Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO AMAZONAS
Mário Bessa
Vice-Reitor
EDITORA UNIVERSITÁRIA
Allison Leão
Diretor
Mauricio Matos
Editor executivo
CONSELHO EDITORIAL
Allison Leão
Presidente
Adroaldo Cauduro
Cleusa Suzana Oliveira de Araújo
Dempsey Pereira Ramos Júnior
Estevão Vicente Cavalcante M. de Paula
Josefina Diosdada Barrera Kalhil
Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda
Maria da Glória Gonlves de Melo
Roberto Sanches Mubarac Sobrinho
GÊNERO,
DESENVOLVIMENTO
E TERRITÓRIO:
NOVAS SEMÂNTICAS E
ANTIGAS PRÁTICAS
José Melo de Oliveira
Governador do Estado do Amazonas
UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO AMAZONAS
Mário Bessa
Vice-Reitor
EDITORA UNIVERSITÁRIA
Allison Leão
Diretor
310p.
ISBN 978-85-7512-798-8
CDU: 300.9811
22. Ed.
2015
APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
C
onfesso que resisti em prefaciar o livro organizado por
Cynthia Mara Miranda, Denyse Côté, Milena Barroso e
Marcos André Estácio. O primeiro estímulo foi o reco-
nhecimento da contribuição dos estudos de Côté, que conhe-
cia, para o campo de estudos sobre gênero e desenvolvimento,
o fato de que o Brasil conta com limitado acervo, assim como a
orientação da publicação por reunir textos relacionados a dife-
rentes países, como Brasil, Argentina e Canadá (Quebec).
Minha trajetória em um feminismo em se fazendo, cunhado
como emancipacionista, no Brasil, mas se alimenta de análi-
ses sobre sujeitos na crítica ao capitalismo e estudos sobre o
urbano. Esse feminismo desconfia da ênfase de agências in-
ternacionais em programas para mulheres em comunidades
rurais, ainda que bem-intencionados, apostando em alguma
autonomia das mulheres, produção para subsistência, geração
de pequena renda, alguma cooperativa local e apoio contra re-
REFERÊNCIAS
A
s discussões sobre o desenvolvimento fazem parte
dos grandes temas da sociedade moderna. Atreladas
a esse conceito, desenvolvem-se, nas esferas governa-
mental, acadêmica e dos movimentos sociais, reflexões sobre
os vários tipos de desenvolvimento, quais sejam: econômico,
social, cultural e, ainda, sobre alternativas às problemáticas
socioambientais. A questão, por sua vez, é bastante complexa,
pois envolve nuanças que vão desde os vários significados re-
lacionados ao termo até as controvérsias no debate intelectual
e político. A proposta do livro Gênero, desenvolvimento e terri-
tório: novas semânticas e antigas práticas, nesse âmbito, tem
como objetivo contribuir para o debate do desenvolvimento
sob a perspectiva de gênero, pondo em destaque a atuação das
mulheres de forma autônoma ou organizada em movimentos
de mulheres e/ou feministas nos governos locais e regionais.
O livro busca integrar a reflexão de pesquisas cujas abor-
dagens dialoguem com problemáticas referentes às inter-rela-
ções entre a construção do desenvolvimento e a participação
das mulheres nos processos de tomada de decisão política,
participação social e econômica em distintas sociedades. Os
artigos aqui reunidos partem de diferentes reflexões teóricas e
metodológicas para apresentar vertentes do desenvolvimento
relacionadas com as questões de gênero, tais como desenvol-
vimento rural, desenvolvimento local e regional, desenvolvi-
mento urbano ou econômico, políticas públicas de trabalho,
educação, dentre outras.
Apresentação 17
Apresentação 19
Apresentação 21
DIÁLOGO SOBRE
GOVERNANÇA
DESCENTRALIZADA,
TERRITÓRIO E
DESENVOLVIMENTO
E
m todo o globo, constatamos que os mecanismos de
governança em escala local ganham importância. Bas-
ta recordar as múltiplas reformas que criaram novas
distribuições de poder entre o Estado e as regiões ou ainda
a renovada atenção à governança das cidades (HORAK; YOU-
NG, 2012). O interesse das instituições políticas e econômicas
focaliza cada vez mais sobre os territórios locais e regionais
(TREMBLAY; KLEIN; FONTAN, 2009). Do mesmo modo, as re-
formas privilegiam geralmente um modelo consensual e de
consulta, tendo por objetivo deixar as coletividades locais mais
autonômas em matéria administrativa e política. Essas refor-
mas descentralizantes, assim como a institucionalização dos
mecanismos de consulta e de coordenação, respondem às di-
ficuldades crescentes dos Estados centralizados e visam tam-
bém a acalmar suas finanças públicas, a melhorar a eficácia do
sistema e valorizar a integração social (JALBERT, 1991).
Depois de mais de uma década, a descentralização torna-
-se, assim, uma ferramenta importante de reengenharia, as-
sim como um espaço privilegiado de transformação do Esta-
do (JOUVE, 2004). Órgãos locais e regionais desempenham
agora um papel mais relevante na tomada de decisão na vida
4 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues
Aguiar.
DESENVOLVIMENTO REGIONAL OU
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO?
7 Nós abordamos a participação dos grupos feministas nas regiões por meio dos
processos de governança regional, e não da presença das mulheres em instâncias
regionais.
8 A palavra inglesa governança ganhou visibilidade em 1990 por economistas e cien-
tistas políticos anglo-saxões e por certas instituições internacionais (ONU, Banco
Mundial e FMI) para designar a arte ou a maneira de governar, mas com duas preo-
cupações suplementares; de um lado, para marcar a distinção com o governo como
uma instituição; de outro lado, para usar um termo raramente usado e de pouca
INTRODUÇÃO
A
s desigualdades de gênero no espaço público dos paí-
ses que compõem o Mercosul12 têm ganhado destaque
por conta das desigualdades de gênero dos modelos
de desenvolvimento rural adotados pelos Estados membros
e associados dessa instituição de integração regional que é o
Mercosul.
Nota-se que, no geral, o debate coletivo pelo desenvolvi-
mento rural desejável em nossos países incorporou tardia-
mente a perspectiva de gênero nas agendas reivindicatórias
da igualdade em outras áreas de atividade econômica e das
políticas públicas a elas associadas.
11 Artigo original em espanhol, traduzido para esta obra por Cymara Miranda.
12 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu com o Protocolo de Assunção, em
1991. É composto por Argentina, República Federativa do Brasil, República do Pa-
raguai, República Oriental do Uruguai, República Bolivariana da Venezuela e do
Estado Plurinacional da Bolívia. Os Estados partes do Mercosul partilham valores
comuns que encontram expressão em políticas democráticas, pluralistas, defenso-
ras das liberdades fundamentais, direitos humanos, proteção ambiental e desen-
volvimento sustentável e seu compromisso com a consolidação da democracia, a
segurança jurídica, o combate à pobreza e o desenvolvimento econômico e social
com equidade. Tem como Estados associados: Chile, Colômbia, Peru, Equador,
Guiana e Suriname.
CONTEXTUALIZANDO O DEBATE
15 No livro Treatise on the Family (1981), um dos líderes dessa escola importante de
pensamento, Gary Becker, argumenta que a divisão sexual do trabalho histórico
responde a “diferenças biológicas, em parte, à diversidade de experiências, dife-
rem porque diferentes investimentos em capital humano” (BECKER, 1987, p. 30).
Esse seria o resultado de um acordo voluntário entre homens e mulheres e que “As
mulheres tradicionalmente delegam aos homens que fornecem alimentos, abrigo
e proteção, enquanto os homens geralmente delegam às mulheres nutrir e cuidar
dos filhos e manter a casa” (BECKER, 1981, p. 46).
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
O
debate sobre o desenvolvimento no mundo e particu-
larmente no Brasil tem, nos últimos anos, se qualificado
e sido objeto de interpretações diferentes e opostas. Es-
sas interpretações vão desde as que consideram o desenvolvi-
mento como sinônimo de crescimento econômico até as que
o questionam. Estudos de gênero, por seu turno, têm aponta-
do tanto o impacto negativo do desenvolvimento na vida das
mulheres como a importância deste com base na incorporação
das demandas dos movimentos de mulheres e da perspectiva
de gênero nas políticas públicas.
Segundo o Global Gender Gap Report (2014), um índice
produzido pelo Fórum Mundial Econômico que avalia a dis-
paridade de gênero no mundo, o Brasil ocupa a 71ª posição
no ranking da disparidade de gênero. O índice avalia, desde
2006, as diferenças entre homens e mulheres na área da saú-
de, educação, economia e indicadores políticos. Na atual edi-
ção da pesquisa (2014), foram avaliados 142 países. Apesar de
econômicas, sociais, de gênero e étnico-racial, “dado que mesmo nas regiões mais
ricas existe má distribuição de renda”, afirma o documento.
REFERÊNCIAS
AUTONOMIA DAS
MULHERES E
O ACESSO
ÀS POLÍTICAS
PÚBLICAS
INTRODUÇÃO
N
a década de 1980, microempreendimentos surgiram
na Amazônia brasileira como uma alternativa para pro-
mover a geração de renda para as populações rurais,
com base na valorização dos produtos florestais e contribuin-
do para o esforço de redução do desmatamento (ANDERSON;
CLAY, 2002). Os microempreendimentos rurais surgiram den-
tro de grupos organizados de pequenos agricultores, indíge-
nas, extrativistas florestais, pescadores e descendentes de es-
cravos (“quilombolas”). E várias dessas iniciativas econômicas
foram formadas por mulheres rurais que se organizaram em
grupos e criaram seus microempreendimentos coletivos, pos-
suindo como característica comum o uso de produtos de re-
cursos naturais (GOMES; AMARAL, 2005).
Nas décadas de 1970 e 1980, a política de desenvolvimento
do governo federal para a Amazônia resultou em desmatamen-
to e degradação florestal, na expulsão de populações rurais
para as áreas urbanas, gerando assim conflitos de terra, tanto
pela desapropriação quanto em decorrência da especulação
(SCHMINK; WOOD, 1992). Essa dinâmica resultou em aumen-
to da pobreza entre as pessoas que dependem da floresta e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 100 29/10/2015 16:19:51
empreendimentos. Segundo Gnyawali e Fogel (1994), as com-
binações de condições socioculturais ambientais e políticas
influenciam a disponibilidade de serviços de assistência e de
apoio que direcionam o processo de start-up de empreendi-
mentos. Nesse contexto, este artigo analisa os fatores que in-
fluenciaram o surgimento de microempreendimentos de mu-
lheres rurais na Amazônia, incluindo a expansão do movimen-
to de mulheres brasileiras, a crescente atenção ambiental para
as florestas da Amazônia, a evolução das políticas públicas
para as mulheres no Brasil e as ações de instituições incubado-
ras no apoio à criação de microempreendimentos. Baseando-
-se em 150 empreendimentos coletivos de mulheres rurais da
Amazônia, o trabalho mostra como as características peculia-
res das mulheres, nesses microempreendimentos, habilita-as
a serem classificadas como empreendedoras sociais.
CONCEITO E METODOLOGIA
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 101 29/10/2015 16:19:51
trando-se dispersa por uma imensa área geográfica, invisível
para os livros de estatísticas oficiais.
Trabalhos anteriores com microempreendimentos na Ama-
zônia foram compilados por meio de cópias impressas, cole-
tadas diretamente nas organizações em todos os Estados da
Amazônia, sobre os quais recebemos autorização para usar. O
maior banco de dados sobre microempreendimentos de mu-
lheres na Amazônia, e talvez o único em sua área, produzido
pela Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais (RMERA) para
os anos de 2003 e de 2008 (organizados pela autora), abran-
geu 150 empresas de mulheres rurais registradas em nove
Estados da Amazônia: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso,
Rondônia, Pará, Maranhão, Tocantins e Roraima. O banco de
dados RMERA tinha perguntas sobre características da em-
presa, sobre seus membros, produção, organização e sobre a
organização social, como a participação da União, organização
de filiações, técnica e apoio financeiro. O banco de dados foi
organizado em Microsoft Access© e os dados foram codificados
e importados para o SPSS 20© Statistical Package para realizar
as análises estatísticas descritivas.
RESULTADOS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 102 29/10/2015 16:19:51
mulheres rurais na Amazônia brasileira está fortemente ligado
ao crescimento das organizações sociais dessas mulheres, que
ocorreu desde a década de 1970. Isso tornou possível o sur-
gimento de microempreendimentos, criados e implementados
para responder às necessidades das mulheres rurais da região.
Quanto à segunda dimensão analisada, tem-se que as con-
dições empresariais para a criação de microempreendimentos
de mulheres foram se dando mediante ajustamento estrutural
– com políticas neoliberais macroeconômicas, especialmente
com a redução de gastos do Estado, com privatizações e com
uma economia desregulamentada – que ocorreram na América
Latina durante a crise dos anos 1990, com algumas diferenças
regionais, dependendo do contexto político, social e econômi-
co (CHANT; CRASKE, 2003).
O surgimento de microempreendimentos de mulheres ru-
rais encarna uma nova realidade econômica como uma estra-
tégia para reduzir a desigualdade de gênero e aumentar a ren-
da familiar. Na Amazônia brasileira, a combinação de décadas
de crescimento das organizações de mulheres rurais com con-
dições políticas e econômicas ajudou a influenciar a expansão
de grupos de mulheres microempreendedoras.
Tais fatores são apresentados, na sequência do texto, utili-
zando os dados dos 150 microempreendimentos, com o intui-
to de testar as hipóteses do estudo.
EXPANSÃO DO MOVIMENTO
DE MULHERES RURAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 103 29/10/2015 16:19:52
Durante a década de 1960 e 1970, o movimento feminista
foi ampliado pela articulação entre os grupos feministas, gru-
pos populares e da Igreja Católica para lutar contra o regime
autoritário do governo militar brasileiro (SARTI, 2004).
Na década de 1980, o movimento feminista se expandiu no
Brasil, com forte influência nas esferas políticas e sociais, e os
conselhos de mulheres foram criados, trabalhando para inse-
rir a perspectiva de gênero nas políticas e abordar questões de
violência contra mulheres (SARTI, 2004).
Como estratégia de expansão, o movimento feminista se or-
ganizou pela região, compondo os conselhos ou grupos forma-
dos no seio de instituições relevantes como igrejas, educação,
saúde, entre outros. O objetivo foi o de promover a participa-
ção das mulheres na liderança de sindicatos de trabalhadores
rurais e federações, trabalhando a pauta de direitos sociais das
mulheres. Como resultado, o movimento nacional de mulheres
rurais surgiu no Brasil na década de 1980, em associação com
o movimento sindical rural.
Uma das primeiras conquistas do movimento de mulhe-
res rurais, aliado ao movimento sindical, foi quando a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) criou um departamento das
mulheres, que teve um papel importante na criação do comi-
tê nacional para mulheres trabalhadoras rurais, e estabeleceu
cotas de participação para as mulheres no movimento sindical
(AMARAL, 2007).
Outra ação importante do departamento de mulheres da
CUT foi a grande influência nas diretrizes da Confederação Na-
cional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), o que resul-
tou em forte participação das mulheres rurais na elaboração
da Constituição Federal de 1988.22 Suas principais reivindica-
ções eram: o reconhecimento das mulheres agricultoras – e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 104 29/10/2015 16:19:52
não apenas como empregadas domésticas, mas como traba-
lhadoras produtivas, com o objetivo de quebrar a invisibilida-
de do trabalho das mulheres na agricultura; os direitos sociais,
especialmente o direito à aposentadoria e ao salário-materni-
dade; o direito de confederar no sindicato e na Federação de
Trabalhadores Rurais, além do direito relativo à saúde das mu-
lheres (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Em 1988, a participação de mulheres rurais amazônicas no
primeiro encontro nacional de mulheres rurais da Contag para
se preparar para os debates constitucionais contribuiu com a
elaboração da pauta, juntamente com outras mulheres rurais
brasileiras, em um movimento nacional para trabalhar pelo
direito de participar no movimento sindical rural, bem como
pela inserção delas no contexto político nacional.23
Nesse contexto, o primeiro esforço foi para o reconheci-
mento do seu papel como importante agente dentro das or-
ganizações de trabalhadores rurais: sindicatos, federações de
trabalhadores rurais e associações de bairro. Como resultado,
as secretarias de mulheres foram criadas nos estatutos do mo-
vimento, formalizando a existência do departamento para tra-
balhar com suas demandas (AMARAL, 2007).
Embora se tratasse de uma fase crucial para a expansão da
organização das mulheres rurais, havia muitos conflitos den-
tro do movimento sindical para buscar reconhecimento da
importância de incluir as mulheres como representantes do
movimento sindical. Um bom exemplo ocorreu em 1990, em
Nova Timboteua, uma cidade no Estado do Pará, onde mais de
cem mulheres ocuparam o sindicato durante uma semana para
adquirir o direito de participar e poder fazer parte da direção
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 105 29/10/2015 16:19:52
na organização sindical (ASSOCIAÇÃO DE MULHERES MARGA-
RIDA BARBOSA [AMMB], 2002).
A Igreja Católica, cuja atuação era centrada nos impactos
do modelo de desenvolvimento econômico para as famílias
rurais da Amazônia, apontava tal modelo como responsável
pela pobreza das famílias, com desconsideração dos direi-
tos sobre a terra, e pela geração de conflitos violentos (SCH-
MINK; WOOD, 1992).
A Igreja, com seu movimento de base eclesial orientado pela
teologia da libertação, teve uma forte influência na formação
dos líderes mais importantes nas áreas rurais da Amazônia,
com propostas de lutar por seus direitos pela terra e contra o
modelo de desenvolvimento pregado pelo Estado brasileiro. A
teologia da libertação foi um movimento formado pela Igreja
Católica na América Latina, e especialmente no Brasil durante
o regime militar na década de 1960. No contexto de opressão
que as pessoas pobres viviam, a teologia enfatizou a libertação
social e política como a antecipação da salvação final. A ideia
central focava em pessoas pobres de duas maneiras: como ob-
jetos de ajuda e benevolência e como protagonistas de sua his-
tória e de libertação da opressão, da exploração e da exclusão
(BOFF; BOFF, 1987).
Uma das ações da Igreja Católica foi a organização das mu-
lheres rurais em torno das necessidades da família, porém sem
abordar a desigualdade de gênero no interior da família. Nesse
processo, foram estabelecidos diferentes tipos de organiza-
ções de mulheres rurais (clubes de mães, grupos de parteiras,
grupos de mulheres pastorais, associações de mulheres e mo-
vimentos nacionais de mulheres) (AMARAL, 2007). As ações
da Igreja contribuíram muito para a organização em torno de
iniciativas de produção, bem como para as demandas sociais
de mulheres, familiares e comunidades. As mulheres rurais ga-
nharam conhecimento sobre os seus direitos e melhoraram as
habilidades produtivas para desenvolver pequenas manufatu-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 106 29/10/2015 16:19:52
ras de produtos dentro de casa. Em muitos casos, esses progra-
mas de treinamento resultaram em pequenas iniciativas pro-
dutivas com o fim de gerar recursos para melhorar ou manter
as ações sociais das comunidades.
Consequentemente, as mulheres rurais também aprende-
ram a se organizar e promover ações comunitárias, porque o
trabalho da Igreja também tornou possível às mulheres dei-
xarem o espaço da casa e entrarem na esfera pública, criando
novas redes sociais que promoveram a quebra do seu isola-
mento, dando-lhes a consciência sobre os seus direitos civis
(SHANLEY; SILVA; MACDONALD, 2011).
As organizações de mulheres, associadas com o movimen-
to sindical rural e grupos religiosos, lutaram pelo reconheci-
mento delas como trabalhadoras na agricultura e pelo direito
à terra, direito à saúde, direito a salário-maternidade, aposen-
tadoria, educação, bem como contra qualquer tipo de discrimi-
nação e violência doméstica (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Enfim, todas essas ações promoveram informações bási-
cas sobre direitos civis, melhorando a capacidade das mu-
lheres de participação, que resultou em acesso a direitos e
políticas públicas.
Durante a década de 1990, direta e indiretamente o movi-
mento feminista e da Igreja Católica, juntamente com outras
organizações não governamentais, estimularam iniciativas
econômicas como uma estratégia para a inclusão social e eco-
nômica das mulheres rurais na área rural da Amazônia brasi-
leira. Eles procuraram, assim, responder aos efeitos negativos
da crise econômica na região e do desenvolvimento econômico
com base no desmatamento.
Durante a década de 1990, o movimento social das mulhe-
res rurais, apoiado pela Federação dos Trabalhadores Rurais,
com o apoio de ONGs e da Igreja – Comissão Pastoral da Ter-
ra (CPT) – investiu na capacitação de pessoas e organizações
para melhorar a produção e o desempenho empresarial na re-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 107 29/10/2015 16:19:52
gião amazônica. Em 2000, a Secretaria das Mulheres Rurais da
Federação de Trabalhadores Rurais do Estado do Pará, junta-
mente com o Grupo de Assessoria em Agroecologia na Amazô-
nia (GTNA) e a Federação de Assistência Social e Educacional
(Fase) – duas organizações não governamentais –, organizou
uma reunião com mulheres rurais envolvidas em microem-
preendimentos que utilizavam diretamente recursos naturais.
Esse evento teve o objetivo de proporcionar a troca de conhe-
cimentos entre as iniciativas, bem como a discussão de articu-
lação e cooperação entre elas.
As 70 mulheres rurais representando microempreendi-
mentos de sete Estados da região amazônica indicam que o
desmatamento, a falta de valor dado às atividades das mu-
lheres, a falta de recursos financeiros, os baixos preços dos
produtos e a pequena capacidade técnica de produção foram
fatores críticos que influenciaram o desempenho das iniciati-
vas econômicas (RENDEIRO; GOMES, 2000). Como resultado
dessa reunião, a Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da
Amazônia (RMERA) foi criada. A articulação da RMERA expan-
diu-se para toda a região amazônica, integrando não somente
os microempreendimentos, mas também importantes movi-
mentos de mulheres na sua coordenação, como, por exemplo,
o Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA) e
a Rede Acriana de Mulheres e Homens (RAMH).
Em 2003, a segunda reunião teve a participação de repre-
sentantes de iniciativas das cem mulheres rurais de todos os
Estados da Amazônia. Esse evento teve como objetivo criar
uma rede de comunicação, elaboração de um programa de trei-
namento e de negociar com o setor público a respeito das polí-
ticas públicas para as mulheres, tais como crédito, assistência
técnica e as questões sociais (GOMES; RENDEIRO, 2003).
O terceiro encontro ocorreu em 2006, com o objetivo de
articular e aumentar a participação de grupos de mulheres
envolvidas em microempreendimentos em fóruns políticos
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 108 29/10/2015 16:19:52
na Amazônia e também na esfera nacional. Elas avaliaram a
trajetória da Rede e planejaram dar visibilidade à posição das
mulheres rurais no Encontro Nacional de Agroecologia (ENA)
como uma estratégia para ganhar visibilidade para as deman-
das das mulheres rurais e seus empreendimentos. Essa reu-
nião aconteceu no Rio de Janeiro, em 2006, com a participação
de mulheres rurais da Amazônia e de outras regiões do Brasil
(VALENTE, 2006).
Na realidade, o que era para ser apenas uma reunião para
compartilhar suas experiências terminou com a construção de
uma rede já no primeiro encontro (2000), onde microempre-
endimentos das mulheres rurais estabeleceram como missão
e estratégia a de trabalhar em conjunto para melhorar as con-
dições para seus empreendimentos. Nessa reunião, elas defini-
ram-se a si mesmas como
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 109 29/10/2015 16:19:52
empreendimentos, e para contribuir com propostas e
implementação de políticas públicas para fortalecer
as organizações de mulheres e igualdade de gênero
(RENDEIRO; GOMES, 2000).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 110 29/10/2015 16:19:52
Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o grupo de Gênero
e Agroecologia da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Análise das informações do Banco de Dados da RMERA de
2003 e 2008 mostra a forte relação entre os microempreendi-
mentos das mulheres rurais e o movimento de mulheres: 95%
desses microempreendimentos apresentam seus membros
participando de organizações de mulheres rurais fortemente
ligadas à Igreja ou ao movimento feminista, além de participa-
rem de movimentos sindicais de trabalhadores rurais.
Apesar disso, 59% das representantes dos microempreen-
dimentos entrevistadas afirmaram que a ideia de criar um em-
preendimento foi originada internamente, nos grupos em que
elas atuam, e não de uma demanda externa. Isso reforça a ideia
da forte relação entre os grupos e as incubadoras, que não con-
seguem distinguir os efeitos da interação com grupos externos,
uma vez que essa criação foi, na maioria das vezes, estimulada
por informações baseadas em ações de organização das mulhe-
res: formação, experiência em relacionamentos e participação
em eventos promovidos pela Igreja Católica, organizações de
mulheres rurais ou urbanas e do movimento feminista.
Além da evidência da influência do movimento social de
mulheres rurais sobre o surgimento e expansão desses grupos
de mulheres integrados no RMERA, eles também se tornaram
um grupo com características próprias da Amazônia brasilei-
ra. Baseado em Cooper (1981), Dee (2001), Alvord (2004) e
Shane (2007), eles compartilham características comuns com
empreendimentos sociais: adotam uma missão para criar e
sustentar os valores sociais, envolvendo o grupo em um pro-
cesso de inovação e aprendizado, exibindo a responsabilidade
que inclui valor social como resultados (DEES, 2001).
Microempreendimentos coletivos de mulheres rurais são
empreendimentos sociais, em primeiro lugar, porque o tra-
balho que fazem não se concentra apenas em critérios econô-
micos, mas também nos aspectos social, ambiental, político e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 111 29/10/2015 16:19:52
em esferas culturais. Eles se concentraram em uma variedade
de questões sociais, tais como: violência doméstica, direitos
à saúde da mulher, gênero, saúde da família, organizações de
mulheres; questões econômicas (produção, manufatura, negó-
cios); questões ambientais (reflorestamento, reciclagem, edu-
cação ambiental, água potável); questões de política (a parti-
cipação das mulheres nas políticas públicas, por intermédio
da participação em diversos conselhos sobre escolas e saúde,
bem como em sindicatos de trabalhadores rurais) e participa-
ção cultural na organização de eventos da Igreja Católica.
Em segundo lugar, a missão desses microempreendimentos
articulados pelas mulheres está relacionada com fatores so-
ciais (Figura 1): 44% das mulheres mencionaram o empode-
ramento como a principal meta, 29% citaram o fortalecimento
das organizações de mulheres, 19% mencionaram o aumento
da renda familiar e 8% disseram que seu objetivo era um me-
lhor bem-estar da comunidade. A questão econômica de gera-
ção de renda, assim, aparece diluída entre as funções sociais
do empreendimento.
Fonte: Banco de Dados RMERA (2008), adaptado pelas autoras, novembro de 2013.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 112 29/10/2015 16:19:53
ATENÇÃO AMBIENTAL PARA A FLORESTA AMAZÔNICA
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 113 29/10/2015 16:19:53
mais significativa tenha sido a criação, em 1990, do conceito
de reservas extrativistas, pelo qual as populações tradicionais
foram reconhecidas como as protetoras florestais, dando o di-
reito à terra para essas populações.
Tal modelo especial de posse da terra reforçou a importân-
cia do papel das comunidades locais nas estratégias de conser-
vação, por meio da promoção do uso sustentável da floresta
(WADT et. al., 2008). O movimento seringueiro criado no Esta-
do do Acre foi o movimento mais importante nesse processo,
apresentando uma proposta socioambiental com base em pro-
dutos da floresta como um modelo de desenvolvimento alter-
nativo para a região.
No início dos anos 1970, no Estado do Acre, os incentivos
oferecidos à atividade pecuarista por parte do governo do Es-
tado provocou a expulsão de populações rurais para as áreas
urbanas, a especulação de terras e o desmatamento discrimi-
natório das áreas produtivas de borracha. Esse movimento,
que constantemente era ameaçado por fazendeiros no Acre,
lutou contra o desmatamento dos seringais, contra a trans-
formação da área de floresta em pasto e pelo direito à terra
(SCHMINK; CORDEIRO, 2008).
Durante o mesmo período, a produção de itens florestais
não madeireiros (PFNM) recebeu estímulos de reforço na pro-
moção comercial (DUBEY, 2007) como parte de uma estratégia
para desenvolver políticas alternativas para apoiar as iniciati-
vas comunitárias inovadoras (KAINER et. al., 2003). Além dis-
so, a proposta da reserva extrativista proporcionou alianças
entre movimentos sociais e ambientais (ALLEGRETTI, 1990).
Desde a década de 1990, as políticas públicas brasileiras
para o setor ambiental têm-se centrado sobre a importância de
agregar valor aos produtos da biodiversidade da floresta. O ce-
nário ambiental pós-ECO 92, a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, com a estratégia de
conservação e uso sustentável das florestas, levou à criação e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 114 29/10/2015 16:19:53
expansão de mercados para produtos florestais, especialmente
para as florestas tropicais no Brasil (ANDERSON; CLAY, 2002).
As mulheres rurais, tradicionalmente vinculadas, boas ma-
nejadoras da floresta, apropriaram-se do espaço político que
se abriu com as crises ambientais relacionadas ao desmata-
mento, a fim de obter recursos financeiros e de visibilidade.
Nesse contexto, as discussões ambientais, associadas com o
desenvolvimento econômico para uma melhor utilização dos
recursos naturais, mostraram um novo caminho para as or-
ganizações de mulheres rurais indígenas e não indígenas, no
sentido de integrar demandas sociais com oportunidades am-
bientais e alcançar visibilidade como agentes de desenvolvi-
mento sustentável na região, participando nos debates sobre
trabalho, conservação e meio ambiente (SIMONIAN, 2001).
Isso proporcionou, nesse período, o surgimento de muitas
outras categorias importantes de organizações de mulheres
rurais que anteriormente não participavam de movimentos
sindicais na Amazônia, como o movimento das pescadoras mu-
lheres; movimento de mulheres indígenas; movimento extra-
tivista das mulheres; quilombolas (descendentes de escravos),
mulheres em organização; organizações coletoras de coco
babaçu e da Articulação de Mulheres da Amazônia (Mama). O
Mama visa arepresentar todas as categorias de mulheres que
vivem na área rural da Amazônia (SIMONIAN, 2001). Ao mes-
mo tempo, a sequência de transformações sociopolíticas esta-
va ocorrendo no Brasil, e apoiava em nível local a emergência
das organizações de mulheres locais.
Dados da RMERA mostram como as mulheres dependem
de recursos florestais para as atividades produtivas nas suas
iniciativas econômicas. Um total de 88% dos microempreen-
dimentos de mulheres rurais amazônicas estudadas estava
trabalhando com matérias-primas da floresta para a confecção
de produtos florestais não madeireiros, incluindo artesanato,
plantas medicinais, aromáticas, frutas e geleias. As suas carac-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 115 29/10/2015 16:19:53
terísticas particulares, incluindo o tempo de trabalho, formas
de organização da produção e processos de fabricação esta-
vam relacionadas também com a disponibilidade de matéria-
-prima florestal.
Embora alguns empreendimentos tivessem obtido apoio
financeiro, 90% das microempreendimentos de mulheres ru-
rais não tinham acesso a apoio financeiro externo para investir
em sua iniciativa. Um total de 60% deles não podiam acessar
crédito oficial, ou porque eles ainda trabalhavam no setor in-
formal, ou por não possuírem documentos oficiais exigidos, e
os restantes 40% não sabiam como acessar esse tipo de finan-
ciamento. Finalizando, os resultados da pesquisa mostraram
também que 85% desses microempreendimentos receberam
apoio técnico dos movimentos de mulheres, ONGs de mulhe-
res, ONGs ambientais, da Igreja e de alguns setores das univer-
sidades da Amazônia.
INSTITUIÇÕES INCUBADORAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 116 29/10/2015 16:19:53
oficial e teve o objetivo de produzir orientando a exportação
de produtos agrícolas.
O surgimento de empresas locais para suprir demandas ou
o desenvolvimento de novas cadeias comerciais para produtos
amazônicos locais foi negligenciado. Como resultado, os ins-
titutos de pesquisa da Amazônia focaram seus estudos sobre
melhorias na pecuária, sobre as características físicas da ma-
deira e sobre geoprospecção (COSTA, 2005).
O cenário mudou com a crise econômica do Brasil duran-
te a década de 1980, quando o governo foi incapaz de levar
adiante o plano para os Estados da Amazônia como parte do
plano de ajuste estrutural realizado com tutoria do Fundo Mo-
netário Internacional para implementar políticas neoliberais
(FRANCO, 2003). Durante esse processo, os agentes multila-
terais começaram a questionar a capacidade do Estado como
provedor de serviços, canalizando fundos para ONGs locais e
movimentos populares nas suas novas funções como presta-
dores de serviços (LIND, 1997).
Esse contexto foi a base para a criação de organizações
amazônicas capazes de responder às demandas locais emer-
gentes, tais como a necessidade de estimular microempreen-
dimentos, assim como ressaltar a importância ambiental da
floresta amazônica como mais um fator que impulsionou esse
fenômeno na Amazônia.
O novo olhar sobre a região trouxe novos conceitos, como o
desenvolvimento sustentável, a conservação da floresta, o uso
da biodiversidade, o conhecimento local e outros, que vieram
depois culminar com a Cúpula da Terra das Nações Unidas (RIO
92). Isso criou uma oportunidade única para levantar fundos
para apoio às iniciativas locais (JACOBS, 2002). Muitos grupos
de mulheres se beneficiaram dessa condição ambiental para
implementar os microempreendimentos com o apoio técnico
dessas recém-chegadas instituições incubadoras. Os grupos de
mulheres tinham todas as características desejáveis para obter
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 117 29/10/2015 16:19:53
apoio: são auto-organizados, tinham o conhecimento de como
usar produtos da biodiversidade, representavam minorias
sociais e as próprias áreas florestais. Por outro lado, eles não
tinham conhecimento técnico para estabelecer um negócio e
para acessar recursos financeiros.
Descobrimos que 85% desses microempreendimentos rece-
beram apoio técnico para o seu estabelecimento do empreen-
dimento, mas ninguém mencionou o apoio técnico do Estado.
Apenas 7% receberam apoio de universidades e outras institui-
ções públicas, e 8% deles não tinham acesso a nenhum suporte
técnico. Nos Estados onde o governo local foi mais sensível à
importância dos microempreendimentos de mulheres rurais, a
presença de agências governamentais incubadoras ocorreu de
forma intensiva, como foi o caso do Estado do Acre.
No Acre, por exemplo, onde a conjuntura política local
apoiou grupos locais, o percentual de empreendimentos que
recebeu apoio do governo foi três vezes mais do que a média,
em comparação com lugares como o Estado de Tocantins, onde
as prioridades do governo local foram a promoção do agrone-
gócio, onde nenhum apoio governamental foi mencionado.
Além disso, 66% das incubadoras foram criadas pelos movi-
mentos sociais, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
os grupos religiosos e movimentos de mulheres, e 34% foram
criados por organizações não governamentais de conservação
ambiental e por universidades federais.
Na verdade, as mulheres rurais têm se organizado em uma
diversidade de organizações, a fim de melhorar as condições
sociais, econômicas, ambientais e políticas. E seus empreen-
dimentos refletem essas mesmas características como um
instrumento para suprir as necessidades sociais, econômicas,
ambientais e políticas da região (GOMES; AMARAL, 2005).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 118 29/10/2015 16:19:53
EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA AS MULHERES NO BRASIL
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 119 29/10/2015 16:19:53
o “Fortalecimento das áreas protegidas e uso sustentável” e o
“Ordenamento do território e do desenvolvimento regional na
Amazônia”. A adoção dessa estratégia de gênero no âmbito do
programa piloto esteve voltada principalmente para a democra-
tização do acesso aos processos de tomada de decisão partici-
pativa, bem como para a igualdade de acesso de homens e mu-
lheres a políticas e benefícios gerados pelas ações do programa.
No projeto, o tema da igualdade de gênero foi estabeleci-
do como uma chave para o desenvolvimento sustentável, que
deve ser inserida nas ações estratégicas de funcionamento do
programa (DEUTSCHE GESELLSCHAFT FÜR INTERNATIONA-
LE ZUSAMMENARBEIT GMBH, 2012). Os questionários e en-
trevistas realizados com gestores sobre o tratamento de “re-
lações de gênero” em subprogramas e projetos do PPG7, no
entanto, revelou uma grande lacuna na formação técnica das
mulheres, especialmente para a produção e gestão de recursos
naturais (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Programas que lidavam diretamente com as comunidades
locais (Negócios Sustentáveis; Promanejo; Proteger; ProVár-
zea; projetos de demonstrativo [PDA]) tiveram algumas ativi-
dades com foco em gênero, geralmente em resposta a deman-
das de organizações locais de mulheres. Tais projetos de for-
mação e de geração de renda para as mulheres muitas vezes
foram os primeiros passos para capacitá-las a participar na
vida política local e para ocuparem cargos políticos locais ou
representarem a comunidade em conselhos locais (HEREDIA;
CINTRÃO, 2006).
A análise da incorporação da abordagem de gênero nas
ações do Plano Nacional para a Promoção da Sociobiodiversi-
dade (PNPSB) (MELLO, 2012) mostra que os três ministérios
brasileiros, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) – coorde-
nação geral, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a Compa-
nhia Nacional de Abastecimento (Conab) enfatizam a impor-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 120 29/10/2015 16:19:53
tância do gênero no PNPSB, com destaque para a importância
que o papel das mulheres rurais teve para o desempenho do
programa.
No entanto, entre essas instituições federais, o MDA e o
MDS apresentaram avanços mais práticos na incorporação de
gênero dentro da instituição. O MDA criou um departamento
específico para trabalhar o referido enfoque. Isso influenciou a
inclusão de demandas das mulheres usando pressões internas
para lidar com os interesses estratégicos e práticos das traba-
lhadoras rurais em todos os programas do ministério. Permi-
tiu-se, assim, a inclusão e participação mais ativa das mulhe-
res rurais na área das políticas produtivas de responsabilidade
legal do MDA – enquanto o MDS, a cargo de políticas sociais
nacionais, possui plano de ação específico para promover as
mulheres, como programa de saúde para as mulheres rurais e
expansão de benefícios sociais para as mulheres do programa
rural (MELLO, 2012).
No caso do Ministério do Meio Ambiente, este tem traba-
lhado diretamente com as iniciativas econômicas de grupos de
mulheres que trabalhavam com produtos florestais incluídos
no valor de produtos da cadeia dada como prioritária, a fim de
promover a sociobiodiversidade: babaçu, fibra de palma, olea-
ginosas e produção do umbu. Essas ações atingiram um públi-
co feminino, tornando as mulheres participantes públicas mais
ativas do que os beneficiários indiretos, pois os tomadores de
decisões de gerenciamento, dentro dessas cadeias específicas
dos produtos, eram de domínio feminino.
Em caso de organizações mistas beneficiárias do programa,
embora as mulheres rurais que trabalhavam com esses pro-
dutos florestais tenham acesso aos benefícios gerados pelo
programa, elas ainda estão em desvantagens em relação aos
homens no que diz respeito à participação na composição dos
conselhos de administração dessas organizações produtivas
atendidas pelo programa.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 121 29/10/2015 16:19:54
Em resumo, a baixa representação feminina está diretamen-
te influenciada pela baixa participação das mulheres nas dire-
trizes das políticas decisórias dentro da PNPSB, assim como
pela baixa participação nas atividades do programa (formação,
reuniões, eventos em geral), e pela representação limitada nas
organizações envolvidas (MELLO, 2012).
As limitações quanto ao alcance das políticas públicas para as
mulheres são expressas de forma mais geral nos microempre-
endimentos de mulheres rurais analisados. Apenas 15% de to-
dos esses microempreendimentos receberam apoio técnico do
governo e do setor privado: formação, consultoria, bem como a
capacidade para participar de eventos promocionais, tais como
feiras e congressos, para exporem seus produtos. A maioria
(80%) desses microempreendimentos começou com o próprio
suporte financeiro e continuou sem receber nenhum tipo de re-
cursos do governo para melhorar as suas atividades produtivas
e econômicas por meio do investimento em infraestrutura.
Em suma, muitas condições ambientais contribuíram para
o surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais
na Amazônia brasileira: a expansão do movimento de mulhe-
res, a atenção ambiental para a floresta amazônica e a evolu-
ção da política pública para o empreendedorismo feminino no
Brasil. O movimento de mulheres incluiu o empoderamento
econômico pelo aumento da autonomia financeira, participa-
ção e tomada de decisão, como uma resposta para reduzir a
desigualdade de gênero.
O cenário ambiental da Amazônia abriu oportunidades
para as organizações feministas, a Igreja e as organizações am-
bientais trabalharem para a garantia do apoio técnico, para a
criação de microempreendimentos e a melhoria do seu desem-
penho. Finalmente, as políticas, para melhorarem as condições
das mulheres no Brasil, trouxeram muitas ações e programas
com base na igualdade de gênero, dos quais o empreendedo-
rismo feminino é um segmento importante. No entanto, na
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 122 29/10/2015 16:19:54
prática, as ações e programas voltados para o empreendedo-
rismo feminino ainda não – ou pouco – estavam atendendo as
demandas das mulheres rurais na região amazônica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 123 29/10/2015 16:19:54
sem sua autonomia financeira, com potencial para promover o
empoderamento das mulheres.
A combinação dessas características sociais tem levado a
considerar que esses microempreendimentos das mulheres
rurais realizaram o empreendedorismo social. Com base na
pesquisa rural Rede de Mulheres Empreendedorismo entre
2003 e 2008 – um dos conjuntos de dados mais completos
sobre os microempreendimentos das mulheres na Amazônia
–, conclui-se que eles tinham relações fortes com movimento
social das mulheres, com as ações da Igreja e do movimento
sindical. Na maioria dos microempreendimentos, as mulheres
eram membros de sindicatos rurais.
O crescente envolvimento das mulheres rurais amazônicas
em microempreendimentos e em outros esforços de base para
prosseguir com alternativas de desenvolvimento sustentável
é um componente importante para fortalecer a capacidade
das comunidades da floresta amazônica de continuarem a se
adaptar e prosperar em harmonia com seus valores e práticas
tradicionais, bem como abrirem oportunidades emergentes no
mercado dos produtos florestais.
Mais visibilidade e apoio são necessários para destacar as
suas contribuições sociais, políticas e produtivas para o bem-
-estar de suas famílias e comunidades, assim como é necessá-
rio o fortalecimento dos mecanismos para o acesso das mulhe-
res aos recursos financeiros e técnicos essenciais para apoiar
seus empreendimentos.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 124 29/10/2015 16:19:54
sustainable livelihoods. Gainesville, FL: University Press of
Florida, 2009.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 125 29/10/2015 16:19:54
BULLOUGH, A. “Do women entrpreneurs effect economic
growth in developing countries? (USA), A.-S., Annual Meeting,
Cleawater Beach, FL. AUB-SE USA: AIB-SE, 2006, p. 268-79.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 126 29/10/2015 16:19:54
non-timber forest. Journal of Entrepreneurship, vol. 16, 2007,
p. 197.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 127 29/10/2015 16:19:54
JALBERT, S. E. Women entrepreneurs in the global economy.
2000, p. 60.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 128 29/10/2015 16:19:54
RENDEIRO, W.; GOMES, D. M. A. Relatório do I Encontro Amazô-
nico de Empreendedoras do Recursos Naturais. Belém: Fetagri/
PA/MMNEPA/GTNA, 2000, p. 21.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 129 29/10/2015 16:19:54
Council of Rubber Tappers. International Forestry Review, vol.
13, nº 2, 2011, p. 12.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 130 29/10/2015 16:19:54
MULHERES QUE PLANTAM, MULHERES
QUE NÃO COLHEM: PERSPECTIVAS DE
GÊNERO E DESENVOLVIMENTO EM
ASSENTAMENTOS RURAIS NO TOCANTINS
Gleys Ially Ramos dos Santos
INTRODUÇÃO
A
s análises que apresentamos aqui são resultados da
pesquisa sobre relações de gênero na luta pela terra em
assentamentos rurais no município de Porto Nacional
(TO) e visam a discutir perspectivas de gênero no contexto do
desenvolvimento regional no campo brasileiro. O objetivo do
artigo é analisar as narrativas de mulheres assentadas que vi-
venciaram o conflito social referente à posse de terra em Porto
Nacional, município localizado na região central do Estado do
Tocantins, a 64 quilômetros da capital, Palmas.
A premissa de que o processo de reforma agrária pode le-
var a um avanço no que diz respeito ao desenvolvimento re-
gional permite que nós evidenciemos, nessa ideia, um parado-
xo histórico que a acompanha. Segundo Deere e Léon (2002),
a experiência de reforma agrária latino-americana leva a um
pressusposto geral: as mulheres rurais foram, em grande par-
te, excluídas como beneficiárias diretas dos processos ligados
às reformas no campo.
Entretanto, quais as percepções dessas mulheres sobre
esse processo? São as versões dessas mulheres sobre desen-
volvimento, sobre assentamento e sobre gênero que orienta-
ram nosso trabalho. Por meio dos depoimentos das assentadas
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 131 29/10/2015 16:19:54
do Padre Josimo I e II (o assentamento foi o local onde realiza-
mos as pesquisas relativas a este trabalho), analisamos como
as propostas e os discursos sobre o desenvolvimento as afe-
tam. As assentadas nos deram a possibilidade de analisar por
outros ângulos como estão sendo implantadas as políticas de
reforma agrária e como estão sendo essas políticas na relação
e questão de gênero no campo.
O procedimento metodológico adotado foi orientado pelo
uso da história oral, por ser uma metodologia de pesquisa vol-
tada para o conhecimento do tempo presente que nos permi-
te conhecer a realidade atual e o passado ainda próximo, pela
experiência e pela voz daqueles que o viveram (LANG, 2001).
Entrevistamos oito mulheres, com idades de 20 a 70 anos,
a maioria titular da terra, que participaram das primeiras ocu-
pações de terra em diferentes lugares no município de Por-
to Nacional e que foram assentadas no Assentamento Padre
Josimo I e II. Entrevistamos também dois homens, líderes do
assentamento e do movimento. As entrevistas foram realiza-
das no próprio assentamento. As mulheres entrevistadas estão
distribuídas por toda a área do assentamento.
A fim de preservar a identidade, as referências às mulheres
serão feitas com nomes fictícios, extraídos de uma dinâmica
aplicada com as assentadas, voltada para elas dizerem o que
pensavam sobre o que é ser mulher e, assim, expressar suas
percepções em forma de desenho. A dinâmica foi um espaço
para que elas pudessem se ver como agentes do processo de
desenvolvimento do seu assentamento.
Escolhemos suas designações sobre si para identificá-las
aqui neste trabalho, ficando assim denominadas: Rosa, Guer-
reira, Estrela, Vida, Coração Grande, Flor do Cerrado, Jardim
e Sol.
Por intermédio das narrativas, buscamos entender as per-
cepções das mulheres envolvidas na disputa pela terra, mape-
ando suas experiências, projetos e ideários em que elas mos-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 132 29/10/2015 16:19:54
tram pequenos e grandes gestos feitos para além do controle
e dos discursos dos homens que lideraram o conflito. Logo,
a visão dessas mulheres se torna importante na análise das
identidades das forças envolvidas no conflito dentro do Assen-
tamento Padre Josimo I e II.
Analisamos também quais as expectativas e perspectivas
das mulheres com relação ao desenvolvimento do assenta-
mento, bem como suas percepções sobre as relações e papéis
de gênero nesse contexto, com a posse e título da terra.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 133 29/10/2015 16:19:54
No Assentamento Padre Josimo I e II, as mulheres estão
procurando construir seu espaço social, uma vez que seu espa-
ço físico dia após dia vem sendo conquistado. Essa é uma pers-
pectiva resultante da conquista da terra. Para as assentadas do
Padre Josimo I e II, a conquista do título da terra, apesar de ser
uma vitória parcial, representa hoje inúmeras possibilidades
para essas mulheres.
Atualmente, no Assentamento Padre Josimo I e II, a posse
da terra atingiu pelo menos 21% de mulheres beneficiárias di-
retas num total de 65 – número considerado pequeno tendo
em vista o número de mulheres assentadas, que é de 243, qua-
se a metade da população do assentamento, o qual tem 497
assentados no total. Ainda assim, o saldo é positivo, já que a
média nacional de beneficiárias diretas é de apenas de 12%
das mulheres nos assentamentos.
As mulheres estão presentes ainda como segundas benefi-
ciárias: são 53 mulheres (12%) beneficiadas dessa forma, isto
é, como cônjuge capaz de exercer alguma influência sobre a
terra, ainda que em segundo plano. Para entendermos melhor,
beneficiárias ou beneficiadas são as pessoas que receberam
o benefício da terra ou do lote nos assentamentos rurais no
Brasil. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) institui que beneficiárias/os diretas/os são aqueles
que recebem a titulação do lote diretamente em seu nome, e
beneficiárias/os indiretas/os são aqueles casos em que a ti-
tulação do lote vem em seguimento a um primeiro nome/be-
neficiária/o, geralmente cônjuge ou filhos do primeiro nome/
beneficiária/o.
Esse número, possivelmente, pode ser influenciado pelo se-
guinte aspecto: o homem não é obrigado a citar um segundo
nome para beneficiário da terra, mesmo sendo casado oficial-
mente, enquanto a mulher no mesmo estado civil deve citar
um segundo nome, segundo as normas instituídas pelo Incra/
TO. Mesmo não havendo um documento oficial que dê respal-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 134 29/10/2015 16:19:55
do a essa normativa, o Incra/TO cadastrou as famílias dessa
forma. Assim, o número de mulheres que foram beneficiadas
como cônjuge é de apenas 17% dentro do Assentamento Rural
Padre Josimo I e II.
Isso reforça a pouca visibilidade das mulheres no assen-
tamento, as quais, além de não terem a igualdade na divisão
dos lotes feita pelo Incra, também não são vistas pelos seus
cônjuges, que não as indicam como segunda beneficiária para
aquisição dos lotes no assentamento. E, mesmo como primeira
beneficiada, na maioria dos casos elas indicaram um segundo
nome (cônjuge, filhos), o que reflete na sua não autonomia nos
direitos à posse da terra.
No assentamento, os números de mulheres beneficiadas
direta e indiretamente somam 33% das assentadas atingidas.
Mas, ao mesmo tempo em que esses números podem repre-
sentar aspectos positivos, como a possibilidade de essas mu-
lheres trabalharem nas suas terras de acordo com suas neces-
sidades, é perceptível no Padre Josimo I e II que, no segundo
caso das mulheres beneficiárias com base no aspecto cônjuge,
o modo de produzir poderá, na maioria dos casos, ser regidos
pelo esposo (companheiro), e no primeiro caso ser influencia-
do por eles, já que a mulher, segundo o Incra/TO, deve citar um
segundo nome como beneficiário indireto.
Na percepção das mulheres entrevistadas, esse total é con-
siderado relevante, uma vez que é maior do que elas previam.
Em suas previsões, apenas as mulheres solteiras ou sem com-
panheiros legais receberiam a posse e título do lote. É o que
explica Flor do Cerrado:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 135 29/10/2015 16:19:55
“largadas” (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no As-
sentamento Padre Josimo I e II).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 136 29/10/2015 16:19:55
Pela fala de Rosa, é possível perceber a invisibilidade das
mulheres trabalhadoras rurais quando, no cadastramento do
Incra, é dada a preferência ao homem; somente quando este
tem algum impedimento para realizar o cadastramento é que
a mulher é aceita como titular da terra, pois a condição social
das mulheres trabalhadoras rurais demonstra a falta de opor-
tunidades e de igualdade de gênero no campo e nos assenta-
mentos implantados nessa área.
É possível perceber também, nas falas das entrevistadas,
que tanto os homens como as mulheres trabalham nos servi-
ços pertinentes ao assentamento, como a derrubada de roça, o
manejo com os animais. Em quase todas as falas das mulheres,
elas estão sempre executando as tarefas ditas femininas, arru-
mando o barraco, olhando as crianças, lavando e cozinhando,
enquanto o homem conserta a plantadeira de arroz e milho,
vacina os animais e vai à sede saber de informações sobre o
assentamento.
No que diz respeito ao modo de produção coletiva do assen-
tamento e de cada família, essas atividades ainda não estão de-
finidas, pois, em relação às divisões das atividades domésticas
ou plantações, percebe-se que as discussões sobre o setor de
gênero ficam em segundo plano. Dentro das prioridades das/
os assentadas/os, estão as preocupações com o que vão produ-
zir no sentido de engajar todos as/os assentadas/os na produ-
ção. Na fala de Guerreira, é possível perceber essa afirmação:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 137 29/10/2015 16:19:55
já até começou plantar sem ordem dos coordenadores,
nem do Incra e já deu problema. [...] Produzir eu ainda
não comecei, não! Eu decido sobre meu barraco, sobre
meu lote, eu tenho um marido aí, que arranjei aqui mes-
mo dentro do Padre Josimo, mas ele não opina em nada,
não. Ele vai “pras” reuniões comigo, ele me ajuda na
casa, conserta as coisas, vacina os bichos, conversa com
o Casi, ainda não me dá trabalho, não. Ah, o lote tá no
meu nome, né? (Entrevista realizada dia 25/10/2008 no
Assentamento Padre Josimo I e II).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 138 29/10/2015 16:19:55
aspecto, as entrevistadas destacam o número de mulheres que
trabalham fora do assentamento, chegando a 41% das assen-
tadas, isto é, 69 mulheres que trabalham nos mais variados ti-
pos de serviços nos municípios limítrofes.
Nas entrevistas, perguntamos como essas mulheres viam
esses serviços e como elas se posicionavam diante da renda fa-
miliar. Em nenhum dos relatos as mulheres se autoafirmaram
como chefe de família. A maioria das mulheres, responsáveis
pela renda familiar, se aponta como principal responsável pelo
sustento da casa, e isso ocorre mesmo quando ela é a única a
introduzir renda e trabalho na família. As frases mais comuns
nas falas dessas mulheres são: “Não, meu menino é que cuida
disso” (chefiar a casa), ou “eu quase nem paro pra pensar nisso
aí, mas eu não tomo conta disso, não”.
Na definição do Incra quanto às atividades relacionadas à
renda, as mulheres se dividem em:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 139 29/10/2015 16:19:55
vistadas afirmam que os comentários existem e essas mulhe-
res não são bem-vistas pela comunidade em que vivem. Foi o
que percebemos na fala de Sol:
Eu sou vista como uma sem o que fazer, porque vou nas
reuniões e falo. O pessoal aqui tem a língua que não cabe
na boca, não veem que trabalho fora, que cuido do meu
filho sozinha, e porque não tenho marido acha que pode
falar o que quiser comigo – e falam, o pior é que eles fa-
lam. E as mulheres também, essas são as que mais falam,
pensam que sou mãe solteira, mas eu não sou, não, na
época eu morava com um homem, mas elas só vê isso
aqui, já que vai falar da vida dos outros fala o certo, né?
Pior que a gente não tem nem o apoio das mulheres
aqui, mulher é bicho nojento; os homens se une e elas
brigam, mas eu não tô nem aí. Nas reuniões eu falo mes-
mo. As coisas tão erradas mesmo. Quem abre a boca aqui
é malvisto, eu nunca vi isso! (Entrevista realizada dia
12/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).
Para Sol, essa discussão já deveria ter sido feita, e nela apon-
tadas algumas soluções. Para ela, outras discussões que orga-
nizam a vida social dos assentados estão atrasadas, atrasando
também as discussões relacionadas às questões de gênero no
assentamento. Percebemos, por essa fala, que até o momento
tais discussões são consideradas tanto por homens quanto por
mulheres como não prioritárias, mesmo havendo a percepção
por parte de algumas mulheres e homens que as condições
destinadas às mulheres são bem diferentes das que ocorriam
no acampamento, quando havia um modo mais igualitário nos
papéis atribuídos aos gêneros e que não mais são vistas no as-
sentamento Padre Josimo I e II. Segundo Amorim (2007, p. 60),
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 140 29/10/2015 16:19:55
Pela própria cultura, o machismo não está somente no
homem, muitas mulheres, nos assentamentos, não se en-
volvem por preconceito da sua própria condição e consi-
deram que esse tipo de envolvimento é coisa de homem.
A articulação e convencimento da importância delas par-
ticiparem no movimento e no próprio assentamento se
torna difícil.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 141 29/10/2015 16:19:55
à questão de gênero no movimento – não consegue chamar a
atenção das mulheres nem consegue ampliar o debate e levá-
-lo às mulheres assentadas. Mesmo quando a coordenação do
setor de gênero é liderada por uma mulher (comum nos assen-
tamentos rurais, mas isso não chega a ser uma regra), ela não
consegue adotar políticas de gênero que atinjam as assentadas
e suas demandas.
Para os assentados do Padre Josimo I e II, parece complica-
do querer discutir como as pessoas devem se relacionar den-
tro do assentamento, quando o próprio assentamento ainda
não está consolidado. Há problemas com a produção, com a
educação, saúde e transporte, que são preocupações imediatas
dos assentados. Esse é um pensamento tanto de homens quan-
to de mulheres. Na opinião do coordenador do assentamento,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 142 29/10/2015 16:19:55
aí, né? (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 143 29/10/2015 16:19:55
e até do MMTR e eu sei que a luta não é fácil, não. Mas as
mulheres aqui são esmorecidas, coitadas! Mas tudo no
começo é uma provação, né verdade?! Tem horas que até
eu acho que não vamos ter é nada. Acho que aqui deveria
ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulheres que
não colhem. Mas é na luta que entramos aqui e é na luta
que vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratada
direito (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 144 29/10/2015 16:19:55
assentamento, as coordenações e o setor de gênero), tendo
como base o universo da luta pela e na terra.
Pelas entrevistas, percebemos que, no decorrer do pro-
cesso de luta pela terra, seus contextos e histórias foram se
tornando distintos e resultaram em características organiza-
cionais, metas e estratégias significativamente diferentes – daí
o pressuposto para o surgimento do setor de gênero nos as-
sentamentos, entendendo este como a divisão interna do MST
destinada a resolver problemas ligados à questão de gênero no
movimento, envolvendo mulheres, homens e crianças, já que o
setor é um trabalho de base do MST. Surgiu como um espaço de
formação e ação das mulheres (MST: CARTILHA DA MULHER
SEM-TERRA, 2006).
Ele visa a padronizar as demandas e organizar as reivindica-
ções das mulheres, vislumbradas ainda nos acampamentos. O
próprio MST (2006, p. 15) reflete sobre isso quando afirma que
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 145 29/10/2015 16:19:55
Assim, analisando os processos pelas falas das assentadas,
bem como as organizações pelas quais as mulheres no Padre
Josimo I e II passaram e estão passando, nos fez perceber como
as relações de gênero estão sendo tecidas nesse espaço, onde é
possível afirmar que elas reproduzem relações sociais antigas,
onde a reprodução dos papéis femininos mais uma vez põe a
mulher num lugar de submissão aos papéis masculinos.
No Assentamento Padre Josimo I e II, identificamos que
uma das funções do setor de gênero é vencer o paradoxo da
estagnação, já que as discussões não despontaram por si só.
Percebe-se que, apesar da criação do setor, não está havendo
avanço para uma organização interna das mulheres e muito
menos para um movimento paralelo ao do MST, uma vez que
o setor responsável por essa discussão também é responsável
por outras demandas tidas como prioritárias no assentamen-
to, como educação e saúde.
Do total de assentadas/os atualmente no Padre Josimo I e
II, há uma participação relativamente baixa de mulheres inse-
ridas no setor de gênero. Outra característica é que nos encon-
tros e reuniões relatados nas entrevistas percebemos que as
mulheres discutem assuntos que reforçam, ainda, a luta pela
terra, a reforma agrária, a emancipação dos trabalhadores,
pois seguem um roteiro dos demais setores de gênero no país.
Consideramos isso um fator negativo, já que as pautas e rei-
vindicações gerais não atendem às particularidades locais de
cada região ou de cada assentamento. O setor de gênero do
Padre Josimo I e II ainda não se atentou que suas reuniões obe-
decem a uma padronização nacional de pautas e não atendem
às demandas locais.
Analisando as pautas das reuniões, podemos detectar al-
guns dos principais assuntos discutidos pelo coletivo nos seto-
res de gênero no decorrer desses últimos anos: a) a construção
de hortas medicinais dentro dos assentamentos; b) a implan-
tação e organização dos Projetos de Saúde Familiar (PSF); c) o
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 146 29/10/2015 16:19:55
lançamento e consequente utilização de material para cursos
e palestras, como cartilhas sobre saúde feminina e educação
política; d) a organização de ações e manifestações específicas
das mulheres e ações gerais da organização dos trabalhadores,
como Encontro Estadual das Assentadas e Acampadas, Encon-
tro Regional do MST e a organização para mobilização das mu-
lheres etc. (VALENCIANO, 2006).
Mesmo essas pautas não são postas em prática no Assenta-
mento Padre Josimo I e II. Na fala de Rosa, podemos detectar
que, além de não serem executadas no assentamento, não são
realidades também do local. O fator negativo não consiste so-
mente na padronização das pautas, mas no próprio aceite das
mulheres dessa ação, mesmo percebendo as diferenças entre o
que é dito e o que é visto.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 147 29/10/2015 16:19:55
uma característica do setor de gênero no Assentamento Padre
Josimo I e II.
A falta de recursos seria uma das explicações para a parali-
sação deles, já que a estrutura que possui o movimento não é
suficiente para atender as demandas que existem dentro dos
assentamentos e acampamentos na região. Esse problema foi
apontado durante entrevistas com algumas militantes no As-
sentamento Padre Josimo I e II. Essa também foi a justificati-
va do setor de gênero do assentamento, que não é apontado
como organizador de nenhuma das ações acima citadas. Não
flagramos nenhuma reunião do setor no Assentamento Padre
Josimo I e II em que as pautas estivessem diretamente ligadas
às relações de gênero no assentamento.
Trazer para as mulheres assentadas as notícias do que ocor-
re em termos de política e de conquistas do movimento parece
um desafio, sobretudo no Padre Josimo I e II, onde tudo parece
ser mais prioritário que as relações sociais. Mas o engajamen-
to mais profundo nessa forma de organização, realizada pelas
mulheres do MST, esbarra muito numa série de condições pe-
culiares ao próprio assentamento.
A questão da produção ainda não resolvida entre os assenta-
dos do Padre Josimo I e II com certeza é um dos empecilhos para
se discutir gênero no assentamento. Tais discussões, porém, es-
barram em outras dificuldades, sendo a principal delas a divisão
interna feita no assentamento em duas áreas: Padre Josimo I e
Padre Josimo II, que, mais do que a divisão de área, há também
a divisão de ideias entre as assentadas: parece que divisão física
do assentamento influencia numa divisão ideológica do local.
As associações nesse momento de implantação do assen-
tamento podem estar tendo um papel de divisão dele, refor-
çando que essa divisão se concretiza física e politicamente.
Mulheres de um mesmo assentamento são regidas por duas
associações internas e diferentes que não conseguem se en-
tender. Não discutem gênero, não discutem o assentamento,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 148 29/10/2015 16:19:56
não discutem desenvolvimento. Apenas discordam sobre esses
eixos e os transformam em polêmica dentro do assentamento.
Essa divisão faz surgir ou acirrar outra problemática para
as discussões de gênero no assentamento. A divisão por área
e por associação divide os assentados e as mulheres em sim-
patizantes do MST (Padre Josimo I) e em não simpatizantes
do MST (Padre Josimo II), onde de um lado as proposições do
MST sobre gênero são bem aceitas, e, do outro, às vezes não
são nem mesmo ouvidas.
Essa divisão poderia ser considerada natural, uma vez que
algumas mulheres têm características relacionadas ao campo,
enquanto outras já se apresentam mais ligadas aos moldes ur-
banos. A contradição se dá no fato de que as mulheres com ca-
racterística campesinas não conseguem se familiarizar com os
preceitos do MST, enquanto as mulheres mais ligadas ao MST
(Padre Josimo I) têm características urbanas.
Essa talvez seja a principal dissidência das assentadas no
Padre Josimo I e II, essa não relação de campo/cidade entre as
assentadas. Dessa forma, as idealizações do setor de gênero no
Assentamento do Padre Josimo I e II não ganharam as preten-
sas extensões. Talvez por isso ainda não tenha avançado nos
trabalhos e na realização dos objetivos postos. Para Estrela,
que tem uma visão otimista acerca do setor no assentamento,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 149 29/10/2015 16:19:56
o nosso grande desafio, não só do setor, como da organi-
zação (Entrevista realizada dia 14/12/2008 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 150 29/10/2015 16:19:56
de trabalho informal, ganhando salários reduzidos, desfrutando
de uma condição de vida muitas vezes extremamente precária.
Essa condição de dificuldade e necessidades os conduziu
à organização de trabalhadores na tentativa de tornar seus
anseios de uma vida melhor uma realidade menos dura. Isso
revela a pluralidade de atores sociais envolvidos na luta pela
terra, vindos de experiências distintas, mas marcados pelo
mesmo processo de exclusão e expropriação: na cidade, pelas
transformações tecnológicas que envolveram a atividade pro-
dutiva; no campo, pelas mesmas transformações, somadas ain-
da à concentração fundiária (VALENCIANO, 2006).
Assim, para o setor de gênero no Assentamento Padre Jo-
simo I e II, que na sua fase inicial ainda não possui uma fun-
ção nas relações de gênero de seus assentados, embora ainda
pouco visíveis, essas ações se constituem importantes, muito
embora não consigam detectar que as relações entre homens e
mulheres são desiguais, mesmo no discurso e prática do MST
de igualdade. E são influências que possivelmente devem cres-
cer com a organização do assentamento, apesar de toda difi-
culdade e adversidade.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 151 29/10/2015 16:19:56
não simpatizantes das premissas do MST, elas estão engajadas
no movimento, possuem perfis mais ligados à vida no campo.
Isso porque, segundo as falas das assentadas do Padre Josi-
mo I, esse retorno ao campo é doloroso, uma vez que, adqui-
ridos modos de vidas urbanos com todas as facilidades (água
encanada, luz elétrica, eletrodomésticos como televisão, má-
quina de lavar roupa, liquidificador, fogão elétrico), desfazer-
-se dessas condições urbanas não é fácil. Por isso, o retorno ao
campo se torna difícil, pois elas perdem essas facilidades que
regiam seu cotidiano doméstico.
O que se pode inferir é que as assentadas do Padre Josimo I
são mais engajadas na luta de melhorar as condições e a qua-
lidade de vida no assentamento porque elas já tiveram essas
facilidades enquanto moravam na zona urbana. Dentro das rei-
vindicações para o assentamento, está a construção de poços
artesianos e a introdução de energia elétrica (já iniciada), que
podem ilustrar as falas de Estrela:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 152 29/10/2015 16:19:56
As assentadas do Padre Josimo I vão aos poucos se adaptando
à nova realidade, se readaptando aos modos de vida e atividades
no campo, enquanto as assentadas do Padre Josimo II estão mais
ligadas à vida no campo e cada vez mais afastadas das políticas
de organização do MST. Logo, as discussões de gênero dentro
do assentamento, que ainda são incipientes, não destacam essa
divisão interna. A participação das mulheres é pequena.
As atividades pertinentes às assentadas, por mais que quei-
ram buscar uma construção fora dos parâmetros machistas,
ou de uma moldura sexista, continuam a reproduzir papéis
e atividades consideradas femininas. A título de exemplo, as
principais atividades executadas na reunião de mulheres do
assentamento se “resumem” quase que exclusivamente a ar-
tesanato (crochê, tricô, bordados, costura geral etc.), a fabrica-
ção de doces e bolos caseiros e atividades ligadas à educação
ou palestras do MST.
O setor de gênero do assentamento também reproduz es-
sas atividades femininas ao propor suas metas para o assen-
tamento. Ao discutir tópicos que interessam aos assentados,
quase sempre educação e saúde ficam a cargo das mulheres,
enquanto tópicos sobre produção e organização do assenta-
mento ficam designados aos homens. Nas reuniões gerais e de
setores, quase sempre a incumbência do “cafezinho” ou do “al-
moção” é delegada às mulheres. Salvo raras exceções, quando
o movimento encomenda a comida por fora, essas são as ativi-
dades que as mulheres executam.
Percebe-se que as reuniões sobre produção, em princípio,
procuram reverter a precariedade de alimentação dos assen-
tados – mas, numa escala maior, em médio prazo, tem como
objetivo desenvolver o Assentamento Padre Josimo I e II, vi-
sando à introdução da prática da agricultura familiar. Isso
pode ser um aspecto positivo, já que, para a Política Nacional
de Reforma Agrária, há uma relação entre desenvolvimento,
agricultura familiar e gênero, uma vez que tanto a produção
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 153 29/10/2015 16:19:56
como a reprodução são formas de trabalho importantes para o
desenvolvimento da sociedade e suas relações.
Mas, apesar da precariedade citada, é possível perceber que
a participação das mulheres no Assentamento Padre Josimo I
e II a partir da posse e título dos seus lotes garante, sim, um
mínimo de autonomia, que é a permanência na terra, mas não
garante colherem as vitórias emanadas nas lutas diárias no as-
sentamento, ligadas à sua condição de gênero em que vivem as
mulheres por nós pesquisadas.
A realidade está bem próxima da sensação das assentadas,
expressa, principalmente, na fala de Guerreira, ao dizer que
“tem horas que até eu acho que não vamos ter é nada, acho que
aqui deveria ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulhe-
res que não colhem. Mas é na luta que entramos aqui, é nela que
vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratadas direito”.
EM SÍNTESE...
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 154 29/10/2015 16:19:56
intensifica a desigualdade nas relações de gênero no campo.
Essa foi uma das constatações que tivemos em nossa pesquisa,
além da ausência em se discutir tais relações no processo de
posse e título da terra implicando o desenvolvimento.
No Assentamento Padre Josimo I e II, essa prática da dis-
cussão não é feita nem mesmo pelo setor de gênero, que não
consegue ainda conciliar diferentes formas de pensamentos e
de ações das mulheres, discussões essas relacionadas a como
viver no campo. Por consequência, o setor não conseguiu criar,
até o momento, um espaço de discussão sobre as relações de
gênero e sobre as condições das mulheres no assentamento.
Com base em nossas análises, entendemos que cada assen-
tamento deve ter um olhar específico por parte das políticas
públicas advindas dos programas de reforma agrária, pois to-
dos os lócus possuem suas particularidades. No Padre Josimo I
e II, essa particularidade é percebida, principalmente, pela di-
visão interna entre o grupo e entre as mulheres, que, por pos-
suírem procedência, pensamentos e costumes diferentes, tam-
bém reproduzem sobre o assentamento e sobre a terra suas
diferenciações, sua forma de pensar e agir diferente. O ser e o
estar, embora as identifiquem numa posição de subordinação
a papéis ditos femininos, também possuem diferenciações, já
que elas pensam de modo diferente sobre esses papéis.
Essa divisão evidencia que cada grupo de mulheres que
se assenta nesses locais deve ter esses olhares diferenciados.
Num mesmo assentamento, há percepções e perspectivas dife-
rentes sobre a terra e sobre o desenvolvimento nela. No caso
do Assentamento Padre Josimo I e II, essas diferenciações cul-
minaram na divisão de duas áreas internas. Nesse sentido, não
há como desenvolver somente “parte” de um local, nem desen-
volvê-lo deixando à margem uma parcela de pessoas, como é o
caso do assentamento.
Identificamos, com as leituras e com as entrevistas, que ou-
tros fatores também impedem o acesso e o controle da terra às
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 155 29/10/2015 16:19:56
mulheres – entre esses, o discurso de que as mulheres não pos-
suem experiência na agricultura e que elas não têm capacida-
de de administrar seus lotes. Em nossos estudos, percebemos
que a igualdade de gênero na propriedade da terra deve-se a
tradições fortemente arraigadas na família e no Estado, uma
vez que os dois adotam o homem como o principal, senão o
único chefe de família, aquele capaz de administrar o lote e a
produção nele.
Percebemos, pelo processo de divisão dos lotes e das pro-
priedades de terra e comprovadas por meio das entrevistas,
que existe uma preferência dada aos homens – se não a eles,
aos filhos mais velhos no processo de titulação do lote. Anali-
sando o regime de titulação do Incra, pode-se perceber que há
privilégios masculinos no casamento, isto é, uma tendência de
favorecimento dos homens nos programas estatais de distri-
buição de terra, pelo menos nos parâmetros do Incra/TO.
Nas falas das mulheres assentadas no Padre Josimo I e II,
percebemos inúmeros tipos de perspectivas, a maioria delas
ligadas a família (filhos e maridos), mas há também perspec-
tivas em que elas se envolvem visando a obter maior visibi-
lidade, terem melhorias nos seus lotes e até mesmo espaço
para discussão. Essas formas de visibilidades são negadas na
sociedade, já que o Estado destina aos movimentos sociais tal
função. E os movimentos sociais ainda não se atentaram para
essa questão. Contudo, entendemos que essa não é uma função
e nem uma obrigação dos movimentos sociais, e sim uma for-
ma de sensibilização e politização voluntária deles. Mas, para
as mulheres do Assentamento Padre Josimo I e II, é necessá-
rio que essas discussões avancem, deixem de discutir apenas a
terra e passem a discutir as relações sociais sobre a terra, que
passem da questão agrária à questão de gênero.
Um dos pressupostos para isso seria a divisão equitativa da
posse e títulos das terras com base na reforma agrária, uma
vez que a autonomia sobre os lotes dá a mulheres e homens
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 156 29/10/2015 16:19:56
autonomia também sobre suas ações. Não há como ter igual-
dade e equidade entre os gêneros se as formas práticas não
caminham junto às formas discursivas. Nesse sentido, assim
como mencionado pelas assentadas do Padre Josimo I e II, elas
irão continuar plantando, sem ter ainda perspectivas de colher
os frutos dessa igualdade/equidade, ou seja, o desenvolvimen-
to local/regional tão esperado não pode ser construído sob a
tutela de desigualdades de gênero no campo.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 157 29/10/2015 16:19:56
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 158 29/10/2015 16:19:56
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
NO ESTADO DO PARÁ: A EXPERIÊNCIA
DOS SEMINÁRIOS REGIONAIS
Rosana Ribeiro Moraes
INTRODUÇÃO
N
o Brasil, segundo dados dos Objetivos do Desenvolvi-
mento do Milênio (ODM) (2014),24 ainda persistem in-
dicadores negativos quanto à desigualdade das mulhe-
res em relação aos homens. Isso é visibilizado, por exemplo,
no mercado de trabalho e nos rendimentos, na política e nas
práticas recorrentes de violências contra as mulheres. Assim,
o governo brasileiro, por meio da Secretaria de Políticas para
as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) – criada
em 2003 para coordenar e articular políticas públicas na ótica
de gênero e promover a inserção das mulheres na sociedade,
combatendo todas as formas de discriminação e violência –,
tem se mostrado como uma estratégia importante para a re-
dução das desigualdades. Portanto, compreender a dimensão
do que seja desenvolvimento, nessa perspectiva, remete a
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 159 29/10/2015 16:19:56
uma noção de desenvolvimento que vai além de seu sentido
econômico, pois promover políticas que favoreçam as oportu-
nidades e a inclusão de mulheres na ocupação de espaços no
mundo econômico, social e político é uma ação essencial para
a superação das desigualdades de gênero e, por conseguinte,
contribui para o desenvolvimento de países, Estados e regiões.
Tal entendimento leva ao importante debate sobre desen-
volvimento. Numa breve aproximação, cabe destacar que foi
em fins do século 18, na onda da Revolução Industrial, que
correntes dominantes do pensamento econômico passaram a
fazer a relação entre população e desenvolvimento, mas esse
olhar se dava numa perspectiva meramente do desenvolvi-
mento econômico (produção x acumulação de capital). Apenas
com pensadores iluministas como William Godwin (1756-
1836) e Marquês de Condorcet (1743-1794) o desenvolvimen-
to econômico ganha novos olhares, isto é, passa a ser analisa-
do pela ótica da justiça social, da igualdade econômica e com
igualdade entre homens e mulheres. Então, nesse momento,
observa-se uma tênue articulação teórica entre população, de-
senvolvimento e as questões das mulheres. Foram contribui-
ções pioneiras que, posteriormente, não foram incorporadas
pelo pensamento econômico.
Segundo Heilborn et. al. (2010), as questões de gênero são
pontuadas incisivamente, na relação população e desenvolvi-
mento, apenas no século 20, em especial depois do Ano Inter-
nacional da Mulher, em 1975. Posteriormente, em 1994, é re-
alizada a Conferência Internacional sobre População e Desen-
volvimento, na cidade do Cairo, demarcando a necessidade da
equidade entre homens e mulheres na perspectiva de garantia
de direitos e de desenvolvimento humano sustentável. Assim,
afirmam Heilborn et. al. (2010, p. 103):
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 160 29/10/2015 16:19:56
o empoderamento das mulheres ferramenta indispen-
sável para promover o desenvolvimento e a redução
da pobreza. Mulheres com maiores níveis de educação
e participação no mercado de trabalho estão, em geral,
mais capacitadas para contribuir para a saúde e a produ-
tividade de suas famílias e localidades, criando melhores
perspectivas para as novas gerações.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 161 29/10/2015 16:19:56
Quando falamos de sexo nos referimos às diferenças que
a biologia e as ciências médicas estabelecem entre ma-
cho e fêmea, como, por exemplo, o sexo cromossômico,
gonodial, hormonal, anatômico, fisiológico [...]. Quando
falamos de gênero, estamos considerando que os seres
humanos não são unicamente produtos da natureza,
mas também são produtos de uma certa cultura, quan-
do dizemos que alguém é mulher estamos supondo um
sexo; mas também supomos outras coisas: dona de casa,
mãe, sensível, afetiva, má motorista...; quando dizemos
homem, junto ao sexo, atribuímos qualidades como: in-
telectual, racional, inteligente, pouco detalhista. Homem
e mulher são palavras que vão além do âmbito biológico
(SANTIN, 1996, p. 7).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 162 29/10/2015 16:19:56
conclusão: são passíveis de manipulação humana essas cons-
truções sociais que tendem a determinar o lugar de homens
e mulheres na sociedade, pois não são naturais. Isso significa
que a opressão de gênero não é um problema apenas da mu-
lher, mas de toda a sociedade que engendra as relações de po-
der inscritas nas relações sociais entre os corpos sexuados, a
partir das construções de gênero.
Nesse contexto, não há como não referenciar que as desi-
gualdades de gênero se aprofundam quando são olhadas na
perspectiva das desigualdades regionais, em que a implanta-
ção, a implementação e o acesso às políticas públicas se tor-
nam algo bastante difícil diante das realidades e diversidades
espaço-demográficas, populacionais, econômicas e sociais, so-
bretudo, para serem empreendidas com o olhar de gênero.
Confirmando essa tendência, em 2009, o Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa de
Informações Básicas Municipais (MUNIC), realizou um estudo
sobre a gestão da política de gênero nos municípios brasilei-
ros. A constatação, nada surpresa, revelou que existiam no
país, naquele ano, 1.043 municípios com algum tipo de estru-
tura direcionada para a temática de gênero (18,7% do total
dos municípios brasileiros). E, desse total, em pouco mais de
70% desses municípios, a institucionalidade dessa política se
dava por intermédio de alguma secretaria específica de gover-
no. Diz mais o relatório:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 163 29/10/2015 16:19:57
nhando em direção a instâncias mais fortalecidas e com
maiores recursos e possibilidades de ação. Dos municí-
pios com mais de 100.000 habitantes, reduzidos 58,0%
contavam com setores dentro de secretarias temáticas,
16,0% possuíam organismos diretamente vinculados
ao gabinete do prefeito e 15,0% instituíram secretarias
exclusivas [...]. É importante considerar que a existência
de organismos de políticas para mulheres não assegura a
existência de condições adequadas de desenvolvimento
dos trabalhos, o que, por consequência, impacta na re-
duzida possibilidade de articulação com órgãos locais
e de implementação direta de políticas e ações na área.
Em geral, os mecanismos possuem escassez de recursos,
seja financeiro, seja humano ou material (2009, p. 3).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 164 29/10/2015 16:19:57
tão ainda não é prioridade na agenda política de maior parte
dos(as) gestores(as) públicos(as). Assim, o artigo será desen-
volvido em três partes. Num primeiro momento, busca-se situ-
ar o debate das políticas públicas para as mulheres no Brasil e
no Estado do Pará, com a criação dos organismos de políticas
no âmbito nacional e local, compreendendo a missão e os im-
pactos resultantes dessas criações. A seguir, serão apresenta-
das as experiências dos 13 Seminários Regionais de Políticas
para as Mulheres ocorridos nas doze regiões, sendo que a re-
gião de Marajó foi subdividida em dois polos, considerando as
dimensões territoriais (dificuldade de acesso e mobilização).
Esses eventos promoveram um importante processo de
interlocução entre governo e sociedade civil organizada, por
meio dos movimentos de mulheres e suas reivindicações, como
uma estratégia para interiorização das políticas às mulheres
e, consequentemente, corroborando para a promoção do
desenvolvimento regional nessa perspectiva, pois o fruto
desses seminários, em suas proposições às diversas áreas das
políticas públicas, foi impactante à revisão do 1º Plano Estadual
de Políticas para as Mulheres, lançado em 2010 e revisado em
2012. Por fim, será realizada uma análise desses processos,
no intuito de visibilizar os efeitos e os desafios nos cenários
regional e estadual quanto à implementação das políticas na
perspectiva de gênero.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 165 29/10/2015 16:19:57
inegável que os movimentos feministas e de mulheres foram
fundamentais para o processo de mudança legislativa e social
no país, denunciando as desigualdades e propondo políticas
públicas às mulheres nas diversas áreas. A Constituição Fede-
ral (CF) de 1988 – 1º marco jurídico da transição democrática
e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil – foi
fundamental para mudar tais situações, pois garante, entre ou-
tros direitos, o:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 166 29/10/2015 16:19:57
• Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi-
car a Violência contra a Mulher – 1994;
• Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a
Mulher (Beijing/1995) – diagnóstico e políticas para a
promoção e defesa dos direitos humanos das mulheres.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 167 29/10/2015 16:19:57
Forçar o processo de pensar as políticas públicas sob novos
paradigmas foi algo que muito impulsionou os movimentos so-
ciais. Em 1996, o governo federal lançou o I Programa Nacional
dos Direitos Humanos (PNHD) reconhecendo, então, os efeitos
do racismo e do sexismo no país, apontando para a necessi-
dade de se implementarem políticas públicas para os grupos
historicamente excluídos, como mulheres, negros e indígenas.
Na década de 1990, o olhar para a questão da mulher, sob
o enfoque de gênero, ganhou uma dimensão de destaque, e a
academia teve um papel importante nesse cenário, criando-se
vários grupos de estudos em universidades públicas. A noção
de violência contra a mulher é considerada como questão mais
ampla de política de direitos humanos: o Estado precisava de
políticas não só para criar programas de prevenção, atenção
e punição, mas ações que pudessem gerar uma mudança de
tradição cultural, sob o enfoque de gênero.
Entre as muitas conquistas e avanços obtidos, não se pode
negar que a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Pre-
sidência da República (SPM/PR), criada em 1º de janeiro de
2003 com status de Ministério, inaugurou um novo momen-
to da história do Brasil no que se refere à formulação, coor-
denação e articulação de políticas que promovam os direitos
humanos das mulheres e busquem corroborar com o fim da
desigualdade de gênero.
A realização da I Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres (CNPM), em julho de 2004, foi um marco na afir-
mação dos direitos da mulher e mobilizou, por todo o Brasil,
cerca de 120 mil mulheres que participaram diretamente dos
debates e apresentaram as propostas para a elaboração de po-
líticas para as mulheres, visando a enfrentar as desigualdades
de gênero por meio de ações e políticas públicas importantes
que contribuíram em muito para a mudança de cenários desfa-
voráveis à mulher brasileira, entre as quais:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 168 29/10/2015 16:19:57
• 2005: I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM);
• 2005: Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher;
• 2006: Lei Maria da Penha;
• 2007: II PNPM;
• 2007: Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
contra a Mulher.
25 Segundo o site da SPM/PR, até o mês de novembro de 2014, havia sido cadastrados
27 OPMs em nível estadual e cerca de 500 em nível municipal, no país.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 169 29/10/2015 16:19:57
• Formular, coordenar, articular e monitorar/avaliar políti-
cas públicas de proteção, defesa e promoção dos direitos
das mulheres;
• Executar ações de competência da Sejudh relativas à im-
plementação do Plano Estadual de Políticas para as Mu-
lheres, avaliando-o periodicamente;
• Realizar o atendimento às mulheres nos casos de violação
dos direitos humanos, articulando e encaminhando as de-
mandas para a rede de serviços;
• Reaplicar no Estado do Pará o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres, o Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra a Mulher e a Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340);
• Fortalecer o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e o
movimento social de mulheres;
• Fomentar a criação de organismos de políticas para as
mulheres e de conselhos municipais dos direitos da mu-
lher para o avanço das políticas com a participação do
controle social.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 170 29/10/2015 16:19:57
• Implantação e implementação de ações de impacto para
o enfrentamento à violência contra as mulheres no Esta-
do, incluindo criação/reestruturação de serviços como
Delegacias Especializadas, Casas-Abrigo e Centros de
Referência; capacitações de agentes públicos da rede de
atendimento; produção e distribuição de materiais infor-
mativos/educativos; dotação da OPM e do CEDM de me-
lhor infraestrutura, entre outros;
• Implantação e implementação do I Plano Estadual de Po-
líticas para as Mulheres;
• Articulação permanente com a SPM/PR e com os OPMs
do Estado, potencializando a criação desses importantes
mecanismos. No Estado, até junho de 2014, registra-se a
existência de 12 organismos municipais de políticas para
as mulheres como importantes articuladores das políti-
cas às mulheres nos municípios, a saber: Belém, Ananin-
deua, Parauapebas, Goianésia, Breves, Bragança, Barcare-
na, Itupiranga, Anajás, Curionópolis, Jacundá e Tucuruí;
• Realização de ações de impactos (eventos em geral, como
em torno das campanhas do Dia Internacional da Mulher
– 8 de março, e do Dia Internacional pela Não Violência à
Mulher – 25 de novembro);
• Articulação permanente com as secretarias de Estado e
gestores municipais, por meio de várias instâncias, para
potencializar ações e políticas às mulheres, sobretudo
nas áreas de assistência social, educação, geração de em-
prego e renda, combate à violência e acesso à Justiça;
• Realização de conferências (estaduais e regionais/muni-
cipais).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 171 29/10/2015 16:19:57
plantação e implementação de políticas na perspectiva de gê-
nero, a saber:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 172 29/10/2015 16:19:57
lançado no ano de 2010. Esse foi um grande marco na história
do movimento social da gestão pública e das políticas para as
mulheres no Estado do Pará. Essas conferências reuniram cer-
ca de quatro mil mulheres, oriundas de cem municípios, além
de reunir organismos institucionais (estaduais e municipais),
movimentos sociais diversos e instituições de Ensino Superior.
As diretrizes do I PEPM Pará foram definidas na III Confe-
rência Estadual de Políticas, servindo de base para todos os ór-
gãos do Governo do Estado do Pará na elaboração, ampliação e
implementação de políticas para as mulheres, a saber:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 173 29/10/2015 16:19:57
combater a exploração sexual de meninas e adolescentes
e o tráfico de mulheres; fortalecer os direitos humanos
das mulheres em situação de prisão;
• Fortalecer a gestão articulada entre as esferas de governo
para a implementação de políticas públicas para as mu-
lheres com o fortalecimento da CEPDM e o incentivo à
criação de organismos de políticas para as mulheres nos
municípios; e, principalmente, garantir infraestrutura ne-
cessária para o pleno funcionamento do CEDM, a fim de
desenvolver ações com o objetivo de ampliar o número de
conselhos nos municípios, consolidando nos municípios
o exercício do controle social contribuindo na construção
de políticas para as mulheres no Estado.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 174 29/10/2015 16:19:57
Além desses, houve um eixo que tratou sobre a gestão, o
monitoramento e a avaliação do I Plano Estadual, com quatro
prioridades e onze ações. Portanto, esse primeiro plano teve
grande importância na promoção de políticas às mulheres,
sendo um marco regulador, inclusive, para os movimentos de
mulheres. Contudo, houve uma fragilização quanto ao monito-
ramento para se mensurar os reais impactos desse processo
na vida das mulheres como um todo.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 175 29/10/2015 16:19:58
situação foi comprovada baseada na realização desses seminá-
rios regionais, pelos quais se observou incisivamente a ausên-
cia de políticas públicas direcionados à mulher nos vários mu-
nicípios do Estado e que compromete a promoção dos direitos
humanos dessa mulher, além de refletir um desenvolvimento
tardio nas regiões do Estado.
Portanto, embora o I PEPM tenha buscado superar essas
fragilidades, há ainda muitas lacunas que comprometem sua
ideal implementação. Logo, a realidade revela que o desen-
volvimento de políticas públicas na perspectiva de gênero, no
Estado do Pará, deve se dar a partir de um cofinanciamento e
de uma cogestão participativa entre União, Estados e municí-
pios, articulando e pactuando essas políticas públicas com a
sociedade civil organizada, em especial com os movimentos de
mulheres. Por isso, o governo, por intermédio da CPDM, vem
buscando criar estratégias que possam corroborar mais para
a ampliação do acesso às políticas públicas pelas mulheres.
Essas políticas, na perspectiva de gênero, devem considerar o
desenvolvimento sustentável, nas várias dimensões, no meio
rural, na cidade e na floresta, e exigem uma compreensão além
das políticas universais, ou seja, requerem um refletir sobre o
impacto dessas políticas na vida das mulheres.
Nesse cenário, cabe enfatizar que a experiência dos
seminários regionais foi uma estratégia para interiorização
das políticas, considerando os desafios que o Estado tem na
implantação e implementação de política em um território
complexo, vasto e diversificado, recortando os atuais 144
municípios (na época da realização dos seminários eram
143). A ideia que se tinha era de que, antes da realização da
IV Conferência Estadual dos Direitos da Mulher, o governo
precisava reafirmar seu compromisso com a demanda das
mulheres e, por meio da CPDM e do CEDM, conclamou todos
e todas para continuarem no processo de execução de tal
política, avaliando o I PEPM, por meio da IV Conferência, e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 176 29/10/2015 16:19:58
redefinindo os rumos de novas políticas públicas para as
mulheres paraenses.
Nesse sentido, na busca de envolver a sociedade, especial-
mente as mulheres, o governo do Estado realizou os seminá-
rios regionais intitulados: “Políticas Públicas para as Mulheres
no Estado do Pará: com todas as mulheres, por todos os seus
direitos!”, e com o lema: Saúde, combate à violência e não femi-
nização da pobreza. Foram realizados 13 seminários regionais,
pois a região de Marajó foi subdividida em duas pela comple-
xidade demográfica do arquipélago, que é recortado por mui-
tas localidades dispersas. Esses eventos foram realizados pelo
Governo do Estado do Pará, por intermédio da Secretaria de
Estado de Justiça e Direitos Humanos/Coordenadoria Estadual
de Promoção dos Direitos da Mulher, com o apoio do Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher e de gestores municipais, além
do cofinanciamento da SPM/PR (projeto aprovado).
No total, participaram 95 municípios, tendo como sedes os
municípios de: Breves, Santarém, Itaituba, Altamira, Marabá,
Tucuruí, Xinguara, Castanhal, Abaetetuba, Capanema, Para-
gominas, Soure e Belém. O período de realização foi de 11 de
junho a 16 de novembro de 2011, antecedendo a realização
da conferência. Os referidos eventos serviram de preparação
para a IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres,
realizada no mês de outubro de 2011.
Os seminários regionais incentivaram vários municípios,
sobretudo aqueles onde existem OPM e Conselhos Municipais
dos Direitos da Mulher, a promover suas conferências, elegendo
suas delegadas para a conferência estadual. Nessas condições,
houve a participação de centenas de mulheres debatendo, re-
fletindo e propondo quais políticas são necessárias às mulhe-
res, do campo, da cidade, das águas ou das florestas, indepen-
dentemente de classe social, geração, idade, credo religioso,
orientação sexual e raça/etnia, pois, até então, nem sempre era
possível a participação de todas, mesmo nos municípios.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 177 29/10/2015 16:19:58
A Coordenadoria e o Conselho da Mulher participaram de
várias conferências municipais, mesmo ocorrendo os seminá-
rios regionais, principalmente nos maiores municípios, onde
foram discutidos os mesmos temas e eixos, uma vez que se
fez facultativa a presença do município no seminário regional.
Com os seminários se reuniram, em cada polo, aproximada-
mente 200 lideranças do movimento de mulheres/feministas
e outras mulheres, independentemente de cor/raça/etnia,
classe, orientação sexual, religião, geração e local de origem.
Detalhadamente, participaram, além de vários prefeitos(as),
vereadores(as) e demais autoridades municipais e estaduais,
cerca de duas mil mulheres.
O tema dos debates esteve focado no desenvolvimento de
políticas na perspectiva de gênero, com o objetivo de revisar o
I PEPM, fortalecendo-o em sua execução por meio dos eixos bá-
sicos, com destaque ao Enfrentamento à Violência Doméstica
e Familiar; Implementação da Lei Maria da Penha; Autonomia
Econômica e Renda para Mulheres. Além disso, os seminários
serviram para sensibilizar e qualificar gestores(as) municipais
nas temáticas, visando à implantação e à implementação de
políticas públicas integrais e integradas às mulheres.
Entre as temáticas que emergiram durante as discussões,
podem ser citadas algumas que despertaram maior interesse
aos participantes, como:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 178 29/10/2015 16:19:58
no Estado, favorecendo uma rede informatizada para re-
gistro e demonstração de dados;
• Implementar políticas públicas específicas e afirmativas
voltadas às mulheres, com a execução de ações, progra-
mas e projetos com recorte em gênero, objetivando tratar
desigualmente os desiguais, o que requer pleno reconhe-
cimento das necessidades próprias dos diferentes grupos
de mulheres;
• Recomendar aos prefeitos do Estado a criação de organis-
mos de controle social da política para mulheres a fim de
aumentar o número de Conselhos Municipais dos Direi-
tos da Mulher.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 179 29/10/2015 16:19:58
Sob a coordenação da Coordenadoria Estadual de Promo-
ção dos Direitos da Mulher (CPDM) e do Conselho Estadual
dos Direitos da Mulher (CEDM), a IV Conferência foi palco de
um intenso processo democrático, refletindo o anseio de cen-
tenas de mulheres, dos diversos cantos do Estado, por políticas
públicas amplas, eficientes e eficazes, considerando, ainda, um
cenário em que milhares sofrem com discriminações e diver-
sas formas de violências. Organizadas em nove grupos de tra-
balho temáticos, foi possível às mulheres avaliarem o I Plano
Estadual e fazerem as novas proposições para o II Plano nos
próximos quatro anos (2012 a 2015), quando será novamente
posto à avaliação.
Diferente da construção do I PEPM, para o qual se constitui
um GT composto por representações do governo e da socie-
dade civil organizada, além de contar com uma assessoria, re-
sultado de convênio com a SPM/PR, a construção do II PEPM
foi coordenada e sistematizada pela CPDM, como organismo
de políticas que têm tal prerrogativa, segundo orientações da
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da Re-
pública, contando com o apoio de conselheiras do CEDM. Tudo
foi feito em consonância com os princípios da Política Nacional
e as diretrizes da Política Estadual, sendo baseado no modelo
anterior, com ajustes, mas dentro dos mesmos eixos estratégi-
cos de políticas, a saber:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 180 29/10/2015 16:19:58
• Eixo V – Participação das mulheres nos espaços de poder
e decisão;
• Eixo VI – Direito à terra, à moradia digna e à infraestru-
tura social nos meios rural e urbano, considerando as co-
munidades tradicionais;
• Eixo VII – Cultura, comunicação e mídia igualitárias, de-
mocráticas e não discriminatórias;
• Eixo VIII – Enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbo-
fobia;
• Eixo IX – Gestão, monitoramento e avaliação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 181 29/10/2015 16:19:58
forma de Ação de Pequim aprovada na IV Conferência Mundial
sobre a Mulher (2005), a qual incorporou a perspectiva de gê-
nero nas políticas e programas governamentais com ações e
estratégias em áreas como combate à pobreza, educação, saú-
de, enfrentamento à violência, conflitos armados, economia,
espaços de poder e decisão, mídia, meio ambiente, mecanis-
mos institucionais e direitos humanos, entre outras, além de
considerar o importante papel da mulher na economia e rela-
ções de produção para o desenvolvimento do mundo.
Alcançar tal patamar não é algo tão fácil, considerando que
esse processo é recente, datado de poucas décadas, e exige
mudanças de paradigmas e concepções da sociedade como um
todo. Todavia, não há como negar que os movimentos de mu-
lheres são mecanismos de pressão e impulsionam mudanças
importantes nesse processo.
Diante de tal contexto, avalia-se que os momentos dos semi-
nários regionais e das próprias conferências municipais foram
de grande efeito, mesmo diante de tantos desafios e de diver-
gências político-ideológicas. A intenção foi que se avançasse
cada vez mais em prol das políticas públicas, fortalecendo a
sociedade em respeito aos direitos humanos das mulheres pa-
raenses.
Não se chegou ao ideal, mas se pode afirmar que o Estado
do Pará apresenta, sim, um novo momento para as políticas
às mulheres. São ações, programas e serviços que se põem no
centro das políticas públicas em diversas áreas. E, nesse ce-
nário, não se pode negar que as regiões foram ouvidas, am-
pliando as possibilidades para o desenvolvimento econômico,
social e político, mesmo que ainda num processo lento.
O II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres se coloca
como uma referência, e suas ações devem ser implementadas,
também, pela criação de planos municipais para um efeito
mais tangível na vida das mulheres. Para isso, cabe à CPDM
continuar numa profunda articulação e monitoramento das
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 182 29/10/2015 16:19:58
políticas, do mesmo modo que cabe ao conselho estadual fis-
calizar as políticas implementadas e não implementadas.
Portanto, de um modo geral, avalia-se que as públicas para
as mulheres avançaram no Estado do Pará, fortalecendo os di-
reitos humanos, mas ainda há um caminhar longo para que se
possa galgar uma sociedade pautada nos valores da igualdade
de gênero. É preciso que a igualdade de gênero seja parte de
um compromisso não apenas dos governos, em suas três esfe-
ras, e da sociedade civil organizada, mas de toda a sociedade
num grande projeto de cooperação.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 183 29/10/2015 16:19:58
__________. ‘Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos
(Sejudh). Coordenadoria de Promoção dos Direitos da Mulher
(CEPDM)”. I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Be-
lém, 2011.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 184 29/10/2015 16:19:58
PARTE 3
OS LIMITES DO
DESENVOLVIMENTO
NA PERSPECTIVA
DE GÊNERO
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 185 29/10/2015 16:19:58
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 186 29/10/2015 16:19:58
ENTRE ENREDOS, ENCANTOS E
DESENCANTOS: UM ESTUDO SOBRE SAÚDE E
O COTIDIANO DE MULHERES EM CONTEXTOS
DE MUDANÇAS SOCIOAMBIENTAIS
Virginia Caroliny Silva Alexandre
Maria Teresa Nobre
INTRODUÇÃO
E
ste artigo é resultado de um processo longo e intenso de
pesquisa realizada no povoado de Areia Branca, na cha-
mada “Zona de Expansão Urbana” da cidade de Aracaju,
capital do Estado de Sergipe. Foram quase dois anos de acom-
panhamento junto às agentes comunitárias de saúde (ACS),
lotadas na Unidade Básica de Saúde local. Entre visitas domici-
liares e caminhadas pelo povoado, foi possível registrar acon-
tecimentos importantes, que marcam as consequências de um
desenvolvimento urbano voltado aos interesses comerciais e
de especulações imobiliárias. Com isso, as necessidades dos
moradores e a qualidade de vida no povoado, do ponto de vista
de quem mora no local, ficam secundariamente considerados.
O atendimento à saúde e as práticas de cuidados estudados
pelo cotidiano de mulheres constituem o foco deste trabalho.
Iremos analisar mais especificamente o cotidiano de mulheres
e refletir sobre o contexto sócio-histórico em que estão inseri-
das. Durante o trabalho de campo, a movimentação das mulhe-
res pelo povoado foi chamando a atenção: a presença das mu-
lheres nas ruas, na Unidade Básica de Saúde e nas suas casas
direcionou algumas formas de pensar o cotidiano das mulhe-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 187 29/10/2015 16:19:59
res. Diversas formas de resistência foram aparecendo: no pri-
meiro olhar se visualiza somente a “mesmice” e a reprodução
da vitimização e da vulnerabilidade social das mulheres. No
entanto, é nesse mesmo cotidiano que elas reinventam formas
de existir, de se mover perante um modo de vida que insiste
em ser difícil, principalmente para as mulheres.
Aracaju é uma das capitais mais jovens do país, com apenas
159 anos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), em 2012 contava com uma população de
580 mil habitantes. Apesar de ter nascido como uma cidade
planejada, seu crescimento foi paulatinamente perdendo essa
característica, e a expansão urbana foi ocorrendo com graves
impactos ambientais: o aterramento de manguezais e lagoas,
a artificialização dos seus canais naturais, o desmonte de du-
nas, tudo isso acompanhado de condições precárias ou ausen-
tes de drenagem e escoamento sanitário, o que a faz conviver
com graves problemas de inundações em períodos chuvosos
(FRANÇA; RESENDE, 2010).
A “Zona de Expansão Urbana” corresponde ao litoral sul da
cidade de Aracaju, que, além de ser foco do “boom imobiliá-
rio”, é também foco da especulação turística, uma vez que ela
localiza-se entre várias praias e o rio Vaza Barris, que circun-
da grande parte da cidade, numa região de grande beleza. Tal
posição geográfica culminou na construção de hotéis, bares e
restaurantes, a ponte Joel Silveira – ligação viária entre a re-
gião metropolitana da capital ao litoral sul do Estado, além de
ser uma nova rota que torna menor o percurso até a cidade
de Salvador –, o calçadão da praia de Aruana e do Terminal
Hidroviário de Travessia Aracaju/Caueira, a orla Pôr do Sol no
Mosqueiro, dentre outros investimentos com fins de estímulo
ao turismo. Além disso, há uma expansão do mercado imobi-
liário na região, na qual estão sendo construídas mansões de
grandes empresários e políticos, condomínios fechados, mui-
tos loteamentos e novos conjuntos habitacionais, levando ao
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 188 29/10/2015 16:19:59
incremento do comércio e da rede de prestação de serviços
públicos e privados.
O potencial de crescimento urbano, associado ao incentivo
do turismo, para além das perspectivas promissoras de desen-
volvimento e progresso, tem provocado inúmeros problemas
à população local, referentes não só à ocupação do território,
com a expulsão de moradores e pequenos comerciantes de
seus lugares de moradia e trabalho, mas também às mudanças
de modos de vida, subsistência e práticas culturais e comuni-
tárias, incluindo o adoecimento gerado pelas novas configura-
ções urbana e ambiental.
Com aproximadamente seis mil habitantes, a região do po-
voado de Areia Branca – onde foi realizada a pesquisa que deu
origem a este trabalho – também se tornou alvo do crescimen-
to e desenvolvimento da cidade. Com o aumento de investi-
mentos imobiliários e do comércio em geral, a região do povo-
ado passa por mudanças expressivas no cenário local, que por
vezes se apresenta em grandes contrastes: há o aumento de
condomínios fechados em contraste com os sítios dos morado-
res locais; a diminuição da prática pesqueira artesanal ao lado
do incremento da pesca esportiva; maior fluxo de carros com
maior dificuldade de mobilidade dos moradores locais; cresci-
mento da imigração, tanto oriunda de cidades do interior e de
moradores dos bairros mais centrais da cidade para a nova re-
gião quanto de turistas nacionais e internacionais; casas sim-
ples e sem infraestrutura básica ao lado de casas com muros
altos e cerca elétrica, o que dificulta ainda mais o trabalho dos
agentes comunitários de saúde (ACS).
O povoado conta com uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e
um Programa de Saúde da Família (PSF). O trabalho de campo
foi desenvolvido junto às agentes comunitárias de saúde (ACS),
com acompanhamento de visitas domiciliares, andanças pelo
povoado e reuniões na Unidade Básica de Saúde (UBS). Pela
equipe do Programa de Saúde da Família (PSF), foi possível
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 189 29/10/2015 16:19:59
acompanhar o cotidiano da UBS e do povoado, conhecer as fa-
mílias: o meio ambiente e os impactos da degradação ambien-
tal, as práticas de saúde e de resistência, assim como o próprio
funcionamento da Unidade de Saúde e o tipo de assistência
prestada, as hierarquias e relações sociais entre os profissio-
nais e os moradores, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pelos agentes de saúde, acompanhamos práticas cotidianas
do cuidado da saúde que são também constituídas por práti-
cas de resistência ligadas à saúde e à degradação ambiental, as
quais foram sendo observadas na medida em que o trabalho
de campo foi ganhando forma e familiaridade. Essas práticas
dizem respeito ao modo como as pessoas se mobilizam – indi-
vidual ou coletivamente – para enfrentar as mudanças na re-
gião, muitas vezes usando-as ao seu favor, por meio de táticas
cotidianas que “metaformoseiam” o curso dos acontecimen-
tos, no sentido usado por Michel de Certeau (1999).
A pesquisa objetivou analisar aspectos referentes às conse-
quências da degradação ambiental e às diferentes formas de
adoecimentos provocados por esse cenário de transformações
de uma área considerada mais rural, pesqueira e interiorana
para um cenário de crescimento urbano da cidade. Com isso, as
formas de atendimento institucionalizado à saúde, bem como
as práticas locais e culturais de cuidados com a saúde, estão
diretamente relacionadas a esse processo de intensas mudan-
ças. A rotina das famílias, as formas de trabalho, os modos de
adoecer e de produzir saúde, as resistências são atravessados
por esse processo de crescimento urbano.
A PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA
E OS MODOS DE FAZER PESQUISA
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 190 29/10/2015 16:19:59
da produção de um conhecimento que se faz “no caminhar”. Os
imponderáveis, os afetos, os desejos e as crenças estão nesse
emaranhado, e a perspectiva etnográfica nos permite pensar
e conviver, nos deixar afetar pelo campo, nos relacionar, “nos
contaminar” pelas práticas e sermos ao mesmo tempo prati-
cantes (CERTEAU, 1999).
Deixar o campo de pesquisa nos guiar e “gastar” tempo no
campo requer um rigor diferente, de outras dimensões: a di-
mensão da “impregnação” e do “distanciamento”, como observa
Laplantine (2007). A impregnação seria um convívio assíduo,
de encontros e experiências, enquanto o distanciamento seria
um afastamento, um momento de pensar sobre tais encontros
e experiências vividas entre o pesquisador e o seu objeto, “so-
bre o que lhes escapa e só pode lhes escapar” (LAPLANTINE,
2007, p. 183). Essas noções de impregnação e distanciamento
estão, não necessariamente, remetidas a uma separação, mas
serve para perceber que na pesquisa há inevitavelmente essa
afetação pelo objeto de estudo.
O que Laplantine chama de distanciamento é uma valori-
zação do momento de pensar sobre os acontecimentos, sobre
o processo de pesquisa e sobre o que não pode ser controla-
do e premeditado para ser analisado. Para esse autor, a “busca
etnográfica” tem algo de errante, “as tentativas abordadas, os
erros cometidos no campo, constituem informações que o pes-
quisador deve levar em conta, bem como o encontro que surge
frequentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quan-
do não esperávamos” (LAPLANTINE, 2007, p. 151).
As pesquisas de inspiração etnográfica possibilitam uma re-
lação com o que Malinowski chamou de “os imponderáveis da
vida real”, ou seja, os detalhes da vida cotidiana, as rotinas, o
comum, o corriqueiro, os cuidados, os laços de simpatia ou aver-
sões, enfim, os modos de viver, que escapam à previsão e ao con-
trole. “Então, a carne e o sangue da vida nativa real preenchem
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 191 29/10/2015 16:19:59
o esqueleto vazio das construções abstratas” (MALINOWSKI,
1978, p. 19).
Dessa maneira, esta pesquisa tenta olhar por meio de
um ângulo em que as potencialidades das mulheres sejam
ressaltadas e valorizadas em meio às vulnerabilidades e
vitimizações que sofrem constantemente. Para isso, Michel de
Certeau (1999) nos ajuda e expressa esse modo de olhar as
mulheres que contribuem para a desnaturalização da noção
de fragilidade, docilidade e impotência dos atores sociais,
criado pelo discurso do Estado capitalista e reproduzido
cotidianamente. Esse autor destaca que “o cotidiano se inventa
com mil maneiras de caça não autorizada”. Analisando as
práticas, as “maneiras de fazer”, uma arte de combinar e utilizar,
Certeau faz um estudo sobre as “estratégias e táticas”, onde
não há ideia de passividade. Ao contrário, ressalta as práticas
cotidianas e as “astúcias” no relacionamento com o poder
coercitivo e com os padrões unificadores de “normalidades”. O
trabalho de Certeau permite “olhar” as formas de resistências
e desconstruir a ideia de legitimação e adesão total por parte
dos atores sociais, de um modelo de sociedade regulador e
homogeinizante.
As mulheres de Areia Branca nos permitem pensar por esse
viés de análise. Nos entremeios das irrisórias práticas cotidia-
nas existem mecanismos de movimentação criados pelas mu-
lheres os quais as fazem criar estratégias e táticas de sobrevi-
vência e busca por melhores condições de vida.
Neste trabalho, utilizaremos alguns enredos ou fragmentos
de histórias de vida das mulheres para costurar a análise so-
bre o seu cotidiano e sobre o cuidado com a saúde em meio às
transformações socioambientais que o povoado de Areia Bran-
ca vem passando com o processo de crescimento da cidade de
Aracaju.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 192 29/10/2015 16:19:59
ENTRE MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 193 29/10/2015 16:19:59
mento básico, o crescimento desordenado das casas e condo-
mínios, o aumento do lixo nas ruas com a coleta irregular, as
grandes chuvaradas que inundam casas e ruas, a poluição das
praias, o desemprego e subemprego, a violência e a drogadi-
ção, a perda das antigas tradições, a vulnerabilidade de crian-
ças, adolescentes e jovens diante das novas condições de vida
e dos “perigos” que elas comportam, a mudança na lida das
mulheres etc. Esse quadro também tem produzido muitos im-
pactos na saúde das pessoas, com muitos adoecimentos físicos
e sofrimentos psíquicos, produzindo um crescimento das de-
mandas na unidade de saúde.
Certa vez, visitamos uma casa logo cedo, pela manhã. As
crianças ainda estavam de pijamas, esperando para tomar o
café que sua mãe preparava. O pai já havia saido para o traba-
lho. A agente de saúde começou por essa casa por ser de mora-
dores mais conhecidos e que não se importariam com o horá-
rio precoce da visita.27 Nessa família, a mãe contou que passou
muito tempo levando a filha de hospital em hospital, por um
problema sério no coração. A criança já está bem, se recuperou
rápido. As duas filhas de uns seis e oito anos pareciam ser boas
companheiras na lida cotidiana de sua mãe. A preocupação
maior foi aparecendo quando a agente comunitária de saúde
(ACS) fez a pergunta: “E ele... como está?”. Uma pergunta que
mereceu outra performance vocal e corporal para disfarçar a
preocupação perante as filhas: “...daquele mesmo jeito...”. A vi-
sita foi rápida, teríamos de ver muitas famílias naquela manhã.
O sol forte nos fazia andar rápido entre uma sombra e outra.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 194 29/10/2015 16:19:59
O esposo de Bia, como é chamada, sofre de forte depressão,
segundo a agente de saúde. Não sabem o porquê dessa doença,
mas Bia tem um palpite: ela pensa que é por causa do trabalho,
“ele não gosta do que faz como porteiro, [...] ele gosta mesmo é
de pescar, quando ele pesca, ele fica outra pessoa, muito melhor
[...]”. As novas condições de trabalho no povoado impedem que
consigam viver somente com a renda da pescaria. Com isso, os
novos tipos de trabalho acessíveis para os moradores são de
porteiro nos residenciais próximos ao povoado, de pedreiro e
pintor, de motorista, serviços gerais etc. – atividades estas que
diferem muito da rotina de quem era acostumado a viver da
pescaria. Dentre muitas histórias de descontentamento com o
trabalho, esse é um exemplo típico de um novo tipo de adoe-
cimento disfarçado: o sofrimento psíquico lento e traiçoeiro,
muitas vezes invisível por estar ligado à mudança de modos
de vida que já não são valorizados ou não encontram lugar na
dinâmica das relações econômicas atuais.
Assim como seu marido, Bia também teria fortes motivos
para ficar depressiva. Uma mulher se sentindo sozinha, lutan-
do pela saúde de suas filhas, por um trabalho e cuidando de
um esposo doente. Ela possui táticas de enfrentamento para
driblar as dificuldades financeiras e de saúde, tenta diaria-
mente reinventar um modo de vida que garanta a saúde de
suas filhas, o teto onde moram e o alimento que consomem.
Talvez esse cuidado seja o sentido maior que Bia possui como
engrenagem no seu recomeço diário.
O trabalho das mulheres no povoado prevalece no âmbito
doméstico: babá, faxineira, empregada em “casa de família”.
Durante nossas caminhadas e conversas, percebemos que
muitas mulheres participam da atividade pesqueira, como ma-
risqueiras. A pescaria ainda é muito praticada entre as mulhe-
res, mas parece ser uma prática pouco avistada. Vimos alguns
grupos de mulheres indo e retornando da pescaria, com baldes
e redes nas mãos.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 195 29/10/2015 16:19:59
Conhecemos dona Ceiça, já abordada anteriormente por
outro pesquisador da nossa equipe durante suas andanças
pelo povoado. Ele nos contou que viu dona Ceiça limpando
o peixe e alguns crustáceos na rua, em frente à casa dela. Ela
mesma pesca, limpa e vende. Muitas vezes já tem comprador
certo. Ele, para esticar a conversa, comprou alguns crustáceos.
Dona Ceiça é uma mulher alta, magra, vaidosa, com as unhas
pintadas e ajeitando sempre seu cabelo. Com os seus poucos
dentes, nos acolheu com um sorriso tímido. Depois de muita
conversa, perguntamos se ela nos levaria um dia desses em
suas pescarias, e ela disse que sim, que era só marcar.
Ao comentar com as agentes de saúde que estava planejan-
do pescar com dona Ceiça, elas ficaram surpresas e disseram:
“Sua louca... a pesca de Ceiça é pesada”. Com isso, elas queriam
dizer que dona Ceiça pescava para além do mangue e da beira
do rio, prática não muito comum entre as mulheres pescadoras.
Talvez para dona Ceiça esse movimento de progresso e cres-
cimento urbano ainda não lhe tenha afetado totalmente a pon-
to de mudar sua prática de trabalho. Talvez ela esteja fazendo
um uso desse processo a seu favor para assim vender mais o
seu peixe. Ela é uma das poucas mulheres que não deixaram de
pescar e viver da pescaria para trabalhar em casa de família ou
em outro trabalho no “centro da cidade”.
Dona Ceiça nos faz lembrar o estudo de Martins (2009) so-
bre as mulheres “narradoras de Itaoca” (RJ), o qual, a partir do
trabalho de campo junto às rodas de “descarnadeiras de siri”,
traz algumas reflexões a respeito do trabalho de homens e mu-
lheres na atividade pesqueira. Para essa pesquisadora, “o tra-
balho das mulheres, por exemplo, obedece a um tempo duplo
– dividido entre o cuidar da casa e ‘esperar o peixe’”. Sobre as
práticas de trabalho, essa mesma autora ressalta que “o papel
da mulher é marcado pela hierarquia mar versus terra, definin-
do as tarefas e o território” (MARTINS, 2009, p. 250-1).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 196 29/10/2015 16:19:59
No campo de pesquisa, percebe-se que as mulheres não se
reconhecem e nem são reconhecidas como pescadoras: o mar
é para os homens e as atividades que restam às mulheres são
complementares, como consertar as redes, a pesca de maris-
cos, caranguejos e outros crustáceos. São atividades que não
necessitam navegar o “mar adentro”, pois essa é considerada
uma tarefa masculina.
Em algumas famílias, a pesca parecia ser a principal ativida-
de de sustento, o que está ficando mais raro nos dias de hoje.
Segundo alguns moradores, “o rio não dá mais o peixe que
dava antes”, pois pescavam mais e sobrava para vender nas re-
dondezas. Nas ruas encontram-se marcas da pesca, como algu-
mas canoas e tarrafas estendidas na varanda. Algumas vezes,
durante as visitas, passamos por homens e mulheres que vol-
tavam da pescaria, sem muitos peixes em seus baldes, e com
suas redes já arrumadas e realinhadas. Mesmo com a diminui-
ção dessa prática, ela ainda deixa suas marcas, pois pensar na
diminuição da pescaria é pensar nas mudanças socioambien-
tais que têm consequências para o cotidiano das famílias.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 197 29/10/2015 16:19:59
Conhecemos duas irmãs, “moças”, estudantes, diferentes e
inseparáveis. Suas vidas estão envolvidas em estudar para “ter
uma vida melhor e ser alguém na vida”. Suas atividades resu-
mem-se em ir à escola, estudar em casa e ajudar sua mãe nas
tarefas domésticas. Moram em um terreno compartilhado en-
tre alguns familiares, tendo cada família a sua casa. As conver-
sas foram inspiradas sobre “o estudar”, as dificuldades no colé-
gio, o vestibular e as escassas formas de diversão no povoado,
ou sobre as que existem, mas que não podem ser frequentadas
por elas. A mais velha tem 18 anos, e a mais nova, 16.
Lamentam que seu colégio “não é forte”. Estudam em outro
bairro da capital, pois no povoado não tem “segundo grau”. A
internet chega muito lenta, e os professores não conseguem
dar conta das imensas turmas e de alunos “irresponsáveis e
desinteressados, que acabam prejudicando quem quer apren-
der e passar no vestibular”, disse uma delas. A elas resta estu-
dar por “conta própria”, sentar na primeira cadeira para mos-
trar interesse ao professor, “lá atrás não se ouve nada o que o
professor explica... e isso quando ele não desiste de falar por-
que ninguém presta atenção!”.
No povoado, suas diversões estão relacionadas a passear
com a família, visitar amigas, fazer uma caminhada antes de
escurecer. As “danceterias”, barezinhos do povoado, “moça de
família não frequenta..., fica mal falada... como minha família
vai me apoiar nos estudos se fico mal falada?”.
Para muitos pais, a vizinhança serve de escudo protetor das
filhas para que não corram o risco de arrumar namorado cedo
e desistir de estudar. Citam exemplos de meninas que frequen-
taram a danceteria e “engravidaram cedo e agora não podem
mais estudar, agora têm que sustentar e cuidar do filho”. As
“meninas-moças” do povoado também não podem passar no
posto de saúde e pegar preservativos gratuitamente. Há uma
vigilância que “paira no ar”, pois se pegarem os preservativos
todos saberão que não é mais “moça”, e resta articular com al-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 198 29/10/2015 16:19:59
guém mais velho para que lhes distribua, “mas isso é pras mais
ousadas, que arriscam mais...”.
A necessidade de se “resguardar” para obter respeito, não
sair depois que escurece e nem frequentar locais considera-
dos inapropriados para “moças” se torna parte do cotidiano de
mulheres mais jovens e solteiras, que buscam uma vida “inde-
pendente” pelos “estudos” ou uma “ficha limpa” na vizinhança
caso queiram arranjar um marido, “um bom partido”. O cui-
dado para que as moças da vizinhança se “comportem e não
fiquem mal faladas” faz parte do cotidiano de suas mães.
Em A história da vida privada, Michelle Perrot descreve os
processos de vizinhança, do período da Revolução Francesa à
Primeira Guerra, no qual “os vizinhos estabelecem um código
de decência da casa e da rua” (PERROT, 2009, p. 161). As refle-
xões dessa autora sobre o cotidiano de cidades nesse período
nos faz pensar sobre as formas como as relações sociais e de
vizinhança estabelecem códigos e criam imagens que podem
determinar o futuro das “meninas-moças”, suas ações e táticas
para compor seu cotidiano e garantir uma “vida melhor”. “O
olhar da vizinhança pesa sobre a vida privada de cada um e o
que dela aflora: O que dirão? A desaprovação, a tolerância, a
indulgência dos vizinhos tem a força dos Dez Mandamentos”
(PERROT, 2009, p. 161).
O trabalho das mulheres de Areia Branca está diretamente
ligado à prática do cuidado. Quando não possuem familiares
para cuidar dos filhos, elas encontram dificuldades em manter
uma atividade fora de casa, que gere remuneração. Muitas mu-
lheres relataram que gostariam de ter alguma atividade que
contribuísse financeiramente com as despesas da casa e que
com isso viabilizariam mais facilmente uma possível indepen-
dência financeira perante os maridos. Mesmo as mulheres ten-
do relatado que não trabalham “fora de casa”, com o passar dos
dias e das conversas, percebe-se que elas encontram maneiras
de ter uma renda extra, às vezes entre elas mesmas, sem mui-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 199 29/10/2015 16:19:59
to considerar essa atividade como um trabalho. Por exemplo,
algumas vendem roupas nas casas, bijouterias, artigos de catá-
logos por encomendas etc. Nessa prática, as mulheres fortale-
cem uma rede de apoio entre elas, dividem as dificuldades e as
estratégias de negócios.
Pelas ruas, passam mulheres com seus filhos na garupa ou
no quadro da bicicleta; a pé e de mãos dadas com seus filhos.
Passam por nós, conversam com a agente de saúde e dizem
aonde estão indo: levar o filho no posto de saúde, fazer uma
entrega, uma cobrança, mostrar as novidades que estão ven-
dendo, um catálogo novo que chegou... Levam recados, trocam
“iguarias”, uma receita, uma novidade e, muitas vezes, uma
tristeza...
As mulheres inventam essas práticas de cuidado, cotidia-
namente. Uma rede que se compõe como campo de força às
intempéries da vida. Nesse cenário, essa composição é um
processo de ambulante. As mulheres recorrem a parentes, vi-
zinhos, migram, passam tempo fora com os filhos para tratar
de alguma doença ou para um exame médico no outro lado da
cidade. Isso tudo para se desviarem da desistência e da aceita-
ção de um modo de vida que insiste em ser difícil.
Dona Nair é uma senhora moradora do povoado há muitos
anos. Ela tem uma vida simples. Está construindo, aos poucos,
uma casa nova no mesmo terreno onde mora. Além de sua casa
atual e a que está construíndo, tem uma outra casa, de outros
familiares. Dona Nair vai à Unidade de Saúde frequentemen-
te. Conversamos com ela algumas vezes em que esteve por lá.
Seu esposo vivia da pescaria e hoje é aposentado. As dificulda-
des financeiras e os adoecimentos decorrentes da idade mais
avançada não aparentam ser o motivo do semblante triste e
quieto de dona Nair. Ela não teve filhos, criou todos os filhos de
seu esposo, que enviuvou cedo, uns ainda bem pequenos.
Seu Nelson e dona Nair formam um casal com história ins-
tigante e ao mesmo tempo incomum. Eles estão casados há
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 200 29/10/2015 16:20:00
uns 30 anos, mas, como já dito, não tiveram filhos juntos. Seu
Nelson não gosta de ir ao médico e nem de tomar remédios,
principalmente depois que um médico afirmou que ele caiu
por causa da cachaça, e ele disse: “Eu nem bebo”. Dona Nair
também comentou que ele não bebe e que não gostou quando
o médico falou: “Velho que bebe dá nisso, cai”.
Seu Nelson estava na varanda, sentado em uma cadeira de
plástico branca, ao lado da casa. Ainda na varanda havia um
banco de madeira já bastante usado e uma cadeira de balanço
mais antiga. Ele começou a contar suas histórias, de quando
se acidentou e machucou a perna, mas que conseguiu se re-
cuperar bem. Comentou também que costumava pescar e que
pegava muito peixe, geralmente para consumo próprio, mas
sempre sobrava e então vendia ou trocava por carne.
Da janela avistei uma mesa pequena na sala, com dois tipos
de chapéus sobre ela, prontos para quando sair; de certo, cada
um serve para ocasiões diferentes. Ele puxou conversa, come-
çou a falar de sua outra esposa, com quem teve seus filhos e que
faleceu havia uns 30 anos. Ele convidou para entrar e mostrou
a foto dela no quadro. Um quadro antigo, daqueles feitos por
“viajantes” que passavam nas casas antigamente, oferecendo
esse serviço. É uma pintura de fotos estilo três por quatro, de
cada um, colocadas uma ao lado da outra, formando o casal.
A moldura do quadro é de ferro, trabalhada em formatos de
flores. Fiquei na varanda de frente para a porta e ele dizendo
que ainda sente muita falta de sua esposa, que às vezes passa a
mão na cama, no lugar dela, e gostaria que ela ainda estivesse
ali. Ele olhava para o quadro e acariciava. Um coração saudoso,
de um amor sem igual. Dona Nair ficou do lado de fora, quieta,
com a mão na boca e olhando para o chão, seu lenço na cabeça
cobrindo seus cabelos brancos mexia com o vento e seu olhar
não parava de fitar o chão.
Com isso, podemos pensar que a construção social da mas-
culinidade marca traços violentos nos homens, que também
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 201 29/10/2015 16:20:00
passam por preconceitos e sofrimentos, tendo muitas vezes
que esconder sentimentos para afirmar-se como homens. No
entanto, seu Nelson desconstrói esse modelo de “masculini-
dade” e demonstra um amor raro, que, mesmo depois de 30
anos e de ter casado novamente, não faz esquecer sua antiga
companheira.
Ficamos inquietas para conversar com dona Nair, peque-
ninha, de cabelos brancos e lenço na cabeça, rugas marcam o
tempo vivido em seu rosto. Por que será que ela não teve fi-
lhos? Como será essa relação do casal, tendo ela que viver com
o amor saudoso de seu Nelson? Foi ela quem criou os filhos de
seu Nelson desde pequenos, depois que sua primeira esposa
faleceu... Não voltamos para conversar com dona Nair, outros
acontecimentos foram tomando espaços no processo de pes-
quisa. Mesmo assim, podemos pensar sobre este enredo “bre-
ve”, mas com uma grande profundidade, principalmente sobre
o cotidiano de dona Nair em cuidar dos filhos de seu Nelson:
talvez ela tenha feito isso também por um grande amor.
Dona Nair está construindo uma nova casa em frente à sua
atual, a casa ainda no salpicado do cimento; ela se encosta na
porta e olha para seu Nelson na varanda de sua outra casa. Te-
mos essa foto registrada. Um olhar que sente algo, que diz uma
história, que revela uma esperança, de quem sabe um dia tam-
bém ser amada. A nova casa, “só sua”, parece ser uma forma
de resistência/re-existência de dona Nair: a construção de um
espaço próprio, que diz de um não assujeitamento. É um gesto
firme, porém discreto, que não faz alarde, após toda uma vida
de dedicação ao esposo e aos filhos dele, que ela mesma criou.
Em muitas outras casas que visitamos, percebe-se que há,
de uma forma ou de outra, um conflito entre os cuidados com a
saúde impostos pelo atendimento biomédico e os cuidados dos
moradores e as formas como lidam com tais imposições. Dona
Nair insiste que seu companheiro vá às consultas regularmen-
te. Do contrário, será ela quem vai ter de cuidar das dores e
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 202 29/10/2015 16:20:00
arrumar remédios pela vizinhança para cuidar de seu Nelson.
Para dona Nair, fazer com que seu Nelson vá ao médico é re-
tirar um pouco do peso da responsabilidade de ter cuidar da
saúde de seu companheiro, além dos filhos e da própria saúde.
Um outro enredo que nos diz sobre o cotidiano de mulheres
e a prática do cuidado é o de dona Moça. Apesar de o nome
lembrar jovialidade, dona Moça está com os seus 91 anos. Aca-
mada, já não abre seus olhos, nem fecha sua boca para molhar-
-lhe de saliva. Seus dentes ficam escondidos por trás da fina ca-
mada dos seus lábios rígidos, sem expressar um sorriso, nem
sua dor. Seu corpo querendo morrer, penalizando de velhice, já
cansado de lidar.
A casa era grande, bem arejada. Na sala cinco mulheres, vi-
zinhas e filhas estavam conversando, cuidando e, de certa for-
ma, “velando” o penar de dona Moça, que está à espera “da sua
hora”. Quando chegamos com a agente de saúde, pensaram que
éramos enfermeiras. Elas estavam esperando uma visita de al-
guém da Unidade de Saúde havia alguns dias. Comentaram, de-
pois, que, como não éramos enfermeiras, “não poderiam dizer
nada” ou avaliar o “quadro” de saúde de dona Moça.
É fato que todos sabiam que não restava mais nada a fazer,
mas a esperança e os procedimentos de cuidar de quem está
acamado refletem a vontade de extinguir o sofrimento. Uma
“cura” para dona Moça, infelizmente, a humanidade não possui.
A morte faz parte da vida, e esse é um assunto que mexe com
os sentimentos humanos e que difere entre crenças religiosas,
ou para quem não as tem. O que a morte vem representar em
nossa sociedade é um assunto interessante e polêmico. Sabe-
mos que vamos morrer um dia, mas nunca estamos prepara-
dos. A morte provoca muito medo e insegurança. Certamente
esse assunto não é nosso foco, mas são questões que aparecem
no trabalho, e que ficam difíceis de serem varridas.
Há, nos dias de hoje, uma luta incansável, investimentos e
especulações em driblar o envelhecimento, cirurgias plásticas,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 203 29/10/2015 16:20:00
cosméticos, remédios que prometem rejuvenescimento das
células... O envelhecimento é (e sempre será) parte de nossa
maneira de viver, tanto aceitando-o quanto rejeitando-o
incansavelmente. No contexto de dona Moça, sua maneira de
viver estava relacionada a mais uma aceitação do que rejeição de
seu processo de envelhecimento: o que não parecia aceitar é sua
morte lenta e penosa. Seu viver estava chegando ao fim, assim
como seu processo de morrer também. Sua pele pálida, enrolada
em lençóis brancos, suas rugas e expressões de sofrimento,
quarto fechado e seus resmungos são o que sobressaem de
lembrança desse processo. Como teria sido a história de dona
Moça? O que sofreu, o que lhe alegrou? Isso poderemos saber
por outros, mas não mais por ela mesma. O que as mulheres
presentes estavam fazendo era esperar que dona Moça desse
seu último suspiro e terminasse seu sofrimento.
A situação de dona Moça mexeu com as mulheres. Deixa-
ram suas rotinas nesse dia para confortar, apoiar e retribuir os
cuidados que circulam entre elas. Era a hora de se dispor para
dona Moça e seus familiares, “pode ser que precisem de algu-
ma coisa neste momento...”, dizia uma das mulheres. As mu-
lheres passaram a conversar sobre dona Moça, o que gostava
de fazer, relembrando alguns dos seus momentos, lamentando
sua futura ausência com uma certa aceitação, respeito e amor.
Em Escritos sobre a medicina, Georges Canguilhem (2005,
p. 25) comenta sobre as doenças e a saúde, e afirma que “o
sofrimento, a redução de uma atividade habitual escolhida ou
obrigada, o enfraquecimento orgânico, a degradação mental,
são constitutivos de um estado de mal”. E que tais característi-
cas desse mal “não são por si mesmo os atributos específicos
do que o médico hoje identifica como doença no exato momen-
to em que ele se esforça para fazer cessar o mal ou somente
atenuá-lo”.
Canguilhem discute a saúde em termos filosóficos. As ma-
neiras de pensar a saúde também mudaram conforme as
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 204 29/10/2015 16:20:00
transformações sociais, econômicas e culturais foram ocor-
rendo. Comenta que “a ampliação histórica do espaço no qual
se exerce o controle administrativo da saúde dos indivíduos
desembocou, nos dias de hoje, em uma Organização Mundial
da Saúde” (CANGUILHEM, 2005, p. 43), que também elaborou
uma definição de saúde para poder delimitar seu domínio de
intervenção. Eis a famosa definição: “A Saúde é um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo so-
mente na ausência de enfermidade ou doença”.
De acordo com as inúmeras e diversas definições, as dimen-
sões que englobam as possibilidades de uma vida saudável es-
tão sendo consideradas legalmente, embora o estado de com-
pletude apregoado seja inatingível. No entanto, as formas de
reinventar as maneiras de viver perante o modo de sociedade
atual, os imponderáveis e as ações humanas ficam de certa for-
ma desconsiderados, em atrito com uma forma de dominação
da biomedicina operante nos corpos ditos “enfermos” e nos di-
tos “saudáveis”, determinando as condições de vida, as formas
de adoecimentos e os modos de tratá-los.
A história mostra que não faltam definições de saúde. Das
mais completas e bem elaboradas às mais toscas e reducionis-
tas, a saúde continua sendo atravessada por inúmeros fatores
que diferem, dependendo do contexto social e cultural, assim
como também de momentos político-econômicos e de crises
financeiras. A questão que este trabalho propõe é pensar a
saúde em suas dimensões mais corriqueiras, momentâneas ou
duradouras, onde o andar do cotidiano, as mudanças de um
dia para o outro fazem esse cuidado da saúde mudar de vez
em quando.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 205 29/10/2015 16:20:00
MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO CUIDADO: AS
MULHERES ENTRE A (DES)VITIMIZAÇÃO
E A PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 206 29/10/2015 16:20:00
mulheres, que as põe em situações de submissão e inferiori-
dade perante os homens. Marcela Lagarde (1997) diz que as
mulheres são “seres para os outros”, deixam sempre em se-
gundo plano as questões de realização pessoal. Afirma que a
maternidade é considerada como algo natural, como experi-
ência vital básica de todas as mulheres, “como centro positivo
de sua feminilidade e de sua ‘natureza’” (LAGARDE, 1997, p.
189). Neste trabalho, é importante considerar essas noções de
cuidado dentro da teoria feminista para trazer problematiza-
ções em relação ao campo de pesquisa estudado. Como essa
noção de care estaria presente no cotidiano das mulheres? Que
tipo de relação encontramos entre esse cuidado e as práticas
de saúde?
Susan Sherwin (1998), ao contrário, analisa a prática do
cuidado como instrumento potencializador das mulheres.
Essa autora afirma que, enquanto várias análises consideram
as mulheres como vítimas da opressão, elas mesmas não se
veem como meras vítimas, como passivas e insignificantes.
Mesmo dentro de um cenário opressor, as mulheres encon-
tram possibilidades de resistir e desafiar as forças que as
oprimem (SHERWIN, 1998, p. 3).
Sherwin faz uma importante observação: ela acredita que
os serviços de saúde têm grande potencial, tanto para apro-
fundar ou aliviar as formas de opressão como também para
piorar ou aliviar problemas de saúde específicos. Além disso,
Sherwin enfatiza que a biomedicina ignora o valor que a con-
tribuição das práticas “não médicas” têm a oferecer ao siste-
ma de saúde. E conclui que a medicina vem contribuindo em
muitos aspectos na “perpetuação” da opressão das mulheres
(SHERWIN, 1998, p. 4).
Anne-Marie Sohn (1991), em seu texto “Entre Duas Guer-
ras: os papéis femininos em França e na Inglaterra”, fala sobre
a “mãe e a Garçonne”, no qual relembra questões históricas
marcantes sobre os papéis que eram (e ainda são) atribuídos
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 207 29/10/2015 16:20:00
às mulheres ao longo dos anos na França e na Inglaterra no pe-
ríodo entre as duas guerras. O século 19 foi marcado por mui-
tas transformações,e uma delas foi a luta contra a mortalidade
infantil. Com isso, o discurso médico reforçou a pressão a favor
da mulher no lar, “culpabilizar as mães, e depois educá-las e
transformá-las em auxiliares do médico” (SOHN, 1991, p. 118).
Com isso, as novas responsabilidades que os médicos investem
nas mulheres passam a dificultar ainda mais a realização do
trabalho fora de casa. As mulheres que não podiam dispor de
tempo integral para a família eram vistas como “mães desna-
turadas”. O cenário era composto com o trabalho das mulheres
fora do lar. Na França e na Inglaterra, as mulheres tinham uma
profissão, ou, quando não, trabalhavam como operárias. O re-
torno da mulher ao lar levantou questões históricas que volta-
ram a demarcar espaços e responsabilidades entre homens e
mulheres – como, por exemplo, os espaços públicos, que pas-
saram a ser mais dos homens; e o espaço privado do lar, que
passou a pertencer mais às mulheres.
A relação do público versus privado repercute grandes
discussões no que se refere às mulheres. Historicamente, o
espaço privado vem sendo destinado como espaço exclusivo
das mulheres e o espaço público como sendo dos homens. No
entanto, a história não se dá dessa forma linear e definida. Se-
gundo Perrot (2005, p. 462), “certamente nem todo o público
é masculino no espaço da cidade onde circulam as mulheres”.
As donas de casa, segundo Perrot, tinham um tempo de tra-
balho considerável, pois a sociedade do século 19 não poderia
crescer e se reproduzir sem esse trabalho não contabilizado e
não remunerado da dona de casa. Os recursos monetários da
dona de casa provêm especialmente de atividades do setor de
serviços, como faxina, lavagem de roupas, entregas; e também
pequenos comércios e vendas em domicílio, atividades que re-
alizam carregando as crianças, ou deixando estas nas vilas e
pátios brincando com as demais crianças da vizinhança. Nes-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 208 29/10/2015 16:20:00
sa época, as crianças ocupavam mais o espaço das ruas e brin-
cavam mais em conjunto enquanto as mães trabalhavam. Isso
constitui também numa ruptura na utilização do espaço, onde a
dona de casa tenta manter esse papel monetário que desempe-
nhou na sociedade tradicional, que é trazer dinheiro para casa.
Segundo Perrot (2006), a dona de casa de alguma forma se
desdobra na cidade do século 19. A maioria das tarefas implica
deslocamentos. A autora faz um estudo mais aprofundado so-
bre os “usos do espaço” e ressalta as diferenças de que o que
vale para a “mulher do povo” não vale para a “mulher burgue-
sa”. No que se refere aos níveis de classe, os usos sociais da
cidade se diferenciam claramente. As mulheres burguesas têm
um modo de circulação mais “rígido”, uma regulação mais forte
da relação interno/externo, pois constituem modelos de como
a mulher “deve ser”, onde o espaço privado está mais isolado
e valorizado.
No decorrer de nossas andanças pelo povoado, percebe-se
que as mulheres são atrizes importantes por terem uma liga-
ção a mais com o “cuidado da vida”. Ressaltamos as mulheres
por estarem mais presentes quando visitamos as famílias com
os agentes de saúde. Nas visitas são as mulheres, na maioria
das vezes, que ficam em casa, na lida dos afazeres domésticos
e no cuidado dos filhos.
Algumas histórias de mulheres nos chamam a atenção. Elas
se tornam imagens descritas, provocativas e instigantes sobre
o cotidiano de mulheres que ainda dedicam suas vidas ao cui-
dado dos filhos, da casa e do esposo. Como é a história de dona
Jovita. Uma senhora de aproximadamente 60 anos, casada com
seu Altran. Eles moram na rua principal do povoado, em uma
casa azul de frente para a rua alagada pela água das chuvas.
Por conta da água acumulada no bueiro perto da estrada e de
sua casa, criam-se muitos girinos, e em alguns dias ficou “tudo
infestado de sapo”, disse seu Altran, que chegou a “tirar de pá
os que conseguiu matar”.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 209 29/10/2015 16:20:00
Esse foi o início da conversa quando chegamos à sua casa.
Ele estava na rede da varanda escutando um rádio daqueles
antigos, pretos, com detalhes de madeira, o qual estava sobre
a mesa de seis lugares que ocupava o final da varanda. Quando
entramos, ele se levantou e ficou de pé. Depois de alguns mi-
nutos, dona Jovita chegou até a varanda, puxou uma cadeira e
sentou de lado com um dos braços na mesa e outro no escoro
da cadeira. Ela estava com a blusa molhada da lida de lavar
roupa no tanque. Cansada, apoiou seu rosto em uma de suas
mãos, com o cotovelo na mesa, e ficou olhando para nós, escu-
tando a agente de saúde e os “causos” contados por seu esposo.
Seu Altran é aposentado e, de pé, conversa e anda, agitado
e dizendo o que gosta de fazer, de andar de bicicleta, de ler os
jornais, do que participa e que, agora que se aposentou, pode
“curtir mais a vida”. E ela, desanimada na cadeira, parecendo
moribunda. Do jeito que sentou, ali mesmo ficou: seu corpo
parecia estar jogado, desistindo de se animar, cansado de lidar.
A lida de casa é algo que atormenta muitas mulheres – nem
todas, certamente, mas há algo de cansativo na lida das mulhe-
res, a mesmice, que oscila com o passar dos tempos. E o invisí-
vel vai aparecendo aos poucos, impresso no corpo, no jeito de
olhar, nas expressões de “tanto faz”, de desagrado, de “deixar
rolar”, de desinteresse.
A cena ficou registrada de tal forma que nos fez pensar nas
diferenças entre eles, na condição dela, de mulher que trabalha
em casa e cuida dos afazeres domésticos, onde não vai se apo-
sentar tão cedo, e ele, homem cheio de desejos e energia para
viver depois que se aposentou, fazendo gestos e contando suas
histórias. Ela sentada na cadeira, em silêncio, como aquela ex-
pressão de quem não está pensando e nem planejando nada,
sem ânimos e sem desejos. Com isso, ficou uma pergunta que
não pôde ser respondida naquele momento: quais seriam os
desejos de dona Jovita? A imagem está registrada, foi um mo-
mento rápido, quase despercebido, mas que nos fez pensar.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 210 29/10/2015 16:20:00
A historiadora brasileira Mary Del Priore escreve em seu
livro, História das mulheres no Brasil (2009), que a construção
da história das mulheres não é somente delas, ou do desejo
delas. Ao mesmo tempo, enfatiza as mulheres como sendo pra-
ticantes, como protagonistas desse processo sócio-histórico:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 211 29/10/2015 16:20:00
No que concerne a este trabalho, é importante pensar em
como as mulheres reinventam suas rotinas no enfrentamento
de suas dificuldades. Sem intenção de pensar na vida de mu-
lheres em contraposição à dos homens, este artigo procura
descrever um percurso das mulheres, onde elas mesmas são
protagonistas, sem enquadrá-las como vítimas e nem passivas.
E é nessa perspectiva que nos debruçamos sobre o entendi-
mento do que é desenvolvimento regional.
As intenções deste trabalho são inspiradas pela perspectiva
de mulheres que escreveram sobre a história de forma contex-
tual, dinâmica e diversa, como Michelle Perrot. Em seu texto,
“A mulher popular rebelde”, publicado em 1988, traz uma in-
trigante maneira de pensar a construção da história das mu-
lheres. Ela diz: “no entanto, o que importa reencontrar são as
mulheres em ação, mulheres dotadas de vida, e não absolu-
tamente como autônomas, mas criando elas mesmas o movi-
mento da história” (PERROT, 2009, p. 187).
Pensar na construção da história é pensar em como os acon-
tecimentos ficam registrados. Para Michele Perrot, há muita
coisa que fica longe dos escritos, como, por exemplo, a história
das mulheres, operários e prisioneiros (PERROT, 2006). Nes-
se sentido, não se trata de “dar a voz” aos supostos excluídos,
mas problematizar tais acontecimentos e seu “pano de fundo”
sócio-histórico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 212 29/10/2015 16:20:00
texto de expansão urbana; de outro, aponta as consequências
desse desenvolvimento regional, o qual não está ocorrendo em
parceria com a dinâmica de funcionamento da população local,
produzindo inúmeros desafios para as mulheres, inclusive o
cuidado em saúde.
Tais aspectos são próprios de processos de desenvolvimen-
to que fazem promessas de progresso com base em uma racio-
nalidade instrumental, defendida pelo mercado e pelo Estado,
sem levar em conta as necessidades, desejos, tradições e valo-
res das populações atingidas por esses projetos. Nesse contex-
to, no qual se insere a grande maioria dos projetos contempo-
râneos de urbanização e expansão das cidades, é comum assis-
tirmos à degeneração crescente da qualidade de vida, tanto em
nível público quanto privado, a destruição da natureza, a de-
vastação das tradições, a degradação das relações sociais e um
conjunto de prejuízos materiais e simbólicos. Em paralelo às
grandes obras que caracterizam projetos de urbanização das
cidades, tem-se como saldo sociedades marcadas por profun-
das desigualdades, que não compartilha democraticamente os
ganhos que esses projetos instauram, em termos de acessos
aos benefícios socioeconômicos e aos dispositivos de exercício
de poder.
No processo da pesquisa que desenvolvemos em Areia
Branca, a perspectiva etnográfica contribuiu para adentrarmos
no cotidiano do povoado e, em especial, na vida das mulheres,
nos quais suas práticas de resistência se apresentam como
algo inerte, quando vistos a “olho nu”, mas que se revelam po-
tentes: vivenciando e participando da rotina local, percebemos
os impactos do propalado “progresso” em uma área almejada
para ser o foco de grandes investimentos imobiliários, turísti-
cos e comerciais da cidade, sobre os modos de existir da popu-
lação local e os modos como as pessoas, e de modo particular
as mulheres, criam e recriam seu cotidiano, entre a mudança
e a permanência de práticas sociais, culturais e comunitárias.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 213 29/10/2015 16:20:01
Nesse contexto de mudanças locais, familiares e históri-
cas, existem muitos encantos e desencantos que permeiam os
enredos das histórias que conhecemos na área. Entremeados
com histórias de vida, os relatos vão descrevendo as formas
de funcionamento do povoado e as transformações pelas quais
ele vem passando ao longo dos anos, especialmente nos mo-
mentos mais críticos da implantação dos projetos de expansão
urbana da região. Essa é uma área que se tornou alvo precioso
de investidores, pois geograficamente a cidade não tem mais
para onde se estender, exceto para o sul, onde ficam antigos
povoados de pescadores e pequenos agricultores e as praias,
antes pouco frequentadas.
O processo de pesquisa e o papel do pesquisador foram al-
vos de análises e afetações durante todos os momentos. Havia
muitas expectativas, por parte das famílias visitadas, de que
pudéssemos resolver seus problemas – o que revela, por um
lado, a magnitude e a complexidade dessas questões, e, por
outro, a ausência de espaços institucionais com dispositivos
capazes de encaminhar a solução desses problemas e de po-
tencializar iniciativas que possam fazer o enfrentamento ne-
cessário, sobretudo direcionado ao Estado, a quem, entre ou-
tros atores sociais, cumpre fazer cumprir um Plano Diretor.28
Esperamos que este artigo possa despertar questões sobre
o tipo de desenvolvimento regional que realmente ocorre e o
que desejaríamos que estivesse acontecendo. Não se trata de
ir contra o progresso e o desenvolvimento da cidade. Trata-se
de questionar de que forma esse processo vem ocorrendo e a
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 214 29/10/2015 16:20:01
quem está interessando. Se os problemas de saúde se agravam,
se a desigualdade social aumenta, então esse desenvolvimento
não está acontecendo de fato para atender aos interesses da
sociedade e, particularmente, da população que vive em Areia
Branca e nos povoados vizinhos. Como consta neste trabalho,
as mulheres estão sempre presentes, lutando cotidianamente
por melhores condições de vida. Acreditamos, assim, que um
desenvolvimento sustentável somente se efetivaria se as me-
lhorias pelas quais os moradores esperam e lutam estivessem
se tornando realidade.
Para esse momento, os enredos como os de dona Jovita,
das “meninas-moças”, de dona Nair, de Ceiça, de Bia e de dona
Moça nos fazem pensar nas práticas cotidianas de cuidado
com a saúde e dos processos de adoecimento nesse cenário de
mudanças. A solidão e a tristeza, a falta de diversão e educação,
as diferenças de trabalho entre homens e mulheres, a morte...
Tudo faz parte do cuidado à saúde, os quais não são considera-
dos plenamente pelo atendimento institucionalizado na rede
de saúde. A busca incessante por melhores condições de vida
ultrapassa e foge dos trâmites institucionais, e é por esse cami-
nho que o pesquisar se faz presente, nesse entremeio, por mais
corriqueiras e indiferentes que as práticas cotidianas possam
aparecer, mas que demarcam o funcionamento da vida social,
as regras, os enfrentamentos e as resistências.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 215 29/10/2015 16:20:01
DEL PRIORI, Mary (Org.). História das mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2009.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 216 29/10/2015 16:20:01
__________. Os excluídos da História: operários, mulheres e pri-
sioneiros. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 217 29/10/2015 16:20:01
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 218 29/10/2015 16:20:01
GÊNERO, POBREZA E QUESTÕES DA
ADOÇÃO: OS IMPACTOS SOCIAIS DA LEI
Nº 12.010/2009 NA VIDA DE MULHERES
NA CIDADE DE NITERÓI/RJ
Maria Izabel Valença Barros
Nívia Valença Barros
Rita de Cássia Santos Freitas
I
niciamos este artigo com a fala de uma criança acolhida em
uma das instituições do município de Niterói, Estado do
Rio de Janeiro, a cujo depoimento tivemos acesso em uma
das audiências concentradas, onde o juiz a questiona sobre o
fato de ter uma nova família. A essa resposta – emblemática
ao demonstrar o desejo da criança de ficar em sua família de
origem –, o juiz a questiona se realmente queria continuar com
a mãe, usuária de crack e moradora de rua. A segunda resposta
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 219 29/10/2015 16:20:01
da criança também é significativa: ela quer continuar com a
mãe, sim, mas pede ajuda para ter uma casa e apoio para a mãe
poder se tratar. Em última instância, essa criança demanda o
funcionamento da rede de proteção à criança. E, mais espe-
cificamente, ela faz referência a uma das principais questões
referente a essa seara: o direito de que a pobreza não seja con-
dição para que uma família perca seu poder familiar. Entende-
mos que, quando a rede de proteção mais próxima falha, a rede
secundária (institucional, pública) não tem o direito de falhar.
O objetivo do artigo é analisar, na vida das mulheres pobres
na cidade de Niterói, os aspectos jurídicos e sociais da nova
Lei nº 12.010/2009, que trata sobre a Convivência Familiar
e Comunitária para crianças e adolescentes, mais conhecida
como a “Lei da Adoção”. Cumpre ressaltar que consideramos
fundamental acentuar que todo ordenamento jurídico tem por
intenção dialogar com a realidade histórico-social; nesse sen-
tido, faz-se necessário, para elaboração desta análise, um estu-
do interdisciplinar, onde a perspectiva social seja estudada em
relação com a jurídica.
Nesse contexto, a análise desenvolvida mostra-se de grande
relevância, pois reflete sobre os desdobramentos de uma nova
legislação. Como se trata de uma norma jurídica recente que
visa mudar uma estrutura preexistente, pouco se sabe sobre
seus aspectos práticos na realidade cotidiana, e suas resultan-
tes ainda são preliminares.
É interessante observar a importância deste estudo ao ana-
lisar uma lei nacional no contexto local, ou seja, procuramos
compreender os efeitos que essa lei pode ter no cotidiano de
mulheres pobres na cidade de Niterói. Ao incidir sobre todos,
as leis e políticas públicas têm efeitos diferenciados na vida da
população que atingem, o que terá consequências no desenvol-
vimento local. As famílias hoje ocupam um lugar de destaque
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 220 29/10/2015 16:20:01
nas políticas públicas no Brasil.30 Mas é fundamental que tais
políticas atuem no processo de fortalecimento e de proteção a
essa família, e não como uma forma de controle e de exigências
que essas famílias não têm condições de cumprir. O objetivo
das políticas em relação à família deveria ser o de dar condi-
ções de uma efetiva participação cidadã para estas (PEREIRA,
2006). O mesmo raciocínio aparece quando nos debruçamos
sobre essa lei.
Quando falamos em famílias, por conta de históricas rela-
ções de gênero presentes em nossa sociedade, é comum a as-
sociação com as mulheres. Ao discorrer sobre a convivência
familiar, a retirada do poder familiar e a adoção propriamente
dita, a Lei nº 12.010/2009 prevê o apoio que a mulher deveria
ter31 durante a gravidez. Isso poderia atuar numa forma de em-
poderamento a essas mulheres e fortalecimento das famílias
(tomando por base a existência de uma efetiva ação interseto-
rial). Resta saber como isso vem se dando. Nesse sentido, este
artigo busca pensar os efeitos dessa lei, tomando como refe-
rência uma localidade específica, a cidade de Niterói.
Outrossim, destacam-se nesta análise alguns dos pontos
que consideramos negativos e positivos trazidos pela Lei nº
12.010/2009. As mudanças legislativas contribuem para que
se possa realizar uma reflexão sobre as inovações da legisla-
ção, verificando se de fato a nova lei trouxe um número maior
de melhorias ou não para nossa sociedade e ordenamento.
Niterói é uma cidade que possui uma rica história envolven-
do a área da infância e adolescência, tendo uma rede de prote-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 221 29/10/2015 16:20:01
ção bastante estruturada e tida como representativa junto aos
estudiosos do tema. Segundo Siqueira (2014),32 vale ressaltar,
a título de informação sobre o município, que as famílias re-
sidentes na cidade de Niterói têm perfil de renda média no-
minal per capita de 5,87 salários mínimos, sendo que 69,8%
possuem domicílios próprios.
Segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), apresentados no boletim do
MDS, a caracterização demográfica da extrema pobreza está
representada no fato de que 1,9% do total da população mu-
nicipal e 36,2% dos extremamente pobres têm de zero a 17
anos. Dos 487.562 residentes no município, somente 9.068 se
encontraram em situação de extrema pobreza, ou seja, sobre-
vivendo com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00.
No que tange aos sujeitos analisados neste artigo – as mu-
lheres pobres –, Siqueira (2014) traz como contribuição dados
relevantes quando aponta o número total de pessoas extrema-
mente pobres correspondente a 9.068, sendo 4.974 mulheres,
ou seja, 54,9% da população.
Retomando a discussão sobre a rede de proteção social
da cidade, cabe dizer que ela é fruto do desenvolvimento de
grandes movimentações na área da criança e adolescente, bem
como na área da saúde e da violência contra as mulheres. Ana-
lisar o modo como essa lei vem sendo implementada no mu-
nicípio pode nos levar a reflexões mais profundas envolvendo
os diferentes atores desse processo e o modo como os direitos
dessas mulheres vem sendo garantidos ou não. Por isso, tece-
mos considerações acerca da relação famílias-gênero-mulhe-
res pobres em nossa cidade.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 222 29/10/2015 16:20:01
CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA ADOÇÃO
– DESTACANDO ALGUNS ASPECTOS LEGAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 223 29/10/2015 16:20:01
lescentes e, principalmente, para o processo de adoção. Com
base nela, enfatizou-se nacionalmente as crianças em situação
de abandono ou que são consideradas “institucionalizadas”
por estarem em entidades de acolhimento, ressaltando-se,
muitas vezes, de forma a-histórica e descontextualizada, a ne-
cessidade e o direito de crianças e adolescentes conviverem e
pertencerem a uma família, o que poderia ser, teoricamente,
concretizado por meio do processo de adoção que viabilizaria
o direito dessa criança ou adolescente a ter um lar.
É evidente que o advento da Lei nº 12.010/2009 trouxe mu-
danças significativas para nossa sociedade no âmbito da adoção.
Porém, nem sempre as mudanças consistem apenas em pontos
positivos e, da mesma maneira, tais mudanças podem enfren-
tar obstáculos em solucionar determinados problemas crôni-
cos já existentes, bem como também trazer novas questões. Em
primeiro lugar, destacamos, como uma mudança importante, o
fato de a lei ter criado o prazo máximo de dois anos de per-
manência de crianças e adolescentes em abrigos, obrigando os
juízes a justificar, a cada seis meses, a permanência nessas ins-
tituições (Artigo 19, §§ 1º e 2º da Lei nº 12.010/2009). Depois
desse prazo de dois anos, não sendo possível a reintegração fa-
miliar da criança e do adolescente, estes entrariam no Cadastro
Nacional e só permaneceriam em instituição de acolhimento
quando não fosse possível a adoção.
Uma das principais alterações nessa legislação e tida como
das mais positivas refere-se à obrigatoriedade à assistência
psicológica às gestantes e às mães nos períodos pré e pós-na-
tal, inclusive às que manifestam interesse em entregar os seus
filhos para a adoção:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 224 29/10/2015 16:20:01
sequências do estado puerperal (Art 8º, § 4º da Lei nº
12.010/2009).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 225 29/10/2015 16:20:01
esses dados, o vice-presidente da AMB35 alerta que o número
de 80 mil não é uma avaliação precisa, pois não existem esta-
tísticas oficiais sobre essas instituições.
Com a atual legislação, busca-se, também, uma mudança de
paradigma. No contexto brasileiro de adoções, é evidente a pre-
ferência do adotante pelo perfil de crianças brancas, do sexo
feminino e de até dois anos de idade. A Lei nº 12.010/2009
enfatiza, em seus parágrafos, o incentivo em se realizar as ado-
ções necessárias de crianças mais velhas, dos grupos de crian-
ças especiais, bem como as adoções inter-raciais.
Mesmo após o advento da “Lei Nacional de Adoção”, quem
defende as crescentes perdas do poder familiar de forma mais
ágil ressalta que os principais problemas, para quem quer ado-
tar uma criança ou um adolescente, continuam sendo a buro-
cracia e a falta de estrutura nas Varas da Infância e da Adoles-
cência para atender à demanda das famílias interessadas.
O texto da lei evidencia a preocupação voltada para a efe-
tividade do direito fundamental de convivência familiar den-
tro da família natural,36 inclusive fixando deveres jurídicos
no sentido de sua manutenção. Contudo, se postos de forma
inflexível e sem proporcionar condições para que sejam cum-
pridos, esses deveres podem ocasionar efeitos perversos, no
que tange às grandes desigualdades socioeconômicas em que
vivem muitas das famílias em nosso país. Vale destacar, em re-
lação às famílias pobres, o aumento não apenas das famílias
monoparentais, mas também de famílias chefiadas por mulhe-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 226 29/10/2015 16:20:01
res, que tendem a ser mais vulnerabilizadas (FREITAS; BRA-
GA; BARROS, 2010). Sendo assim, nesse cenário, caso não haja
políticas sociais atreladas à aplicação da nova lei, as possíveis
consequências desta poderão se desdobrar em um contexto de
culpabilização dessas mulheres – pobres e mães.
A família substituta,37 nesse contexto, somente se mostra
aceitável depois de esgotadas as possibilidades de conserva-
ção da família natural. Cabe ressaltar que foi introduzida pela
nova legislação a necessidade dos grupos de irmãos serem
postos sob adoção na mesma família substituta, salvo se for
comprovado risco de abuso ou qualquer outra situação que
justifique se excepcionar solução diversa. Nesse caso, o que se
pretende é não afastar o vínculo fraternal; sendo assim, inde-
pendentemente de os irmãos estarem na mesma família ou em
família diversa, que não percam os laços já estabelecidos ante-
riormente (Artigo 28, § 4º da Lei nº 12.010/2009).
No geral, a nova lei procura adotar o atual conceito de fa-
mília, que prioriza o laço afetivo, o comprometimento entre os
participantes, e não mais se preocupa com a forma “tradicio-
nal” de constituição de família, baseada apenas em laços con-
sanguíneos. Assim, em critérios adotivos, não mais importaria
de quem é o poder familiar,38 como a família é constituída, or-
ganizada, ou quantos são os seus integrantes (monoparental
ou pluriparental, por exemplo). No entanto, os termos utiliza-
dos que contrapõem “família natural” e “família substituta” po-
dem levar a interpretações dúbias, de forma a tratar a família
biológica como mais adequada, enquanto os pais adotivos se-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 227 29/10/2015 16:20:02
riam menos “naturais”. Tal olhar se contrapõe a alguns trechos
da própria lei, que valoriza os laços sociais na formação do pa-
rentesco.
Cabe ressaltar que, mesmo a lei procurando abarcar dife-
rentes expressões afetivas de famílias, a composição delas
diante de um contexto de destituição do poder familiar se dá,
em sua grande maioria, por mães onde a figura paterna pouco
se apresenta – por conta de uma realidade marcada por rela-
ções de gênero desiguais (SCOTT, 1991; LOURO, 2008) –, re-
caindo, assim, sobre as mulheres deveres e responsabilidades
do lar e de seus filhos. De acordo com o psicólogo da Vara da
Infância e Juventude de Niterói, ao ser perguntado sobre qual
o perfil das mulheres que perdem o poder familiar,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 228 29/10/2015 16:20:02
fetiva,40 a adoção de embriões e outras questões de semelhante
interesse.
As mudanças introduzidas pela nova lei, com as adequa-
ções ao Estatuto da Criança e do Adolescente, visam a agilizar
a adoção no país e também a possibilitar o rápido retorno das
crianças que estejam em programa de acolhimento familiar ou
institucional. Isso, contudo, pode gerar um retorno a um am-
biente familiar ainda sem condições de receber essas crianças,
bem como uma “depreciação” das entidades de acolhimento,
mesmo aquelas que realizam um trabalho de qualidade.41
É nossa opinião que, mesmo ressaltando-se a importância
do incentivo as adoções, não se pode abrir mão de certas exi-
gências, que permitem ao Judiciário, por um lado, conhecer a
pessoa que quer adotar, saber de suas condições, refletir sobre
suas intenções e suas disponibilidades de fato para a concre-
tização de uma adoção.42 Para o atendimento dessas questões,
foi necessário que o legislador instituísse alguns procedimen-
tos, fazendo com que tais trâmites burocráticos necessários
conflitam com a ideia de agilização desejada por todos. Por ou-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 229 29/10/2015 16:20:02
tro lado, é importante não perder a dimensão da necessidade
de se olhar para as famílias de origem, evitando que, por exem-
plo, a pobreza não esteja sendo o principal elemento motiva-
dor para a inserção dessas crianças e adolescentes em abrigos
ou para adoção – dimensão enfatizada no ECA.
A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
E A PERDA DO PODER FAMILIAR
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 230 29/10/2015 16:20:02
para as políticas públicas no sentido de contribuir para a cons-
trução de políticas adequadas ao cenário local. E, nesse ponto,
a dimensão do gênero (em sua intersecionalidade) necessa-
riamente tem de estar presente. Nesse caso, especificamente
voltar o olhar para essa questão – a destituição do poder fami-
liar que atinge prioritariamente mulheres pobres – tem como
pressuposto que a escuta atenta dessas mulheres, bem como
a construção de mecanismos que façam essa lei funcionar de
acordo com essa escuta, pode apontar para o empoderamento
dessas mulheres pobres.
Mesmo que o Estatuto da Criança e do Adolescente preco-
nize que não se pode retirar o poder familiar com o argumento
de pobreza, o que se vê é que a pobreza e o afastamento de
famílias e de seus filhos tem ainda acontecido – e é o que temos
percebido também pela observação que estamos realizando
na cidade de Niterói (mesmo sendo essa uma cidade que de-
senvolveu uma importante história na luta contra a violação
de direitos de crianças e adolescentes). Ainda assim, tem sido a
população pobre que ainda perde a guarda de seus filhos. Mas
vale refletir: De que negligência está se falando?
As representações sociais da população pobre como “clas-
se perigosa” expressam a singularidade dos espaços sociais no
processo de reprodução social, espaço onde a miséria e a au-
sência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas da
negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de so-
brevivência desenvolvidas. No âmbito familiar, principalmente
as mulheres43 é que são denunciadas como mães negligentes.
Dessa forma, um grande contingente de famílias brasileiras é
liderado por mulheres que, além do papel maternal, assumem
o de provedoras (MESQUITA et. al., 2010). Concordamos com
as autoras acerca da necessidade de se refletir sobre a negli-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 231 29/10/2015 16:20:02
gência que essas famílias – normalmente excluídas de um pa-
drão mínimo de proteção social – sofrem em seu dia a dia. Em
vez de negligentes, poderíamos falar, isso sim, de famílias – de
mulheres mães – negligenciadas.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 232 29/10/2015 16:20:02
Entendemos famílias como uma das estruturas de proteção
social.44 Esta deve ser vista aqui não apenas como políticas pú-
blicas e serviços de assistência social, mas também como prá-
ticas protecionistas exercidas pela rede familiar e comunitá-
ria45 – onde as famílias se inserem. Nesse sentido, como muito
bem destacado por Freitas (2002), “o recurso a uma rede de
solidariedade tornou-se uma prática fundamental de sobrevi-
vência em nossas classes populares”.
Atualmente, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
226, prevê que, além do casamento, a união estável entre ho-
mem e mulher são formas de constituição familiar, para efeito
de proteção do Estado. E ainda a mesma legislação entende
como entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes, ou seja, caindo por terra o antigo
princípio existente do pátrio poder (poder do pai). No âmbito
das relações de gênero, essa dimensão traz importantes efei-
tos na vida de homens e mulheres.
44 Ainda que saiba que esse espaço pode também ser o da desproteção e violência.
Para pensar a família brasileira, é importante entender que esta – seguindo uma
trajetória internacional – também mudou. As crises do capitalismo, a reestrutura-
ção do trabalho, a entrada cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho;
o aumento do nível de escolaridade, a diminuição do índice de fecundidade e o
adiamento do primeiro filho; o aumento da expectativa de vida (principalmente
para as mulheres), o aumento do número de famílias monoparentais, de pessoas
vivendo sozinhas e se casando mais tarde são realidades que marcam nossa socie-
dade (IBGE, 2010). Se as famílias mais vulneráveis são aquelas onde existe a pre-
sença das crianças (LAVINAS, 2006), não podemos esquecer que estas ficam nor-
malmente com suas mães. Além disso, para alguns estudiosos, a presença feminina
contribui para a redução da vulnerabilidade em que vivem os que estão sob seus
cuidados: “As famílias monoparentais feminina e pobreza acabam, de um lado, por
construir outro estigma, o de que as mulheres são menos ‘capazes’ para cuidar de
suas famílias ou para administrá-las sem um homem. De outro, é apontado que
as mulheres, hoje, ganharam maior independência e, portanto, podem assumir
suas famílias. No entanto, enquanto houver a associação maciça entre monopa-
rentalidade e pobreza [...] acaba por fortalecer-se muito mais a adjetivação dessas
famílias como vulneráveis ou de risco do que como potencialmente autônomas”
(FALLER VITALE, 2002, p. 51).
45 Mesquita (2012) e Costa (2002).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 233 29/10/2015 16:20:02
Em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu
artigo 25, entende-se por família natural a comunidade for-
mada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes, e por
família extensa ou ampliada aquela que se estende para além
da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por
parentes próximos com os quais a criança ou adolescente con-
vive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Sendo assim, acompanhando o que as legislações brasileiras
hoje conceituam como famílias, percebe-se que, além de laços
biológicos e consanguíneos, a afinidade por meio dos víncu-
los de afetos também são formas de construção de entidades
familiares, ultrapassando muitas vezes as relações de paren-
tesco. Nesse caso, como exemplo pode-se utilizar a adoção por
casais homoafetivos se tornando cada vez mais comum.
Nesse momento, uma reflexão acerca das relações de gêne-
ro se faz presente. Partilhamos da definição seminal veiculada
por Joan Scott (1991), de que as relações de gênero são cons-
truídas socialmente e trazem embutidas em si as relações de
poder hierarquizadas entre mulheres e homens.
Ocorre que, quando se fala em família, principalmente no
tocante à proteção social, é inevitável não associar a figu-
ra materna, pois ela historicamente sempre foi vista como a
grande responsável pela função do cuidado, da proteção, vis-
to que tanto no estabelecimento como na implementação das
políticas sociais dirigidas às famílias o contato dessas com a
sociedade e com o Estado se dá em grande parte pela figura
da mulher (CARLOTO, 2006). Assim sendo, como muito bem
discutido por Suarez e Libardoni (2007),
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 234 29/10/2015 16:20:02
contribuindo pouco para a transformação destes. O ad-
vento de muitas dessas políticas efetivamente vem ao
encontro dos desejos de muitas mulheres. Porém, não
podemos deixar de enunciar como esse fato recoloca
a responsabilidade por esses cuidados nas mãos das
mulheres – desresponsabilizando os homens (SUAREZ;
LIBARDONI, 2007, s./p.).
46 Para Joan Scott (1995), em seu artigo “Gênero: uma categoria útil de análise his-
tórica”, gênero pode ser entendido como uma percepção sobre as diferenças se-
xuais, havendo uma relação inseparável entre o saber e o poder. Gênero estaria
sobreposto a relação de poder, sendo uma primeira forma de dar sentido a essas
relações. Porém o que interessa para a autora são as formas como se constroem
significados culturais para essas diferenças sexuais, dando sentido para elas e con-
sequentemente posicionando-as dentro de relações hierárquicas.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 235 29/10/2015 16:20:02
tratégias de vida e sobrevivência para a condução de suas vi-
das e da vida daqueles pelos quais elas são responsabilizadas,
sejam eles marido, filhos e parentes. Essas estratégias variam
desde o delegar suas atividades a outras ou sobrecarregar as
próprias atividades, ambos com o propósito da manutenção de
sua família.
A “ADOÇÃO À BRASILEIRA”
E O CHAMADO “ABANDONO”
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 236 29/10/2015 16:20:02
ral e historicamente disseminada em nossa sociedade, caracte-
rizando-se como um processo de longa duração.
Dessa forma, Fonseca (1996) propõe a reflexão sobre o
termo “circulação de criança”, definido como a transferência
de uma criança entre uma família e outra, seja sob a forma de
guarda temporária ou de adoção propriamente dita. Essa rea-
lidade de “transferência de uma criança entre uma família ou
outra” é tão antiga que Venâncio (1997) narra que, no mundo
colonial, no espaço geográfico do campo, raramente ocorriam
abandonos de crianças, pois estes acabam se tornando filhos
de criação ou agregados por outras famílias com melhores
condições. O autor ressalta ainda que o termo criança abando-
nada é atual, visto que estes antigamente eram chamados de
enjeitados ou expostos.
Fonseca (1996) afirma que, ainda que a adoção à brasileira
também apague a mãe biológica do registro oficial, ela lhe con-
fere uma margem de manobra muito mais ampla: não apenas
ela desempenha um papel ativo na escolha dos pais adotivos,
como também pode acompanhar, de longe, o desenrolar de sua
vida. Porém, há de se refletir se a adoção, seja ela à brasileira
ou legal, é a única estratégia a ser tomada.
É comum, nos dias de hoje, principalmente entre uma rea-
lidade social de bairros menos abastados, parentes e vizinhos
se relacionarem, frequentarem um a casa do outro quase que
diariamente e se ajudarem mutuamente. Nesse sentido, mui-
tas vezes essa ajuda vai desde o empréstimo do açúcar até o
cuidado dos filhos uns dos outros. Essa circulação não importa
em uma adoção necessariamente, mas é uma alternativa para
mães que trabalham, por exemplo, de deixarem seus filhos
com pessoas de confiança, sem precisarem recorrer a creches
ou babás – realidade distante das mulheres que aqui se abor-
da, pertencentes a estratos de classe pobres. Isso se dá pelo
fato de faltarem creches, mecanismos públicos de proteção so-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 237 29/10/2015 16:20:02
cial que efetivamente apoiassem essa mulher e protegessem
essas crianças.48
Essa circulação de crianças reflete-se não só no aspecto fi-
nanceiro, em que a avó ou o avô, ou até mesmo a vizinha, se de-
dicam ao cuidado, alimentação, vestuário dessas crianças, ou
pelo fato de a família natural não possuir condições para assim
o fazer, ou ainda pelo fato de estarem passando por uma crise
familiar, divórcio, como também podem ocorrer por questões
de simples laços afetivos, identificações pessoais e carinho,
criando uma espécie de parentesco, sendo certo que nesses
casos não foi necessária uma adoção no sentido legal.
Ainda nesse sentido, a circulação de criança e até mesmo
de adolescente também reflete o aspecto cultural, visto que
em nossa cultura brasileira é comum o fato de recebermos em
nossa casa amigos e parentes, seja por dias, semanas, ou até
mesmo por temporada, como no caso, por exemplo, de um so-
brinho que precisa ir morar com a tia para estudar, para ficar
mais próximo da faculdade. Segundo Sarti (2003), o cuidar dos
filhos dos outros – muitas vezes, os próprios netos – faz com
que se mantenha “acesos” os vínculos de sangue, junto aos de
criação, atuando ambos na definição dos laços de parentesco,
o que vem atualizar um padrão de incorporação de agregados
o qual lembra aquela mesma família brasileira descrita por
Freyre (2005).
Costa (2002) utiliza a ideia de “maternidades transferidas”
referindo-se à estratégia que muitas mulheres se utilizam para
dividir, e muitas vezes delegar as atividades do dia a dia de seu
lar, para outras mulheres. Nesse diapasão, a autora permite
48 Porém não se pode deixar de destacar alguns aspectos negativos que a circulação
de criança pode trazer, como, por exemplo, em alguns casos, a sensação de aban-
dono que algumas crianças podem sentir em relação aos seus pais, ou o fato de
perderem a referência de quem são realmente seus pais, fato que pode ocorrer
quando a criança circula por várias famílias, além da sua, vivendo costumes, prin-
cípios e rotinas diferentes.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 238 29/10/2015 16:20:02
ainda uma reflexão: mulheres que precisam sair para o merca-
do de trabalho transferem suas maternidades para mulheres
ainda mais pobres que elas, formando-se assim um grande ci-
clo, visto que essas que receberam a transferência da materni-
dade (sejam babás, ajudantes do lar etc.) necessitam também
deixar seus filhos com alguém (vizinhos, parentes) para saí-
rem para o trabalho. E, no fim desse ciclo, o que se encontra?
Formas de proteção ou a retirada do poder familiar?
O que temos percebido em nosso dia a dia é que, muitas ve-
zes, a estratégia de algumas mães pobres pode ser a alternati-
va de seus filhos estarem em abrigos, que não precisa necessa-
riamente ser um espaço da exclusão, visto que nesse espaço as
crianças terão escola, lazer, alimentação e – fundamental nos
dias de hoje – segurança. Nesse sentido, a necessidade de se
discutir as instituições de proteção à criança devem ser repen-
sadas, e um bom caminho seria, em nossa opinião, começar
por ouvir as famílias, especialmente as mulheres, responsáveis
– e responsabilizadas – pelo cuidado de nossas crianças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 239 29/10/2015 16:20:03
tos sociais mais felizes. Mais uma vez se faz importante dizer
que, com isso, não se enfatiza aqui de forma alguma o “jeitinho
brasileiro” de levar vantagem e desrespeitar normas legais que
atendam o interesse da coletividade, mas apontar as necessá-
rias singularidades que existem e devem ser reconhecidas.
Apontar para a necessidade de ações e práticas de prote-
ção à infância e adolescência, levando em conta as demandas
desses sujeitos e suas famílias é uma forma de avançar nesse
debate. A proteção social – em seu viés institucional – deve ser
pensada não como uma alternativa ou opção, mas como um
direito. Um direito que envolve as crianças e adolescentes, mas
também as suas famílias, especialmente suas mães. Desde a
infância, é imputado às mulheres o dever de serem mães, sen-
do dificilmente possível “escapar” desse destino. Esse peso e
responsabilidade muitas vezes se faz tão estruturante na vida
de algumas delas que as mulheres as quais, por alguma cir-
cunstância, não quiseram seguir esse caminho, rompendo com
a maternidade, são criminalizadas.
Por outro lado, algumas mulheres, ainda que optem pela
maternidade, em alguns casos não conseguem sentir o amor
incondicional – que muitas dizem sentir – por seus filhos e vi-
ver o chamado “mito do amor materno” (BADINTER, 1985).
Em razão disso, Motta (2001) alerta que não se pode apenas
se chocar com a irresponsabilidade das mães que abandonam
seus filhos: é preciso ir além, é necessário assumir a respon-
sabilidade pela situação do abandono dessas mulheres numa
realidade social da qual todos nós fazemos parte. E imprescin-
dível que a sociedade assuma o desconforto ao lidar com situa-
ções que expõem velhos mitos e ao recobrir as próprias imper-
feições como mães e pais meramente humanos, cujo amor nem
sempre é tão “natural”, automático, infinito ou incondicional.
Todos esses questionamentos, dúvidas e conflitos vivencia-
dos por essas mães se dão muitas vezes pelo fato de o papel do
cuidado com a família e com o filho ainda serem destinados a
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 240 29/10/2015 16:20:03
elas, as mulheres. Esse cuidado da mulher para com sua famí-
lia, em muitos casos, é responsabilidade quase que exclusiva
dela, onde pouco se percebe a participação do homem nessa
realidade. Ou, quando presente a figura paterna nesse contex-
to, esta sempre se mostra em um cenário de “ajuda”, e nunca
de responsabilização. Nessa linha de raciocínio, por toda essa
responsabilidade que recai sobre a mulher e da forma como
esta fica exposta à maternidade, às cobranças e expectativas
que lhes são impostas, quando não cumpridas, faz dessa mu-
lher/mãe alvo de criminalização, sendo muitas vezes tachadas
como negligentes.
O que a sociedade cobra e espera de uma mãe é o cuidado
com excelência de seu(s) filhos(s). E, quando isso não ocorre,
por diversos fatores, sejam eles de cunho social ou pessoal –
lembrando que esta pesquisa trabalha com a perspectiva de
mulheres pobres –, esses são retirados de suas mães, de suas
famílias. A preocupação – profundamente válida – com as
crianças não pode nos fazer esquecer a subjetividade das mu-
lheres envolvidas. É preciso desconstruir a concepção de que
a responsabilidade do cuidado com os filhos e com a família
é exclusivamente da mãe, bem como a visão de que, quando
o pai cuida dos filhos, este é um superpai, enquanto a mulher
está apenas cumprindo suas obrigações.
E mais: é de suma importância que a sociedade tenha um
olhar mais acolhedor e menos julgador em relação às mulhe-
res que não conseguem vivenciar o suprassumo do “mito do
amor materno”, ou ainda por aquelas que não conseguem criar
seus filhos – o que é tachado pela mídia de “abandono” – en-
tregando-os para a adoção ou afins. Entender a subjetividade
que envolve cada uma, caso a caso, é um esforço necessário e
prudente para que essas mulheres não sejam tachadas como
“mães más” (LIMA, 2011).
A proposta deste escrito também se faz no sentido de dis-
cutir o que o Estado oferece como políticas públicas para es-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 241 29/10/2015 16:20:03
sas mulheres – afinal, a retirada do filho de uma mãe, apenas
como uma medida de punição ou coação, sem a garantia de
direitos, mostra-se como atitude de um Estado apenas regu-
lador, sem preocupações com o bem-estar social. É necessário
refletir toda a subjetividade envolvida na vida de uma mulher
(sentimentos) na hora da retirada ou até mesmo entrega de
um filho para a doação, ou seja, para o Estado. Ainda que na
lei esteja previsto o apoio às mulheres no pré e pós-puerpé-
rio, o que temos assistido, na maioria das vezes, é a um Estado
que, sob a alegação de priorizar o atendimento ao bem-estar
das crianças e adolescentes, desconsidera a realidade local, as
vidas dessas mulheres e suas famílias, bem como o próprio de-
sejo das crianças.
Motta (2001) reflete no sentido de que, quando se fala em
adoção, pensa-se apenas nas angústias da criança e dos ado-
tantes, mas nunca das inquietudes da mãe biológica que en-
tregou seu filho para adoção (e mais ainda naquelas que não
deram os filhos, mas que estes foram retirados). Isso porque
essas são “mães abandonadas”, visto que a sociedade as põe
à margem, até mesmo de suas considerações pessoais. Sendo
assim, a autora alerta ainda que é preciso observar a situação
de abandono vivenciada por essas mulheres, principalmen-
te durante a maternidade, para então perceber que o ato do
“abandono do filho” apenas retrata a identidade de uma mãe
“abandonada desde a gestação”.
Importante tecer breves comentários quanto aos casos em
que a mulher decide entregar seu filho para a adoção, direito
esse assegurado às gestantes conforme disposto no parágrafo
único do artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se-
gundo Walter Gomes,49 supervisor da Seção de Colocação em
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 242 29/10/2015 16:20:03
Família Substituta da Vara da Infância e Juventude do Distrito
Federal (JDF), as principais razões que levam as mulheres a op-
tar por entregar o filho em adoção são: o abandono por parte
do companheiro e/ou da família; o fato de a gestação advir de
uma violência sexual; ou por a mãe já possuir prole numerosa,
havendo também, segundo ele, aquelas que engravidaram em
um encontro casual e não desenvolveram laços afetivos com a
criança.
Ressalta-se que a perda do poder familiar para uma mãe, e
para toda sua família, é um rompimento brusco dos laços fami-
liares, tanto afetivos quanto consanguíneos. Além de ser uma
ruptura irreparável e imutável!
O que se pode adiantar aqui é que, na maioria dos casos
que temos acompanhado, o poder familiar foi destituído por
ausência de políticas públicas para as mulheres e suas famílias,
tendo sido constatado mulheres que, ao receberem do juiz a
notícia de que seus filhos, a partir daquele momento, “deixa-
riam de ser seus”, sofreram muito, e mais: percebeu-se que tal
medida extrema poderia ter sido evitada se o Estado – e a rede
de proteção existente nesse espaço – fizesse um trabalho de
prevenção ou até mesmo de intervenção no problema, e não
apenas de remediação e de soluções imediatistas. A existên-
cia de uma rede local envolvendo Estado e sociedade poderia
atuar como importante mecanismo de apoio a essas mulheres
e suas famílias e, portanto, como um elemento de desenvolvi-
mento local.
Por isso, faz-se necessário questionar qual é o verdadeiro
papel do Estado na realidade dessas mulheres, principalmen-
te quando se trata de um momento tão dolorido, delicado e
conflituoso como o da entrega de um filho para a adoção. E
mais: é preciso ainda questionar qual é o amparo e o apoio que
o Estado oferece a essas mulheres pobres, principalmente no
que tange à cidade de Niterói. Diante das modificações apon-
tadas anteriormente, fica evidente que o advento da Lei nº
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 243 29/10/2015 16:20:03
12.010/2009 trouxe mudanças significativas para nossa socie-
dade no âmbito da adoção. Porém, nem sempre as mudanças
consistem apenas em pontos positivos e, da mesma maneira,
tais mudanças podem enfrentar obstáculos em solucionar de-
terminados problemas crônicos já existentes.
Por fim, é importante refletir: de que valem novas e moder-
nas legislações, se possuirmos um Judiciário precário, falho,
sem estruturação para atender as demandas que surgem na
sociedade? É preciso, antes de qualquer outra alteração, uma
reestruturação em todo o sistema judiciário, uma reforma do
Estado, para dar condições e amparo à Justiça para atender a
sociedade e suas demandas de forma digna e justa.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 244 29/10/2015 16:20:03
COSTA, Suely Gomes. “Proteção social, maternidade transferi-
da e lutas pela saúde reprodutiva”. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, CFH/CCE/EFSC, vol. 10, nº 2, 2002.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 245 29/10/2015 16:20:03
__________. “Em nome dos filhos, a formação de redes de soli-
dariedade: algumas reflexões a partir do caso Acari”. Revista
Serviço Social e Sociedade, São Paulo: Cortez, nº 71, 2002.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 246 29/10/2015 16:20:03
das medidas em meio aberto do Estado do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Degase, 2010.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 247 29/10/2015 16:20:03
SOUSA, José Nilton. DPCA: tensões e contradições na política
de proteção da criança e adolescente em Niterói. Tese (Douto-
rado). Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social.
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2012.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 248 29/10/2015 16:20:03
GÊNERO E POLÍTICAS
PÚBLICAS DE TRABALHO
Ariane Serpeloni Tavares
Temis Gomes Parente
INTRODUÇÃO
O
conceito de gênero suscita debates e envolve inúmeras
controvérsias que não podem ser compreendidas por
conceituações limitadas. Apesar da dificuldade de cons-
truir um consenso, a definição de gênero adotada neste tra-
balho é a proposta por Scott (1990, p. 14), que o define como
“um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre
as diferenças percebidas entre os sexos” e também “um pri-
meiro modo de dar significado às relações de poder”. Assim,
compreende-se que o gênero, além de permear a construção
do que é feminino e do que é masculino, estabelece uma rela-
ção de poder entre os sexos.
Tendo essa definição em vista, pode-se considerar que as
questões de gênero, construídas socialmente, levam a uma re-
lação desigual entre homens e mulheres. Essa desigualdade
tem suas bases nas relações sociais e de poder, que naturaliza-
ram as diferenças sexuais, tornando “normal” a permanência
da mulher no espaço privado, atribuindo-lhe funções sociais
reprodutivas e dificultando seu acesso ao espaço público, da
política, do trabalho (BOURDIEU, 2002; KERGOAT, 2009) e,
portanto, dos direitos políticos e sociais integrais.
Considerando as contribuições de Amartya Sen (2000),
têm-se bons argumentos para compreender que o cerceamen-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 249 29/10/2015 16:20:03
to de liberdades, como o desemprego, a falta de autonomia das
mulheres e as restrições decorrentes das desigualdades entre
os sexos, são empecilhos ao desenvolvimento. Dessa forma,
uma sociedade, ao restringir as possibilidades de emprego e
desprezar a capacidade das mulheres, por exemplo, restringe
também as suas possibilidades de desenvolvimento.
A superação dessa condição tem sido buscada por meio da
promoção da autonomia das mulheres, desvencilhando-as da
dependência econômica em relação ao homem. Essa autono-
mia pode e deve ser incentivada por meio das políticas públi-
cas, desde que alinhadas com a perspectiva de gênero e pro-
motoras da equidade entre homens e mulheres.
Tomando como pressuposto que ações do Estado podem
atuar na busca da independência financeira da mulher, e que
isso é um passo importante para a equidade de gênero, este ar-
tigo tem como objetivo analisar algumas metas e ações propos-
tas pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM),
de 2013, que estejam relacionadas à busca pela igualdade e por
maior participação das mulheres no mundo do trabalho. O intui-
to não é chegar a conclusões sobre a adequação do plano, mas
sim retratar aspectos da condição das mulheres no mercado de
trabalho e debater sobre algumas ações e metas estabelecidas
no capítulo I do PNPM/2013 que estejam voltadas para a ele-
vação da participação e igualdade das mulheres no mercado de
trabalho, e que contribuam, portanto, para o desenvolvimento.
Utilizando a metodologia quantitativa, foram coletados
dados secundários sobre as metas estabelecidas, obtidos por
meio das Pesquisas por Amostra de Domicílios (PNAD), re-
alizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) (2004 a 2012), informações fornecidas pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e dados
sobre os cursos do Programa Mulheres Mil, coletados nos sites
dos institutos federais e fornecidos pelo Ministério da Educa-
ção (MEC) por intermédio do Sistema Eletrônico do Serviço
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 250 29/10/2015 16:20:03
de Informação ao Cidadão (e-SIC). A partir das informações,
produziram-se gráficos e tabelas, que foram analisados e rela-
cionados com as ações dirigidas para o atendimento das metas
selecionadas. Procurou-se também, quando disponível, avaliar
os dados de anos anteriores ao especificado na meta, a fim de
verificar a evolução histórica do indicador.
Diante da complexidade e da grande quantidade de metas,
objetivos e ações propostas no PNPM, efetuou-se um recorte,
sendo analisadas cinco metas contidas no capítulo I do plano:
aumento da taxa de ocupação e de participação das mulheres
no mercado de trabalho; diminuição da desigualdade de ren-
dimentos entre mulheres e homens; capacitação de mulheres
por meio do Programa Mulheres Mil; ampliação da forma-
lização das mulheres no mercado de trabalho; e garantia de
ao menos 50% das bolsas-formação do Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) para mulhe-
res. Essas metas foram selecionadas por estarem mais relacio-
nadas com a busca da autonomia feminina e da igualdade nas
relações de trabalho, tema do presente capítulo.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 251 29/10/2015 16:20:03
gênero consideram as diferenças nos processos de socializa-
ção de homens e mulheres e suas consequências no relaciona-
mento entre os sexos. As políticas para as mulheres, entretan-
to, são centralizadas na mulher e em sua responsabilidade na
reprodução social (educação dos filhos, demanda por creches,
saúde etc.). Essas políticas estão voltadas para a manutenção
da família e não para o empoderamento e autonomia das mu-
lheres (BANDEIRA, 2005). Segundo a autora,
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 252 29/10/2015 16:20:03
Assim, o investimento nas mulheres hoje tem importância
também para o desenvolvimento das próximas gerações, pro-
movendo efeitos de longo prazo (WORLD BANK, 2012).
O desenvolvimento está diretamente relacionado com o
progresso das mulheres em sua vida pública e privada, e com
o exercício pleno de seus direitos. Países que têm atuado nes-
se sentido, promovendo modificações na vida das mulheres e
fortalecendo o exercício dos direitos femininos dentro e fora
do lar e na vida econômica, política e cultural, têm avançado
também no desenvolvimento (CEPAL, 2011).
Para que o Estado atue na direção do empoderamento fe-
minino, tem sido apontada como imprescindível a organização
das mulheres em busca da garantia de acesso integral aos seus
direitos. Miranda (2013, p. 3) considera que
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 253 29/10/2015 16:20:04
concretos em termos de políticas de gênero e seu impacto so-
bre o desenvolvimento regional.
A promoção do empoderamento e da autonomia econômica
das mulheres pode ser e, geralmente, só é alcançada por meio
de políticas públicas. Conforme aponta Rosa (2007), a autono-
mia e o direito ao trabalho são elementos centrais para o exer-
cício da cidadania, sendo, assim, imprescindíveis as políticas
que contribuam para a alteração da divisão sexual do trabalho
na família.
Para reduzir as disparidades de gênero, a Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) sugere o estreitamento das diferen-
ças de participação da força de trabalho entre mulheres e ho-
mens; isto é, deve-se facilitar o acesso ao mercado de trabalho
para as mulheres e à educação, bem como ampliar as oportu-
nidades de emprego nos diversos ramos e níveis hierárquicos.
Assim, políticas públicas são necessárias para diminuir as
barreiras de entrada da mulher no mercado de trabalho, au-
mentando sua autonomia e promovendo o desenvolvimento
da sociedade. Ao construir as políticas públicas, os governan-
tes devem estar atentos aos impeditivos da livre participação
da mulher no mercado de trabalho, considerando os vários ti-
pos de família e as diferentes necessidades de cada uma delas.
Embora, conforme o conceito estabelecido por Bandeira
(2005), políticas como creches e infraestrutura não possam
ser consideradas como políticas de gênero, verifica-se que es-
sas políticas podem, como resultado secundário, promover a
autonomia, pela possibilidade de que as mulheres, principal-
mente as das classes sociais menos favorecidas, tenham acesso
ao trabalho. Por outro lado, é importante ressaltar que o traba-
lhar fora de casa não garantirá progresso na condição das mu-
lheres se estas forem discriminadas, exploradas no ambiente
de trabalho ou ainda utilizadas como mão de obra barata.
Verifica-se, portanto, que a busca pela equidade de gênero
é um tema bastante complexo, o que demanda envolvimento
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 254 29/10/2015 16:20:04
de todas as esferas governamentais. Para melhores resultados
das ações que visam à equidade de gênero, é necessário que se
efetive a transversalidade, ou o gender mainstreaming,50 o que
implica a inclusão da questão das desigualdades entre os sexos
na pauta de todas as esferas governamentais. Assim, busca-se
uma ação integrada das várias instâncias governamentais para
a superação das assimetrias de gênero, promovendo resulta-
dos mais eficazes das políticas públicas e uma governabilidade
mais democrática para as mulheres (BANDEIRA, 2005):
50 Gender mainstreaming pode ser traduzido como integração das políticas de gênero
no Estado. Segundo Miranda (2012), o conceito foi formalizado em 1995, na IV
Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 255 29/10/2015 16:20:04
No Brasil, o documento que reúne as diversas demandas
das mulheres, dos diferentes segmentos, e que nos serve de
referência em termos de políticas de gênero é o Plano Nacional
de Políticas para as Mulheres, que será apresentado a seguir.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 256 29/10/2015 16:20:04
O foco do presente trabalho será o primeiro capítulo do
PNPM: Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econô-
mica. O principal objetivo desse eixo é a autonomia econômica
e a igualdade, que “estão fundamentadas em ações específicas
que visam à eliminação da desigual divisão sexual do trabalho,
com ênfase na erradicação da pobreza e na garantia de parti-
cipação das mulheres no desenvolvimento do Brasil” (BRASIL,
2013, p. 14).
O capítulo I possui cinco objetivos específicos, 14 metas e
sete linhas de ação. Cada uma das sete linhas é, ainda, desdo-
brada, totalizando 46 ações planejadas. Os objetivos específicos
envolvem: ampliação da participação e permanência das mu-
lheres no mundo do trabalho com garantia da equidade de ren-
dimentos; promoção de organizações produtivas; valorização
e reconhecimento do trabalho das mulheres dos mais diversos
segmentos para o desenvolvimento do país; promoção de políti-
cas de compartilhamento das atividades domésticas; e amplia-
ção da formalização do trabalho das mulheres (BRASIL, 2013).
Nosso foco será a análise das ações e metas relacionadas
ao objetivo de ampliar a participação das mulheres no mundo
do trabalho, com busca da equidade de rendimentos e forma-
lização. Assim, as metas presentes no plano, que podem ser
consideradas como indicadoras do progresso desse objetivo, e
que serão avaliadas, são:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 257 29/10/2015 16:20:04
M. Garantir que no mínimo a metade dos beneficiá-
rios do Bolsa-Formação Inclusão Produtiva para be-
neficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do Pronatec,
sejam mulheres.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 258 29/10/2015 16:20:04
Figura 1 – Nível de atividade, por sexo, 2004 a 2012 .53
Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE).
Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE).
53 Não foi realizada PNAD no ano de 2010 . Para o ano de 2012, o IBGE alterou o cál-
culo da população em idade ativa (PIA), que passou de maiores de dez anos para
maiores de 15 anos. A fim de manter o mesmo cálculo do ano anterior, as taxas
foram recalculadas pela autora, levando em consideração o mesmo critério de PIA
dos anos anteriores . Assim, o percentual apresentado está diferente do que pode
ser encontrado no documento do IBGE .
54 Ver nota anterior .
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 259 29/10/2015 16:20:05
A taxa de ocupação, que indica o percentual de pessoas em-
pregadas, encontra-se em queda, havendo poucas diferenças
entre a redução nas taxas de ocupação de homens e mulheres.
Esse indicador pode variar de acordo com a geração de em-
pregos, que influi de forma diferenciada sobre a ocupação de
homens e mulheres, dependendo do setor em que se gerou ou
se reduziu o número de empregos.
Apesar de as reduções nas taxas – tanto de ocupação quanto
de atividade – ocorrerem de forma semelhante entre homens e
mulheres, fica evidente a menor participação das mulheres no
mercado de trabalho em todos os anos analisados.
É importante observar, entretanto, que a participação das
mulheres em atividades remuneradas fora do lar não segue
uma linha de crescimento contínuo, tem taxa de crescimento
bastante reduzida e está muito relacionada a questões econô-
micas, além das culturais.
Adotando uma perspectiva histórica, na sociedade brasilei-
ra do século 20, embora o trabalho do homem tenha se apre-
sentado com relativa constância, o mesmo não se deu com o
trabalho feminino. O nível de inserção da mulher no mercado
de trabalho, bem como a forma que toma essa participação,
sofreram grandes alterações ao longo do tempo. A industriali-
zação, que promoveu a abertura de inúmeros postos de traba-
lho a partir da década de 1930, excluiu as mulheres do espaço
público das fábricas (NOGUEIRA, 2008). Já a crise e a recessão,
que trouxeram dificuldades de sustento para as famílias na dé-
cada de 1980, impulsionaram a maior participação feminina
no mercado de trabalho (BALTAR, 1996).
Assim, fatores econômicos tiveram e têm influência sobre o
nível de inserção da força de trabalho feminina, dando-se desta-
que ao aquecimento de um setor da economia em relação a ou-
tro. Um exemplo disso é que, diante da elevação dos empregos no
setor terciário, a participação feminina no mercado de trabalho
eleva-se consideravelmente, visto ser esse um setor com ativida-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 260 29/10/2015 16:20:05
des culturalmente vinculadas às mulheres, como o atendimento
ao público. Mas fatores econômicos, entretanto, não explicam
tudo. Os valores da sociedade, as relações de gênero e o papel
social designado à mulher também tiveram seu impacto, atuan-
do, principalmente, na restrição das possibilidades de acesso de
muitas mulheres ao mercado de trabalho (BRUSCHINI, 2007).
Nas últimas décadas do século 20, ocorreram muitas mo-
dificações demográficas, culturais e sociais que levaram a um
aumento da participação das mulheres no mercado de traba-
lho. Entre elas, pode-se citar o movimento feminista, a redução
da quantidade de filhos por mulher, a redução do tamanho das
famílias, o envelhecimento da população, a maior expectativa
de vida ao nascer, o crescimento de arranjos familiares chefia-
dos por mulheres e a maior escolarização feminina (BRUSCHI-
NI, 2007). Todos esses aspectos contribuíram para a elevação
relativamente contínua da participação das mulheres no mer-
cado de trabalho a partir da década de 1970. Mas como será
debatido a seguir, a elevação da participação não promoveu
equidade de gênero no mundo do trabalho.
Essa não equidade reflete-se nos números da segunda meta
analisada, que é “Trabalhar para a diminuição da taxa de desi-
gualdade de rendimentos entre mulheres e homens, em rela-
ção a 2009”. Essa meta é de fundamental importância quando
se fala em equidade de gênero. Por mais que as mulheres aden-
trem o mercado de trabalho, observa-se que as questões de gê-
nero fazem com que elas se mantenham em profissões menos
valorizadas socialmente e, mesmo quando exercem atividades
iguais às masculinas, tenham remuneração menor.
Por meio da Figura 3, observa-se que a renda das mulhe-
res proporcionalmente à dos homens vem crescendo, ano a
ano, exceto por um leve decréscimo entre 2011 e 2012. Como
esse é o único decréscimo, não se pode afirmar que haja ten-
dência de retração da renda das mulheres em comparação
com a dos homens.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 261 29/10/2015 16:20:05
Figura 3 – Proporção do rendimento médio mensal das mulheres em relação
aos homens .55
Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados do IBGE (2013).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 262 29/10/2015 16:20:05
Se, por um lado, esse indicador sinaliza que as oportunida-
des de emprego para as mulheres escolarizadas vêm aumen-
tando, por outro, pode indicar que as menos escolarizadas vêm
perdendo espaço no mercado de trabalho e, ainda, que as mu-
lheres têm necessitado ter mais anos de estudo para conseguir
empregos equivalentes aos masculinos. Essa última hipótese
é reforçada pelo fato de que o aumento de renda das mulhe-
res tem sido bem menor do que o aumento da quantidade de
mulheres escolarizadas no mercado de trabalho (IBGE, 2013)
– ou seja, apesar da elevação da escolaridade, elas podem estar
atuando em funções aquém da sua formação e, portanto, com
nível de remuneração inferior ao que poderiam obter.
Outro indicador importante é a taxa de ocupação diferencia-
da entre homens e mulheres com 11 ou mais anos de estudo:
enquanto 84,1% dos homens com esse nível de escolaridade
estavam empregados, apenas 66,4% delas se encontravam na
mesma situação em 2012 (IBGE, 2013). Assim, a maior esco-
larização não se tem revertido, necessariamente, em maiores
níveis de emprego e renda para as mulheres.
Pode-se verificar, portanto, que essa meta estabelecida no
PNPM tem boas perspectivas de evolução. Entretanto, há muito
que se trabalhar para atingir igualdade de remuneração entre
os sexos. Essa condição de menor remuneração é influenciada
por diversos fatores, mas é evidente a presença de questões
de gênero, entre as quais se pode destacar a divisão sexual do
trabalho, que ocorre também fora do lar por meio da destina-
ção de profissões menos valorizadas para as mulheres (BOUR-
DIEU, 2002; KERGOAT, 2009); a necessidade de engajamento
em atividades de meio período por conta das obrigações fa-
miliares; da desaceleração da carreira diante do nascimento
e criação dos filhos (ARAÚJO; SCALON, 2005); e também da
discriminação das mulheres no mercado de trabalho.
A terceira meta analisada neste trabalho é “Ampliar a taxa
de formalização das mulheres no mercado de trabalho”. Esse é
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 263 29/10/2015 16:20:05
um indicador importante, que reflete a desigualdade entre ho-
mens e mulheres no mercado de trabalho. Em 2012, 31,2% das
mulheres não tinham registro em Carteira de Trabalho e Previ-
dência Social (CTPS), enquanto 26,8% dos homens encontra-
vam-se na mesma condição . Esse indicador, no entanto, vem
apresentando melhora significativa, como pode ser verificado
na Figura 4, que retrata a queda do percentual de trabalhado-
ras e trabalhadores sem registro .
Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs (IBGE, 2013).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 264 29/10/2015 16:20:06
As duas últimas metas analisadas são: “Garantir que no mí-
nimo a metade dos beneficiários do Bolsa-Formação Inclusão
Produtiva para beneficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do
Pronatec, sejam mulheres”; e “Capacitar 100 mil mulheres até
2014 (Mulheres Mil)”. Ambas têm como intuito capacitar as
mulheres para sua melhor inserção no mercado de trabalho,
constituindo-se, portanto, em uma ação que apoia o objetivo
de aumentar a taxa de ocupação e participação das mulheres,
bem como a meta de reduzir as disparidades de renda.
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Empre-
go (Pronatec), criado pela Lei nº 12.513, de 26 de outubro de
2011, é de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).
Sua finalidade é “ampliar a oferta de educação profissional e
tecnológica, por meio de programas, projetos e ações de assis-
tência técnica e financeira” (BRASIL, 2011, art. 1º). O Pronatec
oferta cursos gratuitos e auxílio a estudantes de cursos técni-
cos da rede pública de ensino (Bolsa-Formação Estudante) e
também se vincula ao Plano Brasil sem Miséria (BSM), ofer-
tando Bolsa-Formação Trabalhador a pessoas inscritas ou em
processo de inclusão no CadÚnico (BRASIL, 2011; 2014).
Segundo dados fornecidos pelo MDS (MDS, 2014), as mu-
lheres receberam 68% das Bolsas-Formação Trabalhador do
Pronatec/Brasil Sem Miséria entre 2012 e 2014. A região em
que houve maior participação de mulheres dentre os bolsistas
foi a Centro-Oeste, com 73%, e a região com menor percentual
de Bolsas-Formação para mulheres foi a Sul, com 64%. Dessa
forma, a meta proposta pelo PNPM está sendo atingida, mui-
to além dos 50% de bolsas propostas. Entretanto, quando se
agrupam as duas modalidades de bolsas (estudante e traba-
lhador), de acordo com os dados recebidos do Ministério da
Educação, em nenhum dos Estados da Federação há maioria
de mulheres entre os bolsistas, sendo que, desde a implanta-
ção do programa, as mulheres receberam 40,6% das Bolsas-
-Formação disponibilizadas no país (MEC, 2013a).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 265 29/10/2015 16:20:06
É importante ressaltar que os cursos do Bolsa-Formação
Estudante são cursos técnicos de nível médio, de longa dura-
ção, enquanto os cursos da Bolsa-Formação Trabalhador são
de Formação Inicial e Continuada (FIC), de menor duração e
destinados a pessoas com baixa escolaridade (BRASIL, 2011).
Assim, seria interessante que a meta de 50% de Bolsas-Forma-
ção para mulheres não se restringisse ao âmbito do Programa
Brasil Sem Miséria, mas se estendesse aos demais cursos do
Pronatec, já que eles são de nível técnico, que geram uma me-
lhor qualificação e oportunidades de inserção profissional em
funções com maior remuneração.
O Programa Mulheres Mil tem foco na promoção da equida-
de, igualdade entre sexos, combate à violência contra mulher e
acesso à educação. O programa busca capacitar exclusivamen-
te mulheres, com vistas à autonomia e criação de alternativas
para a inserção no mundo do trabalho. Em 2012 foi realizada
uma chamada pública de propostas para execução do progra-
ma, sendo pré-selecionados projetos dos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) de todas as regiões do
país. O programa, atualmente, é executado em 235 campi de
37 institutos federais. Em relação ao número de matrículas em
2013, foram beneficiadas 17.784 mulheres, sendo 42,5% das
matrículas registradas na Região Nordeste, 13% na Sudeste,
15,5% no Norte do Brasil, 10% no Centro-Oeste e 19% no Sul
(MEC, 2013b).
Na Região Norte, a título de exemplo, foram selecionados
projetos dos IFs do Tocantins, Acre, Pará e Rondônia. Em sua
execução, entretanto, observa-se que, diferentemente do que
propõe o PNPM, alguns cursos reforçam a divisão sexual do
trabalho, ou seja, parte dos cursos contemplam atividades
consideradas femininas e que geram baixa perspectiva de re-
tornos financeiros e de oportunidades formais de trabalho. Na
região, os cursos ofertados e/ou programados para 2013, de
acordo com levantamento realizado nos sites dos institutos fe-
derais acima referidos, foram:
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 266 29/10/2015 16:20:06
Tabela 1 – Cursos ofertados por meio do Programa Mulheres Mil na Região
Norte (2013).
ESTADO CURSO C.H. VAGAS
TO Informática para o Espaço Doméstico e do Trabalho 200 100
AC Jardinagem e Ornamentação 200 50
AC Horticultura Orgânica e Preparadora de Pescado 200 100
PA Artesão de Biojoias 160 100
PA Auxiliar de Cozinha 160 66
PA Pintura em Tecido 160 34
PA Corte e Costura 160 25
PA Operador de Computador 100 100
PA Pedreiro de Acabamento 200 35
PA Operador de Beneficiamento de Pescado 200 35
PA Manutenção e Reparador de Computadores 200 30
RO Processamento de Pescado 200 50
RO Alfabetização Digital e Inclusão Tecnológica 200 50
RO Formação Inicial e Continuada em 200 46
Empreendedorismo
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 267 29/10/2015 16:20:06
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 268 29/10/2015 16:20:06
política de gênero fundamental para a redução das disparida-
des salariais e de acesso das mulheres ao mercado de trabalho.
Políticas públicas afirmativas são fundamentais para reverter
as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, e ainda
não se verifica uma proposta de uma política consistente nesse
sentido.
Apesar de haver críticas ao PNPM, considera-se que ele
representa um avanço significativo ao trazer ações e metas
fundamentais para a promoção da equidade de gênero. É de
extrema importância que o que está proposto no plano seja
concretizado e, diante das avaliações realizadas nas conferên-
cias, se possa avançar e incluir novas políticas.
Além disso, conforme nos lembra Bandeira (2005), para re-
dução das assimetrias de gênero, não basta apenas a eficácia
de políticas públicas, pois as desigualdades sofrem influência
de outros fatores estruturais, como fatores econômicos, demo-
gráficos, de mercado, sociais, arranjos familiares, papéis e pa-
drões sociais. Portanto, é imprescindível que se reconheça que
as desigualdades de gênero expressam as relações de poder,
estando profundamente institucionalizadas.
A superação desse quadro, portanto, não se mostra simples,
e envolve a participação efetiva das mulheres como sujeitos de
sua história, como cidadãs ativas. A organização das mulheres
em cada Estado ou região tem importante papel na construção
e melhoria das políticas nacionais, visto que as necessidades
das mulheres e os níveis de desenvolvimento são diferentes
em cada localidade. Isso faz com que a promoção da autono-
mia das mulheres envolva um foco diferenciado por região,
que pode ir de políticas de educação básica a demandas por
equidade em cargos de liderança, por exemplo.
Apesar das diferenças regionais, os responsáveis pela for-
mulação de políticas públicas precisam estar sensíveis a ques-
tões de gênero, incluindo essa perspectiva nas políticas de de-
senvolvimento regional.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 269 29/10/2015 16:20:06
Diante de uma maior presença e representatividade femi-
nina nos espaços públicos, seja na política ou nas empresas, e
atentando-se para a transversalidade de gênero na construção
de políticas públicas, muito teremos progredido na busca da
equidade de oportunidades e direitos para ambos os sexos.
Somente assim se conseguirá progredir também na busca
pelo desenvolvimento, pois, como debatido por Amartya Sen
(2000), o desenvolvimento consiste na expansão das liberda-
des reais que as pessoas usufruem. Essa expansão da liberdade
é o fim prioritário e, simultaneamente, o meio principal para
o desenvolvimento. Dessa forma, o desenvolvimento humano
não pode ocorrer diante do desemprego, da falta de autono-
mia das mulheres e das desigualdades presentes no mercado
de trabalho. Ou seja, uma sociedade ou região que restringe as
possibilidades de emprego e despreza a capacidade das mulhe-
res limita também as suas possibilidades de desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 270 29/10/2015 16:20:06
BARROSO, Milena Fernandes. “Desenvolvimento regional, go-
vernança descentralizada e políticas públicas para as mulheres
no Amazonas”. Anais, Fazendo Gênero, 10, Florianópolis, 2013.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 271 29/10/2015 16:20:06
FARAH, Marta Ferreira Santos. “Gênero e políticas públicas”.
Estudos Feministas, vol. 12, nº 1, jan/abr. 2004, p. 47-71.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 272 29/10/2015 16:20:06
LISBOA, Teresa Kleba. “O Empoderamento como estratégia de
inclusão das mulheres nas políticas sociais”. Anais, Fazendo Gê-
nero, 8, Florianópolis, 2008.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 273 29/10/2015 16:20:06
da Silva; YAZBEK, Maria Camelita. Políticas públicas de trabalho
e renda no Brasil contemporâneo. 2ª ed. São Luís: Fapema, 2008.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 274 29/10/2015 16:20:07
REFLEXÕES SOBRE O MULTI(INTER)
CULTURALISMO E RELAÇÕES DE
GÊNERO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA NO AMAZONAS
Marcos André Ferreira Estácio
Diana Andreza Rebouças Almeida
INTRODUÇÃO
A
s primeiras experiências escolares com os indígenas,
no Brasil, datam do início da colonização portuguesa,
no século 16, e ocorreram em um contexto onde o po-
der político e econômico e a evangelização eram indissociáveis,
cabendo aos jesuítas catequizar os índios para promover uma
educação do tipo escolar e difundir o cristianismo. Nesse con-
texto, as diversidades culturais e de gênero eram suprimidas do
processo educativo e a centralização das ações estava apenas na
“suposta” necessidade de “civilizar” os índios aos moldes da cul-
tura ocidental.
O surgimento da monarquia no Brasil e a “proclamação da
Independência” no século 19 não trouxeram mudanças signifi-
cativas na área educacional em relação à população indígena,
continuando a ser realizada nos moldes tradicionais da cate-
quese, agora não mais pelo exclusivismo jesuítico, mas tam-
bém por outras ordens religiosas. O advento da República re-
presentou uma continuidade em relação à fase anterior, não
acarretando mudanças no âmbito da educação para o indíge-
na, pois na Constituição de 1891 ela foi ignorada.
No início do século 20, a relação do Estado brasileiro com
os povos indígenas pautava-se pela política integracionista que
visava a preparar os índios para ingressarem na “civilização”.
Tais ações contribuíram para o quase aniquilamento da diver-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 275 29/10/2015 16:20:07
sidade étnica e cultural, e o marco dessa política foi a criação,
em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), posteriormente denomi-
nado de Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Nesse período, a ação educativa para as comunidades in-
dígenas tinha por finalidade a formação do trabalhador na-
cional, com repercussão na “proteção” aos índios e o objetivo
de transformá-los em pequenos produtores rurais, a fim de
atender à política de regeneração agrícola do país. Ou seja, a
função educativa do SPI objetivava a incorporação do indígena
ao território brasileiro pela perspectiva do pequeno produtor
rural, por meio do ensino primário, com iniciação para o tra-
balho agrícola ou agropecuário, e também na defesa nacional,
com ênfase na disciplina militar, por meio do ensino de moral
e cívica e da educação física.
Vale ressaltar que, mesmo a educação escolar das comuni-
dades indígenas estando sob a responsabilidade do SPI, ainda
permanecia a presença das missões religiosas na tarefa edu-
cacional, que incluía uma parcela indígena, sobretudo no Es-
tado do Amazonas. Prova disso é a presença efetiva, a partir
de 1915, de missionários salesianos na condução de interna-
tos para crianças índias, na região do alto rio Negro, interior
do Amazonas; para tais internatos, meninos e meninas índios
eram recrutados e recebiam ensino primário, eram proibidos
de falarem suas línguas maternas e eram, ainda, iniciados na
religião católica e no aprendizado de hábitos e padrões estra-
nhos à sua cultura (WRIGTH, 2005).
Nos anos 1950, iniciou-se a discussão da necessidade de
se repensar as escolas indígenas, mas as alterações propostas
restringiram-se à adequação do ensino regular às diferentes
fases do contato entre os índios e a dita “civilização”. Na década
de 1960, incorporaram-se “certos avanços” à política indige-
nista, com a ratificação, pelo Brasil, da Convenção nº 107, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), elaborada em
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 276 29/10/2015 16:20:07
1957, e os convênios firmados entre o Summer Institute of Lin-
guistics (SIL) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Por meio de tais convênios, ampliaram-se os trabalhos
linguísticos e escolares no interior de dezenas de aldeias no
Amazonas, sem, contudo, considerar as especificidades das
relações de pertencimento, identidade e gênero no contexto
indígena. O modelo educacional implementado pelo SIL, ba-
seado na educação bilíngue, assemelhava-se ao de qualquer
missão tradicional: conversão dos gentios e salvação de suas
almas (RIBEIRO, 1962). Esse tipo de formação não valorizava
a diversidade e não tratava os povos indígenas como sujeitos
de direitos.
Os anos 1970 marcaram um período de novas experiências
na área da educação escolar indígena, pois parcelas influen-
tes do aparelho estatal e diferentes instituições religiosas e
indigenistas opuseram-se à perspectiva integracionista e à
presença do SIL em áreas indígenas e defenderam uma escola
guiada pelo respeito às culturas e identidades indígenas e aos
seus projetos de futuro. A partir desse período, iniciaram-se
os primeiros movimentos de organização de índios, a busca de
representação, a defesa dos seus interesses e a reivindicação
de uma instituição escolar em oposição à política de integra-
ção e construída por uma perspectiva educacional específica
e diferenciada.
A luta dos povos indígenas e as experiências de educação
escolar indígena, implementadas pelas entidades e organiza-
ções não governamentais, somada à força do movimento das
organizações em defesa da causa indígena, contribuíram para
que se alcançassem as conquistas constitucionais de 1988.
Essa Carta Magna reconheceu o direito de organização, de ma-
nifestação linguística e cultural, de ser e de viver segundo os
próprios projetos de sociedade. O texto constitucional rompeu
com a política integracionista de homogeneização cultural e
étnica, estabelecendo um novo paradigma baseado na possi-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 277 29/10/2015 16:20:07
bilidade de pluralismo, superou a tradição de tratar os índios
como “categoria transitória” e afirmou o direito à alteridade
cultural (GRUPIONI, 1997).
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) re-
forçou as disposições da Constituição Federal, incentivando o
desenvolvimento de uma educação multi(inter)cultural, com
a finalidade de proporcionar às comunidades indígenas o seu
reconhecimento perante as demais sociedades. Assim, as re-
formas educacionais para as populações indígenas propostas
pelo governo brasileiro vêm propiciando um grande estímulo
à discussão sobre escolarização das e nas aldeias, com inúme-
ros projetos de formação e capacitação de professores indíge-
nas realizados no país nos últimos anos (BANIWA, 2014), com
financiamento público e participação de secretarias estaduais
e municipais de educação, universidades e organizações não
governamentais (ONGs).
A inserção das questões étnico-raciais no contexto das re-
formas educacionais não tem sido posta como um tema rele-
vante das políticas públicas. No que se refere aos estudos de
gênero em relação às comunidades indígenas, nota-se ainda
pouca disseminação. Para Milhomem (2012), essa situação
ocorre não por falta de interesse de pesquisa na área, mas em
razão das dificuldades vivenciadas por pesquisadoras/es em
compreender as relações de gênero em comunidades indíge-
nas. Assim, o grande desafio posto é tirar as questões de gê-
nero e etnia da invisibilidade para que seja possível construir
uma agenda de políticas públicas educacionais para os indíge-
nas na perspectiva de gênero.
Assim, em um exercício preliminar, o presente texto busca
promover uma reflexão sobre multi(inter)culturalismo56 e re-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 278 29/10/2015 16:20:07
lações de gênero no contexto da educação escolar indígena no
Amazonas, e, nesse processo, apesar da tentativa de enfatizar
as diferenças, estas não são consideradas em sua totalidade,
pois, como será identificado, as questões de gênero têm sido
negligenciadas.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 279 29/10/2015 16:20:07
rais diversas como idiomas, costumes, culinária, modos
de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas,
e também nas linguagens artísticas: teatro, música, artes
visuais, dança, literatura, circo etc.
A dimensão cidadã considera o aspecto em que a cultura
é entendida como um direito básico do cidadão. Assim,
é preciso garantir que os brasileiros participem mais da
vida cultural, criando e tendo mais acesso a livros, espe-
táculos de dança, teatro e circo, exposições de artes vi-
suais, filmes nacionais, apresentações musicais, expres-
sões da cultura popular, acervo de museus, entre outros.
A dimensão econômica envolve o aspecto da cultura
como vetor econômico. A cultura como um lugar de ino-
vação e expressão da criatividade brasileira faz parte
do novo cenário de desenvolvimento econômico, social-
mente justo e sustentável (MINC, 2015, p. 1).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 280 29/10/2015 16:20:07
em consideração as contribuições das diferentes culturas e et-
nias para a formação do povo brasileiro, especialmente as das
matrizes indígena, africana e europeia (Art. 26, § 4º); institui
a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasi-
leira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental
e Médio, sejam eles públicos ou privados (Art. 26-A, §§ 1º e
2º); assegura às comunidades indígenas a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, no
Ensino Fundamental (Art. 32, § 3º); institui como dever do Es-
tado a oferta de uma educação escolar bilíngue e intercultural
para os povos indígenas (Art. 78, caput e Incs. I e II). Ou seja,
essa legislação repõe o Brasil como um país plural e reconhece
a importância do respeito às culturas, identidades e diferen-
ças, e também exige um repensar das relações entre educação
e culturas no espaço escolar.
Se, por um lado, essas temáticas passaram a ser explicita-
mente contempladas nos currículos da rede regular de ensino,
por outro lado, as resoluções aprovadas pelo Conselho Nacio-
nal de Educação (CNE), as quais fixam as diretrizes nacionais
para o funcionamento das escolas indígenas e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, já defendiam uma educação específica, diferenciada
e de qualidade construída em conjunto com os povos.
Entretanto, podemos perceber que nas referidas legisla-
ções não há referência às questões de gênero, o que evidencia
que, mesmo o Brasil tendo avançado nas políticas de gênero
há pouco mais de uma década, a partir da criação da Secreta-
ria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
em 2003, as políticas não foram plenamente interiorizadas e
diversificadas para atender as especificidades das mulheres
brasileiras.
No Amazonas, conforme afirmam Albuquerque e Peixoto
(2006), a educação escolar para as populações indígenas tem
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 281 29/10/2015 16:20:07
sido objeto de desenvolvimento de ações governamentais e são
decorrentes da Constituição de 1988, da LDB nº 9.394/1996,
das Diretrizes do CNE, da Constituição do Estado do Amazonas
de 1989 e das reivindicações do movimento indígena, que ao
longo dos anos vem lutando por uma educação escolar espe-
cífica, multi(inter)cultural, diferenciada e autônoma para os
seus povos. E conquistas dessa luta foram o reconhecimento
pela política estadual de educação escolar indígena da cate-
goria “escola indígena”58 e a criação do Conselho Estadual de
Educação Escolar Indígena (CEEI/AM).
Mesmo com esse reconhecimento, observa-se que o aces-
so à educação ainda é limitado. E um exemplo é a capital do
Estado do Amazonas (Manaus), que, segundo dados do Censo
Escolar (2013) do Ministério da Educação, possui 726 institui-
ções públicas de educação básica em atividade, sendo que ape-
nas três delas são reconhecidas como escolas indígenas,59 as
quais atendem 90 alunos. Logo, é imprescindível a ampliação
do acesso escolar diferenciado para as comunidades indíge-
nas, possibilitando-lhes uma educação específica e o respeito
às características étnicas e socioculturais.
É inegável que essas legislações introduziram o princípio
do multi(inter)culturalismo e o desejo de que este se construa
nas escolas, ganhando vida e transformando realidades, e que
no seu processo desconstrua os modelos padronizadores e
monoculturais dos grupos privilegiados que silenciam as di-
ferenças e reproduzem desigualdades e discriminações. Para
Candau (2008), faz-se necessário a (inter)relação entre os di-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 282 29/10/2015 16:20:07
ferentes grupos e a permanente renovação das culturas, seu
processo de hibridização e a desvinculação entre questões de
diferença e de desigualdade, e afirma que é no cruzamento, na
interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social
do conhecimento que a escola está chamada a se situar.
No que concerne à educação escolar indígena, Bergamas-
chi (2007, p. 197) aponta que os povos indígenas defendem
“práticas escolares que busquem constituir um modo próprio
de ensinar, em diálogo com [...] a educação tradicional e a cos-
mologia de seu povo”. Ou seja, essa educação deverá permitir a
cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola,
os processos próprios de ensino e aprendizagem e de produ-
ção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos
de interesse coletivo do seu povo.
E por que um povo ou comunidade indígena lutaria por es-
colas, já que ela é um espaço contraditório e ambivalente? So-
bre esse questionamento, Weigel (2003, p. 5) conclui que
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 283 29/10/2015 16:20:07
uma concepção ideológica naturalista e romântica sobre esses
povos, os quais são referidos a um passado mítico, sendo con-
traditoriamente negada a sua existência no presente.
Povos que viram – e hoje ainda veem – as suas línguas, suas
cosmovisões e costumes serem diminuídos, desprezados e
desrespeitados estão lutando para restabelecer e recuperar
seus territórios, vivendo um momento de intenso embate com
o etnocentrismo reinante nas sociedades não indígenas. No
entanto, se há pontos comuns entre as culturas, trocas entre
modos e costumes, isso não põe por terra as identidades de
um povo, pois nenhum ser humano ou sociedade vive isolado
do contexto e de seu tempo.
Não existem grupos superiores ou inferiores, mas grupos
diferentes. Um grupo pode ter menor desenvolvimento tecno-
lógico se comparado a outro, mas, possivelmente, é capaz de vi-
ver e conviver com determinado ambiente, além de não possuir
diversos problemas que esse suposto grupo “superior” possui.
Não se pode também negar os recursos tecnológicos da contem-
poraneidade, mas cada etnia precisa refletir sobre os condicio-
nantes sociais e econômicos que acompanham tais recursos.
Os indígenas, ou qualquer outro povo ou população, não
perdem suas identidades porque possuem escolas com recur-
sos tecnológicos, por acessarem – de suas comunidades, tri-
bos ou aldeias – a rede mundial de computadores (internet),
porque possuem celulares ou estão vestindo roupas sintéticas.
Para Meliá (2001, apud SILVA, 2007, p. 138, grifos do autor), a
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 284 29/10/2015 16:20:07
Segundo Geertz (1989, p. 15), a cultura é um contexto den-
tro do qual os acontecimentos sociais podem ser descritos e
ganhar significados. O conceito de cultura que ele defende
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 285 29/10/2015 16:20:07
reconhece a cultura indígena como uma das matrizes de
formação da identidade brasileira, em privilégio de uma
perspectiva eurocêntrica (MONTEIRO, 2007, p. 162-63,
grifos do autor).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 286 29/10/2015 16:20:07
do plano passou por momentos de conflitos no que se refere à
tentativa de incorporar as questões de gênero e sexualidade.60
Parlamentares conservadores afirmaram que questões re-
lacionadas a gênero traria às escolas materiais didáticos e di-
versos tipos de atividades que incentivariam a homossexuali-
dade; já os que estavam a favor dessa incorporação defendiam
a promoção do combate contra o preconceito às mulheres e
a homofobia nas escolas. Porém, mesmo com as dissidências
causadas por ativistas de ambos os lados, a menção de gênero
e sexualidade não foi incorporada.
A retirada das palavras gênero e sexualidade do PNE evi-
denciam um retrocesso, pois, enquanto o país tem realizado
grandes esforços para criação de políticas de gênero, a educa-
ção caminha de forma oposta, sem ressaltar no ensino a neces-
sidade de desconstrução do modo de se portar e pensar sobre
os papéis de gênero na sociedade.
Esse conflito desmonstra quão caro tem sido pautar as
questões de gênero em espaços políticos onde de fato pode-
riam gerar transformações profundas na sociedade – que dirá
então a inclusão desse debate no âmbito da educação escolar
indígena? Entendemos que, para essa discussão ser incorpo-
rada no contexto indígena, deverá proporcionar condições
políticas de participação e decisão, pautadas na construção de
um diálogo, firmado em um conjunto de princípios e direitos
integrantes da condição e afirmação étnica, os quais deverão
direcionar-se para o respeito às diferenças.
Ou seja, compreende-se que as especificidades dos interes-
ses e necessidades dos indígenas garantem-lhes, entre outras
questões, o direito de somente eles, os detentores dessas espe-
cificidades, poderem dizer que modelo de educação e de rela-
60 Plano Nacional de Educação: Por que o gênero assusta tanto? Disponível em:
<http://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho-2/plano-nacional-de-e-
ducacao-por-que-o-genero-assusta-tanto/>. Acesso em: 17 maio 2015.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 287 29/10/2015 16:20:08
ção com as questões de gênero está adequado aos seus modos
próprios de viver, pensar e ser. Isso significa que a autonomia61
dos povos indígenas deve ser garantida e resguardada, e mais:
indica a vontade dos próprios indígenas de serem os respon-
sáveis e partícipes dos processos voltados aos seus povos, às
suas comunidades, e que devem dar concretude, sentido e vida
aos seus direitos.
Pensar uma educação verdadeiramente inclusiva e plural,
a qual busca avançar na igualdade entre os gêneros nos povos
indígenas, exige esforço e reconhecimento da gestão pública
sobre essa demanda. Existem poucas iniciativas de políticas
públicas no âmbito da educação para reverter o quadro da
desigualdade entre os gêneros e, quando somada à discussão
da perspectiva étnica, é ainda mais invisível. Um exemplo de
iniciativa para discutir as questões de gênero na formação de
professores é o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE),
idealizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, no
ano de 2005, em parceria com o Conselho Britânico.
O curso tem sido oferecido gratuitamente pela Universida-
de Aberta do Brasil (UAB) no formato de ensino a distância
com o objetivo de formar professoras/es nas temáticas de gê-
nero, relações étnico-raciais e orientação sexual. Trabalhar a
formação de professores para lidar com as questões de gênero
é um passo importante para a mudança dos valores sociais, e o
GDE, desde a sua criação, tem cumprido esse papel. A inserção
do recorte étnico ou a criação de um curso/programa específi-
co poderia suprir essa lacuna.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 288 29/10/2015 16:20:08
A igualdade de gênero pensada com o recorte étnico é um
elemento importante para o desenvolvimento, pois refere-se à
igualdade de direitos, às responsabilidades e às oportunidades
de que os povos indígenas devem gozar, independentemente de
terem nascido homem ou mulher. É por meio da educação que
hábitos, costumes e valores são (re)construídos de uma geração
para outra. A educação possibilita a construção de ideias políti-
cas, sociais, formas de ser e de se comportar, podendo estimular
o exercício da tolerância e do respeito ao diferente.
Considerando as questões até aqui expostas, defende-se
a necessidade da promoção de planejamentos pedagógicos e
produção de material didático com a participação das/os pro-
fessoras/es indígenas, tanto em português como em suas lín-
guas maternas, para facilitar o processo de ensino e aprendiza-
gem nas escolas das sociedades indígenas e também valorizar
e respeitar suas culturas e vivências.
Esse material será de grande importância para subsidiar os
currículos das escolas, além de desencadear um importante
processo de construção do conhecimento e pesquisa pelos pro-
fessoras/es e alunas/os. Nessa perspectiva, a professora/or não
será um receptor passivo dos saberes da cultura escolar, mas
sim um/a pesquisadora/or, formuladora/or e intérprete dos sa-
beres socializados por meio do diálogo, do desenho e da escrita.
Os materiais didáticos construídos, instrumentos básicos
no processo de ensino e aprendizagem, tornam-se, ainda, re-
gistros da memória e cultura local, além de servirem como
veículo de socialização do saber tanto na própria comunida-
de como no intercâmbio com outras comunidades indígenas
e não indígenas. Enfim, torna-se mister contribuir para o pro-
cesso de autonomizacão e protagonismo indígena por meio da
educação escolar, propondo a elaboração de materiais didáti-
cos pelos próprios membros das escolas indígenas, que, além
de estimular a ação criativa, deverá ser socializada com outras
comunidades indígenas.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 289 29/10/2015 16:20:08
É nesse contexto que a diversidade se fortalece como te-
mática central, pois aborda questões que têm estreita relação
com as práticas pedagógicas vivenciadas e com as relações de
poder exercitadas dentro e fora do espaço escolar. Entende-se
igualmente oportuno perceber as relações de gênero na edu-
cação, pois não é possível “enfrentar os problemas centrais da
educação [...] sem uma adequada apropriação do conceito de
gênero” (CARVALHO, 2008, p. 120).
Compreende-se por gênero uma categoria classificatória,
que, como nos diz Machado (2000), pode ser o ponto de parti-
da para desvendar as mais diferentes e diversas formas de as
sociedades estabelecerem as relações sociais entre os gêneros,
ou seja, as relações de gênero são “transversais e relacionais”,
vinculadas às relações sociais e parte do movimento contradi-
tório que permeia a vida de homens e mulheres.
Ao articular o multi(inter)culturalismo com as questões de
gênero, aponta-se para a necessidade de não fixidez nem uni-
versalização das relações entre homens e mulheres. Remete à
ideia de que essas relações sociossimbólicas são construídas e
transformáveis, bem como diferentes em cada sociedade, cul-
tura e etnia. “O suposto é que todas as sociedades e culturas
constroem suas concepções e relações de gênero” (MACHADO,
2000, p. 6). Mas será que a escola, em geral, e a educação escolar
indígena, em particular, tem proporcionado essa articulação?
Sabe-se que muitos assuntos ainda são tabus nas escolas,
ou sequer são discutidos, e os que envolvem as relações entre
homens e mulheres na maioria das vezes são postos na seara
privada e/ou naturalizadas como derivados das diferenças de
sexo (biológicas). Assim, compreender que a função da esco-
la não é reproduzir modelos – mas sim transformá-los – é o
ponto inicial para a constituição de uma escola específica, di-
ferenciada e plural, que na perspectiva freireana é libertadora,
pois o homem é um ser de relações e não só de contatos, não
apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mun-
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 290 29/10/2015 16:20:08
do resulta de abertura à realidade. Por fim, acreditamos que
a convivência com o diverso, o diferente, proporciona a cons-
trução de uma sociedade mais plural, justa, igual, solidária e
verdadeiramente democrática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 291 29/10/2015 16:20:08
Entende-se que educação indígena é diferente de escola in-
dígena, pois aquela é anterior a esta e ultrapassa a concepção
de se ter alunas/os e professoras/es indígenas na escola, visto
que isso não faz de uma escola uma escola indígena. Vale ressal-
tar ainda que uma instituição escolar não é uma escola indígena
só porque está no ambiente de índios; uma escola não se tor-
na uma escola indígena só porque transmite os conteúdos que
veem nos livros elaborados pelos não índios, na língua indígena.
A educação indígena tem sua identidade em seus conteú-
dos, métodos de ensino, aprendizagem e avaliação, segundo a
diversidade étnica dos povos. Ela é uma realidade que acom-
panha todo o processo de desenvolvimento dos homens e mu-
lheres indígenas, buscando a valorização das diferenças e di-
versidades.
No Amazonas, além de contribuir para a formação de uma
identidade regional, acredita-se que o conhecimento das cul-
turas e das identidades indígenas são necessários para não
se incorrer no erro de análises e práticas destituídas de um
contexto histórico e cultural específico, pois um desafio a ser
alcançado pelos povos indígenas é vivenciar no cotidiano de
suas escolas um currículo multi(inter)cultural que favoreça a
construção das múltiplas identidades. Nessa direção, a incor-
poração da perspectiva de gênero para a promoção de uma
educação escolar indígena com igualdade de gênero deve ser
construída a partir das multiplicidades étnicas e culturais.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 292 29/10/2015 16:20:08
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 293 29/10/2015 16:20:08
__________. “Decreto nº 26, de 4 de fevereiro de 1991. Dispõe
sobre a Educação Indígena no Brasil”. Diário Oficial da União,
Brasília, ano CXXIX, nº 25, 5 fev. 1991, p. 2.487, Seção 1.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 294 29/10/2015 16:20:08
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 295 29/10/2015 16:20:08
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC); INSTITUTO NACIONAL
DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA
(Inep). Data Escola Brasil: Escolas públicas em Manaus. Dispo-
nível em: <http://www.dataescolabrasil.inep.gov.br/dataEs-
colaBrasil/home.seam>. Acesso em: 24 dez. 2014a.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 296 29/10/2015 16:20:08
SILVA, Rosa Helena Dias da. “Educação como exercício de di-
versidade: uma reflexão sobre pesquisas no campo da educa-
ção (Escolar) Indígena. In: GRACINDO, Regina Vinhaes (Org.).
Educação com exercício de diversidade: estudos em campos de
desigualdade socioeducacionais. Brasília: Líber Livro, 2007, p.
133-43 (volume 2).
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 297 29/10/2015 16:20:08
298 Gênero, desenvolvimento e território
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 298 29/10/2015 16:20:08
POSFÁCIO:
O INTERESSE DO GÊNERO
PELOS TERRITÓRIOS62
Sophie Louargant
62 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues
Aguiar.
Posfácio 299
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 299 29/10/2015 16:20:08
cais. Esse caminho necessário permitiu “colocar os óculos” do
gênero, apontar os efeitos de dominação, mas igualmente as
possibilidades de emancipação para as mulheres. Hoje, não se
trata mais de olhar unicamente de maneira homogeneizante
a categorização, todas as mulheres de uma mesma sociedade
evoluindo dentro de um contexto político, cultural e social si-
milar, para questões de classe, de gênero, de origem, não têm
as mesmas capacidades de aceder à emancipação, ao reconhe-
cimento, a “ter” lugar no espaço e na sociedade.
Compreender a relação de gênero no território (LOUAR-
GANT, 2003; BARD, 2004) é entender a maneira onde as re-
lações sociais de sexo impacta a relação no espaço, no tempo
e no lugar. Essa postura liminar desenvolvida nos trabalhos
geográficos, sociológicos, antropológicos de gênero conduziu
determinar os espaços de diferenciações, de usos, de práticas,
de territorialidades, das formas de hierarquizações que se im-
põem mais do que elas não se jogam ou se negociam. Os efei-
tos de gênero sobre a construção das sociedades e dos espaços
são, então, múltiplos, mas são por trato comum de mostrar as
formas de dominação e de hierarquizações. Essas últimas, bem
que denunciadas, tiveram por efeito favorecer as formas de co-
nhecimento sem, portanto, reforçar realmente as capacidades
das mulheres em se expressarem, em se reconhecerem, em
pertencerem aos territórios tanto que utilizadoras, que cidadãs
à parte inteira sem acreditar em serem vulneráveis em face das
violências verbais, físicas, diante do acesso aos transportes, aos
equipamentos, aos parques urbanos, ao mercado de trabalho.
Essas constatações explicam que novas relações de domi-
nação são de uma atualidade crucial e acentuam de uma con-
frontação à austeridade, à sexualidade, à corporeidade, à hete-
ronormatividade e à origem. Eles revelam mais sobre os efeitos
de uma maior metropolização, de uma aceleração dos fluxos
materiais e virtuais, de uma precarização dos empregos, res-
postas são esperadas ao nível local. De fato, ele não será capaz
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 300 29/10/2015 16:20:08
de ter uma leitura unicamente dos efeitos de gênero nos terri-
tórios pelos usos, ele não se trata de delimitar, dentro de cada
contexto nacional e local, as respostas propostas pelas autori-
dades locais em se questionando: Como elas são elaboradas?
Por quem elas foram portadas (coletivos, eleitas, lobby)? Qual
denominação foi retida para expor uma política de igualdade
entre homens e mulheres? As feministas reivindicam? Ou, ao
contrário da questão de igualdade entre homens e mulheres,
esteve ela inserida dentro de uma temática (discriminações),
um outro objetivo (desenvolvimento durável, Agenda 21, mobi-
lidade e transportes) para melhor invisibilizá-la? Qual foi o pa-
pel das associações? Esses dispositivos foram realmente postos
em prática? Qual protocolo gerado na observação pode colo-
car em prática e experimentado com os primeiros envolvidos?
Como os homens se posicionam sobre as evoluções culturais?
Eles estavam implicados nas iniciativas conduzidas?
Essas questões permitem olhar que o gênero é, antes de
tudo, uma questão coletiva e que a categorização produzida
pelas instituições internacionais não são sempre adaptadas
para serem postas numa aproximação de gênero e do desen-
volvimento. Na hora em que as identidades de gênero se abrem
nos territórios e se agenciam sob o olhar de uma hibridação
cultural, social e espacial, as aprendizagens das aproximações
de gênero são necessárias para colocar em prática uma pe-
dagogia do gênero no ato a todas as escalas de decisão e ne-
gociação. Para alcançar os novos arranjos presentes entre as
relações de gênero e compreender os agenciamentos possíveis
entre os coletivos associativos, os cidadãos, os operadores de
franquias culturais, a travessia de fronteira é possível se, toda-
via, a sociedade é preparada democraticamente a aceitar essas
travessias. A importância do debate público, o reconhecimento
(FRASER, 2005) toma corpo nas sociedades nas quais os espa-
ços são sob contrastes, submetidas nas normas internacionais
econômicas e culturais dominantes que reforçam os efeitos de
Posfácio 301
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 301 29/10/2015 16:20:09
invisibilização das mulheres, de vulnerabilidade das mulheres.
Essas pesquisas não podem ser feitas sem trocas múltiplas na
vista da circulação das pessoas em nível mundial e no olhar
da circulação dos conceitos de gênero em nível internacional.
Essas trocas são então produzidas dentro de uma figura alter-
nativa nas construções territoriais existentes, que as mulheres
conhecem bem: as redes, entre universitárias, entre coletivos,
mas igualmente construindo as experimentações com as mu-
lheres diretamente interessadas. É necessário, então, abordar
os pontos de vista sobre os jogos atuais, como o ecofeminista,
a emancipação e os movimentos sociais nos países em desen-
volvimento ou resiliência.
REFERÊNCIAS
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 302 29/10/2015 16:20:09
SOBRE OS AUTORES
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 303 29/10/2015 16:20:09
bre o Desenvolvimento Regional e Análise das Diferenças de
Sexo (Orégand): <www.oregand.ca>. Área de pesquisa: grupos
comunitários e grupos comunitários de mulheres com foco
nas relações do setor associativo com as autoridades locais e
regionais no quadro da nova governança descentralizada no
Québec. Coordenou durante vários anos pesquisas sobre o su-
jeito e, mais recentemente, estuda as intervenções dos grupos
de mulheres haitianas no periodo pós-terremoto.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 304 29/10/2015 16:20:09
Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em
Saúde Coletiva.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 305 29/10/2015 16:20:09
Fluminense (UFF). Desenvolve estudos e pesquisas na área de
Gênero e Famílias, principalmente no que concerne ao tema
Adoção, mais precisamente sobre os efeitos da destituição do
poder familiar na vida das mulheres pobres.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 306 29/10/2015 16:20:09
de Apoio à Formação de Recursos Humanos Pós-Graduados
para o Interior do Estado do Amazonas – RH-Interiorização.
Assistente social formada pela Universidade Estadual do Ce-
ará (Uece). Experiência nas áreas de Serviço Social Aplicado à
Saúde, Direitos Humanos, Gênero e Violência contra a Mulher.
Atualmente desenvolve pesquisa sobre Desenvolvimento, Vio-
lência e Políticas Públicas para as Mulheres na Amazônia.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 307 29/10/2015 16:20:09
Amazônicos e Terapia Familiar pela Universidade da Amazônia,
mestre em Políticas Públicas pela UFPA. Atua como técnica da
Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher
no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação
de Violência (Cram/Ananindeua), que é vinculado à Secretaria
de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Área de pesquisa: Re-
lações de Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 308 29/10/2015 16:20:09
o colóquio: Gênero, território, desenvolvimento: qual o aspec-
to geográfico? Ela é a autora de artigos e organizou números
de revistas científicas sobre esse tema. Para ver essas publi-
cações, acessar: http://www.pacte-grenoble.fr/blog/mem-
bres/louargant-sophie/; para ideias compartilhadas no blog:
http://genregeo.hypotheses.org/; para ouvir: <http://www.
franceculture.fr/personne-sophie-louargant>.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 309 29/10/2015 16:20:09
Este livro foi impresso em Manaus, em outubro
de 2015. O projeto gráfico – miolo e capa – foi
feito pela Valer Editora.
Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 310 29/10/2015 16:20:09