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36 Corte & Conformação de Metais – Fevereiro 2010

Aplicação

Estudo norteia a
estampagem de peças
médicas em ligas de
níquel-titânio
Este trabalho apresenta um estudo da confecção de grampos de Judet – órteses
metálicas para correção de tórax instável – pelo do processo de corte por
cisalhamento de chapas de liga biocompatível à base de níquel e titânio (Nitinol).
Inicialmente foi realizada uma caracterização do material utilizado, tendo em vista
sua importância para a definição do ferramental. Na seqüência, a confecção de uma
matriz de corte e o experimento da fabricação das órteses. O estudo demonstrou a
eficácia e a viabilidade do processo de estampagem na fabricação dessas peças.

V. Martins, W. C. Rodrigues, A. F. Bueno, F. L. Knewit, G. de A. Mundstock e L. Schaeffer

o traumatismo torácico,
nos dias atuais, assume
grande importância devido à
sua incidência e ao aumento
da gravidade e mortalidade
provocadas pelas lesões. O
aumento dos traumatismos Fig. 2 – Instrumento para colocação do grampo
Fig. 1 – Grampo de Judet em aço inoxidável 316 L de Judet
torácicos é resultante das con-
dições da vida urbana moder- como grampos de Judet. Estas uma maior abertura da incisão.
na, especialmente no que se re- usualmente são confeccionadas A utilização do instrumento é
fere aos acidentes com automó- em aço ASTM 316 L (figura 1) e dificultada pela força que deve
veis em altas velocidades (8) . possuem como inconveniente o ser aplicada para a conformação
O presente trabalho visa ao fato de que, ao serem colocadas, local do grampo.
aprimoramento das órteses do necessitam do auxílio de instru- Devido às características de
tipo grampo, também conhecidas mentos especiais (figura 2) e de memória de forma apresentadas
Vinícius Martins, Wilson Corrêa Rodrigues e Alex Fabiano Bueno são mestrandos do Programa de Pós-Graduação em por certas ligas, idealizou-se a
Engenharia de Minas, Metalúrgica e Materiais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, no Laboratório
de Transformação Mecânica – LdTM (contato por e-mail: viniciushiper@yahoo.com.br). Fábio Luis Knewit é mestre
fabricação de uma órtese que
pelo mesmo programa. Gustavo de Almeida Mundstock é engenheiro Metalúrgico pela UFRGS. Lírio Schaeffer é pudesse ser posta sem o empre-
coordenador do LdTM. Este artigo foi apresentado na 13ª Conferência Internacional em Forjamento, realizada em
Porto Alegre, RS de 14 a 16 de outubro de 2009. Reprodução autorizada pelos autores. go de instrumento específico,
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para redução dos inconvenientes pecificamente, a austenítica e a


citados anteriormente. A liga de martensítica (3) .
NiTi (Nitinol) se torna interes- O comportamento de supe-
sante neste caso, pois apresenta relasticidade tem esse nome em
características que condizem com razão das ligas com memória de
as condições requeridas pelo forma sofrerem uma deformação
grampo, como alta resistência elástica muito extensa, mais de
mecânica, biocompatibilidade e 20 vezes superior em comparação
efeito de memória de forma. Fig. 3 – Mecanismos da memória de forma
com os materiais convencionais,
do NiTi (Fernandes, 2006) sendo total ou parcialmente re-
Revisão cuperável. O efeito é baseado em
bibliográfica níquel e titânio. Sendo assim, uma transformação interna da
Nitinol é uma sigla criada a par- estrutura cristalina, denominada
Biomateriais são materiais usa- tir da junção dos termos Nickel, de austenita, na condição inicial,
dos para substituir ou reparar Titanium e Naval Ordnance La- e que necessita de uma força
tecidos vivos danificados. Estes boratory. Esta liga possui ótimas externa ao material para trans-
são usados em contato com o propriedades elétricas e mecâni- formar-se em martensita (6) .
sangue ou outros tecidos, por cas, alta resistência à corrosão e Chamamos de trauma torá-
isso devem ser criteriosamente à fadiga – sendo estas iguais ou cico a lesão caracterizada por
escolhidos e testados. Devem ser superiores às do aço inoxidável alteração estrutural ou desequi-
suficientemente resistentes aos ABNT 316L e da liga de titânio líbrio fisiológico decorrente de
impactos, para evitar rupturas ou ASTM F136 – e apresenta uma exposição aguda a várias formas
fraturas durante o uso, e não de- excelente biocompatibilidade (5). de energia, tais como a energia
vem reagir quimicamente com os O termo memória de forma mecânica (1) . Judet descreveu em
componentes. Além disso, devem refere-se à habilidade de certos 1972 um sistema de osteossíntese
ter um coeficiente de absorção de materiais de “lembrar” um de- costal por grampo. Cada grampo
água muito baixo ou nulo (10) . terminado formato, mesmo que imobiliza uma base de fratura.
A liga metálica denominada deformações severas lhes sejam Diferentes modelos de grampos
Nitinol foi introduzida no início aplicadas: o NiTi, deformado a estão disponíveis, de várias largu-
dos anos 1960, pelo engenheiro baixas temperaturas, permane- ras e comprimentos, com dois ou
metalúrgico William F. Buehler, do cerá com o novo formato até três pares de garras (figura 5) em
antigo Laboratório de Material Bé- que seja aquecido e, com isso, cada extremidade. As garras são
lico Naval dos Estados Unidos (Na- retornará espontaneamente à assimétricas, formando, de um
val Ordnance Laboratory – NOL). sua forma original. Este efeito lado, um ângulo agudo destinado
É constituída, principalmente, de está vinculado a duas fases es- à borda inferior da costela e do
outro, um ângulo aberto, perfei-
tamente adaptado à morfologia
costal lateral, que não permite um
bom ajuste dos grampos (4) .

Fig. 5 – Grampo de Judet colocado em uma


Fig. 4 – Efeito da superelasticidade do NiTi (6) costela (4)
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Aplicação

O processo de corte por cisa-


lhamento é uma das mais fre-
quentes operações em processos
de fabricação de componentes.
Fig. 6 – Dimensões do corpo-de-prova para
O corte ocorre na preparação da ensaio de tração
geratriz e também nos acaba-
mentos após o corte de chapas GmbH (MMG), com espessura
(retirada de rebarba) (7) . de 0,5 mm. A liga escolhida foi a
A folga é um importante pa- do tipo S (superelástica, devido à Fig. 7 – Geometria e dimensões do grampo
de Judet
râmetro no processo de corte, disponibilidade comercial) em es-
pois uma folga maior resulta em tado de fornecimento austenítico,
uma zona de arredondamento recozido e com superfície polida.
maior e uma folga menor resulta Para a caracterização da liga foram
em uma zona cisalhada maior. realizados ensaios de tração, meta-
A folga adequada depende da lográfico e de microdureza.
espessura do material, que varia Para a realização do cálculo da
em uma faixa de 2 a 7%, isto é, força de corte é necessário co-
quanto maior a espessura, maior nhecer alguns dados fornecidos
a folga. Assim como a folga de- pelo ensaio de tração, como a
Fig. 8 – Matriz de corte para grampos de
pende da espessura do material, tensão de resistência do material Judet, na qual o punção é fixo na placa
o tipo de material também terá (Rm ), entre outros. A geometria superior e a matriz na placa inferior
sua influência, pois a folga será utilizada para o corpo-de-prova
maior para materiais duros (2) . (figura 6) foi escolhida em função constante de 1,5 mm/s e tempe-
da quantidade de material dispo- ratura de 22°C.
Procedimentos nível para o estudo. O ensaio foi O ensaio de microdureza Vickers
experimentais realizado em um equipamento da foi realizado no microdurômetro
marca Instron com capacidade Struers Duramin. Foram usados
As chapas de NiTi foram compra- máxima de 250 kN, com par de no ensaio os parâmetros de 15
das da empresa Memory-Metalle garras hidráulico, à velocidade segundos com carga de 200 g na
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de parâmetro para a utilização da


ferramenta e permitir o estudo.
Este valor foi definido como a força
necessária para cortar uma chapa
de NiTi com espessura de 0,5 mm.
O valor da tensão de ruptura ao
cisalhamento – τC – do NiTi pode
Fig. 9 – Curva tensão x deformação obtida pelo ensaio de tração em
uma chapa ser calculado pela equação:

temperatura ambiente de 20ºC. As salhamento e o projeto da matriz. τC = 0,8 x Rm (1)


amostras foram atacadas durante, Para a definição da forma (figura
aproximadamente, 45 segundos 7, pág. 38) do grampo estudado, Da curva de escoamento foram
com solução composta de: 30 ml buscou-se junto ao Hospital de retirados os dados de tensão má-
de ácido acético glacial, 5 ml de Clínicas de Porto Alegre as dimen- xima de escoamento do material
ácido nítrico e 2 ml de ácido flu- sões, baseadas nas geometrias dos Rm (tensão de resistência do ma-
orídrico. A análise metalográfica grampos comerciais testados. terial), que é igual a 1.037 MPa.
foi realizada em um microscópio Substituindo na equação 1:
óptico da marca Olympus. Projeto da matriz de corte
Após a caracterização da chapa do grampo de Judet τC = 829 MPa (2)
comercial de NiTi foi definida a Para o projeto da matriz de corte do
geometria do grampo e foram rea- grampo foi necessário estimar um Um dos objetivos deste traba-
lizados os cálculos de corte por ci- valor de força máxima para servir lho foi projetar e construir um
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Aplicação

Fig. 10 – Metalografia da chapa de NiTi


(aumento: 50 x; ataque: 30 ml de ácido
acético glacial, 5 ml de ácido nítrico e 2 ml
de ácido fluorídrico)

Fig. 12 – Dado experimental de força medida durante o corte por


cisalhamento com uma célula de carga de 80 tf

A figura 8 (pág. 38) mostra Discussão


a ferramenta construída. Devido dos resultados
à dificuldade de obter precisão
envolvendo pinos-guia e inser- Os resultados preliminares apre-
tos, optou-se por fazer a guia da sentados são baseados na ca-
matriz diretamente no punção racterização da chapa comercial
Fig. 11 – Metalografia da chapa de NiTi
(aumento: 200 x; ataque: 30 ml de ácido
para garantir precisão dimen- de NiTi e do grampo obtido por
acético glacial, 5 ml de ácido nítrico e 2 ml sional. O punção da ferramenta corte por cisalhamento. A ca-
de ácido fluorídrico) foi fabricado com aço ABNT D6 racterização da chapa comercial
temperado e revenido com du- de NiTi engloba a apresentação
equipamento que permitisse o reza final de 55 RC. A cavidade da cur va de escoamento e a
desenvolvimento de pesquisas da matriz foi fabricada com aço avaliação da propriedade de
sobre o projeto do grampo para SAE 4340 temperado e revenido superelasticidade. Também são
pos sibilit ar uma abordagem com uma dureza final de 45 a apresentadas algumas microgra-
de engenharia ao processo de 50 RC e o restante da matriz fias e dureza. A figura 9 (pág.
corte por cisalhamento para a em aço SAE 1045 temperado 39) apresenta a curva de tensão
confecção de um grampo de e revenido com dureza final de versus deformação obtida até a
Judet. A solução encontrada foi 38 RC. ruptura da chapa com espessura
projetar uma ferramenta de corte Após a finalização da matriz de 0,5 mm.
utilizando apenas componentes foram realizados ensaios de A superelasticidade é carac-
convencionais de ferramentas corte da chapa de NiTi. Para o terizada por um patamar de
para estampagem, de forma a ensaio utilizou-se uma prensa deformação elástica total entre
aproximar-se o máximo possível de capacidade máxima de 40 tf 5 e 8% e está representada pelo
de uma ferramenta de produção e a força foi medida com o uso trecho a-b. A curva obtida na fi-
utilizada na indústria. Para deter- de uma célula de carga de 80 gura 8 possui o referido patamar
minação da folga entre punção e tf de capacidade, calibrada. O a-b bem definido. O catálogo
matriz buscou-se informações na sistema de aquisição de dados do fabricante mostra dados de
literatura, que indicou, para uma utilizado foi o Spider 8, da tensão de ruptura do material
espessura de 0,5 mm, uma folga empresa HBM, com o software de 900 MPa e o ensaio de tração
de 0,02 mm para uma chapa de Catman E x pre s s ver s ão 3.1, realizado na chapa resultou em
NiTi, e tensão máxima de esco- que possibilitou a aquisição de 1.036,66 MPa.
amento do material (Rm ) igual a dados da curva média de força As medições de microdureza
103,66 Kg/mm². versus tempo. Vickers realizadas na seção trans-
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Aplicação

Fig. 13 – Grampos de NiTi após processo de


estampagem

versal da chapa de NiTi apresentaram um valor


médio de 371,70 HV, com um desvio-padrão de
10,97. A amostra de NiTi estudada apresentou
uma estrutura em forma de agulhas, o que
indicaria uma estrutura de fase martensítica
(figuras 10 e 11). No entanto, a informação do
fabricante é de que a chapa de NiTi encontra-se
na fase austenítica na temperatura ambiente.
Estima-se que a presença de martensita no ma-
terial pode ter sido causada pelo lixamento das
amostras no processo de metalografia.
O processo de corte engloba todo o projeto
do grampo de Judet, desde a definição do
grampo até o resultado final, que é a obtenção
do grampo por corte de chapas por cisalha-
mento. Os dados calculados estão próximos
aos dados obtidos durante o processo de corte,
pois a força calculada é de 131,03 kN contra
os 194,40 kN obtidos experimentalmente. Os
grampos cortados na figura 13 não apresenta-
ram fraturas frágeis, mantendo a sanidade do
material.
No projeto da matriz, a folga comprovou ser
adequada, pois o grampo cortado não apre-
sentou um contorno defeituoso nem rebarbas,
além de pouca deformação. A dureza do ma-
terial mostrou ser adequada para o processo,
não havendo trincas ou ruptura do material da
matriz.

Conclusões

A caracterização do material demonstrou sua


importância para o projeto do ferramental
e a definição dos equipamentos. Os ensaios
preliminares de corte da chapa comprovaram
a eficiência para a validação dos cálculos an-
teriormente realizados, com vistas à confecção
de um ferramental específico e à geometria
dos grampos.
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As características mecânicas e metalúrgicas


mantiveram-se constantes por tratar-se de um
processo mecânico. O método de cálculo para
a força de corte demonstrou ser confiável, com-
parando-se aos experimentos realizados. O pro-
cesso de corte por cisalhamento para confecção
de órteses de NiTi do tipo grampo para tórax
instável demonstrou eficácia e viabilidade.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao LdTM (Laboratório de


Transformação Mecânica) e à Escola de Enge-
nharia da UFRGS, pelo uso dos laboratórios e
da infra-estrutura da universidade. Os autores
agradecem também ao Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior)
de Porto Alegre (RS), pelo apoio financeiro e
o investimento na área de pesquisa.

Referências
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De Terapia Intensiva. São Paulo: Instituto Brasileiro de
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Materiais da Universidade Federal do Rio Grande do
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9) S ouz a , J. H. Estudo Do Processo De Corte De Chapas
Por Cisalhamento. Dissertação de Mestrado – Escola
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Engenharia de Minas, Metalúrgica e Materiais da
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Extracorpórea; capítulo 8, Materiais e
Biocompatibilidade. Rio de Janeiro: Centro Editorial
Alfa Rio, 2006.

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