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O texto, Produção etnográfica e construção do conhecimento científico, integra-se

(Introdução) numa tese de dissertação de doutoramento, nas áreas da Antropologia da


Alimentação e da Antropologia Médica; À Mesa com o Universo, a Proposta
Macrobiótica de Experiência do Mundo, apresentada por Virgínia Calado, em 2012, ao
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A autora é Investigadora
auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, integrando o grupo
de investigação Identidades, Culturas, Vulnerabilidades.
A autora, na sua Introdução, faz uma reflexão sobre a evolução do conceito do método
da antropologia, o método etnográfico, da exigência do trabalho de campo para a
construção de um conhecimento validado cientificamente.
A tese, acima citada, foi objecto de leitura assim como uma entrevista da autora à
revista Progredir, para uma melhor compreensão dos objectivos da mesma; ”… trazer
mais conhecimento sobre uma proposta de orientação no mundo que tem adeptos em
Portugal e, reflectindo sobre ela, observar de que modo alguns sectores da vida social,
sobretudo os que se ligam à alimentação e saúde, acabam por ser particularmente
interrogados, questionados e produzidos.” (Calado, 2012, p.19)
A autora apresenta a sua investigação direccionada para a situação de Portugal,
sendo Lisboa e Braga os contextos geográficos escolhidos, não descurando uma
resenha histórica sobre o fenómeno da macrobiótica, como uma ideologia
(cosmovisão) que integra um sistema ou modelo alimentar baseado, principalmente,
nas fundamentações de Michio Kushi, discípulo de um maior mentor G. Ohsawa
(1893-1966).
Tendo em conta os conceitos das ciências sociais, é na antropologia da alimentação
que esta tese é sustentada, através da apresentação de diferentes perspectivas que
resultam de uma investigação a diversos autores.
Sendo o seu primeiro contacto, com a macrobiótica, na cantina da Universidade de
Lisboa, através de uma ementa, a autora parte para uma panóplia de consultas a
diversas fontes documentais para afirmar o conhecimento científico. Se inicialmente
existiam algumas reticências em relação a uma observação participante, as mesmas
foram, ao longo da sua investigação sendo dissipadas passando do “… o meu
posicionamento inicial foi muito mais o de “observar” e “ouvir o terreno”, do que “fazê-
lo falar” a partir de questões ou olhares previamente estabelecidos (Weber, 2009)” ao
““Observar”, “escutar”, “estar com”, tal como proposto por Weber (2009), foram
procedimentos a que procurei recorrer para saber mais sobre as práticas e
representações associadas à macrobiótica.”, convocando o que à partida não estaria
nos seus propósitos, a teoria, como função de comando, contrariamente à sua
primeira opção de uma observação empírica que a levaria à uma possível teoria.
A sua investigação abraçou, como já referimos, um alargado campo de fontes, assim
como a sua própria participação e integração no meio dos que optaram pela
macrobiótica como opção de vida, ressalvando um princípio fundamental, a alteridade
(ao entender o Outro como forma de entender as suas formas de estar e vivenciar o
mundo à sua volta), tendo em conta que esta se alarga apenas a um conceito
alimentar mas a uma forma de vida.
Durante oito anos, a autora, dedica-se a uma investigação no terreno que se entende
cientificamente profícua através da abrangência dos seus instrumentos de pesquisa.
Desde a participação em conferências, à vivência em campos de férias, à participação
em cursos de cozinha macrobiótica, à recolha de um número significativo de dados
que resultaram da observação e participação em situações de aconselhamento
terapêutico com base na “filosofia/ideologia” macrobiótica, ao recurso a questionários,
acompanhados pela observação diária de quem se tornou “mais” um membro dessa
“ideologia”, passando a frequentar o Instituto Macrobiótico de Portugal e acabando por
tirar um curso de macrobiótica Michio Kushi, a autora elabora uma “densa” descrição
sobre os resultados da sua pesquisa, tal como Geertz1 defendia, com a ética
imprescindível a qualquer antropólogo, mas não esquecendo de referenciar que, para
além da alteridade existiu, também, uma certa empatia com alguns membros do grupo
que permaneceu ao longo dos anos.
Foi perante esta diversidade de recolha de dados que existiu a possibilidade do seu
cruzamento, permitindo uma abordagem etnográfica, qualitativa e intensiva, que
conferiu a esta investigação um maior rigor analítico. A tese de Virgínia Calado é o
resultado de uma investigação com rigor sobre a “marginalidade” de um movimento
social, a macrobiótica, cada vez mais influente na sociedade contemporânea.
Franz Boas e Bronislaw Malinowski2 foram os fundadores do trabalho de campo na
Antropologia, rejeitando a teoria evolucionista, contrapõem uma interacção e
observação directa contínua de pequenas sociedades não ocidentais. Não sendo o
método de Boas o mais rigoroso, porque se baseava essencialmente na recolha de
informações dos informantes nativos, Malinowski avança para um método e técnicas
de pesquisa da etnografia antropológica sistematizando toda a sua experiência de
uma forma científica. Conhecer a teoria, estar, ver, ouvir, falar (a língua nativa),
participar, registar, sem qualquer preconceito, fazendo parte de uma sociedade/grupo
com a distância necessária para uma investigação o mais isenta possível, tal como a
1
Clifford James Geertz (1926-2006) , antropólogo americano
2
Franz Boas (1858-1942), antropólogo alemão radicado nos EUA, Bronislaw Malinowski (1884-1942),antropólogo
inglês de origem polaca.
autora da tese em estudo o demonstrou na sua introdução, reconhecendo a
importância deste método, como base de uma pesquisa etnográfica com valor
científico.
Evans-Pritchard3, que rejeita a existência de uma fórmula para a pesquisa de campo,
defende que o ponto de partida para a pesquisa etnográfica poderá ser determinada a
priori, ou seja, o investigador poderá já ter como objectivo o estudo de determinado
aspecto social, o que para nós, mas também para este antropólogo como se verificou
na sua prática (na pesquisa sobre o povo Azande quando tomou um novo rumo a
partir das crenças do mesmo), poderá criar alguns constrangimentos na pesquisa a
efectuar.
É a partir da década de 1920 que a pesquisa etnográfica é utilizada em
sociedades/grupos/meios de reduzida dimensão alargando-se a outras áreas do
conhecimento, como a educação, a saúde, o meio urbano, entre outras, sob a
influência dos sociólogos americanos e europeus da Escola de Chicago, criada em
1910.
Este caso é um dos muitos exemplos de que a etnografia não ficou parada no tempo
do colonialismo e do estudo de sociedades “exóticas”, demonstrando que a
perspectiva metodológica continua actual e se vai adaptando aos problemas e
necessidades do mundo contemporâneo, através do estudo de situações concretas,
como por exemplo o dos psicólogos Simão Mata e Luís Fernandes no texto4
“Questões metodológicas de uma revisitação etnográfica a territórios psicotrópicos do
Porto”.
Numa época em que a globalização impede um estudo rigoroso de um povo, de um
grupo, de uma comunidade, pois encontramos aí indivíduos de diferentes “culturas”, a
antropologia e o seu método foi obrigado a rever algumas das suas condições de
investigação. Segundo Caldeira (1998), na escrita dos antropólogos clássicos, os
resultados das suas pesquisas eram manifestados quase a uma só voz, a dos
investigadores, silenciando a voz dos informantes, como parte essencial na descrição
da investigação, ou seja exige-se agora que o antropólogo não se superiorize ao
informante como tradutor das suas vivências, mas que se coloque no mesmo patamar
numa diversidade de experiências a muitas vozes.
Na tese de Calado (2012) está subjacente esta proposta de Caldeira (1998),
referenciada por Clifford (1983)5. De facto, e após uma leitura da tese de Calado
(2012) muitas são as vozes que se ouvem sobre o seu objecto, a macrobiótica. Vozes
diferentes que se associam à voz da autora.
3
Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973), antropólogo inglês
4
Etnográfica, vol. 22 (2) | 2018, https://journals.openedition.org/etnografica/5443
5
Clifford, James 1983 On ethnographic authority. Representations 2:132-143.
Podemos concluir que, mesmo com as condicionantes de uma globalização, a
antropologia e o seu método continua a encontrar as respostas necessárias para uma
melhor compreensão das sociedades.

Bibliografia:

CALADO, Vírginia Henrique (2015) - Revista Progredir, “Entrevista a Virginia


Henriques Calado," A Experiência do mundo na Macrobiótica", disponível em:
http://www.revistaprogredir.com/virginia-henriques-calado.html

CALADO, Virgínia Henriques (2012) - À Mesa com o Universo, a Proposta


Macrobiótica de Experiência do Mundo, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, disponível em:
http://docplayer.com.br/82812521-A-mesa-com-o-universo-a-proposta-macrobiotica-
de-experiencia-do-mundo.html#show_full_text

Caldeira, Teresa (1988) A Presença do Autor e a Pós-modernidade em Antropologia .


In Novos Estudos CEBRAP, nº 21, disponível em
http://www.novosestudos.org.br/v1/files/uploads/contents/
55/20080623_a_presenca_do_autor.

Sousa, Lúcio (2019/2020) - Percursos: das etnografias clássicas às abordagens


Contemporâneas, Universidade Aberta

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