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A solidão de um homem teria em si algo terrível demais*

A pandemia impede a circulação, exige um contato social distanciado e restringe o


contato físico. Sua imposição é incomoda por ser compulsória. Essa etiqueta reforçada, assim
como diversos aspectos relacionados à pandemia, em certa medida, apresenta-se catalisada.
Contudo não é nova, nem estranha.
Durante a maior parte da história da espécie humana sua sobrevivência e evolução
estiveram relacionadas ao grupo. A espécie coletivamente desenvolve a comunicação e a
cooperação. Esse caminho nos leva ao sedentarismo, à organização do trabalho e das tarefas
na comunidade. A produção de excedentes permite organizações sociais e políticas mais
complexas. Os impérios e seus exércitos mobilizavam multidões. Roma e, depois dela, Istambul
eram maravilhas da vida urbana e da coletividade.
Essa precedência do coletivo sobre o individual persiste durante a Idade Média. Nos castelos,
nas vilas, nos mosteiros, no trabalho agrícola e nas oficinas a vida era sempre coletiva.
O ascetismo dos monges eremitas tomava a solidão, a privação do convívio social, como
penitência e sacrifício em busca da revelação divina.
Com a transição para modernidade as mudanças econômicas e sociais produziram
novos padrões de comportamento.
A ideia da solidão, um momento de reflexão íntima e de prazeres individuais como a
leitura e os passeios, vai se consolidando. Mesmo que a partir do século XVIII a solidão
individual reflua em favor da vida familiar, ainda assim, essa concepção de vida familiar é nova.
É a família nuclear, muito diferente da família extensa existente num espaço de convívio junto
de parentes e agregados.
Importante também é a influência sobre o comportamento individual da reforma
protestante. Segundo Lutero a compreensão da bíblia era acessível ao indivíduo. Cada um
podia trilhar seu caminho de fé sem a obrigatoriedade de um intermediário. Os demais líderes
da reforma também reforçam essa possibilidade do individualismo com a afirmação da virtude
na frugalidade e na ética do trabalho.
Essas mudanças advindas da modernidade e do humanismo renascentista permitem
aflorar o individualismo e a subjetividade dos indivíduos. A partir daí os meios materiais, cada
vez mais, serão o substrato para a afirmação do individualismo e da solidão como uma forma
de sociabilidade antissocial.
A evolução da sociedade capitalista burguesa em sua orientação para o consumo e
acumulação busca a distinção social. As complexas relações de transferência dos atributos do
objeto para seu possuidor vão se sofisticando e se sutilizando à medida que a sociedade de
consumo avança criando necessidades e possibilidades de consumo cada vez mais refinadas,
individualizadas e cada vez mais vinculadas à experiência subjetiva. De certa forma as pessoas
são convertidas em icebergs dos quais as pontas visíveis são o fruto de seu consumo.
Igualmente se assemelham aquelas antigas malas de viagem cheias de etiquetas dos portos e
países pelas quais passaram. Seu interior não é visível e não é importante.
O tema da viagem, numa sociedade globalizada, no contexto da pandemia é crítico.
Emulando a burguesia europeia que no século XIX estabeleceu o must de realizar o grand tour
(ou pelo menos o petit tour) a classe média brasileira, com o advento da estabilidade
monetária e do aumento de renda e do consumo, sobretudo a partir dos anos 2000, aderiu
com entusiasmo ao turismo vê-se agora estacionada. As viagens, o cultivo do cosmopolitismo,
a agitação dos aeroportos e das grandes cidades é fruído individual e subjetivamente.
Promovem distinção ao serem comunicadas socialmente em conversas que parecem
competições de milhagem.

Sobre o autor: Silvio Romero Martins Machado, doutor em história, 55 anos. Professor,
palestrante e mentor. Vive em Porto Alegre/RS. Email: machado.srm@gmail.com
*Philippe Ariès. História da vida privada, volume 3.
Assim, o sentido dessa reflexão revela a construção progressiva de uma sociedade e de
uma cultura da solidão. Do individualismo e do isolamento. É a solidão do carro com as janelas
fechadas. Do ar condicionado que faz com que não tomemos conhecimento do clima do lado
de fora, nem das pessoas. Dos deslocamentos em alta velocidade pela cidade inspirado pelo
temor e algum tipo de violência contra a vida ou contra o patrimônio que nos diferencia. É a
solidão do medo imaginário que faz repelir o outro. É a solidão da playlist e do streaming que
são formatadas individualmente. É a solidão de poder perguntar qualquer coisa para o Google
sem precisar se dirigir a outra pessoa. É a solidão de navegar em redes sociais orientadas por
algoritmos com a lógica do efeito de confirmação. E a solidão da inteligência artificial cada vez
mais customizada e onipresente. É a solidão do shopping center e do condomínio fechado. Do
abandono da rua e do espaço público. É a telentrega na porta de casa e a compra pela
internet.
A solidão não é a solidão da pandemia. Não veio com ela. A pandemia produz o efeito
inconveniente de restringir os hábitos de sociabilidade e de consumo. E talvez com essa
interrupção fique mais evidente o grau de solidão que construímos cotidianamente em nossas
vidas.

Sobre o autor: Silvio Romero Martins Machado, doutor em história, 55 anos. Professor,
palestrante e mentor. Vive em Porto Alegre/RS. Email: machado.srm@gmail.com
*Philippe Ariès. História da vida privada, volume 3.

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