma estratégia do modo de urbanização capitalista que afeta
ainda mais a população residente nas periferias. Há um sucateamento do transporte
coletivo/público e um estímulo ao transporte individual (automóvel). Em Natal, esse
sucateamento é um projeto político da prefeitura e do Sindicato de Empresas de Transportes
Urbanos de Passageiros (SETURN). Os abusos da SETURN, com a conivência da prefeitura,
incluem: aumento da tarifa todo ano, sem melhoras nos serviços de ônibus oferecidos à
população, péssimas condições de trabalho para os motoristas, demissão em massa de
cobradores/as que, há alguns anos, levou os motoristas a exercerem uma dupla função (dirigir,
receber os pagamentos em dinheiro e passar troco) o que sobrecarrega esses trabalhadores 89 e,
consequentemente, atrasa a mobilidade dos ônibus, além das mudanças incompreensíveis nos
itinerários dos ônibus, alterações e retiradas de linhas, sem nenhum diálogo com a população.
As recentes mudanças90 nos trajetos e retiradas de linhas feitas de forma arbitrária pela
SETURN contribuiram ainda mais para a segregação socioespacial da ZN e de outros bairros
em regiões periféricas da cidade. Muitas linhas que faziam o trajeto entre as regiões foram
retiradas, linhas de ônibus que percorriam da Zona Norte à Zona Sul, da Zona Oeste a Zona Sul
etc. Utilizando a reflexão de Junior e Nascimento (2016, p. 11), em relação ao transporte
coletivo/público em Natal, há uma omissão do Estado enquanto agente produtor do espaço
urbano e um controle privado, da SETURN, de um serviço que deveria ser público e,
consequentemente, gratuito.

89
Utilizo aqui o masculino porque presenciei poucas vezes uma motorista mulher nos ônibus de Natal. Creio que
é uma profissão com um marcador de gênero extremamente forte.
90
Ocorridas em setembro de 2020 após a SETURN em acordo com a Secretaria de Mobilidade Urbana de Natal
(STTU) indicar o retorno de 70% da frota de ônibus. Desde março, início da pandemia de Covid-19, estava rodando
cerca de 43% da frota de ônibus devido às medidas de isolamento social, fechamento das instituições de ensino e
de alguns comércios não-essenciais.
92

O impacto da mercantilização do transporte público/coletivo é ainda maior para as


populações residentes da periferia, especificamente aqui falo da população da ZN, que é
condenada duas vezes à pobreza (JÚNIOR; NASCIMENTO, 2016). Afinal, como ter tempo
para estudar se tanto tempo é perdido no deslocamento para a escola? E o cansaço depois de
horas esperando o ônibus e no trajeto dentro de um ônibus muitas vezes lotado? E para
estudantes que também trabalham, como otimizar os estudos se tanto tempo é perdido no triplo
deslocamento casa-escola-trabalho? É válido ressaltar que, quando falo da segregação
socioespacial da ZN, significa que a população frequentemente precisa se deslocar à Zona Sul
por causa de trabalho, estudo e lazer. Apesar dessa realidade está mudando, a passos lentos,
ainda assim há uma concentração de serviços e de espaços culturais na Zona Sul. Por isso, para
grande parte da população residente da ZN, atravessar as pontes91 não é uma escolha, é um
imperativo devido ao projeto de urbanização municipal.
Compreendendo, pois, a importância da localização geográfica do Marielle, é necessário
analisar os dados socioeconômicos na planilha92. Sobre isso, há a pergunta sobre o bolsa família
e sobre a renda familiar. Sobre a primeira, 149 estudantes afirmaram receber bolsa família93 e
413 afirmaram não receber. Na tabela abaixo, a fim de elucidar os dados sobre a renda familiar,
divido-a em dois blocos:

Tabela 3 – Renda familiar dos estudantes ingressantes no Marielle em 2019


Renda familiar94 Quantidade de estudantes

R$ 0 - R$ 500 81 estudantes

R$ 501 - R$ 1000 264 estudantes

R$ 1001 - R$ 2000 165 estudantes

R$ 2001 - R$ 3000 35 estudantes

R$ 3001 - R$ 4000 9 estudantes

R$ 4001 - R$ 5000 4 estudantes

Mais de R$ 5001 4 estudantes


Fonte: Elaborada pela autora (2021)

91
A Zona Norte é ligada às outras regiões por duas pontes: a chamada Ponte velha, Ponte de Igapó ou Ponte
Presidente Costa e Silva, e a Ponte nova ou Ponte Newton Navarro.
92
Destaco, pois, que meu trabalho de análise em relação a esses dados ficou limitado pela forma como a planilha
foi construída.
93
Consultar: http://www.sedes.df.gov.br/bolsa-familia/.
94
As referências que trago sobre a renda familiar são dados e valores retirados da planilha.
93

Nesse horizonte, há também uma pergunta sobre a composição familiar dos/as


estudantes na qual aparecem famílias de um a dez membros. Embora qualitativamente esse
dado não revele muito – pois uma família com composição familiar de duas pessoas e renda de
R$ 2000 vive uma condição socioeconômica totalmente diferente de outra com dez membros e
a mesma renda – quantitativamente pude observar que há uma concentração de estudantes com
grande composição familiar (por exemplo: cinco a dez membros) nos três primeiros estratos
relacionados à renda, enquanto estudantes com famílias menores (por exemplo: até três
membros) concentram-se nos três últimos estratos cujos valores de renda são maiores.
É importante destacar que, ao longo do campo, fiz a escolha de não manter uma relação
mais próxima com os/as estudantes. Estava vivenciando minha primeira experiência como
professora e eu não queria exceder limites profissionais. Consequentemente, por não ter tido
uma relação mais próxima com eles/as, muitas questões sobre suas vivências não puderam ser
analisadas com a mesma profundidade como quando analiso professores/as e coordenação, por
exemplo.
Além disso, o fato de serem muitos/as estudantes em constante trânsito (evasão,
afastamento e retorno, em curtos e longos intervalos de tempo) e o fato de o encontro ser apenas
um dia na semana, tornou difícil estabelecer qualquer nível de intimidade que fosse propícia a
uma densidade etnográfica.

3.2.5 Da ponte pra cá: a Zona Norte de Natal

A Zona Norte (ZN) é um espaço importante para a pesquisa, não apenas por ser o
território de localização do Marielle, mas pelos motivos que levaram o cursinho a se assentar
na região. Anteriormente, destaquei a questão da mobilidade urbana tomando como foco os
deslocamentos na avenida João Medeiros para situar o debate em torno do “direito à cidade”95,
considerando que os locais e condições de moradia da maioria dos/as estudantes sofre as
contradições urbanas provocadas pelo capitalismo que segrega espacialmente uma população,
em sua maioria negra, indígena e empobrecida, dando origem às chamadas “periferias” e
“favelas”.
Por conseguinte, faço um resgate conceitual sobre as categorias periferia e favela para
compreender como a ZN se localiza nesse debate. Dois dos princípios basilares da Rede
Emancipa – expressos no Caderno de Formação – são a “territorialização” e “referência nas

95
Essa expressão tornou-se um slogan de muitos movimentos sociais e de ativistas que pautam as problemáticas
urbanas. O Movimento Passe Livre (MPL) é o exemplo mais expressivo da luta pelo direito à cidade.
94

comunidades”. Isso indica um propósito de construção educativa comunitária, ou seja, dentro e


com as comunidades. No primeiro capítulo, quando discuto sobre a construção de valores
dentro da educação popular e trago a formação omnilateral assim como os projetos pedagógicos
do MST e do feminismo, realço a importância do processo educacional com a comunidade,
famílias e redes de afeto, não apenas com os/as educandos/as. Sendo, pois, uma educação
integrada a outras dimensões da vida, não limitada aos muros e currículos escolares.
À vista disso, trago alguns trechos presentes no Caderno de Formação do Emancipa que
falam sobre os princípios elencados acima:
O local onde fazemos um cursinho é algo determinante para a influência que pode ter
(...) Cada local abre a possibilidades próprias para a nossa luta, da escola pública às
instituições religiosas. Por outro lado, os cursinhos que estão mais distantes, nas
periferias urbanas podem ser exemplos de aglutinação e referência de trabalho de base
comunitário com aqueles que mais necessitam, com a classe trabalhadora que é a
matéria da transformação social. TERRITORIALIZAÇÃO, A Organização dos
Cursinhos, Caderno de Formação de Educadores Populares
Por isso, a referência da nossa atuação tem que ir além dos cursinhos, ampliando-se
para as comunidades próximas, dialogando com as demandas e lutas de cada território.
A maioria dos estudantes vem destas comunidades e podemos continuar o trabalho
com eles neste entorno (...) Precisamos expandir iniciativas como essas [ligação do
Emancipa com ocupações de moradia] para ampliar nossa referência nas periferias.
REFERÊNCIA NAS COMUNIDADES, A Organização dos Cursinhos, Caderno de
Formação de Educadores Populares.

Esses trechos demonstram a intencionalidade política do diálogo com a periferia para o


Emancipa. Esse foi um dos principais argumentos para a mudança de local do Marielle em
2020, o interesse em uma vivência comunitária para o cursinho, territorializá-lo em algum
bairro da Zona Norte. Inclusive, a primeira vez que ouvi esse termo, “territorialização”, foi
através de Tati, em uma conversa de bar, na qual discutimos sobre o possível retorno do
Marielle para uma escola.
É necessário neste ponto esmiuçar uma discussão mais teórica e conceitual em relação
à produção literária que versa sobre a temática de periferias e favelas. O objetivo é
problematizar esses termos, compreendê-los como uma construção social e não como um dado
acabado. A importância deste debate deve-se ao fato de que a periferia engloba vários mundos
e nem todos/as a vivenciam da mesma forma. A Zona Norte é uma região enorme, cada bairro,
rua, avenida, favela, praça, abriga diferentes realidades e diferentes indicadores
socioeconômicos. A ZN é o lugar de nascimento da Rede Emancipa aqui no estado e é um local
de disputa política para o movimento social. Além de ser o pilar do Marielle e onde há maior
número de estudantes, mas nem todos/as vivenciam a ZN da mesma forma. O objetivo, pois, é
desconstruir qualquer visão homogeneizante sobre a Zona Norte partindo de um debate teórico
de como se construiu esse imaginário da “periferia” e da “favela”.
95

“Perifa”, “quebrada”, “favela”, esses foram alguns dos termos que costumava ouvir de
estudantes ao se referirem aos seus locais de residência. Cada um desses termos evoca
construções imagéticas e discursivas, no imaginário coletivo, geralmente sobre: pobreza,
criminalidade, risco, ausência (no tocante às políticas públicas dos governos). Diferente do que
se concebeu acerca dessas categorias como algo pejorativo, as falas dos/as estudantes
denotaram uma noção de pertencimento, não de vergonha. Recorrendo à reflexão de Lopes
(2011), na fala dos/as estudantes, “morar na favela, na perifa, na quebrada” denota a
constituição de um “substantivo moral” que confere a esses sujeitos uma noção de
pertencimento e identidade. A constituição desse novo discurso sobre a favela e a periferia
contrapõe-se ao imaginário coletivo em torno dessas categorias. Sobre isto, a princípio, recorro
à discussão do que Valladares (2000) aponta como sendo “a gênese da favela”.
Muito do que se cristalizou como imagem da periferia e da favela é de um lugar das
ausências e da miséria. No site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 96 há
uma definição sobre “aglomerados subnormais” que recorrentemente é a imagem acionada
quando se fala em favela: ocupações de propriedades alheias (pública ou privada), padrão
urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais. É válido ressaltar que os censos
do IBGE são extremamente relevantes para o conhecimento da realidade das periferias e têm
uma multiplicidade de critérios que são adotados para o conhecimento da realidade de suas
populações. O objetivo aqui não é fazer uma crítica aos censos, nem aos padrões adotados pelo
IBGE, mas sim ressaltar o quanto essas caraterísticas específicas que citei estão cristalizadas
no imaginário coletivo e como se produziu esse imaginário dentro de uma lógica reducionista.
Valladares (2000, p. 6) introduz a favela no debate político e social focando em dois
períodos: o primeiro, antecede o campo das Ciências Sociais na pesquisa, é o recorte da primeira
metade do século XX que consiste na descoberta do que a autora chama de “fenômeno das
favelas” e na construção do arquétipo da favela, o segundo período envolve a realização dos
Censos, a pesquisa das Ciências Sociais e a favela como objeto de estudo das universidades.
Os agentes desse primeiro período, responsáveis por construir esse arquétipo que ainda
é tão cristalizado atualmente, foram os discursos midiáticos, médicos, urbanistas e de políticos
das classes altas preocupados com esse “problema sanitário” no qual a favela foi transformada.
A lógica do sanitarismo foi extremamente relevante para a construção social da favela como
um “problema” e como algo que deveria ser retirado da paisagem urbana, sem uma preocupação
com a população que vivia naquele espaço e sem uma reflexividade sobre quais condições

96
Consultar: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/15788-
aglomerados-subnormais.html?=&t=o-que-e.
96

socioeconômicas levaram as populações a essas habitações. A preocupação, neste primeiro


período, era retirar a favela da paisagem da cidade do Rio de Janeiro.
Começo citando o Rio de Janeiro porque é o recorte feito por Valladares (2000) em seu
trabalho. Recorrendo ao resgate histórico da autora, a favela como locus da pobreza teve como
antecedente o cortiço que tinha características de habitação semelhantes e abrigavam uma
população estigmatizada devido à associação com a criminalidade e o forte discurso sanitarista
que se fez sobre o cortiço, e posteriormente sobre as favelas, como lugares de proliferação de
epidemias e de doenças.
A primeira ocupação de morro que ficou conhecida como favela, foi o Morro da Favella,
ou Morro da Providência, que teve forte associação com a Guerra de Canudos por abrigar ex-
combatentes que ali se instalaram (VALLADARES, 2000).
Segundo pesquisa realizada por Abreu (1994), apenas na segunda década do século
XX é que a imprensa passa a utilizar a palavra favela de forma substantiva e não mais
em referência exclusiva ao morro da Favella, surgindo assim uma nova categoria para
designar as aglomerações pobres, de ocupação ilegal e irregular, geralmente
localizadas nas encostas. (VALLADARES, 2000, p. 7)

O mito de origem da favela, a construção do arquétipo de um “outro mundo”, a


dualidade favela versus cidade, tem muito de sua gênese no mito de Canudos e muitas das
imagens sobre a favela transmitidas pelos intelectuais da época foram buscadas nas referências
da obra “Os Sertões” de Euclides da Cunha (VALLADARES, 2000). Esses intelectuais
precisavam ler e interpretar esse novo fenômeno do urbanismo, precisavam significar aquelas
formas de habitação e, para isso, recorreram à literatura e à dualidade sertão versus cidade. As
imagens de ausência, abandono e miséria, muito atribuídas ao campo, ao sertão e à roça,
começaram também a ser atribuídas à favela já que se precisava interpretar esse espaço como
algo “de fora”, o “outro mundo”, a antítese da cidade. Assim nasce também a dualidade morro
versus asfalto, o asfalto representando a cidade, o morro a favela.
Percebe-se, pois, que a construção discursiva em torno das favelas, em sua gênese, era
de um “outro mundo”. A tentativa era de ocultar as problemáticas sociais da urbanização
capitalista e as desigualdades socioeconômicas da população. O discurso do higienismo, por
exemplo, a associação da favela à sujeira e a culpabilização dos moradores/as pela deflagração
de doenças, eximia do Estado a responsabilidade de reparação das populações vulnerabilizadas
e dos governos a obrigação de prover assistência às camadas sociais empobrecidas.
A lógica do sanitarismo concebia a cidade como um “corpo urbano”, as habitações como
“células deste corpo” e as favelas eram as “doenças do corpo”, é assim que nasce a leitura da
favela como moléstia, doença e a interpretação dela como uma patologia social
97

(VALLADARES, 2000). Como se pode ver, o discurso médico sanitarista e político punitivista
moldou a construção imagética coletiva em torno da favela e da periferia e a ideia de “um outro
mundo”, alimentou a segregação socioespacial durante décadas. Em contrapartida à uma visão
social das favelas como lugares que precisavam de atenção e cuidado do poder público e sua
população precisava de reparação histórica e social do Estado, construiu-se uma visão
segregacionista, reducionista e carregada de arquétipos pejorativos.
A coleta de dados a partir de Censos realizada pelo IBGE, a partir da década de 40, o
estudo das Ciências Sociais e a atenção científica das universidades para o universo das favelas
e periferias foi de extrema importância para expandir a compreensão social, mas não o
suficiente para encerrar o debate e desconstruir os arquétipos que foram criados em sua gênese.
A ideia do “morro acima, ameaçando a cidade” (VALLADARES, 2000, p. 8) é uma falácia
porque o morro está na cidade e a cidade está no morro. Essa dualidade só serve à lógica do
arquétipo de favela dentro do imaginário coletivo.
Dessa discussão acredito ser importante destacar a ideia de “outro mundo” como algo
muito recorrente no imaginário coletivo natalense em torno da Zona Norte. Devido à
concentração de serviços, empregos e da cena cultural na Zona Sul, à problemática da
mobilidade urbana97, discutida anteriormente, e os indicadores socioeconômicos médios e
baixos dos bairros da região, há muito medo e preconceitos acionados pelo estigma de uma
região perigosa e de difícil acesso, a “longa distância” também é um fator acionado quando se
fala sobre, ou se pensa, a ZN como o lugar “distante de tudo”.
É importante ressaltar que esses estereótipos têm em sua gênese um processo de
urbanização pensado para atender os interesses das classes altas e de negociatas entre políticos
e empresários. A segregação socioespacial e geográfica é parte de um projeto político que não
busca atender às demandas da população, não objetiva o bem viver na cidade. As dualidades
“centro versus periferia”, “morro versus asfalto”, cristalizadas nos arquétipos, são
reducionismos de uma realidade social complexa e envolta de desigualdades sociais.
Castro (2019) discute sobre isso trazendo a compreensão dos cursinhos populares como
“movimento socioespacial urbano”. A argumentação de Castro (2019) gira em torno da
problemática urbana dentro do contexto dos modos de produção capitalista. Nisso, reside seu
entendimento de que os agentes, públicos e privados, operam de modo a privilegiar o capital,
processo este que incute “a desigual distribuição de investimentos na cidade, que reflete nas

97
Que não é um problema apenas na Zona Norte, deve-se frisar, mas devido à segregação socioespacial, essa
região é atingida de uma forma diferente.
98

precárias condições de reprodução na periferia, influi, invariavelmente, no desempenho desses


alunos” (CASTRO, 2019, p. 106).
Ao pensar os cursinhos populares como potencialidade política de atuação ante à
problemática urbana, Castro (2019) localiza as instituições de ensino dentro dessas condições
de desigualdades provocadas pelo processo de urbanização capitalista e aponta que o
desempenho escolar está intimamente relacionado às condições territoriais de habitação dos/as
educandos/as. Castro (2019, p. 110) pensa o território como “espaço impregnado e mediado por
relações de poder, produzindo-se e consolidando-se por meio de conflitos e contradições que
caracterizam a sociedade de classes”.
Porquanto, é nesta realidade social que o Emancipa busca se inserir e a escolha por
ocupar a Zona Norte foi política. É válido destacar a inviabilidade, desde 2017 até,
principalmente, os dias atuais, de concretizar esse projeto de territorialização. A princípio, o
Marielle não conseguiu sair dos muros escolares, limitando sua construção pedagógica ao
cotidiano dos sábados nas escolas e, em 2019, na universidade.
Em 2020, quando iniciamos o ano na E.E Walter Duarte Pereira, no bairro Potengi, um
dos objetivos era pôr em prática essa vivência de bairro e construir projetos em diálogo com a
comunidade nos entornos. O fato de Rogéria residir no mesmo bairro, muito próxima à escola,
e Tati ter se mudado do bairro Tirol, Zona Sul, para residir em Potengi, justamente para estar
na vizinhança do cursinho, seria um facilitador para essa construção comunitária. Contudo, com
a pandemia de Covid-19 e o ensino virtual remoto, tais propósitos foram relegados a um futuro
incerto e distante.

3.2.6 A equipe estudantil: organização política, distanciamentos, evasão

Uma questão que quero enfatizar neste tópico é sobre os/as estudantes que retornam ao
cursinho, não mais apenas como alunos/as, mas também para participar do processo de
construção política-pedagógica como coordenação ou docência. Esse também é um dos
princípios basilares da Rede Emancipa: envolver o corpo estudantil para uma participação
atuante e um possível retorno ao cursinho fora da condição de alunado, um exemplo disso foi
Marilia98. Ela foi uma ex-aluna do Marielle que passou no curso de Pedagogia na UFRN e
retornou em 2019 para auxiliar nas atividades da coordenação.

98
Tentei entrar em contato com ela pelo WhatsApp para uma entrevista onde ela pudesse esmiuçar um pouco sobre
esse processo de ingressar no cursinho como estudante e retornar auxiliando nas atividades na coordenação, mas
99

No tempo que passou conosco (até o final do primeiro semestre), ela ajudava Tati a
elaborar as grades horárias, entrava em contato com as turmas de estudantes e com
professores/as, chegava cedo na UERN para preparar as salas de aula e auxiliava na construção
dos círculos e oficinas. Marília evadiu do cursinho no segundo semestre sob a justificativa de
não conseguir conciliar as demandas com as da graduação e os problemas pessoais. Ela
manteve-se nos grupos de WhatsApp, mas acabou saindo deles depois de um tempo.
Igualmente como tentativa de organizar politicamente os/as estudantes e desmistificar a
ideia do Marielle apenas como um cursinho pré-vestibular gratuito, surge a proposta, partida da
coordenação e acolhida por alguns/as alunos/as, do “Grupo de Ação”, inicialmente composto
por Rogéria e estudantes próximos a ela.

3.2.6.1 O Grupo de Ação

Como uma iniciativa para estimular que mais estudantes se envolvessem com o
cursinho99, a coordenação propôs a criação de um “Grupo de Ação” dos estudantes. Rogéria
(turma C1), Maria100 (turma C1), Roberto (turma B3), Iara (turma B3), Clarice (turma B2) e
Gabriela (turma B2) foram as estudantes que formaram o grupo. Elas criaram um grupo no
WhatsApp para articulação e discussão, no qual eu estou inserida como professora, assim como
alguns da coordenação como Danilo, Tati e Jaci.
O Grupo de Ação protagonizou algumas atividades como a construção da festa junina
de encerramento do primeiro semestre do cursinho e o Arraiá da Marielle, no dia 20 de julho
de 2019. Sobre o Arraiá, a coordenação conseguiu uma banda, Trio Trancelim, para tocar na
festa, já as estudantes do Grupo de Ação fizeram a decoração com bandeiras de São João e
faixas, bem como desenvolveram a ideia de festa colaborativa para que cada pessoa levasse
uma comida junina típica.

até então ainda não tive resposta. Por isso, optei por utilizar um pseudônimo já que não tive contato com ela para
ter autorização de usar seu nome real.
99
De acordo com os relatos da coordenação.
100
Utilizarei pseudônimo para todos/as os/as estudantes por não ter tido contato com eles/as durante o processo
de escrita da dissertação. Com exceção de Rogéria porque, além de hoje em dia ser uma figura pública do Emancipa
e coordenadora, mantenho contato com ela.
100

Figura 6 – Arraiá da Marielle

Fonte: Acervo da autora (2019)

Foi interessante analisar a dinâmica de interação entre esses grupos, estudantes,


professores/as e coordenação na festa. De modo geral, todos/as estavam tímidos/as e
comedidos/as, com exceção de Rogéria que chamava a todos/as para dançar, estratégia que
funcionou ao fim da festa, quando as pessoas começaram a perder a timidez.
Acredito que essa timidez foi devido ao receio de perder-nos em nossos papéis. Embora
no cursinho, por não ser uma instituição de ensino e sim um movimento social, haja uma menor
“fixidez” nos papéis exercidos por cada pessoa, ainda assim é um espaço de formação educativa
e, por isso, há expectativas de como se deve agir. Tanto dos/as estudantes em relação aos
professores/as, quanto dos/as professores/as em relação às/os estudantes. Por exemplo, em
alguns espaços de socialização como o bar, fomos relutantes quanto à presença de estudantes.
A única que frequentou o bar conosco foi Rogéria que, mesmo não bebendo, costumava nos
acompanhar na água com gás.
O medo de cometer "excessos" e a fragilidade desses papéis que são socialmente
construídos a partir de padrões normativos criados nos parâmetros da instituição escolar, foi um
dos fatores determinantes para o comportamento acanhado da festa. No meu caso, tive o receio
de "parar de ser vista como professora" e causar uma confusão nas expectativas dos/as
alunos/as. Isso porque, na relação entre educador/a e educando/a, o/a segundo/a espera que o/a
primeiro/a lhe proporcione referências e também espera dele/a repressões, já o/a primeiro/a
espera do segundo/a admiração e obediência. Essa expectativa é intuitiva e construída ao longo
dos anos de educação escolar, por isso, acabamos por reproduzi-las em nosso comportamento.
Outros fatores que produzem essa tensão entre conforto/desconforto nessas ocasiões, é
o conflito geracional. Apesar do cursinho ter uma maioria de pessoas jovens, há uma diferença
entre ser jovem universitário e/ou trabalhador/a e ser jovem adolescente que está na educação
101

básica. São formas diferentes de viver a juventude que produzem outras concepções de mundo.
Por exemplo, Rogéria foi a estudante mais engajada com o cursinho porque sua juventude
estava mais próxima da nossa101 devido à noção de curso de vida.
Por fim, outro fator é o gênero e a sexualidade. Neste caso, falo a partir da minha
experiência individual a partir dos marcadores presentes no meu corpo. Esses marcadores, que
já me fizeram ser confundida com uma aluna, e se aproximam de um estereótipo juvenil da
lésbica102, que inclusive me fez ser apontada carinhosamente por um aluno como “a professora
sapatão”103, ao mesmo tempo que são uma forma de eu me aproximar mais dos/as estudantes,
também me causam o receio de não ter minha postura professoral reconhecida e exceder os
limites da “relação amigável”, fazendo com que, ao invés de eu ser vista como professora, seja
vista como uma “colega”, “amiga” ou outras coisas.
Outra iniciativa do Grupo de Ação foi na Aula Inaugural do segundo semestre, no dia
17 de agosto. Essa aula teve uma cobertura midiática maior do que a primeira Aula Inaugural
do ano e um número menor de estudantes. Nas aulas inaugurais, geralmente, os/as estudantes
não costumam se apresentar, nem fazer falas, até porque estão conhecendo o cursinho, é um
primeiro contato. Nesta, o Grupo de Ação se apresentou como “grupo” e com uma faixa verde
com a frase “Contra os cortes na educação” (criada por elas).
Um ponto interessante, inclusive destacado pelas meninas no momento da apresentação,
é que Roberto era o único homem do grupo. Provavelmente, ele começou a participar do Grupo
de Ação por influência das amigas. Ele e Iara formavam uma dupla desde o início do ano,
sempre estavam juntas e estudavam na mesma turma. Isso põe em evidência que o protagonismo
de ação no cursinho é feminino mesmo entre estudantes.
Embora tenha sido importante a iniciativa de criação do Grupo de Ação e o engajamento
nessas duas atividades, o grupo ficou estagnado na maior parte do ano. Rogéria tentava
mobilizar algumas ações, mas não deu certo, até porque essas estudantes começaram a evadir
durante o segundo semestre.

101
Rogéria tinha 30 anos na época.
102
Cabelo curto e raspado, trejeitos e modos de vestir desfeminilizados.
103
Um aluno gay, em uma aula minha no segundo semestre, ao entrar na sala e me ver, falou: “Olha! Uma
professora sapatão.”.
102

Figura 7 – Faixa à direita produzida pelo Grupo de Ação na Aula Inaugural do 2º semestre

Fonte: Acervo da autora (2019)

Figura 8 – Encerramento do primeiro momento da Aula Inaugural do 2º semestre

Fonte: Guilherme Prado (2019)

3.2.6.2 O caso de Lorenzo104 e a insatisfação com o Marielle

Sobre os distanciamentos – ou seja, estudantes que mesmo presencialmente no cursinho


mantêm-se emocionalmente afastados –, trago o caso interessante de um aluno que não evadiu,
mas também não se envolveu com a proposta político-pedagógica e questionou-a de forma
enfática.
Lorenzo (da turma C1) foi um dos estudantes mais velhos do cursinho, em torno dos 50
anos, homem negro. Esteve presente no Marielle desde o início do ano, interagia pouco com as
pessoas, mas frequentava todos os espaços. Esteve presente no Arraiá, aparecia nas oficinas,

104
Pseudônimo utilizado para o estudante.
103

em alguns círculos e, apesar de alguns esforços de Tati e de Rogéria, principalmente, em incluí-


lo nas conversas e nos grupos, ele buscava se distanciar.
Suas interações eram mais recorrentes conosco, professores/as, e sempre com a
finalidade de tirar dúvidas, pedir correção de algum exercício e indicações de leituras e
materiais didáticos. No dia da Aula Inaugural do segundo semestre, Lorenzo procurou a mim e
a Diego (professor de história) para pontuar seu incômodo com a defasagem de aulas,
principalmente de redação, e de alguns conteúdos exigidos pelo Enem em algumas disciplinas
(como química).
Eu e Diego conversamos com ele sobre as limitações do Marielle, o fato de contarmos
com trabalho voluntário, a equipe de professores/as reduzida e a disposição de apenas um dia
na semana para dar conta de todo o extenso conteúdo cobrado pelo exame. Explicamos também
que, na prática, mesmo os cursinhos privados, os quais contam com aulas de segunda a sexta (e
às vezes aos sábados), muitas vezes não conseguem passar todo o conteúdo, então, é comum
que aconteça de algumas disciplinas não conseguirem trabalhar com tudo que é cobrado para a
prova.
Lorenzo insistiu no debate e, como forma de desmerecer o Marielle, começou a fazer
uma comparação com os cursinhos da rede de ensino Overdose105. Explicamos a ele que esta
era uma comparação assimétrica já que os cursinhos Overdose fazem parte de uma das maiores
redes privadas da cidade, conta com muito dinheiro para investimento em infraestrutura e um
grande quadro de professores/as. Mesmo assim, Lorenzo tentou insistir na polêmica até que me
pediu para corrigir algumas das redações dele.
Esse foi o contato mais próximo que tive com Lorenzo ao longo do ano. Aceitei corrigir
as redações, explicando que não era a pessoa apropriada para isto, já que minha formação era
em Ciências Sociais, e pontuei que corrigiria só até começarem as aulas de redação. Porém,
mesmo começando essas aulas com Mari, Lorenzo continuou, ao longo do semestre, insistindo
e me entregando as redações dele para correção. Eu parei de corrigir e sugeri a ele que
procurasse Mari, já que ela era a professora de redação, não eu.
Quando começou a se aproximar a data das provas do Enem, que aconteceu nos dias 3
e 10 de novembro, ele começou a se tornar inconveniente e ter atitudes desconfortáveis com
outros/as estudantes. No grupo de WhatsApp da turma C1106, Lorenzo constantemente apontava

105
Uma das maiores instituições de ensino privada do RN, que conta com várias unidades de colégios da Educação
Básica e Cursinho Pré-vestibular espalhadas por Natal.
106
As coordenadoras são adicionadas em todos os grupos das turmas de estudantes, assim como alguns/as
professores/as (eu era uma das que estava em todos). Geralmente os/as estudantes adicionavam os/as professores/as
para que pudéssemos enviar algum material de estudo.
104

o quanto o cursinho estava atrasado nos conteúdos, que a disciplina de química era a mais
atrasada e novamente fazendo comparações com o Overdose. Os/as estudantes reagiram às
mensagens com “deboches”, mandando-o “ir estudar no Overdose”, enquanto Tati e Rogéria,
que estavam em todos os grupos das turmas, tentavam mediar a situação utilizando a mesma
argumentação que eu e Diego já tínhamos conversado.
O ápice da problemática, que levou Lorenzo a ser “convidado a se retirar do grupo”,
aconteceu durante os dias de realização das provas. No segundo dia de prova, ele fez um relato
no grupo afirmando que tinha sido eliminado por uma fiscal que viu um papel em seu bolso na
hora que ele foi ao banheiro. O papel era um número de telefone (segundo seu relato). Ao
mesmo tempo que isso gerou uma comoção de muitos/as, afirmando que ele sofreu uma
injustiça, Lorenzo culpabilizou-se e afirmou que tentaria novamente o Enem próximo ano.
Nos dias seguintes, ele intensificou suas mensagens causando um estresse nos/as
outros/as estudantes que começaram a sair do grupo e insultá-lo. Ele mandava o gabarito das
provas, mesmo sem ninguém ter solicitado, comentava a quantidade de acertos dos/as outros/as
estudantes dizendo “quem iria passar e quem não iria” e mandava vídeos de correções das
questões feitas pela equipe do Overdose. Apesar das intervenções de professores/as e da
coordenação, Lorenzo não parou até o momento que Tati interveio com ele, numa conversa
privada, e ele saiu do grupo.
A permanência de Lorenzo no cursinho, tendo em vista sua insatisfação, é uma questão
que aponta para o quanto a visão que se pode ter sobre o Marielle perpassa alguns extremos: ou
é só um cursinho gratuito ou é só um espaço de militância. Provavelmente, o que o levou a se
manter no Marielle foi a impossibilidade de pagar por um cursinho privado e a ausência de
outros cursinhos populares em Natal aos quais ele pudesse recorrer. Uma hipótese minha para
isso é que o aspecto da militância pode ter lhe causado um grande incômodo, como se
enxergasse os momentos de construção política do movimento social como uma “perda de
tempo”, devido a uma perspectiva mais instrumental sobre a educação que pensa o cursinho
apenas a partir da finalidade de “passar no Enem”.

3.2.6.3 Evasão de Estudantes

A evasão estudantil é um dos problemas estruturais dos cursinhos da Rede Emancipa.


Desde 2017 é comum iniciar o ano com turmas cheias e, principalmente durante o segundo
semestre, contarmos com menos da metade de alunos/as do início, mesmo com a abertura de
novas inscrições. Em 2019, contudo, a taxa de evasão foi maior e mais rápida do que em anos
105

anteriores, isso foi pontuado pelos/as professores/as e por Will, pois a evasão começou logo no
primeiro semestre.
Mesmo as estudantes engajadas do Grupo de Ação evadiram ao longo do segundo
semestre, frequentando o cursinho com menos assiduidade. Acendendo, pois, um alerta sobre
quais motivos estariam levando a tal cenário. Buscando respostas, a coordenação costumava
contatar os/as alunos/as e conversar sobre isso. Os relatos deles/as sobre a evasão geralmente
envolvem problemas financeiros, necessidade de começar a trabalhar, indisponibilidade aos
sábados e o cansaço que se instaura ao longo do ano.
Ciente da realidade dos/as estudantes populares que, muitas vezes, precisam conciliar
trabalho e estudos, e, por necessidade, optar pelo primeiro, devido à urgência do sustento
financeiro, em detrimento ao segundo, é necessário também investigar as origens emocionais
da evasão (LIMA, 2019), uma delas, que aparece com frequência nos relatos dos/as alunos/as,
é a desmotivação.
As causas da desmotivação costumam ser provocadas pelas dificuldades
estruturalmente impostas a estudantes egressos da escola pública, devido a uma aprendizagem
defasada em certos conteúdos e disciplinas, como também por questões específicas referentes
às características organizacionais do cursinho. Por exemplo, a defasagem de aulas de redação e
de matemática, disciplinas essenciais para a prova do Enem.
Além de Lorenzo, eram comuns as reclamações de outros/as alunos/as pela falta dessas
aulas. Decisões, tomadas por nós da equipe docente e coordenação, no início do ano, como as
aulas de uma hora e 40 minutos, também foram motivo de muitas reclamações, as queixas eram
de “aulas muito longas e cansativas”. Por esse motivo, no segundo semestre, essa foi uma das
mudanças na grade horária do cursinho e o retorno às aulas de 50 minutos.
Outra questão que contribuiu fortemente para a desmotivação foi o resultado do
Simulado ENEM realizado em 20 de julho de 2019. Fizemos um Simulado, ao final do primeiro
semestre, com 42 questões objetivas e a redação, 47 estudantes realizaram o Simulado. Ao final,
foi feita uma amostragem com os resultados107: quase metade acertou as questões de
Linguagens, pouco mais da metade acertou as de Humanas, bem menos da metade acertou as
de Ciências da Natureza, pouco mais da metade acertou as de Matemática. Somado a isso, a
avaliação das redações, no geral, não foi muito positiva. Isso causou um desânimo nos/as
estudantes que começaram a ficar desistentes.

107
Devido à qualidade da imagem da amostra, os números de porcentagem estão incompreensíveis e não consigo
ler, só consigo ver os desenhos do gráfico. Por isso, não a inseri aqui no texto.
106

Apesar das tentativas da coordenação de conversar com os/as alunos/as e a estratégia de


uso mais intenso das redes sociais108 para propagandear o cursinho, não houve como abrandar
a evasão. Em 2020, isso foi sentido ainda de forma mais incisiva por não sabermos, de fato,
quem evadiu e quem permaneceu. O virtual nos roubou até o direito de ver quem eram nossos
estudantes e quais rostos permaneceram conosco. Essa desmotivação afetou sobremaneira os/as
professores/as que também começaram a evadir, pois, dentre outros motivos, não se sentiam
motivados a continuar trabalhando sem saber se havia estudantes ou se estávamos dando aula
apenas entre nós. Nas considerações finais, trago um panorama geral de como tal situação
sucedeu.

3.3 Círculos e Oficinas: formação educativa e formação militante

“Na minha opinião, hoje, os círculos são onde a gente [do cursinho] constrói essa
identidade [de movimento social]”. (Mike, em entrevista para a autora, 19 de outubro
de 2020)

Neste momento, discuto sobre os espaços onde a formação política e pedagógica se


encontram e produz práticas educativas fora dos enquadramentos do chamado “ensino formal”
e trago alguns exemplos para ilustrar como eram esses momentos. Os círculos e as oficinas são
as atividades socioeducativas que caracterizam o cursinho como um movimento social, pois
também são atividades de politização. Elas ocorriam em horários sem aula, pela razão de ter
outras atividades que buscassem uma maior integração e participação dos/as estudantes.
As oficinas são atividades mais específicas do Marielle, pensadas para preencher o
espaço do “tempo livre”. Envolvem maior ludicidade e participação dos/as estudantes. Já os
círculos, assim como foi descrito no trecho acima da fala de Mike, são atividades que fazem
parte das características organizacionais gerais dos cursinhos da Rede Emancipa.
Ao longo do ano, houve algumas oficinas com psicólogas e oficinas de dança. Quem
costuma conduzir as oficinas são pessoas convidadas de fora do cursinho, contudo alguns
professores/as também as conduziram – eu e Diego (professor de história) fizemos algumas no
segundo semestre109. Também conduzi uma oficina sobre feminismo, no primeiro semestre,
com amigas que participaram comigo de um curso da Universidade Livre Feminista110. A grade

108
Em 2019, a estratégia de marketing se tornou mais difusa com uma “equipe de comunicação” (só conheci
Mariana, esposa de Danilo) responsável pelas redes sociais do Emancipa, principalmente o Instagram, atuando de
forma mais intensa do que em anos anteriores em paralelo ao crescimento dos cursinhos no estado.
109
Com os temas Poesias femininas e Vivências no Sertão Nordestino.
110
A Universidade Livre Feminista é uma plataforma virtual que promove cursos feministas semipresenciais e o
compartilhamento de debates e produções. Disponível em: https://feminismo.org.br/
107

horária das oficinas foi organizada em 2019 por Jaci que costumava contatar as pessoas e trazer
os/as oficineiros/as. Quando eram os/as professores/as do cursinho, falávamos com ela para
agendar o sábado. A presença dos/as alunos/as não era obrigatória, mas quando alguma oficina
estava esvaziada, costumávamos pedir aos alunos/as para participar.
Os círculos eram organizados, principalmente, por professores/as e coordenação, às
vezes, recebíamos convidados/as de fora do cursinho para debater algum tema específico.
Todavia, os círculos não funcionaram com muito êxito ao longo do ano, alguns sábados não
houve círculo. A presença dos/as estudantes, aqui, era requisitada.
Antes de trazer algumas das experiências de círculos e oficinas que aconteceram ao
longo do ano, discutirei a perspectiva freireana de conceber o “tempo” e os “círculos de
cultura”, pois é a partir dessas teorizações metodológicas que o cursinho elabora essas práticas
educativas.
Assim como vimos no primeiro capítulo, os Círculos de Cultura são estratégias de
ensino que parte da compreensão dialógica da educação, funcionando como uma opção
metodológica de aprendizagem.
Um coordenador se organiza circularmente com não mais de 25 pessoas. Os
participantes empenham a linguagem, codificam e decodificam suas realidades para,
a partir daí, escolher o tema gerador para o debate e novas construções. “O
coordenador, quase sempre um jovem, sabe que não exerce as funções de “professor”
e que o diálogo é condição essencial de sua tarefa, “a tarefa de coordenar, jamais
influir ou impor.” (FREIRE, 1965, p. 11). Não há um professor detentor do saber, nem
um aluno que nada sabe e necessita memorizar conteúdos. (GOMEZ, 2014, p. 2) .

O objetivo dos círculos de cultura é a formação processual a partir das diferentes leituras
de mundo que os/as participantes compartilham e, a partir da interseção entre essas diferentes
leituras, busca-se um eixo temático em comum para uma discussão na qual todas/os estão num
processo dialógico de aprender e ensinar. Esse é o “método” proposto por Paulo Freire que
contextualiza a história de vida dos/as educandos/as para pô-la no centro da aprendizagem.
Assim, é possível que o ensino tenha um caráter crítico e socializador no qual o contexto
político, social e individual de cada um/a é relevante para a aprendizagem do coletivo.
A própria disposição espacial do círculo é pensada nesse sentido. As pessoas se reúnem
circularmente de modo que todas possam se olhar e todas permanecem sentadas, o que indica,
simbolicamente, que todas estão no mesmo nível. Na sala de aula, as cadeiras estão todas
viradas de frente para o quadro para que os estudantes vejam o professor que permanece de pé
fazendo anotações no quadro. O/a professor/a de pé e os/as alunos/as sentados/as revela,
simbolicamente, o desnível entre eles/as: o/a professor/a está acima dos alunos/as. A disposição
108

das cadeiras viradas para o/a professor/a revela a quem os/as alunos/as devem, unicamente, dar
importância na sala de aula.
De modo a reiterar o debate do primeiro capítulo, ressalto que o círculo de cultura não
é um método pronto e acabado a ser aplicado, é uma estratégia de aprendizagem que se realiza
com a participação dos membros (GOMEZ, 2014, p. 5), ou seja, é um método que se faz em
seu próprio fazer. Por isso, ao longo do ano no cursinho, houve erros, acertos, hiatos e diversas
tentativas de concretizar o círculo. Todas tentando seguir o mesmo princípio teórico-
metodológico e atingir um objetivo de formação política.
A reflexão de Passos (2008) é fundamental para compreender a concepção de “tempo”
em Paulo Freire. A ideia principal presente no autor é do tempo como “autopoiese”, ou seja,
como espaço de autoprodução e criação que humaniza à medida que transforma a humanidade,
transformando o mundo (PASSOS, 2008, p. 496).
Para Freire, qualquer tempo vivido precisa ser apresentado como seu próprio tempo,
que se entrelaça na grande roda de outros seres semelhantes cujas temporalidades
precisam ser entrelaçadas em uma comunidade de destinos e lutas coletivas. Freire,
frequentemente, refere-se a dar tempo cultivando uma paciência histórica, inteligente
e inquieta, necessária para que o educador, ao lado dos educandos, não quebrem
processos pessoais e sociais de humanização. (PASSOS, 2008, p. 495)

O tempo, nesse sentido, precisa ser transformado em luta coletiva, pois o tempo é
histórico, incompleto, mutante e passageiro (SEVALHO, 2016, p. 182). Para compreender essa
ideia é necessário atentar para o que Passos (2008) coloca como a crítica de Freire à
“naturalização do tempo da dominação” que significa o uso do tempo como forma de
dominação política.
De acordo com Sevalho (2016), a concepção de Freire sobre o tempo, no que toca o
debate sobre educação, perpassa o jogo dos contrários “permanência-mudança” (p. 183). Se
para Freire (1994) “a educação se re-faz constantemente na práxis”, sua duração é um processo
constante de mudança porque o tempo, dentro da educação problematizadora, é a oportunidade
de luta pela libertação e pela transformação social (SEVALHO, 2016). Já a educação bancária
enfatiza a permanência, ou seja, é a permanência da ordem disciplinar, o tempo é encarado não
como espaço de auto-produção e criação, mas sim de reprodução.
Dessa forma, a concepção freireana de tempo dentro da educação é do espaço de
produção crítica em busca da libertação do ser humano. Por isso, o “tempo livre” para o
cursinho é o espaço que se pretende dedicar ao “ócio criativo”. É possível perceber que pensar
sobre o tempo dentro dessa concepção é demasiado abstrato e, na prática, o chamado “tempo-
109

livre” tornou-se um espaço comum de “intervalo” entre as aulas111. Por isso, as oficinas surgem
para preencher esse espaço com uma atividade pedagógica e um acréscimo ao “tempo-livre”.
Danilo, que ministrou alguns círculos e oficinas ao longo do ano, falou sobre a
receptividade dos/as estudantes e professores/as e sobre o planejamento dessas atividades:
Danilo: Então, os círculos, eu sempre encarei como um duplo espaço. Primeiro, um
espaço de dar o cursinho um pouco nas mãos dos alunos. Dividir um pouco dos
problemas que a gente passa como coordenação e movimento popular, e de um
cursinho feito por voluntários, então, o papel organizativo, organizar a limpeza do
espaço, entender quais são as dificuldades, por que o horário tá daquele jeito, por que
às vezes não tem professor, essas coisas funcionam como um espaço de socialização
que busca alternativas coletivas. Segundo, um espaço de debate, formulação e
formação política. E eu acho que funciona um pouco de acordo com a conjuntura...
do local, do país e do próprio cursinho. O cursinho no início do ano ele é muito mais
mobilizado, cheio, mais pulsante, então era onde os círculos tinham mais intensidade.
Ao passo que no final do ano, as discussões ficavam menores, mas ao mesmo tempo
com alunos que tinham um grau de interesse, que já tinham se aprofundado também,
tinham mais ferramentas e mais segurança. Então, eu acho que ao longo do ano oscila
muito [...] Por isso eu digo que esse método [de organização dos círculos] tem que tá
sempre em transformação porque ele tem a ver com o perfil que você tá atendendo.
Assim como as oficinas, eu lembro que a gente fez uma vez uma oficina sobre
violência obstétrica [no início de 2019] e aí a gente ficou até na dúvida porque não é
uma coisa que se debate muito, e aí isso interessou tanto as meninas mais jovens e
também as mulheres mais velhas, então foi algo bem interessante… e era um tema,
assim, que você não imagina que vá colar tanto, mas colou e foi muito bom, então,
essas experiências oscilam muito.... E os professores também oscilavam, eu acho que
o envolvimento político se dá por como tá o cursinho, se você tá com o cursinho cheio,
isso é algo que motiva muito o professor [...] Então esses movimentos de participação
e de esvaziamento são um pouco cíclicos, eles respondem a vários fatores e os
métodos acabam respondendo a partir disso.

3.3.1 Definição, metodologia e orientação para os Círculos e as Oficinas

Acredito que a orientação da coordenação que colocava os Círculos e as Oficinas em


todas as grades horárias semanais impulsionou bastante a participação estudantil porque, desse
modo, constando como atividades recorrentes e com um horário fixo, os/as estudantes
compreendiam a importância e sentiam-se instigados/as a participar.
Os círculos aconteciam pela manhã, entre o término do primeiro horário de aula e o
horário do almoço (10:10h às 11h) e as oficinas aconteciam à tarde, entre o segundo e o terceiro
horário de aula (13:40h às 14:30h). Apesar dos círculos não terem tido a mesma organização
das oficinas, com alguns hiatos de semanas porque não havia quem pudesse ministrá-los,

111
O que não é necessariamente um problema porque a construção político-pedagógica também se faz em espaços
comuns de convivência e socialização. A exemplo o espaço do bar que é o espaço no qual consegui construir
relações mais próximas com as pessoas do cursinho e no qual trocamos experiências e compartilhamos reflexões.
110

minhas poucas observações112 sobre eles sugerem que nessas atividades havia maior
participação de estudantes devido ao fato de ocorrer fora das salas de aulas e unindo a todos/as.
As oficinas costumam acontecer duas simultaneamente e dentro das salas de aula.
No caso das oficinas, como geralmente eram ministradas por pessoas de fora, Tati com
a ajuda de Rogéria, solicitava a participação dos/as alunos/as mais próximos (da coordenação,
dos/as professores/as, geralmente os/as alunos/as do grupo de ação) porque, caso houvesse um
esvaziamento do espaço, provocaria um desconforto com os/as convidados/as que dispunham
sua disponibilidade para realizar atividades no cursinho113.
Em relação à definição dos círculos, no primeiro semestre, a pessoa encarregada de
organizar os temas e a metodologia era Marília, mas com seu afastamento, o espaço diminuiu
sua frequência. Tati e Danilo chegaram a organizar, no início do ano, um círculo cuja
metodologia consistia em dividir os/as estudantes em alguns grupos menores, juntos com cada
professor/a, e elaborar para cada grupo algumas questões norteadoras sobre o tema geral para a
discussão acontecer de forma mais participativa.
Assim como Danilo elucidou na entrevista, não havia um método pré-estabelecido ou
uma metodologia a ser seguida nessas atividades. O único princípio basilar era que não fosse
uma “aula”, pois a proposta do espaço era estimular o aspecto lúdico e criativo, além do diálogo
com estudantes (o que nem sempre ocorria). Tanto nas oficinas como nos círculos, a
metodologia da atividade dependia de quem estava ministrando. Nas oficinas com a psicóloga,
por exemplo, a metodologia era próxima a uma “roda de conversa”, já as do professor Diego
consistiam em “jogos educacionais”.
A seguir, trago exemplos de algumas dessas atividades. Como não tive condições para
participar de todas, enfatizei as que participei seja como observadora ou como oficineira.

3.3.2 Oficina de Danças Urbanas

112
Participei pouco dos círculos porque não conseguia chegar a tempo. Moro em um bairro da região
metropolitana de Natal (Nova Parnamirim, no município Parnamirim) e precisava pegar dois ônibus para chegar
ao cursinho, Por isso, minhas aulas normalmente aconteciam à tarde e eu chegava na UERN no horário de almoço.
113
É válido destacar que todas as atividades ocorriam sem retorno financeiro.
111

Figura 9 – Danças Urbanas

Fonte: Acervo da autora (2019)

No dia 13 de abril aconteceu a oficina de Danças Urbanas com a professora e artista


Ariadna Medeiros. Em seu perfil do Instagram, a denominação é Danças Afrodiaspóricas,
mesclando estilos como hip hop dance, whacking, house114. As oficinas costumavam acontecer
dentro das salas de aula, mas nesta, por se tratar de dança, aconteceu no corredor das salas.
Pelo fato de a oficina ter acontecido no espaço aberto, muitos/as participaram, mesmo
quem, como eu, preferiu ficar nos entornos e não nas fileiras perto de Ariadna. As alunas eram
as mais empolgadas com a dança, apesar de alguns alunos e professores/as também terem
participado, dentre eles, Sérgio, Mike e Danilo. Pelo registro fotográfico acima, é possível ver
em torno de dez alunas, junto à Ariadna, e os professores Sérgio e Mike.
O momento foi descontraído, Ariadna e as alunas brincavam com as posições e gestos
que eram feitos na performance das danças, chamavam outros/as estudantes para participar.
Alguns/as, quando viram que estavam sendo fotografados/as, saíam das fileiras e ficavam nas
proximidades. Danilo também chamava outros/as professores/as para participar, Mike e Sérgio
foram os mais animados. Duas alunas, as irmãs da turma B3, pareciam as mais atentas e as que
mais acertavam os passos nas danças.

3.3.3 Oficina da Aula Inaugural no segundo semestre

Na Aula Inaugural do segundo semestre, do dia 17 de agosto, o professor de história


Diego teve a ideia de fazermos oficinas no turno da tarde. Até então, as aulas inaugurais

114
Hip hop dance: danças sociais ou coreografadas associadas à música hip hop. Wacking: forma de dança de rua
criada em clubes LGBT de Los Angeles com um estilo discoteca da década de 70. House: dança sob batidas do
house music, vertente da música eletrônica.
112

aconteciam apenas pela manhã seguindo o roteiro de apresentação do cursinho e da equipe aos
estudantes, alguma atividade lúdica como declamação de poesias e depois a confirmação das
matrículas. No segundo semestre, tivemos esse momento pela manhã e, após a confirmação das
matrículas, um lanche coletivo seguido de três oficinas ocorrendo simultaneamente. As oficinas
foram: um circuito com experimentos físico-químico mediado por Jaci e Sérgio, a outra oficina
de RPG em Cordel mediada por Diego e a oficina de Criação Poética mediada por mim.
A oficina que eu mediei foi com um jogo poético produzido por Diego e seu grupo
Historiart115 que se chama Sertanílias Poéticas. A metodologia do jogo conta com uma série de
instruções e o material é o cordel Mares do Sertão, um dos jogos de RPG produzido por Diego.
Utilizei a mesma metodologia do jogo original com os passos: as/os participantes
organizados/as em círculo e apresentação pessoal. Os cordéis, postos no meio do círculo, foram
distribuídos para cada participante e cada um/a escolheu uma poesia nele.
Após a escolha, cada pessoa leu a poesia (ou um trecho dela) em voz alta e escolheu um
verso que mais tenha gostado, interpretando-o e falando sobre o motivo da escolha. A
mediadora (neste caso, eu) comentou sobre os versos escolhidos e, após os comentários, pedi
aos participantes para se reunirem em duplas ou trios. O importante era ninguém ficar só, porque
no próximo passo a dupla/trio deveria combinar os versos que escolheram da forma mais
interessante, inclusive, podendo reordenar as palavras. Feito isso, o último passo foi a dupla/trio
criar um novo verso para combinar com os dois escolhidos e interpretar ou recitar os versos
combinados.
Ao todo, cerca de 20 estudantes participaram. Uma delas, uma aluna em torno dos 40
anos que é cordelista e por isso foi a mais atenta e envolvida com a oficina. Ao fim da dinâmica,
fiz um sorteio do meu livro, Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, e a aluna
sorteada, para minha alegria e dela, foi justamente a cordelista. Na hora de criar o verso, ela
criou uma poesia inteira e declamou-a sob os aplausos da turma.

3.3.4 Oficina sobre feminismo

Esta oficina aconteceu no dia 15 de junho. Nessa época, eu estava participando de um


curso da Universidade Livre Feminista com quatro amigas, Shimene, Alessandra, Suzanne e
Cris, e juntas fizemos uma atividade política para o curso intitulada: “Por que existe
diferença?”. Eu, Suzanne e Cris somos colegas de curso (graduação e mestrado em

115
O grupo tem uma página nas redes sociais disponível em: https://www.facebook.com/grupohistoriart/.
113

Antropologia), Suzanne é licenciada em Ciências Sociais e minha colega de turma do mestrado,


Cris, à época, também mestranda e concursada que trabalha na Assistência Social da prefeitura
de Natal, Shimene é trabalhadora da área da saúde e Alessandra, à época sua namorada, é
professora de Letras e ingressou em 2019 na graduação em Ciências Sociais.
A oficina versava sobre desigualdades de gênero. Nós escolhemos o modelo,
metodologia e tema da oficina como atividade final do curso da Universidade Livre Feminista.
Foi solicitado às cursistas que realizassem alguma atividade com o público externo (ao curso)
no qual poderíamos aplicar o que estudamos. A metodologia havia sido elaborada por Suzanne
em uma aula que ela ministrou do estágio na graduação, ela comentou conosco que costumava
acontecer brigas e provocações entre as meninas e os meninos, em suas palavras: “Na turma
onde eu fiz a oficina [um 3º ano do ensino médio de uma escola pública de Natal] rolava muita
briga viu. Eu me estressava demais com os meninos, era muita piadinha machista, não levavam
a sério, tinha que ter muita paciência com o grupo dos meninos, mas as meninas.... Ah! Elas
fechavam com a cara116 deles”117.
No momento da oficina, dividimos as/os estudantes em três grupos: um grupo só de
meninas, outro só de meninos e outro misto, nos quais cada grupo ficou responsável por discutir
algumas questões colocadas por nós e escrever as respostas em cartolinas para depois debater
entre todos os grupos. A dinâmica contou também com a participação de uma das professoras
de redação (Karin), Marília (que à época ainda estava no cursinho) e cerca de 17 estudantes
(sete rapazes e dez meninas).
O grupo das meninas ficou com as perguntas: “Qual o papel do homem? O que
mudou?”; o grupo dos meninos ficou com: “Qual o papel das mulheres? O que mudou?”, e o
grupo misto: “O que é feminismo? Quais as pautas?”. Eu fiquei responsável por mediar a
discussão no grupo dos meninos e as outras duas amigas se dividiram nos outros grupos.
Durante a realização da oficina, as reações dos/as estudantes foram mais comedidas do
que o esperado. No momento da discussão geral (entre todos os grupos), não houve grandes
exaltações, diferente da experiência que Suzanne relatou com a oficina na escola. O grupo das
meninas teve as respostas mais incisivas e provocativas, direcionadas principalmente ao grupo
dos meninos que concordaram com quase tudo e, mesmo nas discordâncias, não levantaram
grandes polêmicas, já o grupo misto teve as respostas mais conciliatórias.

116
Gíria usada quando, em uma briga ou discussão, alguém tem uma atitude e argumentação que deixa a outra
pessoa desestabilizada e em silêncio.
117
Fala de Suzanne reproduzida por mim nesse trecho.
114

No debate geral, houve alguns momentos de provocação sutil direcionada ao grupo dos
meninos. Rogéria, que estava no grupo das meninas, questionou em tom provocativo: “Os cara
acha que machismo é só bater na mulher, gritar, xingar, mas diga aí vocês, machos, quem lavou
sua cueca hoje? Quem varreu a casa? Foi tu ou foi tua mãe? Ou tua mina? Isso é machismo
também visse, sobrecarregar a gente [mulheres] nas tarefas da casa”118.
Esses momentos de provocação produziam muitos risos nas meninas e timidez nos
meninos que ficaram calados a maior parte do tempo. Um dos alunos do grupo dos meninos,
quando tentou responder ao questionamento afirmando “ajudar” nas atividades domésticas, era
interrompido com o “seeeei”, “tá certo” e “é obrigação” das meninas.
Por fim, concluímos a oficina em cerca de uma hora e o debate aconteceu de forma
tranquila e divertida, sem grandes exaltações. Ao término, fizemos um lanche coletivo, que eu
e as amigas levamos para o cursinho.

3.3.5 Círculo Tsunami da Educação

No dia 11 de maio, Tati organizou um círculo cujo tema era o ato que aconteceria no
dia 15 de maio, que ficou conhecido como “Tsunami da Educação”. O círculo foi pensado para
discutir sobre os cortes na educação119 e organizar um “Bloco do Emancipa” para estar presente
no ato segurando faixas, cartazes e com as camisas do cursinho.
Esse círculo, que aconteceu no corredor do miniauditório, teve dois momentos, da
discussão e da produção de faixas e cartazes. Não cheguei a tempo de acompanhar a discussão,
acabei perdendo metade dela. Só presenciei a fala de um aluno sobre sua experiência com as
Jornadas de Junho de 2013: “Eu vou pro ato esperando que esse seja o início de algo maior,
tipo o que rolou em 2013 [as Jornadas de Junho]. E acho que tem que radicalizar mesmo, tipo
a galera que radicalizou em 2013, porque esse governo, com esses cortes [na educação], quer
acabar com tudo”120.
Houve mais algumas falas de Tati e de alguns professores, mas outros/as estudantes
permaneceram mais quietos à espera do segundo momento do círculo. Tati havia levado os
materiais: faixa verde de TNT, cartolinas, alguns pilotos coloridos, tintas de spray preta e
vermelha. Uma parte dos/as alunos/as pintou a faixa, na parte gramada para não manchar o chão

118
Fala de Rogéria reproduzida por mim nesse trecho.
119
Consultar: https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/tsunami-da-educacao-protestos-acontecem-em-todos-
os-estados-e-no-dF1.
120
Não lembro o nome dele.
115

com tinta, e outros/as produziram seus cartazes com as cartolinas. A faixa foi escrita com a
frase escolhida por eles/as: “Não cortarão o nosso futuro”.

Figura 10 – Oficina Tsunami da Educação

Fonte: Desconhecida (2019)

Há uma outra foto, de um círculo do dia 24 de agosto, que não participei, mas colocarei
aqui para ilustrar como eram os momentos dos círculos quando havia ampla participação dos/as
estudantes. A foto foi compartilhada no nosso grupo geral de WhatsApp Rede Emancipa RN121.

Figura 11 – Círculo sobre a Amazônia

Fonte: Desconhecida (2019)

121
Não tenho conhecimento sobre quem é o autor da foto.
116

O tema deste foi sobre a situação na Amazônia logo após o início da polêmica
envolvendo o desmatamento na floresta. Na data 19 de agosto de 2019, conhecida como “o dia
que virou noite em São Paulo”122 , após as fumaças do fogo que consome123 a região amazônica
chegar à cidade escurecendo-a em plena luz do dia, acendeu-se o alerta em relação ao
agravamento das queimadas e das mudanças climáticas desencadeadas.
Por fim, a intenção dessa discussão em torno das práticas educativas de formação
nomeadas como círculos e oficinas foi compreender o porquê elas são importantes para o
Marielle e vislumbrar como são os momentos nos quais elas acontecem. O espaço dos círculos
passou por algumas inconstâncias que inviabilizou o acontecimento dele em muitos sábados,
enquanto as oficinas surgiram como uma proposta nova, pois até 2018 elas não faziam parte do
cotidiano do cursinho.
É importante sinalizar que essas práticas são consideradas e discutidas em construções
coletivas durante as reuniões do cursinho. Essas reuniões são momentos de socializar as ideias,
decidir quais são viáveis e pensar como materializá-las. É óbvio que, no decorrer do cotidiano
do cursinho, muitas coisas não acontecem como planejado nas reuniões e isso é avaliado após
o término de um semestre e antes do início de um novo.
O objetivo até este momento foi dissertar etnograficamente sobre como o Marielle
aconteceu, em seu cotidiano, ao longo do ano de 2019. Algumas pessoas que ajudaram a
construir esse grande e múltiplo cursinho, os espaços físicos e educacionais (suas práticas
educativas) que o compõem e dão ao Marielle a identidade de um movimento social.
O debate em torno dos usos e apropriações teóricos de “favela” e da disputa pela Zona
Norte de Natal servem à compreensão de como o Emancipa se insere nas periferias e reivindica
esse caráter “periférico” que está relacionado ao público, principalmente de estudantes, que
procura os cursinhos. Adentrar numa região periférica é também uma forma de se aproximar
dos/as alunos/as que, em muitos casos (como vimos na discussão sobre a mobilidade urbana na
avenida João Medeiros), precisam se deslocar para poder estudar porque sua região não é
prioridade dos investimentos públicos. Assim, é possível seguir adiante com uma visão
dimensional do que foi o Marielle nesse espaço de tempo.

122
Consultar: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/08/19/dia-vira-noite-em-sao-paulo-com-chegada-
de-frente-fria-nesta-segunda.ghtml.
123
As queimadas agravaram-se ao longo de 2020 e o desmatamento segue em curso com a política de “passar a
boiada” de Ricardo Salles, nomeado Ministro do Meio Ambiente, que segue em favor do agronegócio. Consultar:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-
regramento-e-simplificar-normas.ghtml.
117

4 ENTRE O MOVIMENTO SOCIAL E O PARTIDO: EDUCAÇÃO POPULAR OU


EDUCAÇÃO PARTIDÁRIA124?

A discussão deste capítulo segue em duas frentes: o debate em torno do que chamarei
de “perfil Emancipa”, termo falado por Tati em uma das nossas conversas, e como isso foi
sendo construído ao longo de 2019, mas especialmente em 2020 com o uso mais intenso das
redes sociais. Esse “perfil” traz uma representatividade feminina e negra reveladora do público
que procura o Emancipa, os/as estudantes, que, como vimos no capítulo dois, são em maioria
mulheres e pessoas não-brancas. Para isso, busco destacar o papel de três mulheres que tiveram
um protagonismo no cursinho em 2019: Tati, Jaci e Rogéria. Consequentemente, as três atuaram
em 2020 como coordenadoras (Tati já era coordenadora desde 2019), sendo o objetivo desse
capítulo abordar o processo de construção militante a partir das trajetórias de Jaci e Rogéria.
Na outra frente, discuto sobre como a interlocução entre o partido e o movimento social
faz parte das práticas educativas de formação no cursinho e podem ser vistas de forma
materializada nas figuras de Tati, Danilo e Will – a primeira coordenação do cursinho, formada
por três militantes da mesma corrente partidária. Trago também para análise a candidatura, de
2020, à vereadora de Tati, destacando como, de certo modo, isso provocou impactos na imagem
do Marielle, tornando mais nítida a sua relação com o PSOL.

4.1 O debate antirracista e feminista no Marielle

O texto “Quem tem medo das pedagogas negras?”, de Cardoso (2015), é um ótimo
material para iniciar a discussão deste capítulo. A pergunta de Cardoso (2015) encaminha para
uma discussão sobre os espaços de fala das mulheres negras na sociedade brasileira e sobre o
processo de branqueamento e feminização da docência que relegou as mulheres negras do
ensino formal fazendo com que elas ocupassem os espaços da educação não-formal. A autora
aponta, como exemplo, seis mulheres negras, além de sua mãe e sua avó, no seu bairro
Saramandaia, periferia da cidade de Salvador na Bahia, que são responsáveis pela alfabetização
das crianças devido às dificuldades de acesso da população periférica às escolas.

124
Na pesquisa bibliográfica não encontrei nenhum material em específico que elabore uma conceituação para o
termo “educação partidária”, por isso, de maneira preliminar estou entendendo educação partidária como uma
apropriação de alguns dos objetivos político-pedagógicos associados à educação popular, moldando-os para os
fins de formação política direcionada a educandos/as que, eventualmente, possam atuar como militantes para um
partido.
118

Embora não aprofunde sua reflexão, a resposta que Cardoso (2015) dá ao


questionamento em seu texto serve como um norteador para as discussões que envolvem
mulheres negras assumindo lideranças dentro dos espaços da educação. O foco de análise da
autora é a educação formal, especificamente, o curso de Pedagogia no qual ela contextualiza a
inserção das mulheres negras e sugere que a opção pela Pedagogia é uma escolha política, pois
representa um caminho de possibilidades para a formação profissional das mulheres negras,
além de ser um espaço viável para uma atuação política e pedagógica antirracista (CARDOSO,
2015).
O apontamento de Cardoso (2015) sobre a secundarização das mulheres negras na
educação formal é uma questão interessante para pensar o protagonismo das mulheres negras
no Marielle. Sobre isso, hooks (2013) afirma:
Para os negros, o lecionar – o educar – era fundamentalmente político, pois tinha
raízes na luta antirracista. Com efeito, foi nas escolas de ensino fundamental,
frequentadas somente por negros, que eu tive a experiência do aprendizado como
revolução. Quase todos os professores da escola Brooker T. Washington eram
mulheres negras (...) Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do
intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as
estratégias brancas de colonização racista. (HOOKS, 2013, p. 10)

Não é de se surpreender que, ocupando historicamente um protagonismo na educação


antirracista, um espaço educativo dentro de um movimento social também seja prioritariamente
tocado por mulheres negras. A instrumentalização política desse dado, junto ao público massivo
de estudantes do Marielle, resulta nesse “perfil Emancipa” e num intenso debate antirracista e
feminista em suas práticas educativas de formação dentro do cursinho e nas redes sociais.
A relação entre educação, “pedagogia revolucionária”, como fala hooks (2013), – que
consequentemente precisa ser antirracista – e movimento negro é discutida por inúmeros
educadores/as e pensadores/as. No primeiro capítulo, aponto o movimento negro como um dos
principais atores políticos que engajaram o Movimento Social dos Pré-vestibulares Populares,
não por acaso, tal relação é histórica. Gomes (2017) aborda isso em seu livro “O Movimento
Negro Educador”, trazendo o movimento negro brasileiro como um importante ator político na
educação:
Os projetos, os currículos e as políticas educacionais têm dificuldade de reconhecer
esses e outros saberes produzidos pelos movimentos sociais, pelos setores populares
e pelos grupos sociais não hegemônicos. No contexto atual da educação regulada pelo
mercado e pela racionalidade científico-instrumental, esses saberes foram
transformados em não existência, ou seja, em ausências. (GOMES, 2019, p. 42 e 43)

É fato que há uma ausência sobre o que é produzido nas práticas educativas fora dos
contextos escolares e que, embora não substitua a escolarização, faz-se necessário um resgate
sobre esses outros “saberes” e outras “pedagogias” não-institucionais, pois é na educação
119

construída em movimentos sociais que há um tensionamento e desvelamento sobre as


desigualdades educacionais do país.
Gomes (2017) também ressalta o Movimento de Mulheres Negras na reflexão sobre a
educação, destacando a Marcha Nacional das Mulheres Negras125 em 2015 como um marco
para a luta pelas políticas públicas. Por isso, foi necessário a esta dissertação um adensamento
etnográfico em torno das trajetórias de Tati, Jaci e Rogéria para a compreensão de como isso
estruturou o cursinho.

4.2 O “perfil Emancipa”: Representatividade feminina e negra do cursinho

Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente prá uma festa deles,
dizendo que era prá gente também. Negócio de livro sobre a gente, a gente foi muito
bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até prá sentar na mesa
onde eles tavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido,
discriminado, explorado. (...) E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente, deu uma de atrevida. Tinham
chamado ela prá responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa prá falar no
microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na
festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso prá
bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava prá ouvir discurso
nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. Tinham
chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava
daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente
mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma
porção de coisa prá gente da gente? (...) Foi aí que um branco enfezado partiu prá
cima de um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a
festa acabou em briga... (GONZALEZ, 1984, p. 223)

Esse excerto do texto “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, de Gonzalez (1984),


me remete a um diálogo com Rogéria no dia 19 de abril de 2020. Nas entrevistas virtuais que
realizei com Rogéria, Jaci e Tati em 2020, pedi que me falassem um pouco sobre a experiência
delas no cursinho. Em um certo momento da conversa com Rogéria, ela me questionou: “Agora,
uma dúvida: Por que você só procurou mulheres negras pra essa pesquisa?”126
Expliquei a ela que não foi uma escolha minha, mas que, por ser um dado relevante do
campo, o protagonismo de atuação delas, precisaria ser trabalhado na dissertação de forma
densa. Por isso, optei por reservar ao tema um capítulo completo no qual também faço
interlocuções com outros dados do campo. Ao ler Gonzalez (1984), lembrei do questionamento

125
A Marcha das Mulheres Negras é um ato estratégico realizado desde 2015 que é organizado por fóruns, redes,
coletivos e articulações de mulheres negras e visa ampliar as reivindicações pela destruição das estruturas racistas
e sexistas na sociedade. Em 2015, a Marcha ocorrida em Brasília com o tema “contra o racismo, a violência e pelo
bem viver”, teve relatos de agressão contra algumas das participantes, além de disparos de arma de fogo por um
defensor da intervenção militar. Consultar: https://www.ipea.gov.br/participacao/noticiasmidia/participacao-
institucional/movimentos-sociais/1310-marcha-mulheres-negras-2015.
126
Trecho de um diálogo extraído do WhatsApp.
120

de Rogéria porque a pensadora começa sua reflexão com uma epígrafe (do início deste tópico)
que descreve a cena de pessoas brancas explicando sobre racismo para pessoas negras,
enquanto, simultaneamente, eximem-se do seu próprio racismo.
A cena descrita por Gonzalez (1984) revela como o mito da democracia racial desenha
as relações entre pessoas negras e brancas no Brasil. A autora nomeia essa relação como uma
infantilização das pessoas negras na medida em que sua fala é apropriada por pessoas brancas
(GONZALEZ, 1984, p. 225). Essa infantilização e apropriação da “fala própria” também serve
à lógica de dominação branca brasileira para domesticar as pessoas negras (GONZALEZ,
1984), apropriando-se de seus espaços de fala e eximindo-se de sua posição racista dentro de
uma sociedade racializada.
Considerei o questionamento de Rogéria necessário, afinal, é necessário atentar ao lugar
social que ocupo, enquanto mulher branca, e aos diferentes significados que uma fala, a partir
de um determinado lugar social, pode gerar. Por conseguinte, optei por começar este tópico
com a pergunta de Rogéria porque ela abre margem para um debate muito caro ao cursinho e
às práticas educativas de formação, sobre como racismo e sexismo operam de uma forma
interseccional na sociedade brasileira. Haja vista, começarei a apresentar Rogéria.

4.2.1 Rogéria

A primeira aula que ministrei no cursinho, no dia 30 de março de 2019, foi na turma de
Rogéria (a C1) e ela foi o primeiro contato que tive entre os/as estudantes. Logo naquele
primeiro momento, o que mais me impressionou sobre Rogéria foi sua altivez e tive uma
impressão que se confirmou ao longo do ano: “essa vai fazer o nome127 aqui, ela vai ser mais
do que ‘aluna’”.
Minha aula nesse dia foi sobre os fundamentos básicos da Sociologia, planejei abordar
algumas das ideias dos autores clássicos, mas Rogéria não me deixou parar por aí, e eu – que
já tinha em mente não fazer uma aula insípida e puramente teórica – fiquei empolgada com os
questionamentos que vieram. Assim que entrei na sala, Rogéria, e outras alunas impulsionadas
por ela, brincaram com meu atraso como quem brinca com uma colega de turma128. Essa atitude,
que em nenhum momento me constrangeu porque a intenção de Rogéria foi “quebrar o gelo”

127
“Fazer o nome” ou “faz teu nome” é uma gíria que expressa quando alguém faz algo considerado incrível.
128
Como já mencionei no capítulo dois, a forma como meu corpo impacta os/as estudantes costuma provocar um
sentimento de aproximação devido à percepção de “semelhanças” por faixa etária, modo de performar gênero e
sexualidade.
121

causado pelo atraso, também abriu margem para uma aula dialógica que ela acabou por
protagonizar com seus questionamentos e discordâncias.
Logo de início, Rogéria mostrou o quão caro é para ela o debate antirracista e tratou de
inseri-lo na aula antes mesmo que eu pudesse fazê-lo. Rogéria, em todos os espaços do cursinho,
sempre foi uma pessoa proativa que toma a iniciativa para fazer e falar o que acredita ser
necessário ao momento e à situação. Esse traço de sua personalidade evoca muito sobre sua
biografia.
Segundo seus relatos, ela passou por várias tentativas de ingressar na UFRN através do
ENEM e falou algumas vezes ao longo do ano que aquela seria sua última tentativa. Rogéria
tem 30 anos, concluiu um curso técnico pelo IFRN, foi estudante de escola pública e é uma
trabalhadora informal que, como tantas, vivencia os pesares da realidade de subemprego e corte
dos direitos trabalhistas no país.
Por outro lado, a informalidade também fala muito sobre a autonomia de Rogéria que,
ao longo desses anos, sempre mostra um lado novo disposto a criar. No início de 2019, ela
confeccionava cadernos e blocos de anotações, um desses encomendei a ela e o outro ganhei de
presente ao final do ano. Foi seu gesto de carinho e demonstração de afeto a mim, à Tati, à Jaci
e à Bia, é assim que Rogéria demonstra sua afeição, criando arte com as mãos. Ao longo desse
ano ela também vendeu comidas no cursinho: doces, empadas, alfajores etc. Ao final de 2019,
Rogéria iniciou uma nova empreitada: a produção de móveis. E agora em 2021, ela inclusive
criou uma página no Instagram, chamada “Arteleiria PRETA”, para divulgar seus trabalhos.
É perceptível que a arte pulsa em Rogéria e por isso ela também é poeta, seus versos
são carregados de ódio pelas desigualdades de classe e raça que permearam sua vida, carregados
de amor e desejo quando fala sobre sua lesboafetividade e também carregados das dores da vida
que são descritas com comoção. Rogéria é uma pessoa profundamente emotiva, o que às vezes
acarreta discursos impulsivos e reflexões apressadas. Nisso, identifico-me em demasia com ela
e talvez seja um dos motivos pelos quais nos aproximamos tanto.
Atualmente, Rogéria reside com a mãe e a avó, além de seu gato e dois cachorros, no
bairro Potengi, Zona Norte. Conseguiu ingressar na UFRN pelo ENEM realizado em 2019 no
curso Gestão de Políticas Públicas, sendo assim a primeira da família a acessar o Ensino
Superior. Compartilha as responsabilidades com sua unidade doméstica, entre as quais divide a
renda entre seu núcleo familiar para o sustento da casa, além do sustento de seus
“companheiros”129 não-humanos. Sua trajetória de militância atuando em alguns coletivos do

129
Como ela se refere aos animais domésticos.
122

movimento negro e feminista levou-a optar pelo Marielle. Em conversa pelo WhatsApp no dia
27 de abril de 2019, eu e Rogéria descobrimos que frequentamos um mesmo evento de
militância no dia 24 de novembro de 2018130. Isso porque ela reconheceu, por uma foto que
mandei131, o bloco de notas dado pelo evento.
Como se pode ver, Rogéria, antes de ingressar no cursinho Marielle, já tinha contato
com outros movimentos sociais. Segundo ela, a maioria dos coletivos nos quais atuou são do
movimento negro e feminista. Rogéria tem uma personalidade inquieta e crítica, mesmo tendo
um histórico com atuação política, ela sempre estava em busca de algo a mais, tanto na atuação
coletiva, como também na apreensão teórica. Nas aulas, ela nunca se contentava totalmente
com uma explicação sobre determinada teoria, buscava discutir, apontava dúvidas e
discordâncias; pedia indicação de textos e livros, ou simplesmente olhava com a expressão de
quem não está totalmente convencida.
Em vários momentos, Rogéria afirmou que o Marielle é um espaço onde podia se sentir
acolhida e confortável, por isso teria se aproximado da equipe de professores/as e da
coordenação, além de sempre ser muito participativa em todas as atividades, desde as aulas aos
círculos e oficinas. O vínculo intenso de Rogéria com o cursinho foi explicado por ela, na
conversa de 19 de abril de 2020, como:
[Trecho reproduzido a partir de conversas informais] Rogéria: “Eu entrei toda armada,
cheia de ódio e de raiva, em virtude de tudo que eu já tinha ouvido e visto [racismo e
machismo]. Mas aí fui dando oportunidade pro cursinho e pra mim (...) Daí com o
passar dos meses eu fui entendendo a educação popular (...) me apaixonando pelo
‘sistema’ do Emancipa. Para além de dar conteúdos pra passar no Enem, dá também
conteúdos pra você saber lidar com determinadas coisas na vida (...) Eu fui
amadurecendo e crescendo como cidadã, eu acho – acho não, tenho certeza – que o
Emancipa traz essa formação cidadã.”

Uma das frases que avalio como mais significativas do envolvimento de Rogéria com o
Emancipa ocorreu no dia 12 de outubro, quando estávamos no Bar e Tapiocaria132 junto com
Jaci. Nesse dia, Rogéria fez um relato emocionado sobre sua experiência de vida atravessada
pelas desigualdades sociais. Ao fim, Rogéria falou sobre o cursinho: “Esse ano eu estava
totalmente sem sentido na vida até conhecer o Emancipa. O Emancipa me deu um sentido, me
deu um caminho a seguir”.

130
O evento foi o Seminário Nacional de Lésbicas (Senalesbi), realizado pelo Grupo Afirmativo de Mulheres
Independentes (GAMI), no bairro Redinha, Natal/RN. O GAMI é um coletivo de mulheres lésbicas e bissexuais
que existe há dez anos em Natal e promove projetos para esse público de mulheres voltado ao fortalecimento do
esporte, cultura e educação popular.
131
Estávamos conversando sobre o caderninho que encomendei a ela e mandei a foto do bloco de notas do
evento no GAMI para ilustrar como eu queria.
132
Perto da UERN, na Av. João Medeiros.
123

4.2.2 Jaci

Jaci, 30 anos, é uma das professoras de química do Marielle desde o ano de 2018 e em
2020 começou como coordenadora do Cursinho Popular Felipe Camarão na Zona Oeste de
Natal. Com o advento do ensino remoto virtual, tornou-se membro da coordenação estadual dos
cursinhos. Jaci foi estudante do IFRN durante a Educação Básica e atualmente cursa o
doutorado em Engenharia Química pela UFRN, é concursada no cargo de assistente em
administração também na UFRN. Além de um belo currículo acadêmico e profissional, que faz
Jaci superar as estatísticas brasileiras, ela também é militante da Anistia Internacional em
Natal133. Jaci é moradora do bairro Planalto, Zona Oeste de Natal, onde reside com seu
namorado.
Acredito ser pertinente começar este momento discutindo sobre quais são essas
estatísticas. De acordo com o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das
mulheres negras no Brasil (MARCONDES et al., 2013), as mulheres ingressam no Ensino
Superior principalmente via Instituições de Ensino Superior (IES) privadas e em cursos de
menor prestígio social. No caso especificamente das mulheres negras, a taxa de inserção no
ensino superior é menor se comparada às mulheres brancas, mas o padrão de inserção nas IES
privadas e em cursos de menor prestígio é semelhante ao padrão de inserção das mulheres
brancas.
Utilizo “prestígio social” como uma categoria de análise sociológica que toma por base,
ao determinar o prestígio dos cursos, critérios com um valor socialmente atribuído como:
concorrência no ingresso, vagas no mercado de trabalho, média de remuneração para
profissionais da carreira (SOTERO, 2013, p. 47). Dentro disso, enquadram-se como “menor
prestígio social” os cursos de licenciaturas, sendo a maioria dos cursistas nas licenciaturas
mulheres (SOTERO, 2013).
A distribuição desigual de mulheres e homens, brancos e negros, nas carreiras não é
uma questão específica dos dias atuais, pelo contrário. Os determinantes sociais na
escolha das carreiras têm explicações muito tradicionais. Todavia, o aumento do
acesso coloca algumas questões particulares, na maioria das vezes relacionadas à
constatação de que existe pouca variação nos padrões tradicionais. A chave para
pensar estratificação de carreiras no ensino superior, por esta perspectiva, é tirar do
centro as escolhas individuais, para as quais há muitas explicações, e pensar de forma
estrutural. Para uma análise estrutural da segmentação dos indivíduos por cor e sexo
no ensino superior, as contribuições de Bourdieu e Passeron (1992) são fundamentais.
Os autores apontam que a instituição escolar é um espaço de reprodução e legitimação
da ordem social estabelecida. (SOTERO, 2013, p. 46)

133
Consultar: https://anistia.org.br/conheca-a-anistia/quem-somos/.
124

A partir dos apontamentos de Sotero (2013), é possível perceber que raça e gênero são
condicionantes no nível de escolaridade da população brasileira e, consequentemente, no acesso
ao mercado de trabalho. Essa estratificação social é decorrente das desvantagens históricas para
determinados grupos sociais e atuam de maneira decisiva na definição da posição social dos
indivíduos (LIMA; RIOS; FRANÇA, 2013). Contudo, como venho afirmando, não se trata
apenas do acesso, mas também das escolhas (possíveis) de carreiras.
As desigualdades sociais provocadas pelos condicionantes de raça e gênero faz com que
as mulheres negras estejam na base da pirâmide social, ou seja, no nível mais inferior da
hierarquia social. No tocante à questão racial, as pessoas negras, com as mesmas habilitações
de pessoas brancas, são preteridas em processos de seleção e, quando igualmente empregadas,
ganham menos pelo exercício das mesmas funções (CARNEIRO, 2011, p. 115). Esse dado
agrava-se ainda mais no caso das mulheres negras devido ao acréscimo das desigualdades de
gênero.
O cenário no mercado de trabalho para as mulheres negras que não conseguem
complementar seu nível de escolaridade com o ensino superior, reflete-se numa
sobrerrepresentação no trabalho doméstico. São 57,6% de trabalhadoras nessa posição,
considerando os dados apresentados por Tatiana Dias Silva no Dossiê Mulheres Negras (2013).
É a partir desses dados de inserção no mercado de trabalho e desigualdade na distribuição de
renda que Silva (2013, p. 128) aponta o processo de feminização e negritude da pobreza devido
a um quadro de vulnerabilização deste grupo social.
A filósofa Davis (2016) discute que para a maioria das mulheres negras (e para a
população negra no geral), o período pós-escravidão não significou emancipação.
Especificamente no caso das mulheres negras trabalhadoras, devido à ausência de postos de
trabalho formais, coube a elas a ocupação com os serviços domésticos de famílias brancas.
Fernandes (2008), também nessa direção, aponta para o “desajustamento estrutural” ao qual a
população negra foi submetida no contexto de expansão urbana e consolidação do sistema
socioeconômico capitalista no Brasil, acentuando assim o isolamento econômico da população
negra (e, em acréscimo, também da população indígena que é afetada por dinâmicas
semelhantes de hierarquias raciais).
Nesse período, a própria escravidão passou a ser chamada de “instituição doméstica”:
“aos olhos do ex-proprietários de escravos, “serviço doméstico” devia ser uma expressão polida
para uma ocupação vil que não estava nem a meio passo de distância da escravidão” (DAVIS,
2016, p. 106). A ocupação com os serviços domésticos, um trabalho no qual as mulheres negras
125

têm sobrerrepresentação, até hoje é um vestígio da escravidão que não desapareceu da


sociedade brasileira.
A partir disso, é possível vislumbrar como Jaci consegue desafiar algumas estatísticas
brasileiras no tocante ao nível de escolaridade e mercado de trabalho. Uma outra estatística
interessante que Jaci supera é fazer parte de um público minoritário num curso de engenharia.
Isso porque apenas 15% dos estudantes matriculados em cursos de Ciência da Computação e
Engenharia são mulheres (NORTE, 2018).
Mesmo com todas essas conquistas pessoais – que não devem ser confundidas com
conquistas individuais, pois o pessoal também é coletivo e o coletivo se reflete na dimensão
pessoal de nossas vidas – Jaci buscou também direcionar seu trabalho e seus estudos para uma
organização política dentro dos movimentos sociais.
Diferente de Rogéria, a qual eu consegui visualizar o “tornar-se” militante e
coordenadora do Emancipa, com Jaci não consegui ver o desenrolar dessa trajetória. Em partes,
acredito que se deve ao fato de que eu já a enxergava com um posto de importância no cursinho
devido à sua regularidade. Estava lá todos os sábados, muitas vezes passando o dia e em
diversos momentos tomando a dianteira de situações, resolvendo problemas e pensando
soluções. Em partes, também, acredito que foi mais fácil visualizar isso em Rogéria porque
entramos no mesmo ano, o caminhar dela foi parecido com o meu no sentido de estar
construindo uma familiaridade com o espaço e com as pessoas.
Também não consigo lembrar com exatidão em qual momento eu e Jaci ficamos
próximas, mas acredito que começou com as idas ao bar após o expediente. Um pouco mais à
frente falarei sobre o bar, por ora, destaco que isso foi uma parte importante da nossa rotina aos
sábados. As pessoas que restavam ao fim do dia – que geralmente eram eu, Jaci, Rogéria134 e
Tati – costumávamos procurar um bar pelas proximidades com cerveja barata135. Jaci era quem
quase sempre estava disposta a me acompanhar e junto a mim era a maior engajadora desse
momento.
Na entrevista com Jaci, ela relatou algo interessante sobre como se deu seu
envolvimento, desde quando ingressou no cursinho, até o final do ano de 2019:
Jaci: Eu entrei no Emancipa faz dois anos, entrei no início de 2018. Conheci através
do Instagram, pela postagem de uma amiga, e entrei em contato com Will, que era o
coordenador da época (...) Nesse primeiro momento, eu vi o Emancipa mais, talvez,

134
Há de se destacar que Rogéria só passou a nos acompanhar em torno do segundo semestre, quando já tinha
proximidade com todos/as e ocupava encargos na coordenação. Mesmo assim, ela só ia pela companhia, pois não
é consumidora de bebidas alcóolicas, e ficava sempre na sua água com gás.
135
A questão do preço era algo importante para nós porque não tínhamos condições de arcar com custos elevados,
isso nos fazia, por vezes, passar muito tempo rodando pela avenida João Medeiros ou na Itapetinga à procura de
um lugar com cerveja “em conta”.
126

como uma escola padrão, tipo, “ir lá, dá aula e depois voltar pra casa”. Eu não criei
um vínculo mais efetivo, até porque tava no início, então complica mais (...) Daí o
tempo foi passando, as relações foram ficando mais íntimas (...) Quando 2019 começa,
a gente já tem a presença da Tati, e ela já traz novas ideias porque já tinha um contato
aprofundado com o Emancipa [Tati é coordenadora nacional da Rede Emancipa] e daí
é nesse ano de 2019 que eu comecei a me engajar mais, comecei a fazer parte da
coordenação de círculos e oficinas.

A motivação de Jaci para atuar como professora no Marielle perpassa a perspectiva


comum na fala de muitos professores/as: “retribuição”. É interessante notar como isso está
presente na fala de muitos/as docentes que vem da UFRN. Há uma compreensão de que o
investimento público (no caso, o fato de estudar em uma universidade pública) deve, de alguma
maneira, retornar ao público (neste caso, por meio de uma atuação voluntária no movimento
social)136.
É possível compreender, conhecendo Jaci, porque ela demorou a criar esse vínculo com
o cursinho. Jaci é uma pessoa quieta e reservada, é uma mulher “de poucas palavras”, mas que
sempre tem algo a dizer. Jaci também é dona de um sorriso bonito e aberto, não faz o tipo
extrovertida, mas é extremamente simpática e acolhedora.
Algo que eu pude observar ao longo de 2019, a partir de relatos dos/as professores/as
antigos/as, e que Jaci mencionou nesse trecho da entrevista, foi a descentralização do cursinho
com a chegada de Tati e a saída de Will. Isso, consequentemente, fez com que novos rostos,
como Jaci e Rogéria, tivessem mais espaço para atuação.
Um dos elementos dessa descentralização foi Jaci coordenar o espaço das Oficinas.
Enquanto a coordenação até 2019 era centralizada pela atuação de Will, com ele tocando quase
todas as atividades, com a chegada de Tati, apesar de ela ter sido a figura de maior expressão
do cursinho, buscou-se dividir essas tarefas. Rogéria, principalmente a partir do segundo
semestre, começa a auxiliar Tati no diálogo com os/as estudantes. Especificamente após a
abertura do cursinho em Ceará-Mirim, no qual Tati precisou estar presente durante alguns
sábados, era comum ver Jaci e Rogéria passando o dia no Marielle e assumindo algumas
demandas de Tati.
Em relação ao fato de Jaci, em 2020, iniciar como coordenadora de um cursinho da
Rede Emancipa em Felipe Camarão (junto com Thalita137, professora de geografia), vale

136
Em seu Ensaio sobre a Dádiva, Mauss (2003) fala sobre a dádiva como relações de troca que conferem sentido
às relações sociais e por isso extrapola a esfera econômica, adentrando também à dimensão moral, de modo que
há na dádiva uma lógica organizativa do social e uma universalidade perante a obrigação de receber e retribuir que
é basilar para a construção de vínculos sociais. Essa perspectiva maussiana ajuda a compreender os sentidos da
“retribuição” que aparece nas falas da maioria dos/as professores/as sobre as motivações para fazer parte do
cursinho.
137
Thalita ingressou como professora de geografia no Emancipa ao final de 2019, mas só a encontrei na primeira
reunião de 2020. Ela é graduada na licenciatura em geografia e, à época, era militante do MES/PSOL. É
127

destacar a avaliação de Tati138 sobre Jaci demonstrar em 2019, com a tarefa de organizar os
círculos e oficinas e também estando presente nos momentos que Tati precisava se ausentar,
um trabalho para assumir a coordenação do cursinho.
Por fim, deixo um trecho do final da entrevista dela:
Jaci: Pra mim, o Emancipa hoje é algo que faz muito sentido na minha vida. Esse
sentido de devolver um pouco pra sociedade o que eu aprendi, do investimento público
que foi feito em mim na universidade, enfim, tudo isso. Então, pra mim é um
movimento que quero levar por muito tempo na minha vida. E seguir desenvolvendo,
pensado junto e tornando tudo menos complicado, menos difícil, menos dolorido.

Novamente, aparece na fala de Jaci a ideia de “sentido” assim como aparece em Rogéria.
Revelando, pois, a dimensão do cursinho e da educação popular de transformação pessoal a
partir de uma transformação coletiva. Assim como Mauss (2003) aponta, a “dádiva” de retribuir
à sociedade os anos de formação acadêmica aparece através do trabalho voluntário no cursinho
e essa retribuição dá significado ao próprio trabalho e à vida dessas mulheres que se construíram
enquanto militantes e enquanto educadoras, numa relação dialógica entre educadora/educanda,
dentro do Marielle.

4.2.3 Tati

Tati é a coordenadora nacional da Rede Emancipa e militante do MES/PSOL. Começou


a morar em Natal a partir de um contexto migratório, mudando-se da cidade de São Paulo, onde
até hoje reside sua família. De acordo com seus relatos sobre as motivações, em entrevista
realizada no dia 22 de abril de 2020, seu deslocamento relaciona-se com as próprias atividades
do Emancipa:
Tati: A decisão de vir pra Natal partiu de uma discussão central [entre a coordenação
nacional da Rede Emancipa] sobre o fato de que Natal tinha um cursinho e a gente
queria expandir, não só pro Rio Grande do Norte, mas a gente tem um plano de
expansão pro Nordeste, levar o Emancipa pra mais lugares. Tem tudo a ver com uma
discussão sobre lugarização e o que isso quer dizer. Pra nós, é claro que o Emancipa
faz sentido em qualquer lugar do Brasil, em qualquer periferia e em alguns lugares,
inclusive, ele tá dentro de universidades, por exemplo em Belém do Pará, ele tá dentro
da Universidade Federal do Pará [UFPA], mas é óbvio que quando vamos discutir
periferias, a gente não pode só discutir as periferias das cidades, mas o que são as
periferias do Brasil. O Brasil como um país e o que são suas periferias e o Nordeste,
com sua história de resistência, de luta, pela forma como foi muitas vezes
economicamente subjugado pelo Sudeste e pelo Sul, tem no seu DNA – em nossa
opinião – a cara do que é a educação popular, não é à toa que Paulo Freire começa sua
experiência de educação popular em Angicos [município no Rio Grande do Norte].

interessante que nos conhecemos em uma das disciplinas do Mestrado (Antropologia de Gênero e Sexualidade)
durante o primeiro semestre. Ela é mestranda na área da Educação, na UFRN, e estávamos na mesma turma. Ao
longo das aulas, tivemos algumas trocas, mas não ficamos tão próximas, isso só chegou a acontecer no cursinho.
138
Afirmação realizada em conversa informal que mantivemos.
128

Então, pra nós, construir educação popular no Nordeste tem um significado que é
muito simbólico e muito real, de disputa de periferias.

Tati, então, sai da cidade de SP com a incumbência dessa tarefa, tirada pela coordenação
nacional da Rede, de expandir os cursinhos no Nordeste. No primeiro capítulo, trago a
relevância histórica e política do Nordeste para a educação popular, o que dialoga com a fala
de Tati. É válido, neste momento, reiterar uma pontuação que fiz durante o segundo capítulo.
Quando mencionei que as clivagens regionais eram relevantes na leitura feita sobre Will e
Danilo e que Danilo, em Natal, pode facilmente ser lido como sudestino, aponto agora que Tati
não será incorporada a essa estereotipação com a mesma facilidade, mesmo quando sua
trajetória e seu sotaque revelam sua origem geográfica.
Isso se deve ao elemento racial que instituiu o Nordeste como território de negros/as,
mestiços/as e indígenas, estigmatizado como terra do banditismo, cangaço e facínoras
(ALBURQUERQUE JÚNIOR, 2011). Percebe-se, pois, que o racismo estrutura o
regionalismo, como discute Albuquerque Júnior, e é um dos motivos que distancia Tati da
“sudestinidade”, por ela possuir marcadores de raça.
Tati cursou jornalismo na USP e também é educadora na Universidade Emancipa139. O
debate em torno da disputa das periferias é um ponto central para o Emancipa.
Tati: A educação popular não pode servir apenas como uma ideia de acesso à
universidade, a gente não faz cursinho pré-universitário só porque a gente acha – e
acha muito importante – o ingresso, nós entendemos a educação popular como uma
disputa de poder, é poder estar na periferia, debatendo sobre educação com as pessoas.

Nesse sentido, Tati é uma pessoa extremamente importante para a trajetória que o
cursinho Marielle percorreu em 2019 e os rumos que tomou em 2020. A incumbência de
“expansão” torna-se nítida quando, ao longo de 2019, sua atuação como coordenadora
possibilitou a construção do Cursinho Luciano Flávio em Ceará-mirim, município da região
metropolitana de Natal. Já no ano de 2020, a Rede Emancipa se expandiu a nível estadual com
o Cursinho Currais Novos (município no interior do estado), Cursinho Popular de Mãe Luiza
(Zona Leste de Natal) e o Cursinho Popular Felipe Camarão (Zona Oeste de Natal).
Sobre sua relação com a Rede Emancipa e também sobre sua situação migratória. Tati
falou um pouco sobre as dificuldades, percalços e desafios de iniciar uma nova vida em outra
cidade, outro estado, distante de tudo que conhecia:
Tati: Então, eu faço parte da Rede Emancipa há alguns anos, quando conheci a Rede
eu já militava. Fui militante do movimento estudantil e depois militante partidária [no
PSOL], e aí fui convidada a conhecer mais da Rede Emancipa. A decisão de vir pra
Natal partiu de uma discussão central sobre o fato de que Natal tinha um cursinho e
que a gente [coordenação da Rede Emancipa] queria expandir, não só pro Rio Grande

139
Consultar: https://redeemancipa.org.br/2017/07/nasce-a-universidade-emancipa/.
129

do Norte, mas expandir pro Nordeste. Levar a Rede Emancipa pra mais lugares (...) E
aí essa decisão veio de um convite de uma galera que construía a Rede Emancipa aqui
[em Natal], e a partir desse convite, e como eu já fazia parte da coordenação nacional
do Emancipa e da coordenação [estadual] em São Paulo, e sempre tive um carinho
muito grande pelo Nordeste, além de ser um plano de vida morar no Nordeste, pra
mim fez todo sentido do mundo vir construir a Rede Emancipa aqui. Então, pra mim
teve esse significado de vir construir um projeto que eu confio e acredito.

A trajetória de vida de Tati está intimamente relacionada com sua construção política
como militante. Para quem conhece Tati apenas a partir de suas falas públicas e em ocasiões
militantes, enxerga nela uma exímia militante e uma referência política importante para as
mulheres negras, além de enxergar sua postura política firme e sua fala que transparece força e
inspiração. Todas essas impressões são corretas, mas Tati não é apenas uma excelente militante.
Executar o projeto de coordenar o Marielle sendo recém-chegada na cidade e na vida
daquelas pessoas que já construíam o cursinho antes dela, exigiu de Tati sensibilidade e afeto
para lidar com os anseios da comunidade pedagógica e estudantes, além de alegria e ternura
para equilibrar com leveza os dias pesados. Tati também é uma pessoa divertida, expansiva e
extremamente comunicativa. Ela consegue em uma única conversa falar sobre um milhão de
assuntos. Começando em análise de conjuntura sociopolítica, passando pelo assunto de
namoros, e terminando numa investigação sobre o preço das cervejas nos bares da Zona Norte.
Como apontei acima, entre 2019 e início de 2020, Tati conseguiu não só fazer o cursinho
Marielle andar, como multiplicou os cursinhos da Rede Emancipa. Obviamente, ela não
conseguiu isso sozinha, e nisso reside também uma características do novo direcionamento que
Tati deu ao cursinho: a emergência de novas figuras políticas como quadros do movimento
social devido à maior autonomia de atuação para outras pessoas da equipe além da coordenação.
Ao longo de 2019, muitos/as professores/as antigos comentaram sobre as mudanças
significativas na dinâmica do cursinho Marielle. Os relatos que mais ouvi ao longo do ano sobre
essa mudança foi sobre a organização interna e descentralização do seu funcionamento.
Recorrendo à discussão do capítulo anterior, um exemplo foi a execução das atividades de
oficinas que foram otimizadas porque mais pessoas estavam encarregadas dela (nesse caso,
principalmente, Jaci). A diferença para antes é que as oficinas não costumavam acontecer, o
espaço do “tempo livre” existia, mas ficava ocioso.
Outra mudança que eu pude observar, foi a proporção pública que o cursinho Marielle
ganhou em Natal. A formação acadêmica de Tati em jornalismo provavelmente foi um
impulsionador para a execução desse projeto de extensão da imagem pública do Emancipa. Ao
130

longo do ano, Tati (e também Jaci) protagonizaram falas públicas140 em ocasiões de


militância141 que proporcionaram uma grande visibilidade para o cursinho.
Essa projeção pública, com os rostos de Tati e Jaci a frente, são extremamente
significantes para a construção do “perfil Emancipa”, visto que pode tensionar ou disputar
imagens estabelecidas em torno dessas sujeitas. A respeito dessas questões, Carneiro (2003)
aponta que:
Os meios de comunicação vêm se constituindo em um espaço de interferência e
agendamento de políticas do movimento de mulheres negras, pois a naturalização
do racismo e do sexismo na mídia reproduz e cristaliza, sistematicamente, estereótipos
e estigmas que prejudicam, em larga escala, a afirmação de identidade racial e o valor
social desse grupo. (CARNEIRO, 2003, p. 9)

O fato de o Marielle não ser especificamente um movimento de mulheres negras, só


torna ainda mais importante a presença de mulheres negras exercendo um papel de
protagonismo, devido ao impacto sociocultural que isso causa e a mensagem política que é
transmitida. Como bem discute Carneiro (2003, p. 9), os meios de comunicação não apenas
repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas também se
instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem os sistemas de representação.
Por isso, os movimentos sociais e sua discussão sobre representatividade operam como fortes
contestadores desses sistemas de representação.
Para encerrar este momento do capítulo, tomarei emprestado uma fala pública que Tati
fez em sua rede social Instagram sobre o Emancipa no dia 28 de abril de 2020, no Dia da
Educação:
Tati: O Emancipa é o combustível da minha vida. Desde que comecei a minha
aproximação com a educação popular, me apaixonei completamente. Lutar para que
pessoas pobres e periféricas tenham acesso a cursinhos gratuitos e possam acessar a
universidade significa saber que eu não deixei os meus pra trás. Eu também venho da
periferia e “venci”. Entrei na universidade pública, mas ela não tinha a minha cara. Eu
era a única negra do meu curso. E aí entendi que os meus não estavam lá. Por isso, o
Emancipa significa lembrar que não existe essa de vencer. Nunca nos dão
oportunidades. Mas com educação popular podemos arrancá-las. [Trecho transcrito]

4.3 Formação de quadros políticos para a militância

Há algo interessante quando se cruza as trajetórias delas porque Tati é o grande


“quadro142” do movimento social. Ela, que fez da militância um ofício, trabalha atualmente

140
Não cheguei a dialogar com Tati sobre a guinada pública do cursinho, mas não me recordo dessa mesma
publicização com Will.
141
Palestras e mesas redondas nas universidades e institutos federais, como na UFRN e IFRN, além dos atos de
rua.
142
Diz-se do militante profissional que desempenha função de destaque/relevância em um movimento social,
partido ou ambos (como é o caso de Tati).
131

como chefe de gabinete143 do mandato de Sandro Pimentel, é militante partidária e


coordenadora geral da Rede Emancipa, atuando assim em três frentes políticas: partido,
movimento social e poder legislativo (Assembleia Legislativa).
É compreensível que com essa trajetória de vida quase integralmente dedicada ao
trabalho de formação política, Tati tenha conseguido formar também dois novos quadros a partir
do cursinho, Jaci e Rogéria. A importância de ter uma ex-estudante, Rogéria, atuando como
quadro e como coordenadora, dá-se não apenas no tocante à representatividade, como também
no êxito que o movimento tem ao conseguir “formar” sujeitos duplamente, como militantes e
estudantes, e ser compreendido em sua dimensão política maior. Vale destacar que essa é uma
forte estratégia dos pré-vestibulares comunitários: formar militância para o movimento social a
partir da ação educativa dentro dos cursinhos.
Em Outsider, Becker (2009) aponta que um “ato desviante” quando mantido como
padrão por um certo período de tempo, faz desse desvio uma maneira de viver e organizar a
identidade. Por “desvio” compreendo atitudes, comportamentos e modos de viver que não estão
de acordo com os padrões estabelecidos socialmente de forma hegemônica. Nesse sentido, a
militância de esquerda pode ser encarada como um “desvio” político à medida em que assume
como objetivo uma crítica às estruturas sociais e aponta à necessidade de transformação destas.
Becker (2009) também trabalha com a ideia de que indivíduos com padrões desviantes
tendem a se juntar a outrem dentro do mesmo “padrão” e formar associações, grupos e uma
certa “comunidade” que compartilha esses desvios. A isso ele denomina carreira desviante e
formação de um grupo desviante organizado. Tal carreira é incumbida de significados,
fundamentações e, acima de tudo, aceitação. Por isso, reflito sobre essa formação política dentro
dos cursinhos como a construção de uma carreira política e esse espaço como um facilitador e
agregador de pessoas, influências, objetivos e ideias.
Para começar o debate em torno da categoria representatividade e pensá-la dentro do
contexto do Marielle Franco, parto da premissa discutida por Gonzalez (2011) de que as
modalidades de participação das mulheres negras são maiores no movimento popular devido à
posição social que articula discriminação racial e sexual.
Na primeira vez que fui para o bar ao término das atividades do sábado, no dia 4 de
maio de 2019, lembro-me que Rogéria já se destacava entre a equipe. Nesse dia, estava com
Tati, Will, que ainda não havia saído do cursinho, Mike, Marília e seu namorado no bar-

143
Essa informação foi publicada por Tati em seu Instagram no dia 26 de janeiro de 2021.
132

restaurante Camarões do Norte na avenida Itapetinga (lateral à avenida João Medeiros Filho,
onde se localiza a UERN).
Em algum momento, a mãe de uma aluna mandou mensagem para Tati perguntando se
a filha esteve presente no cursinho naquele sábado. Tati não se lembrava de ter visto a menina
e resolveu perguntar à Rogéria, pois ambas eram da mesma turma e, nas palavras de Tati:
“Rogéria conhece todo mundo da turma dela e sempre sabe quem falta aula”. Foi então que
Rogéria e seu envolvimento com o cursinho tornaram-se brevemente o assunto da mesa e Tati
falou: “acho que ela tem muito potencial para ser uma futura coordenadora do Emancipa”.
Antes de seguir com esse ponto sobre a coordenação, é interessante analisar o fator da
intimidade nas relações que são desenvolvidas no bar. Nesse sentido, acredito que o bar
funcionou como um espaço possibilitador de aproximações pessoais e estreitamento dessas
relações íntimas. Isso porque o cursinho Marielle é um lugar que abrange um grande apanhado
de intenções. Neste momento, refiro-me a todos/as, estudantes, professores/as e coordenação.
O cursinho Marielle é educação para alguns, militância para outros, educação e militância para
muitos, educação, militância e pesquisa para mim. Também pode ser uma “fuga” para algum
professor que se sente preso à rotina da escola formal e vê no cursinho a possibilidade de um
exercício da docência com maior liberdade144, pode ser um espaço de socialização
(principalmente no caso dos/as estudantes, mas também para os/as professores/as), um lugar
para ir aos sábados e descontrair com colegas e amizades, conhecer pessoas novas.
As intenções, assim como as pessoas que participam do cursinho, são diversas e o bar é
o espaço informal onde as pessoas se reúnem145 com o objetivo de socializar suas experiências
e afetações. Assim como também o bar é um espaço de formação política. Pode parecer estranho
fazer essa afirmação, mas a realidade é que muitas ideias, assim como discordâncias e
divergências políticas são aguçadas em conversas nas mesas de bar. Os sentidos e sensações
afloradas pelo álcool deixa suscetível a aberturas que em outros momentos não haveria. Muitas
propostas político-pedagógicas discutidas em reuniões foram semeadas no bar. À guisa de
exemplo, a própria composição da coordenação com Rogéria e Jaci brotou nesse espaço a partir
da criação desses elos e da confiança política construída entre as três.
Retomando o debate sobre a coordenação, esta costuma ser uma posição de
protagonismo dentro do Emancipa, pois geralmente a esses rostos é delegada a função de falar
pelo movimento, a pessoa coordenadora é habilitada a agir como “pessoa moral”, isto é,

144
Isso pode ser percebido na fala de Mike, no capítulo dois.
145
É válido destacar que a única aluna que nos acompanhava às idas ao bar era Rogéria, devido ao fato de ser
maior de idade e devido à sua aproximação e posterior inserção na coordenação do cursinho.
133

substituto do grupo (BOURDIEU, 2004, p. 189). Apoio-me na perspectiva de Bourdieu (2004)


que discute sobre a categoria delegação como o ato pelo qual uma pessoa, ou um grupo,
encarrega alguém de uma função transmitindo-lhe o próprio poder para que essa pessoa se torne
um representante de seus interesses. Bourdieu (2004) nomeia essa relação como mandantes,
quem transfere o poder, e mandatário, quem recebe o poder para falar e agir em lugar de outrem.
Há um ponto interessante na discussão de Bourdieu (2004) para ser abordado aqui. A
questão das estratégias universais pelas quais o mandatário tende a se autoconsagrar para poder
se identificar com o grupo e dizer “eu sou o grupo”, o mandatário, em termos discursivos, deve
de certa forma anular-se no grupo, doar-se ao grupo, clamar e proclamar: “Eu existo somente
pelo grupo”. (BOURDIEU, 2004, p. 194) Esse aspecto da abnegação é muito presente em
movimentos sociais populares e é um discurso muito incorporado pelos/as militantes de seus
grupos.
Will e Tati, por exemplo, foram pessoas que dispuseram uma dimensão significante de
suas vidas para a construção do cursinho. Nesse sentido, falo de uma agenda de compromissos
com o Emancipa que outras pessoas não se dispunha a ter por diversos fatores, incluindo a
necessidade de priorizar outros aspectos da vida que geralmente eram elencados como o
emprego formal e universidade ou ainda desinteresse pela atividade militante
Quando se trabalha com voluntariado percebe-se uma dificuldade em “cobrar
comprometimento” das pessoas envolvidas porque essas pessoas costumam ter outras
obrigações e necessidades. Por isso, subentende-se o cursinho como um lugar de
transitoriedades, como já foi falado em algumas de nossas reuniões, inclusive por Tati: “no
cursinho trabalhamos com o que as pessoas podem oferecer, tem quem oferece muito, tem quem
oferece pouco, tem quem é mais atuante, tem quem é atuante às vezes, mas precisamos de
todos/as”.
O que diferencia, por exemplo, Will e Tati é justamente o quanto de suas vidas foi
oferecido em prol do cursinho, isso fez dele e dela coordenador e coordenadora e as figuras de
maior representatividade do movimento social na cidade e no estado. Bourdieu (2004) utiliza a
categoria “impostura legítima” para explicar esse processo de abnegação no qual o mandatário
se faz representante ao colocar os interesses do grupo como prioridade para os seus.
Quando em 2019 Jaci e Rogéria tornam-se, ao longo do ano, novos quadros do
movimento social, auxiliando Tati nas tarefas da coordenação, a representatividade com esses
rostos têm um impacto simbólico muito forte na construção política e imagética do Emancipa,
principalmente porque o cursinho leva o nome de Marielle Franco.
134

Longe de dizer que não havia esse impacto com Will, que também carrega os
marcadores de raça, por ser um homem negro, e de sexualidade, por ser gay. Inclusive, à época
em que ele foi coordenador, Will era “o rosto do Emancipa”. Quem conhecia o cursinho,
conhecia-o através de Will; e quem conhecia Will, associava-o ao Emancipa. Contudo, a forma
como essa representatividade foi instrumentalizada à época de Will é diferente de como é hoje.
Apesar de só ter tido conhecimento mais profundo sobre o Emancipa a partir de 2019, o raso
conteúdo ao qual tive acesso em 2018, fazem-me refletir que Will não potencializava sua
imagem pública da forma como começa a ser feito em 2019, especialmente por Tati146.
Silva (2019), em um artigo muito interessante sobre a emergência de candidaturas
coletivas de mulheres negras nas eleições proporcionais de 2018, impulsionada após o
assassinato de Marielle Franco, aponta que as experiências de organização das mulheres negras
fazem parte de um amplo projeto coletivo de emancipação e transformação social. Parto da
ideia presente no artigo de Silva (2019, p. 66) da mulher negra como substantivo coletivo que
postula o empoderamento das mulheres negras não como uma tomada de poder pessoal ou
subjetiva, mas como ação coletiva, para discutir sobre o impacto político da representatividade
de Tati, Jaci e Rogéria no cursinho, assim como “Marielle, como mulher negra na luta política,
não era só sujeito, era coletivo, pois assim têm sido construídas as lutas e conquistas das
mulheres negras no plano político” (SILVA, 2019, p. 67).
Para ilustrar essa discussão sobre a construção política e imagética do Emancipa em
torno dessas representatividades femininas negras que se construíram na atuação em 2019 no
Marielle Franco, trago um episódio que aconteceu em 2020. Apesar de meu recorte de campo
ser o ano de 2019, acredito que alguns acontecimentos fora desse recorte temporal podem
iluminar a compreensão do debate.
Devido à pandemia do Covid-19 que atingiu drasticamente as populações em
vulnerabilidade socioeconômica, em junho de 2020 os cursinhos da Rede Emancipa no Rio
Grande do Norte (RN) começaram a organizar uma campanha virtual chamada Solidariedade
Ativa147 para arrecadar doações a serem entregues às/os estudantes, e suas famílias, dos
cursinhos.

146
Essa discussão sobre a imagem pública de Tati e associação ao Emancipa será melhor explorada quando eu
trouxer a candidatura de 2020.
147
Campanha virtual de arrecadação de doações em dinheiro para compra de cestas básicas e pagamentos de
contas, dentre outras necessidades básicas, destinada a estudantes, e famílias, dos cursinhos no RN. A primeira
ação de distribuição aconteceu em agosto. A mobilização foi pelas redes sociais dos cursinhos e perfis pessoais da
equipe envolvida na campanha, e catalogação das necessidades dos/as estudantes por meio de preenchimento de
formulários e atendimento via ligações. Essa campanha foi de iniciativa nacional e começou com os cursinhos de
São Paulo.
135

A mobilização precisou ser feita pelas redes sociais devido ao distanciamento social e
em uma das reuniões do grupo responsável pela campanha, grupo que participo148, houve um
encaminhamento para a produção de vídeos de divulgação. Acertou-se a elaboração de um
vídeo oficial e vídeos menores e pessoais de cada professor/a e coordenador/a. No momento da
reunião, fui uma das que me dispus a participar dos vídeos, por isso, em outro momento, eu e
Tati tivemos o seguinte diálogo:
Tati: amiga, deixa eu te falar uma coisa, sobre o vídeo principal da campanha, tava
conversando com a Mari [responsável pela Comunicação] e a gente achou que seria
massa, até pelo próprio perfil que tem o Emancipa, de serem três mulheres negras
falando149 . Eu sei que tu se propôs a participar, daí queria ver se não é um problema
pra ti, porque acho que seria massa, até do ponto de vista estético também, ter três
mulheres negras falando, porque conta uma história.
Juliette: Nenhum, amiga, suave! Me propus a fazer só o curtinho mesmo, até já enviei.
O principal acho melhor ficar com vocês mesmo. [Transcrição de áudio. Trecho
extraído a partir de um diálogo no WhatsApp]

A questão para se atentar nesse diálogo é a menção de Tati ao “perfil do Emancipa”, ou


seja, é uma ideia pensada e avaliada coletivamente que, com a maior utilização das redes
sociais, devido ao imperativo das aulas remotas virtuais, serviu ao esforço para consolidar a
imagem pública do Emancipa no RN a partir da instrumentalização dos debates antirracistas e
feministas.
Comecei este momento falando sobre como a trajetória de vida de Tati está
intrinsecamente ligada à militância. Essa categoria – por mais que venha sendo banalizada
devido ao seu crescente uso para classificar qualquer discurso progressista proferido por alguém
nas redes sociais – denota um trabalho progressivo e organizado em coletivo. Um/a “militante”
é quem trabalha pela e com a política.
Muito dessa construção militante envolve assumir uma postura pública de como se
portar, como falar, quais diálogos estabelecer e uma série de outros processos que acabam por
vezes transformando esse/a militante, ao longo de sua carreira, em uma “pessoa pública” que
será requisitada em diversos espaços de formação política e carregará consigo a
responsabilidade de não ser “uno” e sim “coletivo”, pois levará a imagem pública do movimento
social, partido etc., do qual faz parte e sobre o qual é autorizado/a a falar.
Tati, enquanto uma militante profissional, soube utilizar-se disso para expandir o
Emancipa. Já Jaci e Rogéria, por mais que também venham de outros movimentos e coletivos,
transformaram-se em “quadros” à medida em que maiores responsabilidades do cursinho eram

148
À época da escrita deste trabalho, a campanha ainda estava em andamento com mobilização nas redes para
uma nova etapa de arrecadação.
149
Participaram do vídeo principal Tati, Jaci e Vanessa (professora do Cursinho Currais Novos).
136

demandadas a elas. O processo de se construir militante, do como se portar, quais espaços


ocupar, a publicização de suas imagens, foram sendo construídos e culminaram na posição de
novas coordenadoras. No caso de Jaci, quando assumiu a coordenação do Cursinho em Felipe
Camarão (aberto em 2020) e Rogéria junto à Tati na coordenação do Marielle.
Isso tudo também aponta para a multiplicidade de possibilidades de quadros. É
importante atentar para a heterogeneidade de perfis ocupando lugares diferentes e, portanto,
sendo quadros diferentes. Nesse sentido, retomo o conceito de “campos discursivos de ação”
presente em Alvarez (2014) para expressar a fluidez de tais lugares e como suas fronteiras e
limites formam parte das disputas políticas que os constituem e reconfiguram (ALVAREZ,
2014, p. 46).
Esse perfil indica também o processo de pluralização (ALVAREZ, 2014) trazido para
dentro do movimento social a partir do cursinho Marielle. Isso porque, como vimos, Tati, Jaci
e Rogéria são três mulheres com trajetórias de vida muito diferentes que vieram de lugares
diferentes. Enquanto Tati teve sua vida pautada pela militância em diversas esferas, Rogéria e
Jaci foram construindo uma persona política a partir de suas bagagens, posicionamentos e
percepções de mundo que desembocou neste posto de coordenação que, é válido ressaltar, não
é fixo e sim trata-se de uma articulação moldada dentro desse período de tempo.

4.3.1 “As ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a Casa Grande”

A frase acima é de autoria da poeta, feminista, lésbica e ativista Audre Lorde, e também
é o título de um dos seus escritos que pode ser encontrado no livro “Irmã Outsider: Ensaios e
Conferências”150, assim como no material produzido pelo editorial independente Herética
Difusão Lesbofeminista151 que reuniu alguns textos selecionados da autora. Trouxe esse texto
para elencar a importância da militância a partir de perspectivas antirracista e feminista dentro
do cursinho, não apenas por dialogar com um público de estudantes, mas também pela
construção de novos valores ideológicos na política.
Em seu ensaio, Lorde (1982) afirma:
Eu concordei em participar numa conferência do Instituto de Humanidades da
Universidade de Nova Iorque há um ano, por ter entendido que eu comentaria
trabalhos que abordassem o papel da diferença nas vidas das mulheres americanas:
diferenças de raça, sexualidade, classe e idade. A ausência dessas considerações
enfraquece qualquer discussão feminista sobre o pessoal e o político. É uma
arrogância da academia, em particular, assumir qualquer discussão sobre teoria

150LORDE, Audre. Irmã Outsider: Ensaios e Conferências. Autêntica Editora, 1ª ed, Belo Horizonte, 2019.
151LORDE, Audre. O sadomasoquismo na comunidade lésbica [Entrevista concedida a Susan Leigh Star]. Textos
escolhidos de Audre Lorde, Herética Difusão Lesbofeminista, 1982.
137

feminista sem examinar nossas várias diferenças, e sem uma perspectiva significativa
das mulheres pobres, negras, terceiro-mundistas e lésbicas. (LORDE, 1982, p. 21)

Em um primeiro momento lendo esse excerto, pode parecer que a discussão está
deslocada do direcionamento central deste capítulo, mas a crítica de Lorde (1982) volta-se aos
silenciamentos e apagamentos políticos que atravessam, sobretudo, a vivência das mulheres
negras. No campo da política, principalmente a institucional, a maioria dos espaços são
ocupados hegemonicamente por sujeitos homens, brancos e heterossexuais. No primeiro
capítulo, quando nos debruçamos sobre a discussão da categoria “movimento social”, vimos a
distinção que Doimo (1995) faz dos novos e velhos movimentos sociais e que com esses
“novos” se abriu espaço para novos sujeitos políticos disputarem a hegemonia dos espaços.
Lorde (1982), ao utilizar como exemplo a conferência sobre feminismo que participou,
estava apontando as problemáticas da hegemonia de determinados sujeitos dentro de uma
militância em detrimento de outros. Nesse caso, a hegemonia de um pensamento feminista
branco e heterossexual que invisibiliza mulheres fora dessas categorias identitárias, ou seja,
mulheres racializadas, lésbicas e dos países enquadrados como “terceiro mundo” (por algumas
perspectivas geopolíticas).
Utilizar as “ferramentas do mestre” implica a manutenção dessas estruturas
hegemônicas sem uma reflexão aprofundada sobre as diferenças que perpassam a vivência e
construção identitária de diferentes indivíduos e como as opressões atingem em diferentes
proporções. Um movimento social que não repensa essas estruturas e não reflete sobre sua
práxis a partir de uma interseccionalidade, tende a reproduzir apagamentos. Por isso, é
importante ter no Marielle um “perfil” que constrói espaços de protagonismo para sujeitos que
levantam pautas comumente diminuídas em outros espaços.
A educação, para ser libertadora e emancipatória, precisa questionar, inclusive, os
movimentos sociais a respeito dessas práticas. Sobre isso, hooks (2013) aponta que:
Lembrando desse passado, o que mais me toca era nosso compromisso apaixonado
com uma visão de transformação social baseada na crença fundamental numa ideia
radicalmente democrática de liberdade e justiça para todos. Nossas noções de
mudança social não eram sofisticadas (...) Simplesmente tentávamos mudar a vida
cotidiana para que nossos valores e hábitos de ser refletissem nosso compromisso com
a liberdade (...) Ciente de que vivemos numa cultura da dominação, me pergunto
agora, como me perguntava há mais de vinte anos, quais valores e hábitos de ser
refletem meu/nosso compromisso com a liberdade. (HOOKS, 2013, p. 41)

Acima, hooks (2013) traz uma reflexão sobre educação transformadora que apontei em
alguns momentos do primeiro capítulo. A construção de novos valores e de uma nova cultura
política é essencial dentro de um processo educacional que se reivindica “popular”. Por “cultura
política” compreendo, a partir da discussão de Lorde (1982, p. 22), pensar a função criativa da
138

diferença e como utilizá-la de uma forma dialética para pensar as ausências dentro do campo
político e transformá-las em presenças.
Audre Lorde, em seu livro “Irmã Outsider”, menciona que:
Pois temos, entranhados em nós, velhos diagramas que ditam expectativas e reações,
velhas estruturas de opressão, e essas devem ser alteradas ao mesmo tempo que
alteramos as condições de vida que resultam delas. Pois as ferramentas do senhor
nunca derrubarão a casa grande. Como Paulo Freire mostra tão bem em Pedagogia do
Oprimido, o real objetivo da transformação revolucionária não pode nunca ser apenas
as situações opressivas das quais buscamos nos libertar, mas sim aquele fragmento do
opressor que está profundamente arraigado em cada um de nós (...) Conseguimos
aprimorar nossa autodefinição quando expomos nossa identidade no trabalho e na luta
conjunta com aqueles que definimos como sendo diferentes de nós, mas com quem
compartilhamos objetivos comuns. (LORDE, 2019, p. 155)

Esse trecho do pensamento de Lorde (2019) é extremamente significativo para pensar a


construção de relações sociais e culturais dentro das práticas educativas no cursinho. Desde o
início desta dissertação, costumo frisar a imensa pluralidade e diversidade de pessoas que
constroem o Marielle, desde estudantes a educadores/as e que nem todos/as compartilham a
mesma perspectiva político-pedagógica orientada pelo movimento social. Há discordâncias,
reclamações (da parte de estudantes e professores/as) quanto aos direcionamentos pedagógicos
e mesmo situações de opressão, como a que cheguei a mencionar no primeiro capítulo. Estas,
quando ocorrem, não costumam ser silenciadas (pelo menos até onde pude acompanhar de
perto) e nisso reside a construção de novos valores e de uma “comunidade pedagógica” sobre
a qual fala hooks (2013).
Em um diálogo com Ron Scapp152, presente em seu livro “Ensinando a Transgredir”,
bell hooks expõe uma troca de ideias sobre as práticas educativas docentes dentro da educação
formal, especificamente, nas salas de aula das universidades e sobre o ofício de professora
universitária. Há uma passagem interessante que desejo retomar aqui:
Se talvez olharmos para onde eu realmente vejo minha identidade, que, na maioria das
vezes, é a de escritora, quem sabe eu seja muito menos flexível ao imaginar essa
prática que quando me vejo como professora. Sinto que me beneficiei muito por não
ser apegada a mim mesma como acadêmica ou professora universitária. Isso me
deixou mais disposta a criticar minha pedagogia e a aceitar críticas dos alunos e de
outras pessoas sem sentir que questionar o modo como dou aula equivale, de algum
modo, a questionar meu direito de existir no planeta. Sinto que uma das coisas que
impedem muitos professores de questionar suas práticas pedagógicas é o medo de que
“essa é minha identidade e não posso questioná-la”. (HOOKS, 2013, p. 180)

hooks (2013) aponta que o desafio dos/as docentes para questionar suas práticas reside
no apego a uma “identidade” supostamente isenta de erros e críticas. É necessário, pois, retornar
a algumas discussões no segundo capítulo, no qual aponto que a maioria do corpo docente é

152
Professor no departamento de filosofia da universidade Queens College, em Nova York.
139

jovem, sem uma carreira consolidada e que, geralmente, buscam o Emancipa por ser um espaço
que permite a experimentação necessária para iniciar a docência. Apontei que esses/as
professores/as podem ser menos resistentes às críticas e às abordagens pedagógicas orientadas
pelo movimento social, do que professores/as mais velhos/as e com uma carreira já iniciada.
Isso se deve a essa identidade não formada, à outra relação com a (auto)aprendizagem
e críticas e também pela orientação da pedagogia popular que é, em sua gênese, questionadora.
Há também um outro ponto sensível que toca essa questão: nem todos os/as professores/as
possuem licenciaturas nas áreas em que atuam no Marielle. Por exemplo, mencionei uma
professora de redação, Mari, que é formada em jornalismo; Tati também chegou a dar algumas
aulas de redação. Isso aconteceu também com alguns/as professores/as que, formados em outras
áreas como química e física, deram aulas de matemática. A questão que remete ao problema
estrutural do cursinho de escassez de professores/as, sobretudo em determinadas disciplinas da
área de Exatas, também lança luz aos motivos da flexibilidade em torno das práticas
pedagógicas.
No entanto, não pretendo com isso afirmar que tal prática (educadores/as sem formação
técnica específica para lecionar) está isenta de problemáticas. É decorrente de um problema
estrutural e, inclusive, não repercute de forma positiva para todos/as docentes 153. Há de se
pontuar que essa permeabilidade de diferentes educadores/as em diferentes áreas de
conhecimento também permite uma maior adaptação às propostas de interdisciplinaridade nas
aulas.
Há uma outra passagem de hooks (2013) necessária neste ponto:
Todos nós somos sujeitos da história. Temos de voltar a um estado de presença no
corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente se orquestrou na sala
de aula, negando subjetividade a alguns grupos e facultando-a a outros. Reconhecendo
a subjetividade e os limites da identidade, rompemos essa objetificação tão necessária
numa cultura de dominação. (HOOKS, 2013, p. 186)

Por isso, a importância dos/as alunos/as se reconhecerem nos/as educadores/as faz parte
da construção político-pedagógica154. Nossos corpos informam lugares sociais e, a partir dele,
são feitas as primeiras leituras por outrem. À medida que se encontra semelhanças, o processo

153
Em uma conversa informal com uma das professoras de Letras do cursinho (que é licencianda em Letras –
Língua Portuguesa pela UFRN), ela me falou sobre seu descontentamento com Tati por ter posto Mari para dar
aulas de redação, e afirmou não ser adequado devido à formação dela não envolver Letras, nem mesmo
licenciatura.
154
Não estou querendo afirmar, no entanto, que isso se dê de forma direta. Não é o simples compartilhamento de
determinados atributos, como raça, gênero, sexualidade, geração etc., que fará com que esse reconhecimento se
dê, dado que inúmeras variáveis atuam implicando diversos sentidos e experiências em torno desses elementos.
Contudo, também não é possível negar a importância que esse jogo de espelhos, que essa representatividade pode
desempenhar modulando não apenas trajetórias educacionais, mas também processos de subjetivação particulares.
140

educacional torna-se mais dialógico, pois tanto estudantes quanto educadores/as dão aberturas
importantes para que se faça educação com afeto.
Essas reflexões nos levam a compreender a importância da construção militante dentro
do cursinho. Essas três educadoras, que em seu trajeto político ao longo de 2019 deram um
rosto ao movimento social no estado, compartilham uma vivência racializada e generificada, e,
no caso de Rogéria e Tati, há também sexualidades que escapam à heteronormatividade. Com
todos esses atravessamentos, não se deve negar a subjetividade, como hooks (2013) pondera,
ao contrário, deve-se utilizá-la como ferramenta para se conectar com os/as estudantes, erguer
pontes e assim fazê-los sentir parte daquele espaço.
Esse processo é feito a partir da formação política orientada pelo movimento social.
Vimos no segundo capítulo tentativas de organização estudantil como o Grupo de Ação, assim
como vemos a aluna Rogéria transformar-se em militante do Emancipa e coordenadora dos
cursinhos no RN155, bem como Jaci transformar-se também numa figura política que projetou
sua imagem publicamente. Percebendo essa articulação entre educação e militância é possível
compreender o cursinho também como um espaço de formação de quadros políticos tanto para
o movimento social Emancipa, como também para o PSOL.
O que distingue um “quadro” do Emancipa de uma pessoa com atuação mais
direcionada ao campo pedagógico, são as demandas nas quais se está envolvida, a projeção
pública de sua imagem e os cargos ocupados. Por exemplo, dificilmente a coordenação de um
cursinho ficará sob encargo de um/a professor/a que não tenha uma atuação também voltada à
militância. Isso porque a tarefa de coordenar depende muito dos direcionamentos dados pela
coordenação nacional, como veremos no próximo tópico. Embora essa coordenação não seja
conhecida por muitas pessoas do cursinho local e não haja um contato mais direto, as pessoas
que ocupam esse espaço têm forte influência nos rumos dos cursinhos locais.

4.4 Interlocuções, candidaturas e direcionamento do Emancipa

No dia 06 de julho de 2019 houve um episódio interessante quando saía de mais um


sábado no cursinho. Estava com a blusa do Emancipa e, saindo de lá, peguei um ônibus para
descer no shopping Midway Mall156. Ao chegar e andar em direção a uma outra parada de

155
Falo no plural porque com a nova configuração em uma coordenação estadual, devido à impossibilidade de
cursinhos presenciais, Rogéria assume demandas não apenas do Marielle, como dos outros cursinhos.
156
Importante shopping da cidade, localizado na Zona Sul, com paradas de ônibus estratégicas, pois muitos dos
itinerários passam por ali
141

ônibus, fui abordada por uma menina com a camisa do coletivo Juntos (MES/PSOL). que me
parou e perguntou se eu estava no Midway Mall para participar de uma atividade de
“arrecadações”. Ela ainda explicou que estava atrasada e que não conseguiu encontrar as outras
pessoas. Eu, então, respondi que só estava indo pegar o ônibus e falei: “nem sei que arrecadação
é essa”. A moça se desculpou e disse: “achei que você fosse do Juntos, tá com a camisa do
Emancipa”.
Essa situação ilustrativa apontou para novas questões em relação ao cursinho e a
importância, ainda maior, de analisar o campo sem deslocá-lo da Rede e do partido. Além disso,
também não poderia deixar de considerar a dimensão da política institucional partidária e como
ela interfere em seus rumos. Novas indagações surgiram a partir disso, por exemplo, até então,
eu costumava dividir o cursinho entre “os de dentro”, pessoas que tinham uma atuação
cotidiana, como professores/as, coordenação, estudantes, e “os de fora”, como os
colaboradores/as que não tinham essa atuação cotidiana. No entanto, essa divisão deixa de fazer
sentido visto que, devido à vinculação partidária, pessoas que não fazem parte do cotidiano do
cursinho, também o constroem mesmo em outros espaços.
Para deixar mais nítido esse debate, fiz uma entrevista, no dia 02 de novembro de 2020,
com um rapaz que atuou como professor de humanidades do cursinho Marielle em 2018.
Tomaz157 acompanhou a vinculação do cursinho com o mandato de Sandro Pimentel na mesma
época em que estava sob a coordenação de Will e Danilo. Tenho contato com Tomaz porque
ele também estuda na UFRN e várias vezes conversamos sobre o cursinho, recorri a ele para
tentar entender um pouco mais desse processo que, aparentemente, começa em 2018, acentua-
se em 2019 e se firma em 2020.
Tomaz: Eu observava [em 2018, época de sua atuação no cursinho] quando Will tava
na coordenação que ele entendia o objetivo do cursinho como parte do movimento de
educação popular, que é o que está proposto nos materiais que são publicizados sobre
o Emancipa. Existiam pessoas que compunham o cursinho, que pareciam se aproveitar
da construção que estava tendo pra instrumentalizar votos pro Sandro Pimentel. Eu
observei isso porque no ano que eu fui professor foi o ano que teve a eleição pra
governador, deputado estadual, federal, senador, e o Sandro Pimentel tava
concorrendo a deputado estadual, e perto da campanha, ele fez uma intervenção em
uma das nossas reuniões, basicamente, relacionando o mandato [de Sandro] como
vereador à expansão do cursinho e à possibilidade de ampliação caso ele chegasse à
Câmara Estadual.

Esse primeiro momento em 2018, expressado pelo interlocutor acima, evidencia a


primeira relação institucional do Marielle, inicialmente, com o mandato do então vereador
Sandro Pimentel e o engajamento na eleição que o levaria à Assembleia Legislativa como

157
Pseudônimo utilizado a pedido da pessoa, que optou por ter sua identidade preservada.
142

deputado estadual. Não é incomum, como pode ser observado na literatura presente no capítulo
um, a “aparelhagem”158 do movimento social para a política institucional. Contudo, é válido
destacar o papel da coordenação nesse aspecto, de acordo com o relato, enquanto com Will há
essa tentativa de fortalecimento do caráter de movimento social, é notável uma mudança de
paradigma a partir de 2019.
Tomaz: Nesse período, eu observei essa relação meio polarizada e meio
complementar, em que Will era essa figura mais funcional do cursinho que seguia o
que era proposto [como um movimento de educação popular] e o Danilo era esse braço
político [que mantinha essas relações na esfera da política institucional-partidária].

A chegada de Tati, como foi observado em sua entrevista no capítulo anterior, atendeu
à tarefa de expandir a Rede Emancipa. Logo no início de 2020, na única aula que tivemos
presencialmente, ela me falou que estava pensando em construir uma pré-candidatura à
vereadora em Natal. Pelo que entendi, ela já havia dialogado com outras pessoas do cursinho
sobre isso, provavelmente no dia da Aula Inaugural, mas como eu estava viajando na época, só
podemos conversar sobre isso nesse dia. Eu sinalizei com positividade à proposta que, até este
momento, chegou a mim apenas como uma ideia, não como algo concreto.
A motivação expressa por Tati foi bastante parecida com o que motivou a discussão
sobre o apoio à candidatura de Sandro Pimentel em 2018: ocupar um espaço institucional em
favor dos cursinhos que estavam em expansão, pois o diálogo dentro dessa esfera política
poderia proporcionar maiores viabilidades e aberturas para seu crescimento e manutenção.
Contudo, com a diferença na ênfase do caráter coletivo da candidatura, na qual Tati apareceria
como uma figura representante do movimento, ou seja, seria uma “candidatura do Emancipa”,
não apenas “apoiada pelo Emancipa”.
O processo de pré-candidatura de Tati começou oficialmente em 24 de junho de 2020
em uma reunião pela plataforma Google Meet com as pessoas do cursinho para discussão sobre
as propostas. Não pude participar da reunião, mas fui adicionada em um grupo de WhatsApp
cerca de dois dias depois, no qual aconteceria a articulação. Saí do grupo e expliquei
privadamente para Tati o porquê eu não construiria a campanha e, neste momento, é válido a
ressalva que só acompanhei a pré-candidatura, e posterior candidatura, pelas redes sociais.
Apesar de ter me manifestado como apoiadora e assinar o Manifesto de Pré-Candidatura159, não
estive engajada.

158
Categoria êmica utilizada, de forma acusatória e/ou pejorativa, como jargão por segmentos da militância para
se referir ao processo de tornar o movimento social um espaço que serve aos propósitos e fins do partido, tanto
para angariar militantes, como forma de projeção política que garante um crescimento.
159
Documento escrito no qual coloca-se as motivações e justificativas para a existência da candidatura e coleta-
se assinaturas de apoiadores/as políticos. Trarei uma versão do documento nos anexos ao final da dissertação.
143

Os motivos, além de pessoais, pois não estava com tempo para assumir essa demanda,
também foram políticos. Tenho discordâncias e críticas à postura política do MES/PSOL160.
Além disso, avaliei que seria demasiado complexo e problemático para o meu trabalho como
pesquisadora envolver-me numa campanha eleitoral dentro do meu campo da pesquisa.
Por isso, a análise sobre a candidatura será feita por meio dos discursos publicizados
nas redes sociais e, sobretudo, como as redes do Emancipa foram utilizadas nesse processo.
Não obstante, também manterei diálogo com a bibliografia existente que aborda outros
cursinhos da Rede que produziram campanhas eleitorais, bem como uma breve análise da
candidatura à vereadora de São Paulo da coordenadora da Rede, Luana Alves.

4.4.1 Candidatura de Tati e instrumentalização do Emancipa

Rios (2018), quando discute sobre a institucionalização da agenda de igualdade racial


no Brasil, aponta esta como diretamente associada à dinâmica de interação entre o ativismo
político e as esferas executiva e burocrática do Estado. Em suas palavras:
Tal institucionalização deve-se, em partes, à progressiva profissionalização dos
militantes, à especialização do ativismo, à formalização das organizações civis, à
ampliação de redes políticas nos planos nacional e internacional, à aproximação dos
partidos políticos, ao treinamento de lideranças nos espaços participativos e
executivos do aparato estatal, resultando na cristalização de encaixes institucionais.
Essa configuração tomou forma nos fins anos de 1980, alterando decisivamente as
características mais comunitárias e voluntaristas do ativismo político. (RIOS, 2018, p.
278)

É possível vislumbrar a discussão iniciada no primeiro capítulo sobre a tendência dos


movimentos sociais à institucionalidade a partir deste ponto e pensá-la, sobretudo, a partir de
Tati que personifica as duas dimensões políticas: partidária-institucional, movimento social-
comunitário. Rios (2018) aponta a “profissionalização dos militantes” e é possível pensar Tati
também dentro do encaixe de militante profissional ao passo que ocorre a construção de sua
persona eleitoral.

160
O PSOL é um partido muito diverso, com múltiplas “tendências” e “correntes”, mas em suma, avalio o partido
com um forte apelo à política eleitoreira a fim de galgar espaços nas esferas institucionais e burocráticas dos
governos (sobretudo municipais), ao invés de organizar uma militância de base popular sob um viés de
combatividade política. Nesse sentido, avalio que o partido tece algumas aproximações perigosas dentro da
institucionalidade e o enraizamento civil (RIOS, 2018) com sua base é secundarizado. Além disso, a questão
feminista e lésbica (duas questões que para mim são primordiais, pois sou lésbica) no PSOL também é
secundarizada. Em relação à primeira, avalio como debates políticos e abordagens teóricas incipientes. Já a
segunda é obliterada à medida que se pauta questões de uma suposta “comunidade LGBT” da qual já me
desvencilhei politicamente devido à militância lesbofóbica e misógina dentro das siglas. Contudo, é válido destacar
que em relação aos dois últimos pontos distribuo as mesmas críticas a todos os partidos que conheço e por isso
assumo uma postura autonomista.
144

A Tati “candidata” não é igual à “coordenadora”, embora ela precise se valer


politicamente dessa posição para construir a candidatura. Há uma série de estratégias e diálogos
que são pensados coletivamente por uma equipe que esteve com ela durante o período das
eleições, inclusive o uso das redes sociais como ferramenta imprescindível – ainda mais no
contexto de distanciamento social. Por conseguinte, ao longo da discussão busco demonstrar
como esse processo alterou a imagem do próprio cursinho, levando em conta o que Rios (2018)
coloca como alterações decisivas nas características comunitárias e voluntaristas do ativismo,
nesse caso, na apreensão sobre o Marielle e demais cursinhos.
No texto “De uma política de ideias a uma política de presença?”, de Phillips (2001),
discute-se as demandas por “presença política” como busca por representação igualitária na
esfera institucional em termos de gênero, raça, classe social, sexualidade. É nesse contexto que
a autora conceitua a “política de ideias” e a “política de presença”. A primeira, seria a política
tradicional na qual se escolhem representantes a partir do partido. Já a segunda seria um
contraponto a essa “velha política” e emerge das demandas contemporâneas pela presença de
indivíduos que carregam em si marcadores identitários de diversidade e visibilizam as pautas
de movimentos sociais.
Inclusive, a proposta de candidaturas coletivas (encabeçada por Tati em sua disputa à
vereança que foi publicizada como sendo uma “candidatura coletiva do Emancipa”), em tese, é
servir como contraponto à disputa eleitoral tradicional. Na campanha dela (e em outras com
perfil semelhante) há uma polarização entre a “velha política” e a “nova política”, sendo essa
“nova” representada por uma parcela da população que ocupa de forma minoritária os espaços
institucionais.
Por isso, há uma ênfase em destacar categorias identitárias como gênero, raça e
sexualidade, além da íntima relação com um movimento social. Sobretudo em uma cidade como
Natal, dominada há décadas por oligarquias que alternam candidaturas para se manterem nos
espaços de poder, essa ênfase na “nova política” com novos rostos e figuras com um apelo
popular que emergem dos movimentos sociais são relevantes para tensionar a correlação de
forças com os partidos e políticos tradicionalistas que se revezam no poder para manter seus
privilégios – além de se diferenciarem de outros personagens que se colocam como novos, mas
que não procuram romper com o status quo.
Bejarano (1998), em seu texto “Tensiones y Dilemas de La Representación Política”,
aborda o denominado “mal-estar” com a política e o sistema político que leva a uma falta de
credibilidade popular aos partidos e políticos, afirmando que “o custo disso é a ideia de que,
ante o mal-estar generalizado com a política, a resposta mais adequada seja a antipolítica:
145

ignorar, dar as costas, rechaçar e negar a importância da política para a vida em sociedade”
(BEJARANO, 1998, p. 13).
Mesmo o texto sendo do final da década de 90, é notório o quanto esse processo de
descrédito do sistema político fundamenta-se na atualidade provocando exatamente o que
Bejarano (1998) aponta. É muito comum nos depararmos (e até reproduzirmos) o discurso da
irrelevância do sistema eleitoral e desconfiança com figuras políticas. Isso está associado ao
processo histórico de construção da democracia brasileira que, além de fragilizada, constitui-se
de maneira intermitente devido à sucessão de golpes de Estado que formulam nosso tecido
social – inclusive o mais recente golpe político-institucional de 2016, que acarretou o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff e na posse ilegítima de seu vice, Michel Temer.
As novas candidaturas, cientes disso, buscam dialogar com os apelos de uma parcela da
população que constitui seu público-alvo: pessoas jovens, de classes populares, negras e negros,
LGBTs e mulheres. Projetando-se como a mudança necessária ao sistema político, essas
campanhas crescem apoiando-se em um repertório de ação e discurso construído dentro de
movimentos sociais, com um forte apelo à juventude e abertura ao diálogo, ao invés de se apoiar
nas tradicionais promessas eleitorais próprias aos políticos populistas.
Na campanha de Tati, houve um debate com a agenda política feminista, antirracista e
LGBT, principalmente. Slogans como “Agora é hora de eleger uma LGBT negra para a Câmara
Municipal de Natal” e “Em quantas mulheres você já votou? Quantas delas eram negras?”,
evidenciaram uma disputa de narrativa política. O destaque da campanha sempre foi o ofício
de Tati enquanto coordenadora de uma rede de cursinhos populares. Nos materiais de
divulgação, Tati quase sempre aparecia com a camisa do Emancipa ou com o logomarca da
rede associado à sua imagem.
Um dos slogans da campanha, que considero controverso, é “O Emancipa me escolheu
e o PSOL ratificou”. O questionamento fundamenta-se na compreensão que para um
movimento social “escolher” um quadro para uma disputa eleitoral precisaria haver um debate
amplo sobre isso, organizado em reunião com todos/as os/as militantes, no qual seria decidido
a viabilidade, ou não, de uma candidatura e qual o melhor nome para encabeçá-la em prol do
movimento. A última reunião dos cursinhos do RN antes do início das aulas de 2020 aconteceu
no dia 25 de janeiro, nela não houve nenhum debate sobre o posicionamento do Emancipa nas
eleições e isso sequer chegou a ser pauta.
Após esse encontro, houve a Aula Inaugural e o primeiro dia de aulas presenciais quando
Tati conversou comigo sobre essa proposta de pré-candidatura. Isso me fez avaliar que a
candidatura provavelmente foi uma ideia que surgiu dentro do partido, mais especificamente
146

do mandato de Sandro Pimentel e/ou das instâncias da corrente partidária em que atuam, e foi
levada por Tati às pessoas do cursinho que não manifestaram discordâncias. Sendo assim, não
foi uma escolha “do Emancipa”, mas sim uma escolha partidária que os cursinhos acolheram.
Isso, óbvio, se formos pensar na dimensão individualizada do Emancipa enquanto movimento
social – em partes – independente do MES/PSOL.
Sandro Pimentel também foi destaque na campanha de Tati aparecendo com ela nos
materiais publicizados nas redes sociais, panfletos e bandeiraços. Em termos eleitorais, foi o
seu “padrinho”. É válido ressaltar que à época da campanha, o mandato de Sandro, que já sofria
há alguns meses uma forte perseguição política e jurídica sob alegação de uma “origem ilícita
de recursos durante a campanha” que o elegeu, em 2018, acabou sendo cassado.
Ao longo da candidatura de Tati, foram também publicados vídeos de apoio feito por
alguns professores/as dos cursinhos, principalmente do Marielle. O jingle161 da campanha foi
produzido com a participação de alguns/as estudantes dos cursinhos que dançaram e cantaram
junto com Tati a coreografia e a letra ao ritmo da música Ponta de Lança162, de Rincon
Sapiência. O diálogo com a juventude no jingle163 é explícito, a dança, a letra e a escolha da
música dialogam fortemente com o perfil Emancipa, montando assim uma possível
identificação com as bases de um eleitorado.
Outra candidatura coletiva do Emancipa à vereança ocorreu em São Paulo, com uma
outra coordenadora da Rede e militante do PSOL, Luana Alves. Luana venceu as eleições,
diferente de Tati, ambas – pelo que eu pude acompanhar pelo perfil no Instagram de Luana –
apostaram na ferramenta da representatividade para dialogar com as bases do movimento
feminista e antirracista. Luana Alves também é uma mulher negra e, assim como Tati,
reivindicou a bandeira LGBT em sua campanha e articulou o debate sobre saúde e defesa do
SUS, pois ela é profissional da saúde.
Em um de seus posts há o apelo ao slogan: "Nesse domingo, vote LGBT, eleja uma
jovem LGBT”. Novamente, percebe-se a tentativa de firmar bases em um eleitorado jovem. Em
muitos de seus materiais publicizados, como os panfletos, Luana aparece junto à chapa Boulos
e Erundina que concorreram à prefeitura da cidade paulista nas mesmas eleições, assim como
aparecem juntos em caminhadas e diálogos com a população.

161
É uma mensagem publicitária musicada utilizada nas campanhas eleitorais para que as pessoas decorem o
número dos/as candidatos/as e também como uma forma de apresentação dinâmica deles/as.
162
Consultar: https://www.youtube.com/watch?v=vau8mq3KcRw.
163
Consultar: https://www.facebook.com/watch/?v=789323111922392.
147

A intenção de firmar apoios políticos, no caso de Tati com Sandro Pimentel e Luana
com Boulos, demonstra uma tentativa de capilarizar votos de uma figura política que já tem as
bases de um eleitorado. Na campanha de Luana, também houve a instrumentalização de uma
agenda feminista e em diversos materiais de publicidade, ela aparece junto à Sâmia Bomfim
que é deputada federal pelo PSOL e tem um histórico de atuação no movimento feminista.
Sâmia, como Tati, Luana e Sandro, também é um quadro do MES/PSOL.
Nisso tudo, a questão que fica é: Qual o papel do Marielle na disputa eleitoral? A meu
ver, a impossibilidade dos encontros presenciais, a desestruturação dos cursinhos locais, a
evasão de professores/as e estudantes, provocou um esvaziamento pedagógico nos cursinhos
em 2020. É injusto e errôneo afirmar que o Marielle, assim como os outros cursinhos da Rede,
são apenas espaços para um trabalho de base partidário. Da mesma forma, também seria
equivocado estabelecer uma completa cisão entre os interesses do cursinho e uma aproximação
partidária, haja vista os sentidos de educação popular examinados no primeiro capítulo. Há
muito de “experimentação” no cursinho, como já foi demonstrado nas entrevistas de alguns/as
professores/as, e há uma dimensão de construção da política prefigurativa (CARMO, 2019), no
sentido de ser algo que se tem a intenção de testar, orientada à produção de novos códigos
(CARMO, 2019, p. 14) que, nesse caso, os “códigos” podem ser compreendidos como os novos
valores político-pedagógicos na educação.
Essa dimensão que emerge de experimentações coletivas, dando lugar a “locais
temporários de autogestão” (CARMO, 2019), faz com que o cursinho também seja um local de
disputa porque ele está sendo construído por pessoas diversas e com diferentes propósitos. No
entanto, no contexto da pandemia, da ausência de aulas presenciais, redução dos contatos e
aproximações, evasão da equipe, o cursinho torna-se um território menos disputável porque não
há mais a mesma intensidade de narrativas plurais sendo colocadas no cotidiano e em
tensionamento com a direção que a coordenação (local e nacional) encaminha o movimento.
Talvez em um cenário “normal” (de aulas presenciais, espaço físico dos cursinhos e
participação dos/as docentes e estudantes), as candidaturas que emergiram como “coletivas do
Emancipa” tivessem sofrido maiores tensionamentos (assim como algumas que trouxe no
primeiro capítulo e provocaram rupturas dos cursinhos com a Rede). Também é possível nos
indagar se esse mesmo cenário foi impeditivo à vitória de Tati no pleito, haja visto as
dificuldades de mobilização a partir dos não-encontros presenciais. Porém, a ausência dessas
condições materiais de existência, as limitações que o ambiente virtual impõe à construção de
relações e de afetos e a diluição do Marielle em uma rede estadual, provocou um vazio que
tornou o movimento social um território mais suscetível à instrumentalização partidária.
148

4.4.2 Direcionamento do Emancipa

O título deste capítulo é uma pergunta: “educação popular ou educação partidária?”. Tal
questionamento surgiu a partir da entrevista com Will e reflete um pouco dessa confusão com
a polarização que ocorre no cursinho devido à forma imbricada como se dá a relação entre o
movimento social e o partido. Will, que foi militante partidário e aproximou-se do Emancipa
por causa disso, também é pesquisador da educação popular e afirmou que seu objetivo
primordial sempre foi pô-la em prática no cotidiano do Marielle. Em entrevista, ele falou um
pouco sobre esse ponto.
Will: Quando a gente fala em educação popular, a gente acaba não encontrando uma
definição muito clara ou um exemplo muito definido do que seria na prática a
educação popular. E isso abre muita brecha pra que aconteça muita educação
partidária e educação meio que espontânea, espontaneísmo, e aí acaba chamando isso
de educação popular porque tá atingindo tal público. E aí eu acho que a diferença, no
Emancipa, tá mais no ideal. A gente almeja que aconteça essa separação [entre
movimento social e partido], mas na prática não acontece.

Percebe-se, pois, que a própria categoria educação popular está em disputa. No


entendimento de Will, que eu compartilho, há uma orientação pela construção de práticas
educativas que sejam dialéticas para que possam despertar a criticidade. A questão do
espontaneísmo e da experimentação, duas características muito presentes no cursinho, embora
sejam atrativos, também se tornam obstáculos para a concretização deste projeto educacional.
O objetivo aqui não é responder de pronto a pergunta que dá título ao capítulo e sim pensá-la
no amplo contexto do Marielle e nas inúmeras mudanças ocorridas entre 2019 e 2020, além de
localizar o papel da coordenação no direcionamento dado ao Emancipa enquanto movimento
de educação. Para isso, coloco abaixo mais um trecho da nossa conversa:
Juliette: Como você pensa essa relação do movimento social com o partido? Porque
eu vejo como coisas muito imbricadas e às vezes há uma tentativa de separá-las, já
outras vezes de reafirmar a junção...
Will: Quando eu tava lá [no cursinho] eu não tentava desvincular a questão de uma
militância partidária de um movimento social porque eu acho que isso se resolve
quando você coloca em prática a educação popular, a gente coloca em prática Paulo
Freire, que é justamente aquela ideia de dialética freireana na qual, pelo que eu
entendo, é um movimento que não é somente eu dizer pra você o que é certo, e sim eu
dizer pra você, sem esperar que você concorde, apenas faça o diálogo acontecer numa
espécie de rede e a partir daí você tem uma construção de um pensamento coletivo,
um sentimento de coletividade que vai além de um interesse individual, partidário e
enfim [...] E às vezes também o próprio objetivo da direção do movimento não é de
romper com essa lógica do “eu falo, você escuta”. O que eu senti até o momento que
fiquei lá é que não existia essa disposição de romper com essa lógica [...] A pessoa,
ela não vem vazia pra sala de aula, ela também precisa construir sua criticidade e
despertar sua curiosidade, e aí as formas como isso acontece pra educação popular
elas têm que ser muito transparentes... acho que a educação popular tem muito de
transparência
149

Juliette: Acho que isso também toca na questão do direcionamento do movimento,


né? Porque todo movimento precisa de um direcionamento e se não tem a gente fica
meio ao léu164
Will: Acaba se apegando no dia a dia a outras questões... porque a coordenação acaba
também reforçando no cotidiano o propósito do movimento, que seria colocar a
educação popular em prática, despertar criticidade dos alunos, enfim, essas coisas que
a coordenação acaba na sua atuação fazendo com que isso seja mais visível no dia a
dia. Aí quando você não tem isso, se apega a coisas mais imediatistas… Daí a falta da
coordenação acaba fazendo com que as pessoas vão pra outros lugares.

Esses “outros lugares” são outras narrativas e formas de disputar a categoria de


educação popular e um desses lugares é a própria educação partidária. A diferenciação entre
ambas pode ser apreendida a partir da análise das práticas educativas do cursinho como também
a partir do envolvimento estudantil. Não existe educação popular sem participação porque sem
ela não há dialética. O papel da equipe do Marielle (docentes e coordenação) é pensar e construir
condições materiais que viabilizem a participação dos/as estudantes e, para isso, há espaços
como círculos e oficinas.
Contudo, não há garantia de que a educação popular seja construída nesses momentos
porque também é necessário a metodologia e orientação adequada para essas atividades. Por
exemplo, se um círculo é orientado no sentido de discutir uma pauta relevante para a conjuntura
nacional e já é conduzido de modo a encaminhar a discussão para onde se almeja chegar desde
o princípio, há um aspecto de prática educativa de formação que mais se aproxima da chamada
“educação partidária”. Com isso, é possível notar que há diversas variáveis a se destacar na
construção pedagógica dessas práticas educativas.
Em entrevista, Danilo também falou sobre essa relação entre o movimento social e o
partido.
Juliette: Como você avalia a interlocução entre o partido e o movimento social? Se há
apoio material, financeiro? Por parte do PSOL pra o Emancipa porque, enfim né, o
movimento social não se sustenta sozinho
Danilo: É… Não se sustenta, um movimento social acho que ele tem que ter várias
fontes de financiamento. A gente no Emancipa nunca conseguiu [se sustentar sem
outros apoios], e acho que sempre vai ter essa dificuldade porque é um movimento
social essencialmente professor-aluno, então é um f***** e outro f***** 165 e meio
[...] No movimento social de periferia você conta mais com a solidariedade das
pessoas, então funciona um lanche coletivo, um almoço [...] Esse movimento de
solidariedade é a base material que precisa, todo movimento tem que ter sustentação
financeira porque isso garante autonomia [...] Então, só o autofinanciamento não se
sustenta porque é uma barreira de classe, as estruturas familiares de quem atua no
Emancipa não tem sobras. Os/as professores/as que têm, contribuem; quando há sobra,
contribui… Eu já contribuí, você já contribuiu, todo mundo já contribuiu um pouco
com a própria estrutura [...] Então, quem tem consegue estruturar no cotidiano, mas é
importante o apoio. Aí no Rio Grande do Norte (RN), e vários outros lugares do país,
a gente encontra parceiros do PSOL porque acaba que a gente é um pouco do mesmo
tempo… Foram iniciados pelas mesmas pessoas, mas não de forma integral porque o

164
Expressão que significa algo como “ficar sem rumo”, largado, solto.
165
Palavrão utilizado para expressar a situação socioeconômica vulnerável dos/as professores/as e estudantes.
150

Emancipa sempre foi maior, mais múltiplo, mais diverso [...] E aí no Emancipa do
RN, no espaço do mandato que a gente [ele, Tati e Will] construiu, sempre foi um
espaço pra potencializar a luta, seja de maneira política, levando ela pro parlamento,
seja de maneira estrutural.

É possível perceber a partir da fala de Danilo que há uma intencionalidade de reforçar


a narrativa do Emancipa como maior que ou separado do PSOL. O partido aparece como
coadjuvante no espectro do movimento social e as relações entre ambos não aparecem de forma
muito nítida. É mencionado pequenas contribuições no tocante à estruturação material, o PSOL
aparece como um propulsor dos cursinhos e mobilizador da educação popular. Porém, a forma
como isso é feito nunca fica muito explícita, apenas há o resgate de ações menores que
evidenciam a interlocução.
De fato, um movimento social de periferia não consegue se sustentar sozinho, mas a
questão é: qual a dimensão desse apoio? Dessa parceria entre Emancipa e partido? Uma pessoa
que não tem vinculação partidária com o PSOL poderia, por exemplo, ocupar a coordenação
nacional da Rede? Poderia ser um quadro passível de encabeçar uma disputa eleitoral? Também
é possível pensar que há um processo de mútua composição, de engajamento combinado, no
PSOL e no Emancipa.
Danilo, assim como Tati, vem de um contexto migratório. Quando ingressou na USP,
Danilo conheceu o Movimento Estudantil e a partir disso começou a atuar dando aula no
Emancipa logo em seu início, 2008, numa época em que só havia dois cursinhos em operação
localizados em SP. Segundo ele, a militância no PSOL começou um ano após seu ingresso no
Emancipa. Danilo falou um pouco sobre sua migração.
Juliette: Como foi essa sua mudança de São Paulo pra Natal? A Tati, que inclusive
tem essa trajetória parecida de contexto migratório, veio por causa do Emancipa. Você
também?
Danilo: Não. Na verdade, eu vim a convite de algumas pessoas do partido pra ajudar
na organização da militância no mandato de vereador do Sandro. Então quando eu fui,
o Emancipa era uma ideia só na minha cabeça, mas não tava como um plano traçado.
E foi assim, uma mudança bem abrupta, eu tinha muita vontade de viver no Nordeste,
então já tinha pensado, mas nunca tinha tido oportunidade, nem nunca tinha conhecido
nenhuma cidade… Então, eu ouvia muito relato de pessoas que conheciam e
conheciam Pipa e aquele roteiro que a elite paulista faz no Nordeste e esse roteiro não
tinha nada a ver com o Nordeste que eu conhecia [...] Então, quando surgiu a
oportunidade de vir pra Natal, eu simplesmente em três meses decidi e vim.
Juliette: Foi em qual ano que você se mudou pra cá?
Danilo: 2016… início de 2016
Juliette: Então, no ano seguinte vocês fizeram o Emancipa aqui? Você e Will?
Danilo: Foi, exatamente

Sabendo disso, torna-se notório a preocupação de Danilo com uma atuação mais
partidária no cursinho. Diferente de Tati que migrou com o ofício de expandir a Rede no
Nordeste, Danilo veio através do PSOL para uma atuação direcionada ao partido. Isso corrobora
151

com o cenário ilustrado pelo interlocutor Tomaz de Will enquanto a figura mais funcional e
Danilo como o braço político. Indo um pouco além, diria Will como a figura pedagógica e
Danilo a figura partidária. Nessa polarização, Tati aparece em 2019 como a figura que tenta
unir os dois polos, os dois eixos de práticas educativas de formação e de pedagogia. Porém, o
direcionamento político-partidário acaba prevalecendo em 2020.
O motivo dessa prevalência pode ser explicado quando se enxerga os propósitos da
coordenação nacional (direção) da Rede. Na conversa com Will, falamos muito sobre a
importância da coordenação e o direcionamento que ela dá aos cursinhos. Contudo, é preciso
pensar que, assim como o movimento social tem uma certa independência do partido por ser
construído por múltiplas pessoas, os cursinhos também têm relativa independência da Rede,
pois cada um está inserido em determinada conjuntura local (cidade e estado). No entanto, o
que acontece quando, por exemplo, a coordenação nacional coordena um cursinho local (que é
o caso do Marielle com Tati)? Acontece que os propósitos podem divergir ou o direcionamento
dado ao cursinho local será o mesmo do nacional.
Juliette: Afinal, qual o propósito do Emancipa? Digo, da direção nacional?
Will: O propósito do Emancipa é o propósito do MES (PSOL). Não há mais o que
dizer, é propósito do MES. E minha leitura do MES é que o Emancipa ocupa um
espaço útil pra gerar aproximação, eleitores e também pra satisfazer um pouco a
insatisfação dos militantes do MES com relação à questão racial do partido. É tanto
que o JUNTOS é ultra racista e os militantes do MES que não conseguem mais
suportar o JUNTOS, mas tem alguma afinidade com a política do MES, vão pro
Emancipa. E aí no Emancipa aparentemente essa preocupação com a questão racial
parece ser maior.

Visto isso, é possível compreender as grandes mudanças que ocorreram no Marielle


com a ruptura de Will para Tati. O direcionamento local está em consonância com a política
nacional da Rede em termos de propósitos políticos e de formação pedagógica. Inclusive, é
possível compreender a importância do perfil Emancipa aliado à militância feminista e,
sobretudo, antirracista.
Não cabe nesta pesquisa fazer uma avaliação da política do JUNTOS/MES/PSOL
porque não é este meu campo de estudo. Meu campo é o Cursinho Marielle e, ao longo do
trabalho, foi necessário trazer o partido porque ele aparece com uma vinculação indissociável
ao Emancipa, sendo assim é um dado primordial para ser dissecado. Por isso, não irei me ater
a reforçar ou criticar o apontamento de Will, pois qualquer direcionamento nesse sentido não
seria científico e sim militante.
A partir das pontuações de Will (e por isso optei por trazê-la neste momento), cabe
pensar como a vinculação a uma agenda antirracista, a partir de um movimento social que tem
rosto de mulher negra (não só por evocar Marielle Franco, como também pelo perfil de
152

estudantes que já foi analisado) é capaz de montar bases fortes para um eleitorado e fortalecer
a disputa política no campo institucional com a construção de candidaturas “de presença”. Sob
tal perspectiva, podemos pensar que o “perfil do Emancipa”, de certa maneira, ganha
movimento, espraia-se, apoiando talvez reelaborações na própria imagem do PSOL ou do MES.
Isto posto, procurei trazer um enfoque na “coordenação” ou “direção” do Marielle que
também é a coordenação nacional da Rede (no caso de Tati) para examinar as interlocuções
entre o movimento social e o partido. Nesse ínterim, alguns dados importantes apareceram
como o protagonismo de Jaci e Rogéria junto à Tati em 2019, que encaminhou ambas a postos
de coordenadoras. A militância antirracista e feminista que se desvela a partir da construção de
um “perfil” para o Emancipa no estado, perfil este relacionado ao público de estudantes cuja
maioria são mulheres não-brancas de classe popular.
Trazer a entrevista com Will, não apenas neste capítulo como em outros, foi de
fundamental importância, pois ele tem as perspectivas de “dentro”, o período que passou como
coordenador e fundador do cursinho, e de “fora”, depois que rompeu com o Emancipa e o
partido. Com isso, foi possível ampliar a percepção sobre como se dão as relações institucionais
e qual o direcionamento dos usos políticos da “educação popular” para o movimento social.
Por fim, foi importante destacar o quanto as pedagogias não-tradicionais, “de
libertação” e pedagogias freireanas, estão atreladas à organização das mulheres negras no
Brasil. O racismo e machismo estatal e institucional buscam retirar dessa parcela da população
racializada e generificada o direito à educação pública (desde o ensino básico ao superior) e
com isso, os movimentos sociais tornam-se o meio, a ferramenta e o espaço de luta e
reivindicação por lugares, direitos, cidadania.
153

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O CURSINHO MARIELLE COMO AÇÃO


EDUCATIVA

Trago, por fim, uma última reflexão para pensar o cursinho como “ação”, ou seja, pensá-
lo dentro do contexto político de um movimento social que tem nas práticas educativas seu
repertório de ação. A questão é que o Emancipa é um ideário que se concretiza através da
apropriação do expediente de ensino conhecido como “cursinho” e mescla práticas educativas
de formação política e de transformação socioeducativa. A propósito dessa noção de “ideário”,
para finalizar, trarei um breve panorama de como o Emancipa manteve suas atividades com
os/as estudantes no RN em 2020 para pensar o conceito.
Começamos o ano de 2020 com cinco cursinhos da Rede Emancipa no RN, incluindo o
Marielle Franco e o de Ceará-mirim (município da Grande Natal, Região Metropolitana),
fundados, respectivamente, em 2017 e 2019. Em 2020, teve início o cursinho em Currais Novos
(município no interior do estado) e outros dois em Natal, nos bairros de Mãe Luiza e Felipe
Camarão. Com as atividades remotas virtuais, avaliou-se que não fazia sentido manter
coordenações separadas e por isso optou-se pela criação de uma “executiva” (a coordenação
estadual) para unir todos os cursinhos em uma rede estadual. Embora ainda tenha se mantido
grupos de WhatsApp separados por núcleo, além do grupo geral.
Durante as aulas remotas, foram feitas pesquisas com os/as estudantes para saber como
estava a situação perante essa realidade do ensino virtual. O cursinho precisava de um norte
para orientar suas práticas a partir de então e saber quais plataformas utilizar, quanto tempo de
aula seria necessário, como estava a situação socioeconômica, tudo isso foi perguntado às/os
estudantes em questionário e analisado pela coordenação.
De início, utilizou-se muito a rede social Instagram, WhatsApp e o recurso das
videoaulas com exercícios. No Instagram acontecia o espaço dos “círculos” e houve uma
tentativa de reproduzir esse espaço no mundo virtual através dessa ferramenta. Embora tenha
tido participação dos/as estudantes e professores/as por algum tempo, como em outros espaços,
ocorreu um esvaziamento ao longo do ano, culminando no encerramento dos círculos.
As videoaulas eram feitas por cada professor/a, geralmente utilizando aplicativos
específicos para isso. O tempo de aula foi estipulado em torno de 25 minutos, de acordo com
as respostas dos/as alunos/as sobre quanto tempo de aula virtual era rentável. Havia uma
sistematização para encaminhar as videoaulas para os/as estudantes pelo WhatsApp, mas elas
também eram adicionadas ao Instagram da Rede Emancipa RN. No início da pandemia, as lives
também eram recorrentes, mas esse foi outro recurso abandonado ao longo do ano, devido à
154

baixa adesão estudantil e também da equipe docente. Os Podcasts também foram um recurso
bastante utilizado para as aulas. Participei de alguns em conjunto com outras professoras da
área de Humanas, e, quando retornei às atividades (em meados de julho), utilizei o recurso do
Google Meet para gravação das aulas.
Em meados de agosto, foram criados dois novos espaços para estimular a interação entre
professores/as e estudantes: as monitorias e tutorias. Se nas videoaulas e podcasts já havia
algumas aulas interdisciplinares, sendo entre professores/as de uma mesma área, a proposta da
monitoria era da interdisciplinaridade com todas as disciplinas, independente da área, pela
ferramenta Google Meet. Já a tutoria foi um espaço criado para atender individualmente e
coletivamente (em grupos menores) as demandas dos/as alunos/as, como uma espécie de “bate
papo virtual” com horário e data marcados, no qual algumas professoras ficaram a cargo.
Participei do espaço da monitoria e, a meu ver, foi uma das experiências mais bem-
sucedidas e com muito potencial caso tivesse sido aplicada desde o início do ano. À época da
criação desses novos espaços, o índice de evasão já era imenso, não só de estudantes como
também de professores/as. Na primeira monitoria (a qual não participei), tiveram cerca de dez
estudantes, nas monitorias em diante o número já não passava de cinco e diminuía. Apenas um
aluno costumava participar de forma recorrente dos encontros e interagia bastante conosco, vez
ou outra aparecia algum/a outro/a estudante de forma esporádica.
Esse aluno, que chamarei aqui de Ademar, era bastante jovem, nunca perguntei sua
idade, mas acredito que não passava dos 18 anos e cursava o Ensino Médio. Suas interações
eram sempre numa tentativa de se enturmar conosco, ele fazia piadas, brincava, falava sobre
seu dia, perguntava do nosso e era atento às aulas, trazia suas dúvidas e ponderações.
No grupo da monitoria havia professores/as de química, biologia, matemática, história,
sociologia e geografia, mas vários/as evadiram ao final do ano. O idealizador dessa proposta
pedagógica foi Mike. Nosso planejamento ocorria pelo Telegram e tínhamos reuniões semanais
para elaborar um plano de aula conjunto e dialogar sobre um eixo temático. Fazíamos também
a gravação de um podcast para cada aula (pelo recurso de gravação no Google Meet e com a
edição de um parceiro do Emancipa, amigo de um dos professores de química) para que as aulas
ficassem disponíveis às/os estudantes que não participavam dos encontros de forma síncrona.
Esse panorama demonstra que, mesmo com um altíssimo índice de evasão, sem termos
noção de quais e quantos estudantes realmente estavam nos acompanhando, assistindo as aulas
e reagindo aos conteúdos, e com uma equipe de docentes e coordenação cada vez menor e cheia
de outros trabalhos, tarefas e demandas, mantivemos as atividades do cursinho.
Isso se deve à noção de “ideário” que apresentei no início. Precisávamos manter as
155

ideias do Emancipa vivas por meio das práticas educativas. Mesmo sem um espaço físico e com
todas as dificuldades que atravessaram a vivência de estudantes e professores/as, não podíamos
“abandonar” os/as alunos/as porque esse foi o mote do Emancipa durante 2020, estampado nas
publicações das redes sociais e posto em prática, com tentativas, acertos e erros, de adequação
ao modelo de ensino remoto virtual: “No Emancipa ninguém fica pra trás”.
A noção de ideário que proponho pode ser dialogada com hooks (2013) e a ideia de
“pedagogia engajada”. Em suas palavras:
A pedagogia engajada não só me impele a ser constantemente criativa na sala de aula
como também sanciona o envolvimento com alunos fora desse contexto. Acompanha
os alunos à medida que eles progridem em sua vida fora da nossa experiência de aula
(...) A lição importante que aprendemos juntos, a lição que nos permite caminhar
juntos dentro e além da sala de aula, é a do engajamento mútuo. (HOOKS, 2013, p.
271)

O “caminhar juntos” tem muito a ver com a proposta do Emancipa de manter suas
atividades para acolher os/as estudantes. De acordo com hooks (2013, p. 271): “Quando os
alunos se veem mutuamente responsáveis pelo desenvolvimento de uma comunidade de
aprendizado, oferecem contribuições construtivas”.
É necessário também destacar como a construção educativa dentro do ambiente virtual
e todas as relações desenvolvidas por esse intermédio, afetou a percepção da imagem do
cursinho, sobretudo porque se deu no contexto de um ano eleitoral. Devido às eleições, já era
de se imaginar que o cursinho assumiria novas estratégias de maior aproximação partidária para
poder disputar, com o nome de Tati, a política institucional. Contudo, a falta de vínculos
presenciais causou um estremecimento nas relações entre a equipe e os/as estudantes.
O virtual é um ambiente frio e estéril que não consegue suprir a necessidade da presença
física para as relações humanas, especialmente quando estas ocorrem mediadas por práticas
educativas que necessitam de uma construção envolvida por afetos. Assim também ocorre com
as relações políticas que são mediadas por diálogos, debates e apropriação de discursos. Esse
vazio provocado pelo distanciamento físico, abriu espaço para a construção de uma imagem do
cursinho (muito pautada nas redes sociais) que, a meu ver, evocou mais uma dimensão
partidária do que pedagógica.
Por fim, é importante vislumbrar os impactos da pandemia, que ainda não estão sendo
plenamente sentidos, pois a pandemia não acabou, para o Marielle porque o ano de 2020 foi um
norteador para os próximos direcionamentos dado ao cursinho, inclusive com sua nova
configuração dentro de uma rede estadual.
156

*******

Ao longo deste trabalho, busquei destacar a multiplicidade do Cursinho Marielle Franco


e suas transitoriedades, tanto no que se refere às mudanças de espaços físicos, como também às
chegadas, partidas e afastamentos de pessoas, a forma cíclica como as práticas educativas vão
sendo pensadas e materializadas, além de discutir sobre conflitos em torno de sua existência e
práticas.
Chego ao final da dissertação com mais dúvidas do que respostas, o que considero
empolgante, pois não pretendo encerrar esta pesquisa aqui e as novas perguntas que surgiram
serão um ponto de partida para novos trabalhos. Em relação a alguns conflitos, avalio que o
expediente de ensino denominado como “cursinho” se enquadra dentro da categoria de
educação popular a depender de como a proposta político-pedagógica está sendo construída e
gerenciada.
A partir da pesquisa bibliográfica sobre o Movimento Social dos Pré-vestibulares
Populares, foi possível compreender como os movimentos sociais se apropriaram dos
“cursinhos”, ressignificando-os a partir do repertório político-pedagógico baseado na
reivindicação da categoria de educação popular e de uma luta pelo ingresso dos/as “excedentes”
de vestibulares e Enem nas Universidades Públicas. Os cursinhos, que inicialmente eram
utilizados pelas escolas privadas como ferramenta para ampliar a exclusão dos/as estudantes
populares, tornam-se então uma estratégia dos movimentos sociais para desvelar a segregação
na educação superior pública que começa nos próprios exames de admissão com a criação de
uma grande massa de excedentes.
Ao longo dessa discussão, busquei destacar os avanços sociais que esse Movimento –
junto a outros atores como o Movimento Negro, Estudantil, Sindical etc. – conseguiu desde a
década de 90 (início do Movimento de Pré-vestibulares Populares) até hoje, como a Lei de
Cotas, ampliação das vagas e dos cursos de graduação. Além de abordar como o próprio Enem
passou a substituir os vestibulares convencionais tornando mais acessível o ingresso de
estudantes populares nas universidades públicas, porém não menos desigual.
Em relação às transitoriedades do cursinho, embora meu recorte de tempo para trabalhar
de forma mais aprofundada a etnografia tenha sido o ano de 2019, no decorrer da escrita
destaquei a situação do cursinho durante o ano de 2020 e os impactos da pandemia de Covid-
19 e o consequente ensino remoto virtual. Com isso, foi possível observar quantas mudanças
ocorreram e a desestruturação de alguns pilares pedagógicos, o alto índice de evasão de
estudantes e professores/as e os rumos mais partidários aos quais o Emancipa recorreu para
157

manter-se vivo. Falo no movimento como um todo, não apenas o cursinho Marielle, porque foi
uma tendência que observei na Rede e refletiu-se nos cursinhos de todas as localidades. Na
verdade, o RN foi um dos poucos estados que, mesmo com os percalços, manteve algumas de
suas atividades educacionais.
Durante o capítulo em que me debruço etnograficamente no cotidiano do Marielle em
2019, algumas questões surgiram, como os usos que se faz das categorias “favela” e “periferia”
e como a região da Zona Norte de Natal tornou-se um importante território de disputa política
desde 2017, quando a Rede nasceu na cidade através do cursinho.
Nesse sentido, como toda categoria é socialmente construída, não há uma definição
única e estática, assim como as periferias, enquanto espaços que concentram populações em
vulnerabilidade socioeconômica, não devem ser enquadradas em estereótipos vulgares de
marginalização. Há muita multiplicidade e diversidade em territórios periféricos e favelas, por
isso, são lócus de atuação para muitos movimentos sociais e são disputáveis justamente devido
à sua complexidade.
O Emancipa é consciente de que não basta “estar” fisicamente em uma periferia para
construir junto com ela e com as pessoas que a vivenciam. Por isso, no início de 2020, o Marielle
saiu da UERN para a E.E Walter Duarte Pereira, alegando que o espaço da universidade não
era propício à territorialização do movimento por estar deslocado da vivência dos bairros e
inserido em um outro fluxo transitório.
Essa territorialização tem a ver com aproximação. A educação se faz em movimento, e
em contato com estudantes e suas famílias, redes e vínculos também fora dos espaços físicos
nos quais ocorrem as práticas educativas. As famílias são elos primordiais para o processo de
aprendizagem, assim como o ambiente no qual os/as estudantes vivem. Consequentemente, a
construção do processo pedagógico, especialmente quando se reivindica a educação popular,
não finda nos muros físicos, nem nos recortes delimitados por horários fixos, é necessário
ampliar a dimensão educacional para os bairros, envolver as famílias, os/as vizinhos/as,
todos/as que fazem parte do cotidiano dos/as estudantes e com eles/as constroem saberes e
vivências.
Em relação ao outro conflito norteador, a interlocução entre o Emancipa e o PSOL e
como isso se reflete nas práticas educativas, foi possível apreender esse ponto a partir da análise
da coordenação. Uma das coisas mais interessantes no Marielle é que, como vimos, as pessoas
que atuaram na coordenação de 2017 a 2019 (Will, Danilo e Tati) são e foram militantes
partidários. Cada um/a deu um direcionamento diferenciado ao cursinho, cada um/a se
158

apropriou da categoria educação popular a partir de suas compreensões teórico-pedagógicas


e/ou objetivos políticos, mas todos/as personificam essa relação na prática pedagógica.
Essa questão, especificamente, é uma das que gerou mais dúvidas do que respostas. Isso
porque seria necessária uma análise mais aprofundada sobre a corrente do partido que dá o
direcionamento político à Rede, além de uma pesquisa documental, entrevistas com outras
pessoas da coordenação nacional da Rede e militantes do MES/PSOL. Como este não era o
foco da dissertação, esse ponto é um dos que pretendo aprofundar em trabalhos e pesquisas a
posteriori. Há uma outra indagação que surgiu a partir das entrevistas com Tati e Danilo: o
interesse da Rede Emancipa em disputar politicamente o Nordeste e ampliar a atuação na região.
Por fim, os debates antirracistas e feministas são primordiais para a construção do
cursinho enquanto movimento social. Analisando especificamente a questão do antirracismo,
um dos atores que protagonizaram o Movimento de Pré-vestibulares Populares foi o Movimento
Negro. Isso não acontece por acaso, visto que discutir sobre racismo e raça é analisar a condição
dos/as estudantes que procuram cursinhos populares. No caso do Marielle, há também uma
presença massiva de mulheres, expressa em dados quantitativos referentes ao público de
estudantes, como também na análise das pessoas que constroem o cursinho de forma mais
orgânica, a maioria são mulheres negras.
Agora, falando do meu lugar de pesquisadora-professora-atuante, eu definiria o
Cursinho Marielle como um lugar de potencialidades. Há na proposta político-pedagógica, uma
capacidade de apaixonar, atrair e encantar pessoas. Na vivência do cursinho, há um campo
diverso de possibilidades, experimentações e aprendizagens. A potência deste espaço é
imensurável devido à sua capilaridade e abertura a tantos trânsitos e trocas entre diferentes
pessoas que vêm de diferentes lugares trazendo diferentes bagagens. O cursinho também é um
lugar de formação profissional e pessoal, me formou como professora, pesquisadora e como
educadora, e segue sendo um campo de formação para tantos educadores/as.
159

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