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Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.

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José Melo de Oliveira
Governador do Estado do Amazonas

UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO AMAZONAS

Cleinaldo de Almeida Costa


Reitor

Mário Bessa
Vice-Reitor

EDITORA UNIVERSITÁRIA

Allison Leão
Diretor

Mauricio Matos
Editor executivo

CONSELHO EDITORIAL

Allison Leão
Presidente

Adroaldo Cauduro
Cleusa Suzana Oliveira de Araújo
Dempsey Pereira Ramos Júnior
Estevão Vicente Cavalcante M. de Paula
Josefina Diosdada Barrera Kalhil
Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda
Maria da Glória Gonlves de Melo
Roberto Sanches Mubarac Sobrinho

Esta edião foi revisada conforme as regras do Novo


Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados © Universidade do Estado do Amazonas.
Permitida a reproduão parcial desde que citada a fonte.

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Cynthia Mara Miranda
Denyse Côté
Milena Fernandes Barroso
Marcos André Ferreira Estácio
O������������

GÊNERO,
DESENVOLVIMENTO
E TERRITÓRIO:
NOVAS SEMÂNTICAS E
ANTIGAS PRÁTICAS
José Melo de Oliveira
Governador do Estado do Amazonas

UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO AMAZONAS

Cleinaldo de Almeida Costa


Reitor

Mário Bessa
Vice-Reitor

EDITORA UNIVERSITÁRIA

Allison Leão
Diretor

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 3


Mauricio Matos 29/10/2015 16:19:44
Editor executivo
Copyright © Cynthia Mara Miranda; Denyse Côté; Milena Fernandes Barroso;
Marcos André Ferreira Estácio, 2015

editor ISAAC MACIEL


TENÓRIO TELLES/NEIZA TEIXEIRA
coordenação editorial
projeto gráfico EDITORA VALER
capa IVO SOUSA
revisão NÚCLEO DE EDITORAÇÃO VALER/LUCÍOLA LIMAVERDE
normalização YCARO VERÇOSA

M326g Miranda, Cynthia Mara.

Gênero, Desenvolvimento e Território: novas semânticas e


antigas práticas / Organizado por Cynthia Mara Miranda; Denyse
Côté; Milena Fernandes Barroso; Marcos André Ferreira Estácio.
Manaus: Editora Valer, UEA Edições, 2015.

310p.

ISBN 978-85-7512-798-8

1. Ciências sociais – Amazônia I. Miranda, Cynthia Mara


(Org.) II. Côté, Denyse (Org.) III. Barroso, Milena Fernandes
(Org.) IV Marcos André Ferreira Estácio (Org.)

CDU: 300.9811
22. Ed.

2015

EDITORA VALER UEA EDIÇÕES


Av. Rio Mar, 63, Av. Djalma Batista, 357, – Flores
Cj. Vieiralves – Nossa Senhora das Graças Cep: 69050 010 – Manaus, AM
Cep: 69053 130 – Manaus, AM Tel.: [92] 3878 4463
Tel.: [92] 3622 6141 editora@uea.edu.br
www.editoravaler.com.br

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SUMÁRIO

DESAFIOS PARA “NOVAS SEMÂNTICAS E ANTIGAS


PRÁTICAS”, DECOLANDO DE “DESENVOLVIMEN-
TO REGIONAL E GÊNERO”– TENTANDO UM PREFÁCIO . . . 7

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

PARTE 1 – DIÁLOGO SOBRE GOVERNANÇA


DESCENTRALIZADA, TERRITÓRIO E
DESENVOLVIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Território, desenvolvimento regional e igualdade de


gênero: algumas lições de Québec . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Qual a importância das desigualdades de gênero no
desenvolvimento rural dos países do Mercosul? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Desenvolvimento regional na perspectiva de gênero na
Região Norte brasileira: limites e possibilidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

PARTE 2 – AUTONOMIA DAS MULHERES E O ACESSO


ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

O surgimento de microempreendimentos de mulheres


rurais na Amazônia brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
Mulheres que plantam, mulheres que não colhem: pers-
pectivas de gênero e desenvolvimento em assenta-
mentos rurais no Tocantins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
Políticas públicas para as mulheres no Estado do Pará: a
experiência dos seminários regionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

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PARTE 3 – OS LIMITES DO DESENVOLVIMENTO NA
PERSPECTIVA DE GÊNERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

Entre enredos, encantos e desencantos: um estudo so-


bre saúde e o cotidiano de mulheres em contextos
de mudanças socioambientais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Gênero, pobreza e questões da adoção: os impactos
sociais da Lei n. 12.010/2009 na vida de mulheres
na cidade de Niterói/RJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Gênero e políticas públicas de trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 249
Reflexão sobre o multi(inter)culturalismo e relações de
gênero no contexto da educação escolar indígena no
Amazonas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 275

POSFÁCIO – O INTERESSE DO GÊNERO


PELOS TERRITÓRIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299

SOBRE OS AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 303

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DESAFIOS PARA “NOVAS SEMÂNTICAS
E ANTIGAS PRÁTICAS”, DECOLANDO
DE “DESENVOLVIMENTO REGIONAL E
GÊNERO”– TENTANDO UM PREFÁCIO
Mary Garcia Castro1

C
onfesso que resisti em prefaciar o livro organizado por
Cynthia Mara Miranda, Denyse Côté, Milena Barroso e
Marcos André Estácio. O primeiro estímulo foi o reco-
nhecimento da contribuição dos estudos de Côté, que conhe-
cia, para o campo de estudos sobre gênero e desenvolvimento,
o fato de que o Brasil conta com limitado acervo, assim como a
orientação da publicação por reunir textos relacionados a dife-
rentes países, como Brasil, Argentina e Canadá (Quebec).
Minha trajetória em um feminismo em se fazendo, cunhado
como emancipacionista, no Brasil, mas se alimenta de análi-
ses sobre sujeitos na crítica ao capitalismo e estudos sobre o
urbano. Esse feminismo desconfia da ênfase de agências in-
ternacionais em programas para mulheres em comunidades
rurais, ainda que bem-intencionados, apostando em alguma
autonomia das mulheres, produção para subsistência, geração
de pequena renda, alguma cooperativa local e apoio contra re-

1 Ph.D em Sociologia, professora da Universidade Católica de Salvador (Programa de


Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea e Programa de Pós-Gra-
duação em Políticas Sociais e Cidadania); pesquisadora do CNPq; pesquisadora
da Flacso-Brasil; professora aposentada da UFBA; coordenadora do Grupo CNPq/
Ucsal – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Juventudes, Identidades, Cidadania e
Cultura – e membro da diretoria da União Brasileira de Mulheres (ONG feminista,
de orientação emancipacionista).

Desafios para “novas semânticas e antigas práticas”, decolando de


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“desenvolvimento regional e gênero” – tentando um prefácio

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produções de violências nas relações primárias, mas evitando
debates sobre mudanças estruturais ou sobre o desvendamen-
to de alquimias entre capitalismo – ou seja, classe como siste-
ma político econômico cultural-simbólico – e os que sustenta-
mos de raça, gênero e geração, indo, portanto, além do plano
da igualdade. Aliás, reflexão que, no artigo de Côté, neste livro
se esclarece.2
O feminismo emancipacionista resgata, por reconstrução
conceitual, o termo patriarcado, considerando que há mais que
explorar “formas contemporâneas de patriarcado” (PATEMAN,
1993; SAFFIOTI, 2004; CASTRO, 2011), e se pergunta, como o
faz Saffioti (1998), se o conceito de gênero não seria “tão mais
palatável que feminismo [e o de patriarcado contemporâneo].
Seria o gênero mais asséptico do ângulo ideológico ou seria
percebido como neutro por muitos e muitas profissionais?”.
Mas tal corrente, a que me alinho, não descarta potencialida-
des do conceito de gênero, considerando, como bem sublinha
Zanotta Machado (2000, p. 16), que:

Mais do que um construtivismo individual de gênero, se-


ria desejável um construtivismo social e político baseado
na desnaturalização da desigualdade depoder entre os
gêneros em todas as dimensões da vida social. O olhar

2 No capítulo que se intitula “Território, desenvolvimento regional e igualdade de


gênero: algumas lições de Quebéc”, Côté pondera o recurso ao conceito de gênero
por agências internacionais de fomento ao desenvolvimento local e aquele que se
assume no feminismo, o qual enfatiza sua conjugação ao conceito de patriarcado.
Segundo Côté, “o conceito de gênero representa um conjunto de fenômenos so-
ciais, históricos, políticos, econômicos e psicológicos associados à filiação, ou não,
dos seres humanos de um sexo ou outro assim que o conjunto de consequências
geradas, como a desigualdade entre os homens e as mulheres (LÖW, 2006; YOU-
NG, 2005). Nesse sentido, as instituições internacionais e os governos nacionais há
vinte anos se comprometem a integrar a igualdade entre as mulheres e os homens
no centro de seus dispositivos e políticas. É necessário distinguir o feminismo, que
é uma filosofia de defesa de igualdade, do movimento social, que ressalta os limites
de um sistema patriarcal que reabsorve os pedidos de reformas”.

8 Gênero, desenvolvimento e território

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utópico feminista que reivindica a desnaturalização do
poder político, politizou o conceito da desconstrução
de gênero. Além de fazê-lo trabalhar enquanto conceito
teórico e analítico, fez dele um conceito político e uma
invenção feminista, por mais que queiram domesticá-lo.

Por sorte, não fiquei ancorada em minhas “verdades” e


muito aprendi com a agradável tarefa que me pediu a amiga
Côté. O livro em que se assenta este prefácio – Gênero, desen-
volvimento e território: novas semânticas e antigas práticas
– nos questiona em distintas formas. Desafia correntes do
feminismo que circulam por debates da micropolítica, redu-
zindo gênero a relações sociais entre homens e mulheres e
compreendendo o patriarcado apenas como ordem do pai, do
marido, socialmente legitimada em várias instituições, mas
que teria na família seu habitat original. Mercado, Estado e
movimentos sociais são questionados em diversos artigos que
compõem o livro.
Seus capítulos circulam por distintos níveis, sugerindo ne-
xos entre macropolíticas, modelos de desenvolvimento e re-
produção de relações de gênero assimétricas tanto no âmbito
das relações homem e mulher na família, com reprodução de
divisões sexuais de trabalho, quanto no espaço público, da mi-
litância – quando, mesmo em movimentos sociais progressis-
tas, elas não têm poder de mando.
Sai-se da justa mas insuficiente perspectiva de vitimiza-
ção das mulheres rurais para discutir como modelagens eco-
nômicas tipo microempreendimento, que tem mulheres na
vanguarda, questionam e oferecem alternativas para modelos
baseados na grande empresa rural, desafiando a nossa equa-
ção: desenvolvimento capitalista/condições objetivas para
formação de novos sujeitos críticos ao capital, ou a fatalidade
do agronegócio para um tipo de desenvolvimento que revele
os próprios limites (viés de um marxismo funcionalista).

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Não, vários artigos deste livro teorizam a partir de reali-
dades concretas, vivências que aliam buscas de alternativas
econômicas menos convencionais, baseadas na exploração, e
que não tenham somente o lucro de alguns como a meta bá-
sica, mas a qualidade de vida de muitos, a preocupação com o
meio ambiente, e nas quais gênero, como citamos em Zanotta
Machado (2000), indica formação de sujeitos sociais, coletivos.
Com tal chamada, desenhada por estudos de caso e análises
sistemáticas de experiências, nossos conceitos de desenvolvi-
mento modelados por ensaios abstratos são fragilizados. No-
vos sujeitos no agro são desenhados, mas fronteiras de poder
são reasseguradas.
Cito trecho de reflexão de Ferro (2015, p. 46-47), que mui-
to me calou, pois me advertiu sobre ambiguidades das lei-
turas pontuais sem debates dos limites do jogo do mercado
quanto a sentidos em horizonte de sustentabilidade, ou seja,
no aqui e no amanhã, de conflitos por assimetrias combina-
das de gênero e classe. São muitos, e em muitos lugares estão
os poderes patriarcais – e quão difícil é traçar identidades
entre esses e a reprodução do capitalismo, em especial quan-
do o foco é o desenvolvimento regional (a autora se refere a
modelagens do Mercosul):

Objetivos comerciais alcançados em detrimento de boas


práticas de uso do solo, de preservação de florestas na-
tivas e resultando em uma extensa contaminação de
ecossistemas devido a milhões de litros de agrotóxicos
despejados em enormes áreas de superfície, assim como
a alteração de cursos d’água, conflitos entre empresas
agrárias, povos originários e comunidades camponesas
por terra e água, dentre outras razões que provocam [...].
Os crescentes conflitos entre os atores agrários tão desi-
guais e com visões de desenvolvimento rural antagônicas
são indicativos de que os Estados da região fortalecem

10 Gênero, desenvolvimento e território

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ambos espectros: tanto a produção agrária empresarial
de grande escala e com vocação à exportação que produz
divisas, como as formas de produção agropecuária foca-
das na alimentação das populações locais, agroecológi-
ca, com objetivos de soberania alimentícia, revalorização
territorial e do modo de vida rural, no retorno à conti-
nuidade dos projetos familiares de vida nos meios rurais
a partir do estímulo às juventudes rurais, à igualdade de
gênero, às políticas de reparação fundiária destinada aos
povos originários e à afrodescendência, à preservação de
florestas nativas, de umidade e muitos outros itens que
produzem legitimidade política na base social.
Esta contradição tenta ser salva desde a proposta de coe-
xistência de formas distintas de produção, o que também
significa a coexistência de atores rurais muito desiguais
e assimétricos. Coexistência, afinal em um mesmo ter-
ritório de visões de modelos de desenvolvimento rural
contraditórios.

Essa é apenas uma ilustração que se encontra em várias


das peças deste livro, advertências bem fundamentadas por
estudos de casos sobre o que seriam “boas práticas” no cam-
po de desenvolvimento regional, embebidas em realidades de
desigualdades profundas, como as que se realizam na Região
Norte do Brasil e entre povos originários e sujeitos em agroe-
xperiências, deserdados de capital, à margem da competição
capitalista e que teimam em equacionar respeito ao meio am-
biente, sobrevivência, reconhecimento de vivências em siste-
ma de gênero, no privado e no público, e buscas de quinhão na
distribuição de riquezas.
A formação de sujeitos políticos mulheres, que reivindicam
e se organizam por direitos no Norte agrícola, e os limites da
retórica discursiva tanto do Estado e até do movimento femi-
nista institucionalizado em planos e políticas são documenta-

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dos por sérias pesquisas empíricas e análises de textos. Afasta-
-se, assim, sublinarmente, das análises que se formalizam por
se enquadrarem ou em estudos de casos ou em análises de ten-
dência. Sugere-se que há de combinar níveis. Certas experiên-
cias, microrreferidas, como o microempreendimento, no caso
das mulheres, beneficiam-se de tendências históricas, o avan-
ço do movimento de mulheres na área rural. Citando Mello e
Schmink (2015, p. 103),

O surgimento de microempreendimentos de mulheres


rurais encarna uma nova realidade econômica como
uma estratégia para reduzir a desigualdade de gênero
e aumentar a renda familiar. Na Amazônia brasileira, a
combinação de décadas de crescimento das organiza-
ções de mulheres rurais com condições políticas e eco-
nômicas ajudou a influenciar a expansão de grupos de
mulheres microempreendedoras.

Contudo, mesmo reconhecendo avanços, em nível micro e


macro, das organizações de mulheres no agro, na Região Nor-
te, estudos neste livro avançam no debate de modelos de de-
senvolvimento, e como desigualdades regionais reforçam su-
bordinações no gênero e na classe. É ilustrativo de tal chamada
a reflexão seguinte:

Para os movimentos feministas, conforme defende a Ar-


ticulação de Mulheres Brasileiras (AMB) apud Oliveira
(2010, p. 42), o modelo atual de desenvolvimento traz
inúmeros problemas: bloqueia as possibilidades de au-
tonomia econômica para as mulheres, reforçando a ex-
ploração sobre seu trabalho. Para as rurais, limita as pos-
sibilidades de acesso à terra. Para as urbanas, dificulta o
acesso à moradia. A todas as mulheres ameaça com um
contexto cada vez mais conservador, racista, excludente

12 Gênero, desenvolvimento e território

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e violento, posto que apoia na competição e lei do mais
forte, além de aprofundar a mercantilização, tudo trans-
formado em mercadoria: os bens comuns da natureza,
os serviços públicos, as pessoas, a sexualidade, a vida
(MIRANDA; BARROSO, 2015, p. 81).

Ressalto a realização da proposta do título do livro – Gê-


nero, desenvolvimento e território: novas semânticas e antigas
práticas – consubstanciada em diversas análises. A busca por
outra semântica na análise sobre perspectiva de gênero em de-
senvolvimento regional não isenta de um olhar crítico a pro-
dução feminista institucionalizada, como a que se materializa
em Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM).
Observam Tavares e Parente (2015, p. 269-271), por análise
de discurso do PNPM para 2015 e a situação de mulheres no
mercado de trabalho, que

Diante das metas e propostas analisadas, verifica-se que


há ações concretas, contidas no PNPM, no sentido de me-
lhorar a condição das mulheres [...]. Quanto às metas de
redução das disparidades salariais e aumento das taxas
de ocupação e atividade, considera-se que o PNPM não
traz propostas concretas que deem subsídio a estas me-
tas e propiciem igualdade e eliminação da discriminação
das mulheres no mercado de trabalho de forma geral.
Apesar de propor qualificação e creches, o plano não traz
ações afirmativas, que visem compensar as desvantagens
anteriores vivenciadas [...]. Políticas públicas afirmativas
são fundamentais para reverter as desigualdades de gê-
nero no mercado de trabalho e ainda não se verifica uma
proposta de uma política consistente neste sentido.
[...] o desenvolvimento humano não pode ocorrer diante
do desemprego, da falta de autonomia das mulheres e
das desigualdades presentes no mercado de trabalho. Ou

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seja, uma sociedade ou região que restringe as possibili-
dades de emprego e despreza a capacidade das mulheres
limita também as suas próprias possibilidades de desen-
volvimento.

Tantas citações em um texto, que se pretende prefácio, con-


figura-o mais como um thriller, a estimular leitura cuidadosa
do livro em pauta, inclusive por olhares diversos ao que aqui
se sugere.
Se a diversidade de textos contribui para debates sobre cor-
pi explícito – gênero, desenvolvimento, território, experiências
de mulheres rurais em distintas formas de organização econô-
mica na Região Norte – e sentidos como práticas alternativas
às lógicas de mercado, o que já o legitima como importante
referência sobre desenvolvimento regional e gênero no Bra-
sil, em muito também provoca debates em nível internacional
sobre construções contemporâneas empírico-teóricas de con-
ceitos como patriarcado e gênero e relações entre governabi-
lidade, território e poder. Em que medida tais temas, além do
debate conceitual pró-igualdade, não estariam a pedir mais
radicalidade feminista e cuidados com as ciladas da perspecti-
va de governabilidade e de políticas públicas com enfoque de
gênero (ver nesta linha o artigo de Côté)?

REFERÊNCIAS

CASTRO, Mary Garcia. “Notas sobre a potencialidade do con-


ceito de patriarcado para um sujeito no feminismo. Contribui-
ções de Heleieth Saffioti – em memória e pelo devir”. Cadernos
Crítica Feminista, ano V, nº 4, dez., 2011, p. 72-99.

MACHADO, Lia Zanotta. “Perspectivas em confronto: relações


de gênero ou patriarcado contemporâneo?” Série Antropologia,

14 Gênero, desenvolvimento e território

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nº 284, Brasília, 2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/
doc/53663519/MACHADO-Lia-Zanotta-Perspectivas-em-con-
fronto-Relacoes-de-genero-ou-patriarcado-contemporaneo>.
Acesso em: 29 nov. 2013.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Ter-


ra, 1993.

SAFFIOTI, Helleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:


Perseu Abramo, 2004.

__________. “Prefácio”. In: ABRAMOVAY, Miriam; CASTRO, Mary


Garcia. Em-gen-dran-do um novo feminismo: mulheres líderes
de base. Brasília: Unesco/Cepia, 1998.

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APRESENTAÇÃO

A
s discussões sobre o desenvolvimento fazem parte
dos grandes temas da sociedade moderna. Atreladas
a esse conceito, desenvolvem-se, nas esferas governa-
mental, acadêmica e dos movimentos sociais, reflexões sobre
os vários tipos de desenvolvimento, quais sejam: econômico,
social, cultural e, ainda, sobre alternativas às problemáticas
socioambientais. A questão, por sua vez, é bastante complexa,
pois envolve nuanças que vão desde os vários significados re-
lacionados ao termo até as controvérsias no debate intelectual
e político. A proposta do livro Gênero, desenvolvimento e terri-
tório: novas semânticas e antigas práticas, nesse âmbito, tem
como objetivo contribuir para o debate do desenvolvimento
sob a perspectiva de gênero, pondo em destaque a atuação das
mulheres de forma autônoma ou organizada em movimentos
de mulheres e/ou feministas nos governos locais e regionais.
O livro busca integrar a reflexão de pesquisas cujas abor-
dagens dialoguem com problemáticas referentes às inter-rela-
ções entre a construção do desenvolvimento e a participação
das mulheres nos processos de tomada de decisão política,
participação social e econômica em distintas sociedades. Os
artigos aqui reunidos partem de diferentes reflexões teóricas e
metodológicas para apresentar vertentes do desenvolvimento
relacionadas com as questões de gênero, tais como desenvol-
vimento rural, desenvolvimento local e regional, desenvolvi-
mento urbano ou econômico, políticas públicas de trabalho,
educação, dentre outras.

Apresentação 17

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Mulheres organizadas nos mais diversos contextos têm
buscado acessar os direitos sociais em dinâmicas plurais para
que a desigualdade entre os gêneros não as impeça de parti-
cipar dos espaços de decisão, o que põe em evidência o papel
delas como sujeitos políticos. Não por outro motivo, as políti-
cas públicas, programas e legislações que surgem para reduzir
as desigualdades entre os gêneros colocam-se como resultado
dessa articulação constante das mulheres na reivindicação dos
seus direitos. A discussão sobre desenvolvimento na perspec-
tiva de gênero neste livro visa também a uma autorreflexão e a
uma autocrítica, de forma a reconhecer o papel das mulheres
na busca de um desenvolvimento capaz de dimensionar suas
necessidades específicas em toda a sua diversidade étnico/ra-
cial, regional, geracional, sexual e de classe.
O livro, além de contemplar as referidas discussões no Es-
tado brasileiro, pretende ampliar o debate incorporando con-
tribuições teóricas sobre o tema com base em experiências do
Canadá, da França e dos países que integram o Mercado Co-
mum do Sul (Mercosul). A obra é resultado de um esforço co-
letivo construído pelos projetos de pesquisa Desenvolvimento
regional sob a perspectiva de gênero: um estudo sobre a atu-
ação organizada das mulheres nos Organismos Governamen-
tais de Políticas para Mulheres no Amazonas e Tocantins, que
foi selecionado e financiado pelo edital MCTI/CNPq/SPM-PR/
MDA, e pelo projeto Integração das políticas de gênero no Esta-
do: Tocantins, Pará e Amazonas em perspectiva comparada, que
foi selecionado e financiado pelo edital Chamada Universal –
MCTI/CNPq nº 14/2012.
Os projetos desdobraram-se na organização do Grupo de
Trabalho Desenvolvimento local, desenvolvimento regional e
o direito das mulheres: um quebra-cabeça da descentraliza-
ção, no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 – Desafios
Atuais dos Feminismos –, que se realizou em Florianópolis,
Santa Catarina, no ano de 2013. Nessa ocasião, foi estabele-

18 Gênero, desenvolvimento e território

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cida uma parceria entre pesquisadoras do Núcleo de Estudos
das Diferenças de Gênero (Nedig), da Universidade Federal do
Tocantins, e o Observatoire sur le développement régional et
l’analyse différenciée selon les sexes (Orégand), del’Université
du Québec, en Outaouais, no Canadá, que coordenaram o refe-
rido grupo de trabalho.
No cenário brasileiro, nas décadas de 1960 e 1970, o de-
senvolvimento configurou-se como um novo campo de estu-
dos nas universidades brasileiras, baseada na influência nor-
te-americana, que difundia a perspectiva evolucionista do de-
senvolvimento e que passou a contribuir decisivamente para
a consolidação de determinadas linhas de pesquisa no Brasil,
entre as quais os estudos sobre as virtudes do mercado e da
globalização e, nas décadas posteriores, a reinvenção do novo
desenvolvimento e da problemática da pobreza sem conside-
rar as dimensões de gênero. As abordagens sobre desenvolvi-
mento apresentadas nesta obra darão destaque aos diferentes
componentes do desenvolvimento, como o território, a cultura
e a sociedade na perspectiva de gênero. Além de questionar o
próprio conceito de desenvolvimento, o livro também consi-
dera os limites do conceito de gênero, que ganharam grande
importância nos estudos e debates acadêmicos nas últimas
décadas no Brasil.
Feministas filiadas a uma abordagem social crítica, apesar
de reconhecerem a importância do conceito de gênero, cha-
mam a atenção para a centralidade que o conceito de gênero
assumiu ou a exclusividade de seu uso nos estudos feministas
em detrimento ou em substituição ao debate do patriarcado, o
que, no nosso entendimento, pode contribuir para obscurecer
desigualdades e opressões, e deslocar a atenção da domina-
ção masculina. Feita a ressalva, a presente elaboração propõe
fomentar a articulação do debate sobre gênero e desenvol-
vimento em escala local e regional, apontando seus limites e
suas possibilidades, ao passo que a situamos dentro das con-

Apresentação 19

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tradições básicas da estrutura social, patriarcado, racismo e
capitalismo, que, de forma imbricada, sustentam o modelo de
desenvolvimento em curso.
O livro conta com contribuições provenientes de áreas
como sociologia, ciência política, geografia, serviço social, di-
reito e educação, as quais, ao dialogarem, promovem inter-
locuções com diversas áreas do conhecimento, com base na
abordagem do desenvolvimento na perspectiva de gênero. Os
estudos de gênero, por sua vez, propiciam um diálogo críti-
co com diferentes disciplinas e com o pensamento feminista,
o que favorece o exercício da interdisciplinariedade entre os
distintos campos do saber. Essa interdisciplinaridade do cam-
po de estudos feministas, segundo Zanotta Machado (1992),3
é resultado do estabelecimento de um diálogo constante feito
pelos movimentos feministas com a academia.
A primeira seção do livro apresenta diálogos sobre gover-
nança descentralizada, território e desenvolvimento. No arti-
go Território, desenvolvimento regional e igualdade de gênero:
algumas lições do Quebéc, Denyse Côté discute as relações que
os movimentos de mulheres construíram no Estado do Que-
béc, no Canadá, para participarem dos processos de tomada
de decisão política e no acompanhamento das políticas públi-
cas. No contexto da América do Sul, Silvia Ferro questiona as
desigualdades de gênero no desenvolvimento rural baseado
no espaço do Mercado Comum do Sul (Mercosul), consideran-
do que o enfoque de gênero é transversal a toda a atividade
agrária e econômica no geral, havendo, contudo, nesse espa-
ço, limitações para a promoção de um desenvolvimento rural
igualitário entre os gêneros. No último capítulo da seção, as
autoras Cynthia Miranda e Milena Barroso discutem os limites

3 MACHADO, Lia Zanotta. “Feminismo, academia e interdisciplinaridade”. In: COSTA,


Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

20 Gênero, desenvolvimento e território

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e as possibilidades para se pensar o desenvolvimento regional
na perspectiva de gênero na Região Norte do Brasil e apontam
a ausência de uma agenda de desenvolvimento regional e gê-
nero na área considerada.
Na segunda seção da coletânea, as discussões estão centra-
das na questão da autonomia das mulheres e em seu acesso às
políticas públicas. O primeiro artigo, das autoras Denyse Mello
e Marianne Schmink, discute a criação de microempreendi-
mentos formados por mulheres rurais com base na atuação
dos movimentos de mulheres, pontuando que tais empreen-
dimentos representam uma estratégia para reduzir a desigual-
dade de gênero e aumentar a renda familiar. O artigo seguinte,
de autoria de Gleys Ially Santos, enfatiza a participação das
mulheres no desenvolvimento regional/local baseado nos as-
sentamentos de reforma agrária no Estado do Tocantins, bem
como os desafios da luta pela terra, que se torna, também, uma
perspectiva de igualdade de gênero no âmbito rural brasileiro.
No último artigo da seção, de Rosana Ribeiro Morais, o tema
das políticas públicas para as mulheres é tratado com base na
experiência do Governo do Estado do Pará por meio da realiza-
ção de Seminários Regionais de Políticas para as Mulheres nas
12 regiões de integração do Estado e, nesse sentido, aponta
para a necessidade de compreender as realidades específicas
dos municípios para se pensar o desenvolvimento regional na
perspectiva de gênero.
A terceira seção do livro reúne artigos que dialogam em tor-
no dos limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero.
As autoras Virgínia Alexandre e Maria Teresa Nobre levantam
reflexões sobre as questões de saúde das mulheres em contex-
tos de mudanças socioambientais, enfatizando as estratégias
que possuem para resistir às consequências da expansão ur-
bana desenfreada em um cenário de crescimento urbano da
cidade de Aracaju, capital do Estado do Sergipe. Na sequência,
o artigo de Maria Izabel Barros, Nívia Barros e Rita de Cássia

Apresentação 21

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Freitas trata sobre a ausência de políticas de adoção que, exis-
tindo, garantiriam mais autonomia para as mulheres, tornan-
do a questão menos sofrível para as mulheres pobres. O arti-
go de Ariane Tavares e Temis Parente tem como foco as ações
do Estado para a busca da autonomia econômica das mulhe-
res como um passo importante para a equidade de gênero. O
último artigo da seção, de autoria de Marcos André Estácio e
Diana Andreza Almeida, almeja promover uma reflexão sobre
multi(inter)culturalismo e relações de gênero no contexto da
educação escolar indígena no Amazonas e, nesse processo,
apesar da tentativa de enfatizar as diferenças, estas não são
consideradas em sua totalidade, pois, como será identificado,
as questões de gênero têm sido negligenciadas.
A obra finaliza com o posfácio de Sophie Louargant, que
questiona as inter-relações entre os gêneros no espaço e terri-
tório, e aponta a necessidade de abordar pontos de vista atuais
para compreender essas relações, como ecofeminismo, eman-
cipação e movimentos sociais.
Por fim, almejamos que as discussões apresentadas nesta
obra contribuam para a compreensão dos diferentes compo-
nentes do desenvolvimento baseadas em uma visão crítica que
busca considerar o papel das mulheres na articulação e reivin-
dicação de um desenvolvimento capaz de promover a igualda-
de entre os gêneros. Cabe dizermos também que os referidos
artigos são de total responsabilidade das/os suas/seus auto-
ras/es, e as ideias neles expressas não correspondem, necessa-
riamente, à opinião de suas/seus organizadoras/es.

22 Gênero, desenvolvimento e território

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PARTE 1

DIÁLOGO SOBRE
GOVERNANÇA
DESCENTRALIZADA,
TERRITÓRIO E
DESENVOLVIMENTO

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TERRITÓRIO, DESENVOLVIMENTO
REGIONAL E IGUALDADE DE GÊNERO:
ALGUMAS LIÇÕES DE QUÉBEC4
Denyse Côté

E
m todo o globo, constatamos que os mecanismos de
governança em escala local ganham importância. Bas-
ta recordar as múltiplas reformas que criaram novas
distribuições de poder entre o Estado e as regiões ou ainda
a renovada atenção à governança das cidades (HORAK; YOU-
NG, 2012). O interesse das instituições políticas e econômicas
focaliza cada vez mais sobre os territórios locais e regionais
(TREMBLAY; KLEIN; FONTAN, 2009). Do mesmo modo, as re-
formas privilegiam geralmente um modelo consensual e de
consulta, tendo por objetivo deixar as coletividades locais mais
autonômas em matéria administrativa e política. Essas refor-
mas descentralizantes, assim como a institucionalização dos
mecanismos de consulta e de coordenação, respondem às di-
ficuldades crescentes dos Estados centralizados e visam tam-
bém a acalmar suas finanças públicas, a melhorar a eficácia do
sistema e valorizar a integração social (JALBERT, 1991).
Depois de mais de uma década, a descentralização torna-
-se, assim, uma ferramenta importante de reengenharia, as-
sim como um espaço privilegiado de transformação do Esta-
do (JOUVE, 2004). Órgãos locais e regionais desempenham
agora um papel mais relevante na tomada de decisão na vida

4 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues
Aguiar.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 25

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econômica, social e ambiental (VACHON, 2005). Novas estru-
turas locais assim criadas fazem um chamado à contribuição
da sociedade civil em geral (HOELL; PEARCE, 2001; CÔTÉ et.
al., 2011); elas também recebem cada vez mais mandatos para
aplicar uma “perspectiva de gênero” em suas políticas e pro-
gramas. Isso atende aos trabalhos de desenvolvimento do ter-
ritório (BULOT; POGGI, 2004).
Essa popularidade de escalas restritas no mundo político
e econômico está acompanhada por sua vez de uma renova-
ção de interesses pela territorialidade nas ciências sociais.
Entretanto, dentro desse contexto, a análise de gênero5 do
território continua relativamente marginal. Os temas larga-
mente documentados do direito à cidade (MAYER, 2009), do
desenvolvimento urbano, da democracia municipal (TARDY;
BÉDARD, 1997; TRUDELLE et. al., 2006), do desenvolvimento
local (BARBIERI et. al., 2007; ANDREW, 1997), do desenvolvi-
mento rural (ASTER, 1999; SEMBLAT, 1997), dos conflitos ur-
banos, da ruralidade (LAFONTAINE; THIVIERGE, 1997), para
não citar somente esses exemplos, têm suscitado um interesse
restrito e esporádico da parte das(os) pesquisadoras(es) fe-
ministas, apesar do fato de que eles sejam, todavia, centrais
para a compreensão das relações sociais de sexo e do território
(LOUARGANT, 2002).
Além da diferenciação dos espaços públicos/privados, a
inclusão do gênero dentro da análise do território revela-se
na microescala de espacialidades (DAY, 1999) e de tempora-

5 O conceito de gênero representa um conjunto de fenômenos sociais, históricos,


políticos, econômicos e psicológicos associados à filiação, ou não, dos seres hu-
manos de um sexo ou outro, assim como o conjunto de consequências geradas,
como a desigualdade entre os homens e as mulheres (LÖW, 2006; YOUNG, 2005).
Nesse sentido, as instituições internacionais e os governos nacionais há vinte anos
se comprometem a integrar a igualdade entre as mulheres e os homens no centro
de seus dispositivos e políticas. É necessário distinguir o feminismo, que é uma
filosofia de defesa de igualdade, do movimento social, que ressalta os limites de
um sistema patriarcal que reabsorve os pedidos de reformas.

26 Gênero, desenvolvimento e território

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lidades sociais cotidianas (TREMBLAY; ROCHMAN, no prelo;
BARRÈRE-MAURISSON; TREMBLAY, 2009). Na média escala,
ela traduz a elaboração de códigos e de normas para grupos
sociais, e na macroescala social ela permite ler os jogos de ne-
gociação dentro da construção de territórios. A atual conjun-
tura de descentralização política e administrativa, as questões
éticas recentes em matéria de governança de proximidade, as-
sim como o interesse renovado para os negócios municipais
(TREMBLAY; KLEIN; FONTAN, 2009), reprojetam também a
pertinência do tema. Dentro desse contexto, os grupos de mu-
lheres locais e regionais são cada vez mais chamados a contri-
buir, e diversas experiências de integração do gênero ao terri-
tório são propostas (WCI, 2012). Entretanto, se os atores locais
são muitas vezes responsáveis por integrar o gênero, pensar o
gênero como categoria de ação local é uma tarefa difícil para
eles, uma vez que diferentes paradigmas clássicos guiam suas
decisões e suas ações.
De fato, a rejeição do paradigma da neutralidade das políti-
cas e das ciências sociais por uma análise, decisões e políticas
locais na perspectiva de gênero tem se consolidado de forma
clara ao longo dos anos: desenvolvimento urbano (HUNING,
2011), segurança das mulheres dentro de seus espaços de vida
(WCI, 2011; WERKELE et. al., 1995), mulheres e cidade (FENS-
TER, 2005; HAYDEN, 1981), impactos locais da integração das
mulheres ao emprego (FELSENSTEIN; PERSKY, 2011), violên-
cia dentro das cidades (YAVUZ; WELCH, 2010; FALU, 2009), as
mulheres em situações de catástrofes naturais (MAGLOIRE;
LAMOUR, 2013; HORTON, 2012), políticas de desenvolvimen-
to local e regional (MIRANDA, 2014), descentralização das ci-
dades (PARÉ et. al., 2008), eis que tantos temas produziram
intervenções apoiadas por uma literatura científica. Ainda as-
sim, trata-se de dinâmicas muitas vezes paralelas, não tendo
sido até agora objeto de um projeto comum.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 27

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Ademais, as traduções operadas por essas iniciativas, tan-
to as ferramentas como as análises, são ainda efêmeras, e, so-
bretudo, encontram pouco revezamento entre os territórios e
sofrem de uma falta de integração transversal. No entanto, os
regimes de cidadania emergentes se querem inclusivos do gê-
nero e focados na escala subnacional: eles suscitam debates e
ao mesmo tempo resistências, em certos casos; eles reconfigu-
ram o espaço público local e regional (WALBY, 2004). Enfim,
eles revelam então certos efeitos de luzes e certos efeitos de
sombra, estão repletos de boas práticas, mas também de efei-
tos perversos.

DESENVOLVIMENTO REGIONAL OU
OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO?

Durante muitas décadas de adoção do conceito de


desenvolvimento das regiões ou de desenvolvimento regional,
o governamento de Québec utiliza o conceito de ocupação
do território para designar suas intervenções nas 17
regiões de Québec. Mesmo que essa modificação responda
sem dúvida a uma lógica administrativa e política, ela traz
em si consequências discursivas. O conceito de ocupação
do território oculta, de fato, a natureza das ligações entre
o centro (Québec, Montreal) e a periferia (as regiões que
produzem recursos naturais) e para as regiões ditas distantes
ou limítrofes dos grandes centros urbanos.
Popularizado após a Segunda Guerra Mundial e durante o
período de decolonização, o conceito de desenvolvimento se
inspira nas teses evolucionistas surgidas por volta dos sécu-
los 18 e 19. Ele postula a evolução linear de uma sociedade,
ou, no caso que nos interessa, de uma região, segundo algumas
etapas (sociedade tradicional, decolagem, modernização) an-
tes de atingir a etapa “avançada” da sociedade do consumo de

28 Gênero, desenvolvimento e território

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massa (RIST, 1996). Contrariamente ao conceito de ocupação
de território, o conceito de desenvolvimento regional refere-se
então diretamente a um atraso postulado das regiões perifé-
ricas aos grandes centros urbanos. Dito isso, as intervenções
governamentais orientam a escolha das prioridades econômi-
cas de produção e de repartição da riqueza, não tendo, por-
tanto, sido modificadas por essa mudança de nomenclatura. A
adoção do conceito de ocupação do território teve como efeito
distanciar os conceitos e ações relevantes do desenvolvimento
local ou regional, do desenvolvimento feminista e do desenvol-
vimento durável.
Emprestado da geografia, o conceito de território refere-se
a um espaço social, político e econômico construído dentro e
circunscrito pelos limites de um espaço físico. Os grupos que
vivem em um território constroem habitualmente uma repre-
sentação coletiva deles mesmos, dividem sua história por meio
de um sentimento de pertença definido pela proximidade. Cada
um à sua maneira, os territórios rurais e urbanos despertaram
o interesse de sociólogos, geógrafos, paisagistas, economistas
e cientistas políticos que analisaram alternadamente a ocupa-
ção do território, as migrações, as interações sociais, a disper-
são e as trajetórias espaciais (PARKER, 2012), a consolidação
territorial da produtividade, a governança (FAURE, 2007) e os
serviços de proximidade.

GOVERNANÇA REGIONAL E MOVIMENTO


FEMINISTA QUEBEQUENSE

O desenvolvimento regional refere-se também ao modo de


tomada de decisão sobre um dado território. Os sucessivos
governos quebequenses, neoliberais ou social-democratas, ti-
veram, entre 1989 e 2014, depois da falência da planificação
centralizada dos anos 1960, um projeto de descentralização

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 29

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regional segundo diversas configurações e filosofias. O último
e atual modelo é o da governança regional, que integra uma
perspectiva participativa e interpelante da sociedade civil. Ele
torna a igualdade como uma obrigação de trabalhar a igual-
dade entre mulheres e homens, e solicita a participação dos
grupos comunitários e dos grupos feministas. Essa experiên-
cia apresenta importantes fracassos que estudaremos abaixo.
A história do Québec foi marcada pelos movimentos de mu-
lheres. Trinta e cinco anos depois de seu apogeu, o território
quebequense ainda apresenta grupos de mulheres. Suas in-
tervenções mudaram ao longo dos anos, por exemplo, de te-
máticas relacionadas a agressões sexuais, violência conjugal,
integração no trabalho, direitos sociais, representação política
e empreendedorismo feminino.
Desde seu início, o movimento das mulheres dirigiu seus
pedidos ao Estado do Québec,6 que pouco a pouco se portou
como fiador de políticas e de programas para as mulheres,
assinando em 1997, com o governo canadense, a Declaração
de Beijing. Entretanto, nessa época, as autoridades regionais
consideram os grupos de mulheres de seu território como ex-
teriores ao seu mandato. Assim, o desenvolvimento regional
foi justaposto pela continuação da espera por igualdade entre
mulheres e homens, e os fóruns regionais de grupos de mulhe-
res foram associados à estrutura de governança e aos planos
de desenvolvimento regional (MASSON, 2006).
Propriamente quebequense (CÔTÉ; SIMARD, 2010), essa
nova configuração se inscreve dentro de uma tendência mun-
dial e apresenta novas questões (ASHWORTH, 1996), como
a ligação entre o movimento feminista e as autoridades re-
gionais. Até recentemente cegos ao gênero (BALLMER-CAO,
2006), como as intervenções quebequenses em matéria de de-

6 Recorremos aqui à expressão “Estado quebequense”, que faz referência, em sociologia


política quebequense, ao aparelho governamental da Província de Québec.

30 Gênero, desenvolvimento e território

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senvolvimento regional podem ajudar os grupos de mulheres?
Em que medida e “como elas participam dos debates e das es-
colhas democráticas” de sua região (LAFONTAINE; THIVIER-
GE, 1997, p. 147)? Os grupos de mulheres adquirem ou não um
novo poder de influência (BARON, 2007) por intermédio des-
sa nova estruturação da democracia e da cidadania regional
(LAMOUREUX; PEDNEAULT, 1999)?
Essas questões emergem de uma perspectiva longitudinal
após nossa observação participante diante de instâncias de
governança regional do Québec e confirmadas por entrevistas
com as líderes dos grupos de mulheres das regiões. E, assim,
apresentaremos na próxima seção uma análise de conteúdo
dos acordos específicos concluídos em 2007 nas 17 regiões do
Québec.7

MODALIDADES DE INCLUSÃO DE IGUALDADE


ENTRE MULHERES E HOMENS NO ÂMBITO DOS
MECANISMOS DE GOVERNANÇA REGIONAL

Um novo modelo de governança conclamando a sociedade


civil tem sido posto em prática nas regiões quebequenses. Ele
se estrutura, entre outros, em torno do tema da igualdade en-
tre mulheres e homens (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011).
Substituto do conceito de governo, o novo conceito de gover-
nança,8 entretanto, é ambíguo: local, nacional ou mundial, eco-
nômico, político ou social (DENEAULT, 2013). Ele é ao mesmo

7 Nós abordamos a participação dos grupos feministas nas regiões por meio dos
processos de governança regional, e não da presença das mulheres em instâncias
regionais.
8 A palavra inglesa governança ganhou visibilidade em 1990 por economistas e cien-
tistas políticos anglo-saxões e por certas instituições internacionais (ONU, Banco
Mundial e FMI) para designar a arte ou a maneira de governar, mas com duas preo-
cupações suplementares; de um lado, para marcar a distinção com o governo como
uma instituição; de outro lado, para usar um termo raramente usado e de pouca

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 31

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tempo analítico e normativo (no sentido de boa governança) e
se instala no momento da redução da intervenção do Estado.
O discurso sobre a governança de igualdade na região que-
bequense põe em evidência a negociação entre diferentes ato-
res em torno de problemas ditos comuns, deixando na sombra
seus interesses divergentes, assim como as diferenças de po-
der. Ele se instala no quadro das instituições não parlamen-
tares que advogam a transversalidade e a coconstrução, defi-
nindo unilateralmente as regras de participação. Esta pesquisa
destacou os acordos específicos regionais em matéria de igual-
dade entre mulheres e homens, assinados em 2007 pelas au-
toridades regionais das 17 regiões do Québec. As questões da
pesquisa foram as seguintes: Como os grupos feministas par-
ticipavam nos acordos específicos? Esses acordos permitiram
pôr em prática prioridades próprias dos grupos feministas?
Para responder a essa questão, nós analisamos os 21 acordos,
assim como seu plano de ação, e entrevistamos as pessoas-
-chave desse processo.
Esses acordos específicos em matéria de igualdade que ana-
lisamos são, na verdade, compromissos contratuais entre as
direções regionais de ministérios quebequenses e organismos
não governamentais visando à adaptação as normas e priori-
dades governamentais em uma região (QUÉBEC, 2011). Esses
acordos determinam as prioridades, os orçamentos, a partilha
de responsabilidades, os recursos e as tarefas entre os parcei-
ros selecionados de uma região. Enquadrados pela Secretaria
da Condição Feminina do Québec, elas são geradas pela Confe-
rência Regional de Eleitos (CRE) de cada região.9 Inicialmente,
as CREs foram percebidas pelos fóruns regionais de grupos de
mulheres como um lugar de debate democrático em torno da

conotação, para promover um novo modo de gestão da coisa pública fundados


sobre a participação da sociedade civil em todos os níveis (PAYE, 2005, p. 13-4).
9 As CREs são compostos pelas autoridades regionais.

32 Gênero, desenvolvimento e território

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igualdade (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011), mas a reali-
dade se revelou bem diferente.
Na análise dos 21 acordos específicos sobre a igualdade en-
tre mulheres e homens firmados nas 17 regiões quebequenses,
constatamos que, apesar do convite de participação lançado a
todos os fóruns de acordos regionais de grupos de mulheres,
a média ficou em 6,6% assinantes por acordo. A razão? A exi-
gência de pagar para assinar os acordos poderia transformar
as instituições de acordo com as suas prioridades e seus man-
datos, mas não foi possível para os fóruns, pois esses acordos
são também uma fonte de financiamento.10
Os fóruns de consulta descobriram inesperadamente que
as decisões sobre as prioridades e os orçamentos do acordo e
do plano de ação seriam daqui em diante tomadas pelos assi-
nantes reunidos em um comitê de gestão. Em várias regiões, o
financiamento disponível no campo da igualdade se limitaria
às somas disponíveis por meio de acordo específico (CÔTÉ;
TREMBLAY-FOURNIER, 2011). Na verdade, as decisões que
orientariam o acordo específico sobre a igualdade, na maio-
ria das regiões quebequenses, foram tomadas por doadores de
fundos não eleitos e longe do campo da igualdade. Na maio-
ria dos casos, essas decisões foram tomadas na ausência de
representantes do movimento feminista regional, que vinham
lutando durante várias décadas nessas regiões. A inclusão dos
grupos de mulheres nos lugares decisivos regionais em Qué-
bec ainda não parece estar na ordem do dia.
O tema da participação das mulheres nas instâncias decisi-
vas foi um dos mais contraditoriamente presentes nesses acor-
dos específicos, assim como o tema das mulheres na econo-
mia e no mercado de trabalho (empreendedorismo feminino,
igualdade econômica das mulheres e diversificação dos em-
pregos) e, em terceiro lugar, na implantação de plano de ação

10 Certas regiões contornaram essa exigência.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 33

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da análise diferenciada segundo os sexos (ADS). Esses temas
correspondem a cinco das seis orientações do Plano de Ação
Governamental 2007-2010 em matéria de igualdade (QUÉ-
BEC, 2007). Pelos anos estudados, a integração dos registros
de igualdade no centro dos acordos específicos corresponde
assim a uma implementação do Plano de Ação Governamen-
tal, mas poucas iniciativas foram financiadas fora dos objetivos
desse plano (CÔTÉ; TREMBLAY-FOURNIER, 2011).
Os projetos endógenos não se enquadram com as priorida-
des retidas pelas autoridades regionais e tiveram, então, pou-
cas possibilidades de serem financiados, pois suas iniciativas
inovadoras não se enquadravam com o espírito e a prática dos
acordos específicos. Parceiros não deliberativos, os grupos de
mulheres regionais foram também chamados cada vez mais
a ocupar um nicho de terceirização privilegiado. Assistimos
também à generalização do financiamento por projeto, da con-
cepção tecnocrática da eficácia, do aumento de licitações e de
recursos para consultores poucos conhecedores do discurso
da igualdade, do desenvolvimento de modos operatórios pró-
prios ao setor privado, mas pouco conhecidos no setor asso-
ciativo-comunitário. Finalmente, o voluntariado exigido pelo
processo de consulta dos fóruns aumentou de modo exponen-
cial os investimentos in natura exigidos pelos grupos de mu-
lheres regionais.
Hoje, eles são reconhecidos por instituições regionais,
mas o preço a pagar foi alto: conformidade aos objetivos go-
vernamentais, perda de controle da agenda dos direitos das
mulheres nas regiões, ausência de poder deliberativo, incer-
teza de financiamentos, negligência da cultura comunitária,
falta de reconhecimento de competência feminista e de sua
contribuição ao desenvolvimento regional. Mas, sobretudo, a
capacidade desses movimentos de inovar e de defender os
direitos das mulheres foi seriamente reduzida (CÔTÉ; TREM-
BLAY-FOURNIER, 2011).

34 Gênero, desenvolvimento e território

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caso de Québec ilustra uma forma de controle institu-


cional da questão da mulher com base na reconfiguração de
ligações entre instituições e o movimento feminista na escala
local. Constatamos que os discursos institucionais de inclusão
do gênero não permitiram integrar a riqueza dos saberes e a
competência feministas nas esferas de decisão. Os novos ta-
buleiros e as novas regras do jogo impostos por essas insti-
tuições, na verdade, complexificaram a ação dos grupos femi-
nistas, silenciando e orientando suas intervenções. Na teoria,
essas regras foram negociadas; mas elas continuam sob con-
trole das autoridades regionais. A nova institucionalização da
igualdade reduziu, ao mesmo tempo, o potencial de emanci-
pação do movimento feminista, assim como sua legitimidade
(DAHL, 2000).
As autoridades regionais assumem, assim, a própria legiti-
midade no domínio de igualdade sobre a dos grupos feministas
– que elas reduzem ao papel de executores. Elas geram (FREI-
TAG, 1995), então, a igualdade, e consolidam ao mesmo tempo
certos paradigmas dominantes que eliminam paradoxalmente
a defesa dos direitos das mulheres. São deixadas de lado ou
invisibilizadas a competência feminista, a utilidade dos grupos
feministas na construção da cidadania das mulheres (MAR-
QUES-PEREIRA, 2000), assim como sua função de inovação
social. Relegados à sombra, esses grupos feministas são redu-
zidos ao papel de formadores de agentes institucionais ou de
consultores. Suas bandeiras são assim incorporadas de modo
seletivo e variável à discrição da agenda e das imagens que as
instituições querem transmitir à população quebequense, ge-
rando em vários casos uma nova fonte de ineficácia estrutural.
Essas novas relações institucionalizadas questionam de fato a
qualidade da democracia local e regional.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 35

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QUAL A IMPORTÂNCIA DAS DESIGUALDADES
DE GÊNERO NO DESENVOLVIMENTO
RURAL DOS PAÍSES DO MERCOSUL?11
Silvia Lilian Ferro

INTRODUÇÃO

A
s desigualdades de gênero no espaço público dos paí-
ses que compõem o Mercosul12 têm ganhado destaque
por conta das desigualdades de gênero dos modelos
de desenvolvimento rural adotados pelos Estados membros
e associados dessa instituição de integração regional que é o
Mercosul.
Nota-se que, no geral, o debate coletivo pelo desenvolvi-
mento rural desejável em nossos países incorporou tardia-
mente a perspectiva de gênero nas agendas reivindicatórias
da igualdade em outras áreas de atividade econômica e das
políticas públicas a elas associadas.

11 Artigo original em espanhol, traduzido para esta obra por Cymara Miranda.
12 O Mercado Comum do Sul (Mercosul) surgiu com o Protocolo de Assunção, em
1991. É composto por Argentina, República Federativa do Brasil, República do Pa-
raguai, República Oriental do Uruguai, República Bolivariana da Venezuela e do
Estado Plurinacional da Bolívia. Os Estados partes do Mercosul partilham valores
comuns que encontram expressão em políticas democráticas, pluralistas, defenso-
ras das liberdades fundamentais, direitos humanos, proteção ambiental e desen-
volvimento sustentável e seu compromisso com a consolidação da democracia, a
segurança jurídica, o combate à pobreza e o desenvolvimento econômico e social
com equidade. Tem como Estados associados: Chile, Colômbia, Peru, Equador,
Guiana e Suriname.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 43

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O maior interesse na questão é resultado do crescente es-
paço conquistado na área das organizações de agricultura fa-
miliar e de sua vinculação com a soberania alimentar13 e seus
impactos sobre a proposta da necessidade de democratiza-
ção das relações sociais e econômicas das estruturas agrárias
dessa região que, no entanto, é um dos polos agroalimentares
mais importantes do mundo.
Os países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Pa-
raguai e Uruguai – se caracterizam por possuir uma inclinação
eminentemente agroexportadora em suas balanças comerciais
e estão na lista dos dez maiores produtores e exportadores
mundiais de soja, por exemplo, e de diferentes mercadorias de
origem agrícola e de produção de alimentos.
Tais semelhanças na orientação de suas políticas comer-
ciais coexistem com uma também marcada estratificação en-
tre os atores socioagrários e relações assimétricas de força
estabelecidas historicamente e sustentadas até hoje – apesar
de breves intervalos históricos de tentativa de equiparação
de oportunidades para os setores subalternos da agricultura
em meados do século 20, graças às experiências de governos
populares que foram abruptamente segregados na região por
processos ditatoriais cívico-militares e por ideologias neolibe-
rais quando a democracia formal foi recuperada. Isso resultou
numa grande concentração de recursos agrários, da proprie-
dade e do uso de fatores de produção como a terra, o trabalho,
o acesso ao capital e à inovação tecnológica.

13 “O conceito de ‘soberania alimentar’ foi introduzido como um novo paradigma pela


Via Campesina, um movimento internacional que engloba organizações campone-
sas de pequenos e médios agricultores, mulheres rurais, comunidades dos povos
indígenas, sem-terra, jovens rurais e trabalhadores agrícolas migrantes de 70 paí-
ses na Ásia, África, Europa e América, durante a Cúpula Mundial de Alimentação da
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1996”.
Trecho do Royalty Chair Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacional de
La Plata (UNLP). Disponível em: <http://www.soberaniaalimentaria.net/>.

44 Gênero, desenvolvimento e território

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A partir dos primeiros anos do século 21, com o retorno à
região de governos populares de tendência progressista, os
movimentos sociais agrários que representam os setores ru-
rais subalternos encontraram uma conjuntura de legitimação
política para incorporar suas agendas reivindicatórias nos
âmbitos de decisão das políticas agropecuárias dos Estados e
para explicitar em nível coletivo sua visão sobre modelos de
desenvolvimento rural baseada em paradigmas de igualdade
e sustentabilidade.
Essa visão sobre modelos de desenvolvimento rural de-
sejavelmente inclusivos socialmente e sustentáveis ecologi-
camente também pugna por organizações que representem
os setores campesinos, de povos originários e especialmente
das organizações de pequenos agricultores familiares, orien-
tando à democratização do acesso, uso e controle dos fatores
de produção e delineando objetivos mais amplos da produção
agrária do que a mera produtividade e aumento de excedentes
exportáveis.
Esse último ponto é fonte de contradições que provocam
tensões e conflitos, já que a política que se expressa em gover-
nos progressistas, os quais deram grande impulso às organi-
zações da agricultura familiar, de povos originários, da afro-
descendência em meios rurais e às organizações campesinas,
em geral, é a mesma que impulsiona as políticas públicas que
promovem metas de produção e de incremento exponencial
dos volumes de exportação da produção agrária dos Estados.
Isso significa, na prática, que oferecem uma gama de estímulos
à agricultura em grande escala (por exemplo, pools de siembra)
e à pecuária extensiva (por exemplo, feed lots).
Pools de siembra é uma expressão generalizada na Argenti-
na e que se refere a uma modalidade de gestão produtiva ba-
seada na produção em larga escala por meio da combinação de
propriedade da terra e arrendamento mercantil, como exten-
sas unidades produtivas geridas exclusivamente como contra-

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tos de locação com grande aporte financeiro na figura de fidei-
comissos ou fundos de inversão que injetam capital financeiro
extra na produção agrária em larga escala, com predominância
para a soja.
Os atores que expandiram essa modalidade desde os anos
80 do século 20 em diante são tanto proprietários de terra
que somaram grandes superfícies para arrendamento, que
administraram as possibilidades dos fideicomissos orientados
à produção agrária, como agentes financeiros extragrários,
estes últimos em menor proporção (BASUALDO, 2008). Essa
modalidade de gestão é reconhecida em grande parte da região
que engloba o Mercosul e que tem grande desenvolvimento de
sua produção e exportação de soja, como Brasil, Argentina,
Uruguai, Paraguai e Bolívia, extendendo-se a outras regiões
sul-americanas na atualidade.
Esses atores da produção em larga escala são os que dis-
putam, com os anteriormente mencionados, a apropriação do
território rural, da água para irrigação e de tudo o que engloba
a infraestrutura para a produção agrária financiada pelos Esta-
dos ou em consórcios mistos com atores privados – em suma,
as vantagens fiscais, creditícias e tecnológicas para incremen-
tar a superfície cultivável, rendimentos por hectare, qualidade
de produtos com destino exportável, facilitações do comércio
(missões comerciais no exterior, acordos bilaterais etc.), entre
outras muitas ferramentas que promovem os Estados, além de
uma maior obtenção de divisas em seu saldo comercial.
Objetivos comerciais alcançados em detrimento de boas
práticas de uso do solo e de preservação de florestas nativas
resultam em uma extensa contaminação de ecossistemas por
conta de milhões de litros de agrotóxicos despejados em enor-
mes áreas de superfície, assim como a alteração de cursos
d’água, conflitos entre empresas agrárias, povos originários e
comunidades camponesas por terra e água, dentre outras ra-
zões que provocam deslocamentos dos agricultores de peque-

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na escala, na maioria dos casos, além de outros fatores preocu-
pantes a serem considerados.
Os crescentes conflitos entre os atores agrários tão desi-
guais e com visões de desenvolvimento rural antagônicas são
indicativos de que os Estados da região fortalecem ambos os
espectros: tanto a produção agrária empresarial de grande es-
cala e com vocação à exportação que produz divisas como as
formas de produção agropecuária focadas na alimentação das
populações locais, agroecológica, com objetivos de soberania
alimentícia, revalorização territorial e do modo de vida ru-
ral, no retorno à continuidade dos projetos familiares de vida
nos meios rurais com base no estímulo às juventudes rurais, à
igualdade de gênero, às políticas de reparação fundiária desti-
nada aos povos originários e à afrodescendência, à preserva-
ção de florestas nativas, de umidade e muitos outros itens que
produzem legitimidade política na base social.
Essa contradição tenta ser salva desde a proposta de coexis-
tência de formas distintas de produção, o que também signifi-
ca a coexistência de atores rurais muito desiguais e assimétri-
cos – coexistência, afinal, em um mesmo território de visões de
modelos de desenvolvimento rural contraditórios.
Esse é o cenário real onde a questão da igualdade de gê-
nero começa a surgir com maior força nas organizações que
representam os setores subalternos da agricultura. Lamen-
tavelmente não se visualiza sua enorme potencialidade de
reconhecer desigualdades em toda a estrutura agrária inter-
sectando-se com outros vetores que a potencializam, como o
pertencimento étnico, territorialidade, modo de produção, en-
foque geracional etc. Fica reduzida a parte de uma demanda
ética por políticas compensatórias destinadas às mulheres ru-
rais, sem possibilidades de dimensionar seu caráter estrutural
como enfoque de gênero, e não como sinônimo de mulheres,
em respeito à ampla agenda temática agrária debatida no blo-
co regional e sua capacidade de atravessar verticalmente toda

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 47

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a estrutura agrária, transversalmente a todos os tipos de ato-
res agrários.
Esse tipo de reducionismo é causado em primeira instância
por insuficiências conceituais e metodológicas de seus promo-
tores/as e, em segunda instância, por resistências de interes-
ses que se expressam primeiramente em atribuir igual concei-
to aos vocábulos “gênero” e “mulheres”, posicionando errone-
amente o denominado “enfoque de gênero” como um satélite
adicionado e descontextualizado nas políticas e debates que
se implementam no bloco regional e nas políticas agrícolas do-
mésticas dos países que o compõem.
Os setores subalternos das estruturas agrárias dos países
do Mercosul fortalecidos na conjuntura política regional con-
flitam com as alianças agrícolas que representam os setores
médios e da grande propriedade e produção agrária, que têm
sido os interlocutores privilegiados ante o Estado e grande
parte da sociedade civil desde a emergência e consolidação
dos modelos agroexportadores no século 19 na região.
Essa conjuntura de intenso debate entre os distintos ato-
res socioagrários e suas diferentes relações de força, somada à
crescente presença na opinião pública, nas organizações civis,
nas universidades, sindicatos etc., mostrou-se propícia para
incorporar paulatinamente demandas de igualdade de gênero
nas agendas reivindicatórias por oportunidades sociais, eco-
nômicas, políticas e culturais dos setores subalternos da agri-
cultura, especialmente no que atine à agricultura familiar.
As tensões pelos alcances efetivos do conceito de agricul-
tura familiar (AF) mostram claramente as enormes diferenças
de atores agrários que disputam a área de reconhecimento pú-
blico e estatal como sujeitos de políticas de promoção diferen-
ciada e devidas da inclusão da AF a questões institucionais do
Mercosul e, nos casos nacionais, por meio da legislação emer-
gente federal e subnacional, além da criação de áreas estatais,
nacionais e subnacionais para sua promoção.

48 Gênero, desenvolvimento e território

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Assim, o empresariado agrário que gere familiarmente
uma combinação de propriedade familiar pequena e média
com locação de grandes extensões, que produz orientado a
mercados externos, são proprietários de fatores produtivos
e têm acesso a créditos significativos, denominados nos estu-
dos agrários como de agricultura familiar capitalizada (AFC).
Pugnam por serem incluídos em uma definição que necessi-
ta se ajustar melhor para que os fundos e vantagens que ali
se destinam cheguem efetivamente aos setores socioagrários
subalternos que impulsionaram o reconhecimento público da
AF como protagonista da soberania alimentar de seus países
e que correspondem com as definições de agricultura familiar
de subsistência (AFS) ou pequena agricultura familiar (PAF),
integradas pelos setores rurais do campesinato, povos originá-
rios e afrodescendência.
Esses últimos são os que exigem ser protagonistas em
uma redistribuição de oportunidades e reparação histórica
por haverem sido historicamente prejudicados por ações ou
omissões de políticas públicas comerciais, agrícolas e econô-
micas por parte de seus países, desde as campanhas militares
de extermínio dos povos originários do século 19, para desti-
nar as terras férteis à agricultura e pecuária a cargo dos imi-
grantes de origem europeia, até a subordinação da população
crioula e afrodescendente a condições de exploração em favor
dos recém-chegados da Europa, pobres e analfabetos em sua
maioria, para que lograssem adaptação à produção agrária em
contextos agroecológicos tão distintos de suas regiões de ori-
gem, e que se tornaram ao longo de quatro ou cinco gerações
seguintes nos atores agrários privilegiados pelas políticas pú-
blicas e agrárias dos Estados nacionais.
É nessa sinergia de processos sociais e políticos que levam à
renovação da equidade de gênero em todos os aspectos de in-
teresses produtivos que este estudo se encontra. Consideran-
do pontualmente o sistema produtivo agrário, se faz evidente

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 49

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a necessidade de inovação das ferramentas epistemológicas e
metodológicas para que esse tema deixe de ser uma extensão
reduzida a seus aspectos éticos reivindicatórios, que é assumi-
do em forma mais “politicamente correta” do que efetivamente
operativa na discussão regional institucional dos grandes te-
mas de desenvolvimento rural de uma região.
Chegando a esse ponto e tendo em vista a situação presen-
te na região, cabe perguntar-se: Quanto importa a igualdade
de gênero na discussão pelo desenvolvimento rural desejável
e em seus instrumentos de realização como são as políticas
agropecuárias nacionais?
Este artigo tentará clarear os elementos que conformam
esse questionamento para apresentar as respostas possíveis
em seus cenários atuais e prospectivos.

CONTEXTUALIZANDO O DEBATE

Para começar a elaborar uma resposta às interrogações


propostas, impõe-se a necessidade de abordar um diagnóstico
baseado em metodologias quantitativas, num quadro de variá-
veis com indicadores que permitam medir as disparidades de
gênero (gender gap) nos fatores produtivos agrários (terra, ca-
pital, trabalho e tecnologia).
É pertinente, do mesmo modo, medir as disparidades em
termos quantitativos considerando as articulações fundamen-
tais da produção alimentícia: produção, distribuição, comer-
cialização e consumo, porque a satisfação alimentar da po-
pulação de cada país é – ou deveria ser – o primeiro objetivo
soberano de qualquer política agrária nacional. Por desse en-
foque, também é possível examinar as distintas fases do despe-
jo do excesso da produção agrária nos mercados alimentícios
internacionais por meio da análise do impacto das políticas
comerciais nessas lacunas.

50 Gênero, desenvolvimento e território

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Lamentavelmente, os estudos de gênero no desenvolvimen-
to rural têm mostrado um viés majoritário das abordagens
qualitativas, identificando eixos de análise desde as demandas
éticas e reivindicatórias – o que conduz muitas vezes a obter,
por parte das decisões públicas e privadas, respostas “politica-
mente corretas” também baseadas na dimensão ética e reivin-
dicatória.
Algumas menções à questão de gênero nos discursos de
responsáveis por ministérios de agricultura trazem algum
componente secundário na legislação agrária, como a criação e
manutenção de tipos cerimoniais de “áreas mulher”, sem mui-
tos recursos, endossos políticos e por conta de âmbitos consul-
tivos e de realização de diagnósticos e estudos especializados,
no melhor dos casos, mas sem possibilidades de transversali-
zação do enfoque de gênero no desenho e instrumentalização
principal (mainstreaming) das políticas agrárias nacionais.
É um discreto avanço para três ou quatro décadas, segundo
cada caso nacional de existência em áreas estatais especializa-
das na promoção de direitos à igualdade entre mulheres e ho-
mens, dada a vitalidade, persistência e qualidade de liderança
dos movimentos sociais e dos movimentos de mulheres desde
a década de 1960 nessa região. Eles inseriram paulatinamen-
te, com crescente intensidade, as demandas de igualdade de
gênero no espaço da opinião pública, fazendo conhecer suas
agendas reivindicatórias e também, mesmo que tardiamente,
suas visões sobre o benefício coletivo de incorporar a igualda-
de de gênero como variante e indicativo de modelos de desen-
volvimento rural com uma base social mais ampla e, por fim,
mais sustentável nos meios rurais.
Portanto, por essa visão é que se exige a adoção de estra-
tégias mais eficazes para inserir o enfoque da igualdade de
gênero em cada aspecto do desenho das políticas agrárias dos
países da região do Mercosul, assim como na avaliação de seus
impactos e no monitoramento de sua implementação, não só

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 51

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como meras extensões de frases que incluam a palavra gênero e
que dificilmente se operacionam de forma universalizada como
o conjunto de normas gerais ou ao programa do qual derivam.
Mas apelar somente aos Estados, por intermédio de suas
políticas específicas para a atividade agrária, e a sua extensão
normativa não é suficiente: é necessário começar a estudar
como o mercado de ativos patrimoniais agrários e seu prin-
cipal âmbito de mobilidade e intercâmbio é um protagonista
decisivo no aprofundamento das desigualdades de gênero no
acesso, uso e controle dos insumos agrícolas.
Seguindo em importância no modo de produção de assime-
trias e desigualdades de gênero está a organização sexual do
trabalho agrário familiar – variável transversal a toda a estru-
tura socioagrária mas que, especialmente nos setores médios
(AFC) e altos do âmbito rural, são os menos estudados na pers-
pectiva de gênero, de onde podemos evidenciar que são moto-
res de produção, transmissão e sustentação de desigualdades
baseadas na ordem de gênero de tipo patriarcal.
O mercado de fatores produtivos agrários também é o maior
responsável pela produção, sustentação e transmissão de de-
sigualdades baseadas no pertencimento étnico, na escala pro-
dutiva, na orientação da perspectiva geracional, entre outros
indicadores que se intersectam e interatuam. Por isso, deveria
ser um âmbito de estudo pelos cientistas sociais preocupados
em analisar e sistematizar desigualdades.

O PESO DA ATIVIDADE AGRÍCOLA NA REGIÃO

A matriz agroexportadora comum dos Estados membros do


Mercosul e em grande parte de seus associados14 mostra, em

14 A incorporação recente da Venezuela ao Mercosul – primeiramente a do Chile


de maneira associada – e a introdução pendente de ratificação do Estado Pluri-

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sua persistência, quão dificultoso é desprimarizar as balanças
comerciais das economias da região, apesar das lideranças
políticas progressivas e neodesenvolvimentistas que predomi-
nam nos países signatários nessa etapa particular.
Esses perfis são consequência de políticas comerciais co-
muns que, desde a década de 70 do século 20, relançaram, em
muitos casos mediante golpes de Estado cívico-militares, os
modelos primário-exportadores anteriores à etapa de indus-
trialização por substituição de importações em meados do sé-
culo 20, os quais haviam delineado, no século 19, a inserção
desses Estados aos mercados internacionais recém-consolida-
dos em seus processos de independência.
A modernização agrária chegou à região entre as décadas
de 1940 e 1960 como pedagogia política da Revolução Verde
originada nos países centrais em consequência da transferên-
cia de maior invisibilidade dada às mulheres em seu protago-
nismo no desenvolvimento rural, por considerá-las parte inse-
parável das famílias e da mera reprodução da população nos
meios rurais.
O paradigma de ação da extensão rural chega até nossos
dias, tendo a “família” como um local de interesses diferen-
ciados que se expressam por meio do chefe de família, desti-
natário quase exclusivo de todas as prestações oriundas das
políticas e programas governamentais, especialmente aqueles
orientados à assistência técnica e extensão rural.

nacional da Bolívia são as economias nacionais que irão colorir a predominância


de economias agrícolas de exportação como características comuns dos Estados
fundadores do Mercosul e também considerada nesta análise os seus associados.
Embora ambos os produtos combustíveis agrícolas e minerais permaneçam domi-
nantes, em todos os casos a característica comum da balança comercial é forte-
mente ponderada para mercadorias, ou seja, mesmo que a economia seja primária
em alguns setores, nos últimos anos o Brasil e a Argentina alcançaram os artigos
de origem industrial (MOI), por vezes, amarrados nos percentuais de origem agrí-
cola (MOA) exportados, mas não em preços obtidos (forex) nos volumes.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 53

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A extensão rural é o “catecismo” da Revolução Verde, pro-
cesso desenvolvido desde meados do século 20 no Ocidente
e, por sua vez, como produto histórico, foi e é a possibilidade
de adoção do pacote tecnológico e especialmente da transfor-
mação de mentalidades e identidades, buscando erradicar a
identidade do agricultor familiar, substituindo-a pela de em-
presário agrário.
A mudança de identidade é necessária para substituir uma
concepção da atividade agrária como projeto geracional de
vida familiar e, portanto, com uma relação mais próxima da
preservação do solo e das formas de produção mais amigá-
veis com o entorno ecológico por uma concepção da atividade
agrária como negócio (business) e nas zonas rurais como um
âmbito de obtenção de rentabilidade, como poderia acontecer
com uma fábrica ou qualquer outro espaço físico.
Sua difusão até o sul global foi promovida por agências
agrotecnológicas dos EUA, e sua chegada coincidiu, em alguns
casos, com governos que chegaram ao poder de fato por via au-
toritária e por golpes de Estado que, no entusiasmo, adotaram
a missão de promover a modernização agrária, especialmente
como essa tarefa era auxiliada por linhas de financiamento in-
ternacional, convênios de colaboração técnica e científica com
os EUA. Assim se criaram institucionalidades estatais nessa
etapa, condenada à tarefa da transferência de conhecimentos
e tecnologia agropecuária e à extensão rural.
As ideias dominantes nos estudos rurais e nas políticas
agropecuárias consideravam as mulheres (e continuam fa-
zendo em grande medida) integrantes exclusivas dos núcleos
familiares que, com exceção de alguns casos, desenvolviam ta-
refas prediais tanto na pecuária como na agricultura propria-
mente dita, fazendo-o em caráter de “ajuda familiar”, e não em
sua dimensão de produtoras e trabalhadoras rurais.
As instituições de assistência técnica e extensão rural do
Brasil e da Argentina refletem nessa etapa essa concepção, im-

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pulsionando a criação de programas como Hogar Rural do Inta
e Clube de Mães, surgidos na etapa da Associação de Crédito e
Assistência Rural (Acar) e continuadas nas etapas iniciais da
Emater (1971) e pelos projetos Bem-Estar Social da Embra-
ter a partir de 1975, que tiveram como objetivo a capacitação
vinculada à domesticidade da atividade das mulheres, cuidado
dos filhos e filhas, cuidado dos homens da família por meio de
cursos de cozinha, tecelagem e fiação, produção de conservas
de alimentos, cuidados com animais de granja etc.
O relançamento do projeto político e econômico regional de
inserção nos mercados mundiais, antes provedores de maté-
rias-primas entre as décadas de 1960 e 1970, que poderíamos
sintetizar na expressão “celeiro do mundo”, teve o protagonis-
mo das elites proprietárias, que veicularam seu programa de
desenvolvimento por seus encarregados de negócios implan-
tados no poder político e institucional dos Estados, apesar de
nem sempre estarem graças ao violentamento das instituições
democráticas.
Também nessa etapa se produz um acesso significativo das
mulheres de setores médios da agricultura, dada a difusão das
tecnologias químicas de controle de fertilidade e as conquistas
sobre reconhecimento de direitos no espaço público, a educa-
ção superior, o trabalho qualificado – em suma, um projeto de
vida para as mulheres, além da maternidade e constituição de
uma família. Se bem que nas universidades os estereótipos de
gênero se reproduziram na “escolha” de carreiras seguidas pe-
los homens (ciências exatas, aplicadas, tecnológicas, engenha-
rias etc.) e mulheres (ciências e disciplinas vinculadas ao cui-
dado dos outros, pedagogia, comunicação, humanidades, artes
etc.). As que, em sua minoria, chegam às ciências agrárias vão
impugnando, apesar de timidamente, essa visão hierárquica e
dual baseada em estereótipos de gênero de ordem patriarcal
sobre os quais se baseiam os pressupostos desses campos de
conhecimento.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 55

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No processo de recuperação da democracia formal em nos-
sos países, foi significativa, especialmente na década de 1980,
a visão política que orientou uma visão comum do desenvolvi-
mento econômico: foi a que conhecemos como neoliberalismo,
fortemente consolidado nos anos 1990 e que aprofundou um
modelo de desenvolvimento rural orientado para fora e focan-
do suas ações promocionais nos parques tecnológicos que pos-
sibilitam uma agricultura de tipo empresarial de grande escala
fortemente baseada na inovação biotecnológica, maquinário
de ponta, acesso de capitais, insumos químicos e na alta quali-
ficação de gestores que se organizam em redes associativas de
negócios verticais e horizontais que conhecemos sob o termo
de agronegócios agribusiness (GRAS; HERNANDEZ, 2013).

GRAVIDADE DO PARADIGMA ANDROCENTRISTA


LIBERAL DO MARXISMO GENDER BLIND
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS E NOS DEBATES
DAS ORGANIZAÇÕES RURAIS

Embora muito do paradigma neoliberal de desenvolvimen-


to agrário permaneça vigente na visão não só das decisões po-
líticas, mas especialmente nas agremiações que representam
o setor privado de média e grande escala da produção agrá-
ria, o que se destaca é que ele está bem presente em muitos
acadêmicos/as, investigadores/as e técnicos/as que conti-
nuam nutrindo-se de categorias epistemológicas arcaicas e
androcêntricas. Como exemplo, temos as teorias econômicas
neoclássicas para produzir conhecimento técnico especializa-
do, especialmente evidente nas entidades estatais autárquicas
orientadas à transferência, investigação e inovação em matéria
de produção agrária, que são referência essencial para as deci-
sões relativas à extensão rural às políticas agrárias de diferen-
tes jurisdições, Estados nacionais e subnacionais.

56 Gênero, desenvolvimento e território

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Esse último ponto é importante em relação às assimetrias
de gênero, já que a teoria econômica neoclássica,15 de enorme
influência nas carreiras universitárias de ciências agrárias na
região, é um marco de ideias que tendem a naturalizar as di-
ferenças entre homens e mulheres como agentes econômicos,
sejam ou não do âmbito rural.
Nessa perspectiva, homens e mulheres simplesmente “pac-
tuariam”, ou seja, escolheriam se desenvolver em mundos dis-
tintos – o público remunerado e reconhecido e o doméstico de
trabalho não remunerado e não reconhecido –, especializando-
-se naquilo em que suas diferenças biológicas lhes permitiriam
obter vantagens comparativas. “As inversões especializadas e
a alocação do tempo, assim como as vantagens comparativas,
devidas a diferenças biológicas, implicam que os homens casa-
dos se especializem no mercado e as mulheres casadas com o
lar” (BECKER, 1981, p. 43).
Mas essa especialização em diferentes trabalhos, em esferas
produtivas separadas para homens e mulheres, implica vanta-
gens e desvantagens para uns e outros. A desvantagem mais
evidente é que, quando termina o contrato conjugal ou mesmo
o convívio, os homens continuam no mercado de trabalho as-
salariado ou produtivo no geral, e muitas mulheres se vêm no
cenário de empobrecimento abrupto, com a responsabilidade
econômica adicional de sustentar os filhos e filhas.
Essa explicação na eleição “natural” das mulheres em inves-
tir no capital humano doméstico, desinteressando-se no inves-
timento no capital humano para o mercado, está errada, já que

15 No livro Treatise on the Family (1981), um dos líderes dessa escola importante de
pensamento, Gary Becker, argumenta que a divisão sexual do trabalho histórico
responde a “diferenças biológicas, em parte, à diversidade de experiências, dife-
rem porque diferentes investimentos em capital humano” (BECKER, 1987, p. 30).
Esse seria o resultado de um acordo voluntário entre homens e mulheres e que “As
mulheres tradicionalmente delegam aos homens que fornecem alimentos, abrigo
e proteção, enquanto os homens geralmente delegam às mulheres nutrir e cuidar
dos filhos e manter a casa” (BECKER, 1981, p. 46).

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a população economicamente ativa de nossos países mostra
que a maior qualificação média é possuída pelo setor femini-
no.16 Isso tem suas raízes na economia política clássica, onde
Adam Smith, no século 18, considerava completamente inútil
instruir as mulheres nas coisas que não fossem úteis à admi-
nistração da casa e ao desempenho de seu rol exclusivamente
doméstico.
Toda essa harmonia entre homens e mulheres nos núcleos
de convivência que utilizam sabiamente as vantagens compa-
rativas, afirmando que suas diferenças biológicas lhes conce-
dem “complementariedade”, pactuando-os como iguais – har-
monia que seria racional e altruísta –, Becker a transporta
como analogia desde a organização sexual do trabalho familiar
à divisão internacional do trabalho quando afirma, no mesmo
livro fundamental para a teoria neoclássica, Nova economia da
família, que é o mesmo modo como o norte global se “especia-
liza” em produzir bens industriais tecnológicos com alto valor
agregado por suas vantagens comparativas de capital científi-
co e técnico, enquanto o sul global se “especializa” em vender
commodities de baixo valor agregado às “vantagens comparati-
vas” de seus recursos naturais.
Nunca foi tão explícita a contradição entre a ideia que pro-
põe a escola neoclássica de “complementariedade” pactuada
entre iguais e a profunda assimetria, hierarquia e desigualda-
de que expressam em suas implicações diretas.
As metáforas de gênero finalmente são poderosas porque
constituem uma pedagogia da desigualdade a toda a estrutura

16 Na verdade, no Uruguai e na Argentina, a maioria das matrículas nas universidades


é do sexo feminino, considerando-as como um todo; mas dentro das “escolhas” de
carreira, preconceitos de gênero dominam e as mulheres se sobrerrepresentam
nas disciplinas de cuidados, comunicação, arte e ensino, enquanto estão sub-re-
presentadas em tecnologia, nas ciências exatas e até mesmo com um intervalo me-
nor e são uma minoria nas ciências naturais, especialmente em ciências agrárias.

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social e à ordem hegemônica global, que exerce largamente a
aceitação aos locais domésticos de onde se nutrem.
Sul, natureza, povos de pele escura, pobres e mulheres são
igualmente vistos como dependentes, passivos e desvalidos
em oposição binária ao norte como gerador e líder de bens
tecnológicos e industriais, povos ricos, homens brancos igual-
mente vistos como competitivos, predominantes, autônomos e
de alto valor social.
Para os neoclássicos, a família está inserida especificamente
no nível de microeconomia, tem uma função de utilidade con-
junta e um chefe de família altruísta que tomaria as decisões
em nome do grupo familiar de maneira que maximizaria o ren-
dimento da atividade concorrente dos membros. Em termos
agrários, isso se expressa na simultaneidade e superposição
das figuras de produtor/chefe da exploração/chefe de família
rural incorporadas no homem adulto do núcleo familiar de for-
ma individual e hierárquica.
É evidente o arcaísmo e a inadequação dessas teorias para
serem aplicadas nas estruturas agrárias da região que, além de
considerar em sua visão só as mulheres casadas, e estas como
passivas e dependentes perpétuas, se baseiam em um só mo-
delo conjugal biparental e familiar nuclear que deixa de fora
todas as demais formas de família, como aquelas encabeçadas
por mulheres, atualmente em crescente expansão em todo o
Ocidente, como também as famílias polifuncionais e de “mon-
tagem”, em crescimento em todos os setores sociais e típicas
dos setores populares.
Sem dúvida, essas teorias seguem como base epistemoló-
gica da formação profissional agrária em todos os níveis em
nossos países, especialmente quando se concentram na orga-
nização familiar da produção e trabalho agrário, forma predo-
minante em termos quantitativos em toda a região do Merco-
sul, assim como na economia agrária e muito especialmente no
extensionismo rural, o que explica em grande parte as dificul-

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dades para reconhecer a contribuição de homens e mulheres
como atores agrários e de igual valor e interesse no conjunto
social, político e institucional.
Nas correntes críticas, como a institucionalista da teoria eco-
nômica, aparece com mais clareza o peso da vida social, pondo
em destaque como as construções sociais e as formas criadas
pelas instituições localizam as pessoas em diferentes posições
de poder, dando-lhes vantagens segundo condições de sexo,
classe e etnia para tomar decisões. Põem em evidência, ainda,
que não há um nível estritamente privado nem para a família,
nem estritamente público para o mercado e para o Estado.
Ou seja, questionam de plano a caracterização neoclássica
dos indivíduos como agentes econômicos que realizam esco-
lhas livres e condicionadas só por suas preferências (NAN-
CY FOLBRE, 1986; NAYLA KABEER, 1994; BINA AGARWAL,
1994), incorporando as variáveis contextuais que determinam
em grande parte essas escolhas “individuais” com base em es-
tereótipos, preconceitos, discursos normativos, religiosos, cul-
turais, jurídicos etc. e em particular com base em uma ordem
de gênero em que sujeitos homens e mulheres são socializados
desde que nascem.
Se bem que a maioria das críticas – não feministas – à análi-
se neoclássica assume as diferenças de gênero em nível micro
e não logra incluí-las nos níveis médio e macro, pois lhes pare-
ce inconcebível esse tipo de análise em campos em que não se
veem as pessoas concretas (TODARO, 2006).
Esse é mais um problema de insuficiência teórica, metodo-
lógica, epistemológica ou operativa para incorporar o enfoque
de gênero como variável, como indicador, como “fotografia”
mais aproximada em âmbitos que se mostram como pretendi-
damente neutros ou abstratos, mas que não o são em absoluto,
como mostram os censos e estatísticas agrárias. Todo tipo de
amostragem é elaborada com base em questionários de sele-
ção de informação a ser coletada, pelo que também estão for-

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temente caracterizados por seus desenhos de instrumentos
construídos baseados em fontes que representam o conjunto
real de pessoas, insumos e energias valoradas no tempo e que
implicam funcionamento e sustentação de um sistema produ-
tivo agrário nacional.
É necessário construir um marco conceitual que supere a
mera extensão de um conhecimento construído sobre pilares
androcentristas, abrangendo mais que uma mudança concei-
tual a camponesas, produtoras, chacareiras, empresárias ru-
rais, de forma estendida, como geralmente ocorre quando o
assunto é discutido em nível regional sobre o tema com pro-
postas por ativistas e especialistas “de gênero”, assim como o
eco das lideranças de movimentos e decisões estatais, espe-
cialmente na institucionalidade do Mercosul, que oferece uma
ampla visão regional inapreciável para a observação compara-
tiva e sistêmica.
Isso é facilmente verificável na leitura sistematizada de do-
cumentos, estudos e legislação dos países da região, quando
se aborda o tema “gênero” como se fosse equivalente a “mu-
lher/es”, como essência da identidade feminina estereotipa-
da, uniformizada, igualando todas as mulheres que habitam e
produzem no meio rural, desconhecendo que nesse âmbito há
mulheres com diferentes interesses, perspectivas e identida-
des e em distintos estratos socioagrários, e que por isso estão
inseridas de forma também diferenciada na produção agrária.
Que interesses e perspectivas comuns podem ter uma cam-
ponesa e uma produtora de uma grande escala produtiva? Ter
órgãos sexuais femininos não torna idênticas as mulheres e
muito menos uniformizam suas expectativas e interesses.
Outro reforço à subalternação que é usada habitualmente
é o reforço da identidade sexuada nas denominações das ca-
tegorias ocupacionais e de status produtivo agrário no geral,
quando se trata de mulheres, pondo-as como “mulher/es cam-
ponesa/s”, “mulher/es produtora/s”, mulher/es rurais”, refor-

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çando que o principal a ser tratado é a identidade sexuada, e
em segundo plano a identidade ocupacional.
Não ocorre o inverso, ou seja, tratando-se de homens não se
utilizam as expressões homem/ns rural/is, homem camponês,
homem produtor, homem assalariado etc.; nessa ordem de
coisas, o masculino se identificaria como a norma (produtor,
camponês, chacareiro etc.), e o feminino como a exceção a esta
(GÁLVEZ, 2004, p. 77).
No entanto, é incipiente a incorporação de matrizes de
pensamento da economia institucionalista crítica e de outras
correntes heterodoxas que superem o binômio teoria clássi-
ca/teoria marxista, em que se repartem influências as quais se
correspondem nas ciências agrárias e nos estudos de desen-
volvimento rural, compartilhando ambos sua resistência ao in-
corporar o enfoque de gênero em sua vertente epistemológica
e metodológica.
O fator comum entre os paradigmas liberais, neoliberais e
marxistas – muito influentes na formação profissional agrária
e sua projeção nas decisões e ações de funcionários/as e técni-
cos/as dos ministérios e instituições públicas agrárias – é que
possuem um traço comum de não poder ver os desequilíbrios
que originam as desigualdades e injustiças de gênero, os quais
atravessam a toda a estrutura agrária nos sistemas produti-
vos agrários da região. Sua cegueira para a questão de gêne-
ro aprofunda o traço androcêntrico no reconhecimento dos
atores agrários e de suas contribuições. Para Lourdes Beneria
(2003), “a transformação é difícil por mexer com prejuízos for-
temente instalados e desafiar formas arraigadas de gerar co-
nhecimento, de teorizar e fazer ciência”.
As políticas agropecuárias da história agrária contempo-
rânea regional têm construído os homens dos meios rurais,
especialmente aqueles descendentes da imigração europeia
desde a segunda metade do século 19, como os atores agrários
protagonistas, tendo por defeito a sua dependência em relação

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à sua localização nos núcleos familiares que subalterniza as
mulheres rurais.
Por fim, “o produtor e sua família” são a denominação
usual nas normas e políticas agrárias dos países da região,
obviamente subsumindo as mulheres à categoria de habitante
das zonas rurais e integrante de núcleos familiares rurais e,
em proporções bem minoritárias, reconhecendo-as somente
por defeito como produtoras, camponesas, chacareiras ou
empresárias rurais quando esse status não pode ser concebido,
prima facie, a um homem do núcleo familiar ou empresarial.

CONCLUSÕES

Que lições podem ser extraídas desses processos institucio-


nais, políticos, econômicos e seu impacto na produção teórica
que os expressa?
A produção agrária nacional, seja voltada ao mercado inter-
no ou externo, tem uma razão de ser primordial desde os tem-
pos do neolítico superior: a alimentação humana. Sem consu-
mo alimentício não existiria a atividade agrária, mesmo que
nas últimas décadas cresça a sua utilização sucedânea com
combustíveis alternativos como o biodiesel e o combustível à
base de álcool de cana-de-açúcar na região do Mercosul.
No entanto, a alimentação de milhões de pessoas não é um
ato meramente privativo no interior das famílias, semelhante
a um gesto amoroso cuja responsabilidade e exigência é ge-
ralmente esperável das mulheres na perspectiva da provisão e
consumo; nem redutível à ação estatal de uma pasta ministe-
rial na perspectiva da produção agroalimentícia; nem livre do
jogo de forças do mercado em nenhuma de suas quatro fases:
produção, distribuição, comercialização e consumo.
A alimentação diária, permanente, ótima, saudável e de
acordo com as pautas culinárias de cada lugar para milhões

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de cidadãos em um espaço nacional ou regional – nesse caso,
de mais de 300 milhões de pessoas, considerando o Mercosul
ampliado – é a primeira condição material e cotidiana da exis-
tência de um país, já que se trata da existência biológica de sua
população. E esse objetivo é primordial para a existência de
um Estado e de um mercado.
Em alguns momentos da história universal, onde se apre-
senta o paradoxo de que nunca se produziu tanto alimento
com os avanços na produtividade e tolerância às adversidades
climáticas graças à incorporação de avanços tecnológicos de
terceira geração na atividade agrícola de grande parte do mun-
do, e também se verifica uma maior quantidade de seres hu-
manos padecendo de déficits alimentares e importantes par-
celas da população sofrendo de fome enquanto a dissenso se
mantêm cifras mundiais espetaculares de produção agrícola
(FAO, 2013), constata-se que os poderes públicos devem inter-
ferir nos desajustes que produzem as desigualdades em toda
a cadeia, desde a produção agrária até o acesso à população. E
todas as desigualdades produzem desequilíbrios. Contemplar
desigualdades transversais como as de gênero é um vetor de
muita importância por sua capacidade de atravessar vertical e
horizontalmente regiões, estruturas e atividades.
A visão neoliberal sobre a questão alimentícia se centra na
ideia de “segurança alimentar” basicamente com estímulos mo-
netários, de transferência tecnológica e de promoção fiscal aos
agricultores pelas transferências estatais e em nível de ingresso
da população consumidora em relação à estabilidade desejada
dos preços dos alimentos, que também devem ser inócuos. As
restrições para esse enfoque reducionista e neoclássico esta-
riam dadas, fundamentalmente, pelo ingresso dos indivíduos,
os preços das mercadorias e o tempo disponível.
Essa visão própria dos organismos internacionais do mul-
tilateralismo, com ingerência nas políticas agrícolas dos paí-
ses membros do Sistema de Nações Unidas, deixa de fora uma

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complexidade tão grande de fatores e de variáveis que demo-
rou a ser contrastada precisamente desde as organizações
rurais que representam os setores agrários subalternos até a
chamada soberania alimentar. Nas palavras das organizações
promotoras,

A Soberania Alimentar defende o direito dos povos a


alimentos nutritivos e culturalmente adequados, aces-
síveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e
o direito de decidir seu próprio sistema alimentar e
produtivo. Situa os que produzem, distribuem e consu-
mem alimentos no coração dos sistemas e das políticas
alimentares, acima das exigências dos mercados e das
empresas. Defende os interesses deles e inclui as futuras
gerações. Oferece uma estratégia para resistir e desarti-
cular o comércio livre e corporativo e o regime alimentar
atual, para englobar os sistemas alimentares, agrícolas,
pastoris e de pesca até sua gestão por produtores e pro-
dutoras locais. A Soberania Alimentar dá prioridade às
economias locais e aos mercados locais e nacionais, ou-
torga o poder aos camponeses e à agricultura familiar,
à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional e coloca a
produção alimentária, a distribuição e o consumo sobre
a base de sustentabilidade ambiental, social e econômi-
ca. A Soberania Alimentar promove o comércio transpa-
rente, que garanta ingressos dignos para todos os povos,
e direitos aos consumidores para controlar sua própria
alimentação e nutrição. Garante que os direitos de aces-
so e gestão da nossa terra, de nossos territórios, nossas
águas, nossas sementes, nosso gado e a biodiversidade
estejam nas mãos daqueles que produzem alimentos. A
Soberania Alimentar pressupõe novas relações sociais
livres de opressão e desigualdades entre os homens e

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 65

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mulheres, povos, grupos étnicos, classes sociais e gera-
ções.17

A soberania alimentária é uma ideia, um programa políti-


co e uma visão do desenvolvimento rural que gravita entre as
organizações que representam os setores subalternos da agri-
cultura da região e que participam plenamente da atividade
institucional do Mercosul, mas não é uma visão desejável pelo
resto das estruturas agrárias no caso nacional da região. No
geral, os setores médio e grande da atividade rural seguem o
agrobusiness como o modelo de produção agrária desejável, e
as economias exportadoras como modelos nacionais de desen-
volvimento econômico.
Assim como se constata nos debates e políticas agrárias
dos países da região, há uma sorte de desdobramentos da co-
notação “políticas agropecuárias”, como aquelas destinadas à
melhoria da produtividade, da escala, da inovação tecnológica,
da comercialização em grandes ciclos e da rentabilidade, em
desdobramento com “políticas para o desenvolvimento rural”
focadas no alívio da pobreza rural e subsistência de comuni-
dades rurais carentes, comercialização assistida pelo Estado e
de pequeno ciclo, pequena agricultura familiar, agroecológica
e também incipientemente “juventudes” e “mulheres rurais”.
Essa dupla lógica implica uma assimetria hierarquizada e é
pertinente refletir, já que permite que enfoques como o de gê-
nero se restrinjam à pobreza rural, como se as desigualdades
entre homens e mulheres fossem só um problema verificável
em setores subalternos e não estivessem presente nos setores
médios e altos – mesmo se reconhecendo, em alguns casos, que
o enfoque de gênero é transversal a toda a estrutura e atividade
agrária e econômica no geral, mas põe a resguardo os setores

17 Excerto do Livre Presidente da Soberania Alimentar (CLSA) da Universidade Nacio-


nal de La Plata (UNLP). Disponível em: <http://www.soberaniaalimentaria.net/>.

66 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 66 29/10/2015 16:19:49


médio e grande da agricultura de qualquer demanda pela igual-
dade, seja ela de gênero, etnia, territorialidade, sustentabilida-
de ecológica, sustentabilidade geracional, entre outras.

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DESENVOLVIMENTO REGIONAL NA
PERSPECTIVA DE GÊNERO NA REGIÃO NORTE
BRASILEIRA: LIMITES E POSSIBILIDADES18
Cynthia Mara Miranda
Milena Fernandes Barroso

INTRODUÇÃO

O
debate sobre o desenvolvimento no mundo e particu-
larmente no Brasil tem, nos últimos anos, se qualificado
e sido objeto de interpretações diferentes e opostas. Es-
sas interpretações vão desde as que consideram o desenvolvi-
mento como sinônimo de crescimento econômico até as que
o questionam. Estudos de gênero, por seu turno, têm aponta-
do tanto o impacto negativo do desenvolvimento na vida das
mulheres como a importância deste com base na incorporação
das demandas dos movimentos de mulheres e da perspectiva
de gênero nas políticas públicas.
Segundo o Global Gender Gap Report (2014), um índice
produzido pelo Fórum Mundial Econômico que avalia a dis-
paridade de gênero no mundo, o Brasil ocupa a 71ª posição
no ranking da disparidade de gênero. O índice avalia, desde
2006, as diferenças entre homens e mulheres na área da saú-
de, educação, economia e indicadores políticos. Na atual edi-
ção da pesquisa (2014), foram avaliados 142 países. Apesar de

18 O artigo é resultado de uma pesquisa sobre desenvolvimento regional e políticas


públicas de gênero na Região Norte do Brasil, realizada com o apoio do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 71

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ter mantido a igualdade entre os gêneros nas áreas de saúde e
educação, o Brasil perdeu posições em relação à pesquisa rea-
lizada em 2013 nos índices que medem a participação femini-
na na economia e política.
Outros fatores têm incidido sobre a desigualdade de gêne-
ro, como é o caso da desigualdade regional. Levando em con-
sideração que o Brasil é um país de vasta extensão territorial,
nota-se que as cinco regiões brasileiras (Norte, Sul, Sudeste,
Nordeste e Centro-Oeste), além de apresentarem especificida-
des decorrentes de aspectos culturais e ambientais, apresen-
tam também diferenças sociais e econômicas que têm origem
na própria formação “colonial” brasileira, as quais hoje decor-
rem, entre outros motivos, do lugar que o Brasil ocupa na rela-
ção com os países centrais e internamente entre regiões.
As regiões brasileiras (ou complexos exportadores) foram
sendo delineadas ao longo da história do país, tornando algu-
mas regiões – por exemplo, o Sudeste, economicamente mais
forte e com capacidade de diversificação da sua base produtiva
mais acelerada. Por outro lado, a Região Norte, em razão do mo-
vimento diferente da acumulação capitalista tanto no passado
como no presente, tem se realizado por meio do extrativismo
vegetal e mineral, ou seja, prioritariamente como fornecedora
de matéria-prima e espaço de reprodução da força de trabalho.
Além do desenvolvimento econômico desigual entre as
regiões brasileiras, o acesso da população às políticas públicas
tem sido diferenciado, e isso também se reflete nos obstáculos
que se apresentam para a interiorização das políticas públicas
de gênero, aqui tratadas especificamente como políticas
públicas para as mulheres. Contudo, cabe considerar que
as políticas públicas de gênero não se referem apenas às
mulheres: dizem também respeito às demais identidades
sexuais. Tais políticas buscam, dessa maneira, reduzir as
desigualdades entre os distintos sujeitos sociais em razão
da sua sexualidade. O gênero, assim, seria apenas uma das

72 Gênero, desenvolvimento e território

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dimensões que têm reforçado a desigualdade das mulheres;
outras dimensões, tais como classe, raça, etnia e geração, têm
sido intercruzadas, reforçando a desigualdade em relação aos
homens, mas também entre as próprias mulheres.
As demandas das mulheres brasileiras decorrentes dessa
desigualdade passam a ser institucionalizadas pelo governo
federal na primeira década do século 21. Políticas públicas
para as mulheres voltadas à igualdade entre os gêneros foram
impulsionadas graças ao diálogo entre movimentos feminis-
tas e governo federal, destacando-se: a criação da Secretaria
Nacional de Políticas para as Mulheres e a reestruturação do
Conselho Nacional de Direitos das Mulheres em 2002, a reali-
zação de três conferências nacionais (2004, 2007 e 2011) para
discutir as políticas públicas para as mulheres e formular pla-
nos de políticas públicas para as mulheres com participação
popular, entre outras políticas e estratégias.
No entanto, cabe mencionar que tais ações estão distantes
de atender, de forma mais ampla, toda a diversidade de seu pú-
blico-alvo por várias razões, entre elas as desigualdades regio-
nais. O orçamento da SPM, por exemplo, não chega a 0,1% do
orçamento geral da União, e, nas demais áreas, as ações e pro-
jetos (mães da paz, saúde materno-infantil), em sua maioria,
reforçam os papéis tradicionalmente atribuídos às mulheres.
Avançar na interiorização das políticas públicas para as
mulheres requer considerar as diferenças e desigualdades re-
gionais como aliadas da igualdade entre os gêneros – o que
implica um desafio maior, tendo em vista que o debate sobre
o desenvolvimento regional na perspectiva de gênero é algo
recente no país.
O governo federal realizou, em 2013, a I Conferência Nacio-
nal de Desenvolvimento Regional, com o objetivo de formular
princípios e diretrizes para uma nova política regional bra-
sileira. No relatório final da conferência, que resultou em 21
propostas prioritárias, apenas duas fazem referência indireta

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 73

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 73 29/10/2015 16:19:49


às questões de gênero: as relativas à valorização dessa diversi-
dade no âmbito das gerações, etnias e raças.
A principal proposta, que trataria do desenvolvimento re-
gional na perspectiva de gênero – respeito às diversidades re-
gionais e de gênero –, ficou fora da lista das 21 prioridades em
destaque, por baixa votação. Ela estabeleceria critérios para a
distribuição de recursos que fortaleçam as regiões com menor
índice de desenvolvimento e equidade de gênero. Assim, pode-
ria incentivar a organização produtiva das mulheres e tornar
as políticas públicas mais acessíveis.
Como é possível notar, a temática ainda enfrenta obstáculos
para ser pautada no âmbito governamental. O enfoque do gê-
nero no desenvolvimento regional busca satisfazer as necessi-
dades das mulheres partindo de uma análise das relações nas
comunidades e instituições que questionam o modelo de desen-
volvimento dominante. Ele propõe uma alternativa de desenvol-
vimento socialmente referenciado, que assegure universalidade
de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políti-
cas sociais, bem como sua gestão democrática, aliado à busca da
igualdade entre os gêneros e o combate ao racismo e sexismo.
A desigualdade regional evidencia-se como um problema
que tem impacto na vida da população e das mulheres de for-
ma particular. É fato evidente a diferença na qualidade de vida
das mulheres que vivem nas Regiões Sul e Sudeste do país se
comparada com as demais regiões do Brasil. Elas têm sido
mais exitosas no acesso aos direitos sociais básicos, ao passo
que aquelas residentes na Região Norte19 têm enfrentado mais

19 A Região Norte concentra o maior percentual de mulheres sem rendimentos:


32,1%, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (2012). Já
na Região Sul, o percentual cai para 25,3%, e é de 28,7% no Sudeste. O rendimento
médio das mulheres brasileiras que compõem a população economicamente ativa
é de apenas R$ 904,00 na Região Norte, enquanto o das mulheres da Região Sudes-
te é de R$1.307,00, sendo esta a melhor média nacional (PNAD, 2012).

74 Gênero, desenvolvimento e território

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obstáculos para conseguir o acesso à educação, ao trabalho ou
aos serviços públicos de modo geral.
Os sete Estados que compõem a Região Norte pertencem à
área denominada Amazônia Legal e correspondem a 59% do
território brasileiro. Além dos Estados da Região Norte, o terri-
tório amazônico ocupa parte do Estado do Maranhão e abriga
56% da população indígena brasileira.
Para contornar os problemas sociais presentes na Região
Norte do país, mulheres têm se organizado em distintos mo-
vimentos. Diferentemente das Regiões Centro-Oeste, Sul e Su-
deste, que são consideradas de vanguarda no que se refere à
emergência dos movimentos feministas brasileiros no período
da ditadura militar brasileira, especialmente nos anos 1970
e 1980, a Região Norte caracteriza-se por uma atuação mais
marcante dos movimentos de mulheres, nos quais se destacam
os movimentos de trabalhadoras rurais, quebradeiras de coco,
ribeirinhas, mulheres indígenas, pescadoras, parteiras tradi-
cionais, entre outros.
Não existe consenso quanto à distinção entre movimentos
de mulheres e movimentos feministas. Consideramos, assim,
no contexto da Região Norte, que os movimentos de mulheres,
muitas vezes, não se intitulam feministas, embora suas práticas
estejam alicerçadas no que Ávila (2001) destaca como sendo
um pensamento crítico e uma prática política – objetivos es-
tes do feminismo. Assim, para compreender a organização das
mulheres na Região Norte, adotamos a nomenclatura dos mo-
vimentos de mulheres, embora não neguemos a existência de
uma diversidade de movimentos feministas na região. Nela es-
tão os movimentos de mulheres que apresentam uma atuação
mais intensa e maior incidência nos espaços políticos institu-
cionais que contribuem para pôr em pauta a importância da
transversalidade da perspectiva de gênero nos conselhos esta-
duais e municipais de direitos e nas demais políticas públicas.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 75

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Pensar o desenvolvimento regional na perspectiva de gêne-
ro é um exercício reflexivo que implica indagar até que ponto
as mulheres da Região Norte, especialmente dos Estados do
Amazonas e Tocantins, têm sido exitosas na sua busca pela
reinvenção de novas formas de fazer política e participar do
desenvolvimento regional.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES NA


PERSPECTIVA DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL20

As políticas públicas para as mulheres consistem em um


conjunto de programas e ações que contribuem para a redução
das desigualdades, das opressões e das relações de exploração
vivenciadas pelas mulheres. Tais políticas têm como objetivo
transformar essa realidade, exigindo do Estado que atue de
forma a promover a autonomia das mulheres e a justiça social.
Diferente das políticas públicas de gênero que incluem mulhe-
res, homens, transgêneros e outras identidades sexuais, com
foco na discussão dos papéis socialmente construídos, as polí-
ticas públicas para as mulheres reconhecem a centralidade das
desigualdades de gênero na vida das mulheres.
As políticas para as mulheres, contudo, não são excludentes
das políticas de gênero. Embora pareça ter uma perspectiva
restrita, pontual, de menor abrangência, ao atender a deman-
das das mulheres, elas expressam a permanência de históricas
desigualdades sociais no Brasil, pois partem da análise de que

20 A versão premilinar da discussão apresentada aqui sobre as políticas públicas


para as mulheres na perspectiva do desenvolvimento regional foi apresentada
por Milena Fernandes Barroso no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, na
Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, no ano de 2013, no Gru-
po de Trabalho “Desenvolvimento local, desenvolvimento regional e o direito das
mulheres: um quebra-cabeça da descentralização”, coordenado por Cynthia Mara
Miranda e Denyse Côté.

76 Gênero, desenvolvimento e território

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nossa realidade se estrutura por um tripé de desigualdades:
gênero, classe e raça/etnia.
As políticas públicas também expressam correlações de for-
ças, por isso só garantem direitos na medida em que as mulhe-
res atuam como sujeitos durante todo o seu processo – da ela-
boração à execução. É nesse sentido que, para os movimentos
feministas brasileiros, as políticas públicas para as mulheres
têm o papel de promover “cidadania e considerar os movimen-
tos de mulheres como sujeitos legítimos e com autoridade para
interlocução com o Estado e tal perspectiva contribui para a
transformação das relações de gênero” (AMB, 2004, p. 11).
No Brasil, ainda na década de 1980, por meio da luta dos
movimentos feministas, foram implantadas as primeiras po-
líticas públicas para as mulheres, entre as quais: programa de
assistência integral à saúde da mulher, educação não sexista e
antirracista nos parâmetros curriculares do ensino básico, de-
fesa dos direitos das mulheres lésbicas, delegacias da mulher,
casa-abrigo para mulheres vítimas de violência, entre outras.
No bojo do processo de lutas pela redemocratização do país
à época, os conselhos foram criados, constituindo-se como os
primeiros organismos governamentais de defesa dos direitos
das mulheres. Em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher é criado, vinculado ao Ministério da Justiça, ampliando
a participação política das mulheres, tornando visível, naquele
cenário, as demandas do movimento de mulheres por direitos
e políticas públicas para a promoção da igualdade (OLIVEIRA,
2010, p. 31).
As questões de gênero e o desenvolvimento regional, con-
tudo, só aparecem nos anos 1990 como alvo de abordagens
dos organismos de governança mundial, tais como a Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) e o Fórum Mundial Econô-
mico (FMI). Como exemplos, podemos citar a Conferência de
Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, a Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento ocorrida

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 77

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no Cairo (Egito), em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre
a Mulher, realizada em Beijing (China), em 1995. Destarte, as
duas primeiras não tratavam especificamente da condição das
mulheres, porém foram centrais na legitimação das feministas
como atores importantes da política internacional e para in-
clusão do debate em torno das questões de gênero.
Os governos nacionais, pela participação nessas conferên-
cias, começaram a assumir compromissos com foco na redu-
ção das desigualdades de gênero pela assinatura de acordos
internacionais e da aprovação de legislações progressistas.
Contudo, poucas experiências vieram a torná-los uma realida-
de, pois a década de 1990 configura-se com o avanço do neo-
liberalismo por intermédio da vulnerabilização do trabalho e
da erosão do sistema de proteção social, caracterizada por um
enxugamento dos gastos públicos no social em detrimento dos
investimentos e ajustes econômicos e da “desresponsabiliza-
ção” do Estado para com as políticas públicas, especialmente
via terceiro setor e privatização destas.
Por outro lado, os organismos internacionais, como FMI e
Banco Mundial, instituem uma nova linguagem hegemônica a
partir da apologia à “cidadania”, direcionando suas ações sob a
imagem de uma sociedade harmoniosa e de colaboração entre
os indivíduos. Essas mudanças de cunho neoliberal vão reper-
cutir diretamente nas políticas públicas e, conforme aponta
Oliveira (2010, p. 37),

apesar da diplomacia brasileira ter assumido uma pos-


tura avançada nas Nações Unidas, não houve mudanças
substantivas na política interna. Manteve-se a condição
subalterna e desprestigiada em que estavam os organis-
mos governamentais de defesa dos direitos da mulher.

A redução das desigualdades regionais no Brasil, por sua
vez, está presente na Constituição de 1988 e, posteriormen-

78 Gênero, desenvolvimento e território

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te, tem como marco a Política Nacional de Desenvolvimento
Regional (PNDR), instituída pelo Decreto nº 6.047, de 22 de
fevereiro de 2007, a qual tem como objetivo “a redução das
desigualdades de nível de vida entre as regiões brasileiras e a
promoção da equidade no acesso a oportunidades de desen-
volvimento, e deve orientar os programas e ações federais no
Território Nacional”.
É evidente a ausência das discussões em torno das políticas
públicas para as mulheres no campo teórico e jurídico do “de-
senvolvimento regional”. Essa relação aparece como um emi-
nente campo dos estudos de gênero pautado pelas feministas
a partir da década de 1990, com ênfase no questionamento ao
modelo de desenvolvimento dominante e na luta por justiça
socioambiental.
O conceito de desenvolvimento regional dentro da concep-
ção de um desenvolvimento integral se refere ao território em
si próprio apreendido em sua posição geográfica, social, polí-
tica ou econômica. As mudanças em curso nas estruturas do
Estado, impulsionadas pela atuação dos movimentos sociais,
têm buscado a descentralização do poder e a criação de me-
canismos de governança, inclusive da sociedade civil, para in-
fluenciar no desenvolvimento regional (MIRANDA; BARROSO
apud MILHOMENS et. al., 2015).
Faustino (2010), ao refletir sobre essa questão a partir de
uma perspectiva feminista crítica, aponta que pensar as opres-
sões nos faz pensar também que, mais do que construir uma
nova concepção de desenvolvimento, nosso maior desafio é
a construção de outras racionalidades, de outras formas de
conceber a vida e a história, apresentando a humanidade com
diferentes espaços e temporalidades. A introdução da pauta
feminista no campo das discussões sobre “desenvolvimento”
denuncia, além das desigualdades entre as classes sociais,
que “riqueza e pobreza, participação e poder têm cor e sexo”
(FAUSTINO, 2010, s/p.).

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 79

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A discussão sobre o desenvolvimento está presente no II
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, lançado em 2008.
Ao destacar em seu capítulo 6 o “Desenvolvimento sustentável
no meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça
ambiental, soberania e segurança alimentar”, reconhece, como
um dos eixos prioritários de intervenção pública na área de
promoção da igualdade de gênero, a questão do desenvolvi-
mento sustentável na perspectiva de gênero e a consequente
ampliação da justiça ambiental.
Na II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres,
foram eleitas e aprovadas prioridades relacionadas à necessi-
dade da universalização do direito à terra e à água, garantia da
segurança alimentar e de uma educação ambiental que inclua
ações de capacitação para o controle social, sempre na pers-
pectiva de se garantir visibilidade e reconhecimento à con-
tribuição das mulheres em todos esses espaços, bem como o
respeito às diversidades étnico-raciais, de orientação sexual,
geracionais, entre outras (BRASIL, 2008).
Referido tema conseguiu centralidade na III Conferência
Nacional de Políticas para as Mulheres, ocorrida em 2011, em
que o eixo central foi a “questão do desenvolvimento”. A confe-
rência teve início com o painel intitulado: “As mulheres no mo-
mento atual do desenvolvimento econômico e social – desafios
de um projeto de país com igualdade entre mulheres e homens
e sustentável”. A discussão deu-se em torno da necessidade de
problematizar o conceito de desenvolvimento, de um concei-
to que só priorizava a dimensão econômica, para pautar um
conceito que valorizasse a dimensão social e ambiental. Tânia
Barcelar, uma das conferencistas, sugeria que

o conceito de desenvolvimento sustentável é um con-


ceito em construção e que interessa ao Brasil, porque
temos uma grande dívida social e um enorme patri-
mônio ambiental. Ao Brasil interessa que a sociedade

80 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 80 29/10/2015 16:19:50


brasileira tenha, como conceito de desenvolvimento,
a busca de um desenvolvimento que equilibre econo-
mia, investimentos sociais e respeito ao meio ambiente
(BARCELAR, 2011, p. 22).

Para os movimentos feministas, conforme defende a Arti-


culação de Mulheres Brasileiras (AMB) apud Oliveira (2010, p.
42), o modelo atual de desenvolvimento traz inúmeros proble-
mas: bloqueia as possibilidades de autonomia econômica para
as mulheres e reforça a exploração sobre seu trabalho. Para as
trabalhadoras rurais, limita as possibilidades de acesso à terra.
Para as urbanas, dificulta o acesso à moradia. A todas as mu-
lheres, ameaça com um contexto cada vez mais conservador,
racista, excludente e violento, posto que se apoia na competi-
ção e lei do mais forte, além de aprofundar a mercantilização,
tudo transformado em mercadoria: os bens comuns da nature-
za, os serviços públicos, as pessoas, a sexualidade, a vida.
A construção de um conjunto de estratégias institucionais
voltadas para a redução das desigualdades de gênero nas úl-
timas décadas não tem rompido com a lógica, tampouco com
as regras impostas pelo modelo de desenvolvimento vigente.
A pauta dos movimentos sociais, inclusive os movimentos de
mulheres e feministas, tem buscado a redução das desigual-
dades, por meio da descentralização do poder e da criação de
mecanismos de participação para influenciar na elaboração de
políticas públicas com vistas no desenvolvimento das cidades
e regiões.
Contudo, apesar da institucionalização da proposta de “po-
líticas para as mulheres” e do aumento das mulheres nos es-
paços da gestão pública nas diversas esferas governamentais,
as estruturas do Estado continuam a reproduzir uma cultura
política que exclui as mulheres dos espaços de poder e secun-
darizam as políticas públicas para as mulheres. Tais situações
são comprovadas na precarização dos Organismos de Políticas

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 81

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para as Mulheres e na descontinuidade de ações e projetos,
como veremos na análise dos governos da Região Norte – es-
pecialmente dos governos do Amazonas e Tocantins.
Em um contexto em que as políticas públicas para as mulhe-
res são precárias, as estruturas do Estado não têm favorecido a
descentralização e o fortalecimento de mecanismos de contro-
le social; pensar as políticas públicas de desenvolvimento re-
gional na perspectiva de gênero implica dar um passo adiante
para reduzir as distintas formas de desigualdades, como as de
gênero, classe e étnico-raciais na Região Norte.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS


MULHERES NO AMAZONAS

O Amazonas é o maior Estado brasileiro, com área de


1.570.745,680 km², e é a segunda unidade federativa com
maior população da Região Norte, com seus 3,5 milhões de ha-
bitantes. No entanto, apenas dois de seus municípios possuem
população acima de cem mil moradores: Manaus, a capital, com
1,8 milhão de habitantes, que concentra 60% da população do
Estado, e Parintins, com pouco mais de 102 mil habitantes. Se-
gundo o último Censo brasileiro (IBGE, 2010), o Amazonas é
habitado por 3.483.985 pessoas, sendo que 2.755.490 residem
em área urbana e 1.730.806 em área rural. Desse conjunto,
1.753.179 são homens e 1.730.806 são mulheres.
O Estado do Amazonas é conhecido mundialmente pela sua
beleza e reservas naturais, bem como por sua diversidade cul-
tural e étnica. Segundo informações divulgadas no Portal do
Governo do Estado (http://www.amazonas.am.gov.br/) em
janeiro de 2014, o IBGE identificou 65 grupos indígenas no Es-
tado, o que permite afirmar que o Amazonas detém a maior
população indígena do país.

82 Gênero, desenvolvimento e território

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O deslocamento ao Estado é feito principalmente por via
fluvial ou aérea, fato que dificulta a mobilidade dentro do pró-
prio Estado em razão da demora do transporte por embarca-
ções (via fluvial) e do alto custo por via aérea. Além da geogra-
fia que impõe grandes desafios à atuação dos movimentos de
mulheres, diversos problemas sociais oriundos do isolamento,
dos conflitos de terra, das condições precárias dos serviços de
saúde, das elevadas taxas de desemprego, são cotidianos na
vida das mulheres, como os advindos da feminização da po-
breza, dos postos de trabalho precarizados, da sub-represen-
tação das mulheres nos cargos de decisão, da violência contra
as mulheres e da mortalidade materna.
Entre os movimentos de mulheres presentes no Estado, po-
demos citar o Fórum Permanente das Mulheres de Manaus, a
Articulação de Mulheres do Amazonas (AMA), o Movimento
de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas), o Movimento
de Mulheres por Moradia Orquídea (MMMO) e o Movimento
Articulado de Mulheres da Amazônia Legal (Mama). Tais movi-
mentos atuam na defesa dos direitos das mulheres em diversas
áreas, abrangendo desde lutas mais gerais dos movimentos de
mulheres até a afirmação da identidade amazônica. No Ama-
zonas também está situada a maior parte das organizações de
mulheres indígenas, entre as quais se destacam a Associação
das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), a Associa-
ção das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié
(Amitrut) (SACCHI, 2003) e a Associação das Mulheres Indíge-
nas Sateré-Mawé.
Apesar da atuação dos movimentos de mulheres, as polí-
ticas para as mulheres no Amazonas são precárias e não as
atendem de forma ampla. O Conselho Estadual dos Direitos da
Mulher (Cedim/AM) é um dos Organismos de Políticas para as
Mulheres com quem os movimentos conseguem dialogar. Mes-
mo que esse diálogo não tenha resultado em mudanças sig-

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nificativas na política, é um espaço importante para a relação
entre Estado e sociedade civil.
Foi criado em 13 de novembro de 2006 com o objetivo for-
mular e implementar diretrizes e programas visando a eli-
minar as formas de discriminação que atingem as mulheres,
assegurando-lhes a plena participação no plano político, eco-
nômico, social e cultural. O conselho é composto por seis re-
presentantes do poder público, entre eles uma da Assembleia
Legislativa do Estado do Amazonas e cinco da sociedade civil,
estas últimas indicadas pelo movimento de mulheres. A indi-
cação das representantes da sociedade civil pelo movimento
de mulheres pode ser considerada importante conquista.
Em 2012, o Estado criou uma Coordenadoria Estadual dos
Serviços de Atenção em Defesa dos Direitos da Mulher, que
centralizava as ações da política estadual de atenção à mulher.
No dia 8 de março de 2013, Dia Internacional da Mulher, foi
anunciada a criação da Secretaria Executiva de Políticas para
as Mulheres, e em 20 de março foi implantada, vinculada à Se-
cretaria de Governo do Amazonas (Segov), porém com pouco
destaque no governo. Dentro desse contexto, não podemos
deixar de mencionar o papel importante que os movimentos
de mulheres tiveram para sua criação, pois havia a necessida-
de de um organismo que pensasse políticas específicas para as
mulheres amazonenses.
Apesar de a secretária que assumiu a pasta ter trajetória
nos movimentos de mulheres, o diálogo com o governo esta-
dual não resultou em avanço no que tange às políticas públi-
cas para as mulheres. A transição entre os governos também
tem prejudicado a manutenção das políticas para as mulheres,
principalmente quando não há continuidade nas ações e falta
reconhecimento quanto à importância da política em questão.
Outro fator que inviabiliza o acesso das mulheres às políti-
cas públicas é a centralização dos serviços especializados na

84 Gênero, desenvolvimento e território

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capital, muito embora a Secretaria Executiva tenha como obje-
tivo interiorizar a rede de serviço.
No Amazonas existe a Rede de Prevenção e Enfrentamento
à Violência contra a Mulher, da qual fazem parte: a Delegacia
Especializada em Crimes Contra a Mulher (DCCM), a Casa-
-Abrigo, a Vara Especializada de Violência Doméstica e Fami-
liar, o Serviço de Apoio Emergencial à Mulher (Sapem), o Ser-
viço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Savvis) e
o Núcleo de Atenção à Mulher Vítima de Violência, todos loca-
lizados em Manaus, capital do Estado. Esse fato acaba inviabi-
lizando o acesso aos serviços para as mulheres que vivem em
municípios mais distantes em decorrência das especificidades
regionais, bem como do número insuficiente de instituições
para atender a demanda.
O fato de os espaços de governança descentralizada e de os
serviços de atenção e defesa dos direitos da mulher no Ama-
zonas se concentrarem em Manaus, gerenciados por órgãos do
governo do Estado, deixa descoberta uma população de 808,5
mil mulheres residentes nos outros 61 municípios do Estado.
Entre as demandas dos movimentos de mulheres no Ama-
zonas estão a implementação da rede de atendimento para
mulheres vítimas de violência e a criação de comissões dentro
do conselho estadual (divididas por área: saúde, segurança,
educação etc.) para que as políticas possam ser efetivadas e
interiorizadas com maior agilidade. Atualmente, quatro muni-
cípios do Amazonas possuem Conselho Municipal dos Direitos
da Mulher: Manaus, Manacapuru, Coari e Parintins, este último
em fase de estruturação. A ausência dos conselhos nos demais
municípios, 58 no total, prejudica a interiorização das políticas
para as mulheres, bem como a criação de um diagnóstico sobre
os principais problemas das mulheres nesses municípios.
Em setembro de 2012, foi realizada no Amazonas a I Con-
ferência Estadual de Desenvolvimento Regional. Em nenhum
dos cinco princípios e das 20 diretrizes presentes no relatório

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 85

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final da conferência foi registrada qualquer referência às de-
sigualdades de gênero e/ou propostas no sentido de superar
tais desigualdades. Essa invisibilidade, somada ao retrato das
políticas públicas e ações voltadas para as mulheres, revela
que, no Amazonas, apesar dos avanços em nível nacional no
campo da participação, os movimentos de mulheres pouco têm
influenciado para a incorporação da perspectiva de gênero nas
políticas e programas governamentais (MIRANDA; BARROSO
apud MILHOMENS et. al., 2015).
Diante do cenário pouco otimista para a implementação de
projetos que possam reduzir as desigualdades (de gênero, clas-
se, étnico-raciais) a partir da promoção de políticas públicas
para as mulheres, pensar políticas públicas de desenvolvimen-
to regional com a perspectiva de gênero no Estado seria uma
etapa posterior ainda distante da realidade e que só poderá ser
desenhada com a participação dos movimentos de mulheres.

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA


AS MULHERES NO TOCANTINS

O Tocantins, Estado mais novo da Região Norte (cria-


do em 1988), é constituído por 139 municípios e apresen-
ta 1.373.551 habitantes. A população urbana do Tocantins é
composta por 1.090.241 moradores, enquanto a população ru-
ral é de 293.212 habitantes. O Estado divide-se em 18 regiões
administrativas ou territórios de planejamento e uma região
metropolitana. A capital, Palmas, possui 223.817 habitantes, e
a segunda maior cidade do Estado é Araguaína, com 149.313
pessoas, conforme pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) em 2012.
O Estado apresenta uma diversidade de movimentos de
mulheres, nos quais podemos destacar: Movimento das Mu-
lheres Trabalhadoras Rurais, Movimento das Mulheres da Via

86 Gênero, desenvolvimento e território

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Campesina, Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu, Mo-
vimento das Mulheres Quilombolas, Movimento de Mulheres
Pescadoras e, mais recentemente, têm emergido movimentos
feministas no âmbito das universidades, ligados a organizações
internacional e nacional, como é o caso da Marcha Mundial das
Mulheres e a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Se-
gundo Miranda e Barroso (apud MILHOMENS et. al., 2015),

As mulheres tocantinenses também têm buscado a or-


ganização via associações para dar maior visibilidade às
suas reivindicações como Associação Regional das Mu-
lheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (Asmu-
bip); a Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais
Quebradeiras de Coco Babaçu do Tocantins (AMTQC),
Associação das Pescadoras de Axixá, Associação das Ri-
beirinhas da Região do Bico do Papagaio, a Comunidade
Sete Barracas (Casb); a Associação de Mulheres do Buriti
(AMB), entre outras.

A violência doméstica tem sido um problema social mar-


cante na realidade do Estado, e por essa razão os movimentos
de mulheres têm se articulado para cobrar ações pontuais do
Estado para o fortalecimento da Rede de Prevenção e Enfren-
tamento à Violência contra a Mulher. De acordo com o Relató-
rio Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (2013),
resultado da investigação sobre a situação da violência contra
a mulher no Brasil e apuração de denúncias de omissão por
parte do poder público com relação à aplicação de instrumen-
tos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação
de violência, a Rede de Prevenção e Enfrentamento à Violência
contra a Mulher no Estado do Tocantins é precária.
Assim como no Estado do Amazonas, os serviços da rede
estão mais concentrados na capital. Palmas conta com duas
Delegacias Especializadas em Crimes Contra a Mulher, uma

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 87

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Casa-Abrigo e uma Vara Especializada de Violência Doméstica
e Familiar.
Os movimentos de mulheres, diante da limitação de ações
do Estado para reverter a desigualdade entre os gêneros, têm
atuado nos poucos espaços existentes que ainda possibilitam
uma interlocução com o Estado, como é o caso dos conselhos
de direitos. O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Ce-
dim), que é um desses espaços de interlocução dos movimen-
tos, foi instituído pela Lei nº 1.141, de 8 de março de 2000,
com o objetivo de assegurar à mulher tocantinense as condi-
ções ideais de liberdade, com igualdade de direitos e de plena
participação nas atividades políticas, econômicas e culturais
do Estado e da Nação.
O Cedim atua de forma precária, sem estrutura, uma vez
que o Estado não dispõe de uma Secretaria Estadual de Polí-
ticas para as Mulheres para dar suporte às ações do conselho;
não há espaço de funcionamento próprio nem realiza projetos
de grande impacto na vida das mulheres. Segundo Miranda e
Barroso (apud MILHOMENS et. al., 2015),

O conselho é composto por 26 membros e, desses, cinco


vagas são destinadas à sociedade civil, que são repre-
sentadas atualmente pela Liga Feminina de Combate ao
Câncer, Associação de Mulheres Negras e Quilombolas,
Casa da Mulher 8 de Março, Movimento Estadual dos Di-
reitos Humanos e Federação dos Trabalhadores na Agri-
cultura do Estado do Tocantins (Fetaet).

O Estado, que tem 139 municípios, apresenta apenas 19 con-


selhos municipais em funcionamento. O atual Organismo Esta-
dual de Políticas para as Mulheres (OPMs) é uma Supervisão de
Assistência à Mulher que atua com muita dificuldade, pois falta
orçamento para desenvolver as ações e não há estrutura ade-

88 Gênero, desenvolvimento e território

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quada para seu funcionamento. A supervisão é vinculada à Se-
cretaria Estadual de Defesa Social e foi criada em maio de 2014.
Nota-se, nos últimos oito anos, que as políticas para as mu-
lheres têm perdido espaço dentro da estrutura governamental.
Durante o final do mandato de Marcelo Miranda (PMDB), quan-
do cassado em 2009, a Secretaria Estadual de Políticas para
as Mulheres havia sido criada via decreto, porém não foi ins-
titucionalizada. Com a cassação de Miranda, Carlos Henrique
Amorim (PMDB) assumiu o governo e não institucionalizou a
secretaria, criando apenas uma Superintendência Estadual de
Assistência à Mulher, que funcionou até o final de seu mandato.
Quando o governador Siqueira Campos (PSDB) assumiu o
governo, em janeiro de 2011, a superintendência foi reduzi-
da a uma Diretoria Estadual de Assistência à Mulher. Com a
renúncia de Siqueira Campos, em abril de 2014, mais mudan-
ças ocorreram. O governador que assumiu o cargo, Sandoval
Cardoso (Partido Solidariedade), reduziu o status da diretoria,
tornando-a uma Supervisão de Assistência à Mulher.
Além da supervisão, o Estado possui três Centros de Refe-
rência e Atendimento às Mulheres em Situação de Violência
em funcionamento (Natividade, Augustinópolis e Arraias) e
onze Delegacias de Atendimento às Mulheres, sendo duas lo-
calizadas na capital. As demais delegacias estão distribuídas
nos municípios de Araguaína, Augustinópolis, Colinas, Guaraí,
Gurupi, Miracema do Tocantins, Paraíso do Tocantins, Porto
Nacional e Tocantinópolis.
O município de Palmas tem Centro de Referência e
Atendimento às Mulheres próprio, gerido pela Superintendência
da Mulher, Direitos Humanos e Equidade (Sumudhe),
graças a uma parceria firmada com a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres da Presidência da República. No
Estado, apenas três municípios apresentam em sua estrutura
governamental uma Secretaria Municipal de Políticas para as
Mulheres: Colinas, Paranã e Tocantinópolis. A capital Palmas

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 89

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conta apenas com uma Superintendência da Mulher, Direitos
Humanos e Equidade (Sumudhe) ligada à Secretaria Municipal
de Integração Social e Defesa do Consumidor. O diálogo dos
OPMs com os movimentos de mulheres no Estado acontece
por meio do Cedim. Tendo em vista a fragilidade do Organismo
Estadual de Políticas para as Mulheres, evidenciada pela falta
de estrutura e orçamento, pela invisibilidade que ele tem
perante o aparato estatal em geral, nota-se que os movimentos
de mulheres não têm obtido êxitos nesse diálogo.
O Estado tem se destacado nacionalmente nos últimos anos
pelo agronegócio, se tornando o maior produtor de grãos da
Região Norte do Brasil, sobretudo de arroz, milho, mandioca,
feijão e soja. Contudo, o desenvolvimento dos empreendimen-
tos gerados pelas grandes obras e pelo agronegócio, que são
amplamente difundidos no Estado, não considera a sustenta-
bilidade como componente do desenvolvimento – ponto esse
questionado pelos movimentos de mulheres.
Eles têm questionado o tipo de desenvolvimento que não
prioriza as demandas das mulheres, pois, para os movimen-
tos, investir nesse tipo de desenvolvimento não melhora a
qualidade de vida da população, já que tais investimentos
concentram a renda.
Não há política de desenvolvimento regional no Estado
que incorpore a questão da sustentabilidade e a perspectiva
de gênero. No relatório final da I Conferência Estadual de De-
senvolvimento Regional, ocorrida em 2012 no Tocantins, por
exemplo, nota-se a ausência de princípios e diretrizes que se
atentem a considerar as relações de gênero no desenvolvimen-
to regional.21

21 No que se refere às 95 diretrizes, somente duas destacam as questões de gênero.


São elas: assegurar a participação das populações historicamente excluídas (mu-
lheres, crianças/adolescentes, idosos e povos e comunidades tradicionais) nas
políticas de desenvolvimento e adotar mecanismos de redução das desigualda-
des regionais e intrarregionais, considerando as dimensões ambientais, culturais,

90 Gênero, desenvolvimento e território

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é possível reduzir a desigualdade entre os gêneros sem


considerar as especificidades regionais, as opressões decor-
rentes de classe, raça, etnia, geração e orientação sexual, bem
como a necessidade de investimentos dos governos estaduais
e municipais na pauta das mulheres. A desigualdade entre os
gêneros é um problema social de ampla proporção no Brasil, e
assim as políticas públicas para a redução das desigualdades
não podem depender única e exclusivamente de recursos do
governo federal.
Alavancar o desenvolvimento regional implica reconhecer
que as mulheres têm um papel fundamental nesse processo.
Assim, resta aos movimentos das mulheres, diante da escassez
de OPMs, continuarem atuando para que oportunidades po-
líticas sejam criadas. Atuar no controle social ou por meio de
ações de advocacy é uma estratégia imediata para redução das
desigualdades, pois pode favorecer mudanças estruturais, que
possam extrapolar os limites institucionais e mudar de fato a
condição das mulheres.
A abertura do diálogo com o Estado é necessário para am-
pliar o orçamento para as suas demandas nos planos pluria-
nuais. Isso consequentemente fortalecerá as políticas para as
mulheres e reduzirá as desigualdades de gênero, especialmen-
te nas regiões fora do eixo Sul-Sudeste.
O desenvolvimento regional na perspectiva de gênero ainda
está distante da realidade dos Estados do Amazonas e Tocan-
tins. Os movimentos de mulheres vivenciam constrangimentos
políticos na atuação e intervenção nesses Estados para criação
de organismos de governos descentralizados com força políti-
ca para mudar a ação do Estado em prol das mulheres.

econômicas, sociais, de gênero e étnico-racial, “dado que mesmo nas regiões mais
ricas existe má distribuição de renda”, afirma o documento.

Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 91

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Iniciativas de políticas estaduais e municipais que rompam
com as desigualdades são raras na Região Norte. Quando exis-
tem, geralmente estão associadas às políticas do governo fede-
ral. O fato de a Região Norte ser uma das que mais carecem de
investimentos do governo federal impõe obstáculos ao acesso
das mulheres aos serviços públicos.
Elas enfrentam cotidianamente problemas advindos da fe-
minização da pobreza, dos precários postos de trabalho, da
sub-representação nos cargos de decisão e dos altos índices
das violências às quais estão expostas – além de lidar com di-
versas intempéries sociais oriundas do isolamento, dos con-
flitos de terra, das condições insatisfatórias dos serviços de
saúde, do acesso limitado à qualificação ou das elevadas taxas
de desemprego.
Mudar esse quadro implica reconhecer que as desigualda-
des regionais também podem aprofundar a desigualdade entre
os gêneros. Assim, o diálogo entre movimentos de mulheres e
governos é de fundamental importância para a construção de
políticas públicas que tenham a capacidade de identificar as
necessidades específicas que as mulheres têm em decorrência
da região em que vivem.

REFERÊNCIAS

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luta feminista nas Políticas Públicas. Recife, 2004.

__________. Articulando a luta feminista nas Políticas Públicas:


desafios para a ação do movimento na implementação das po-
líticas. Brasília, 2009.

92 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 92 29/10/2015 16:19:51


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In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 12, nº 1,
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SO, Milena Fernandes (Orgs.). Amazônia: mosaico de reflexões
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MIRANDA, Cynthia Mara. Mobilização das mulheres em enun-


ciados de jornais brasileiros (1979-1988). Dissertação (Mestra-
do em Ciências Sociais). Centro de Pesquisa e Pós-Graduação
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Diálogo sobre governança descentralizada, território e desenvolvimento 93

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OLIVEIRA, Guacira Cesar de (Org.). Trilhas feministas na gestão
pública. Brasília: CFEMEA, 2010.

RELATÓRIO FINAL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito


com a finalidade de investigar a situação da violência contra
a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte
do poder público com relação à aplicação de instrumentos
instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de
violência. Brasília: Senado Federal, 2013.

WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Gender Gap Report


(GGGR). Geneva, Switzerland: World Economic Forum, 2014.

94 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 94 29/10/2015 16:19:51


PARTE 2

AUTONOMIA DAS
MULHERES E
O ACESSO
ÀS POLÍTICAS
PÚBLICAS

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O SURGIMENTO DE
MICROEMPREENDIMENTOS DE MULHERES
RURAIS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Denyse Mello
Marianne Schmink

INTRODUÇÃO

N
a década de 1980, microempreendimentos surgiram
na Amazônia brasileira como uma alternativa para pro-
mover a geração de renda para as populações rurais,
com base na valorização dos produtos florestais e contribuin-
do para o esforço de redução do desmatamento (ANDERSON;
CLAY, 2002). Os microempreendimentos rurais surgiram den-
tro de grupos organizados de pequenos agricultores, indíge-
nas, extrativistas florestais, pescadores e descendentes de es-
cravos (“quilombolas”). E várias dessas iniciativas econômicas
foram formadas por mulheres rurais que se organizaram em
grupos e criaram seus microempreendimentos coletivos, pos-
suindo como característica comum o uso de produtos de re-
cursos naturais (GOMES; AMARAL, 2005).
Nas décadas de 1970 e 1980, a política de desenvolvimento
do governo federal para a Amazônia resultou em desmatamen-
to e degradação florestal, na expulsão de populações rurais
para as áreas urbanas, gerando assim conflitos de terra, tanto
pela desapropriação quanto em decorrência da especulação
(SCHMINK; WOOD, 1992). Essa dinâmica resultou em aumen-
to da pobreza entre as pessoas que dependem da floresta e

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 97

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na precariedade de serviços prestados para sua subsistência
(SHANLEY et. al., 2008).
Durante os anos 1990, com a descentralização da política
de desenvolvimento da Amazônia, começou-se a devolver os
direitos sobre a terra às comunidades rurais. Nesse processo,
comunidades retomaram as práticas de acesso a produtos flo-
restais e testaram formas de manejo florestal. Esse processo
foi visto como importante na proteção das florestas por utili-
zar práticas de uso sustentável, referendadas pelos meios cien-
tíficos como um importante modelo de repartição de benefí-
cios econômicos (SHANLEY et. al., 2008). Além disso, políticas
ambientais começaram a ser trabalhadas com o pressuposto
de que a conservação ambiental passa pela valorização eco-
nômica da floresta, incluindo valor de uso direto, que é a valo-
rização dos produtos florestais, e de uso indireto, relacionado
com a proteção ambiental, como melhoria do fluxo de chuvas
e redução da concentração de carbono na atmosfera (PEARCE;
TURNER, 1990).
Nesse contexto, diversas categorias de populações rurais na
Amazônia, como seringueiros, indígenas e pequenos agricul-
tores, organizaram-se por intermédio de movimentos sociais,
realizando protestos e lutas de forma a garantir direitos à ter-
ra (HOCHSTETLER; KECK, 2007; SCHMINK; WOOD, 1987). A
aliança dos seringueiros e povos indígenas com grupos am-
bientalistas nacionais e internacionais trouxe a força necessá-
ria que influenciou na mudança de projetos das grandes agên-
cias de desenvolvimento internacionais, como o Banco Mun-
dial, que financiaram muitos dos projetos de desenvolvimento
brasileiros, os quais foram responsáveis pelos danos ambien-
tais e sociais descritos. Novas prioridades e garantias nos em-
préstimos foram estabelecidas para proteger os direitos terri-
toriais dos povos e promover a conservação dos ecossistemas
naturais (CHARNLEY; POE, 2007). O ápice dessa estratégia foi
uma proposta inovadora, um novo tipo de direito fundiário,

98 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 98 29/10/2015 16:19:51


que reconhecia o direito de uso à população local manejado-
ra da floresta. A criação de reservas extrativistas combinou a
estratégia de direitos humanos com a conservação da floresta,
gerando benefícios econômicos e sociais para os seus residen-
tes (ALLEGRETTI; SCHMINK, 2009).
Nesse mesmo bojo de propostas e processos sociais que
uniram populações tradicionais com conservação da nature-
za, os microempreendimentos surgiram como uma estratégia
econômica para responder à necessidade de melhorar a ren-
da com base em produtos da biodiversidade da floresta. Havia
três razões principais para apoiá-lo. O primeiro é a introdução
de produtos florestais na cadeia de mercado verde, que ligava
as estratégias de conservação com os consumidores ambien-
talmente conscientes, os quais pagariam melhores preços por
produtos florestais, elevando assim a renda das populações
rurais por meio da venda desse tipo de produtos – o que con-
sequentemente aumentaria o valor da floresta.
A segunda é que microempreendimentos autogestados pe-
las comunidades rurais teriam o potencial para agregar valor
aos produtos, bem como gerar emprego nas comunidades lo-
cais, quebrando a dependência dos agentes mercantis inter-
mediários, processo considerado como causador do baixo pre-
ço de produtos florestais. Por fim, os microempreendimentos
criariam poder econômico para as populações locais margina-
lizadas, o que possibilitaria a elas disputarem o poder políti-
co com as oligarquias rurais tradicionais (ANDERSON; CLAY,
2002; HECHT, 2007).
Dessa forma, a emergência de microempreendimentos ru-
rais na Amazônia brasileira está intimamente ligada ao debate
ambiental e sua inter-relação com a gestão dos recursos na-
turais da floresta, às políticas ambientais, ao manejo florestal
comunitário e aos mercados alternativos (ANDERSON; CLAY,
2002; CHARNLEY; POE, 2007; VARGAS, 2000). Eles são ins-
trumentos que, potencialmente, podem permitir a manuten-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 99

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 99 29/10/2015 16:19:51


ção das florestas pelo uso sustentável e econômico, gerando
renda para as comunidades florestais e estabelecendo novas
e diferentes formas de construir relações entre a floresta e as
comunidades, além de criar novos mercados para os produ-
tos, assim como novos produtos para mercados (ANDERSON;
CLAY, 2002; VARGAS, 2000).
Por outro lado, muitos fatores têm influenciado as mulhe-
res rurais a iniciar um microempreendimento. As expectativas
de obter respeito, reconhecimento como agentes econômicos,
oportunidade de aumentar a renda familiar, entre outras, es-
tão movendo as mulheres para um campo anteriormente do-
minado por homens (JALBERT, 2000).
Autores como Cooper (1981) e Bullough (2006), estudando
quais os fatores que levam as mulheres a criarem uma iniciati-
va econômica, identificaram que se trata de uma consequência
das condições pessoais e ambientais, sendo esses os fatores
explicativos para o estabelecimento de microempreendimen-
tos pelas mulheres.
Natividade (2009) analisou o surgimento de microem-
preendimentos de mulheres no Brasil e descobriu que a neces-
sidade das mulheres de entrar no mercado de trabalho, sem
perder os seus deveres familiares, foi a principal motivação
para a criação de microempreendimentos, onde era possível
ter um horário mais flexível do que em um emprego formal.
Outros estudos, como o de Bullough (2006), Bock (2004) e
Cliff (1998), ressaltaram que as mulheres desempenharam
um papel importante na expansão dos microempreendimen-
tos, especialmente para atividades não agrícolas, contribuindo
para a economia rural. Além disso, destacam que as motiva-
ções das mulheres para criação de iniciativas foram centradas
em questões sociais, pois o lucro ainda se apresenta como um
objetivo secundário.
A Amazônia e suas peculiaridades oferecem um ambiente
único, que potencialmente influencia no surgimento de micro-

100 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 100 29/10/2015 16:19:51
empreendimentos. Segundo Gnyawali e Fogel (1994), as com-
binações de condições socioculturais ambientais e políticas
influenciam a disponibilidade de serviços de assistência e de
apoio que direcionam o processo de start-up de empreendi-
mentos. Nesse contexto, este artigo analisa os fatores que in-
fluenciaram o surgimento de microempreendimentos de mu-
lheres rurais na Amazônia, incluindo a expansão do movimen-
to de mulheres brasileiras, a crescente atenção ambiental para
as florestas da Amazônia, a evolução das políticas públicas
para as mulheres no Brasil e as ações de instituições incubado-
ras no apoio à criação de microempreendimentos. Baseando-
-se em 150 empreendimentos coletivos de mulheres rurais da
Amazônia, o trabalho mostra como as características peculia-
res das mulheres, nesses microempreendimentos, habilita-as
a serem classificadas como empreendedoras sociais.

CONCEITO E METODOLOGIA

Cooper (1981) sugere um framework para explicar o surgi-


mento de pequenas empresas baseado em três fatores gerais:
características pessoais do empreendedor, serviço prestado
pelas instituições incubadoras e o ambiente favorável. En-
quanto as características pessoais do empreendedor podem
ser importantes, para a análise desenvolvida neste artigo não
se dispunha de informações suficientes sobre o contexto pes-
soal das mulheres participantes em microempreendimentos
da Amazônia. Desse modo, a análise centra-se nas duas outras
dimensões, cujas informações estão disponíveis: o ambiente
favorável e os serviços de incubadoras.
A metodologia adotada para estudar a criação de microem-
preendimentos de mulheres rurais na Amazônia brasileira foi
um desafio porque a maioria deles não está registrada, encon-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 101

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 101 29/10/2015 16:19:51
trando-se dispersa por uma imensa área geográfica, invisível
para os livros de estatísticas oficiais.
Trabalhos anteriores com microempreendimentos na Ama-
zônia foram compilados por meio de cópias impressas, cole-
tadas diretamente nas organizações em todos os Estados da
Amazônia, sobre os quais recebemos autorização para usar. O
maior banco de dados sobre microempreendimentos de mu-
lheres na Amazônia, e talvez o único em sua área, produzido
pela Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais (RMERA) para
os anos de 2003 e de 2008 (organizados pela autora), abran-
geu 150 empresas de mulheres rurais registradas em nove
Estados da Amazônia: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso,
Rondônia, Pará, Maranhão, Tocantins e Roraima. O banco de
dados RMERA tinha perguntas sobre características da em-
presa, sobre seus membros, produção, organização e sobre a
organização social, como a participação da União, organização
de filiações, técnica e apoio financeiro. O banco de dados foi
organizado em Microsoft Access© e os dados foram codificados
e importados para o SPSS 20© Statistical Package para realizar
as análises estatísticas descritivas.

RESULTADOS

Entre os elementos relevantes definidos por Cooper (1981)


como os fatores ambientais que favorecem os microempreen-
dimentos – elementos que foram adaptados para este trabalho
no contexto amazônico com base na literatura analisada –, fo-
ram definidas: a expansão do movimento de mulheres, a aten-
ção ambiental para a floresta amazônica, além da evolução de
políticas para as mulheres no Brasil e a organização do suporte
de incubadoras.
Assim como observado por outras organizações, nossa hi-
pótese é de que o surgimento de microempreendimentos de

102 Gênero, desenvolvimento e território

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mulheres rurais na Amazônia brasileira está fortemente ligado
ao crescimento das organizações sociais dessas mulheres, que
ocorreu desde a década de 1970. Isso tornou possível o sur-
gimento de microempreendimentos, criados e implementados
para responder às necessidades das mulheres rurais da região.
Quanto à segunda dimensão analisada, tem-se que as con-
dições empresariais para a criação de microempreendimentos
de mulheres foram se dando mediante ajustamento estrutural
– com políticas neoliberais macroeconômicas, especialmente
com a redução de gastos do Estado, com privatizações e com
uma economia desregulamentada – que ocorreram na América
Latina durante a crise dos anos 1990, com algumas diferenças
regionais, dependendo do contexto político, social e econômi-
co (CHANT; CRASKE, 2003).
O surgimento de microempreendimentos de mulheres ru-
rais encarna uma nova realidade econômica como uma estra-
tégia para reduzir a desigualdade de gênero e aumentar a ren-
da familiar. Na Amazônia brasileira, a combinação de décadas
de crescimento das organizações de mulheres rurais com con-
dições políticas e econômicas ajudou a influenciar a expansão
de grupos de mulheres microempreendedoras.
Tais fatores são apresentados, na sequência do texto, utili-
zando os dados dos 150 microempreendimentos, com o intui-
to de testar as hipóteses do estudo.

EXPANSÃO DO MOVIMENTO
DE MULHERES RURAIS

O primeiro fator que influenciou a criação dos microem-


preendimentos de mulheres na Amazônia foi o da organização
das mulheres rurais, com o apoio do movimento feminista, das
ações da Igreja Católica para organizar grupos de mulheres e
pela participação em debates de políticas públicas.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 103

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 103 29/10/2015 16:19:52
Durante a década de 1960 e 1970, o movimento feminista
foi ampliado pela articulação entre os grupos feministas, gru-
pos populares e da Igreja Católica para lutar contra o regime
autoritário do governo militar brasileiro (SARTI, 2004).
Na década de 1980, o movimento feminista se expandiu no
Brasil, com forte influência nas esferas políticas e sociais, e os
conselhos de mulheres foram criados, trabalhando para inse-
rir a perspectiva de gênero nas políticas e abordar questões de
violência contra mulheres (SARTI, 2004).
Como estratégia de expansão, o movimento feminista se or-
ganizou pela região, compondo os conselhos ou grupos forma-
dos no seio de instituições relevantes como igrejas, educação,
saúde, entre outros. O objetivo foi o de promover a participa-
ção das mulheres na liderança de sindicatos de trabalhadores
rurais e federações, trabalhando a pauta de direitos sociais das
mulheres. Como resultado, o movimento nacional de mulheres
rurais surgiu no Brasil na década de 1980, em associação com
o movimento sindical rural.
Uma das primeiras conquistas do movimento de mulhe-
res rurais, aliado ao movimento sindical, foi quando a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) criou um departamento das
mulheres, que teve um papel importante na criação do comi-
tê nacional para mulheres trabalhadoras rurais, e estabeleceu
cotas de participação para as mulheres no movimento sindical
(AMARAL, 2007).
Outra ação importante do departamento de mulheres da
CUT foi a grande influência nas diretrizes da Confederação Na-
cional de Trabalhadores na Agricultura (Contag), o que resul-
tou em forte participação das mulheres rurais na elaboração
da Constituição Federal de 1988.22 Suas principais reivindica-
ções eram: o reconhecimento das mulheres agricultoras – e

22 A primeira Constituição Federal do Brasil, na qual apareceu uma política pública


específica para lidar com as demandas das mulheres rurais.

104 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 104 29/10/2015 16:19:52
não apenas como empregadas domésticas, mas como traba-
lhadoras produtivas, com o objetivo de quebrar a invisibilida-
de do trabalho das mulheres na agricultura; os direitos sociais,
especialmente o direito à aposentadoria e ao salário-materni-
dade; o direito de confederar no sindicato e na Federação de
Trabalhadores Rurais, além do direito relativo à saúde das mu-
lheres (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Em 1988, a participação de mulheres rurais amazônicas no
primeiro encontro nacional de mulheres rurais da Contag para
se preparar para os debates constitucionais contribuiu com a
elaboração da pauta, juntamente com outras mulheres rurais
brasileiras, em um movimento nacional para trabalhar pelo
direito de participar no movimento sindical rural, bem como
pela inserção delas no contexto político nacional.23
Nesse contexto, o primeiro esforço foi para o reconheci-
mento do seu papel como importante agente dentro das or-
ganizações de trabalhadores rurais: sindicatos, federações de
trabalhadores rurais e associações de bairro. Como resultado,
as secretarias de mulheres foram criadas nos estatutos do mo-
vimento, formalizando a existência do departamento para tra-
balhar com suas demandas (AMARAL, 2007).
Embora se tratasse de uma fase crucial para a expansão da
organização das mulheres rurais, havia muitos conflitos den-
tro do movimento sindical para buscar reconhecimento da
importância de incluir as mulheres como representantes do
movimento sindical. Um bom exemplo ocorreu em 1990, em
Nova Timboteua, uma cidade no Estado do Pará, onde mais de
cem mulheres ocuparam o sindicato durante uma semana para
adquirir o direito de participar e poder fazer parte da direção

23 O primeiro encontro nacional de mulheres trabalhadoras rurais ocorreu em 1988,


para preparar as mulheres para participar dos debates constitucionais. Nessa reu-
nião havia representantes de todos os Estados e sindicatos rurais, o que ajudou
ainda mais a expansão das organizações de mulheres no Brasil.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 105

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 105 29/10/2015 16:19:52
na organização sindical (ASSOCIAÇÃO DE MULHERES MARGA-
RIDA BARBOSA [AMMB], 2002).
A Igreja Católica, cuja atuação era centrada nos impactos
do modelo de desenvolvimento econômico para as famílias
rurais da Amazônia, apontava tal modelo como responsável
pela pobreza das famílias, com desconsideração dos direi-
tos sobre a terra, e pela geração de conflitos violentos (SCH-
MINK; WOOD, 1992).
A Igreja, com seu movimento de base eclesial orientado pela
teologia da libertação, teve uma forte influência na formação
dos líderes mais importantes nas áreas rurais da Amazônia,
com propostas de lutar por seus direitos pela terra e contra o
modelo de desenvolvimento pregado pelo Estado brasileiro. A
teologia da libertação foi um movimento formado pela Igreja
Católica na América Latina, e especialmente no Brasil durante
o regime militar na década de 1960. No contexto de opressão
que as pessoas pobres viviam, a teologia enfatizou a libertação
social e política como a antecipação da salvação final. A ideia
central focava em pessoas pobres de duas maneiras: como ob-
jetos de ajuda e benevolência e como protagonistas de sua his-
tória e de libertação da opressão, da exploração e da exclusão
(BOFF; BOFF, 1987).
Uma das ações da Igreja Católica foi a organização das mu-
lheres rurais em torno das necessidades da família, porém sem
abordar a desigualdade de gênero no interior da família. Nesse
processo, foram estabelecidos diferentes tipos de organiza-
ções de mulheres rurais (clubes de mães, grupos de parteiras,
grupos de mulheres pastorais, associações de mulheres e mo-
vimentos nacionais de mulheres) (AMARAL, 2007). As ações
da Igreja contribuíram muito para a organização em torno de
iniciativas de produção, bem como para as demandas sociais
de mulheres, familiares e comunidades. As mulheres rurais ga-
nharam conhecimento sobre os seus direitos e melhoraram as
habilidades produtivas para desenvolver pequenas manufatu-

106 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 106 29/10/2015 16:19:52
ras de produtos dentro de casa. Em muitos casos, esses progra-
mas de treinamento resultaram em pequenas iniciativas pro-
dutivas com o fim de gerar recursos para melhorar ou manter
as ações sociais das comunidades.
Consequentemente, as mulheres rurais também aprende-
ram a se organizar e promover ações comunitárias, porque o
trabalho da Igreja também tornou possível às mulheres dei-
xarem o espaço da casa e entrarem na esfera pública, criando
novas redes sociais que promoveram a quebra do seu isola-
mento, dando-lhes a consciência sobre os seus direitos civis
(SHANLEY; SILVA; MACDONALD, 2011).
As organizações de mulheres, associadas com o movimen-
to sindical rural e grupos religiosos, lutaram pelo reconheci-
mento delas como trabalhadoras na agricultura e pelo direito
à terra, direito à saúde, direito a salário-maternidade, aposen-
tadoria, educação, bem como contra qualquer tipo de discrimi-
nação e violência doméstica (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Enfim, todas essas ações promoveram informações bási-
cas sobre direitos civis, melhorando a capacidade das mu-
lheres de participação, que resultou em acesso a direitos e
políticas públicas.
Durante a década de 1990, direta e indiretamente o movi-
mento feminista e da Igreja Católica, juntamente com outras
organizações não governamentais, estimularam iniciativas
econômicas como uma estratégia para a inclusão social e eco-
nômica das mulheres rurais na área rural da Amazônia brasi-
leira. Eles procuraram, assim, responder aos efeitos negativos
da crise econômica na região e do desenvolvimento econômico
com base no desmatamento.
Durante a década de 1990, o movimento social das mulhe-
res rurais, apoiado pela Federação dos Trabalhadores Rurais,
com o apoio de ONGs e da Igreja – Comissão Pastoral da Ter-
ra (CPT) – investiu na capacitação de pessoas e organizações
para melhorar a produção e o desempenho empresarial na re-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 107

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 107 29/10/2015 16:19:52
gião amazônica. Em 2000, a Secretaria das Mulheres Rurais da
Federação de Trabalhadores Rurais do Estado do Pará, junta-
mente com o Grupo de Assessoria em Agroecologia na Amazô-
nia (GTNA) e a Federação de Assistência Social e Educacional
(Fase) – duas organizações não governamentais –, organizou
uma reunião com mulheres rurais envolvidas em microem-
preendimentos que utilizavam diretamente recursos naturais.
Esse evento teve o objetivo de proporcionar a troca de conhe-
cimentos entre as iniciativas, bem como a discussão de articu-
lação e cooperação entre elas.
As 70 mulheres rurais representando microempreendi-
mentos de sete Estados da região amazônica indicam que o
desmatamento, a falta de valor dado às atividades das mu-
lheres, a falta de recursos financeiros, os baixos preços dos
produtos e a pequena capacidade técnica de produção foram
fatores críticos que influenciaram o desempenho das iniciati-
vas econômicas (RENDEIRO; GOMES, 2000). Como resultado
dessa reunião, a Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da
Amazônia (RMERA) foi criada. A articulação da RMERA expan-
diu-se para toda a região amazônica, integrando não somente
os microempreendimentos, mas também importantes movi-
mentos de mulheres na sua coordenação, como, por exemplo,
o Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA) e
a Rede Acriana de Mulheres e Homens (RAMH).
Em 2003, a segunda reunião teve a participação de repre-
sentantes de iniciativas das cem mulheres rurais de todos os
Estados da Amazônia. Esse evento teve como objetivo criar
uma rede de comunicação, elaboração de um programa de trei-
namento e de negociar com o setor público a respeito das polí-
ticas públicas para as mulheres, tais como crédito, assistência
técnica e as questões sociais (GOMES; RENDEIRO, 2003).
O terceiro encontro ocorreu em 2006, com o objetivo de
articular e aumentar a participação de grupos de mulheres
envolvidas em microempreendimentos em fóruns políticos

108 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 108 29/10/2015 16:19:52
na Amazônia e também na esfera nacional. Elas avaliaram a
trajetória da Rede e planejaram dar visibilidade à posição das
mulheres rurais no Encontro Nacional de Agroecologia (ENA)
como uma estratégia para ganhar visibilidade para as deman-
das das mulheres rurais e seus empreendimentos. Essa reu-
nião aconteceu no Rio de Janeiro, em 2006, com a participação
de mulheres rurais da Amazônia e de outras regiões do Brasil
(VALENTE, 2006).
Na realidade, o que era para ser apenas uma reunião para
compartilhar suas experiências terminou com a construção de
uma rede já no primeiro encontro (2000), onde microempre-
endimentos das mulheres rurais estabeleceram como missão
e estratégia a de trabalhar em conjunto para melhorar as con-
dições para seus empreendimentos. Nessa reunião, elas defini-
ram-se a si mesmas como

[m]ulheres que lutam para serem reconhecidas na socie-


dade, as mulheres que trabalham de sol a sol na agricul-
tura, no extrativismo, em cooperativas, em associações e
nos sindicatos... enfim, para obter o sustento da família
[...], as mulheres que lutam para serem reconhecidas e
respeitadas pela sociedade como trabalhadoras que po-
dem alavancar a economia e aumentar a expectativa de
vida de cada pessoa na comunidade.

A missão definida para a rede era “consolidar a rede através


do intercâmbio de informações, organizar e articular os micro-
empreendimentos das mulheres; e facilitar o intercâmbio en-
tre os mesmos”. O objetivo da rede era o de

contribuir para a articulação e a visibilidade dos micro-


empreendimentos das mulheres da Amazônia; treinar
as mulheres para ganhar habilidades profissionais em
processos de produção, marketing e gestão de micro-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 109

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 109 29/10/2015 16:19:52
empreendimentos, e para contribuir com propostas e
implementação de políticas públicas para fortalecer
as organizações de mulheres e igualdade de gênero
(RENDEIRO; GOMES, 2000).

Entre as estratégias estabelecidas pela RMERA, estão: a)


desenvolver e implementar um programa de treinamento na
área comercial, estabelecendo mecanismos para mobilizar e
fortalecer o intercâmbio na região e nos Estados; b) reunir in-
formações sobre o status das iniciativas de grupos de mulheres
empreendedoras, com destaque para os problemas e perspec-
tivas na busca da promoção de políticas públicas alternativas;
c) incentivar e estruturar uma proposta de ações planejadas
pelas Secretarias de Mulheres da Federação dos Trabalhado-
res Rurais dos Estados da Amazônia, visando à consolidação
das ligações entre os grupos; e, ainda, e) consolidar vínculos
com outras redes e fóruns que discutiam as questões do agro-
negócio e agroecologia, da assistência técnica e extensão rural,
do comércio justo, da segurança alimentar e do desenvolvi-
mento sustentável da Amazônia.
Ao longo dos últimos dez anos, a RMERA realizou ações para
aumentar a participação das mulheres rurais nos movimentos
sociais e em fóruns para discutir as políticas públicas voltadas
para a promoção de seus interesses. Os principais resultados
alcançados podem ser sistematizados da seguinte maneira: I)
criação de uma estrutura organizacional com um facilitador
que articulava a Amazônia e facilitadores regionais; II) promo-
ção de vários espaços e oportunidades de formação específica
para o negócio; III) visibilidade em alguns fóruns e conselhos,
como representante de microempreendimentos de mulheres
rurais, como, por exemplo, o conselho do programa de política
de empreendedorismo federal de políticas de inclusão, o Pro-
grama de Geração de Renda e Emprego (PPIGRE), o Conselho

110 Gênero, desenvolvimento e território

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Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e o grupo de Gênero
e Agroecologia da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Análise das informações do Banco de Dados da RMERA de
2003 e 2008 mostra a forte relação entre os microempreendi-
mentos das mulheres rurais e o movimento de mulheres: 95%
desses microempreendimentos apresentam seus membros
participando de organizações de mulheres rurais fortemente
ligadas à Igreja ou ao movimento feminista, além de participa-
rem de movimentos sindicais de trabalhadores rurais.
Apesar disso, 59% das representantes dos microempreen-
dimentos entrevistadas afirmaram que a ideia de criar um em-
preendimento foi originada internamente, nos grupos em que
elas atuam, e não de uma demanda externa. Isso reforça a ideia
da forte relação entre os grupos e as incubadoras, que não con-
seguem distinguir os efeitos da interação com grupos externos,
uma vez que essa criação foi, na maioria das vezes, estimulada
por informações baseadas em ações de organização das mulhe-
res: formação, experiência em relacionamentos e participação
em eventos promovidos pela Igreja Católica, organizações de
mulheres rurais ou urbanas e do movimento feminista.
Além da evidência da influência do movimento social de
mulheres rurais sobre o surgimento e expansão desses grupos
de mulheres integrados no RMERA, eles também se tornaram
um grupo com características próprias da Amazônia brasilei-
ra. Baseado em Cooper (1981), Dee (2001), Alvord (2004) e
Shane (2007), eles compartilham características comuns com
empreendimentos sociais: adotam uma missão para criar e
sustentar os valores sociais, envolvendo o grupo em um pro-
cesso de inovação e aprendizado, exibindo a responsabilidade
que inclui valor social como resultados (DEES, 2001).
Microempreendimentos coletivos de mulheres rurais são
empreendimentos sociais, em primeiro lugar, porque o tra-
balho que fazem não se concentra apenas em critérios econô-
micos, mas também nos aspectos social, ambiental, político e

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 111

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 111 29/10/2015 16:19:52
em esferas culturais. Eles se concentraram em uma variedade
de questões sociais, tais como: violência doméstica, direitos
à saúde da mulher, gênero, saúde da família, organizações de
mulheres; questões econômicas (produção, manufatura, negó-
cios); questões ambientais (reflorestamento, reciclagem, edu-
cação ambiental, água potável); questões de política (a parti-
cipação das mulheres nas políticas públicas, por intermédio
da participação em diversos conselhos sobre escolas e saúde,
bem como em sindicatos de trabalhadores rurais) e participa-
ção cultural na organização de eventos da Igreja Católica.
Em segundo lugar, a missão desses microempreendimentos
articulados pelas mulheres está relacionada com fatores so-
ciais (Figura 1): 44% das mulheres mencionaram o empode-
ramento como a principal meta, 29% citaram o fortalecimento
das organizações de mulheres, 19% mencionaram o aumento
da renda familiar e 8% disseram que seu objetivo era um me-
lhor bem-estar da comunidade. A questão econômica de gera-
ção de renda, assim, aparece diluída entre as funções sociais
do empreendimento.

Figura 1 – Mulheres Rurais – Metas – Microempresas Coletivas.

Fonte: Banco de Dados RMERA (2008), adaptado pelas autoras, novembro de 2013.

112 Gênero, desenvolvimento e território

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ATENÇÃO AMBIENTAL PARA A FLORESTA AMAZÔNICA

A atenção ambiental para a conservação da floresta ama-


zônica aumentou no final de 1980, com o trabalho de movi-
mentos sociais contra o modelo de desenvolvimento econômi-
co vigente com base na intensificação do desmatamento im-
plementado na região. Durante a década de 1970, o governo
militar brasileiro definiu um modelo do agronegócio para o
desenvolvimento rural; naquela época, pecuária e setor em-
presarial privado, em geral, foram financiados com incentivos
significativos e infraestrutura. Essa tendência regional desen-
cadeou um forte processo de grilagem de terra, acompanhado
por conflitos pelo acesso e posse da terra (SCHMINK; WOOD,
1987) e também mudou o papel histórico da região amazônica
para a sociedade brasileira.
Na década de 1980, a crise econômica e a redução do papel
do Estado no financiamento que rege o processo exacerbaram
a dualidade de modelos de desenvolvimento, com base, em um
dos lados, nos pequenos produtores agricultores/extrativistas
da floresta e, do outro, em grande escala voltada para exporta-
ção da produção.
Os resultados incluíram aumento dos conflitos, empobreci-
mento do meio rural, forte migração para os centros urbanos
e mudanças nos padrões de produção e consumo por parte da
população rural. Conflito de classes intenso e ausência de go-
verno contribuíram para criar o ambiente para o surgimento
de fortes organizações sociais como estratégia para enfrentar
o desequilíbrio de poder (ALLEGRETTI, 1990).
A noção emergente de profissionais do desenvolvimen-
to e ambientalistas de que o desenvolvimento econômico e
a proteção ambiental deveriam ser ligados entre si abriu as
discussões de florestas tropicais, com resultados importantes
em dimensões sociais, políticas e econômicas de desenvolvi-
mento da Amazônia (KUSTER et. al., 2006). Talvez a iniciativa

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 113

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 113 29/10/2015 16:19:53
mais significativa tenha sido a criação, em 1990, do conceito
de reservas extrativistas, pelo qual as populações tradicionais
foram reconhecidas como as protetoras florestais, dando o di-
reito à terra para essas populações.
Tal modelo especial de posse da terra reforçou a importân-
cia do papel das comunidades locais nas estratégias de conser-
vação, por meio da promoção do uso sustentável da floresta
(WADT et. al., 2008). O movimento seringueiro criado no Esta-
do do Acre foi o movimento mais importante nesse processo,
apresentando uma proposta socioambiental com base em pro-
dutos da floresta como um modelo de desenvolvimento alter-
nativo para a região.
No início dos anos 1970, no Estado do Acre, os incentivos
oferecidos à atividade pecuarista por parte do governo do Es-
tado provocou a expulsão de populações rurais para as áreas
urbanas, a especulação de terras e o desmatamento discrimi-
natório das áreas produtivas de borracha. Esse movimento,
que constantemente era ameaçado por fazendeiros no Acre,
lutou contra o desmatamento dos seringais, contra a trans-
formação da área de floresta em pasto e pelo direito à terra
(SCHMINK; CORDEIRO, 2008).
Durante o mesmo período, a produção de itens florestais
não madeireiros (PFNM) recebeu estímulos de reforço na pro-
moção comercial (DUBEY, 2007) como parte de uma estratégia
para desenvolver políticas alternativas para apoiar as iniciati-
vas comunitárias inovadoras (KAINER et. al., 2003). Além dis-
so, a proposta da reserva extrativista proporcionou alianças
entre movimentos sociais e ambientais (ALLEGRETTI, 1990).
Desde a década de 1990, as políticas públicas brasileiras
para o setor ambiental têm-se centrado sobre a importância de
agregar valor aos produtos da biodiversidade da floresta. O ce-
nário ambiental pós-ECO 92, a Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, com a estratégia de
conservação e uso sustentável das florestas, levou à criação e

114 Gênero, desenvolvimento e território

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expansão de mercados para produtos florestais, especialmente
para as florestas tropicais no Brasil (ANDERSON; CLAY, 2002).
As mulheres rurais, tradicionalmente vinculadas, boas ma-
nejadoras da floresta, apropriaram-se do espaço político que
se abriu com as crises ambientais relacionadas ao desmata-
mento, a fim de obter recursos financeiros e de visibilidade.
Nesse contexto, as discussões ambientais, associadas com o
desenvolvimento econômico para uma melhor utilização dos
recursos naturais, mostraram um novo caminho para as or-
ganizações de mulheres rurais indígenas e não indígenas, no
sentido de integrar demandas sociais com oportunidades am-
bientais e alcançar visibilidade como agentes de desenvolvi-
mento sustentável na região, participando nos debates sobre
trabalho, conservação e meio ambiente (SIMONIAN, 2001).
Isso proporcionou, nesse período, o surgimento de muitas
outras categorias importantes de organizações de mulheres
rurais que anteriormente não participavam de movimentos
sindicais na Amazônia, como o movimento das pescadoras mu-
lheres; movimento de mulheres indígenas; movimento extra-
tivista das mulheres; quilombolas (descendentes de escravos),
mulheres em organização; organizações coletoras de coco
babaçu e da Articulação de Mulheres da Amazônia (Mama). O
Mama visa arepresentar todas as categorias de mulheres que
vivem na área rural da Amazônia (SIMONIAN, 2001). Ao mes-
mo tempo, a sequência de transformações sociopolíticas esta-
va ocorrendo no Brasil, e apoiava em nível local a emergência
das organizações de mulheres locais.
Dados da RMERA mostram como as mulheres dependem
de recursos florestais para as atividades produtivas nas suas
iniciativas econômicas. Um total de 88% dos microempreen-
dimentos de mulheres rurais amazônicas estudadas estava
trabalhando com matérias-primas da floresta para a confecção
de produtos florestais não madeireiros, incluindo artesanato,
plantas medicinais, aromáticas, frutas e geleias. As suas carac-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 115

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 115 29/10/2015 16:19:53
terísticas particulares, incluindo o tempo de trabalho, formas
de organização da produção e processos de fabricação esta-
vam relacionadas também com a disponibilidade de matéria-
-prima florestal.
Embora alguns empreendimentos tivessem obtido apoio
financeiro, 90% das microempreendimentos de mulheres ru-
rais não tinham acesso a apoio financeiro externo para investir
em sua iniciativa. Um total de 60% deles não podiam acessar
crédito oficial, ou porque eles ainda trabalhavam no setor in-
formal, ou por não possuírem documentos oficiais exigidos, e
os restantes 40% não sabiam como acessar esse tipo de finan-
ciamento. Finalizando, os resultados da pesquisa mostraram
também que 85% desses microempreendimentos receberam
apoio técnico dos movimentos de mulheres, ONGs de mulhe-
res, ONGs ambientais, da Igreja e de alguns setores das univer-
sidades da Amazônia.

INSTITUIÇÕES INCUBADORAS

O apoio das instituições incubadoras é mais um dos fatores


fundamentais para o surgimento de microempreendimentos
em uma nova região. As instituições incubadoras são empre-
sas, universidades ou qualquer outra organização que têm
como objetivo promover as condições de ambiente adequadas
para o estabelecimento de novas empresas. Eles trazem capa-
cidades técnicas para reduzir o risco de fracasso do negócio e
desenvolver as capacidades de formação para os empreende-
dores que irão gerenciar seus negócios (COOPER, 1981).
A presença de instituições incubadoras de microempreen-
dimentos é recente na Amazônia. Até os anos 1980, o desen-
volvimento da Amazônia foi baseado em ações voltadas for-
temente para iniciativas estatais (REPETTO, 1988). O desen-
volvimento de incubação foi baseado no sistema de extensão

116 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 116 29/10/2015 16:19:53
oficial e teve o objetivo de produzir orientando a exportação
de produtos agrícolas.
O surgimento de empresas locais para suprir demandas ou
o desenvolvimento de novas cadeias comerciais para produtos
amazônicos locais foi negligenciado. Como resultado, os ins-
titutos de pesquisa da Amazônia focaram seus estudos sobre
melhorias na pecuária, sobre as características físicas da ma-
deira e sobre geoprospecção (COSTA, 2005).
O cenário mudou com a crise econômica do Brasil duran-
te a década de 1980, quando o governo foi incapaz de levar
adiante o plano para os Estados da Amazônia como parte do
plano de ajuste estrutural realizado com tutoria do Fundo Mo-
netário Internacional para implementar políticas neoliberais
(FRANCO, 2003). Durante esse processo, os agentes multila-
terais começaram a questionar a capacidade do Estado como
provedor de serviços, canalizando fundos para ONGs locais e
movimentos populares nas suas novas funções como presta-
dores de serviços (LIND, 1997).
Esse contexto foi a base para a criação de organizações
amazônicas capazes de responder às demandas locais emer-
gentes, tais como a necessidade de estimular microempreen-
dimentos, assim como ressaltar a importância ambiental da
floresta amazônica como mais um fator que impulsionou esse
fenômeno na Amazônia.
O novo olhar sobre a região trouxe novos conceitos, como o
desenvolvimento sustentável, a conservação da floresta, o uso
da biodiversidade, o conhecimento local e outros, que vieram
depois culminar com a Cúpula da Terra das Nações Unidas (RIO
92). Isso criou uma oportunidade única para levantar fundos
para apoio às iniciativas locais (JACOBS, 2002). Muitos grupos
de mulheres se beneficiaram dessa condição ambiental para
implementar os microempreendimentos com o apoio técnico
dessas recém-chegadas instituições incubadoras. Os grupos de
mulheres tinham todas as características desejáveis para obter

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 117

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 117 29/10/2015 16:19:53
apoio: são auto-organizados, tinham o conhecimento de como
usar produtos da biodiversidade, representavam minorias
sociais e as próprias áreas florestais. Por outro lado, eles não
tinham conhecimento técnico para estabelecer um negócio e
para acessar recursos financeiros.
Descobrimos que 85% desses microempreendimentos rece-
beram apoio técnico para o seu estabelecimento do empreen-
dimento, mas ninguém mencionou o apoio técnico do Estado.
Apenas 7% receberam apoio de universidades e outras institui-
ções públicas, e 8% deles não tinham acesso a nenhum suporte
técnico. Nos Estados onde o governo local foi mais sensível à
importância dos microempreendimentos de mulheres rurais, a
presença de agências governamentais incubadoras ocorreu de
forma intensiva, como foi o caso do Estado do Acre.
No Acre, por exemplo, onde a conjuntura política local
apoiou grupos locais, o percentual de empreendimentos que
recebeu apoio do governo foi três vezes mais do que a média,
em comparação com lugares como o Estado de Tocantins, onde
as prioridades do governo local foram a promoção do agrone-
gócio, onde nenhum apoio governamental foi mencionado.
Além disso, 66% das incubadoras foram criadas pelos movi-
mentos sociais, como o Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
os grupos religiosos e movimentos de mulheres, e 34% foram
criados por organizações não governamentais de conservação
ambiental e por universidades federais.
Na verdade, as mulheres rurais têm se organizado em uma
diversidade de organizações, a fim de melhorar as condições
sociais, econômicas, ambientais e políticas. E seus empreen-
dimentos refletem essas mesmas características como um
instrumento para suprir as necessidades sociais, econômicas,
ambientais e políticas da região (GOMES; AMARAL, 2005).

118 Gênero, desenvolvimento e território

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EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
PARA AS MULHERES NO BRASIL

A evolução da política pública pode ser considerada como


outro fator importante para o surgimento de microempre-
endimentos das mulheres em geral. Ao longo dos últimos 20
anos, a condição das mulheres tem melhorado no Brasil. O
movimento de mulheres rurais alcançou políticas públicas
para responder parte das exigências de suas organizações.
Exemplo disso foi a criação de instituições governamentais
federais com um enfoque de gênero, tais como o Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher, em 1985, e da Secretaria de
Políticas para as Mulheres, em 2003.
O primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres,
criado em 2003, com garantia de direitos sociais, políticos e
econômicos das mulheres, promoveu várias ações e progra-
mas baseados na igualdade de gênero, fomentou a autonomia
financeira das mulheres como trabalhadoras e como empreen-
dedoras em artesanato e turismo, criado e ajustado a progra-
mas de crédito para as mulheres (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLI-
CA, SECRETARIA ESPECIAL DE POLITÍCAS PARA AS MULHE-
RES, 2008). Como exemplo, tem-se a proposta governamental
de melhorar o empreendimento feminino brasileiro, por meio
de apoio financeiro pelo crédito.
No entanto, a incorporação da igualdade de gênero na prá-
tica de ministérios do governo federal nem sempre aconteceu,
e os recursos financeiros não estavam disponíveis para promo-
ver as políticas específicas para atender esses microempreen-
dimentos femininos, demonstrando ainda as dificuldades de
participação feminina no setor político-econômico (NATIVI-
DADE, 2009).
O Plano Nacional para a Promoção da Sociobiodiversidade
é um subprograma do Programa Piloto para a Conservação e
Manejo de Florestas Tropicais, cujas linhas de apoio incluem

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o “Fortalecimento das áreas protegidas e uso sustentável” e o
“Ordenamento do território e do desenvolvimento regional na
Amazônia”. A adoção dessa estratégia de gênero no âmbito do
programa piloto esteve voltada principalmente para a democra-
tização do acesso aos processos de tomada de decisão partici-
pativa, bem como para a igualdade de acesso de homens e mu-
lheres a políticas e benefícios gerados pelas ações do programa.
No projeto, o tema da igualdade de gênero foi estabeleci-
do como uma chave para o desenvolvimento sustentável, que
deve ser inserida nas ações estratégicas de funcionamento do
programa (DEUTSCHE GESELLSCHAFT FÜR INTERNATIONA-
LE ZUSAMMENARBEIT GMBH, 2012). Os questionários e en-
trevistas realizados com gestores sobre o tratamento de “re-
lações de gênero” em subprogramas e projetos do PPG7, no
entanto, revelou uma grande lacuna na formação técnica das
mulheres, especialmente para a produção e gestão de recursos
naturais (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Programas que lidavam diretamente com as comunidades
locais (Negócios Sustentáveis; Promanejo; Proteger; ProVár-
zea; projetos de demonstrativo [PDA]) tiveram algumas ativi-
dades com foco em gênero, geralmente em resposta a deman-
das de organizações locais de mulheres. Tais projetos de for-
mação e de geração de renda para as mulheres muitas vezes
foram os primeiros passos para capacitá-las a participar na
vida política local e para ocuparem cargos políticos locais ou
representarem a comunidade em conselhos locais (HEREDIA;
CINTRÃO, 2006).
A análise da incorporação da abordagem de gênero nas
ações do Plano Nacional para a Promoção da Sociobiodiversi-
dade (PNPSB) (MELLO, 2012) mostra que os três ministérios
brasileiros, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) – coorde-
nação geral, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a Compa-
nhia Nacional de Abastecimento (Conab) enfatizam a impor-

120 Gênero, desenvolvimento e território

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tância do gênero no PNPSB, com destaque para a importância
que o papel das mulheres rurais teve para o desempenho do
programa.
No entanto, entre essas instituições federais, o MDA e o
MDS apresentaram avanços mais práticos na incorporação de
gênero dentro da instituição. O MDA criou um departamento
específico para trabalhar o referido enfoque. Isso influenciou a
inclusão de demandas das mulheres usando pressões internas
para lidar com os interesses estratégicos e práticos das traba-
lhadoras rurais em todos os programas do ministério. Permi-
tiu-se, assim, a inclusão e participação mais ativa das mulhe-
res rurais na área das políticas produtivas de responsabilidade
legal do MDA – enquanto o MDS, a cargo de políticas sociais
nacionais, possui plano de ação específico para promover as
mulheres, como programa de saúde para as mulheres rurais e
expansão de benefícios sociais para as mulheres do programa
rural (MELLO, 2012).
No caso do Ministério do Meio Ambiente, este tem traba-
lhado diretamente com as iniciativas econômicas de grupos de
mulheres que trabalhavam com produtos florestais incluídos
no valor de produtos da cadeia dada como prioritária, a fim de
promover a sociobiodiversidade: babaçu, fibra de palma, olea-
ginosas e produção do umbu. Essas ações atingiram um públi-
co feminino, tornando as mulheres participantes públicas mais
ativas do que os beneficiários indiretos, pois os tomadores de
decisões de gerenciamento, dentro dessas cadeias específicas
dos produtos, eram de domínio feminino.
Em caso de organizações mistas beneficiárias do programa,
embora as mulheres rurais que trabalhavam com esses pro-
dutos florestais tenham acesso aos benefícios gerados pelo
programa, elas ainda estão em desvantagens em relação aos
homens no que diz respeito à participação na composição dos
conselhos de administração dessas organizações produtivas
atendidas pelo programa.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 121

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 121 29/10/2015 16:19:54
Em resumo, a baixa representação feminina está diretamen-
te influenciada pela baixa participação das mulheres nas dire-
trizes das políticas decisórias dentro da PNPSB, assim como
pela baixa participação nas atividades do programa (formação,
reuniões, eventos em geral), e pela representação limitada nas
organizações envolvidas (MELLO, 2012).
As limitações quanto ao alcance das políticas públicas para as
mulheres são expressas de forma mais geral nos microempre-
endimentos de mulheres rurais analisados. Apenas 15% de to-
dos esses microempreendimentos receberam apoio técnico do
governo e do setor privado: formação, consultoria, bem como a
capacidade para participar de eventos promocionais, tais como
feiras e congressos, para exporem seus produtos. A maioria
(80%) desses microempreendimentos começou com o próprio
suporte financeiro e continuou sem receber nenhum tipo de re-
cursos do governo para melhorar as suas atividades produtivas
e econômicas por meio do investimento em infraestrutura.
Em suma, muitas condições ambientais contribuíram para
o surgimento de microempreendimentos de mulheres rurais
na Amazônia brasileira: a expansão do movimento de mulhe-
res, a atenção ambiental para a floresta amazônica e a evolu-
ção da política pública para o empreendedorismo feminino no
Brasil. O movimento de mulheres incluiu o empoderamento
econômico pelo aumento da autonomia financeira, participa-
ção e tomada de decisão, como uma resposta para reduzir a
desigualdade de gênero.
O cenário ambiental da Amazônia abriu oportunidades
para as organizações feministas, a Igreja e as organizações am-
bientais trabalharem para a garantia do apoio técnico, para a
criação de microempreendimentos e a melhoria do seu desem-
penho. Finalmente, as políticas, para melhorarem as condições
das mulheres no Brasil, trouxeram muitas ações e programas
com base na igualdade de gênero, dos quais o empreendedo-
rismo feminino é um segmento importante. No entanto, na

122 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 122 29/10/2015 16:19:54
prática, as ações e programas voltados para o empreendedo-
rismo feminino ainda não – ou pouco – estavam atendendo as
demandas das mulheres rurais na região amazônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mulheres rurais na Amazônia brasileira têm mudado o


seu papel na sociedade. Elas integraram as demandas sociais,
políticas e econômicas em suas iniciativas criadas para res-
ponder às questões ligadas às desigualdades de gênero, bem
como a crise econômica causada por um modelo de desenvol-
vimento da economia baseado no uso destrutivo dos recursos
naturais, exclusões de grupos minoritários e aumento da po-
breza rural.
O surgimento de microempreendimentos de mulheres ru-
rais na Amazônia brasileira foi liderado por uma conjunção de
fatores que ocorreram nas últimas décadas, como a expansão
dos movimentos de mulheres, a atenção da política ambiental
para a floresta amazônica e para as comunidades tradicionais
e, por último, a evolução das políticas públicas voltadas para as
mulheres no Brasil.
Por sua vez, os microempreendimentos das mulheres ru-
rais estão contribuindo para o seu empoderamento por in-
termédio da promoção de uma maior autonomia financeira
e da participação delas na sociedade. Eles foram criados com
base nas motivações e objetivos sociais, harmonizados com as
necessidades das mulheres, tal qual é apresentado pelo mo-
vimento de mulheres. Esses movimentos feministas deram
oportunidades às mulheres rurais para aprenderem sobre os
seus direitos civis e melhorarem sua participação nas políti-
cas públicas e tomadas de decisão, bem como no sentido de
incentivá-las a criarem iniciativas econômicas que aumentas-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 123

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 123 29/10/2015 16:19:54
sem sua autonomia financeira, com potencial para promover o
empoderamento das mulheres.
A combinação dessas características sociais tem levado a
considerar que esses microempreendimentos das mulheres
rurais realizaram o empreendedorismo social. Com base na
pesquisa rural Rede de Mulheres Empreendedorismo entre
2003 e 2008 – um dos conjuntos de dados mais completos
sobre os microempreendimentos das mulheres na Amazônia
–, conclui-se que eles tinham relações fortes com movimento
social das mulheres, com as ações da Igreja e do movimento
sindical. Na maioria dos microempreendimentos, as mulheres
eram membros de sindicatos rurais.
O crescente envolvimento das mulheres rurais amazônicas
em microempreendimentos e em outros esforços de base para
prosseguir com alternativas de desenvolvimento sustentável
é um componente importante para fortalecer a capacidade
das comunidades da floresta amazônica de continuarem a se
adaptar e prosperar em harmonia com seus valores e práticas
tradicionais, bem como abrirem oportunidades emergentes no
mercado dos produtos florestais.
Mais visibilidade e apoio são necessários para destacar as
suas contribuições sociais, políticas e produtivas para o bem-
-estar de suas famílias e comunidades, assim como é necessá-
rio o fortalecimento dos mecanismos para o acesso das mulhe-
res aos recursos financeiros e técnicos essenciais para apoiar
seus empreendimentos.

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130 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 130 29/10/2015 16:19:54
MULHERES QUE PLANTAM, MULHERES
QUE NÃO COLHEM: PERSPECTIVAS DE
GÊNERO E DESENVOLVIMENTO EM
ASSENTAMENTOS RURAIS NO TOCANTINS
Gleys Ially Ramos dos Santos

INTRODUÇÃO

A
s análises que apresentamos aqui são resultados da
pesquisa sobre relações de gênero na luta pela terra em
assentamentos rurais no município de Porto Nacional
(TO) e visam a discutir perspectivas de gênero no contexto do
desenvolvimento regional no campo brasileiro. O objetivo do
artigo é analisar as narrativas de mulheres assentadas que vi-
venciaram o conflito social referente à posse de terra em Porto
Nacional, município localizado na região central do Estado do
Tocantins, a 64 quilômetros da capital, Palmas.
A premissa de que o processo de reforma agrária pode le-
var a um avanço no que diz respeito ao desenvolvimento re-
gional permite que nós evidenciemos, nessa ideia, um parado-
xo histórico que a acompanha. Segundo Deere e Léon (2002),
a experiência de reforma agrária latino-americana leva a um
pressusposto geral: as mulheres rurais foram, em grande par-
te, excluídas como beneficiárias diretas dos processos ligados
às reformas no campo.
Entretanto, quais as percepções dessas mulheres sobre
esse processo? São as versões dessas mulheres sobre desen-
volvimento, sobre assentamento e sobre gênero que orienta-
ram nosso trabalho. Por meio dos depoimentos das assentadas

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 131

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 131 29/10/2015 16:19:54
do Padre Josimo I e II (o assentamento foi o local onde realiza-
mos as pesquisas relativas a este trabalho), analisamos como
as propostas e os discursos sobre o desenvolvimento as afe-
tam. As assentadas nos deram a possibilidade de analisar por
outros ângulos como estão sendo implantadas as políticas de
reforma agrária e como estão sendo essas políticas na relação
e questão de gênero no campo.
O procedimento metodológico adotado foi orientado pelo
uso da história oral, por ser uma metodologia de pesquisa vol-
tada para o conhecimento do tempo presente que nos permi-
te conhecer a realidade atual e o passado ainda próximo, pela
experiência e pela voz daqueles que o viveram (LANG, 2001).
Entrevistamos oito mulheres, com idades de 20 a 70 anos,
a maioria titular da terra, que participaram das primeiras ocu-
pações de terra em diferentes lugares no município de Por-
to Nacional e que foram assentadas no Assentamento Padre
Josimo I e II. Entrevistamos também dois homens, líderes do
assentamento e do movimento. As entrevistas foram realiza-
das no próprio assentamento. As mulheres entrevistadas estão
distribuídas por toda a área do assentamento.
A fim de preservar a identidade, as referências às mulheres
serão feitas com nomes fictícios, extraídos de uma dinâmica
aplicada com as assentadas, voltada para elas dizerem o que
pensavam sobre o que é ser mulher e, assim, expressar suas
percepções em forma de desenho. A dinâmica foi um espaço
para que elas pudessem se ver como agentes do processo de
desenvolvimento do seu assentamento.
Escolhemos suas designações sobre si para identificá-las
aqui neste trabalho, ficando assim denominadas: Rosa, Guer-
reira, Estrela, Vida, Coração Grande, Flor do Cerrado, Jardim
e Sol.
Por intermédio das narrativas, buscamos entender as per-
cepções das mulheres envolvidas na disputa pela terra, mape-
ando suas experiências, projetos e ideários em que elas mos-

132 Gênero, desenvolvimento e território

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tram pequenos e grandes gestos feitos para além do controle
e dos discursos dos homens que lideraram o conflito. Logo,
a visão dessas mulheres se torna importante na análise das
identidades das forças envolvidas no conflito dentro do Assen-
tamento Padre Josimo I e II.
Analisamos também quais as expectativas e perspectivas
das mulheres com relação ao desenvolvimento do assenta-
mento, bem como suas percepções sobre as relações e papéis
de gênero nesse contexto, com a posse e título da terra.

PERCEPÇÃO DE GÊNERO SOBRE O


ASSENTAMENTO PADRE JOSIMO I E II

O processo de formação dos assentamentos rurais no Bra-


sil intensificou-se principalmente a partir da década de 1990,
quando o MST realizava suas primeiras ocupações em vários
cantos do país, principalmente no Sul e Norte do Brasil. No mu-
nicípio de Porto Nacional (TO), origem das reivindicações dos
assentados do Padre Josimo I e II, o MST iniciou seu trabalho
de base reunindo 200 trabalhadoras/es rurais no final do ano
de 2004, ocupando margens de rodovias estaduais e federais.
Essa forma de reivindicação por terra a partir dos acam-
pamentos (lócus de moradia e reinvindicações provisórios)
regidos pelo MST, a qual o ainda Acampamento Padre Josimo
adotou, é, via de regra, a forma como o Brasil se organiza no
campo hoje, confrontando a realidade dos latifúndios.
Com a implantação de um assentamento rural, aos poucos
as relações começam a ser tecidas – na maioria das vezes, dife-
rentes de como ocorriam no acampamento e da vida que se le-
vava antes da militância. Tais relações refletem, principalmen-
te, como e qual é o modo de vida dessas pessoas nos lugares
onde agora estão inseridas e quais as perspectivas com relação
ao assentamento.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 133

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 133 29/10/2015 16:19:54
No Assentamento Padre Josimo I e II, as mulheres estão
procurando construir seu espaço social, uma vez que seu espa-
ço físico dia após dia vem sendo conquistado. Essa é uma pers-
pectiva resultante da conquista da terra. Para as assentadas do
Padre Josimo I e II, a conquista do título da terra, apesar de ser
uma vitória parcial, representa hoje inúmeras possibilidades
para essas mulheres.
Atualmente, no Assentamento Padre Josimo I e II, a posse
da terra atingiu pelo menos 21% de mulheres beneficiárias di-
retas num total de 65 – número considerado pequeno tendo
em vista o número de mulheres assentadas, que é de 243, qua-
se a metade da população do assentamento, o qual tem 497
assentados no total. Ainda assim, o saldo é positivo, já que a
média nacional de beneficiárias diretas é de apenas de 12%
das mulheres nos assentamentos.
As mulheres estão presentes ainda como segundas benefi-
ciárias: são 53 mulheres (12%) beneficiadas dessa forma, isto
é, como cônjuge capaz de exercer alguma influência sobre a
terra, ainda que em segundo plano. Para entendermos melhor,
beneficiárias ou beneficiadas são as pessoas que receberam
o benefício da terra ou do lote nos assentamentos rurais no
Brasil. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) institui que beneficiárias/os diretas/os são aqueles
que recebem a titulação do lote diretamente em seu nome, e
beneficiárias/os indiretas/os são aqueles casos em que a ti-
tulação do lote vem em seguimento a um primeiro nome/be-
neficiária/o, geralmente cônjuge ou filhos do primeiro nome/
beneficiária/o.
Esse número, possivelmente, pode ser influenciado pelo se-
guinte aspecto: o homem não é obrigado a citar um segundo
nome para beneficiário da terra, mesmo sendo casado oficial-
mente, enquanto a mulher no mesmo estado civil deve citar
um segundo nome, segundo as normas instituídas pelo Incra/
TO. Mesmo não havendo um documento oficial que dê respal-

134 Gênero, desenvolvimento e território

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do a essa normativa, o Incra/TO cadastrou as famílias dessa
forma. Assim, o número de mulheres que foram beneficiadas
como cônjuge é de apenas 17% dentro do Assentamento Rural
Padre Josimo I e II.
Isso reforça a pouca visibilidade das mulheres no assen-
tamento, as quais, além de não terem a igualdade na divisão
dos lotes feita pelo Incra, também não são vistas pelos seus
cônjuges, que não as indicam como segunda beneficiária para
aquisição dos lotes no assentamento. E, mesmo como primeira
beneficiada, na maioria dos casos elas indicaram um segundo
nome (cônjuge, filhos), o que reflete na sua não autonomia nos
direitos à posse da terra.
No assentamento, os números de mulheres beneficiadas
direta e indiretamente somam 33% das assentadas atingidas.
Mas, ao mesmo tempo em que esses números podem repre-
sentar aspectos positivos, como a possibilidade de essas mu-
lheres trabalharem nas suas terras de acordo com suas neces-
sidades, é perceptível no Padre Josimo I e II que, no segundo
caso das mulheres beneficiárias com base no aspecto cônjuge,
o modo de produzir poderá, na maioria dos casos, ser regidos
pelo esposo (companheiro), e no primeiro caso ser influencia-
do por eles, já que a mulher, segundo o Incra/TO, deve citar um
segundo nome como beneficiário indireto.
Na percepção das mulheres entrevistadas, esse total é con-
siderado relevante, uma vez que é maior do que elas previam.
Em suas previsões, apenas as mulheres solteiras ou sem com-
panheiros legais receberiam a posse e título do lote. É o que
explica Flor do Cerrado:

Olha, as coisas aqui andavam tão sem rumo, que nem


pensei que eu ia ganhar a posse do lote, não, achei que ia
para meu marido. Ele mesmo queria no meu nome, mas
o Incra é quem ditava as coisas. Todo mundo pensou que
as mulheres que ia receber os lotes era as solteira, ou as

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“largadas” (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no As-
sentamento Padre Josimo I e II).

A posse e o título sobre os lotes as tornam, nesse caso, ins-


titucionalmente, a primeira titular na negociação sobre a terra
a partir de créditos, empréstimos, plantio, entre outros, além
de possibilitar autonomia de uso e ocupação dos lotes pelas
mulheres.
Na análise das entrevistas, é possível perceber que o Incra/
TO leva em consideração somente as opiniões dos homens,
fator determinante para que muitos lotes saíssem nos nomes
dos seus companheiros/maridos, filhos mais velhos. É o que
mostra o relato de Rosa:

O pessoal do Incra vem aí e nem chama todo mundo, não,


só vai lá no C*** [coordenador] e conversa com uns cinco
ou sete e decide tudo, depois volta porque tudo deu er-
rado lá. Eu acho é bom, porque eles tinha era que conver-
sar com todo mundo, homem e mulher. Ah, bom! E é só
homem que pensa e decide? Por isso que eu digo que não
dá certo, tem muita mulher aqui de ideia boa, mas não
fala nada elas, ou por medo, por vergonha ou por “bobi-
ça” mesmo, daí o povo do Incra faz tudo que quer porque
os homens lá não têm ideia boa. Eu mesmo falo, mas só
eu, eles pensam que é pra caçar conversa, até mesmo o
C*** [coordenador] manda eu ficar quieta, dizendo que
se eu ficar com “resenha” as coisas demoram mais pra
sair. Eu fico pensando: meu Deus, ô ideia pequena, gente.
A gente não pode aceitar as coisas assim, não, isso não é
esmola, não, é um direito da gente, ninguém tá roubando
nada, não, o pessoal do Incra vem aqui, olha pra gente de
um jeito que só a senhora vendo, parecendo que tá falan-
do com uns ladrão, marginal, sério! (Entrevista realizada
dia 27/9/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

136 Gênero, desenvolvimento e território

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Pela fala de Rosa, é possível perceber a invisibilidade das
mulheres trabalhadoras rurais quando, no cadastramento do
Incra, é dada a preferência ao homem; somente quando este
tem algum impedimento para realizar o cadastramento é que
a mulher é aceita como titular da terra, pois a condição social
das mulheres trabalhadoras rurais demonstra a falta de opor-
tunidades e de igualdade de gênero no campo e nos assenta-
mentos implantados nessa área.
É possível perceber também, nas falas das entrevistadas,
que tanto os homens como as mulheres trabalham nos servi-
ços pertinentes ao assentamento, como a derrubada de roça, o
manejo com os animais. Em quase todas as falas das mulheres,
elas estão sempre executando as tarefas ditas femininas, arru-
mando o barraco, olhando as crianças, lavando e cozinhando,
enquanto o homem conserta a plantadeira de arroz e milho,
vacina os animais e vai à sede saber de informações sobre o
assentamento.
No que diz respeito ao modo de produção coletiva do assen-
tamento e de cada família, essas atividades ainda não estão de-
finidas, pois, em relação às divisões das atividades domésticas
ou plantações, percebe-se que as discussões sobre o setor de
gênero ficam em segundo plano. Dentro das prioridades das/
os assentadas/os, estão as preocupações com o que vão produ-
zir no sentido de engajar todos as/os assentadas/os na produ-
ção. Na fala de Guerreira, é possível perceber essa afirmação:

Olha, nós estamos tentando organizar a produção aqui,


mas ainda não conseguimos porque ainda tem muita coi-
sa amarrada no Incra, mas já decidimos que não vamos
plantar as mesma cultura, nem os mesmo tamanho de
roça, até porque cada um aqui é que sabe de sua necessi-
dade. [...] Se eu te falar que sei quando isso sai (subsídio
de produção) e quando o pessoal vai começar a plantar,
eu vou estar te enganando, porque tem gente aqui que

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 137

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já até começou plantar sem ordem dos coordenadores,
nem do Incra e já deu problema. [...] Produzir eu ainda
não comecei, não! Eu decido sobre meu barraco, sobre
meu lote, eu tenho um marido aí, que arranjei aqui mes-
mo dentro do Padre Josimo, mas ele não opina em nada,
não. Ele vai “pras” reuniões comigo, ele me ajuda na
casa, conserta as coisas, vacina os bichos, conversa com
o Casi, ainda não me dá trabalho, não. Ah, o lote tá no
meu nome, né? (Entrevista realizada dia 25/10/2008 no
Assentamento Padre Josimo I e II).

O que produzir nos lotes se constitui uma das atuais pre-


ocupações das/os assentadas/os, uma vez que, não havendo
inicialmente uma atividade produtiva comum a todas/os do
Assentamento Padre Josimo I e II, cada família busca de algu-
ma forma viabilizar seu sustento. Daí surgem as mais diversas
atividades, desde a roça plantada nos lotes até mesmo a mon-
tagem de um comércio no assentamento ou nos perímetros ur-
banos que rodeiam o assentamento. A fala de Guerreira tam-
bém reflete certa autonomia sobre suas atividades e funções
no lote, uma vez que ela é a primeira titular da terra.
Ainda na fala de Guerreira, podemos perceber mais do que
a preocupação com o futuro da produção local: percebemos
também que, com a aquisição dos lotes, bem como da posse e
do título deles, as mulheres sentem-se mais autônomas para
tomarem decisões dentro e fora dos lotes. Isso porque, no ge-
ral, no Assentamento Padre Josimo I e II, as mulheres que pos-
suem a posse e o título dos lotes são as que mais participam da
discussão interna do assentamento e as que contribuem ou são
responsáveis pela renda familiar de suas respectivas famílias.
Por intermédio das entrevistas, percebemos que a subsis-
tência das/os assentadas/os ainda não é proveniente apenas
de atividades pertinentes ao assentamento, o que vai influen-
ciar na renda e em seus modos de obtenção. Ao tocar nesse

138 Gênero, desenvolvimento e território

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aspecto, as entrevistadas destacam o número de mulheres que
trabalham fora do assentamento, chegando a 41% das assen-
tadas, isto é, 69 mulheres que trabalham nos mais variados ti-
pos de serviços nos municípios limítrofes.
Nas entrevistas, perguntamos como essas mulheres viam
esses serviços e como elas se posicionavam diante da renda fa-
miliar. Em nenhum dos relatos as mulheres se autoafirmaram
como chefe de família. A maioria das mulheres, responsáveis
pela renda familiar, se aponta como principal responsável pelo
sustento da casa, e isso ocorre mesmo quando ela é a única a
introduzir renda e trabalho na família. As frases mais comuns
nas falas dessas mulheres são: “Não, meu menino é que cuida
disso” (chefiar a casa), ou “eu quase nem paro pra pensar nisso
aí, mas eu não tomo conta disso, não”.
Na definição do Incra quanto às atividades relacionadas à
renda, as mulheres se dividem em:

• Mulheres chefes de família (mulheres que mantêm a


renda da casa só, no geral são solteiras ou viúvas);
• Mulheres responsáveis pela renda familiar (mulheres
que possuem renda maior na casa, incluindo aí as chefas
de família);
• Mulheres contribuintes da renda familiar (mulheres
que trabalham dentro e fora do assentamento);
• Mulheres que não contribuem para renda familiar
(mulheres que se autointitularam como não contribuin-
tes, mesmo trabalhando na roça no assentamento).

No Padre Josimo I e II, quem mais atua no espaço de discus-


são e militância são as solteiras, e, por causa dessa condição,
segundo as entrevistadas, são sujeitas a situação de constran-
gimento e preconceito das pessoas, talvez até pelo fato de elas
serem as principais participantes do movimento. As mulheres
casadas que participam são consideradas “ousadas”. As entre-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 139

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 139 29/10/2015 16:19:55
vistadas afirmam que os comentários existem e essas mulhe-
res não são bem-vistas pela comunidade em que vivem. Foi o
que percebemos na fala de Sol:

Eu sou vista como uma sem o que fazer, porque vou nas
reuniões e falo. O pessoal aqui tem a língua que não cabe
na boca, não veem que trabalho fora, que cuido do meu
filho sozinha, e porque não tenho marido acha que pode
falar o que quiser comigo – e falam, o pior é que eles fa-
lam. E as mulheres também, essas são as que mais falam,
pensam que sou mãe solteira, mas eu não sou, não, na
época eu morava com um homem, mas elas só vê isso
aqui, já que vai falar da vida dos outros fala o certo, né?
Pior que a gente não tem nem o apoio das mulheres
aqui, mulher é bicho nojento; os homens se une e elas
brigam, mas eu não tô nem aí. Nas reuniões eu falo mes-
mo. As coisas tão erradas mesmo. Quem abre a boca aqui
é malvisto, eu nunca vi isso! (Entrevista realizada dia
12/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Para Sol, essa discussão já deveria ter sido feita, e nela apon-
tadas algumas soluções. Para ela, outras discussões que orga-
nizam a vida social dos assentados estão atrasadas, atrasando
também as discussões relacionadas às questões de gênero no
assentamento. Percebemos, por essa fala, que até o momento
tais discussões são consideradas tanto por homens quanto por
mulheres como não prioritárias, mesmo havendo a percepção
por parte de algumas mulheres e homens que as condições
destinadas às mulheres são bem diferentes das que ocorriam
no acampamento, quando havia um modo mais igualitário nos
papéis atribuídos aos gêneros e que não mais são vistas no as-
sentamento Padre Josimo I e II. Segundo Amorim (2007, p. 60),

140 Gênero, desenvolvimento e território

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Pela própria cultura, o machismo não está somente no
homem, muitas mulheres, nos assentamentos, não se en-
volvem por preconceito da sua própria condição e consi-
deram que esse tipo de envolvimento é coisa de homem.
A articulação e convencimento da importância delas par-
ticiparem no movimento e no próprio assentamento se
torna difícil.

Por outro lado, no Assentamento Padre Josimo I e II, os ho-


mens, ainda em pequeno número, começam a observar a luta
de algumas mulheres pela igualdade de gênero. Isso não quer
dizer que eles estejam engajados na luta, mas já começam a
respeitar a luta de suas companheiras dentro do assentamento
e a ligação delas ao movimento de mulheres. Na fala de Nego,
podemos perceber isso:

Na verdade, eu acho que a gente pecou muito na implan-


tação do assentamento, a gente avexou muito na divisão
dos lotes e passou por cima de muitas coisas que o mo-
vimento pediu pra gente olhar. Essa questão da mulher
é uma delas. O movimento o tempo todo falou. Vamos
lutar contra o latifúndio juntos, homens e mulheres, va-
mos repartir as vitórias juntos, homens e mulheres, mas
quando chega na hora, é cada um por si, ninguém vê o de
ninguém, não. Acho mesmo que elas têm que se organi-
zar, porque se for esperar pelos outros, pelo Casi, hum!
A coisa não sai, não. A minha mulher mesmo tá aí nessa
bagunça (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).

Mesmo como início dessa sensibilização por parte dos ho-


mens, a discussão em torno das questões de gênero dentro do
assentamento anda em passos lentos. O setor de gênero – a
divisão interna do MST destinada a resolver problemas ligados

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 141

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à questão de gênero no movimento – não consegue chamar a
atenção das mulheres nem consegue ampliar o debate e levá-
-lo às mulheres assentadas. Mesmo quando a coordenação do
setor de gênero é liderada por uma mulher (comum nos assen-
tamentos rurais, mas isso não chega a ser uma regra), ela não
consegue adotar políticas de gênero que atinjam as assentadas
e suas demandas.
Para os assentados do Padre Josimo I e II, parece complica-
do querer discutir como as pessoas devem se relacionar den-
tro do assentamento, quando o próprio assentamento ainda
não está consolidado. Há problemas com a produção, com a
educação, saúde e transporte, que são preocupações imediatas
dos assentados. Esse é um pensamento tanto de homens quan-
to de mulheres. Na opinião do coordenador do assentamento,

Eu acho até importante que a gente fale sobre como as


pessoas têm que se comportar aqui no Padre Josimo,
acho até que já tá passando da hora. Olha que a gente vê
muita “absurdagem” aqui. É homem bebendo na frente
de criança, é mulher que num cuida dos filhos, que num
quer mais saber da casa. Se bem que depois que a coor-
denadora do MST teve aqui e conversou com os coorde-
nadores de família e com as famílias também, melhorou
mais, porque aqui era coisa, aqui tinha até homem que
punha pano na boca da mulher e metia peia nela den-
tro do barraco. Hoje não, hoje num se vê mais isso. As
mulher aqui até tão conversando sobre educação, gêne-
ro, saúde, essas coisas. Mas eu acho que o que a gente
tem que fazer agora é organizar o assentamento, senão o
povo morre de fome, num é?! Mas eu acho importante as
mulher se organizar aqui, acho mesmo, porque as coita-
das tem que fazer alguma coisa aqui senão elas endoida,
digo isso porque quando eu fico sem fazer nada, eu fico
agoniado, tonto, tonto! Então, tem sim que vê tudo isso

142 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 142 29/10/2015 16:19:55
aí, né? (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).

Na fala do coordenador, podemos perceber explicitamente


que as políticas de discussões de gênero do MST não vêm ten-
do resultados positivos com relação às questões de gênero. O
coordenador, além de não ver como prioridades tais discus-
sões, não percebe as funções que as mulheres exercem no co-
tidiano ao afirmar que elas têm de procurar o que fazer – uma
visão estereotipada sobre o gênero feminino ao afirmar as mu-
lheres como coitadas. Embora tenha admitido a importância
das discussões de gênero, percebemos que suas preocupações
são de ordem estrutural.
Mesmo as mulheres mais engajadas no movimento ou nas
questões do assentamento estão perdendo parte das expecta-
tivas que construíram ainda no acampamento. Segundo elas,
havia uma interação maior entre mulheres e homens nas tare-
fas do cotidiano do acampamento e do movimento. Havia um
discurso de emancipação da vida social dessas pessoas e um
discurso específico para as mulheres no assentamento segun-
do os moldes do MST, ou seja, igualitariamente. Mas, segundo
as entrevistas, a mulher não tem liberdade de agir nem no as-
sentamento nem no movimento. Nas palavras de Guerreira, a
realidade é que,

[p]or mais que a gente se organize aqui, enquanto o In-


cra cozinhar o pessoal aqui, discutir nossa condição aqui,
vai ser difícil, até porque quem é que vai condenar uma
mulher que prefere ver como tá a situação do crédito e
do lote do que ver como ela é tratada no assentamento?
Ninguém. Olha, vou te dizer, eu não desanimo de tudo
porque eu sei que resulta muita coisa boa. Nós criamos o
setor de gênero e batizamos de Mulheres que plantam. Eu
tive na maioria das reuniões regionais do MST, do MMC

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 143

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e até do MMTR e eu sei que a luta não é fácil, não. Mas as
mulheres aqui são esmorecidas, coitadas! Mas tudo no
começo é uma provação, né verdade?! Tem horas que até
eu acho que não vamos ter é nada. Acho que aqui deveria
ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulheres que
não colhem. Mas é na luta que entramos aqui e é na luta
que vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratada
direito (Entrevista realizada dia 8/2/2009 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).

As mulheres do assentamento parecem estar em consenso


quanto à questão de uma urgência na organização, pois ado-
tam a mesma opinião de priorizar a produção para depois fa-
larem sobre as relações sociais. Percebemos que há uma con-
formidade nisso.
Os primeiros anos do assentamento, nas falas das entrevis-
tadas, não são fáceis. Principalmente para as mulheres. Des-
de o primeiro passo da luta, que é a ocupação, a mulher está
presente. Ela se destaca ao lado dos homens, muito embora a
cultura e os preceitos que referenciam a organização familiar
tenham, na mulher, a dona de casa, a senhora do lar, a mãe,
a esposa. Ou seja, os principais aspectos que caracterizam o
espaço privado.

ENGAJAR, MOBILIZAR E SOCIALIZAR: A POLÍTICA


DO SETOR DE GÊNERO NO PADRE JOSIMO I E II

A partir daqui faremos uma discussão sobre como as mu-


lheres do Assentamento Padre Josimo I e II estão se organi-
zando para viabilizar melhorias de vida no campo e nas suas
relações sociais no espaço onde estão inseridas. Dessa forma,
nos atemos à configuração dessas instâncias organizativas (o

144 Gênero, desenvolvimento e território

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assentamento, as coordenações e o setor de gênero), tendo
como base o universo da luta pela e na terra.
Pelas entrevistas, percebemos que, no decorrer do pro-
cesso de luta pela terra, seus contextos e histórias foram se
tornando distintos e resultaram em características organiza-
cionais, metas e estratégias significativamente diferentes – daí
o pressuposto para o surgimento do setor de gênero nos as-
sentamentos, entendendo este como a divisão interna do MST
destinada a resolver problemas ligados à questão de gênero no
movimento, envolvendo mulheres, homens e crianças, já que o
setor é um trabalho de base do MST. Surgiu como um espaço de
formação e ação das mulheres (MST: CARTILHA DA MULHER
SEM-TERRA, 2006).
Ele visa a padronizar as demandas e organizar as reivindica-
ções das mulheres, vislumbradas ainda nos acampamentos. O
próprio MST (2006, p. 15) reflete sobre isso quando afirma que

[a]s mulheres ligadas ao Setor de Gênero do MST pos-


suem a estratégia de desafiar os papéis tradicionalmen-
te identificados como sendo de mulheres, construindo
novos espaços de socialização e participação política.
Os setores são amadurecimentos de discussões primor-
diais das relações, daí a necessidade de um setor de gê-
nero e de posteriormente de um movimento autônomo
de mulheres.

Segundo Garcia (2004, p. 163), isso é o desdobramento de


um processo muito anterior, que teve início com outros movi-
mentos, ainda nos acampamentos, e que caminha particular-
mente para esse movimento autônomo (ou paralelo) de mu-
lheres, o qual o MST põe também como organizado e pautado
nas questões que reverenciam mulheres trabalhadoras sem-
-terra e particularmente as condições das mulheres no campo.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 145

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 145 29/10/2015 16:19:55
Assim, analisando os processos pelas falas das assentadas,
bem como as organizações pelas quais as mulheres no Padre
Josimo I e II passaram e estão passando, nos fez perceber como
as relações de gênero estão sendo tecidas nesse espaço, onde é
possível afirmar que elas reproduzem relações sociais antigas,
onde a reprodução dos papéis femininos mais uma vez põe a
mulher num lugar de submissão aos papéis masculinos.
No Assentamento Padre Josimo I e II, identificamos que
uma das funções do setor de gênero é vencer o paradoxo da
estagnação, já que as discussões não despontaram por si só.
Percebe-se que, apesar da criação do setor, não está havendo
avanço para uma organização interna das mulheres e muito
menos para um movimento paralelo ao do MST, uma vez que
o setor responsável por essa discussão também é responsável
por outras demandas tidas como prioritárias no assentamen-
to, como educação e saúde.
Do total de assentadas/os atualmente no Padre Josimo I e
II, há uma participação relativamente baixa de mulheres inse-
ridas no setor de gênero. Outra característica é que nos encon-
tros e reuniões relatados nas entrevistas percebemos que as
mulheres discutem assuntos que reforçam, ainda, a luta pela
terra, a reforma agrária, a emancipação dos trabalhadores,
pois seguem um roteiro dos demais setores de gênero no país.
Consideramos isso um fator negativo, já que as pautas e rei-
vindicações gerais não atendem às particularidades locais de
cada região ou de cada assentamento. O setor de gênero do
Padre Josimo I e II ainda não se atentou que suas reuniões obe-
decem a uma padronização nacional de pautas e não atendem
às demandas locais.
Analisando as pautas das reuniões, podemos detectar al-
guns dos principais assuntos discutidos pelo coletivo nos seto-
res de gênero no decorrer desses últimos anos: a) a construção
de hortas medicinais dentro dos assentamentos; b) a implan-
tação e organização dos Projetos de Saúde Familiar (PSF); c) o

146 Gênero, desenvolvimento e território

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lançamento e consequente utilização de material para cursos
e palestras, como cartilhas sobre saúde feminina e educação
política; d) a organização de ações e manifestações específicas
das mulheres e ações gerais da organização dos trabalhadores,
como Encontro Estadual das Assentadas e Acampadas, Encon-
tro Regional do MST e a organização para mobilização das mu-
lheres etc. (VALENCIANO, 2006).
Mesmo essas pautas não são postas em prática no Assenta-
mento Padre Josimo I e II. Na fala de Rosa, podemos detectar
que, além de não serem executadas no assentamento, não são
realidades também do local. O fator negativo não consiste so-
mente na padronização das pautas, mas no próprio aceite das
mulheres dessa ação, mesmo percebendo as diferenças entre o
que é dito e o que é visto.

Vê se você vê alguma horta comunitária aqui. As hortas


que tem aqui é das mulher mais zelosas, mas não tem
nada a ver com o que as mulher tava falando lá na reu-
nião do setor. [...] No começo eu até que participava das
reunião, mas depois vi que num tinha futuro, não, é uma
coisa de Marte sabe?! Saúde, educação, aqui mesmo não,
até o eixão aí (via de transporte) passa perto de uns e
de outros não, então não sei pra que tá servindo, não.
Nem as costureiras se entende, os bordados o pessoal
parou, aquela coisa do artesanato que você via no acam-
pamento, hum! Acabou foi tudo! (Entrevista realizada
dia 13/12/2008 no Assentamento Padre Josimo I e II).

Sempre que é necessário decidir ou organizar determinada


ação, as mulheres são convocadas para as reuniões, de forma
que não existe uma relação de datas preestabelecidas para os
encontros e reuniões. As decisões estão ancoradas na deficiên-
cia de algo no assentamento, na eleição de algum problema em
discussão. São tiradas daí as linhas de atuação do setor. Essa é

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 147

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uma característica do setor de gênero no Assentamento Padre
Josimo I e II.
A falta de recursos seria uma das explicações para a parali-
sação deles, já que a estrutura que possui o movimento não é
suficiente para atender as demandas que existem dentro dos
assentamentos e acampamentos na região. Esse problema foi
apontado durante entrevistas com algumas militantes no As-
sentamento Padre Josimo I e II. Essa também foi a justificati-
va do setor de gênero do assentamento, que não é apontado
como organizador de nenhuma das ações acima citadas. Não
flagramos nenhuma reunião do setor no Assentamento Padre
Josimo I e II em que as pautas estivessem diretamente ligadas
às relações de gênero no assentamento.
Trazer para as mulheres assentadas as notícias do que ocor-
re em termos de política e de conquistas do movimento parece
um desafio, sobretudo no Padre Josimo I e II, onde tudo parece
ser mais prioritário que as relações sociais. Mas o engajamen-
to mais profundo nessa forma de organização, realizada pelas
mulheres do MST, esbarra muito numa série de condições pe-
culiares ao próprio assentamento.
A questão da produção ainda não resolvida entre os assenta-
dos do Padre Josimo I e II com certeza é um dos empecilhos para
se discutir gênero no assentamento. Tais discussões, porém, es-
barram em outras dificuldades, sendo a principal delas a divisão
interna feita no assentamento em duas áreas: Padre Josimo I e
Padre Josimo II, que, mais do que a divisão de área, há também
a divisão de ideias entre as assentadas: parece que divisão física
do assentamento influencia numa divisão ideológica do local.
As associações nesse momento de implantação do assen-
tamento podem estar tendo um papel de divisão dele, refor-
çando que essa divisão se concretiza física e politicamente.
Mulheres de um mesmo assentamento são regidas por duas
associações internas e diferentes que não conseguem se en-
tender. Não discutem gênero, não discutem o assentamento,

148 Gênero, desenvolvimento e território

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não discutem desenvolvimento. Apenas discordam sobre esses
eixos e os transformam em polêmica dentro do assentamento.
Essa divisão faz surgir ou acirrar outra problemática para
as discussões de gênero no assentamento. A divisão por área
e por associação divide os assentados e as mulheres em sim-
patizantes do MST (Padre Josimo I) e em não simpatizantes
do MST (Padre Josimo II), onde de um lado as proposições do
MST sobre gênero são bem aceitas, e, do outro, às vezes não
são nem mesmo ouvidas.
Essa divisão poderia ser considerada natural, uma vez que
algumas mulheres têm características relacionadas ao campo,
enquanto outras já se apresentam mais ligadas aos moldes ur-
banos. A contradição se dá no fato de que as mulheres com ca-
racterística campesinas não conseguem se familiarizar com os
preceitos do MST, enquanto as mulheres mais ligadas ao MST
(Padre Josimo I) têm características urbanas.
Essa talvez seja a principal dissidência das assentadas no
Padre Josimo I e II, essa não relação de campo/cidade entre as
assentadas. Dessa forma, as idealizações do setor de gênero no
Assentamento do Padre Josimo I e II não ganharam as preten-
sas extensões. Talvez por isso ainda não tenha avançado nos
trabalhos e na realização dos objetivos postos. Para Estrela,
que tem uma visão otimista acerca do setor no assentamento,

[a] conquista no futuro é transformar a mulher trabalha-


dora para defender a nossa classe. Esse é o maior desafio
e será a maior conquista. Nós não conseguimos muitas
coisas ainda. Nós simplesmente não queremos culpar
o setor porque não existe ainda uma coisa que deve-
ria existir. Existe um grupo que pensa, que discute, um
grupo onde estão inseridos militantes que buscam for-
mar mais militantes no futuro. Exatamente transformar
nossas bases em guerreiras. E essa transformação, sem
dúvida, passa por politizar as companheiras. Esse será

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 149

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o nosso grande desafio, não só do setor, como da organi-
zação (Entrevista realizada dia 14/12/2008 no Assenta-
mento Padre Josimo I e II).

Isso parece ser uma boa discussão para os assentamentos


no geral. A posição ocupada por mulheres no MST mostra que
a forma como ele encontra-se estruturado, apesar de ainda es-
tar dominado por valores conservadores, fortalece a partici-
pação feminina nos espaços de debate e de formação política
(GARCIA, 2004).
No entanto, mais do que desenvolver um trabalho de mili-
tância, essas mulheres poderiam ser engajadas noutras esferas
do trabalho, que não ligadas a atividades domésticas no cam-
po. Apesar das ocupações no âmbito do lar, algumas mulheres
estão presentes nas discussões, desempenhando, assim, mais
do que uma mera terceira jornada de trabalho.
A partir da análise das entrevistas realizadas com assen-
tadas, sobretudo no que diz respeito ao momento anterior ao
acampamento, ou seja, à trajetória de vida da família, obser-
vam-se inúmeras características que nos dão pistas para com-
preender esse universo do trabalho, da dupla jornada de tra-
balho, do trabalho precarizado.
No geral, essas trabalhadoras residiam em municípios pe-
quenos, onde se ocupavam de atividades de trabalhos infor-
mais, desqualificadas, mal remuneradas. Parte dessas mulhe-
res encontrava-se inserida no mercado de trabalho na condi-
ção de domésticas, caseiras ou ocupando funções dentro do
setor de serviços e comércio, como balconistas, atendentes,
serventes, acumulando ainda as tarefas ligadas à manutenção
da família, do lar.
Seus companheiros, como diaristas, caseiros, vaqueiros, ou
ainda no ramo da construção civil, como ajudantes, serventes,
pedreiros etc., também se encontravam inseridos no mercado

150 Gênero, desenvolvimento e território

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de trabalho informal, ganhando salários reduzidos, desfrutando
de uma condição de vida muitas vezes extremamente precária.
Essa condição de dificuldade e necessidades os conduziu
à organização de trabalhadores na tentativa de tornar seus
anseios de uma vida melhor uma realidade menos dura. Isso
revela a pluralidade de atores sociais envolvidos na luta pela
terra, vindos de experiências distintas, mas marcados pelo
mesmo processo de exclusão e expropriação: na cidade, pelas
transformações tecnológicas que envolveram a atividade pro-
dutiva; no campo, pelas mesmas transformações, somadas ain-
da à concentração fundiária (VALENCIANO, 2006).
Assim, para o setor de gênero no Assentamento Padre Jo-
simo I e II, que na sua fase inicial ainda não possui uma fun-
ção nas relações de gênero de seus assentados, embora ainda
pouco visíveis, essas ações se constituem importantes, muito
embora não consigam detectar que as relações entre homens e
mulheres são desiguais, mesmo no discurso e prática do MST
de igualdade. E são influências que possivelmente devem cres-
cer com a organização do assentamento, apesar de toda difi-
culdade e adversidade.

COTIDIANO NO ASSENTAMENTO PADRE JOSIMO I E II

As atividades exercidas no assentamento, embora consi-


deradas como característica de vidas comunitárias, comuns a
todos, já que estão no mesmo lócus, se diferem pelo fato de
que esses assentados irão reproduzir, ali, o modo de vida que
tinham antes do assentamento – e antes do acampamento.
As assentadas localizadas na área do Padre Josimo I, que têm
perfis mais ligados às discussões do MST e antes estavam ligadas
a cotidianos urbanos, reproduzem no assentamento essas ca-
racterísticas. Enquanto isso, na área do Padre Josimo II, embora

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não simpatizantes das premissas do MST, elas estão engajadas
no movimento, possuem perfis mais ligados à vida no campo.
Isso porque, segundo as falas das assentadas do Padre Josi-
mo I, esse retorno ao campo é doloroso, uma vez que, adqui-
ridos modos de vidas urbanos com todas as facilidades (água
encanada, luz elétrica, eletrodomésticos como televisão, má-
quina de lavar roupa, liquidificador, fogão elétrico), desfazer-
-se dessas condições urbanas não é fácil. Por isso, o retorno ao
campo se torna difícil, pois elas perdem essas facilidades que
regiam seu cotidiano doméstico.
O que se pode inferir é que as assentadas do Padre Josimo I
são mais engajadas na luta de melhorar as condições e a qua-
lidade de vida no assentamento porque elas já tiveram essas
facilidades enquanto moravam na zona urbana. Dentro das rei-
vindicações para o assentamento, está a construção de poços
artesianos e a introdução de energia elétrica (já iniciada), que
podem ilustrar as falas de Estrela:

Eu sempre morei no sítio, desde pequena com minha fa-


mília. Só que aí os irmãos foram casando e foram todos
embora, e eu também acabei casando, mas ainda fiquei
na roça por algum tempo. Depois, quando o serviço aca-
bou, porque a gente era empregado numa fazenda aqui
perto, aí a gente veio pra Porto. O meu marido conseguiu
emprego na barragem lá, e eu logo entrei de doméstica
também. Fiquei três anos, mas não aguentei, a saúde não
deixou. Meu marido também perdeu o emprego quando
a obra acabou, e foi aí que a gente resolveu entrar pro
movimento, pra ver se a gente conseguia um pedaço de
terra, porque a gente sempre gostou, sempre foi de lá
mesmo, não é?! (Entrevista realizada dia 27/9/2008 no
Assentamento Padre Josimo I e II).

152 Gênero, desenvolvimento e território

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As assentadas do Padre Josimo I vão aos poucos se adaptando
à nova realidade, se readaptando aos modos de vida e atividades
no campo, enquanto as assentadas do Padre Josimo II estão mais
ligadas à vida no campo e cada vez mais afastadas das políticas
de organização do MST. Logo, as discussões de gênero dentro
do assentamento, que ainda são incipientes, não destacam essa
divisão interna. A participação das mulheres é pequena.
As atividades pertinentes às assentadas, por mais que quei-
ram buscar uma construção fora dos parâmetros machistas,
ou de uma moldura sexista, continuam a reproduzir papéis
e atividades consideradas femininas. A título de exemplo, as
principais atividades executadas na reunião de mulheres do
assentamento se “resumem” quase que exclusivamente a ar-
tesanato (crochê, tricô, bordados, costura geral etc.), a fabrica-
ção de doces e bolos caseiros e atividades ligadas à educação
ou palestras do MST.
O setor de gênero do assentamento também reproduz es-
sas atividades femininas ao propor suas metas para o assen-
tamento. Ao discutir tópicos que interessam aos assentados,
quase sempre educação e saúde ficam a cargo das mulheres,
enquanto tópicos sobre produção e organização do assenta-
mento ficam designados aos homens. Nas reuniões gerais e de
setores, quase sempre a incumbência do “cafezinho” ou do “al-
moção” é delegada às mulheres. Salvo raras exceções, quando
o movimento encomenda a comida por fora, essas são as ativi-
dades que as mulheres executam.
Percebe-se que as reuniões sobre produção, em princípio,
procuram reverter a precariedade de alimentação dos assen-
tados – mas, numa escala maior, em médio prazo, tem como
objetivo desenvolver o Assentamento Padre Josimo I e II, vi-
sando à introdução da prática da agricultura familiar. Isso
pode ser um aspecto positivo, já que, para a Política Nacional
de Reforma Agrária, há uma relação entre desenvolvimento,
agricultura familiar e gênero, uma vez que tanto a produção

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como a reprodução são formas de trabalho importantes para o
desenvolvimento da sociedade e suas relações.
Mas, apesar da precariedade citada, é possível perceber que
a participação das mulheres no Assentamento Padre Josimo I
e II a partir da posse e título dos seus lotes garante, sim, um
mínimo de autonomia, que é a permanência na terra, mas não
garante colherem as vitórias emanadas nas lutas diárias no as-
sentamento, ligadas à sua condição de gênero em que vivem as
mulheres por nós pesquisadas.
A realidade está bem próxima da sensação das assentadas,
expressa, principalmente, na fala de Guerreira, ao dizer que
“tem horas que até eu acho que não vamos ter é nada, acho que
aqui deveria ser chamado assim: Mulheres que plantam, mulhe-
res que não colhem. Mas é na luta que entramos aqui, é nela que
vamos conseguir nossas coisas e vamos ser tratadas direito”.

EM SÍNTESE...

Este trabalho sobre as mulheres do Assentamento Padre


Josimo I e II teve como objetivo analisar as relações de gêne-
ro sob o viés do desenvolvimento nos assentamentos implan-
tados com base na Política Nacional de Reforma Agrária, esta
como um viés para que as mulheres possam participar, cada
vez mais, do desenvolvimento local/regional a partir dos as-
sentamentos de reforma agrária.
Ao analisarmos as falas dessas mulheres, pudemos perce-
ber que o alcance da igualdade formal entre mulheres e ho-
mens – no que diz respeito aos direitos à propriedade – não
implicou necessariamente uma igualdade de fato, pressuposto
para atingir o desenvolvimento. Apesar das legislações exis-
tentes no Brasil, que preveem o direito de mulheres e homens
à propriedade, na prática essa igualdade é desmentida por uma
série de interferências culturais, políticas e econômicas, que

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intensifica a desigualdade nas relações de gênero no campo.
Essa foi uma das constatações que tivemos em nossa pesquisa,
além da ausência em se discutir tais relações no processo de
posse e título da terra implicando o desenvolvimento.
No Assentamento Padre Josimo I e II, essa prática da dis-
cussão não é feita nem mesmo pelo setor de gênero, que não
consegue ainda conciliar diferentes formas de pensamentos e
de ações das mulheres, discussões essas relacionadas a como
viver no campo. Por consequência, o setor não conseguiu criar,
até o momento, um espaço de discussão sobre as relações de
gênero e sobre as condições das mulheres no assentamento.
Com base em nossas análises, entendemos que cada assen-
tamento deve ter um olhar específico por parte das políticas
públicas advindas dos programas de reforma agrária, pois to-
dos os lócus possuem suas particularidades. No Padre Josimo I
e II, essa particularidade é percebida, principalmente, pela di-
visão interna entre o grupo e entre as mulheres, que, por pos-
suírem procedência, pensamentos e costumes diferentes, tam-
bém reproduzem sobre o assentamento e sobre a terra suas
diferenciações, sua forma de pensar e agir diferente. O ser e o
estar, embora as identifiquem numa posição de subordinação
a papéis ditos femininos, também possuem diferenciações, já
que elas pensam de modo diferente sobre esses papéis.
Essa divisão evidencia que cada grupo de mulheres que
se assenta nesses locais deve ter esses olhares diferenciados.
Num mesmo assentamento, há percepções e perspectivas dife-
rentes sobre a terra e sobre o desenvolvimento nela. No caso
do Assentamento Padre Josimo I e II, essas diferenciações cul-
minaram na divisão de duas áreas internas. Nesse sentido, não
há como desenvolver somente “parte” de um local, nem desen-
volvê-lo deixando à margem uma parcela de pessoas, como é o
caso do assentamento.
Identificamos, com as leituras e com as entrevistas, que ou-
tros fatores também impedem o acesso e o controle da terra às

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mulheres – entre esses, o discurso de que as mulheres não pos-
suem experiência na agricultura e que elas não têm capacida-
de de administrar seus lotes. Em nossos estudos, percebemos
que a igualdade de gênero na propriedade da terra deve-se a
tradições fortemente arraigadas na família e no Estado, uma
vez que os dois adotam o homem como o principal, senão o
único chefe de família, aquele capaz de administrar o lote e a
produção nele.
Percebemos, pelo processo de divisão dos lotes e das pro-
priedades de terra e comprovadas por meio das entrevistas,
que existe uma preferência dada aos homens – se não a eles,
aos filhos mais velhos no processo de titulação do lote. Anali-
sando o regime de titulação do Incra, pode-se perceber que há
privilégios masculinos no casamento, isto é, uma tendência de
favorecimento dos homens nos programas estatais de distri-
buição de terra, pelo menos nos parâmetros do Incra/TO.
Nas falas das mulheres assentadas no Padre Josimo I e II,
percebemos inúmeros tipos de perspectivas, a maioria delas
ligadas a família (filhos e maridos), mas há também perspec-
tivas em que elas se envolvem visando a obter maior visibi-
lidade, terem melhorias nos seus lotes e até mesmo espaço
para discussão. Essas formas de visibilidades são negadas na
sociedade, já que o Estado destina aos movimentos sociais tal
função. E os movimentos sociais ainda não se atentaram para
essa questão. Contudo, entendemos que essa não é uma função
e nem uma obrigação dos movimentos sociais, e sim uma for-
ma de sensibilização e politização voluntária deles. Mas, para
as mulheres do Assentamento Padre Josimo I e II, é necessá-
rio que essas discussões avancem, deixem de discutir apenas a
terra e passem a discutir as relações sociais sobre a terra, que
passem da questão agrária à questão de gênero.
Um dos pressupostos para isso seria a divisão equitativa da
posse e títulos das terras com base na reforma agrária, uma
vez que a autonomia sobre os lotes dá a mulheres e homens

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autonomia também sobre suas ações. Não há como ter igual-
dade e equidade entre os gêneros se as formas práticas não
caminham junto às formas discursivas. Nesse sentido, assim
como mencionado pelas assentadas do Padre Josimo I e II, elas
irão continuar plantando, sem ter ainda perspectivas de colher
os frutos dessa igualdade/equidade, ou seja, o desenvolvimen-
to local/regional tão esperado não pode ser construído sob a
tutela de desigualdades de gênero no campo.

REFERÊNCIAS

DEERE, Carmen Diana. Diferenças regionais na reforma agrá-


ria brasileira: gênero, direitos à terra e movimentos sociais ru-
rais. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

GARCIA, Maria F. O enfoque de gênero na luta pela terra: os lu-


gares da diferença no Pontal do Paranapanema. Tese (Douto-
rado). Faculdade de Ciências e Tecnologia. Universidade Esta-
dual Paulista (Unesp), Presidente Prudente, 2004.

LANG, A. B. S. G. “História Oral: procedimentos e possibilida-


des”. In: __________. Desafios da Pesquisa em Ciências Sociais. São
Paulo: Ceru, 2001.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM-TERRA (MST). “O Co-


letivo de Gênero do MST”. In: Cartilha 102, 2006.

SCOTT, S. A. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”.


In: Educação e Realidade. Porto Alegre, UFRGS, vol. 1, nº 1, 1996.

VALENCIANO, Renata C. A participação da mulher na luta pela


terra: discutindo relações de classe e gênero. Presidente Pru-
dente: [s./nº], 2006.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 157

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 157 29/10/2015 16:19:56
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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES
NO ESTADO DO PARÁ: A EXPERIÊNCIA
DOS SEMINÁRIOS REGIONAIS
Rosana Ribeiro Moraes

INTRODUÇÃO

N
o Brasil, segundo dados dos Objetivos do Desenvolvi-
mento do Milênio (ODM) (2014),24 ainda persistem in-
dicadores negativos quanto à desigualdade das mulhe-
res em relação aos homens. Isso é visibilizado, por exemplo,
no mercado de trabalho e nos rendimentos, na política e nas
práticas recorrentes de violências contra as mulheres. Assim,
o governo brasileiro, por meio da Secretaria de Políticas para
as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) – criada
em 2003 para coordenar e articular políticas públicas na ótica
de gênero e promover a inserção das mulheres na sociedade,
combatendo todas as formas de discriminação e violência –,
tem se mostrado como uma estratégia importante para a re-
dução das desigualdades. Portanto, compreender a dimensão
do que seja desenvolvimento, nessa perspectiva, remete a

24 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram estabelecidos pela Or-


ganização das Nações Unidas (ONU), em 2000, fruto de uma pactuação realizada
entre 191 nações que se comprometeram diante de uma agenda de metas prioritá-
rias, até 2015, vencendo oito desafios, a saber: 1 – acabar com a fome e a miséria,
2 – oferecer educação básica de qualidade para todos, 3 – promover a igualdade
entre os sexos e a autonomia das mulheres, 4 – reduzir a mortalidade infantil, 5 –
melhorar a saúde das gestantes, 6 – combater a aids, a malária e outras doenças, 7
– garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente, 8 – estabelecer parcerias
para o desenvolvimento.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 159

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 159 29/10/2015 16:19:56
uma noção de desenvolvimento que vai além de seu sentido
econômico, pois promover políticas que favoreçam as oportu-
nidades e a inclusão de mulheres na ocupação de espaços no
mundo econômico, social e político é uma ação essencial para
a superação das desigualdades de gênero e, por conseguinte,
contribui para o desenvolvimento de países, Estados e regiões.
Tal entendimento leva ao importante debate sobre desen-
volvimento. Numa breve aproximação, cabe destacar que foi
em fins do século 18, na onda da Revolução Industrial, que
correntes dominantes do pensamento econômico passaram a
fazer a relação entre população e desenvolvimento, mas esse
olhar se dava numa perspectiva meramente do desenvolvi-
mento econômico (produção x acumulação de capital). Apenas
com pensadores iluministas como William Godwin (1756-
1836) e Marquês de Condorcet (1743-1794) o desenvolvimen-
to econômico ganha novos olhares, isto é, passa a ser analisa-
do pela ótica da justiça social, da igualdade econômica e com
igualdade entre homens e mulheres. Então, nesse momento,
observa-se uma tênue articulação teórica entre população, de-
senvolvimento e as questões das mulheres. Foram contribui-
ções pioneiras que, posteriormente, não foram incorporadas
pelo pensamento econômico.
Segundo Heilborn et. al. (2010), as questões de gênero são
pontuadas incisivamente, na relação população e desenvolvi-
mento, apenas no século 20, em especial depois do Ano Inter-
nacional da Mulher, em 1975. Posteriormente, em 1994, é re-
alizada a Conferência Internacional sobre População e Desen-
volvimento, na cidade do Cairo, demarcando a necessidade da
equidade entre homens e mulheres na perspectiva de garantia
de direitos e de desenvolvimento humano sustentável. Assim,
afirmam Heilborn et. al. (2010, p. 103):

A equidade de gênero é considerada pelo Fundo de Po-


pulação das Nações Unidas um direito humano, sendo

160 Gênero, desenvolvimento e território

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o empoderamento das mulheres ferramenta indispen-
sável para promover o desenvolvimento e a redução
da pobreza. Mulheres com maiores níveis de educação
e participação no mercado de trabalho estão, em geral,
mais capacitadas para contribuir para a saúde e a produ-
tividade de suas famílias e localidades, criando melhores
perspectivas para as novas gerações.

Portanto, essas análises se aprofundam na década de 1980


e têm a contribuição de importantes organismos internacio-
nais, como o Programa das Nações para o Desenvolvimento
(PNUD), o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, em
que se aponta para o grave problema das desigualdades de
gênero e seus impactos no desenvolvimento das nações. Isso
é confirmado quando hoje existem indicadores importantes
para medir tais disparidades, como: Índice de Desenvolvi-
mento Ajustado do Gênero (IDG), Medida de Empoderamento
de Gênero (MEG) e Índice Global de Desigualdade de Gênero
(IGDG). Traduzindo: a existência desses indicadores demons-
tra que o empoderamento das mulheres se tornou uma ferra-
menta indispensável para promover o desenvolvimento e a
redução da pobreza, ou seja, a redução ou até a eliminação das
desigualdades de gênero impacta positivamente na produtivi-
dade e no crescimento econômico e social na perspectiva de
ser sustentável e equitativo entre homens e mulheres.
Nesse momento, cabe explicitar sob qual análise nos respal-
damos para pensar a categoria gênero. Dentre tantas teorias,
num entendimento geral, explicita-se que, embora complemen-
tares, há diferenças fundantes entre sexo e gênero. Enquanto
o primeiro tende a fazer referência à diferença biológica entre
macho e fêmea (o que é um fato natural), o segundo refere-se
ao sexo socialmente construído (o que é um fato social), isto é,

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 161

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 161 29/10/2015 16:19:56
Quando falamos de sexo nos referimos às diferenças que
a biologia e as ciências médicas estabelecem entre ma-
cho e fêmea, como, por exemplo, o sexo cromossômico,
gonodial, hormonal, anatômico, fisiológico [...]. Quando
falamos de gênero, estamos considerando que os seres
humanos não são unicamente produtos da natureza,
mas também são produtos de uma certa cultura, quan-
do dizemos que alguém é mulher estamos supondo um
sexo; mas também supomos outras coisas: dona de casa,
mãe, sensível, afetiva, má motorista...; quando dizemos
homem, junto ao sexo, atribuímos qualidades como: in-
telectual, racional, inteligente, pouco detalhista. Homem
e mulher são palavras que vão além do âmbito biológico
(SANTIN, 1996, p. 7).

Logo, gênero se refere a construções sociais porque, histori-


camente, são determinados papéis sociais rígidos e diferentes,
próprios de mulheres e de homens, os quais são definidos e re-
produzidos por instituições sociais como a família, a igreja. Es-
sas observações encontram respaldo nas afirmações de Scott
(1991, p. 14), que diz:

O gênero não é só uma relação entre homens e mulheres,


é um elemento constitutivo das relações sociais em geral
[...] e que se expressa ao longo do tecido, das relações
e instituições sociais em símbolos, normas, organização
política e social e nas subjetividades pessoais e sociais.

Então, analisar sob a ótica de gênero é romper com a visão


naturalista e determinista, ou seja, a ideia de que as diferenças
entre homens e mulheres, muito mais que naturais, são frutos
de construções sociais advindas dessas diferenças biológicas,
gerando com isso a desigualdade entre os sexos ou a chama-
da desigualdade de gênero. Esse entendimento leva à seguinte

162 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 162 29/10/2015 16:19:56
conclusão: são passíveis de manipulação humana essas cons-
truções sociais que tendem a determinar o lugar de homens
e mulheres na sociedade, pois não são naturais. Isso significa
que a opressão de gênero não é um problema apenas da mu-
lher, mas de toda a sociedade que engendra as relações de po-
der inscritas nas relações sociais entre os corpos sexuados, a
partir das construções de gênero.
Nesse contexto, não há como não referenciar que as desi-
gualdades de gênero se aprofundam quando são olhadas na
perspectiva das desigualdades regionais, em que a implanta-
ção, a implementação e o acesso às políticas públicas se tor-
nam algo bastante difícil diante das realidades e diversidades
espaço-demográficas, populacionais, econômicas e sociais, so-
bretudo, para serem empreendidas com o olhar de gênero.
Confirmando essa tendência, em 2009, o Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa de
Informações Básicas Municipais (MUNIC), realizou um estudo
sobre a gestão da política de gênero nos municípios brasilei-
ros. A constatação, nada surpresa, revelou que existiam no
país, naquele ano, 1.043 municípios com algum tipo de estru-
tura direcionada para a temática de gênero (18,7% do total
dos municípios brasileiros). E, desse total, em pouco mais de
70% desses municípios, a institucionalidade dessa política se
dava por intermédio de alguma secretaria específica de gover-
no. Diz mais o relatório:

Entre os municípios com até 5.000 habitantes, apenas


10,3% possuíam alguma estrutura para tratar da temá-
tica [...], 1,6% eram secretarias exclusivas [...]. Entre os
municípios mais populosos, não apenas a presença de
organismos de políticas para mulheres é significativa-
mente mais elevada (alcançando 90,0% entre aqueles
com mais de 500.000 habitantes), como também a natu-
reza destes mecanismos é bastante diferenciada, cami-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 163

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 163 29/10/2015 16:19:57
nhando em direção a instâncias mais fortalecidas e com
maiores recursos e possibilidades de ação. Dos municí-
pios com mais de 100.000 habitantes, reduzidos 58,0%
contavam com setores dentro de secretarias temáticas,
16,0% possuíam organismos diretamente vinculados
ao gabinete do prefeito e 15,0% instituíram secretarias
exclusivas [...]. É importante considerar que a existência
de organismos de políticas para mulheres não assegura a
existência de condições adequadas de desenvolvimento
dos trabalhos, o que, por consequência, impacta na re-
duzida possibilidade de articulação com órgãos locais
e de implementação direta de políticas e ações na área.
Em geral, os mecanismos possuem escassez de recursos,
seja financeiro, seja humano ou material (2009, p. 3).

Nesse contexto, em que pesem vários debates teóricos a


respeito, são consideradas políticas públicas as ações ou me-
didas governamentais como respostas às demandas da popu-
lação. Ou seja, segundo Souza (2006, p. 26), “a formulação de
políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos
democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleito-
rais em programas e ações que produzirão resultados ou mu-
danças no mundo real”.
Esse entendimento possibilita conceber essas políticas
como instrumentos de garantia de direitos e devem se confi-
gurar como políticas de Estado (permanentes/continuadas), e
não de governo (de gestões/passageiras), para que seus efei-
tos resultem em eficácia, eficiência e efetividade.
Diante do que se expôs, este estudo busca enfatizar o pro-
cesso de interiorização das políticas públicas às mulheres no
Estado do Pará, numa perspectiva de gênero, compreendendo
as desigualdades e fazendo uma ação contrária com o objetivo
de promover a inclusão das demandas, sobretudo, das mulhe-
res – o que se torna um desafio, considerando que essa ques-

164 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 164 29/10/2015 16:19:57
tão ainda não é prioridade na agenda política de maior parte
dos(as) gestores(as) públicos(as). Assim, o artigo será desen-
volvido em três partes. Num primeiro momento, busca-se situ-
ar o debate das políticas públicas para as mulheres no Brasil e
no Estado do Pará, com a criação dos organismos de políticas
no âmbito nacional e local, compreendendo a missão e os im-
pactos resultantes dessas criações. A seguir, serão apresenta-
das as experiências dos 13 Seminários Regionais de Políticas
para as Mulheres ocorridos nas doze regiões, sendo que a re-
gião de Marajó foi subdividida em dois polos, considerando as
dimensões territoriais (dificuldade de acesso e mobilização).
Esses eventos promoveram um importante processo de
interlocução entre governo e sociedade civil organizada, por
meio dos movimentos de mulheres e suas reivindicações, como
uma estratégia para interiorização das políticas às mulheres
e, consequentemente, corroborando para a promoção do
desenvolvimento regional nessa perspectiva, pois o fruto
desses seminários, em suas proposições às diversas áreas das
políticas públicas, foi impactante à revisão do 1º Plano Estadual
de Políticas para as Mulheres, lançado em 2010 e revisado em
2012. Por fim, será realizada uma análise desses processos,
no intuito de visibilizar os efeitos e os desafios nos cenários
regional e estadual quanto à implementação das políticas na
perspectiva de gênero.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA AS MULHERES EM


PAUTA: A CRIAÇÃO DO ORGANISMO DE POLÍTICA
DO ESTADO DO PARÁ E SEUS IMPACTOS

Durante décadas, as mulheres brasileiras sofreram com o


processo de exclusão social, econômica e política e, mais que
isso, foram vitimadas por discriminações e diversos tipos de
violência, especialmente no âmbito privado. Nesse cenário, é

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 165

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 165 29/10/2015 16:19:57
inegável que os movimentos feministas e de mulheres foram
fundamentais para o processo de mudança legislativa e social
no país, denunciando as desigualdades e propondo políticas
públicas às mulheres nas diversas áreas. A Constituição Fede-
ral (CF) de 1988 – 1º marco jurídico da transição democrática
e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil – foi
fundamental para mudar tais situações, pois garante, entre ou-
tros direitos, o:

• Reconhecimento da igualdade na família;


• Repúdio à violência doméstica;
• Reconhecimento de direitos reprodutivos;
• Reconhecimento de direitos trabalhistas.

A CF de 1988 foi reforçada pelas Convenções, Tratados, De-


clarações e Planos de Ação das Conferências das Nações Uni-
das, que criaram um novo direito internacional dos direitos
humanos. Em seu art. 226, § 8º, dispõe: “O Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas
relações”. Assim, pela primeira vez, o Estado chama para si,
legal e formalmente, a responsabilidade de dar respostas às
situações de violência no âmbito privado ou da família, comun-
gando e respondendo a outras normativas internacionais. Em
1993, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos pro-
clamou que os direitos da mulher e da menina são parte ina-
lienável, integrante e indivisível dos direitos humanos univer-
sais – grito universal contra as formas cruéis de desrespeito
aos direitos humanos das mulheres, principalmente contra as
diversas violências. Aqui, cabe destacar alguns instrumentos
internacionais ratificados pelo Estado brasileiro, como:

• Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Dis-


criminação contra a Mulher – 1979;

166 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 166 29/10/2015 16:19:57
• Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi-
car a Violência contra a Mulher – 1994;
• Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a
Mulher (Beijing/1995) – diagnóstico e políticas para a
promoção e defesa dos direitos humanos das mulheres.

Todos esses instrumentos retratam a força e a organização


dos movimentos que lutam em prol dos direitos das mulheres.
No Brasil, a década de 1970 foi marcante, pois se publicizou,
sobretudo, a violência no âmbito privado. Os resultados dessa
luta foram lentos, mas significativos para o início de uma mu-
dança social e cultural no país. Na década de 1980, emergem
ações pontuais e fragmentadas sob um novo discurso: políti-
cas públicas para as mulheres na perspectiva de gênero. Era a
pressão dos movimentos para alterar as condições estruturais
da desigualdade de gênero, erradicando a violência contra a
mulher, em todas as suas expressões. De modo geral, políticas
públicas devem ser permanentes, coerentes e articuladas com
os distintos poderes e diferentes esferas de governo; ser ela-
boradas considerando-se as demandas da sociedade (diálogo)
e ter garantido orçamento para dar conta das demandas. Num
significado amplo, elas podem ser entendidas como tudo aqui-
lo que o governo, em qualquer uma das esferas, faz no que diz
respeito às leis, medidas reguladoras, decisões e ações.
Um dos grandes desafios que se põem hoje na formulação
de políticas públicas é reconhecer a necessidade de pensá-las
na perspectiva de gênero e raça, pois se parte do pressuposto
de que há problemas na sociedade referentes ao tratamento
desigual dado às mulheres e aos/às negras/os e outros grupos
discriminados e, por isso, é preciso dar um tratamento dife-
renciado à questão. Logo, as/os gestoras/as possuem papel
primordial na identificação das desigualdades e na promoção
de condições de igualdade. Isso favorece o desenvolvimento
humano, social, econômico e político.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 167

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 167 29/10/2015 16:19:57
Forçar o processo de pensar as políticas públicas sob novos
paradigmas foi algo que muito impulsionou os movimentos so-
ciais. Em 1996, o governo federal lançou o I Programa Nacional
dos Direitos Humanos (PNHD) reconhecendo, então, os efeitos
do racismo e do sexismo no país, apontando para a necessi-
dade de se implementarem políticas públicas para os grupos
historicamente excluídos, como mulheres, negros e indígenas.
Na década de 1990, o olhar para a questão da mulher, sob
o enfoque de gênero, ganhou uma dimensão de destaque, e a
academia teve um papel importante nesse cenário, criando-se
vários grupos de estudos em universidades públicas. A noção
de violência contra a mulher é considerada como questão mais
ampla de política de direitos humanos: o Estado precisava de
políticas não só para criar programas de prevenção, atenção
e punição, mas ações que pudessem gerar uma mudança de
tradição cultural, sob o enfoque de gênero.
Entre as muitas conquistas e avanços obtidos, não se pode
negar que a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Pre-
sidência da República (SPM/PR), criada em 1º de janeiro de
2003 com status de Ministério, inaugurou um novo momen-
to da história do Brasil no que se refere à formulação, coor-
denação e articulação de políticas que promovam os direitos
humanos das mulheres e busquem corroborar com o fim da
desigualdade de gênero.
A realização da I Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres (CNPM), em julho de 2004, foi um marco na afir-
mação dos direitos da mulher e mobilizou, por todo o Brasil,
cerca de 120 mil mulheres que participaram diretamente dos
debates e apresentaram as propostas para a elaboração de po-
líticas para as mulheres, visando a enfrentar as desigualdades
de gênero por meio de ações e políticas públicas importantes
que contribuíram em muito para a mudança de cenários desfa-
voráveis à mulher brasileira, entre as quais:

168 Gênero, desenvolvimento e território

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• 2005: I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(PNPM);
• 2005: Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra a Mulher;
• 2006: Lei Maria da Penha;
• 2007: II PNPM;
• 2007: Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência
contra a Mulher.

Nos últimos dez anos, as políticas públicas às mulheres,


nas diversas áreas, ganharam um impulso significativo, seja
na formulação, na implementação, na definição de recursos ou
no monitoramento e avaliação. A partir daí, a SPM passou a
incentivar a criação de Organismos de Políticas para as Mulhe-
res (OPM),25 tanto na esfera dos governos estaduais como dos
municipais, sendo uma estratégia para avançar as políticas no
país com base nas unidades federativas.
No Estado do Pará, observaram-se mudanças nesse sentido.
A primeira delas veio com a Lei nº 7.029, de 30 de julho de 2007,
a qual altera a denominação da Secretaria de Justiça (Seju) para
Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh).
Com isso, o governo do Estado promove uma reestruturação
organo-funcional que possibilitou a instalação de várias
coordenadorias, entre as quais a Coordenadoria Estadual de
Promoção dos Direitos da Mulher (CPDM), que surge com a
missão de promover no Estado políticas públicas, em todas
as áreas, para a população feminina, independentemente
de idade, cor/raça/etnia, orientação sexual, condição de
deficiência, orientação religiosa, opção política, classe social e
espaço geográfico. Entre as atribuições da CPDM, contam:

25 Segundo o site da SPM/PR, até o mês de novembro de 2014, havia sido cadastrados
27 OPMs em nível estadual e cerca de 500 em nível municipal, no país.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 169

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 169 29/10/2015 16:19:57
• Formular, coordenar, articular e monitorar/avaliar políti-
cas públicas de proteção, defesa e promoção dos direitos
das mulheres;
• Executar ações de competência da Sejudh relativas à im-
plementação do Plano Estadual de Políticas para as Mu-
lheres, avaliando-o periodicamente;
• Realizar o atendimento às mulheres nos casos de violação
dos direitos humanos, articulando e encaminhando as de-
mandas para a rede de serviços;
• Reaplicar no Estado do Pará o Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres, o Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra a Mulher e a Lei Maria da Penha (Lei nº
11.340);
• Fortalecer o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e o
movimento social de mulheres;
• Fomentar a criação de organismos de políticas para as
mulheres e de conselhos municipais dos direitos da mu-
lher para o avanço das políticas com a participação do
controle social.

Nesse mesmo ato, o Conselho Estadual dos Direitos da


Mulher (CEDM) fica vinculado à Sejudh e também demarca
a adesão do governo do Estado ao Plano Nacional de Políti-
cas para as Mulheres e ao Pacto Nacional pelo Enfrentamento
da Violência contra a Mulher. Portanto, considera-se que esse
momento demarca um avanço para a gestão das políticas às
mulheres, pois, com a CPDM coordenando e articulando, o pro-
cesso avançaria mais facilmente.
Os desafios foram imensos nesse processo, mas há de se
pontuar importantes avanços obtidos desde 2007. Entre as
grandes ações da CPDM, em parceria com SPM/PR e outros ór-
gãos e/ou setores da sociedade, destacam-se:

170 Gênero, desenvolvimento e território

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• Implantação e implementação de ações de impacto para
o enfrentamento à violência contra as mulheres no Esta-
do, incluindo criação/reestruturação de serviços como
Delegacias Especializadas, Casas-Abrigo e Centros de
Referência; capacitações de agentes públicos da rede de
atendimento; produção e distribuição de materiais infor-
mativos/educativos; dotação da OPM e do CEDM de me-
lhor infraestrutura, entre outros;
• Implantação e implementação do I Plano Estadual de Po-
líticas para as Mulheres;
• Articulação permanente com a SPM/PR e com os OPMs
do Estado, potencializando a criação desses importantes
mecanismos. No Estado, até junho de 2014, registra-se a
existência de 12 organismos municipais de políticas para
as mulheres como importantes articuladores das políti-
cas às mulheres nos municípios, a saber: Belém, Ananin-
deua, Parauapebas, Goianésia, Breves, Bragança, Barcare-
na, Itupiranga, Anajás, Curionópolis, Jacundá e Tucuruí;
• Realização de ações de impactos (eventos em geral, como
em torno das campanhas do Dia Internacional da Mulher
– 8 de março, e do Dia Internacional pela Não Violência à
Mulher – 25 de novembro);
• Articulação permanente com as secretarias de Estado e
gestores municipais, por meio de várias instâncias, para
potencializar ações e políticas às mulheres, sobretudo
nas áreas de assistência social, educação, geração de em-
prego e renda, combate à violência e acesso à Justiça;
• Realização de conferências (estaduais e regionais/muni-
cipais).

No período de 2011 a 2013, destacamos, então, importante


parceria entre a CPDM e a SPM/PR, com repasse de recursos,
por intermédio de convênios, que foram importantes para im-

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 171

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plantação e implementação de políticas na perspectiva de gê-
nero, a saber:

Tabela 1 – Repasse de recursos, por intermédio de convênios, para implanta-


ção e implementação de políticas na perspectiva de gênero.
VALOR CONCE- VALOR PROPO-
PROJETO TOTAL
DENTE (SPM) NENTE (Estado)
Apoio a iniciativas
de prevenção à
R$ 263.660,40 R$ 29.295,60 R$ 292.956,00
violência contra
a mulher
Ampliação e
fortalecimento
R$ 540.000,00 R$ 60.000,00 R$ 600.000,00
das ações da
CPDM e do CEDM
Monitoramento
das ações do Pacto
Nacional pelo
Enfrentamento à
R$ 189.000,00 R$ 21.000,00 R$ 210.000,00
Violência contra
a Mulher (nos
municípios com
rede mínima)
Sensibilização
e capacitaçãoda
R$ 281.660,40 R$ 31.295,60 R$ 312.956.00
rede de
atendimento
TOTAL R$ 1.210.660,40 R$ 134.517,82 R$ 1.345.178,22
Fonte: Relatórios da CEPDM, 2012/2013.

Portanto, nota-se a sensibilidade de gestões para com o


investimento às políticas para mulheres. Isso foi importante,
pois o movimento social, há muito tempo, sempre pressionou o
Estado a dar respostas satisfatórias às suas reivindicações. Um
reflexo disso foi a realização das conferências estaduais, ocor-
ridas respectivamente em 2004, 2007 e 2008, consubstancia-
das no I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres (PEPM),

172 Gênero, desenvolvimento e território

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lançado no ano de 2010. Esse foi um grande marco na história
do movimento social da gestão pública e das políticas para as
mulheres no Estado do Pará. Essas conferências reuniram cer-
ca de quatro mil mulheres, oriundas de cem municípios, além
de reunir organismos institucionais (estaduais e municipais),
movimentos sociais diversos e instituições de Ensino Superior.
As diretrizes do I PEPM Pará foram definidas na III Confe-
rência Estadual de Políticas, servindo de base para todos os ór-
gãos do Governo do Estado do Pará na elaboração, ampliação e
implementação de políticas para as mulheres, a saber:

• Pautar ações e políticas visando à autonomia das mulhe-


res do meio rural e urbano, combatendo a pobreza das
mulheres e promovendo o desenvolvimento com a cria-
ção de mecanismos de geração de renda, além da qualifi-
cação profissional;
• Combater as discriminações, articulando educação, arte,
cultura e comunicação, com respeito à livre orientação
sexual e direitos humanos das mulheres;
• Fortalecer o Sistema Único de Saúde sob a perspectiva de
gênero, replicar ações do Plano Nacional de Atenção In-
tegral à Saúde da Mulher com qualidade no atendimento
à saúde das mulheres. Considerar o Pacto Nacional pela
Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, a Política
Nacional sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos,
incluindo ações específicas para as adolescentes, assim
como a implementação da Lei de Notificação Compulsó-
ria – mecanismo de indicadores para subsidiar políticas
para as mulheres. Especial atenção ao combate à femini-
zação da epidemia de HIV e à prevenção das DSTs e AIDS;
• Pautar ações para ampliar a rede de serviços de enfren-
tamento à violência contra a mulher, consolidar a Política
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulhe-
res; aprofundar a implementação da Lei Maria da Penha;

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 173

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 173 29/10/2015 16:19:57
combater a exploração sexual de meninas e adolescentes
e o tráfico de mulheres; fortalecer os direitos humanos
das mulheres em situação de prisão;
• Fortalecer a gestão articulada entre as esferas de governo
para a implementação de políticas públicas para as mu-
lheres com o fortalecimento da CEPDM e o incentivo à
criação de organismos de políticas para as mulheres nos
municípios; e, principalmente, garantir infraestrutura ne-
cessária para o pleno funcionamento do CEDM, a fim de
desenvolver ações com o objetivo de ampliar o número de
conselhos nos municípios, consolidando nos municípios
o exercício do controle social contribuindo na construção
de políticas para as mulheres no Estado.

O I PEPM contemplou oito eixos de políticas públicas, com


29 prioridades e 126 ações. Os eixos foram:

• Eixo I – Autonomia econômica e igualdade no mundo do


trabalho com inclusão social;
• Eixo II – Educação inclusiva, não sexista, não racista, não
homofóbica e não lesbofóbica;
• Eixo III – Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos
reprodutivos;
• Eixo IV – Enfrentamento a todas as formas de violência
contra as mulheres;
• Eixo V – Participação das mulheres nos espaços de poder
e decisão;
• Eixo VI – Direito à terra, à moradia digna e à infraestru-
tura social nos meios rural e urbano, considerando as co-
munidades tradicionais;
• Eixo VII – Cultura, comunicação e mídia igualitárias, de-
mocráticas e não discriminatórias;
• Eixo VIII – Enfrentamento ao racismo, ao sexismo e à les-
bofobia.

174 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 174 29/10/2015 16:19:57
Além desses, houve um eixo que tratou sobre a gestão, o
monitoramento e a avaliação do I Plano Estadual, com quatro
prioridades e onze ações. Portanto, esse primeiro plano teve
grande importância na promoção de políticas às mulheres,
sendo um marco regulador, inclusive, para os movimentos de
mulheres. Contudo, houve uma fragilização quanto ao monito-
ramento para se mensurar os reais impactos desse processo
na vida das mulheres como um todo.

OS SEMINÁRIOS REGIONAIS: POLÍTICAS PÚBLICAS E


DESENVOLVIMENTO PARA AS MULHERES PARAENSES

Segundo dados do IBGE (Censo de 2010), a população fe-


minina no Estado do Pará representa 49,59% da população
(3.762.833 mulheres), vivendo na vasta dimensão territorial
do Estado,26 tendo uma população miscigenada (formada por
índios, negros e descendentes de imigrantes asiáticos e euro-
peus) e marcada por uma rica diversidade cultural. Esse cená-
rio se apresenta para a implantação e a implementação de po-
líticas públicas às mulheres na perspectiva de superação das
desigualdades e discriminações em decorrência das questões
de gênero, raça/etnia, classe, orientação sexual, em especial,
que ainda são latentes. E, embora não haja um diagnóstico ofi-
cial sobre a desigualdade de gênero e as condições de vida das
mulheres no Estado, é visível a dificuldade que elas têm para
acessar as políticas públicas em toda a extensão territorial. Tal

26 Para maior conhecimento das características das 12 regiões do Estado (Araguaia,


Baixo Amazonas, Carajás, Guamá, Lago de Tucuruí, Marajó, Metropolitana, Rio Cae-
té, Rio Capim, Xingu, Tapajós e Tocantins) em itens como meio ambiente, demogra-
fia, economia e emprego, educação, saúde e saneamento, segurança e justiça, infra-
estrutura e finanças públicas, consultar os dados do Instituto de Desenvolvimento
Social e Ambiental do Pará (IDESP, 2011). É uma síntese regional elaborada para
auxiliar os gestores na tomada de decisão das políticas públicas e para os demais
interessados em obter maior conhecimento a respeito do assunto.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 175

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 175 29/10/2015 16:19:58
situação foi comprovada baseada na realização desses seminá-
rios regionais, pelos quais se observou incisivamente a ausên-
cia de políticas públicas direcionados à mulher nos vários mu-
nicípios do Estado e que compromete a promoção dos direitos
humanos dessa mulher, além de refletir um desenvolvimento
tardio nas regiões do Estado.
Portanto, embora o I PEPM tenha buscado superar essas
fragilidades, há ainda muitas lacunas que comprometem sua
ideal implementação. Logo, a realidade revela que o desen-
volvimento de políticas públicas na perspectiva de gênero, no
Estado do Pará, deve se dar a partir de um cofinanciamento e
de uma cogestão participativa entre União, Estados e municí-
pios, articulando e pactuando essas políticas públicas com a
sociedade civil organizada, em especial com os movimentos de
mulheres. Por isso, o governo, por intermédio da CPDM, vem
buscando criar estratégias que possam corroborar mais para
a ampliação do acesso às políticas públicas pelas mulheres.
Essas políticas, na perspectiva de gênero, devem considerar o
desenvolvimento sustentável, nas várias dimensões, no meio
rural, na cidade e na floresta, e exigem uma compreensão além
das políticas universais, ou seja, requerem um refletir sobre o
impacto dessas políticas na vida das mulheres.
Nesse cenário, cabe enfatizar que a experiência dos
seminários regionais foi uma estratégia para interiorização
das políticas, considerando os desafios que o Estado tem na
implantação e implementação de política em um território
complexo, vasto e diversificado, recortando os atuais 144
municípios (na época da realização dos seminários eram
143). A ideia que se tinha era de que, antes da realização da
IV Conferência Estadual dos Direitos da Mulher, o governo
precisava reafirmar seu compromisso com a demanda das
mulheres e, por meio da CPDM e do CEDM, conclamou todos
e todas para continuarem no processo de execução de tal
política, avaliando o I PEPM, por meio da IV Conferência, e

176 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 176 29/10/2015 16:19:58
redefinindo os rumos de novas políticas públicas para as
mulheres paraenses.
Nesse sentido, na busca de envolver a sociedade, especial-
mente as mulheres, o governo do Estado realizou os seminá-
rios regionais intitulados: “Políticas Públicas para as Mulheres
no Estado do Pará: com todas as mulheres, por todos os seus
direitos!”, e com o lema: Saúde, combate à violência e não femi-
nização da pobreza. Foram realizados 13 seminários regionais,
pois a região de Marajó foi subdividida em duas pela comple-
xidade demográfica do arquipélago, que é recortado por mui-
tas localidades dispersas. Esses eventos foram realizados pelo
Governo do Estado do Pará, por intermédio da Secretaria de
Estado de Justiça e Direitos Humanos/Coordenadoria Estadual
de Promoção dos Direitos da Mulher, com o apoio do Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher e de gestores municipais, além
do cofinanciamento da SPM/PR (projeto aprovado).
No total, participaram 95 municípios, tendo como sedes os
municípios de: Breves, Santarém, Itaituba, Altamira, Marabá,
Tucuruí, Xinguara, Castanhal, Abaetetuba, Capanema, Para-
gominas, Soure e Belém. O período de realização foi de 11 de
junho a 16 de novembro de 2011, antecedendo a realização
da conferência. Os referidos eventos serviram de preparação
para a IV Conferência Estadual de Políticas para as Mulheres,
realizada no mês de outubro de 2011.
Os seminários regionais incentivaram vários municípios,
sobretudo aqueles onde existem OPM e Conselhos Municipais
dos Direitos da Mulher, a promover suas conferências, elegendo
suas delegadas para a conferência estadual. Nessas condições,
houve a participação de centenas de mulheres debatendo, re-
fletindo e propondo quais políticas são necessárias às mulhe-
res, do campo, da cidade, das águas ou das florestas, indepen-
dentemente de classe social, geração, idade, credo religioso,
orientação sexual e raça/etnia, pois, até então, nem sempre era
possível a participação de todas, mesmo nos municípios.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 177

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 177 29/10/2015 16:19:58
A Coordenadoria e o Conselho da Mulher participaram de
várias conferências municipais, mesmo ocorrendo os seminá-
rios regionais, principalmente nos maiores municípios, onde
foram discutidos os mesmos temas e eixos, uma vez que se
fez facultativa a presença do município no seminário regional.
Com os seminários se reuniram, em cada polo, aproximada-
mente 200 lideranças do movimento de mulheres/feministas
e outras mulheres, independentemente de cor/raça/etnia,
classe, orientação sexual, religião, geração e local de origem.
Detalhadamente, participaram, além de vários prefeitos(as),
vereadores(as) e demais autoridades municipais e estaduais,
cerca de duas mil mulheres.
O tema dos debates esteve focado no desenvolvimento de
políticas na perspectiva de gênero, com o objetivo de revisar o
I PEPM, fortalecendo-o em sua execução por meio dos eixos bá-
sicos, com destaque ao Enfrentamento à Violência Doméstica
e Familiar; Implementação da Lei Maria da Penha; Autonomia
Econômica e Renda para Mulheres. Além disso, os seminários
serviram para sensibilizar e qualificar gestores(as) municipais
nas temáticas, visando à implantação e à implementação de
políticas públicas integrais e integradas às mulheres.
Entre as temáticas que emergiram durante as discussões,
podem ser citadas algumas que despertaram maior interesse
aos participantes, como:

• Trabalhar a implementação do II Plano Estadual de Polí-


ticas para as Mulheres, numa perspectiva de transversali-
dade entre as políticas;
• Maior investimento nos serviços de enfrentamento à vio-
lência doméstica e familiar contra a mulher, com capaci-
tação dos agentes, criação de protocolo de rede de servi-
ços e humanização do atendimento;
• Criação do Sistema Unificado de Informação sobre vio-
lência doméstica e familiar praticada contra as mulheres

178 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 178 29/10/2015 16:19:58
no Estado, favorecendo uma rede informatizada para re-
gistro e demonstração de dados;
• Implementar políticas públicas específicas e afirmativas
voltadas às mulheres, com a execução de ações, progra-
mas e projetos com recorte em gênero, objetivando tratar
desigualmente os desiguais, o que requer pleno reconhe-
cimento das necessidades próprias dos diferentes grupos
de mulheres;
• Recomendar aos prefeitos do Estado a criação de organis-
mos de controle social da política para mulheres a fim de
aumentar o número de Conselhos Municipais dos Direi-
tos da Mulher.

Os seminários regionais foram importantes porque


reuniram uma diversidade de mulheres que apresentaram
suas demandas. Em 2012, o Estado criou o II Plano Estadual de
Políticas para as Mulheres (II PEPM) com base na sistematização
dos resultados da IV Conferência Estadual de Políticas para as
Mulheres, realizada de 25 a 27 de outubro de 2011, na capital,
momento de socialização, discussão e proposições acerca de
políticas para as mulheres de nosso Estado, nas diversas áreas,
na certeza e reafirmação da importância de avançar nesse
processo, em todos os 144 municípios e suas 12 regiões de
integração.
Segundo o relatório da IV Conferência, ela foi precedida de
seminários/conferências regionais preparatórias à etapa esta-
dual. Reuniu 760 participantes (214 representantes do gover-
no estadual; 65 representantes do governo municipal e 216 re-
presentantes da sociedade civil organizada) de 53 municípios
de todas as regiões de integração, contemplando a diversidade
das mulheres paraenses: quilombolas, pescadoras, extrativis-
tas, parteiras, prostitutas, domésticas, trabalhadoras rurais e
urbanas, estudantes, jovens, idosas, lésbicas, negras, afro-reli-
giosas, católicas e evangélicas.

Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 179

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 179 29/10/2015 16:19:58
Sob a coordenação da Coordenadoria Estadual de Promo-
ção dos Direitos da Mulher (CPDM) e do Conselho Estadual
dos Direitos da Mulher (CEDM), a IV Conferência foi palco de
um intenso processo democrático, refletindo o anseio de cen-
tenas de mulheres, dos diversos cantos do Estado, por políticas
públicas amplas, eficientes e eficazes, considerando, ainda, um
cenário em que milhares sofrem com discriminações e diver-
sas formas de violências. Organizadas em nove grupos de tra-
balho temáticos, foi possível às mulheres avaliarem o I Plano
Estadual e fazerem as novas proposições para o II Plano nos
próximos quatro anos (2012 a 2015), quando será novamente
posto à avaliação.
Diferente da construção do I PEPM, para o qual se constitui
um GT composto por representações do governo e da socie-
dade civil organizada, além de contar com uma assessoria, re-
sultado de convênio com a SPM/PR, a construção do II PEPM
foi coordenada e sistematizada pela CPDM, como organismo
de políticas que têm tal prerrogativa, segundo orientações da
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da Re-
pública, contando com o apoio de conselheiras do CEDM. Tudo
foi feito em consonância com os princípios da Política Nacional
e as diretrizes da Política Estadual, sendo baseado no modelo
anterior, com ajustes, mas dentro dos mesmos eixos estratégi-
cos de políticas, a saber:

• Eixo I – Autonomia econômica e igualdade no mundo do


trabalho com inclusão social;
• Eixo II – Educação inclusiva, não sexista, não racista, não
homofóbica e não lesbofóbica;
• Eixo III – Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos
reprodutivos;
• Eixo IV – Enfrentamento a todas as formas de violência
contra as mulheres;

180 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 180 29/10/2015 16:19:58
• Eixo V – Participação das mulheres nos espaços de poder
e decisão;
• Eixo VI – Direito à terra, à moradia digna e à infraestru-
tura social nos meios rural e urbano, considerando as co-
munidades tradicionais;
• Eixo VII – Cultura, comunicação e mídia igualitárias, de-
mocráticas e não discriminatórias;
• Eixo VIII – Enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbo-
fobia;
• Eixo IX – Gestão, monitoramento e avaliação.

Ao todo, são nove eixos de políticas, compostos por 35 prio-


ridades e 187 ações que refletem as necessidades das mulhe-
res do Pará. O II PEPM apresenta novos desafios diante de uma
realidade complexa, de um Estado que é marcado por sua am-
plitude espacial e uma população tão diversa.
Nesse contexto, cabe enfatizar que, em 2013, a CPDM rea-
lizou, em Belém, nos dias 21 e 22 de novembro de 2013, o II
Encontro de Sensibilização de Gestores e Gestoras de Políticas
Públicas para as Mulheres do Pará, tendo como objetivo cen-
tral a discussão e avaliação das políticas públicas para as mu-
lheres no Estado do Pará, pela transversalidade de gênero na
gestão pública. Além disso, a intenção era sensibilizar gesto-
res(as) públicos(as) municipais para a criação de Organismos
de Políticas para as Mulheres. Nesse evento, houve a participa-
ção de 110 municípios, com cerca de 250 participantes, sendo
um momento muito significativo para a avalição e a proposição
de políticas para as mulheres no Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscar a implantação e a implementação de políticas às


mulheres na perspectiva de gênero significa reafirmar a Plata-

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Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 181 29/10/2015 16:19:58
forma de Ação de Pequim aprovada na IV Conferência Mundial
sobre a Mulher (2005), a qual incorporou a perspectiva de gê-
nero nas políticas e programas governamentais com ações e
estratégias em áreas como combate à pobreza, educação, saú-
de, enfrentamento à violência, conflitos armados, economia,
espaços de poder e decisão, mídia, meio ambiente, mecanis-
mos institucionais e direitos humanos, entre outras, além de
considerar o importante papel da mulher na economia e rela-
ções de produção para o desenvolvimento do mundo.
Alcançar tal patamar não é algo tão fácil, considerando que
esse processo é recente, datado de poucas décadas, e exige
mudanças de paradigmas e concepções da sociedade como um
todo. Todavia, não há como negar que os movimentos de mu-
lheres são mecanismos de pressão e impulsionam mudanças
importantes nesse processo.
Diante de tal contexto, avalia-se que os momentos dos semi-
nários regionais e das próprias conferências municipais foram
de grande efeito, mesmo diante de tantos desafios e de diver-
gências político-ideológicas. A intenção foi que se avançasse
cada vez mais em prol das políticas públicas, fortalecendo a
sociedade em respeito aos direitos humanos das mulheres pa-
raenses.
Não se chegou ao ideal, mas se pode afirmar que o Estado
do Pará apresenta, sim, um novo momento para as políticas
às mulheres. São ações, programas e serviços que se põem no
centro das políticas públicas em diversas áreas. E, nesse ce-
nário, não se pode negar que as regiões foram ouvidas, am-
pliando as possibilidades para o desenvolvimento econômico,
social e político, mesmo que ainda num processo lento.
O II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres se coloca
como uma referência, e suas ações devem ser implementadas,
também, pela criação de planos municipais para um efeito
mais tangível na vida das mulheres. Para isso, cabe à CPDM
continuar numa profunda articulação e monitoramento das

182 Gênero, desenvolvimento e território

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políticas, do mesmo modo que cabe ao conselho estadual fis-
calizar as políticas implementadas e não implementadas.
Portanto, de um modo geral, avalia-se que as públicas para
as mulheres avançaram no Estado do Pará, fortalecendo os di-
reitos humanos, mas ainda há um caminhar longo para que se
possa galgar uma sociedade pautada nos valores da igualdade
de gênero. É preciso que a igualdade de gênero seja parte de
um compromisso não apenas dos governos, em suas três esfe-
ras, e da sociedade civil organizada, mas de toda a sociedade
num grande projeto de cooperação.

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prensa Nacional, 1989.

__________. “Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.


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Autonomia das mulheres e o acesso às políticas públicas 183

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(Sejudh). Coordenadoria de Promoção dos Direitos da Mulher
(CEPDM)”. I Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Be-
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(Sejudh). Coordenadoria de Promoção dos Direitos da Mulher
(CEPDM)”. II Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Be-
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184 Gênero, desenvolvimento e território

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PARTE 3

OS LIMITES DO
DESENVOLVIMENTO
NA PERSPECTIVA
DE GÊNERO

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ENTRE ENREDOS, ENCANTOS E
DESENCANTOS: UM ESTUDO SOBRE SAÚDE E
O COTIDIANO DE MULHERES EM CONTEXTOS
DE MUDANÇAS SOCIOAMBIENTAIS
Virginia Caroliny Silva Alexandre
Maria Teresa Nobre

INTRODUÇÃO

E
ste artigo é resultado de um processo longo e intenso de
pesquisa realizada no povoado de Areia Branca, na cha-
mada “Zona de Expansão Urbana” da cidade de Aracaju,
capital do Estado de Sergipe. Foram quase dois anos de acom-
panhamento junto às agentes comunitárias de saúde (ACS),
lotadas na Unidade Básica de Saúde local. Entre visitas domici-
liares e caminhadas pelo povoado, foi possível registrar acon-
tecimentos importantes, que marcam as consequências de um
desenvolvimento urbano voltado aos interesses comerciais e
de especulações imobiliárias. Com isso, as necessidades dos
moradores e a qualidade de vida no povoado, do ponto de vista
de quem mora no local, ficam secundariamente considerados.
O atendimento à saúde e as práticas de cuidados estudados
pelo cotidiano de mulheres constituem o foco deste trabalho.
Iremos analisar mais especificamente o cotidiano de mulheres
e refletir sobre o contexto sócio-histórico em que estão inseri-
das. Durante o trabalho de campo, a movimentação das mulhe-
res pelo povoado foi chamando a atenção: a presença das mu-
lheres nas ruas, na Unidade Básica de Saúde e nas suas casas
direcionou algumas formas de pensar o cotidiano das mulhe-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 187

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 187 29/10/2015 16:19:59
res. Diversas formas de resistência foram aparecendo: no pri-
meiro olhar se visualiza somente a “mesmice” e a reprodução
da vitimização e da vulnerabilidade social das mulheres. No
entanto, é nesse mesmo cotidiano que elas reinventam formas
de existir, de se mover perante um modo de vida que insiste
em ser difícil, principalmente para as mulheres.
Aracaju é uma das capitais mais jovens do país, com apenas
159 anos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), em 2012 contava com uma população de
580 mil habitantes. Apesar de ter nascido como uma cidade
planejada, seu crescimento foi paulatinamente perdendo essa
característica, e a expansão urbana foi ocorrendo com graves
impactos ambientais: o aterramento de manguezais e lagoas,
a artificialização dos seus canais naturais, o desmonte de du-
nas, tudo isso acompanhado de condições precárias ou ausen-
tes de drenagem e escoamento sanitário, o que a faz conviver
com graves problemas de inundações em períodos chuvosos
(FRANÇA; RESENDE, 2010).
A “Zona de Expansão Urbana” corresponde ao litoral sul da
cidade de Aracaju, que, além de ser foco do “boom imobiliá-
rio”, é também foco da especulação turística, uma vez que ela
localiza-se entre várias praias e o rio Vaza Barris, que circun-
da grande parte da cidade, numa região de grande beleza. Tal
posição geográfica culminou na construção de hotéis, bares e
restaurantes, a ponte Joel Silveira – ligação viária entre a re-
gião metropolitana da capital ao litoral sul do Estado, além de
ser uma nova rota que torna menor o percurso até a cidade
de Salvador –, o calçadão da praia de Aruana e do Terminal
Hidroviário de Travessia Aracaju/Caueira, a orla Pôr do Sol no
Mosqueiro, dentre outros investimentos com fins de estímulo
ao turismo. Além disso, há uma expansão do mercado imobi-
liário na região, na qual estão sendo construídas mansões de
grandes empresários e políticos, condomínios fechados, mui-
tos loteamentos e novos conjuntos habitacionais, levando ao

188 Gênero, desenvolvimento e território

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incremento do comércio e da rede de prestação de serviços
públicos e privados.
O potencial de crescimento urbano, associado ao incentivo
do turismo, para além das perspectivas promissoras de desen-
volvimento e progresso, tem provocado inúmeros problemas
à população local, referentes não só à ocupação do território,
com a expulsão de moradores e pequenos comerciantes de
seus lugares de moradia e trabalho, mas também às mudanças
de modos de vida, subsistência e práticas culturais e comuni-
tárias, incluindo o adoecimento gerado pelas novas configura-
ções urbana e ambiental.
Com aproximadamente seis mil habitantes, a região do po-
voado de Areia Branca – onde foi realizada a pesquisa que deu
origem a este trabalho – também se tornou alvo do crescimen-
to e desenvolvimento da cidade. Com o aumento de investi-
mentos imobiliários e do comércio em geral, a região do povo-
ado passa por mudanças expressivas no cenário local, que por
vezes se apresenta em grandes contrastes: há o aumento de
condomínios fechados em contraste com os sítios dos morado-
res locais; a diminuição da prática pesqueira artesanal ao lado
do incremento da pesca esportiva; maior fluxo de carros com
maior dificuldade de mobilidade dos moradores locais; cresci-
mento da imigração, tanto oriunda de cidades do interior e de
moradores dos bairros mais centrais da cidade para a nova re-
gião quanto de turistas nacionais e internacionais; casas sim-
ples e sem infraestrutura básica ao lado de casas com muros
altos e cerca elétrica, o que dificulta ainda mais o trabalho dos
agentes comunitários de saúde (ACS).
O povoado conta com uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e
um Programa de Saúde da Família (PSF). O trabalho de campo
foi desenvolvido junto às agentes comunitárias de saúde (ACS),
com acompanhamento de visitas domiciliares, andanças pelo
povoado e reuniões na Unidade Básica de Saúde (UBS). Pela
equipe do Programa de Saúde da Família (PSF), foi possível

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 189

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 189 29/10/2015 16:19:59
acompanhar o cotidiano da UBS e do povoado, conhecer as fa-
mílias: o meio ambiente e os impactos da degradação ambien-
tal, as práticas de saúde e de resistência, assim como o próprio
funcionamento da Unidade de Saúde e o tipo de assistência
prestada, as hierarquias e relações sociais entre os profissio-
nais e os moradores, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pelos agentes de saúde, acompanhamos práticas cotidianas
do cuidado da saúde que são também constituídas por práti-
cas de resistência ligadas à saúde e à degradação ambiental, as
quais foram sendo observadas na medida em que o trabalho
de campo foi ganhando forma e familiaridade. Essas práticas
dizem respeito ao modo como as pessoas se mobilizam – indi-
vidual ou coletivamente – para enfrentar as mudanças na re-
gião, muitas vezes usando-as ao seu favor, por meio de táticas
cotidianas que “metaformoseiam” o curso dos acontecimen-
tos, no sentido usado por Michel de Certeau (1999).
A pesquisa objetivou analisar aspectos referentes às conse-
quências da degradação ambiental e às diferentes formas de
adoecimentos provocados por esse cenário de transformações
de uma área considerada mais rural, pesqueira e interiorana
para um cenário de crescimento urbano da cidade. Com isso, as
formas de atendimento institucionalizado à saúde, bem como
as práticas locais e culturais de cuidados com a saúde, estão
diretamente relacionadas a esse processo de intensas mudan-
ças. A rotina das famílias, as formas de trabalho, os modos de
adoecer e de produzir saúde, as resistências são atravessados
por esse processo de crescimento urbano.

A PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA
E OS MODOS DE FAZER PESQUISA

A perspectiva etnográfica foi adotada para o desenvolvi-


mento da pesquisa, possibilitando o diálogo e a aproximação

190 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 190 29/10/2015 16:19:59
da produção de um conhecimento que se faz “no caminhar”. Os
imponderáveis, os afetos, os desejos e as crenças estão nesse
emaranhado, e a perspectiva etnográfica nos permite pensar
e conviver, nos deixar afetar pelo campo, nos relacionar, “nos
contaminar” pelas práticas e sermos ao mesmo tempo prati-
cantes (CERTEAU, 1999).
Deixar o campo de pesquisa nos guiar e “gastar” tempo no
campo requer um rigor diferente, de outras dimensões: a di-
mensão da “impregnação” e do “distanciamento”, como observa
Laplantine (2007). A impregnação seria um convívio assíduo,
de encontros e experiências, enquanto o distanciamento seria
um afastamento, um momento de pensar sobre tais encontros
e experiências vividas entre o pesquisador e o seu objeto, “so-
bre o que lhes escapa e só pode lhes escapar” (LAPLANTINE,
2007, p. 183). Essas noções de impregnação e distanciamento
estão, não necessariamente, remetidas a uma separação, mas
serve para perceber que na pesquisa há inevitavelmente essa
afetação pelo objeto de estudo.
O que Laplantine chama de distanciamento é uma valori-
zação do momento de pensar sobre os acontecimentos, sobre
o processo de pesquisa e sobre o que não pode ser controla-
do e premeditado para ser analisado. Para esse autor, a “busca
etnográfica” tem algo de errante, “as tentativas abordadas, os
erros cometidos no campo, constituem informações que o pes-
quisador deve levar em conta, bem como o encontro que surge
frequentemente com o imprevisto, o evento que ocorre quan-
do não esperávamos” (LAPLANTINE, 2007, p. 151).
As pesquisas de inspiração etnográfica possibilitam uma re-
lação com o que Malinowski chamou de “os imponderáveis da
vida real”, ou seja, os detalhes da vida cotidiana, as rotinas, o
comum, o corriqueiro, os cuidados, os laços de simpatia ou aver-
sões, enfim, os modos de viver, que escapam à previsão e ao con-
trole. “Então, a carne e o sangue da vida nativa real preenchem

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 191

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 191 29/10/2015 16:19:59
o esqueleto vazio das construções abstratas” (MALINOWSKI,
1978, p. 19).
Dessa maneira, esta pesquisa tenta olhar por meio de
um ângulo em que as potencialidades das mulheres sejam
ressaltadas e valorizadas em meio às vulnerabilidades e
vitimizações que sofrem constantemente. Para isso, Michel de
Certeau (1999) nos ajuda e expressa esse modo de olhar as
mulheres que contribuem para a desnaturalização da noção
de fragilidade, docilidade e impotência dos atores sociais,
criado pelo discurso do Estado capitalista e reproduzido
cotidianamente. Esse autor destaca que “o cotidiano se inventa
com mil maneiras de caça não autorizada”. Analisando as
práticas, as “maneiras de fazer”, uma arte de combinar e utilizar,
Certeau faz um estudo sobre as “estratégias e táticas”, onde
não há ideia de passividade. Ao contrário, ressalta as práticas
cotidianas e as “astúcias” no relacionamento com o poder
coercitivo e com os padrões unificadores de “normalidades”. O
trabalho de Certeau permite “olhar” as formas de resistências
e desconstruir a ideia de legitimação e adesão total por parte
dos atores sociais, de um modelo de sociedade regulador e
homogeinizante.
As mulheres de Areia Branca nos permitem pensar por esse
viés de análise. Nos entremeios das irrisórias práticas cotidia-
nas existem mecanismos de movimentação criados pelas mu-
lheres os quais as fazem criar estratégias e táticas de sobrevi-
vência e busca por melhores condições de vida.
Neste trabalho, utilizaremos alguns enredos ou fragmentos
de histórias de vida das mulheres para costurar a análise so-
bre o seu cotidiano e sobre o cuidado com a saúde em meio às
transformações socioambientais que o povoado de Areia Bran-
ca vem passando com o processo de crescimento da cidade de
Aracaju.

192 Gênero, desenvolvimento e território

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ENTRE MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

A pesca era uma atividade muito corriqueira no povoado.


Nos dias de hoje, percebe-se uma significativa diminuição des-
sa prática – tanto do ponto de vista da diminuição da quanti-
dade de peixes do rio Vaza Barris como da própria prática de
pescar, da perda de tradição da pescaria, fazendo surgir outras
formas de trabalho e de sustento, como pedreiro, caseiro, dia-
rista, terceirizados etc.
Segundo alguns moradores, quem vivia da pescaria trocava
o peixe por outros alimentos, especialmente por carne. Com a
gradativa escassez, o peixe foi ficando para o consumo próprio
da família, tendo-se de encontrar outras fontes de renda para
complementar o sustento familiar. A dinâmica do povoado vai
mudando lenta e silenciosamente, como o aumento do movi-
mento de carros; o aumento de empregos fora da região, no
centro da cidade, e com isso o uso mais frequente de ônibus; o
crescente medo da violência, o uso frequente de cercas elétri-
cas, muros altos com alarmes; a diminuição da circulação das
pessoas nas ruas à noite, especialmente das mulheres, por se
sentirem ameaçadas por notícias de furtos e assédios.
Diante dessas transformações, podemos questionar o tipo
de desenvolvimento regional que o povoado vem sofrendo.
Entendemos que o desenvolvimento ocorre quando melhoram
as condições de vida da população moradora do lugar, e não
quando a dificulta – sendo esse, inclusive, o discurso do Estado
e do mercado turístico e imobiliário ao defender a criação da
chamada Zona de Expansão Urbana de Aracaju (SANTOS; NO-
BRE, 2014). Entretanto, esse progresso viabiliza os interesses
de especuladores e investidores, que contam com a aliança do
poder público.
Com isso, resta aos moradores buscar formas de driblar as
difíceis consequências causadas por esse direcionamento do
crescimento da cidade, como, por exemplo: a falta de sanea-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 193

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mento básico, o crescimento desordenado das casas e condo-
mínios, o aumento do lixo nas ruas com a coleta irregular, as
grandes chuvaradas que inundam casas e ruas, a poluição das
praias, o desemprego e subemprego, a violência e a drogadi-
ção, a perda das antigas tradições, a vulnerabilidade de crian-
ças, adolescentes e jovens diante das novas condições de vida
e dos “perigos” que elas comportam, a mudança na lida das
mulheres etc. Esse quadro também tem produzido muitos im-
pactos na saúde das pessoas, com muitos adoecimentos físicos
e sofrimentos psíquicos, produzindo um crescimento das de-
mandas na unidade de saúde.
Certa vez, visitamos uma casa logo cedo, pela manhã. As
crianças ainda estavam de pijamas, esperando para tomar o
café que sua mãe preparava. O pai já havia saido para o traba-
lho. A agente de saúde começou por essa casa por ser de mora-
dores mais conhecidos e que não se importariam com o horá-
rio precoce da visita.27 Nessa família, a mãe contou que passou
muito tempo levando a filha de hospital em hospital, por um
problema sério no coração. A criança já está bem, se recuperou
rápido. As duas filhas de uns seis e oito anos pareciam ser boas
companheiras na lida cotidiana de sua mãe. A preocupação
maior foi aparecendo quando a agente comunitária de saúde
(ACS) fez a pergunta: “E ele... como está?”. Uma pergunta que
mereceu outra performance vocal e corporal para disfarçar a
preocupação perante as filhas: “...daquele mesmo jeito...”. A vi-
sita foi rápida, teríamos de ver muitas famílias naquela manhã.
O sol forte nos fazia andar rápido entre uma sombra e outra.

27 É interessante pensarmos na dinâmica ambivalente do trabalho das ACS: algumas


famílias não gostam de recebê-las e a nossa companhia muitas vezes conforta a
agente de saúde, que diz se sentir muito sozinha nesse trabalho. Disse que tem
medo de ir visitar as casas mais distantes, e que alguns moradores não a recebem
muito bem. Ao contrário, porém, a ACS relata que na maioria das casas ela é bem
recebida, que consegue fazer o seu trabalho, pois este depende da contribuição e
aceitação dos moradores. Por isso, às vezes a presença e estranhos na visita pode
causar um distanciamento.

194 Gênero, desenvolvimento e território

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O esposo de Bia, como é chamada, sofre de forte depressão,
segundo a agente de saúde. Não sabem o porquê dessa doença,
mas Bia tem um palpite: ela pensa que é por causa do trabalho,
“ele não gosta do que faz como porteiro, [...] ele gosta mesmo é
de pescar, quando ele pesca, ele fica outra pessoa, muito melhor
[...]”. As novas condições de trabalho no povoado impedem que
consigam viver somente com a renda da pescaria. Com isso, os
novos tipos de trabalho acessíveis para os moradores são de
porteiro nos residenciais próximos ao povoado, de pedreiro e
pintor, de motorista, serviços gerais etc. – atividades estas que
diferem muito da rotina de quem era acostumado a viver da
pescaria. Dentre muitas histórias de descontentamento com o
trabalho, esse é um exemplo típico de um novo tipo de adoe-
cimento disfarçado: o sofrimento psíquico lento e traiçoeiro,
muitas vezes invisível por estar ligado à mudança de modos
de vida que já não são valorizados ou não encontram lugar na
dinâmica das relações econômicas atuais.
Assim como seu marido, Bia também teria fortes motivos
para ficar depressiva. Uma mulher se sentindo sozinha, lutan-
do pela saúde de suas filhas, por um trabalho e cuidando de
um esposo doente. Ela possui táticas de enfrentamento para
driblar as dificuldades financeiras e de saúde, tenta diaria-
mente reinventar um modo de vida que garanta a saúde de
suas filhas, o teto onde moram e o alimento que consomem.
Talvez esse cuidado seja o sentido maior que Bia possui como
engrenagem no seu recomeço diário.
O trabalho das mulheres no povoado prevalece no âmbito
doméstico: babá, faxineira, empregada em “casa de família”.
Durante nossas caminhadas e conversas, percebemos que
muitas mulheres participam da atividade pesqueira, como ma-
risqueiras. A pescaria ainda é muito praticada entre as mulhe-
res, mas parece ser uma prática pouco avistada. Vimos alguns
grupos de mulheres indo e retornando da pescaria, com baldes
e redes nas mãos.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 195

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Conhecemos dona Ceiça, já abordada anteriormente por
outro pesquisador da nossa equipe durante suas andanças
pelo povoado. Ele nos contou que viu dona Ceiça limpando
o peixe e alguns crustáceos na rua, em frente à casa dela. Ela
mesma pesca, limpa e vende. Muitas vezes já tem comprador
certo. Ele, para esticar a conversa, comprou alguns crustáceos.
Dona Ceiça é uma mulher alta, magra, vaidosa, com as unhas
pintadas e ajeitando sempre seu cabelo. Com os seus poucos
dentes, nos acolheu com um sorriso tímido. Depois de muita
conversa, perguntamos se ela nos levaria um dia desses em
suas pescarias, e ela disse que sim, que era só marcar.
Ao comentar com as agentes de saúde que estava planejan-
do pescar com dona Ceiça, elas ficaram surpresas e disseram:
“Sua louca... a pesca de Ceiça é pesada”. Com isso, elas queriam
dizer que dona Ceiça pescava para além do mangue e da beira
do rio, prática não muito comum entre as mulheres pescadoras.
Talvez para dona Ceiça esse movimento de progresso e cres-
cimento urbano ainda não lhe tenha afetado totalmente a pon-
to de mudar sua prática de trabalho. Talvez ela esteja fazendo
um uso desse processo a seu favor para assim vender mais o
seu peixe. Ela é uma das poucas mulheres que não deixaram de
pescar e viver da pescaria para trabalhar em casa de família ou
em outro trabalho no “centro da cidade”.
Dona Ceiça nos faz lembrar o estudo de Martins (2009) so-
bre as mulheres “narradoras de Itaoca” (RJ), o qual, a partir do
trabalho de campo junto às rodas de “descarnadeiras de siri”,
traz algumas reflexões a respeito do trabalho de homens e mu-
lheres na atividade pesqueira. Para essa pesquisadora, “o tra-
balho das mulheres, por exemplo, obedece a um tempo duplo
– dividido entre o cuidar da casa e ‘esperar o peixe’”. Sobre as
práticas de trabalho, essa mesma autora ressalta que “o papel
da mulher é marcado pela hierarquia mar versus terra, definin-
do as tarefas e o território” (MARTINS, 2009, p. 250-1).

196 Gênero, desenvolvimento e território

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No campo de pesquisa, percebe-se que as mulheres não se
reconhecem e nem são reconhecidas como pescadoras: o mar
é para os homens e as atividades que restam às mulheres são
complementares, como consertar as redes, a pesca de maris-
cos, caranguejos e outros crustáceos. São atividades que não
necessitam navegar o “mar adentro”, pois essa é considerada
uma tarefa masculina.
Em algumas famílias, a pesca parecia ser a principal ativida-
de de sustento, o que está ficando mais raro nos dias de hoje.
Segundo alguns moradores, “o rio não dá mais o peixe que
dava antes”, pois pescavam mais e sobrava para vender nas re-
dondezas. Nas ruas encontram-se marcas da pesca, como algu-
mas canoas e tarrafas estendidas na varanda. Algumas vezes,
durante as visitas, passamos por homens e mulheres que vol-
tavam da pescaria, sem muitos peixes em seus baldes, e com
suas redes já arrumadas e realinhadas. Mesmo com a diminui-
ção dessa prática, ela ainda deixa suas marcas, pois pensar na
diminuição da pescaria é pensar nas mudanças socioambien-
tais que têm consequências para o cotidiano das famílias.

FRAGMENTOS DE HISTÓRIAS COTIDIANAS: AS


MULHERES E SEUS MODOS DE CUIDAR DA VIDA

As mulheres do povoado lidam com diferentes circunstân-


cias desde muito cedo. Diferentes lugares e comportamentos
deixam impressa a marca do lugar ao qual pertencem. Em mui-
tos outros lugares mais interioranos, a vigilância sobre o com-
portamento da mulher é mais assídua e visível. Muitas vezes,
as mulheres do interior dependem da sua “boa reputação” para
arranjar um bom casamento. Às que não buscam o casamento,
sobra-lhes a dedicação aos estudos e a escolha apropriada dos
lugares que podem ser frequentados por “meninas-moças”.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 197

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Conhecemos duas irmãs, “moças”, estudantes, diferentes e
inseparáveis. Suas vidas estão envolvidas em estudar para “ter
uma vida melhor e ser alguém na vida”. Suas atividades resu-
mem-se em ir à escola, estudar em casa e ajudar sua mãe nas
tarefas domésticas. Moram em um terreno compartilhado en-
tre alguns familiares, tendo cada família a sua casa. As conver-
sas foram inspiradas sobre “o estudar”, as dificuldades no colé-
gio, o vestibular e as escassas formas de diversão no povoado,
ou sobre as que existem, mas que não podem ser frequentadas
por elas. A mais velha tem 18 anos, e a mais nova, 16.
Lamentam que seu colégio “não é forte”. Estudam em outro
bairro da capital, pois no povoado não tem “segundo grau”. A
internet chega muito lenta, e os professores não conseguem
dar conta das imensas turmas e de alunos “irresponsáveis e
desinteressados, que acabam prejudicando quem quer apren-
der e passar no vestibular”, disse uma delas. A elas resta estu-
dar por “conta própria”, sentar na primeira cadeira para mos-
trar interesse ao professor, “lá atrás não se ouve nada o que o
professor explica... e isso quando ele não desiste de falar por-
que ninguém presta atenção!”.
No povoado, suas diversões estão relacionadas a passear
com a família, visitar amigas, fazer uma caminhada antes de
escurecer. As “danceterias”, barezinhos do povoado, “moça de
família não frequenta..., fica mal falada... como minha família
vai me apoiar nos estudos se fico mal falada?”.
Para muitos pais, a vizinhança serve de escudo protetor das
filhas para que não corram o risco de arrumar namorado cedo
e desistir de estudar. Citam exemplos de meninas que frequen-
taram a danceteria e “engravidaram cedo e agora não podem
mais estudar, agora têm que sustentar e cuidar do filho”. As
“meninas-moças” do povoado também não podem passar no
posto de saúde e pegar preservativos gratuitamente. Há uma
vigilância que “paira no ar”, pois se pegarem os preservativos
todos saberão que não é mais “moça”, e resta articular com al-

198 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 198 29/10/2015 16:19:59
guém mais velho para que lhes distribua, “mas isso é pras mais
ousadas, que arriscam mais...”.
A necessidade de se “resguardar” para obter respeito, não
sair depois que escurece e nem frequentar locais considera-
dos inapropriados para “moças” se torna parte do cotidiano de
mulheres mais jovens e solteiras, que buscam uma vida “inde-
pendente” pelos “estudos” ou uma “ficha limpa” na vizinhança
caso queiram arranjar um marido, “um bom partido”. O cui-
dado para que as moças da vizinhança se “comportem e não
fiquem mal faladas” faz parte do cotidiano de suas mães.
Em A história da vida privada, Michelle Perrot descreve os
processos de vizinhança, do período da Revolução Francesa à
Primeira Guerra, no qual “os vizinhos estabelecem um código
de decência da casa e da rua” (PERROT, 2009, p. 161). As refle-
xões dessa autora sobre o cotidiano de cidades nesse período
nos faz pensar sobre as formas como as relações sociais e de
vizinhança estabelecem códigos e criam imagens que podem
determinar o futuro das “meninas-moças”, suas ações e táticas
para compor seu cotidiano e garantir uma “vida melhor”. “O
olhar da vizinhança pesa sobre a vida privada de cada um e o
que dela aflora: O que dirão? A desaprovação, a tolerância, a
indulgência dos vizinhos tem a força dos Dez Mandamentos”
(PERROT, 2009, p. 161).
O trabalho das mulheres de Areia Branca está diretamente
ligado à prática do cuidado. Quando não possuem familiares
para cuidar dos filhos, elas encontram dificuldades em manter
uma atividade fora de casa, que gere remuneração. Muitas mu-
lheres relataram que gostariam de ter alguma atividade que
contribuísse financeiramente com as despesas da casa e que
com isso viabilizariam mais facilmente uma possível indepen-
dência financeira perante os maridos. Mesmo as mulheres ten-
do relatado que não trabalham “fora de casa”, com o passar dos
dias e das conversas, percebe-se que elas encontram maneiras
de ter uma renda extra, às vezes entre elas mesmas, sem mui-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 199

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to considerar essa atividade como um trabalho. Por exemplo,
algumas vendem roupas nas casas, bijouterias, artigos de catá-
logos por encomendas etc. Nessa prática, as mulheres fortale-
cem uma rede de apoio entre elas, dividem as dificuldades e as
estratégias de negócios.
Pelas ruas, passam mulheres com seus filhos na garupa ou
no quadro da bicicleta; a pé e de mãos dadas com seus filhos.
Passam por nós, conversam com a agente de saúde e dizem
aonde estão indo: levar o filho no posto de saúde, fazer uma
entrega, uma cobrança, mostrar as novidades que estão ven-
dendo, um catálogo novo que chegou... Levam recados, trocam
“iguarias”, uma receita, uma novidade e, muitas vezes, uma
tristeza...
As mulheres inventam essas práticas de cuidado, cotidia-
namente. Uma rede que se compõe como campo de força às
intempéries da vida. Nesse cenário, essa composição é um
processo de ambulante. As mulheres recorrem a parentes, vi-
zinhos, migram, passam tempo fora com os filhos para tratar
de alguma doença ou para um exame médico no outro lado da
cidade. Isso tudo para se desviarem da desistência e da aceita-
ção de um modo de vida que insiste em ser difícil.
Dona Nair é uma senhora moradora do povoado há muitos
anos. Ela tem uma vida simples. Está construindo, aos poucos,
uma casa nova no mesmo terreno onde mora. Além de sua casa
atual e a que está construíndo, tem uma outra casa, de outros
familiares. Dona Nair vai à Unidade de Saúde frequentemen-
te. Conversamos com ela algumas vezes em que esteve por lá.
Seu esposo vivia da pescaria e hoje é aposentado. As dificulda-
des financeiras e os adoecimentos decorrentes da idade mais
avançada não aparentam ser o motivo do semblante triste e
quieto de dona Nair. Ela não teve filhos, criou todos os filhos de
seu esposo, que enviuvou cedo, uns ainda bem pequenos.
Seu Nelson e dona Nair formam um casal com história ins-
tigante e ao mesmo tempo incomum. Eles estão casados há

200 Gênero, desenvolvimento e território

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uns 30 anos, mas, como já dito, não tiveram filhos juntos. Seu
Nelson não gosta de ir ao médico e nem de tomar remédios,
principalmente depois que um médico afirmou que ele caiu
por causa da cachaça, e ele disse: “Eu nem bebo”. Dona Nair
também comentou que ele não bebe e que não gostou quando
o médico falou: “Velho que bebe dá nisso, cai”.
Seu Nelson estava na varanda, sentado em uma cadeira de
plástico branca, ao lado da casa. Ainda na varanda havia um
banco de madeira já bastante usado e uma cadeira de balanço
mais antiga. Ele começou a contar suas histórias, de quando
se acidentou e machucou a perna, mas que conseguiu se re-
cuperar bem. Comentou também que costumava pescar e que
pegava muito peixe, geralmente para consumo próprio, mas
sempre sobrava e então vendia ou trocava por carne.
Da janela avistei uma mesa pequena na sala, com dois tipos
de chapéus sobre ela, prontos para quando sair; de certo, cada
um serve para ocasiões diferentes. Ele puxou conversa, come-
çou a falar de sua outra esposa, com quem teve seus filhos e que
faleceu havia uns 30 anos. Ele convidou para entrar e mostrou
a foto dela no quadro. Um quadro antigo, daqueles feitos por
“viajantes” que passavam nas casas antigamente, oferecendo
esse serviço. É uma pintura de fotos estilo três por quatro, de
cada um, colocadas uma ao lado da outra, formando o casal.
A moldura do quadro é de ferro, trabalhada em formatos de
flores. Fiquei na varanda de frente para a porta e ele dizendo
que ainda sente muita falta de sua esposa, que às vezes passa a
mão na cama, no lugar dela, e gostaria que ela ainda estivesse
ali. Ele olhava para o quadro e acariciava. Um coração saudoso,
de um amor sem igual. Dona Nair ficou do lado de fora, quieta,
com a mão na boca e olhando para o chão, seu lenço na cabeça
cobrindo seus cabelos brancos mexia com o vento e seu olhar
não parava de fitar o chão.
Com isso, podemos pensar que a construção social da mas-
culinidade marca traços violentos nos homens, que também

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passam por preconceitos e sofrimentos, tendo muitas vezes
que esconder sentimentos para afirmar-se como homens. No
entanto, seu Nelson desconstrói esse modelo de “masculini-
dade” e demonstra um amor raro, que, mesmo depois de 30
anos e de ter casado novamente, não faz esquecer sua antiga
companheira.
Ficamos inquietas para conversar com dona Nair, peque-
ninha, de cabelos brancos e lenço na cabeça, rugas marcam o
tempo vivido em seu rosto. Por que será que ela não teve fi-
lhos? Como será essa relação do casal, tendo ela que viver com
o amor saudoso de seu Nelson? Foi ela quem criou os filhos de
seu Nelson desde pequenos, depois que sua primeira esposa
faleceu... Não voltamos para conversar com dona Nair, outros
acontecimentos foram tomando espaços no processo de pes-
quisa. Mesmo assim, podemos pensar sobre este enredo “bre-
ve”, mas com uma grande profundidade, principalmente sobre
o cotidiano de dona Nair em cuidar dos filhos de seu Nelson:
talvez ela tenha feito isso também por um grande amor.
Dona Nair está construindo uma nova casa em frente à sua
atual, a casa ainda no salpicado do cimento; ela se encosta na
porta e olha para seu Nelson na varanda de sua outra casa. Te-
mos essa foto registrada. Um olhar que sente algo, que diz uma
história, que revela uma esperança, de quem sabe um dia tam-
bém ser amada. A nova casa, “só sua”, parece ser uma forma
de resistência/re-existência de dona Nair: a construção de um
espaço próprio, que diz de um não assujeitamento. É um gesto
firme, porém discreto, que não faz alarde, após toda uma vida
de dedicação ao esposo e aos filhos dele, que ela mesma criou.
Em muitas outras casas que visitamos, percebe-se que há,
de uma forma ou de outra, um conflito entre os cuidados com a
saúde impostos pelo atendimento biomédico e os cuidados dos
moradores e as formas como lidam com tais imposições. Dona
Nair insiste que seu companheiro vá às consultas regularmen-
te. Do contrário, será ela quem vai ter de cuidar das dores e

202 Gênero, desenvolvimento e território

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arrumar remédios pela vizinhança para cuidar de seu Nelson.
Para dona Nair, fazer com que seu Nelson vá ao médico é re-
tirar um pouco do peso da responsabilidade de ter cuidar da
saúde de seu companheiro, além dos filhos e da própria saúde.
Um outro enredo que nos diz sobre o cotidiano de mulheres
e a prática do cuidado é o de dona Moça. Apesar de o nome
lembrar jovialidade, dona Moça está com os seus 91 anos. Aca-
mada, já não abre seus olhos, nem fecha sua boca para molhar-
-lhe de saliva. Seus dentes ficam escondidos por trás da fina ca-
mada dos seus lábios rígidos, sem expressar um sorriso, nem
sua dor. Seu corpo querendo morrer, penalizando de velhice, já
cansado de lidar.
A casa era grande, bem arejada. Na sala cinco mulheres, vi-
zinhas e filhas estavam conversando, cuidando e, de certa for-
ma, “velando” o penar de dona Moça, que está à espera “da sua
hora”. Quando chegamos com a agente de saúde, pensaram que
éramos enfermeiras. Elas estavam esperando uma visita de al-
guém da Unidade de Saúde havia alguns dias. Comentaram, de-
pois, que, como não éramos enfermeiras, “não poderiam dizer
nada” ou avaliar o “quadro” de saúde de dona Moça.
É fato que todos sabiam que não restava mais nada a fazer,
mas a esperança e os procedimentos de cuidar de quem está
acamado refletem a vontade de extinguir o sofrimento. Uma
“cura” para dona Moça, infelizmente, a humanidade não possui.
A morte faz parte da vida, e esse é um assunto que mexe com
os sentimentos humanos e que difere entre crenças religiosas,
ou para quem não as tem. O que a morte vem representar em
nossa sociedade é um assunto interessante e polêmico. Sabe-
mos que vamos morrer um dia, mas nunca estamos prepara-
dos. A morte provoca muito medo e insegurança. Certamente
esse assunto não é nosso foco, mas são questões que aparecem
no trabalho, e que ficam difíceis de serem varridas.
Há, nos dias de hoje, uma luta incansável, investimentos e
especulações em driblar o envelhecimento, cirurgias plásticas,

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 203

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cosméticos, remédios que prometem rejuvenescimento das
células... O envelhecimento é (e sempre será) parte de nossa
maneira de viver, tanto aceitando-o quanto rejeitando-o
incansavelmente. No contexto de dona Moça, sua maneira de
viver estava relacionada a mais uma aceitação do que rejeição de
seu processo de envelhecimento: o que não parecia aceitar é sua
morte lenta e penosa. Seu viver estava chegando ao fim, assim
como seu processo de morrer também. Sua pele pálida, enrolada
em lençóis brancos, suas rugas e expressões de sofrimento,
quarto fechado e seus resmungos são o que sobressaem de
lembrança desse processo. Como teria sido a história de dona
Moça? O que sofreu, o que lhe alegrou? Isso poderemos saber
por outros, mas não mais por ela mesma. O que as mulheres
presentes estavam fazendo era esperar que dona Moça desse
seu último suspiro e terminasse seu sofrimento.
A situação de dona Moça mexeu com as mulheres. Deixa-
ram suas rotinas nesse dia para confortar, apoiar e retribuir os
cuidados que circulam entre elas. Era a hora de se dispor para
dona Moça e seus familiares, “pode ser que precisem de algu-
ma coisa neste momento...”, dizia uma das mulheres. As mu-
lheres passaram a conversar sobre dona Moça, o que gostava
de fazer, relembrando alguns dos seus momentos, lamentando
sua futura ausência com uma certa aceitação, respeito e amor.
Em Escritos sobre a medicina, Georges Canguilhem (2005,
p. 25) comenta sobre as doenças e a saúde, e afirma que “o
sofrimento, a redução de uma atividade habitual escolhida ou
obrigada, o enfraquecimento orgânico, a degradação mental,
são constitutivos de um estado de mal”. E que tais característi-
cas desse mal “não são por si mesmo os atributos específicos
do que o médico hoje identifica como doença no exato momen-
to em que ele se esforça para fazer cessar o mal ou somente
atenuá-lo”.
Canguilhem discute a saúde em termos filosóficos. As ma-
neiras de pensar a saúde também mudaram conforme as

204 Gênero, desenvolvimento e território

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transformações sociais, econômicas e culturais foram ocor-
rendo. Comenta que “a ampliação histórica do espaço no qual
se exerce o controle administrativo da saúde dos indivíduos
desembocou, nos dias de hoje, em uma Organização Mundial
da Saúde” (CANGUILHEM, 2005, p. 43), que também elaborou
uma definição de saúde para poder delimitar seu domínio de
intervenção. Eis a famosa definição: “A Saúde é um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, não consistindo so-
mente na ausência de enfermidade ou doença”.
De acordo com as inúmeras e diversas definições, as dimen-
sões que englobam as possibilidades de uma vida saudável es-
tão sendo consideradas legalmente, embora o estado de com-
pletude apregoado seja inatingível. No entanto, as formas de
reinventar as maneiras de viver perante o modo de sociedade
atual, os imponderáveis e as ações humanas ficam de certa for-
ma desconsiderados, em atrito com uma forma de dominação
da biomedicina operante nos corpos ditos “enfermos” e nos di-
tos “saudáveis”, determinando as condições de vida, as formas
de adoecimentos e os modos de tratá-los.
A história mostra que não faltam definições de saúde. Das
mais completas e bem elaboradas às mais toscas e reducionis-
tas, a saúde continua sendo atravessada por inúmeros fatores
que diferem, dependendo do contexto social e cultural, assim
como também de momentos político-econômicos e de crises
financeiras. A questão que este trabalho propõe é pensar a
saúde em suas dimensões mais corriqueiras, momentâneas ou
duradouras, onde o andar do cotidiano, as mudanças de um
dia para o outro fazem esse cuidado da saúde mudar de vez
em quando.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 205

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 205 29/10/2015 16:20:00
MÚLTIPLAS DIMENSÕES DO CUIDADO: AS
MULHERES ENTRE A (DES)VITIMIZAÇÃO
E A PRODUÇÃO DE RESISTÊNCIAS

Durante os dois anos da pesquisa, foi possível conviver com


mulheres que se encontravam nesse processo de busca pela
saúde por meio do cuidado de seus familiares, tanto pela rede
de apoio entre amigos e vizinhança quanto pelo atendimento
institucionalizado. Como protagonistas, essas mulheres tecem
redes: são elas, principalmente, que fazem uso de alternativas
para buscar as melhores condições de vida. Um caminho nada
fácil e na maioria das vezes bastante árduo. É por isso que po-
tencializar essas ações de cuidado das mulheres, ao invés de
vê-las apenas como vítimas, traz um aspecto desafiador para
a pesquisa.
A noção de cuidado dentro da teoria feminista possui algu-
mas ambiguidades. Ao mesmo tempo em que buscamos poten-
cializar essa prática do cuidado, há inúmeros estudos feminis-
tas que veem essa prática do cuidado como vitimizadora das
mulheres. Não se trata de negar esse aspecto: há evidências de
que a maioria das atividades cotidianas que envolvem o cui-
dado é feita por mulheres, o que dificulta, por exemplo, seu
desenvolvimento profissional e muitas vezes suas realizações
pessoais.
As limitações são muitas, de fato, quando a prática do cui-
dado é socialmente pensada como responsabilidade exclusiva
das mulheres. No entanto, e é importante salientar, esse cui-
dado pode ser pensado como algo para além de práticas de-
preciativas, e sim como algo elaborado e articulado tática ou
estrategicamente pelas mulheres, envolvendo o contexto fami-
liar, delegando funções e tarefas para os membros da família,
espaço no qual ela também exerce poder.
Algumas autoras, como Carol Gilligan (1993), por exemplo,
tratam dessa questão do care como uma moral sofrida pelas

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mulheres, que as põe em situações de submissão e inferiori-
dade perante os homens. Marcela Lagarde (1997) diz que as
mulheres são “seres para os outros”, deixam sempre em se-
gundo plano as questões de realização pessoal. Afirma que a
maternidade é considerada como algo natural, como experi-
ência vital básica de todas as mulheres, “como centro positivo
de sua feminilidade e de sua ‘natureza’” (LAGARDE, 1997, p.
189). Neste trabalho, é importante considerar essas noções de
cuidado dentro da teoria feminista para trazer problematiza-
ções em relação ao campo de pesquisa estudado. Como essa
noção de care estaria presente no cotidiano das mulheres? Que
tipo de relação encontramos entre esse cuidado e as práticas
de saúde?
Susan Sherwin (1998), ao contrário, analisa a prática do
cuidado como instrumento potencializador das mulheres.
Essa autora afirma que, enquanto várias análises consideram
as mulheres como vítimas da opressão, elas mesmas não se
veem como meras vítimas, como passivas e insignificantes.
Mesmo dentro de um cenário opressor, as mulheres encon-
tram possibilidades de resistir e desafiar as forças que as
oprimem (SHERWIN, 1998, p. 3).
Sherwin faz uma importante observação: ela acredita que
os serviços de saúde têm grande potencial, tanto para apro-
fundar ou aliviar as formas de opressão como também para
piorar ou aliviar problemas de saúde específicos. Além disso,
Sherwin enfatiza que a biomedicina ignora o valor que a con-
tribuição das práticas “não médicas” têm a oferecer ao siste-
ma de saúde. E conclui que a medicina vem contribuindo em
muitos aspectos na “perpetuação” da opressão das mulheres
(SHERWIN, 1998, p. 4).
Anne-Marie Sohn (1991), em seu texto “Entre Duas Guer-
ras: os papéis femininos em França e na Inglaterra”, fala sobre
a “mãe e a Garçonne”, no qual relembra questões históricas
marcantes sobre os papéis que eram (e ainda são) atribuídos

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 207

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às mulheres ao longo dos anos na França e na Inglaterra no pe-
ríodo entre as duas guerras. O século 19 foi marcado por mui-
tas transformações,e uma delas foi a luta contra a mortalidade
infantil. Com isso, o discurso médico reforçou a pressão a favor
da mulher no lar, “culpabilizar as mães, e depois educá-las e
transformá-las em auxiliares do médico” (SOHN, 1991, p. 118).
Com isso, as novas responsabilidades que os médicos investem
nas mulheres passam a dificultar ainda mais a realização do
trabalho fora de casa. As mulheres que não podiam dispor de
tempo integral para a família eram vistas como “mães desna-
turadas”. O cenário era composto com o trabalho das mulheres
fora do lar. Na França e na Inglaterra, as mulheres tinham uma
profissão, ou, quando não, trabalhavam como operárias. O re-
torno da mulher ao lar levantou questões históricas que volta-
ram a demarcar espaços e responsabilidades entre homens e
mulheres – como, por exemplo, os espaços públicos, que pas-
saram a ser mais dos homens; e o espaço privado do lar, que
passou a pertencer mais às mulheres.
A relação do público versus privado repercute grandes
discussões no que se refere às mulheres. Historicamente, o
espaço privado vem sendo destinado como espaço exclusivo
das mulheres e o espaço público como sendo dos homens. No
entanto, a história não se dá dessa forma linear e definida. Se-
gundo Perrot (2005, p. 462), “certamente nem todo o público
é masculino no espaço da cidade onde circulam as mulheres”.
As donas de casa, segundo Perrot, tinham um tempo de tra-
balho considerável, pois a sociedade do século 19 não poderia
crescer e se reproduzir sem esse trabalho não contabilizado e
não remunerado da dona de casa. Os recursos monetários da
dona de casa provêm especialmente de atividades do setor de
serviços, como faxina, lavagem de roupas, entregas; e também
pequenos comércios e vendas em domicílio, atividades que re-
alizam carregando as crianças, ou deixando estas nas vilas e
pátios brincando com as demais crianças da vizinhança. Nes-

208 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 208 29/10/2015 16:20:00
sa época, as crianças ocupavam mais o espaço das ruas e brin-
cavam mais em conjunto enquanto as mães trabalhavam. Isso
constitui também numa ruptura na utilização do espaço, onde a
dona de casa tenta manter esse papel monetário que desempe-
nhou na sociedade tradicional, que é trazer dinheiro para casa.
Segundo Perrot (2006), a dona de casa de alguma forma se
desdobra na cidade do século 19. A maioria das tarefas implica
deslocamentos. A autora faz um estudo mais aprofundado so-
bre os “usos do espaço” e ressalta as diferenças de que o que
vale para a “mulher do povo” não vale para a “mulher burgue-
sa”. No que se refere aos níveis de classe, os usos sociais da
cidade se diferenciam claramente. As mulheres burguesas têm
um modo de circulação mais “rígido”, uma regulação mais forte
da relação interno/externo, pois constituem modelos de como
a mulher “deve ser”, onde o espaço privado está mais isolado
e valorizado.
No decorrer de nossas andanças pelo povoado, percebe-se
que as mulheres são atrizes importantes por terem uma liga-
ção a mais com o “cuidado da vida”. Ressaltamos as mulheres
por estarem mais presentes quando visitamos as famílias com
os agentes de saúde. Nas visitas são as mulheres, na maioria
das vezes, que ficam em casa, na lida dos afazeres domésticos
e no cuidado dos filhos.
Algumas histórias de mulheres nos chamam a atenção. Elas
se tornam imagens descritas, provocativas e instigantes sobre
o cotidiano de mulheres que ainda dedicam suas vidas ao cui-
dado dos filhos, da casa e do esposo. Como é a história de dona
Jovita. Uma senhora de aproximadamente 60 anos, casada com
seu Altran. Eles moram na rua principal do povoado, em uma
casa azul de frente para a rua alagada pela água das chuvas.
Por conta da água acumulada no bueiro perto da estrada e de
sua casa, criam-se muitos girinos, e em alguns dias ficou “tudo
infestado de sapo”, disse seu Altran, que chegou a “tirar de pá
os que conseguiu matar”.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 209

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Esse foi o início da conversa quando chegamos à sua casa.
Ele estava na rede da varanda escutando um rádio daqueles
antigos, pretos, com detalhes de madeira, o qual estava sobre
a mesa de seis lugares que ocupava o final da varanda. Quando
entramos, ele se levantou e ficou de pé. Depois de alguns mi-
nutos, dona Jovita chegou até a varanda, puxou uma cadeira e
sentou de lado com um dos braços na mesa e outro no escoro
da cadeira. Ela estava com a blusa molhada da lida de lavar
roupa no tanque. Cansada, apoiou seu rosto em uma de suas
mãos, com o cotovelo na mesa, e ficou olhando para nós, escu-
tando a agente de saúde e os “causos” contados por seu esposo.
Seu Altran é aposentado e, de pé, conversa e anda, agitado
e dizendo o que gosta de fazer, de andar de bicicleta, de ler os
jornais, do que participa e que, agora que se aposentou, pode
“curtir mais a vida”. E ela, desanimada na cadeira, parecendo
moribunda. Do jeito que sentou, ali mesmo ficou: seu corpo
parecia estar jogado, desistindo de se animar, cansado de lidar.
A lida de casa é algo que atormenta muitas mulheres – nem
todas, certamente, mas há algo de cansativo na lida das mulhe-
res, a mesmice, que oscila com o passar dos tempos. E o invisí-
vel vai aparecendo aos poucos, impresso no corpo, no jeito de
olhar, nas expressões de “tanto faz”, de desagrado, de “deixar
rolar”, de desinteresse.
A cena ficou registrada de tal forma que nos fez pensar nas
diferenças entre eles, na condição dela, de mulher que trabalha
em casa e cuida dos afazeres domésticos, onde não vai se apo-
sentar tão cedo, e ele, homem cheio de desejos e energia para
viver depois que se aposentou, fazendo gestos e contando suas
histórias. Ela sentada na cadeira, em silêncio, como aquela ex-
pressão de quem não está pensando e nem planejando nada,
sem ânimos e sem desejos. Com isso, ficou uma pergunta que
não pôde ser respondida naquele momento: quais seriam os
desejos de dona Jovita? A imagem está registrada, foi um mo-
mento rápido, quase despercebido, mas que nos fez pensar.

210 Gênero, desenvolvimento e território

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A historiadora brasileira Mary Del Priore escreve em seu
livro, História das mulheres no Brasil (2009), que a construção
da história das mulheres não é somente delas, ou do desejo
delas. Ao mesmo tempo, enfatiza as mulheres como sendo pra-
ticantes, como protagonistas desse processo sócio-histórico:

A história das mulheres não é só delas, é também aquela


da família, da criança, do trabalho, da mídia, da litera-
tura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da
violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura,
dos seus amores e dos seus sentimentos (DEL PRIORE,
2009, p. 7).

Essa é uma importante reflexão. Ela contempla as diferen-


tes formas de ser praticantes (CERTEAU, 1999). Ou melhor, ela
põe as mulheres como praticantes; enfatiza as relações sociais
e o contexto em que as mulheres estão inseridas. A constru-
ção da história das mulheres não pode ser baseada somente na
violência que sofrem, por exemplo, e sim nas diferentes formas
de reinventar modos de vida; de resistir; de driblar preconcei-
tos e moralismos que atormentam o corpo e a alma de muitas
mulheres, especialmente aquelas que carregam o “cuidado”
como sendo a principal tarefa esperada pelos outros – como,
por exemplo, a de “ser uma boa mãe”, o que difere em relação
ao contexto histórico, cultural, econômico e social nos quais
essa ação de cuidar é vivenciada.
Nesse sentido, este trabalho também é uma proposta de
potencializar a coletividade desenvolvida entre mulheres e a
capacidade de formar circuitos de cuidados e apoio em relação
à saúde de seus filhos e aos cuidados com a casa, com suas fa-
mílias e seus trabalhos. Nisso se inserem os cuidados de saúde
institucionalizados, bem como as diversas práticas comunitá-
rias de saúde que também compõem esse processo de cuidar.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 211

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No que concerne a este trabalho, é importante pensar em
como as mulheres reinventam suas rotinas no enfrentamento
de suas dificuldades. Sem intenção de pensar na vida de mu-
lheres em contraposição à dos homens, este artigo procura
descrever um percurso das mulheres, onde elas mesmas são
protagonistas, sem enquadrá-las como vítimas e nem passivas.
E é nessa perspectiva que nos debruçamos sobre o entendi-
mento do que é desenvolvimento regional.
As intenções deste trabalho são inspiradas pela perspectiva
de mulheres que escreveram sobre a história de forma contex-
tual, dinâmica e diversa, como Michelle Perrot. Em seu texto,
“A mulher popular rebelde”, publicado em 1988, traz uma in-
trigante maneira de pensar a construção da história das mu-
lheres. Ela diz: “no entanto, o que importa reencontrar são as
mulheres em ação, mulheres dotadas de vida, e não absolu-
tamente como autônomas, mas criando elas mesmas o movi-
mento da história” (PERROT, 2009, p. 187).
Pensar na construção da história é pensar em como os acon-
tecimentos ficam registrados. Para Michele Perrot, há muita
coisa que fica longe dos escritos, como, por exemplo, a história
das mulheres, operários e prisioneiros (PERROT, 2006). Nes-
se sentido, não se trata de “dar a voz” aos supostos excluídos,
mas problematizar tais acontecimentos e seu “pano de fundo”
sócio-histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto regional no qual a pesquisa foi realizada e todo


o processo de trabalho de campo nos remete a muitas refle-
xões. O cotidiano das mulheres do povoado de Areia Branca
passa por constantes transformações, de inúmeras maneiras:
de um lado porque, embora tenha uma aparente “mesmice”,
apresenta-se como algo dinâmico e surpreendente nesse con-

212 Gênero, desenvolvimento e território

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texto de expansão urbana; de outro, aponta as consequências
desse desenvolvimento regional, o qual não está ocorrendo em
parceria com a dinâmica de funcionamento da população local,
produzindo inúmeros desafios para as mulheres, inclusive o
cuidado em saúde.
Tais aspectos são próprios de processos de desenvolvimen-
to que fazem promessas de progresso com base em uma racio-
nalidade instrumental, defendida pelo mercado e pelo Estado,
sem levar em conta as necessidades, desejos, tradições e valo-
res das populações atingidas por esses projetos. Nesse contex-
to, no qual se insere a grande maioria dos projetos contempo-
râneos de urbanização e expansão das cidades, é comum assis-
tirmos à degeneração crescente da qualidade de vida, tanto em
nível público quanto privado, a destruição da natureza, a de-
vastação das tradições, a degradação das relações sociais e um
conjunto de prejuízos materiais e simbólicos. Em paralelo às
grandes obras que caracterizam projetos de urbanização das
cidades, tem-se como saldo sociedades marcadas por profun-
das desigualdades, que não compartilha democraticamente os
ganhos que esses projetos instauram, em termos de acessos
aos benefícios socioeconômicos e aos dispositivos de exercício
de poder.
No processo da pesquisa que desenvolvemos em Areia
Branca, a perspectiva etnográfica contribuiu para adentrarmos
no cotidiano do povoado e, em especial, na vida das mulheres,
nos quais suas práticas de resistência se apresentam como
algo inerte, quando vistos a “olho nu”, mas que se revelam po-
tentes: vivenciando e participando da rotina local, percebemos
os impactos do propalado “progresso” em uma área almejada
para ser o foco de grandes investimentos imobiliários, turísti-
cos e comerciais da cidade, sobre os modos de existir da popu-
lação local e os modos como as pessoas, e de modo particular
as mulheres, criam e recriam seu cotidiano, entre a mudança
e a permanência de práticas sociais, culturais e comunitárias.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 213

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 213 29/10/2015 16:20:01
Nesse contexto de mudanças locais, familiares e históri-
cas, existem muitos encantos e desencantos que permeiam os
enredos das histórias que conhecemos na área. Entremeados
com histórias de vida, os relatos vão descrevendo as formas
de funcionamento do povoado e as transformações pelas quais
ele vem passando ao longo dos anos, especialmente nos mo-
mentos mais críticos da implantação dos projetos de expansão
urbana da região. Essa é uma área que se tornou alvo precioso
de investidores, pois geograficamente a cidade não tem mais
para onde se estender, exceto para o sul, onde ficam antigos
povoados de pescadores e pequenos agricultores e as praias,
antes pouco frequentadas.
O processo de pesquisa e o papel do pesquisador foram al-
vos de análises e afetações durante todos os momentos. Havia
muitas expectativas, por parte das famílias visitadas, de que
pudéssemos resolver seus problemas – o que revela, por um
lado, a magnitude e a complexidade dessas questões, e, por
outro, a ausência de espaços institucionais com dispositivos
capazes de encaminhar a solução desses problemas e de po-
tencializar iniciativas que possam fazer o enfrentamento ne-
cessário, sobretudo direcionado ao Estado, a quem, entre ou-
tros atores sociais, cumpre fazer cumprir um Plano Diretor.28
Esperamos que este artigo possa despertar questões sobre
o tipo de desenvolvimento regional que realmente ocorre e o
que desejaríamos que estivesse acontecendo. Não se trata de
ir contra o progresso e o desenvolvimento da cidade. Trata-se
de questionar de que forma esse processo vem ocorrendo e a

28 Em Aracaju há um processo longo e lento de revisão desse Plano Diretor na Câma-


ra de Vereadores. Formulado em 2000, foi entregue à Câmara de Vereadores em
10 de novembro de 2010, e desde então vem passando por leituras, modificações
e discussões na própria Câmara e em audiências públicas. Atualmente intitulado
“Plano de Desenvolvimento Urbano Sustentável”, inclui várias restrições à expan-
são da chamada Zona de Expansão Urbana e tem sido objeto de constantes debates
conflituosos, entre diversos atores sociais.

214 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 214 29/10/2015 16:20:01
quem está interessando. Se os problemas de saúde se agravam,
se a desigualdade social aumenta, então esse desenvolvimento
não está acontecendo de fato para atender aos interesses da
sociedade e, particularmente, da população que vive em Areia
Branca e nos povoados vizinhos. Como consta neste trabalho,
as mulheres estão sempre presentes, lutando cotidianamente
por melhores condições de vida. Acreditamos, assim, que um
desenvolvimento sustentável somente se efetivaria se as me-
lhorias pelas quais os moradores esperam e lutam estivessem
se tornando realidade.
Para esse momento, os enredos como os de dona Jovita,
das “meninas-moças”, de dona Nair, de Ceiça, de Bia e de dona
Moça nos fazem pensar nas práticas cotidianas de cuidado
com a saúde e dos processos de adoecimento nesse cenário de
mudanças. A solidão e a tristeza, a falta de diversão e educação,
as diferenças de trabalho entre homens e mulheres, a morte...
Tudo faz parte do cuidado à saúde, os quais não são considera-
dos plenamente pelo atendimento institucionalizado na rede
de saúde. A busca incessante por melhores condições de vida
ultrapassa e foge dos trâmites institucionais, e é por esse cami-
nho que o pesquisar se faz presente, nesse entremeio, por mais
corriqueiras e indiferentes que as práticas cotidianas possam
aparecer, mas que demarcam o funcionamento da vida social,
as regras, os enfrentamentos e as resistências.

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Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 215

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GÊNERO, POBREZA E QUESTÕES DA
ADOÇÃO: OS IMPACTOS SOCIAIS DA LEI
Nº 12.010/2009 NA VIDA DE MULHERES
NA CIDADE DE NITERÓI/RJ
Maria Izabel Valença Barros
Nívia Valença Barros
Rita de Cássia Santos Freitas

INTRODUÇÃO: A CONVIVÊNCIA FAMILIAR E


COMUNITÁRIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES
E A ADOÇÃO – ALGUMAS REFLEXÕES

Eu quero morar com minha mãe e ter uma casa para eu


poder cuidar da minha mãe e ela ficar boa logo. Eu não
quero uma família nova (M. E.).29

I
niciamos este artigo com a fala de uma criança acolhida em
uma das instituições do município de Niterói, Estado do
Rio de Janeiro, a cujo depoimento tivemos acesso em uma
das audiências concentradas, onde o juiz a questiona sobre o
fato de ter uma nova família. A essa resposta – emblemática
ao demonstrar o desejo da criança de ficar em sua família de
origem –, o juiz a questiona se realmente queria continuar com
a mãe, usuária de crack e moradora de rua. A segunda resposta

29 Fala de uma criança acolhida em uma das instituições de acolhimento de Niterói, a


cujo depoimento tivemos acesso no âmbito da pesquisa “Adoção: os impactos sociais
da Lei nº 12.010/2009 na vida de mulheres pobres na cidade de Niterói”, desenvol-
vida no âmbito do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social, da Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação da professora Rita Freitas.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 219

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da criança também é significativa: ela quer continuar com a
mãe, sim, mas pede ajuda para ter uma casa e apoio para a mãe
poder se tratar. Em última instância, essa criança demanda o
funcionamento da rede de proteção à criança. E, mais espe-
cificamente, ela faz referência a uma das principais questões
referente a essa seara: o direito de que a pobreza não seja con-
dição para que uma família perca seu poder familiar. Entende-
mos que, quando a rede de proteção mais próxima falha, a rede
secundária (institucional, pública) não tem o direito de falhar.
O objetivo do artigo é analisar, na vida das mulheres pobres
na cidade de Niterói, os aspectos jurídicos e sociais da nova
Lei nº 12.010/2009, que trata sobre a Convivência Familiar
e Comunitária para crianças e adolescentes, mais conhecida
como a “Lei da Adoção”. Cumpre ressaltar que consideramos
fundamental acentuar que todo ordenamento jurídico tem por
intenção dialogar com a realidade histórico-social; nesse sen-
tido, faz-se necessário, para elaboração desta análise, um estu-
do interdisciplinar, onde a perspectiva social seja estudada em
relação com a jurídica.
Nesse contexto, a análise desenvolvida mostra-se de grande
relevância, pois reflete sobre os desdobramentos de uma nova
legislação. Como se trata de uma norma jurídica recente que
visa mudar uma estrutura preexistente, pouco se sabe sobre
seus aspectos práticos na realidade cotidiana, e suas resultan-
tes ainda são preliminares.
É interessante observar a importância deste estudo ao ana-
lisar uma lei nacional no contexto local, ou seja, procuramos
compreender os efeitos que essa lei pode ter no cotidiano de
mulheres pobres na cidade de Niterói. Ao incidir sobre todos,
as leis e políticas públicas têm efeitos diferenciados na vida da
população que atingem, o que terá consequências no desenvol-
vimento local. As famílias hoje ocupam um lugar de destaque

220 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 220 29/10/2015 16:20:01
nas políticas públicas no Brasil.30 Mas é fundamental que tais
políticas atuem no processo de fortalecimento e de proteção a
essa família, e não como uma forma de controle e de exigências
que essas famílias não têm condições de cumprir. O objetivo
das políticas em relação à família deveria ser o de dar condi-
ções de uma efetiva participação cidadã para estas (PEREIRA,
2006). O mesmo raciocínio aparece quando nos debruçamos
sobre essa lei.
Quando falamos em famílias, por conta de históricas rela-
ções de gênero presentes em nossa sociedade, é comum a as-
sociação com as mulheres. Ao discorrer sobre a convivência
familiar, a retirada do poder familiar e a adoção propriamente
dita, a Lei nº 12.010/2009 prevê o apoio que a mulher deveria
ter31 durante a gravidez. Isso poderia atuar numa forma de em-
poderamento a essas mulheres e fortalecimento das famílias
(tomando por base a existência de uma efetiva ação interseto-
rial). Resta saber como isso vem se dando. Nesse sentido, este
artigo busca pensar os efeitos dessa lei, tomando como refe-
rência uma localidade específica, a cidade de Niterói.
Outrossim, destacam-se nesta análise alguns dos pontos
que consideramos negativos e positivos trazidos pela Lei nº
12.010/2009. As mudanças legislativas contribuem para que
se possa realizar uma reflexão sobre as inovações da legisla-
ção, verificando se de fato a nova lei trouxe um número maior
de melhorias ou não para nossa sociedade e ordenamento.
Niterói é uma cidade que possui uma rica história envolven-
do a área da infância e adolescência, tendo uma rede de prote-

30 Por exemplo, na saúde, temos a Estratégia de Saúde da Família. Já a política na-


cional de assistência social tem como eixo central exatamente a “centralidade na
família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e
projetos”.
31 Vale destacar que, numa perspectiva relacional que caracteriza as relações de gê-
nero, os homens também deveriam ser alvo desse apoio. Isso ratifica a visão de que
essa lei subentende a responsabilidade sobre as crianças como algo da alçada das
mulheres.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 221

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ção bastante estruturada e tida como representativa junto aos
estudiosos do tema. Segundo Siqueira (2014),32 vale ressaltar,
a título de informação sobre o município, que as famílias re-
sidentes na cidade de Niterói têm perfil de renda média no-
minal per capita de 5,87 salários mínimos, sendo que 69,8%
possuem domicílios próprios.
Segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), apresentados no boletim do
MDS, a caracterização demográfica da extrema pobreza está
representada no fato de que 1,9% do total da população mu-
nicipal e 36,2% dos extremamente pobres têm de zero a 17
anos. Dos 487.562 residentes no município, somente 9.068 se
encontraram em situação de extrema pobreza, ou seja, sobre-
vivendo com renda domiciliar per capita abaixo de R$ 70,00.
No que tange aos sujeitos analisados neste artigo – as mu-
lheres pobres –, Siqueira (2014) traz como contribuição dados
relevantes quando aponta o número total de pessoas extrema-
mente pobres correspondente a 9.068, sendo 4.974 mulheres,
ou seja, 54,9% da população.
Retomando a discussão sobre a rede de proteção social
da cidade, cabe dizer que ela é fruto do desenvolvimento de
grandes movimentações na área da criança e adolescente, bem
como na área da saúde e da violência contra as mulheres. Ana-
lisar o modo como essa lei vem sendo implementada no mu-
nicípio pode nos levar a reflexões mais profundas envolvendo
os diferentes atores desse processo e o modo como os direitos
dessas mulheres vem sendo garantidos ou não. Por isso, tece-
mos considerações acerca da relação famílias-gênero-mulhe-
res pobres em nossa cidade.

32 Dados oriundos da pesquisa de mestrado de Patrícia do Couto Siqueira intitulada


“Mulheres beneficiárias do PBF: analisando o município de Niterói”.

222 Gênero, desenvolvimento e território

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CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA ADOÇÃO
– DESTACANDO ALGUNS ASPECTOS LEGAIS

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é norma fun-


damental para o sistema de proteção à criança e ao adolescen-
te.33 Evitando um amplo resgate histórico sobre a temática de
adoção que não caberia neste texto, destacamos o ECA – sur-
gido a partir de grande movimentação social que percorreu o
país nos anos 1980 – como um marco para dar suporte e efi-
cácia ao atual processo de adoção, junto com as demais legis-
lações, como o Código Civil de 2002. Porém, quase todos os
dispositivos sobre o tema foram revogados após a entrada em
vigor da Lei nº 12.010/2009.34
Portanto, essa lei, juntamente com o ECA e a Constituição,
são, hoje em dia, os mais importantes mecanismos e instru-
mentos responsáveis em regular a adoção no Brasil. Esta apre-
senta-se com o objetivo de contribuir com um novo olhar so-
bre a convivência familiar e comunitária para crianças e ado-

33 Esse estatuto trouxe importantes medidas protetivas para crianças e adolescentes,


sendo um grande avanço não só jurídico, mas também em termos de políticas pú-
blicas. Segundo Barros (2005), o ECA não é apenas fundamento para o sistema de
proteção social; é um projeto de sociedade que se pauta na cidadania para todos,
dirigida a crianças e adolescentes protagonistas, como sujeitos sociais de direitos.
Barros (2005) explica ainda que a proteção social definida no ECA é considerada
integral por seu caráter abrangente, que inclui implicações sociais as quais com-
preendem os níveis de sociabilidade primária e secundária, de forma a integrar a
família, a comunidade, a sociedade – incluindo toda a rede social – e o Estado.
34 Destaca-se ainda que o conceito de adoção não é definido por nenhuma das legis-
lações que tratam sobre o tema (ECA, Código Civil, Constituição Federal e a Lei nº
12.010/2009); todas estas dispõem apenas sobre os requisitos da adoção, bem
como seus procedimentos, deixando de dar significado para tal instituto. Diante de
tais alterações e revogações do Código Civil de 2002, no que tange o tema adoção,
é possível verificar que este não mais possui um capítulo regulando o assunto, e
sim passa a ter apenas dois artigos se tornando um complemento do Estatuto da
Criança e Adolescente, sendo que ambos obedecem, agora, ao que dispõe a nova
legislação.

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lescentes e, principalmente, para o processo de adoção. Com
base nela, enfatizou-se nacionalmente as crianças em situação
de abandono ou que são consideradas “institucionalizadas”
por estarem em entidades de acolhimento, ressaltando-se,
muitas vezes, de forma a-histórica e descontextualizada, a ne-
cessidade e o direito de crianças e adolescentes conviverem e
pertencerem a uma família, o que poderia ser, teoricamente,
concretizado por meio do processo de adoção que viabilizaria
o direito dessa criança ou adolescente a ter um lar.
É evidente que o advento da Lei nº 12.010/2009 trouxe mu-
danças significativas para nossa sociedade no âmbito da adoção.
Porém, nem sempre as mudanças consistem apenas em pontos
positivos e, da mesma maneira, tais mudanças podem enfren-
tar obstáculos em solucionar determinados problemas crôni-
cos já existentes, bem como também trazer novas questões. Em
primeiro lugar, destacamos, como uma mudança importante, o
fato de a lei ter criado o prazo máximo de dois anos de per-
manência de crianças e adolescentes em abrigos, obrigando os
juízes a justificar, a cada seis meses, a permanência nessas ins-
tituições (Artigo 19, §§ 1º e 2º da Lei nº 12.010/2009). Depois
desse prazo de dois anos, não sendo possível a reintegração fa-
miliar da criança e do adolescente, estes entrariam no Cadastro
Nacional e só permaneceriam em instituição de acolhimento
quando não fosse possível a adoção.
Uma das principais alterações nessa legislação e tida como
das mais positivas refere-se à obrigatoriedade à assistência
psicológica às gestantes e às mães nos períodos pré e pós-na-
tal, inclusive às que manifestam interesse em entregar os seus
filhos para a adoção:

Incumbe ao poder público proporcionar assistência psi-


cológica à gestante e à mãe, no período pré e pós-natal,
inclusive como forma de prevenir ou minorar as con-

224 Gênero, desenvolvimento e território

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sequências do estado puerperal (Art 8º, § 4º da Lei nº
12.010/2009).

Além disso, a lei define que o adotado tem o direito de


conhecer a sua origem biológica e de obter acesso irrestri-
to de adoção após completar 18 anos (Artigo 48 da Lei nº
12.010/2009). E, nesses aspectos, a inclusão de tais novidades
legislativas revitaliza o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), ampliando a aplicação de princípios, além de moder-
nizar, organizar e aumentar o sistema de proteção, constituin-
do-se em uma tentativa de aproximar a norma da realidade de
fato no Brasil, compreendendo-a na prática e não somente na
teoria.
Contudo, um aspecto negativo e alvo de críticas da nova nor-
ma está em não se ter assimilado a proposta original de criação
de uma lei específica sobre adoção, efetivando-se as mudanças
no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, que não trata
de nenhum outro tema com tanta profundidade. A opção do
legislador foi manter a unidade normativa, com inclusão de
artigos no ECA, conferindo densidade a esse diploma. Em ra-
zão de o instituto de adoção constituir-se, ele mesmo, sistema
jurídico autônomo, o mais adequado para alguns autores/le-
gisladores seria uma lei especial exclusivamente dedicada, que
tratasse inteiramente sobre o tema, tanto no que se refere à
adoção de crianças e adolescentes quanto à de maiores.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), exis-
tem hoje no Brasil cerca de 30 mil pretendentes à adoção e
4,7 mil crianças e adolescentes cadastrados e “aptos” a serem
adotados. São consideradas aptas as crianças e/ou adolescen-
tes que estão em instituição de acolhimento e de que já tenha
sido decretada a destituição de sua família “natural”. Além dis-
so, números da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB)
mostram que cerca de 80 mil crianças e adolescentes estão em
abrigos, e apenas 10% desse total podem ser adotados. Sobre

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 225

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esses dados, o vice-presidente da AMB35 alerta que o número
de 80 mil não é uma avaliação precisa, pois não existem esta-
tísticas oficiais sobre essas instituições.
Com a atual legislação, busca-se, também, uma mudança de
paradigma. No contexto brasileiro de adoções, é evidente a pre-
ferência do adotante pelo perfil de crianças brancas, do sexo
feminino e de até dois anos de idade. A Lei nº 12.010/2009
enfatiza, em seus parágrafos, o incentivo em se realizar as ado-
ções necessárias de crianças mais velhas, dos grupos de crian-
ças especiais, bem como as adoções inter-raciais.
Mesmo após o advento da “Lei Nacional de Adoção”, quem
defende as crescentes perdas do poder familiar de forma mais
ágil ressalta que os principais problemas, para quem quer ado-
tar uma criança ou um adolescente, continuam sendo a buro-
cracia e a falta de estrutura nas Varas da Infância e da Adoles-
cência para atender à demanda das famílias interessadas.
O texto da lei evidencia a preocupação voltada para a efe-
tividade do direito fundamental de convivência familiar den-
tro da família natural,36 inclusive fixando deveres jurídicos
no sentido de sua manutenção. Contudo, se postos de forma
inflexível e sem proporcionar condições para que sejam cum-
pridos, esses deveres podem ocasionar efeitos perversos, no
que tange às grandes desigualdades socioeconômicas em que
vivem muitas das famílias em nosso país. Vale destacar, em re-
lação às famílias pobres, o aumento não apenas das famílias
monoparentais, mas também de famílias chefiadas por mulhe-

35 Francisco de Oliveira Neto, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Bra-


sil para assuntos da Infância e da Juventude, segundo mesmo artigo. Disponível
em: <www.editoramagister.com>. Acesso em: 26 maio 2010.
36 A “família natural”, de acordo com a lei, compreende o ambiente ou espaço social
preenchido por pessoas ligadas entre si pela comunhão da identidade genética ou
por força do parentesco consanguíneo. É onde a história do indivíduo é contada
pela natureza que lhe ofereceu e impôs uma determinada origem biológica. Pode
nascer do casamento, da união estável ou do núcleo formado pelos ascendentes e
descendentes.

226 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 226 29/10/2015 16:20:01
res, que tendem a ser mais vulnerabilizadas (FREITAS; BRA-
GA; BARROS, 2010). Sendo assim, nesse cenário, caso não haja
políticas sociais atreladas à aplicação da nova lei, as possíveis
consequências desta poderão se desdobrar em um contexto de
culpabilização dessas mulheres – pobres e mães.
A família substituta,37 nesse contexto, somente se mostra
aceitável depois de esgotadas as possibilidades de conserva-
ção da família natural. Cabe ressaltar que foi introduzida pela
nova legislação a necessidade dos grupos de irmãos serem
postos sob adoção na mesma família substituta, salvo se for
comprovado risco de abuso ou qualquer outra situação que
justifique se excepcionar solução diversa. Nesse caso, o que se
pretende é não afastar o vínculo fraternal; sendo assim, inde-
pendentemente de os irmãos estarem na mesma família ou em
família diversa, que não percam os laços já estabelecidos ante-
riormente (Artigo 28, § 4º da Lei nº 12.010/2009).
No geral, a nova lei procura adotar o atual conceito de fa-
mília, que prioriza o laço afetivo, o comprometimento entre os
participantes, e não mais se preocupa com a forma “tradicio-
nal” de constituição de família, baseada apenas em laços con-
sanguíneos. Assim, em critérios adotivos, não mais importaria
de quem é o poder familiar,38 como a família é constituída, or-
ganizada, ou quantos são os seus integrantes (monoparental
ou pluriparental, por exemplo). No entanto, os termos utiliza-
dos que contrapõem “família natural” e “família substituta” po-
dem levar a interpretações dúbias, de forma a tratar a família
biológica como mais adequada, enquanto os pais adotivos se-

37 A família substituta, legalmente falando, é a que se forma, excepcionalmente, como


sucedâneo da família natural, quando esta se desfaz ou deixa de ser ambiente ade-
quado para a criança ou adolescente. No alcance definido pela lei, manifesta-se
por meio dos institutos da guarda, tutela ou adoção, após procedimento judicial
próprio.
38 O poder paternal ou poder familiar (antes denominado pátrio poder), no direito
brasileiro, traduz-se num conjunto de responsabilidades e direitos que envolvem a
relação entre pais e filhos.

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riam menos “naturais”. Tal olhar se contrapõe a alguns trechos
da própria lei, que valoriza os laços sociais na formação do pa-
rentesco.
Cabe ressaltar que, mesmo a lei procurando abarcar dife-
rentes expressões afetivas de famílias, a composição delas
diante de um contexto de destituição do poder familiar se dá,
em sua grande maioria, por mães onde a figura paterna pouco
se apresenta – por conta de uma realidade marcada por rela-
ções de gênero desiguais (SCOTT, 1991; LOURO, 2008) –, re-
caindo, assim, sobre as mulheres deveres e responsabilidades
do lar e de seus filhos. De acordo com o psicólogo da Vara da
Infância e Juventude de Niterói, ao ser perguntado sobre qual
o perfil das mulheres que perdem o poder familiar,

Elas sempre são mulheres pobres, muito pobres, na


maioria das vezes negras, mas não são todas. Geralmen-
te não têm maridos, ou seja, família mononuclear [sic],
elas que geram sua própria renda. Os pais, quando têm,
nunca aparecem. São mulheres com muitos filhos, de
diferentes parceiros, e às vezes abandonam seus filhos
porque o novo parceiro não quer o filho do outro casa-
mento, então às vezes ela deixa o filho na instituição, vai
lá visitar no início, depois o marido começa a implicar e
aí ela deixa de ir e some. Normalmente são mulheres de
mais ou menos uns 30 anos de idade.39

Evidentemente, a Lei nº 12.010/2009 não soluciona to-


das as questões no que se refere à adoção. Em determinados
aspectos, a nova lei se mostra omissa ou até mesmo ineficaz.
Continuam sem tratamento normativo questões urgentes
como a abertura legislativa para a adoção pela família homoa-

39 Entrevista realizada no dia 27 de junho de 2013.

228 Gênero, desenvolvimento e território

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fetiva,40 a adoção de embriões e outras questões de semelhante
interesse.
As mudanças introduzidas pela nova lei, com as adequa-
ções ao Estatuto da Criança e do Adolescente, visam a agilizar
a adoção no país e também a possibilitar o rápido retorno das
crianças que estejam em programa de acolhimento familiar ou
institucional. Isso, contudo, pode gerar um retorno a um am-
biente familiar ainda sem condições de receber essas crianças,
bem como uma “depreciação” das entidades de acolhimento,
mesmo aquelas que realizam um trabalho de qualidade.41
É nossa opinião que, mesmo ressaltando-se a importância
do incentivo as adoções, não se pode abrir mão de certas exi-
gências, que permitem ao Judiciário, por um lado, conhecer a
pessoa que quer adotar, saber de suas condições, refletir sobre
suas intenções e suas disponibilidades de fato para a concre-
tização de uma adoção.42 Para o atendimento dessas questões,
foi necessário que o legislador instituísse alguns procedimen-
tos, fazendo com que tais trâmites burocráticos necessários
conflitam com a ideia de agilização desejada por todos. Por ou-

40 Durante a tramitação do projeto de lei, por iniciativa da deputada Laura Carneiro


e outras intervenções, a deputada Tetê Bezerra refez o relatório, para incluir a
emenda referente à adoção por casais homoafetivos. E, no dia 20 de agosto de 2008,
a redação final aprovada pela Câmara dos Deputados excluiu peremptoriamente o
dispositivo que fazia menção à adoção de crianças e adolescentes por homossexuais
(VASCONCELOS, 2001). Contudo, cumpre ressaltar que, na pesquisa que estamos
desenvolvendo, até onde pudemos acompanhar, percebemos que na Vara da
Infância e Juventude de Niterói o juiz titular não impõe nenhum óbice em relação à
adoção por casais homoafetivos, normalmente sendo favorável e colaborando para
com eles.
41 Afinal, não se pode negar que, ainda que muitas instituições passem por precá-
rias situações, muitas vezes estar acolhido é uma das mais importantes formas de
proteção para as crianças e adolescentes. Podemos dizer que, mesmo para muitas
mulheres, mães, saber que o filho encontra-se abrigado pode muitas vezes signifi-
car saber que o filho está em segurança.
42 Não cabe discutir aqui, mas a questão do tráfico internacional de crianças é sem-
pre algo a ser levado em conta e que merece do setor público, principalmente do
Judiciário, a mais alta atenção.

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tro lado, é importante não perder a dimensão da necessidade
de se olhar para as famílias de origem, evitando que, por exem-
plo, a pobreza não esteja sendo o principal elemento motiva-
dor para a inserção dessas crianças e adolescentes em abrigos
ou para adoção – dimensão enfatizada no ECA.

A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA
E A PERDA DO PODER FAMILIAR

Nesse momento, cabem algumas reflexões acerca do fenô-


meno da criminalização da pobreza, das relações de gênero
e familiares. O que buscamos discutir neste artigo é a forma
como essas famílias – especialmente as mulheres – vêm sen-
do negligenciadas e mesmo violentadas. É o próprio ECA – e a
Constituição também – que diz que cuidar das crianças é dever
da família, mas também do Estado e da Sociedade – e não de-
veria existir uma hierarquização nesse dever.
Durante longo período na história do país, tem sido cons-
tante um processo excludente da população pobre e de suas
famílias do cenário social e uma ênfase nos processos de cri-
minalização da pobreza. A preocupação, nesse contexto, da
culpabilização das famílias envolvidas em casos de perda do
poder familiar não é uma preocupação destituída de sentidos,
pois, não tão raramente, relatam-se casos na mídia sobre des-
tituição do poder familiar em lares pobres ou não considera-
dos adequados para os padrões de quem analisa tais casos.
Entendemos que, na realidade local, homens e mulheres vi-
vem suas vidas e constróem estratégias de enfrentamento à
pobreza, mas também de proteção mútua. A capacidade de es-
tabelecer formas de reorganização social a partir do local en-
volve a possibilidade de essas pessoas exercerem seus papéis
de cidadãos e cidadãs e de controlarem seus destinos. Ouvir
esses atores pode – e deve – ser um mecanismo fundamental

230 Gênero, desenvolvimento e território

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para as políticas públicas no sentido de contribuir para a cons-
trução de políticas adequadas ao cenário local. E, nesse ponto,
a dimensão do gênero (em sua intersecionalidade) necessa-
riamente tem de estar presente. Nesse caso, especificamente
voltar o olhar para essa questão – a destituição do poder fami-
liar que atinge prioritariamente mulheres pobres – tem como
pressuposto que a escuta atenta dessas mulheres, bem como
a construção de mecanismos que façam essa lei funcionar de
acordo com essa escuta, pode apontar para o empoderamento
dessas mulheres pobres.
Mesmo que o Estatuto da Criança e do Adolescente preco-
nize que não se pode retirar o poder familiar com o argumento
de pobreza, o que se vê é que a pobreza e o afastamento de
famílias e de seus filhos tem ainda acontecido – e é o que temos
percebido também pela observação que estamos realizando
na cidade de Niterói (mesmo sendo essa uma cidade que de-
senvolveu uma importante história na luta contra a violação
de direitos de crianças e adolescentes). Ainda assim, tem sido a
população pobre que ainda perde a guarda de seus filhos. Mas
vale refletir: De que negligência está se falando?
As representações sociais da população pobre como “clas-
se perigosa” expressam a singularidade dos espaços sociais no
processo de reprodução social, espaço onde a miséria e a au-
sência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas da
negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de so-
brevivência desenvolvidas. No âmbito familiar, principalmente
as mulheres43 é que são denunciadas como mães negligentes.
Dessa forma, um grande contingente de famílias brasileiras é
liderado por mulheres que, além do papel maternal, assumem
o de provedoras (MESQUITA et. al., 2010). Concordamos com
as autoras acerca da necessidade de se refletir sobre a negli-

43 É raro o caso de uma denúncia de negligência, por exemplo, envolvendo homens


(BARROS, 2005).

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gência que essas famílias – normalmente excluídas de um pa-
drão mínimo de proteção social – sofrem em seu dia a dia. Em
vez de negligentes, poderíamos falar, isso sim, de famílias – de
mulheres mães – negligenciadas.

DE QUE FAMÍLIAS ESTAMOS FALANDO?

Mas se faz necessário apresentar o conceito de família – na


verdade, famílias, no plural, que adotamos, pois entendemos
famílias “enquanto um processo de articulação de diferentes
trajetórias de vida, que possuem um caminhar conjunto e a
vivência de relações íntimas, um processo que se constrói a
partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade”
(FREITAS, 2000, p. 8). Concordamos com a linha argumenta-
tiva de autoras como Sarti ao entender as famílias não como
um núcleo, mas como uma rede, uma rede que se ramifica e
envolve a gama de parentes e vizinhos (SARTI, 2003). E não es-
quecemos a advertência de Fonseca (1995, p. 38, grifo nosso):

A família moderna não deveria ser pensada [...] como


meta a alcançar; sua ausência não significa um vácuo
cultural. A circulação de crianças é o exemplo de uma di-
nâmica alternativa; é indicação de formas familiares em
grupos populares que, longe de serem uma etapa anterior
à família moderna, vêm crescendo e se consolidando ao
mesmo tempo que ela.

A circulação de crianças é um fenômeno fundamental que


não podemos deixar de levar em conta ao pensarmos na ado-
ção e na vida das mulheres pobres.

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Entendemos famílias como uma das estruturas de proteção
social.44 Esta deve ser vista aqui não apenas como políticas pú-
blicas e serviços de assistência social, mas também como prá-
ticas protecionistas exercidas pela rede familiar e comunitá-
ria45 – onde as famílias se inserem. Nesse sentido, como muito
bem destacado por Freitas (2002), “o recurso a uma rede de
solidariedade tornou-se uma prática fundamental de sobrevi-
vência em nossas classes populares”.
Atualmente, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
226, prevê que, além do casamento, a união estável entre ho-
mem e mulher são formas de constituição familiar, para efeito
de proteção do Estado. E ainda a mesma legislação entende
como entidade familiar a comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes, ou seja, caindo por terra o antigo
princípio existente do pátrio poder (poder do pai). No âmbito
das relações de gênero, essa dimensão traz importantes efei-
tos na vida de homens e mulheres.

44 Ainda que saiba que esse espaço pode também ser o da desproteção e violência.
Para pensar a família brasileira, é importante entender que esta – seguindo uma
trajetória internacional – também mudou. As crises do capitalismo, a reestrutura-
ção do trabalho, a entrada cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho;
o aumento do nível de escolaridade, a diminuição do índice de fecundidade e o
adiamento do primeiro filho; o aumento da expectativa de vida (principalmente
para as mulheres), o aumento do número de famílias monoparentais, de pessoas
vivendo sozinhas e se casando mais tarde são realidades que marcam nossa socie-
dade (IBGE, 2010). Se as famílias mais vulneráveis são aquelas onde existe a pre-
sença das crianças (LAVINAS, 2006), não podemos esquecer que estas ficam nor-
malmente com suas mães. Além disso, para alguns estudiosos, a presença feminina
contribui para a redução da vulnerabilidade em que vivem os que estão sob seus
cuidados: “As famílias monoparentais feminina e pobreza acabam, de um lado, por
construir outro estigma, o de que as mulheres são menos ‘capazes’ para cuidar de
suas famílias ou para administrá-las sem um homem. De outro, é apontado que
as mulheres, hoje, ganharam maior independência e, portanto, podem assumir
suas famílias. No entanto, enquanto houver a associação maciça entre monopa-
rentalidade e pobreza [...] acaba por fortalecer-se muito mais a adjetivação dessas
famílias como vulneráveis ou de risco do que como potencialmente autônomas”
(FALLER VITALE, 2002, p. 51).
45 Mesquita (2012) e Costa (2002).

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Em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu
artigo 25, entende-se por família natural a comunidade for-
mada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes, e por
família extensa ou ampliada aquela que se estende para além
da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por
parentes próximos com os quais a criança ou adolescente con-
vive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.
Sendo assim, acompanhando o que as legislações brasileiras
hoje conceituam como famílias, percebe-se que, além de laços
biológicos e consanguíneos, a afinidade por meio dos víncu-
los de afetos também são formas de construção de entidades
familiares, ultrapassando muitas vezes as relações de paren-
tesco. Nesse caso, como exemplo pode-se utilizar a adoção por
casais homoafetivos se tornando cada vez mais comum.
Nesse momento, uma reflexão acerca das relações de gêne-
ro se faz presente. Partilhamos da definição seminal veiculada
por Joan Scott (1991), de que as relações de gênero são cons-
truídas socialmente e trazem embutidas em si as relações de
poder hierarquizadas entre mulheres e homens.
Ocorre que, quando se fala em família, principalmente no
tocante à proteção social, é inevitável não associar a figu-
ra materna, pois ela historicamente sempre foi vista como a
grande responsável pela função do cuidado, da proteção, vis-
to que tanto no estabelecimento como na implementação das
políticas sociais dirigidas às famílias o contato dessas com a
sociedade e com o Estado se dá em grande parte pela figura
da mulher (CARLOTO, 2006). Assim sendo, como muito bem
discutido por Suarez e Libardoni (2007),

As políticas públicas sociais dirigidas a esse público


tomam como pressuposto a presença de alguém em
casa para cuidar daqueles, e esse lugar é “naturalmen-
te” identificado com a mulher. Dessa forma, as políticas
veem continuamente reafirmando os papéis de gênero,

234 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 234 29/10/2015 16:20:02
contribuindo pouco para a transformação destes. O ad-
vento de muitas dessas políticas efetivamente vem ao
encontro dos desejos de muitas mulheres. Porém, não
podemos deixar de enunciar como esse fato recoloca
a responsabilidade por esses cuidados nas mãos das
mulheres – desresponsabilizando os homens (SUAREZ;
LIBARDONI, 2007, s./p.).

Podemos dizer que, na verdade, as atuais políticas vêm de-


senvolvendo menos uma política de gênero (onde deveria se
levar em conta não apenas as relações de gênero, mas também
o objetivo de modificar essas relações), mas políticas perpas-
sadas por essas relações – o que faz com que sejam naturaliza-
dos os papéis de homens e mulheres.
Na tentativa de trazer equilíbrio para os papéis de gênero, o
artigo 226 da Constituição Federal de 1988, em seu § 5º, prevê
que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal sejam
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. Ocorre que, na
prática, a lei acima mencionada está bem distante da realida-
de, contribuindo pouco para a luta por igualdade de direitos
entre homens e mulheres, pois as relações de gênero ainda são
extremamente desiguais e desequilibradas, sendo certo que
a mulher, na sociedade conjugal, algumas vezes possui muito
mais deveres do que direitos em relação ao homem.
Nesse sentido, diante das desigualdades de gênero46 exis-
tentes, bem como diante de todas as responsabilidades que são
imputadas às mulheres em todos os momentos, estas criam es-

46 Para Joan Scott (1995), em seu artigo “Gênero: uma categoria útil de análise his-
tórica”, gênero pode ser entendido como uma percepção sobre as diferenças se-
xuais, havendo uma relação inseparável entre o saber e o poder. Gênero estaria
sobreposto a relação de poder, sendo uma primeira forma de dar sentido a essas
relações. Porém o que interessa para a autora são as formas como se constroem
significados culturais para essas diferenças sexuais, dando sentido para elas e con-
sequentemente posicionando-as dentro de relações hierárquicas.

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tratégias de vida e sobrevivência para a condução de suas vi-
das e da vida daqueles pelos quais elas são responsabilizadas,
sejam eles marido, filhos e parentes. Essas estratégias variam
desde o delegar suas atividades a outras ou sobrecarregar as
próprias atividades, ambos com o propósito da manutenção de
sua família.

A “ADOÇÃO À BRASILEIRA”
E O CHAMADO “ABANDONO”

A chamada “adoção à brasileira” é uma dessas estratégias.


Primeiramente, é preciso entender do que se trata essa estraté-
gia. Legalmente falando, a adoção à brasileira é um crime de fal-
sidade ideológica, com pena de prisão, pois a adoção é realizada
de forma irregular, sem o conhecimento do Estado. O interessa-
do em adotar registra criança de outrem sem nenhuma autori-
zação legal, ou seja, os pais adotivos providenciam uma certidão
de nascimento, sem nenhuma intervenção da Vara da Infância e
Juventude, como se fossem eles mesmos os pais biológicos.
Ocorre que, no Brasil, a prática da adoção à brasileira entre
as camadas mais pobres da população é superior47 à adoção le-
gal, visto que a figura do juiz está muito distante dessas classes,
pois representam muitas vezes mais uma forma de punição do
que de garantias de direito. Tal cenário é ilustrado por Fonse-
ca (1996): podemos supor que, evitando os serviços públicos,
essas mães pobres afastavam-se das imagens estereotipadas,
produzidas pela imprensa brasileira, de “mães abandonantes”.
É importante destacar que, mesmo na ilegalidade, a adoção à
brasileira tem sido uma forma de reorganização familiar cultu-

47 Cláudia Fonseca (Circulação de Crianças). Entrevista com um juiz de instrução,


citado na revista IstoÉ, 26 ago. 1990. Ver também: ABREU, Domingos. No bico da
cegonha.

236 Gênero, desenvolvimento e território

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ral e historicamente disseminada em nossa sociedade, caracte-
rizando-se como um processo de longa duração.
Dessa forma, Fonseca (1996) propõe a reflexão sobre o
termo “circulação de criança”, definido como a transferência
de uma criança entre uma família e outra, seja sob a forma de
guarda temporária ou de adoção propriamente dita. Essa rea-
lidade de “transferência de uma criança entre uma família ou
outra” é tão antiga que Venâncio (1997) narra que, no mundo
colonial, no espaço geográfico do campo, raramente ocorriam
abandonos de crianças, pois estes acabam se tornando filhos
de criação ou agregados por outras famílias com melhores
condições. O autor ressalta ainda que o termo criança abando-
nada é atual, visto que estes antigamente eram chamados de
enjeitados ou expostos.
Fonseca (1996) afirma que, ainda que a adoção à brasileira
também apague a mãe biológica do registro oficial, ela lhe con-
fere uma margem de manobra muito mais ampla: não apenas
ela desempenha um papel ativo na escolha dos pais adotivos,
como também pode acompanhar, de longe, o desenrolar de sua
vida. Porém, há de se refletir se a adoção, seja ela à brasileira
ou legal, é a única estratégia a ser tomada.
É comum, nos dias de hoje, principalmente entre uma rea-
lidade social de bairros menos abastados, parentes e vizinhos
se relacionarem, frequentarem um a casa do outro quase que
diariamente e se ajudarem mutuamente. Nesse sentido, mui-
tas vezes essa ajuda vai desde o empréstimo do açúcar até o
cuidado dos filhos uns dos outros. Essa circulação não importa
em uma adoção necessariamente, mas é uma alternativa para
mães que trabalham, por exemplo, de deixarem seus filhos
com pessoas de confiança, sem precisarem recorrer a creches
ou babás – realidade distante das mulheres que aqui se abor-
da, pertencentes a estratos de classe pobres. Isso se dá pelo
fato de faltarem creches, mecanismos públicos de proteção so-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 237

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 237 29/10/2015 16:20:02
cial que efetivamente apoiassem essa mulher e protegessem
essas crianças.48
Essa circulação de crianças reflete-se não só no aspecto fi-
nanceiro, em que a avó ou o avô, ou até mesmo a vizinha, se de-
dicam ao cuidado, alimentação, vestuário dessas crianças, ou
pelo fato de a família natural não possuir condições para assim
o fazer, ou ainda pelo fato de estarem passando por uma crise
familiar, divórcio, como também podem ocorrer por questões
de simples laços afetivos, identificações pessoais e carinho,
criando uma espécie de parentesco, sendo certo que nesses
casos não foi necessária uma adoção no sentido legal.
Ainda nesse sentido, a circulação de criança e até mesmo
de adolescente também reflete o aspecto cultural, visto que
em nossa cultura brasileira é comum o fato de recebermos em
nossa casa amigos e parentes, seja por dias, semanas, ou até
mesmo por temporada, como no caso, por exemplo, de um so-
brinho que precisa ir morar com a tia para estudar, para ficar
mais próximo da faculdade. Segundo Sarti (2003), o cuidar dos
filhos dos outros – muitas vezes, os próprios netos – faz com
que se mantenha “acesos” os vínculos de sangue, junto aos de
criação, atuando ambos na definição dos laços de parentesco,
o que vem atualizar um padrão de incorporação de agregados
o qual lembra aquela mesma família brasileira descrita por
Freyre (2005).
Costa (2002) utiliza a ideia de “maternidades transferidas”
referindo-se à estratégia que muitas mulheres se utilizam para
dividir, e muitas vezes delegar as atividades do dia a dia de seu
lar, para outras mulheres. Nesse diapasão, a autora permite

48 Porém não se pode deixar de destacar alguns aspectos negativos que a circulação
de criança pode trazer, como, por exemplo, em alguns casos, a sensação de aban-
dono que algumas crianças podem sentir em relação aos seus pais, ou o fato de
perderem a referência de quem são realmente seus pais, fato que pode ocorrer
quando a criança circula por várias famílias, além da sua, vivendo costumes, prin-
cípios e rotinas diferentes.

238 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 238 29/10/2015 16:20:02
ainda uma reflexão: mulheres que precisam sair para o merca-
do de trabalho transferem suas maternidades para mulheres
ainda mais pobres que elas, formando-se assim um grande ci-
clo, visto que essas que receberam a transferência da materni-
dade (sejam babás, ajudantes do lar etc.) necessitam também
deixar seus filhos com alguém (vizinhos, parentes) para saí-
rem para o trabalho. E, no fim desse ciclo, o que se encontra?
Formas de proteção ou a retirada do poder familiar?
O que temos percebido em nosso dia a dia é que, muitas ve-
zes, a estratégia de algumas mães pobres pode ser a alternati-
va de seus filhos estarem em abrigos, que não precisa necessa-
riamente ser um espaço da exclusão, visto que nesse espaço as
crianças terão escola, lazer, alimentação e – fundamental nos
dias de hoje – segurança. Nesse sentido, a necessidade de se
discutir as instituições de proteção à criança devem ser repen-
sadas, e um bom caminho seria, em nossa opinião, começar
por ouvir as famílias, especialmente as mulheres, responsáveis
– e responsabilizadas – pelo cuidado de nossas crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em toda a análise feita anteriormente, o instituto da adoção


não foi privilegiado – não pelo fato de não se concordar com tal
instituto; pelo contrário, mas pelo fato de entender que essa
não é a fórmula nem a última opção a ser tomada. Afinal, a en-
trega de um filho para adoção é algo na maioria das vezes bas-
tante sofrido, ficando demonstradas aqui formas e alternativas
possíveis para que esse não seja o único caminho – e também
que não necessariamente é uma forma de abandono.
Há de se pensar que, em muitos casos, a não judicialização
das relações sociais permite que se construam estratégias de
sobrevivência que podem se tornar alternativas importantes
para a consolidação de vínculos afetivos e construção de sujei-

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tos sociais mais felizes. Mais uma vez se faz importante dizer
que, com isso, não se enfatiza aqui de forma alguma o “jeitinho
brasileiro” de levar vantagem e desrespeitar normas legais que
atendam o interesse da coletividade, mas apontar as necessá-
rias singularidades que existem e devem ser reconhecidas.
Apontar para a necessidade de ações e práticas de prote-
ção à infância e adolescência, levando em conta as demandas
desses sujeitos e suas famílias é uma forma de avançar nesse
debate. A proteção social – em seu viés institucional – deve ser
pensada não como uma alternativa ou opção, mas como um
direito. Um direito que envolve as crianças e adolescentes, mas
também as suas famílias, especialmente suas mães. Desde a
infância, é imputado às mulheres o dever de serem mães, sen-
do dificilmente possível “escapar” desse destino. Esse peso e
responsabilidade muitas vezes se faz tão estruturante na vida
de algumas delas que as mulheres as quais, por alguma cir-
cunstância, não quiseram seguir esse caminho, rompendo com
a maternidade, são criminalizadas.
Por outro lado, algumas mulheres, ainda que optem pela
maternidade, em alguns casos não conseguem sentir o amor
incondicional – que muitas dizem sentir – por seus filhos e vi-
ver o chamado “mito do amor materno” (BADINTER, 1985).
Em razão disso, Motta (2001) alerta que não se pode apenas
se chocar com a irresponsabilidade das mães que abandonam
seus filhos: é preciso ir além, é necessário assumir a respon-
sabilidade pela situação do abandono dessas mulheres numa
realidade social da qual todos nós fazemos parte. E imprescin-
dível que a sociedade assuma o desconforto ao lidar com situa-
ções que expõem velhos mitos e ao recobrir as próprias imper-
feições como mães e pais meramente humanos, cujo amor nem
sempre é tão “natural”, automático, infinito ou incondicional.
Todos esses questionamentos, dúvidas e conflitos vivencia-
dos por essas mães se dão muitas vezes pelo fato de o papel do
cuidado com a família e com o filho ainda serem destinados a

240 Gênero, desenvolvimento e território

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elas, as mulheres. Esse cuidado da mulher para com sua famí-
lia, em muitos casos, é responsabilidade quase que exclusiva
dela, onde pouco se percebe a participação do homem nessa
realidade. Ou, quando presente a figura paterna nesse contex-
to, esta sempre se mostra em um cenário de “ajuda”, e nunca
de responsabilização. Nessa linha de raciocínio, por toda essa
responsabilidade que recai sobre a mulher e da forma como
esta fica exposta à maternidade, às cobranças e expectativas
que lhes são impostas, quando não cumpridas, faz dessa mu-
lher/mãe alvo de criminalização, sendo muitas vezes tachadas
como negligentes.
O que a sociedade cobra e espera de uma mãe é o cuidado
com excelência de seu(s) filhos(s). E, quando isso não ocorre,
por diversos fatores, sejam eles de cunho social ou pessoal –
lembrando que esta pesquisa trabalha com a perspectiva de
mulheres pobres –, esses são retirados de suas mães, de suas
famílias. A preocupação – profundamente válida – com as
crianças não pode nos fazer esquecer a subjetividade das mu-
lheres envolvidas. É preciso desconstruir a concepção de que
a responsabilidade do cuidado com os filhos e com a família
é exclusivamente da mãe, bem como a visão de que, quando
o pai cuida dos filhos, este é um superpai, enquanto a mulher
está apenas cumprindo suas obrigações.
E mais: é de suma importância que a sociedade tenha um
olhar mais acolhedor e menos julgador em relação às mulhe-
res que não conseguem vivenciar o suprassumo do “mito do
amor materno”, ou ainda por aquelas que não conseguem criar
seus filhos – o que é tachado pela mídia de “abandono” – en-
tregando-os para a adoção ou afins. Entender a subjetividade
que envolve cada uma, caso a caso, é um esforço necessário e
prudente para que essas mulheres não sejam tachadas como
“mães más” (LIMA, 2011).
A proposta deste escrito também se faz no sentido de dis-
cutir o que o Estado oferece como políticas públicas para es-

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sas mulheres – afinal, a retirada do filho de uma mãe, apenas
como uma medida de punição ou coação, sem a garantia de
direitos, mostra-se como atitude de um Estado apenas regu-
lador, sem preocupações com o bem-estar social. É necessário
refletir toda a subjetividade envolvida na vida de uma mulher
(sentimentos) na hora da retirada ou até mesmo entrega de
um filho para a doação, ou seja, para o Estado. Ainda que na
lei esteja previsto o apoio às mulheres no pré e pós-puerpé-
rio, o que temos assistido, na maioria das vezes, é a um Estado
que, sob a alegação de priorizar o atendimento ao bem-estar
das crianças e adolescentes, desconsidera a realidade local, as
vidas dessas mulheres e suas famílias, bem como o próprio de-
sejo das crianças.
Motta (2001) reflete no sentido de que, quando se fala em
adoção, pensa-se apenas nas angústias da criança e dos ado-
tantes, mas nunca das inquietudes da mãe biológica que en-
tregou seu filho para adoção (e mais ainda naquelas que não
deram os filhos, mas que estes foram retirados). Isso porque
essas são “mães abandonadas”, visto que a sociedade as põe
à margem, até mesmo de suas considerações pessoais. Sendo
assim, a autora alerta ainda que é preciso observar a situação
de abandono vivenciada por essas mulheres, principalmen-
te durante a maternidade, para então perceber que o ato do
“abandono do filho” apenas retrata a identidade de uma mãe
“abandonada desde a gestação”.
Importante tecer breves comentários quanto aos casos em
que a mulher decide entregar seu filho para a adoção, direito
esse assegurado às gestantes conforme disposto no parágrafo
único do artigo 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se-
gundo Walter Gomes,49 supervisor da Seção de Colocação em

49 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/24843-gestantes-que-dese-


jam-entregar-filho-em-adocao-sao-atendidas-pela-vara-da-infancia-e-juventude-
-do-df>. Acesso em: 14 nov. 2013.

242 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 242 29/10/2015 16:20:03
Família Substituta da Vara da Infância e Juventude do Distrito
Federal (JDF), as principais razões que levam as mulheres a op-
tar por entregar o filho em adoção são: o abandono por parte
do companheiro e/ou da família; o fato de a gestação advir de
uma violência sexual; ou por a mãe já possuir prole numerosa,
havendo também, segundo ele, aquelas que engravidaram em
um encontro casual e não desenvolveram laços afetivos com a
criança.
Ressalta-se que a perda do poder familiar para uma mãe, e
para toda sua família, é um rompimento brusco dos laços fami-
liares, tanto afetivos quanto consanguíneos. Além de ser uma
ruptura irreparável e imutável!
O que se pode adiantar aqui é que, na maioria dos casos
que temos acompanhado, o poder familiar foi destituído por
ausência de políticas públicas para as mulheres e suas famílias,
tendo sido constatado mulheres que, ao receberem do juiz a
notícia de que seus filhos, a partir daquele momento, “deixa-
riam de ser seus”, sofreram muito, e mais: percebeu-se que tal
medida extrema poderia ter sido evitada se o Estado – e a rede
de proteção existente nesse espaço – fizesse um trabalho de
prevenção ou até mesmo de intervenção no problema, e não
apenas de remediação e de soluções imediatistas. A existên-
cia de uma rede local envolvendo Estado e sociedade poderia
atuar como importante mecanismo de apoio a essas mulheres
e suas famílias e, portanto, como um elemento de desenvolvi-
mento local.
Por isso, faz-se necessário questionar qual é o verdadeiro
papel do Estado na realidade dessas mulheres, principalmen-
te quando se trata de um momento tão dolorido, delicado e
conflituoso como o da entrega de um filho para a adoção. E
mais: é preciso ainda questionar qual é o amparo e o apoio que
o Estado oferece a essas mulheres pobres, principalmente no
que tange à cidade de Niterói. Diante das modificações apon-
tadas anteriormente, fica evidente que o advento da Lei nº

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 243

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12.010/2009 trouxe mudanças significativas para nossa socie-
dade no âmbito da adoção. Porém, nem sempre as mudanças
consistem apenas em pontos positivos e, da mesma maneira,
tais mudanças podem enfrentar obstáculos em solucionar de-
terminados problemas crônicos já existentes.
Por fim, é importante refletir: de que valem novas e moder-
nas legislações, se possuirmos um Judiciário precário, falho,
sem estruturação para atender as demandas que surgem na
sociedade? É preciso, antes de qualquer outra alteração, uma
reestruturação em todo o sistema judiciário, uma reforma do
Estado, para dar condições e amparo à Justiça para atender a
sociedade e suas demandas de forma digna e justa.

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GÊNERO E POLÍTICAS
PÚBLICAS DE TRABALHO
Ariane Serpeloni Tavares
Temis Gomes Parente

INTRODUÇÃO

O
conceito de gênero suscita debates e envolve inúmeras
controvérsias que não podem ser compreendidas por
conceituações limitadas. Apesar da dificuldade de cons-
truir um consenso, a definição de gênero adotada neste tra-
balho é a proposta por Scott (1990, p. 14), que o define como
“um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre
as diferenças percebidas entre os sexos” e também “um pri-
meiro modo de dar significado às relações de poder”. Assim,
compreende-se que o gênero, além de permear a construção
do que é feminino e do que é masculino, estabelece uma rela-
ção de poder entre os sexos.
Tendo essa definição em vista, pode-se considerar que as
questões de gênero, construídas socialmente, levam a uma re-
lação desigual entre homens e mulheres. Essa desigualdade
tem suas bases nas relações sociais e de poder, que naturaliza-
ram as diferenças sexuais, tornando “normal” a permanência
da mulher no espaço privado, atribuindo-lhe funções sociais
reprodutivas e dificultando seu acesso ao espaço público, da
política, do trabalho (BOURDIEU, 2002; KERGOAT, 2009) e,
portanto, dos direitos políticos e sociais integrais.
Considerando as contribuições de Amartya Sen (2000),
têm-se bons argumentos para compreender que o cerceamen-

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Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 249 29/10/2015 16:20:03
to de liberdades, como o desemprego, a falta de autonomia das
mulheres e as restrições decorrentes das desigualdades entre
os sexos, são empecilhos ao desenvolvimento. Dessa forma,
uma sociedade, ao restringir as possibilidades de emprego e
desprezar a capacidade das mulheres, por exemplo, restringe
também as suas possibilidades de desenvolvimento.
A superação dessa condição tem sido buscada por meio da
promoção da autonomia das mulheres, desvencilhando-as da
dependência econômica em relação ao homem. Essa autono-
mia pode e deve ser incentivada por meio das políticas públi-
cas, desde que alinhadas com a perspectiva de gênero e pro-
motoras da equidade entre homens e mulheres.
Tomando como pressuposto que ações do Estado podem
atuar na busca da independência financeira da mulher, e que
isso é um passo importante para a equidade de gênero, este ar-
tigo tem como objetivo analisar algumas metas e ações propos-
tas pelo Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM),
de 2013, que estejam relacionadas à busca pela igualdade e por
maior participação das mulheres no mundo do trabalho. O intui-
to não é chegar a conclusões sobre a adequação do plano, mas
sim retratar aspectos da condição das mulheres no mercado de
trabalho e debater sobre algumas ações e metas estabelecidas
no capítulo I do PNPM/2013 que estejam voltadas para a ele-
vação da participação e igualdade das mulheres no mercado de
trabalho, e que contribuam, portanto, para o desenvolvimento.
Utilizando a metodologia quantitativa, foram coletados
dados secundários sobre as metas estabelecidas, obtidos por
meio das Pesquisas por Amostra de Domicílios (PNAD), re-
alizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) (2004 a 2012), informações fornecidas pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e dados
sobre os cursos do Programa Mulheres Mil, coletados nos sites
dos institutos federais e fornecidos pelo Ministério da Educa-
ção (MEC) por intermédio do Sistema Eletrônico do Serviço

250 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 250 29/10/2015 16:20:03
de Informação ao Cidadão (e-SIC). A partir das informações,
produziram-se gráficos e tabelas, que foram analisados e rela-
cionados com as ações dirigidas para o atendimento das metas
selecionadas. Procurou-se também, quando disponível, avaliar
os dados de anos anteriores ao especificado na meta, a fim de
verificar a evolução histórica do indicador.
Diante da complexidade e da grande quantidade de metas,
objetivos e ações propostas no PNPM, efetuou-se um recorte,
sendo analisadas cinco metas contidas no capítulo I do plano:
aumento da taxa de ocupação e de participação das mulheres
no mercado de trabalho; diminuição da desigualdade de ren-
dimentos entre mulheres e homens; capacitação de mulheres
por meio do Programa Mulheres Mil; ampliação da forma-
lização das mulheres no mercado de trabalho; e garantia de
ao menos 50% das bolsas-formação do Programa Nacional de
Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) para mulhe-
res. Essas metas foram selecionadas por estarem mais relacio-
nadas com a busca da autonomia feminina e da igualdade nas
relações de trabalho, tema do presente capítulo.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO

A incorporação das questões de gênero nas políticas públi-


cas no Brasil é um tema ainda pouco estudado. Seu surgimento
está relacionado às demandas trazidas pelos movimentos so-
ciais de mulheres à época da redemocratização do país (FA-
RAH, 2004), bem como às orientações e pressões de organis-
mos internacionais, destacando-se as Conferências Mundiais
das Mulheres, em 1975, no México; em 1985, em Nairóbi; e em
1995, em Pequim.
Ao tratar das políticas públicas relacionadas à mulher, é im-
portante destacar que existe diferença entre políticas públicas
para as mulheres e políticas públicas de gênero. As políticas de

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 251

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 251 29/10/2015 16:20:03
gênero consideram as diferenças nos processos de socializa-
ção de homens e mulheres e suas consequências no relaciona-
mento entre os sexos. As políticas para as mulheres, entretan-
to, são centralizadas na mulher e em sua responsabilidade na
reprodução social (educação dos filhos, demanda por creches,
saúde etc.). Essas políticas estão voltadas para a manutenção
da família e não para o empoderamento e autonomia das mu-
lheres (BANDEIRA, 2005). Segundo a autora,

[a]s políticas para as mulheres não são excludentes das


políticas de gênero, embora tenham uma perspectiva
restrita, pontual, de menor abrangência, atendendo a de-
mandas das mulheres, mas sem instaurar uma possibili-
dade de ruptura com as visões tradicionais do feminino
(BANDEIRA, 2005, p. 9).

Dessa forma, para que as políticas sejam efetivas para a


equidade entre os sexos, não bastam apenas políticas para as
mulheres, sendo imprescindíveis políticas de gênero capazes
de promover o empoderamento e a igualdade. O empodera-
mento, segundo Lisboa (2008), implica a alteração dos proces-
sos e das estruturas que reproduzem a posição subalterna das
mulheres, garantindo-lhes a autonomia em relação ao controle
dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir,
bem como a eliminação da violência.
O empoderamento e a autonomia econômica não trazem
benefícios exclusivamente para as mulheres, tendo sido apon-
tados também como fatores importantes para o desenvolvi-
mento, tanto pelo fato de as mulheres representarem uma im-
portante força de trabalho – cada vez mais qualificada – quan-
to pelo impacto que o trabalho e renda femininos exercem so-
bre as próximas gerações. Isso se dá porque, em geral, a renda
obtida pelas mulheres é utilizada para o bem-estar da família,
como o cuidado com a saúde, nutrição e estudo das crianças.

252 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 252 29/10/2015 16:20:03
Assim, o investimento nas mulheres hoje tem importância
também para o desenvolvimento das próximas gerações, pro-
movendo efeitos de longo prazo (WORLD BANK, 2012).
O desenvolvimento está diretamente relacionado com o
progresso das mulheres em sua vida pública e privada, e com
o exercício pleno de seus direitos. Países que têm atuado nes-
se sentido, promovendo modificações na vida das mulheres e
fortalecendo o exercício dos direitos femininos dentro e fora
do lar e na vida econômica, política e cultural, têm avançado
também no desenvolvimento (CEPAL, 2011).
Para que o Estado atue na direção do empoderamento fe-
minino, tem sido apontada como imprescindível a organização
das mulheres em busca da garantia de acesso integral aos seus
direitos. Miranda (2013, p. 3) considera que

[m]ulheres organizadas nos mais diversos movimen-


tos e regiões do Brasil têm buscado acessar diferentes
componentes do desenvolvimento – a saúde, educação,
oportunidades econômicas, direitos e participação polí-
tica – em dinâmicas plurais que as colocam como agen-
tes ativas de mudanças.

Barroso (2013) também aponta que as políticas públicas de


gênero nos diversos Estados brasileiros têm sido criadas em
função das pressões e negociações dos movimentos de mulhe-
res, com apoio de organizações não governamentais. Entretan-
to, no Estado do Amazonas, alvo do estudo da autora, apesar
da atuação das mulheres, o modelo de desenvolvimento ainda
não leva em consideração as necessidades específicas das mu-
lheres. Essa mesma constatação é feita por Miranda (2013) ao
estudar as políticas de desenvolvimento e gênero no Estado
do Tocantins, onde se verifica que a estrutura de participação
e controle social é bastante frágil, impossibilitando resultados

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 253

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 253 29/10/2015 16:20:04
concretos em termos de políticas de gênero e seu impacto so-
bre o desenvolvimento regional.
A promoção do empoderamento e da autonomia econômica
das mulheres pode ser e, geralmente, só é alcançada por meio
de políticas públicas. Conforme aponta Rosa (2007), a autono-
mia e o direito ao trabalho são elementos centrais para o exer-
cício da cidadania, sendo, assim, imprescindíveis as políticas
que contribuam para a alteração da divisão sexual do trabalho
na família.
Para reduzir as disparidades de gênero, a Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) sugere o estreitamento das diferen-
ças de participação da força de trabalho entre mulheres e ho-
mens; isto é, deve-se facilitar o acesso ao mercado de trabalho
para as mulheres e à educação, bem como ampliar as oportu-
nidades de emprego nos diversos ramos e níveis hierárquicos.
Assim, políticas públicas são necessárias para diminuir as
barreiras de entrada da mulher no mercado de trabalho, au-
mentando sua autonomia e promovendo o desenvolvimento
da sociedade. Ao construir as políticas públicas, os governan-
tes devem estar atentos aos impeditivos da livre participação
da mulher no mercado de trabalho, considerando os vários ti-
pos de família e as diferentes necessidades de cada uma delas.
Embora, conforme o conceito estabelecido por Bandeira
(2005), políticas como creches e infraestrutura não possam
ser consideradas como políticas de gênero, verifica-se que es-
sas políticas podem, como resultado secundário, promover a
autonomia, pela possibilidade de que as mulheres, principal-
mente as das classes sociais menos favorecidas, tenham acesso
ao trabalho. Por outro lado, é importante ressaltar que o traba-
lhar fora de casa não garantirá progresso na condição das mu-
lheres se estas forem discriminadas, exploradas no ambiente
de trabalho ou ainda utilizadas como mão de obra barata.
Verifica-se, portanto, que a busca pela equidade de gênero
é um tema bastante complexo, o que demanda envolvimento

254 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 254 29/10/2015 16:20:04
de todas as esferas governamentais. Para melhores resultados
das ações que visam à equidade de gênero, é necessário que se
efetive a transversalidade, ou o gender mainstreaming,50 o que
implica a inclusão da questão das desigualdades entre os sexos
na pauta de todas as esferas governamentais. Assim, busca-se
uma ação integrada das várias instâncias governamentais para
a superação das assimetrias de gênero, promovendo resulta-
dos mais eficazes das políticas públicas e uma governabilidade
mais democrática para as mulheres (BANDEIRA, 2005):

A incorporação da dimensão de gênero nas políticas pú-


blicas aconselha a implementação de projetos específi-
cos voltados às mulheres que respondam à singularidade
da situação das mulheres e à necessidade de implemen-
tar medidas de discriminação positiva para neutralizar
as desvantagens iniciais que alguns grupos de mulheres
compartilham (LISBOA; MANFRINI, 2005, p. 71).

Importante ressaltar que, embora tratadas em conjunto,


cada grupo de mulheres apresenta sua necessidade em termos
de políticas públicas, devendo-se levar em conta a intersecção
entre etnia, geração, classe e gênero. Chappell (2002) ressalta
que, dada a enorme variedade de vivências, há dificuldade de
se definir o que são necessidades femininas. Entretanto, para a
autora, há dois tipos de interesses que têm sido considerados
como de todas as mulheres. O primeiro relaciona-se à questão
biológica, de reprodução e saúde. O segundo está relacionado
às necessidades oriundas da posição histórica e social da mu-
lher, isto é, demandas relacionadas à dependência econômica,
acesso à educação e baixa representação política.

50 Gender mainstreaming pode ser traduzido como integração das políticas de gênero
no Estado. Segundo Miranda (2012), o conceito foi formalizado em 1995, na IV
Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 255

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No Brasil, o documento que reúne as diversas demandas
das mulheres, dos diferentes segmentos, e que nos serve de
referência em termos de políticas de gênero é o Plano Nacional
de Políticas para as Mulheres, que será apresentado a seguir.

PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS


PARA AS MULHERES 2013-2015

O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015


(PNPM) foi produzido pela Secretaria de Políticas para as
Mulheres (SPM) em conjunto com os movimentos sociais de
mulheres rurais, urbanas, feministas, sociedade civil e orga-
nismos estaduais e municipais de políticas para as mulheres.
O PNPM 2013-2015 é um instrumento de fortalecimento da
Política Nacional para as Mulheres, aprovada em 2004, cujos
princípios orientadores são a autonomia das mulheres, busca
pela igualdade entre homens e mulheres em todos os âmbitos,
respeito à diversidade, universalidade dos serviços, partici-
pação das mulheres em todas as fases das políticas públicas
e transversalidade como princípio orientador (BRASIL, 2013).
Cabe, dentre todos os princípios citados, destacar a ques-
tão da transversalidade, que, como definida no tópico anterior,
consiste na incorporação da perspectiva de gênero na cons-
trução de todas as políticas públicas. Por meio dela, não se
deixa apenas a cargo da SPM, a responsabilidade de pensar e
propor ações de igualdade de gênero, mas se divide entre to-
dos os órgãos, dos três níveis administrativos, a incumbência
de promover a equidade. Pelo fato de o PNPM ser um plano
implementado com base na transversalidade, a execução das
ações nele contidas nem sempre são de responsabilidade da
SPM, que tem, juntamente com os demais membros do Comitê
de Articulação e Monitoramento do PNPM, o papel de coorde-
nar as ações, acompanhar e avaliar os resultados.

256 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 256 29/10/2015 16:20:04
O foco do presente trabalho será o primeiro capítulo do
PNPM: Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econô-
mica. O principal objetivo desse eixo é a autonomia econômica
e a igualdade, que “estão fundamentadas em ações específicas
que visam à eliminação da desigual divisão sexual do trabalho,
com ênfase na erradicação da pobreza e na garantia de parti-
cipação das mulheres no desenvolvimento do Brasil” (BRASIL,
2013, p. 14).
O capítulo I possui cinco objetivos específicos, 14 metas e
sete linhas de ação. Cada uma das sete linhas é, ainda, desdo-
brada, totalizando 46 ações planejadas. Os objetivos específicos
envolvem: ampliação da participação e permanência das mu-
lheres no mundo do trabalho com garantia da equidade de ren-
dimentos; promoção de organizações produtivas; valorização
e reconhecimento do trabalho das mulheres dos mais diversos
segmentos para o desenvolvimento do país; promoção de políti-
cas de compartilhamento das atividades domésticas; e amplia-
ção da formalização do trabalho das mulheres (BRASIL, 2013).
Nosso foco será a análise das ações e metas relacionadas
ao objetivo de ampliar a participação das mulheres no mundo
do trabalho, com busca da equidade de rendimentos e forma-
lização. Assim, as metas presentes no plano, que podem ser
consideradas como indicadoras do progresso desse objetivo, e
que serão avaliadas, são:

A. Buscar o aumento em 10% das taxas de participação e


de ocupação das mulheres, em relação a 2009.
B. Trabalhar para a diminuição da taxa de desigual-
dade de rendimentos entre mulheres e homens, em
relação a 2009.
[...]
E. Capacitar 100 mil mulheres até 2014 (Mulheres Mil).
F. Ampliar a taxa de formalização das mulheres no mer-
cado de trabalho. [...]

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 257

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M. Garantir que no mínimo a metade dos beneficiá-
rios do Bolsa-Formação Inclusão Produtiva para be-
neficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do Pronatec,
sejam mulheres.

A seguir, buscar-se-á identificar a situação atual das cinco


metas elencadas acima e debater sobre as ações pertinentes à
consecução dessas metas na atualidade.

ANALISANDO AS METAS DO PNPM

A primeira meta estabelecida no capítulo I do PNPM a ser


analisada é “Buscar o aumento em 10% das taxas de participa-
ção e de ocupação das mulheres, em relação a 2009”. Essa meta
corresponde a dois indicadores medidos pelo IBGE: a taxa de
ocupação51 e o nível de atividade52 (população economicamen-
te ativa), apresentados na Figura 1.
A Figura 1 demonstra que o nível de atividade, que corres-
ponde à população economicamente ativa (PEA), tem dimi-
nuído nos últimos dois anos, tanto para homens quanto para
mulheres. Pode-se atribuir essa redução da PEA ao envelheci-
mento da população, ao maior tempo de estudo dos jovens e a
fatores econômicos. Entretanto, há de se verificar que a meta
estabelecida no PNPM – aumento de 10% na taxa de partici-
pação – é algo bastante improvável, pois o indicador não tem
variado muito nos últimos anos.

51 É a porcentagem das pessoas ocupadas em relação às pessoas de dez anos ou mais


de idade, por sexo.
52 É a porcentagem das pessoas economicamente ativas em relação às pessoas de dez
anos ou mais de idade, por sexo. A população economicamente ativa engloba as
pessoas ocupadas e desocupadas (que buscam emprego).

258 Gênero, desenvolvimento e território

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Figura 1 – Nível de atividade, por sexo, 2004 a 2012 .53

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE).

Conforme se pode verificar no gráfico acima, a maior eleva-


ção deu-se entre 2004 e 2005, quando a taxa cresceu 1,3 ponto
percentual . O mesmo tem ocorrido com a taxa de ocupação,
conforme pode ser observado na Figura 2 .

Figura 2 – Taxa de ocupação, por sexo, 2004 a 2012 .54

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs de 2004-2012 (IBGE).

53 Não foi realizada PNAD no ano de 2010 . Para o ano de 2012, o IBGE alterou o cál-
culo da população em idade ativa (PIA), que passou de maiores de dez anos para
maiores de 15 anos. A fim de manter o mesmo cálculo do ano anterior, as taxas
foram recalculadas pela autora, levando em consideração o mesmo critério de PIA
dos anos anteriores . Assim, o percentual apresentado está diferente do que pode
ser encontrado no documento do IBGE .
54 Ver nota anterior .

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 259

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 259 29/10/2015 16:20:05
A taxa de ocupação, que indica o percentual de pessoas em-
pregadas, encontra-se em queda, havendo poucas diferenças
entre a redução nas taxas de ocupação de homens e mulheres.
Esse indicador pode variar de acordo com a geração de em-
pregos, que influi de forma diferenciada sobre a ocupação de
homens e mulheres, dependendo do setor em que se gerou ou
se reduziu o número de empregos.
Apesar de as reduções nas taxas – tanto de ocupação quanto
de atividade – ocorrerem de forma semelhante entre homens e
mulheres, fica evidente a menor participação das mulheres no
mercado de trabalho em todos os anos analisados.
É importante observar, entretanto, que a participação das
mulheres em atividades remuneradas fora do lar não segue
uma linha de crescimento contínuo, tem taxa de crescimento
bastante reduzida e está muito relacionada a questões econô-
micas, além das culturais.
Adotando uma perspectiva histórica, na sociedade brasilei-
ra do século 20, embora o trabalho do homem tenha se apre-
sentado com relativa constância, o mesmo não se deu com o
trabalho feminino. O nível de inserção da mulher no mercado
de trabalho, bem como a forma que toma essa participação,
sofreram grandes alterações ao longo do tempo. A industriali-
zação, que promoveu a abertura de inúmeros postos de traba-
lho a partir da década de 1930, excluiu as mulheres do espaço
público das fábricas (NOGUEIRA, 2008). Já a crise e a recessão,
que trouxeram dificuldades de sustento para as famílias na dé-
cada de 1980, impulsionaram a maior participação feminina
no mercado de trabalho (BALTAR, 1996).
Assim, fatores econômicos tiveram e têm influência sobre o
nível de inserção da força de trabalho feminina, dando-se desta-
que ao aquecimento de um setor da economia em relação a ou-
tro. Um exemplo disso é que, diante da elevação dos empregos no
setor terciário, a participação feminina no mercado de trabalho
eleva-se consideravelmente, visto ser esse um setor com ativida-

260 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 260 29/10/2015 16:20:05
des culturalmente vinculadas às mulheres, como o atendimento
ao público. Mas fatores econômicos, entretanto, não explicam
tudo. Os valores da sociedade, as relações de gênero e o papel
social designado à mulher também tiveram seu impacto, atuan-
do, principalmente, na restrição das possibilidades de acesso de
muitas mulheres ao mercado de trabalho (BRUSCHINI, 2007).
Nas últimas décadas do século 20, ocorreram muitas mo-
dificações demográficas, culturais e sociais que levaram a um
aumento da participação das mulheres no mercado de traba-
lho. Entre elas, pode-se citar o movimento feminista, a redução
da quantidade de filhos por mulher, a redução do tamanho das
famílias, o envelhecimento da população, a maior expectativa
de vida ao nascer, o crescimento de arranjos familiares chefia-
dos por mulheres e a maior escolarização feminina (BRUSCHI-
NI, 2007). Todos esses aspectos contribuíram para a elevação
relativamente contínua da participação das mulheres no mer-
cado de trabalho a partir da década de 1970. Mas como será
debatido a seguir, a elevação da participação não promoveu
equidade de gênero no mundo do trabalho.
Essa não equidade reflete-se nos números da segunda meta
analisada, que é “Trabalhar para a diminuição da taxa de desi-
gualdade de rendimentos entre mulheres e homens, em rela-
ção a 2009”. Essa meta é de fundamental importância quando
se fala em equidade de gênero. Por mais que as mulheres aden-
trem o mercado de trabalho, observa-se que as questões de gê-
nero fazem com que elas se mantenham em profissões menos
valorizadas socialmente e, mesmo quando exercem atividades
iguais às masculinas, tenham remuneração menor.
Por meio da Figura 3, observa-se que a renda das mulhe-
res proporcionalmente à dos homens vem crescendo, ano a
ano, exceto por um leve decréscimo entre 2011 e 2012. Como
esse é o único decréscimo, não se pode afirmar que haja ten-
dência de retração da renda das mulheres em comparação
com a dos homens.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 261

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 261 29/10/2015 16:20:05
Figura 3 – Proporção do rendimento médio mensal das mulheres em relação
aos homens .55

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados do IBGE (2013).

Outra forma de verificar a diferença entre o rendimento re-


cebido por homens e por mulheres é pela proporção de pesso-
as que recebiam até um salário mínimo em 2012: 23,7% dos
homens e 33,3% das mulheres. Além disso, havia proporcio-
nalmente mais mulheres ocupadas sem rendimentos ou rece-
bendo somente em benefícios (9,0%) do que homens (4,9%)
nessa mesma situação (IBGE, 2013).
Assim, apesar da redução das diferenças salariais ao longo
dos anos, verifica-se que as mulheres continuam a receber me-
nos do que os homens, a despeito de sua maior escolarização .
Um fato interessante é que tem ocorrido um aumento significa-
tivo na porcentagem de mulheres empregadas que têm mais de
11 anos de estudo . Em 2001, essas mulheres correspondiam a
35,1% de todas as pessoas do sexo feminino empregadas. Essa
taxa veio crescendo, e, em 2012, 55,8% de todas as mulheres
empregadas têm mais de 11 anos de estudo (IBGE, 2013).

55 Considera pessoas com 15 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referên-


cia. Valores inflacionados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC)
com base em setembro de 2012 .

262 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 262 29/10/2015 16:20:05
Se, por um lado, esse indicador sinaliza que as oportunida-
des de emprego para as mulheres escolarizadas vêm aumen-
tando, por outro, pode indicar que as menos escolarizadas vêm
perdendo espaço no mercado de trabalho e, ainda, que as mu-
lheres têm necessitado ter mais anos de estudo para conseguir
empregos equivalentes aos masculinos. Essa última hipótese
é reforçada pelo fato de que o aumento de renda das mulhe-
res tem sido bem menor do que o aumento da quantidade de
mulheres escolarizadas no mercado de trabalho (IBGE, 2013)
– ou seja, apesar da elevação da escolaridade, elas podem estar
atuando em funções aquém da sua formação e, portanto, com
nível de remuneração inferior ao que poderiam obter.
Outro indicador importante é a taxa de ocupação diferencia-
da entre homens e mulheres com 11 ou mais anos de estudo:
enquanto 84,1% dos homens com esse nível de escolaridade
estavam empregados, apenas 66,4% delas se encontravam na
mesma situação em 2012 (IBGE, 2013). Assim, a maior esco-
larização não se tem revertido, necessariamente, em maiores
níveis de emprego e renda para as mulheres.
Pode-se verificar, portanto, que essa meta estabelecida no
PNPM tem boas perspectivas de evolução. Entretanto, há muito
que se trabalhar para atingir igualdade de remuneração entre
os sexos. Essa condição de menor remuneração é influenciada
por diversos fatores, mas é evidente a presença de questões
de gênero, entre as quais se pode destacar a divisão sexual do
trabalho, que ocorre também fora do lar por meio da destina-
ção de profissões menos valorizadas para as mulheres (BOUR-
DIEU, 2002; KERGOAT, 2009); a necessidade de engajamento
em atividades de meio período por conta das obrigações fa-
miliares; da desaceleração da carreira diante do nascimento
e criação dos filhos (ARAÚJO; SCALON, 2005); e também da
discriminação das mulheres no mercado de trabalho.
A terceira meta analisada neste trabalho é “Ampliar a taxa
de formalização das mulheres no mercado de trabalho”. Esse é

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 263

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 263 29/10/2015 16:20:05
um indicador importante, que reflete a desigualdade entre ho-
mens e mulheres no mercado de trabalho. Em 2012, 31,2% das
mulheres não tinham registro em Carteira de Trabalho e Previ-
dência Social (CTPS), enquanto 26,8% dos homens encontra-
vam-se na mesma condição . Esse indicador, no entanto, vem
apresentando melhora significativa, como pode ser verificado
na Figura 4, que retrata a queda do percentual de trabalhado-
ras e trabalhadores sem registro .

Figura 4 – Proporção de trabalhadores sem registro em CTPS, por sexo .

Fonte: Elaboração das autoras com base nos dados das PNADs (IBGE, 2013).

Embora o PNPM não estabeleça uma meta específica, pode-


-se considerar que esse indicador tem apresentado evolução .
Não se verifica, entretanto, até 2012, uma melhoria específica
para um gênero, pois o índice de trabalhadores sem registro
em CTPS caiu para ambos os sexos . Esse quadro, entretanto,
pode ter melhor prognóstico para as mulheres nos próximos
anos, pelas mudanças referentes ao trabalho doméstico na
legislação trabalhista. Dado que mais de 92,6% dos trabalha-
dores domésticos, em 2012, eram mulheres (IBGE, 2013), a
maior regulamentação e exigência de registro em CTPS para
esses trabalhadores beneficiará mais a elas do que a eles.

264 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 264 29/10/2015 16:20:06
As duas últimas metas analisadas são: “Garantir que no mí-
nimo a metade dos beneficiários do Bolsa-Formação Inclusão
Produtiva para beneficiárias do Bolsa-Família, no âmbito do
Pronatec, sejam mulheres”; e “Capacitar 100 mil mulheres até
2014 (Mulheres Mil)”. Ambas têm como intuito capacitar as
mulheres para sua melhor inserção no mercado de trabalho,
constituindo-se, portanto, em uma ação que apoia o objetivo
de aumentar a taxa de ocupação e participação das mulheres,
bem como a meta de reduzir as disparidades de renda.
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Empre-
go (Pronatec), criado pela Lei nº 12.513, de 26 de outubro de
2011, é de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).
Sua finalidade é “ampliar a oferta de educação profissional e
tecnológica, por meio de programas, projetos e ações de assis-
tência técnica e financeira” (BRASIL, 2011, art. 1º). O Pronatec
oferta cursos gratuitos e auxílio a estudantes de cursos técni-
cos da rede pública de ensino (Bolsa-Formação Estudante) e
também se vincula ao Plano Brasil sem Miséria (BSM), ofer-
tando Bolsa-Formação Trabalhador a pessoas inscritas ou em
processo de inclusão no CadÚnico (BRASIL, 2011; 2014).
Segundo dados fornecidos pelo MDS (MDS, 2014), as mu-
lheres receberam 68% das Bolsas-Formação Trabalhador do
Pronatec/Brasil Sem Miséria entre 2012 e 2014. A região em
que houve maior participação de mulheres dentre os bolsistas
foi a Centro-Oeste, com 73%, e a região com menor percentual
de Bolsas-Formação para mulheres foi a Sul, com 64%. Dessa
forma, a meta proposta pelo PNPM está sendo atingida, mui-
to além dos 50% de bolsas propostas. Entretanto, quando se
agrupam as duas modalidades de bolsas (estudante e traba-
lhador), de acordo com os dados recebidos do Ministério da
Educação, em nenhum dos Estados da Federação há maioria
de mulheres entre os bolsistas, sendo que, desde a implanta-
ção do programa, as mulheres receberam 40,6% das Bolsas-
-Formação disponibilizadas no país (MEC, 2013a).

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 265

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 265 29/10/2015 16:20:06
É importante ressaltar que os cursos do Bolsa-Formação
Estudante são cursos técnicos de nível médio, de longa dura-
ção, enquanto os cursos da Bolsa-Formação Trabalhador são
de Formação Inicial e Continuada (FIC), de menor duração e
destinados a pessoas com baixa escolaridade (BRASIL, 2011).
Assim, seria interessante que a meta de 50% de Bolsas-Forma-
ção para mulheres não se restringisse ao âmbito do Programa
Brasil Sem Miséria, mas se estendesse aos demais cursos do
Pronatec, já que eles são de nível técnico, que geram uma me-
lhor qualificação e oportunidades de inserção profissional em
funções com maior remuneração.
O Programa Mulheres Mil tem foco na promoção da equida-
de, igualdade entre sexos, combate à violência contra mulher e
acesso à educação. O programa busca capacitar exclusivamen-
te mulheres, com vistas à autonomia e criação de alternativas
para a inserção no mundo do trabalho. Em 2012 foi realizada
uma chamada pública de propostas para execução do progra-
ma, sendo pré-selecionados projetos dos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) de todas as regiões do
país. O programa, atualmente, é executado em 235 campi de
37 institutos federais. Em relação ao número de matrículas em
2013, foram beneficiadas 17.784 mulheres, sendo 42,5% das
matrículas registradas na Região Nordeste, 13% na Sudeste,
15,5% no Norte do Brasil, 10% no Centro-Oeste e 19% no Sul
(MEC, 2013b).
Na Região Norte, a título de exemplo, foram selecionados
projetos dos IFs do Tocantins, Acre, Pará e Rondônia. Em sua
execução, entretanto, observa-se que, diferentemente do que
propõe o PNPM, alguns cursos reforçam a divisão sexual do
trabalho, ou seja, parte dos cursos contemplam atividades
consideradas femininas e que geram baixa perspectiva de re-
tornos financeiros e de oportunidades formais de trabalho. Na
região, os cursos ofertados e/ou programados para 2013, de
acordo com levantamento realizado nos sites dos institutos fe-
derais acima referidos, foram:

266 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 266 29/10/2015 16:20:06
Tabela 1 – Cursos ofertados por meio do Programa Mulheres Mil na Região
Norte (2013).
ESTADO CURSO C.H. VAGAS
TO Informática para o Espaço Doméstico e do Trabalho 200 100
AC Jardinagem e Ornamentação 200 50
AC Horticultura Orgânica e Preparadora de Pescado 200 100
PA Artesão de Biojoias 160 100
PA Auxiliar de Cozinha 160 66
PA Pintura em Tecido 160 34
PA Corte e Costura 160 25
PA Operador de Computador 100 100
PA Pedreiro de Acabamento 200 35
PA Operador de Beneficiamento de Pescado 200 35
PA Manutenção e Reparador de Computadores 200 30
RO Processamento de Pescado 200 50
RO Alfabetização Digital e Inclusão Tecnológica 200 50
RO Formação Inicial e Continuada em 200 46
Empreendedorismo

Considera-se que, conforme proposto no PNPM, o maior


acesso das mulheres a oportunidades de qualificação que não
reforcem os padrões de gênero é fundamental. Por meio des-
sas ações, tem-se a oportunidade de dar melhores condições
de acesso das mulheres ao mercado de trabalho e em ocupa-
ções mais valorizadas, contribuindo para o aumento das taxas
de atividade, de ocupação e de formalização, bem como redu-
ção das disparidades salariais. Há que se observar, entretanto,
a necessidade de que, no momento da execução, essas propos-
tas sejam, de fato, postas em prática. A transversalidade é fun-
damental e a preocupação, e até mesmo a consciência, sobre
as questões de gênero não podem estar limitadas aos formu-
ladores de políticas, mas sim serem estendidas também aos
executores destas.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 267

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 267 29/10/2015 16:20:06
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das metas e propostas analisadas, verifica-se que há


ações concretas, contidas no PNPM, no sentido de melhorar a
condição das mulheres, como, por exemplo, a qualificação por
meio do Programa Mulheres Mil, que, apesar de não estar sen-
do concretizada exatamente conforme as diretrizes, tem capa-
cidade de promover autonomia para as mulheres atendidas. A
cotização de todas as modalidades de bolsas do Pronatec seria
uma ação bastante importante, sendo necessária a implemen-
tação de mecanismos de controle da destinação dessas bolsas
para as mulheres. Considera-se também que a regulamentação
da legislação concernente ao trabalho doméstico promoverá
importantes ganhos às mulheres que atuam nesse setor, dan-
do-lhes garantias de direitos trabalhistas e previdenciários.
Quanto às metas de redução das disparidades salariais e
aumento das taxas de ocupação e atividade, considera-se que
o PNPM não traz propostas concretas que deem subsídio a es-
sas metas e propiciem igualdade e eliminação da discrimina-
ção das mulheres no mercado de trabalho de forma geral. Ape-
sar de propor qualificação e creches, o plano não traz ações
afirmativas que visem a compensar as desvantagens anterio-
res vivenciadas pelas mulheres. Uma exceção é a proposta de
articulação para aprovação do Projeto de Lei nº 6.653/2009,
que buscava coibir práticas discriminatórias no âmbito das
empresas públicas e de economia mista, mas que foi indeferi-
do em março de 2013. Pode-se citar também como uma ação
de incentivo à igualdade de gênero o Programa Pró-Equidade
de Gênero, que premia empresas que buscam diminuir a dis-
criminação no ambiente de trabalho, mas que ainda apresenta
baixa repercussão na iniciativa privada.
O plano também trata de forma bastante tímida a questão
da licença-maternidade e paternidade, não trazendo propos-
tas de divisão da licença entre os progenitores, o que seria uma

268 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 268 29/10/2015 16:20:06
política de gênero fundamental para a redução das disparida-
des salariais e de acesso das mulheres ao mercado de trabalho.
Políticas públicas afirmativas são fundamentais para reverter
as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, e ainda
não se verifica uma proposta de uma política consistente nesse
sentido.
Apesar de haver críticas ao PNPM, considera-se que ele
representa um avanço significativo ao trazer ações e metas
fundamentais para a promoção da equidade de gênero. É de
extrema importância que o que está proposto no plano seja
concretizado e, diante das avaliações realizadas nas conferên-
cias, se possa avançar e incluir novas políticas.
Além disso, conforme nos lembra Bandeira (2005), para re-
dução das assimetrias de gênero, não basta apenas a eficácia
de políticas públicas, pois as desigualdades sofrem influência
de outros fatores estruturais, como fatores econômicos, demo-
gráficos, de mercado, sociais, arranjos familiares, papéis e pa-
drões sociais. Portanto, é imprescindível que se reconheça que
as desigualdades de gênero expressam as relações de poder,
estando profundamente institucionalizadas.
A superação desse quadro, portanto, não se mostra simples,
e envolve a participação efetiva das mulheres como sujeitos de
sua história, como cidadãs ativas. A organização das mulheres
em cada Estado ou região tem importante papel na construção
e melhoria das políticas nacionais, visto que as necessidades
das mulheres e os níveis de desenvolvimento são diferentes
em cada localidade. Isso faz com que a promoção da autono-
mia das mulheres envolva um foco diferenciado por região,
que pode ir de políticas de educação básica a demandas por
equidade em cargos de liderança, por exemplo.
Apesar das diferenças regionais, os responsáveis pela for-
mulação de políticas públicas precisam estar sensíveis a ques-
tões de gênero, incluindo essa perspectiva nas políticas de de-
senvolvimento regional.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 269

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 269 29/10/2015 16:20:06
Diante de uma maior presença e representatividade femi-
nina nos espaços públicos, seja na política ou nas empresas, e
atentando-se para a transversalidade de gênero na construção
de políticas públicas, muito teremos progredido na busca da
equidade de oportunidades e direitos para ambos os sexos.
Somente assim se conseguirá progredir também na busca
pelo desenvolvimento, pois, como debatido por Amartya Sen
(2000), o desenvolvimento consiste na expansão das liberda-
des reais que as pessoas usufruem. Essa expansão da liberdade
é o fim prioritário e, simultaneamente, o meio principal para
o desenvolvimento. Dessa forma, o desenvolvimento humano
não pode ocorrer diante do desemprego, da falta de autono-
mia das mulheres e das desigualdades presentes no mercado
de trabalho. Ou seja, uma sociedade ou região que restringe as
possibilidades de emprego e despreza a capacidade das mulhe-
res limita também as suas possibilidades de desenvolvimento.

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274 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 274 29/10/2015 16:20:07
REFLEXÕES SOBRE O MULTI(INTER)
CULTURALISMO E RELAÇÕES DE
GÊNERO NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO
ESCOLAR INDÍGENA NO AMAZONAS
Marcos André Ferreira Estácio
Diana Andreza Rebouças Almeida

INTRODUÇÃO

A
s primeiras experiências escolares com os indígenas,
no Brasil, datam do início da colonização portuguesa,
no século 16, e ocorreram em um contexto onde o po-
der político e econômico e a evangelização eram indissociáveis,
cabendo aos jesuítas catequizar os índios para promover uma
educação do tipo escolar e difundir o cristianismo. Nesse con-
texto, as diversidades culturais e de gênero eram suprimidas do
processo educativo e a centralização das ações estava apenas na
“suposta” necessidade de “civilizar” os índios aos moldes da cul-
tura ocidental.
O surgimento da monarquia no Brasil e a “proclamação da
Independência” no século 19 não trouxeram mudanças signifi-
cativas na área educacional em relação à população indígena,
continuando a ser realizada nos moldes tradicionais da cate-
quese, agora não mais pelo exclusivismo jesuítico, mas tam-
bém por outras ordens religiosas. O advento da República re-
presentou uma continuidade em relação à fase anterior, não
acarretando mudanças no âmbito da educação para o indíge-
na, pois na Constituição de 1891 ela foi ignorada.
No início do século 20, a relação do Estado brasileiro com
os povos indígenas pautava-se pela política integracionista que
visava a preparar os índios para ingressarem na “civilização”.
Tais ações contribuíram para o quase aniquilamento da diver-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 275

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 275 29/10/2015 16:20:07
sidade étnica e cultural, e o marco dessa política foi a criação,
em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), posteriormente denomi-
nado de Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
Nesse período, a ação educativa para as comunidades in-
dígenas tinha por finalidade a formação do trabalhador na-
cional, com repercussão na “proteção” aos índios e o objetivo
de transformá-los em pequenos produtores rurais, a fim de
atender à política de regeneração agrícola do país. Ou seja, a
função educativa do SPI objetivava a incorporação do indígena
ao território brasileiro pela perspectiva do pequeno produtor
rural, por meio do ensino primário, com iniciação para o tra-
balho agrícola ou agropecuário, e também na defesa nacional,
com ênfase na disciplina militar, por meio do ensino de moral
e cívica e da educação física.
Vale ressaltar que, mesmo a educação escolar das comuni-
dades indígenas estando sob a responsabilidade do SPI, ainda
permanecia a presença das missões religiosas na tarefa edu-
cacional, que incluía uma parcela indígena, sobretudo no Es-
tado do Amazonas. Prova disso é a presença efetiva, a partir
de 1915, de missionários salesianos na condução de interna-
tos para crianças índias, na região do alto rio Negro, interior
do Amazonas; para tais internatos, meninos e meninas índios
eram recrutados e recebiam ensino primário, eram proibidos
de falarem suas línguas maternas e eram, ainda, iniciados na
religião católica e no aprendizado de hábitos e padrões estra-
nhos à sua cultura (WRIGTH, 2005).
Nos anos 1950, iniciou-se a discussão da necessidade de
se repensar as escolas indígenas, mas as alterações propostas
restringiram-se à adequação do ensino regular às diferentes
fases do contato entre os índios e a dita “civilização”. Na década
de 1960, incorporaram-se “certos avanços” à política indige-
nista, com a ratificação, pelo Brasil, da Convenção nº 107, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), elaborada em

276 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 276 29/10/2015 16:20:07
1957, e os convênios firmados entre o Summer Institute of Lin-
guistics (SIL) e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Por meio de tais convênios, ampliaram-se os trabalhos
linguísticos e escolares no interior de dezenas de aldeias no
Amazonas, sem, contudo, considerar as especificidades das
relações de pertencimento, identidade e gênero no contexto
indígena. O modelo educacional implementado pelo SIL, ba-
seado na educação bilíngue, assemelhava-se ao de qualquer
missão tradicional: conversão dos gentios e salvação de suas
almas (RIBEIRO, 1962). Esse tipo de formação não valorizava
a diversidade e não tratava os povos indígenas como sujeitos
de direitos.
Os anos 1970 marcaram um período de novas experiências
na área da educação escolar indígena, pois parcelas influen-
tes do aparelho estatal e diferentes instituições religiosas e
indigenistas opuseram-se à perspectiva integracionista e à
presença do SIL em áreas indígenas e defenderam uma escola
guiada pelo respeito às culturas e identidades indígenas e aos
seus projetos de futuro. A partir desse período, iniciaram-se
os primeiros movimentos de organização de índios, a busca de
representação, a defesa dos seus interesses e a reivindicação
de uma instituição escolar em oposição à política de integra-
ção e construída por uma perspectiva educacional específica
e diferenciada.
A luta dos povos indígenas e as experiências de educação
escolar indígena, implementadas pelas entidades e organiza-
ções não governamentais, somada à força do movimento das
organizações em defesa da causa indígena, contribuíram para
que se alcançassem as conquistas constitucionais de 1988.
Essa Carta Magna reconheceu o direito de organização, de ma-
nifestação linguística e cultural, de ser e de viver segundo os
próprios projetos de sociedade. O texto constitucional rompeu
com a política integracionista de homogeneização cultural e
étnica, estabelecendo um novo paradigma baseado na possi-

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 277

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 277 29/10/2015 16:20:07
bilidade de pluralismo, superou a tradição de tratar os índios
como “categoria transitória” e afirmou o direito à alteridade
cultural (GRUPIONI, 1997).
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) re-
forçou as disposições da Constituição Federal, incentivando o
desenvolvimento de uma educação multi(inter)cultural, com
a finalidade de proporcionar às comunidades indígenas o seu
reconhecimento perante as demais sociedades. Assim, as re-
formas educacionais para as populações indígenas propostas
pelo governo brasileiro vêm propiciando um grande estímulo
à discussão sobre escolarização das e nas aldeias, com inúme-
ros projetos de formação e capacitação de professores indíge-
nas realizados no país nos últimos anos (BANIWA, 2014), com
financiamento público e participação de secretarias estaduais
e municipais de educação, universidades e organizações não
governamentais (ONGs).
A inserção das questões étnico-raciais no contexto das re-
formas educacionais não tem sido posta como um tema rele-
vante das políticas públicas. No que se refere aos estudos de
gênero em relação às comunidades indígenas, nota-se ainda
pouca disseminação. Para Milhomem (2012), essa situação
ocorre não por falta de interesse de pesquisa na área, mas em
razão das dificuldades vivenciadas por pesquisadoras/es em
compreender as relações de gênero em comunidades indíge-
nas. Assim, o grande desafio posto é tirar as questões de gê-
nero e etnia da invisibilidade para que seja possível construir
uma agenda de políticas públicas educacionais para os indíge-
nas na perspectiva de gênero.
Assim, em um exercício preliminar, o presente texto busca
promover uma reflexão sobre multi(inter)culturalismo56 e re-

56 Neste trabalho, entende-se por multi(inter)culturalismo a postura dialógica, para


além da perspectiva da tolerância, entre os diferentes grupos culturais que se entre-
cruzam nos espaços sociais, destacando as desigualdades que podem marcar essas
relações e a necessidade de seu enfrentamento (CANDAU; LEITE, 2006, 2011).

278 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 278 29/10/2015 16:20:07
lações de gênero no contexto da educação escolar indígena no
Amazonas, e, nesse processo, apesar da tentativa de enfatizar
as diferenças, estas não são consideradas em sua totalidade,
pois, como será identificado, as questões de gênero têm sido
negligenciadas.

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA?

A Constituição Brasileira de 1988, fundada em princípios


democráticos, declara que todas e todos são iguais perante a
lei, sem distinção de nenhuma natureza, e determina que cabe
ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos cul-
turais e de acesso às fontes da cultura nacional; apoiar e in-
centivar a valorização e difusão das manifestações culturais,
proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras e as de outros grupos participantes do proces-
so civilizatório nacional.
Nesse sentido, a cultura, para a Constituição e para além
dela, pode ser vista como elemento importante para o desen-
volvimento de uma nação ao permitir que a população acesse
os bens culturais favorecendo o processo de inclusão social,
econômica, política, e também incentivando a tolerância e o
respeito às diversidades. O Ministério da Cultura (MinC),57 or-
ganismo federal articulador das políticas públicas de cultura
no Brasil, afirma que a concepção de cultura deve abranger
três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica:

A dimensão simbólica aborda o aspecto da cultura que


considera que todos os seres humanos têm a capacidade
de criar símbolos que se expressam em práticas cultu-

57 Para mais informações, acessar o endereço eletrônico do Ministério da Cultura. Dis-


ponível em: <http://www.cultura.gov.br/o-ministerio>. Acesso em: 17 maio 2015.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 279

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 279 29/10/2015 16:20:07
rais diversas como idiomas, costumes, culinária, modos
de vestir, crenças, criações tecnológicas e arquitetônicas,
e também nas linguagens artísticas: teatro, música, artes
visuais, dança, literatura, circo etc.
A dimensão cidadã considera o aspecto em que a cultura
é entendida como um direito básico do cidadão. Assim,
é preciso garantir que os brasileiros participem mais da
vida cultural, criando e tendo mais acesso a livros, espe-
táculos de dança, teatro e circo, exposições de artes vi-
suais, filmes nacionais, apresentações musicais, expres-
sões da cultura popular, acervo de museus, entre outros.
A dimensão econômica envolve o aspecto da cultura
como vetor econômico. A cultura como um lugar de ino-
vação e expressão da criatividade brasileira faz parte
do novo cenário de desenvolvimento econômico, social-
mente justo e sustentável (MINC, 2015, p. 1).

Logo, investir em políticas que levem em conta as “culturas”,


a afirmação da identidade e a diversidade cultural é estimular
os valores de autoexpressão de um povo. Segundo Inglehart
e Welzel (2009), as sociedades com alto grau de autoexpres-
são tendem a enfatizar a autonomia individual e a qualidade
de vida, e assim estão relativamente propensas a proteger o
meio ambiente, bem como favorecer à igualdade de gênero, e
mostram-se tolerantes com as minorias.
Uma educação que estimule a autoexpressão e reconheça
os papéis sociais distintos de gênero é um caminho necessário,
tendo em vista que a voz das mulheres indígenas, pela falta do
costume, foi silenciada. Segundo Milhomem (2012), o movi-
mento indígena brasileiro foi liderado por homens, e somente
a partir da década de 1990 as mulheres começaram a criar or-
ganizações próprias para lutar por seus direitos.
A Lei nº 9.394/1996 determina que, nos currículos do En-
sino Fundamental e Médio, o ensino da história do Brasil leve

280 Gênero, desenvolvimento e território

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em consideração as contribuições das diferentes culturas e et-
nias para a formação do povo brasileiro, especialmente as das
matrizes indígena, africana e europeia (Art. 26, § 4º); institui
a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasi-
leira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Fundamental
e Médio, sejam eles públicos ou privados (Art. 26-A, §§ 1º e
2º); assegura às comunidades indígenas a utilização de suas
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, no
Ensino Fundamental (Art. 32, § 3º); institui como dever do Es-
tado a oferta de uma educação escolar bilíngue e intercultural
para os povos indígenas (Art. 78, caput e Incs. I e II). Ou seja,
essa legislação repõe o Brasil como um país plural e reconhece
a importância do respeito às culturas, identidades e diferen-
ças, e também exige um repensar das relações entre educação
e culturas no espaço escolar.
Se, por um lado, essas temáticas passaram a ser explicita-
mente contempladas nos currículos da rede regular de ensino,
por outro lado, as resoluções aprovadas pelo Conselho Nacio-
nal de Educação (CNE), as quais fixam as diretrizes nacionais
para o funcionamento das escolas indígenas e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana, já defendiam uma educação específica, diferenciada
e de qualidade construída em conjunto com os povos.
Entretanto, podemos perceber que nas referidas legisla-
ções não há referência às questões de gênero, o que evidencia
que, mesmo o Brasil tendo avançado nas políticas de gênero
há pouco mais de uma década, a partir da criação da Secreta-
ria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
em 2003, as políticas não foram plenamente interiorizadas e
diversificadas para atender as especificidades das mulheres
brasileiras.
No Amazonas, conforme afirmam Albuquerque e Peixoto
(2006), a educação escolar para as populações indígenas tem

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 281

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 281 29/10/2015 16:20:07
sido objeto de desenvolvimento de ações governamentais e são
decorrentes da Constituição de 1988, da LDB nº 9.394/1996,
das Diretrizes do CNE, da Constituição do Estado do Amazonas
de 1989 e das reivindicações do movimento indígena, que ao
longo dos anos vem lutando por uma educação escolar espe-
cífica, multi(inter)cultural, diferenciada e autônoma para os
seus povos. E conquistas dessa luta foram o reconhecimento
pela política estadual de educação escolar indígena da cate-
goria “escola indígena”58 e a criação do Conselho Estadual de
Educação Escolar Indígena (CEEI/AM).
Mesmo com esse reconhecimento, observa-se que o aces-
so à educação ainda é limitado. E um exemplo é a capital do
Estado do Amazonas (Manaus), que, segundo dados do Censo
Escolar (2013) do Ministério da Educação, possui 726 institui-
ções públicas de educação básica em atividade, sendo que ape-
nas três delas são reconhecidas como escolas indígenas,59 as
quais atendem 90 alunos. Logo, é imprescindível a ampliação
do acesso escolar diferenciado para as comunidades indíge-
nas, possibilitando-lhes uma educação específica e o respeito
às características étnicas e socioculturais.
É inegável que essas legislações introduziram o princípio
do multi(inter)culturalismo e o desejo de que este se construa
nas escolas, ganhando vida e transformando realidades, e que
no seu processo desconstrua os modelos padronizadores e
monoculturais dos grupos privilegiados que silenciam as di-
ferenças e reproduzem desigualdades e discriminações. Para
Candau (2008), faz-se necessário a (inter)relação entre os di-

58 As “escolas indígenas” são reconhecidas como estabelecimentos de ensino no


âmbito da educação básica e devem estar localizadas em terras indígenas. Ela
propicia a autonomia escolar, por meio da criação de programas específicos e a
possibilidade de ação interinstitucional, das organizações indígenas e da própria
comunidade, para acompanhar e assessorar as atividades de oferta de ensino aos
índios (ALBUQUERQUE; PINHEIRO, 2006).
59 Dessas escolas indígenas, uma está localizada na zona urbana e cinco localizam-se
na zona rural (MEC; INEP, 2014a, 2014b).

282 Gênero, desenvolvimento e território

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ferentes grupos e a permanente renovação das culturas, seu
processo de hibridização e a desvinculação entre questões de
diferença e de desigualdade, e afirma que é no cruzamento, na
interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social
do conhecimento que a escola está chamada a se situar.
No que concerne à educação escolar indígena, Bergamas-
chi (2007, p. 197) aponta que os povos indígenas defendem
“práticas escolares que busquem constituir um modo próprio
de ensinar, em diálogo com [...] a educação tradicional e a cos-
mologia de seu povo”. Ou seja, essa educação deverá permitir a
cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola,
os processos próprios de ensino e aprendizagem e de produ-
ção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos
de interesse coletivo do seu povo.
E por que um povo ou comunidade indígena lutaria por es-
colas, já que ela é um espaço contraditório e ambivalente? So-
bre esse questionamento, Weigel (2003, p. 5) conclui que

tal processo é determinado por relações políticas, rela-


ções de força e condições materiais, no qual os segmen-
tos indígenas [...] operam mudanças em: sua cosmologia,
suas concepções míticas e estéticas, sua magia, seus ri-
tuais, suas bases materiais e línguas, apropriando-se –
mas também recriando e reelaborando, de acordo com
critérios e paradigmas de suas próprias culturas – dos
elementos da cultura dominante.

Os povos indígenas diferem entre si, e também de outros


povos e segmentos sociais. Entretanto, pela sua história de
colonização, massacres e perseguições, tiveram de elaborar
estratégias de resistência com a sociedade envolvente, muitas
vezes implicando a quase perda das suas identidades e tam-
bém a ressignificação identitária. Hoje, esse é um ponto a ser
considerado, pois subjaz no imaginário da sociedade brasileira

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Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 283 29/10/2015 16:20:07
uma concepção ideológica naturalista e romântica sobre esses
povos, os quais são referidos a um passado mítico, sendo con-
traditoriamente negada a sua existência no presente.
Povos que viram – e hoje ainda veem – as suas línguas, suas
cosmovisões e costumes serem diminuídos, desprezados e
desrespeitados estão lutando para restabelecer e recuperar
seus territórios, vivendo um momento de intenso embate com
o etnocentrismo reinante nas sociedades não indígenas. No
entanto, se há pontos comuns entre as culturas, trocas entre
modos e costumes, isso não põe por terra as identidades de
um povo, pois nenhum ser humano ou sociedade vive isolado
do contexto e de seu tempo.
Não existem grupos superiores ou inferiores, mas grupos
diferentes. Um grupo pode ter menor desenvolvimento tecno-
lógico se comparado a outro, mas, possivelmente, é capaz de vi-
ver e conviver com determinado ambiente, além de não possuir
diversos problemas que esse suposto grupo “superior” possui.
Não se pode também negar os recursos tecnológicos da contem-
poraneidade, mas cada etnia precisa refletir sobre os condicio-
nantes sociais e econômicos que acompanham tais recursos.
Os indígenas, ou qualquer outro povo ou população, não
perdem suas identidades porque possuem escolas com recur-
sos tecnológicos, por acessarem – de suas comunidades, tri-
bos ou aldeias – a rede mundial de computadores (internet),
porque possuem celulares ou estão vestindo roupas sintéticas.
Para Meliá (2001, apud SILVA, 2007, p. 138, grifos do autor), a

identidade não é a fixação sobre o mesmo; também não


é simplesmente ir para frente, tocar numa outra direção;
ela é dinâmica, se constrói em trânsito. Pode ser defini-
da como o nós em movimento. Significa encontrar-se a si
mesmo em novas situações, as quais eu tenho que res-
ponder.

284 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 284 29/10/2015 16:20:07
Segundo Geertz (1989, p. 15), a cultura é um contexto den-
tro do qual os acontecimentos sociais podem ser descritos e
ganhar significados. O conceito de cultura que ele defende

é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max We-


ber, que o homem é um animal amarrado às teias de sig-
nificados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como
sendo estas teias e sua análise, portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado.

Para esse autor, o importante é aprofundar a busca pelas


particularidades e as condições de entendimento das culturas
localizadas.
É sabido que os ideais da ideologia do discurso do poder
também podem ser passados junto com os conteúdos didáti-
cos, podendo chegar a se transformarem em valores. Ao re-
conhecer os efeitos e o poder do discurso homogeneizador e
hegemônico, defende-se, na atualidade, uma educação diferen-
ciada para as comunidades indígenas, buscando formar pro-
fessores índios, estimulando que eles mesmos produzam seus
materiais didáticos, e assim minimizar os efeitos da imposição
da globalização excludente e deformante, ou seja, de uma in-
clusão perversa, a qual classifica, diferencia e exclui.
Ressalta-se, também, que preconceitos latentes sobre a re-
presentação social dos indígenas precisam ser repensados, pois

a representação brasileira em relação às populações


indígenas foi hegemonicamente construída a partir de
quatro equívocos básicos: 1 – Considerar os índios ho-
mogêneos; 2 – Identificar as culturas indígenas de forma
“congelada”; 3 – Entender as tradições indígenas como
atrasadas e, portanto, portadoras de conhecimentos per-
tencentes ao passado; 4 – O instituído hegemônico não

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Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 285 29/10/2015 16:20:07
reconhece a cultura indígena como uma das matrizes de
formação da identidade brasileira, em privilégio de uma
perspectiva eurocêntrica (MONTEIRO, 2007, p. 162-63,
grifos do autor).

Apesar da diversidade dos povos indígenas, não se pode


deixar de identificar suas relações com as desigualdades socio-
econômicas e de gênero mais gerais da sociedade. As lutas pela
afirmação e positividade das identidades não ocorrem apenas
no âmbito do discurso, pois, por exemplo, quando índios se
afirmam como tais, estão a reivindicar também direitos corre-
latos, como a terra, seus recursos naturais, saúde e educação
diferenciadas.

A IMPORTÂNCIA DA PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES


DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Para Miranda e Parente (2014), por meio do conceito de


gênero, as relações entre mulheres e homens passam a ser vis-
tas de uma perspectiva social, cultural e histórica, levando em
conta os papéis socialmente atribuídos a cada um dos gêneros
na sociedade, no trabalho, na política, na família, nas institui-
ções e em todos os aspectos das relações humanas.
O conceito de gênero é portador de uma ampla complexi-
dade que tende a variar de acordo com a linha teórica adotada
– o que tem provocado embates, confrontos, negociações e até
mesmo retrocessos no âmbito das políticas públicas. A tentati-
va de adoção das questões de gênero no atual Plano Nacional
de Educação (PNE) brasileiro evidenciou essa situação. O novo
PNE foi aprovado em 2014 com vistas a estabelecer metas e es-
tratégias para os próximos dez anos. O processo de aprovação

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do plano passou por momentos de conflitos no que se refere à
tentativa de incorporar as questões de gênero e sexualidade.60
Parlamentares conservadores afirmaram que questões re-
lacionadas a gênero traria às escolas materiais didáticos e di-
versos tipos de atividades que incentivariam a homossexuali-
dade; já os que estavam a favor dessa incorporação defendiam
a promoção do combate contra o preconceito às mulheres e
a homofobia nas escolas. Porém, mesmo com as dissidências
causadas por ativistas de ambos os lados, a menção de gênero
e sexualidade não foi incorporada.
A retirada das palavras gênero e sexualidade do PNE evi-
denciam um retrocesso, pois, enquanto o país tem realizado
grandes esforços para criação de políticas de gênero, a educa-
ção caminha de forma oposta, sem ressaltar no ensino a neces-
sidade de desconstrução do modo de se portar e pensar sobre
os papéis de gênero na sociedade.
Esse conflito desmonstra quão caro tem sido pautar as
questões de gênero em espaços políticos onde de fato pode-
riam gerar transformações profundas na sociedade – que dirá
então a inclusão desse debate no âmbito da educação escolar
indígena? Entendemos que, para essa discussão ser incorpo-
rada no contexto indígena, deverá proporcionar condições
políticas de participação e decisão, pautadas na construção de
um diálogo, firmado em um conjunto de princípios e direitos
integrantes da condição e afirmação étnica, os quais deverão
direcionar-se para o respeito às diferenças.
Ou seja, compreende-se que as especificidades dos interes-
ses e necessidades dos indígenas garantem-lhes, entre outras
questões, o direito de somente eles, os detentores dessas espe-
cificidades, poderem dizer que modelo de educação e de rela-

60 Plano Nacional de Educação: Por que o gênero assusta tanto? Disponível em:
<http://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho-2/plano-nacional-de-e-
ducacao-por-que-o-genero-assusta-tanto/>. Acesso em: 17 maio 2015.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 287

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ção com as questões de gênero está adequado aos seus modos
próprios de viver, pensar e ser. Isso significa que a autonomia61
dos povos indígenas deve ser garantida e resguardada, e mais:
indica a vontade dos próprios indígenas de serem os respon-
sáveis e partícipes dos processos voltados aos seus povos, às
suas comunidades, e que devem dar concretude, sentido e vida
aos seus direitos.
Pensar uma educação verdadeiramente inclusiva e plural,
a qual busca avançar na igualdade entre os gêneros nos povos
indígenas, exige esforço e reconhecimento da gestão pública
sobre essa demanda. Existem poucas iniciativas de políticas
públicas no âmbito da educação para reverter o quadro da
desigualdade entre os gêneros e, quando somada à discussão
da perspectiva étnica, é ainda mais invisível. Um exemplo de
iniciativa para discutir as questões de gênero na formação de
professores é o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE),
idealizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, no
ano de 2005, em parceria com o Conselho Britânico.
O curso tem sido oferecido gratuitamente pela Universida-
de Aberta do Brasil (UAB) no formato de ensino a distância
com o objetivo de formar professoras/es nas temáticas de gê-
nero, relações étnico-raciais e orientação sexual. Trabalhar a
formação de professores para lidar com as questões de gênero
é um passo importante para a mudança dos valores sociais, e o
GDE, desde a sua criação, tem cumprido esse papel. A inserção
do recorte étnico ou a criação de um curso/programa específi-
co poderia suprir essa lacuna.

61 Compreendemos que a autonomia indígena significa permitir-lhes o uso de suas


regras, que, de acordo com Luciano (2006), no âmbito do Estado brasileiro implica
duas formas possíveis: a primeira, como permissão para que os povos indígenas
se ocupem dos próprios assuntos e mantenham seus usos e costumes; a segunda,
como um regime político-jurídico pactuado e não somente concebido, que impli-
ca a criação de uma coletividade política na sociedade nacional, não isentando de
responsabilidades o Estado e os governos quanto às suas obrigações de prestarem
assistência e proteção e de salvaguardarem a cidadania.

288 Gênero, desenvolvimento e território

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A igualdade de gênero pensada com o recorte étnico é um
elemento importante para o desenvolvimento, pois refere-se à
igualdade de direitos, às responsabilidades e às oportunidades
de que os povos indígenas devem gozar, independentemente de
terem nascido homem ou mulher. É por meio da educação que
hábitos, costumes e valores são (re)construídos de uma geração
para outra. A educação possibilita a construção de ideias políti-
cas, sociais, formas de ser e de se comportar, podendo estimular
o exercício da tolerância e do respeito ao diferente.
Considerando as questões até aqui expostas, defende-se
a necessidade da promoção de planejamentos pedagógicos e
produção de material didático com a participação das/os pro-
fessoras/es indígenas, tanto em português como em suas lín-
guas maternas, para facilitar o processo de ensino e aprendiza-
gem nas escolas das sociedades indígenas e também valorizar
e respeitar suas culturas e vivências.
Esse material será de grande importância para subsidiar os
currículos das escolas, além de desencadear um importante
processo de construção do conhecimento e pesquisa pelos pro-
fessoras/es e alunas/os. Nessa perspectiva, a professora/or não
será um receptor passivo dos saberes da cultura escolar, mas
sim um/a pesquisadora/or, formuladora/or e intérprete dos sa-
beres socializados por meio do diálogo, do desenho e da escrita.
Os materiais didáticos construídos, instrumentos básicos
no processo de ensino e aprendizagem, tornam-se, ainda, re-
gistros da memória e cultura local, além de servirem como
veículo de socialização do saber tanto na própria comunida-
de como no intercâmbio com outras comunidades indígenas
e não indígenas. Enfim, torna-se mister contribuir para o pro-
cesso de autonomizacão e protagonismo indígena por meio da
educação escolar, propondo a elaboração de materiais didáti-
cos pelos próprios membros das escolas indígenas, que, além
de estimular a ação criativa, deverá ser socializada com outras
comunidades indígenas.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 289

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 289 29/10/2015 16:20:08
É nesse contexto que a diversidade se fortalece como te-
mática central, pois aborda questões que têm estreita relação
com as práticas pedagógicas vivenciadas e com as relações de
poder exercitadas dentro e fora do espaço escolar. Entende-se
igualmente oportuno perceber as relações de gênero na edu-
cação, pois não é possível “enfrentar os problemas centrais da
educação [...] sem uma adequada apropriação do conceito de
gênero” (CARVALHO, 2008, p. 120).
Compreende-se por gênero uma categoria classificatória,
que, como nos diz Machado (2000), pode ser o ponto de parti-
da para desvendar as mais diferentes e diversas formas de as
sociedades estabelecerem as relações sociais entre os gêneros,
ou seja, as relações de gênero são “transversais e relacionais”,
vinculadas às relações sociais e parte do movimento contradi-
tório que permeia a vida de homens e mulheres.
Ao articular o multi(inter)culturalismo com as questões de
gênero, aponta-se para a necessidade de não fixidez nem uni-
versalização das relações entre homens e mulheres. Remete à
ideia de que essas relações sociossimbólicas são construídas e
transformáveis, bem como diferentes em cada sociedade, cul-
tura e etnia. “O suposto é que todas as sociedades e culturas
constroem suas concepções e relações de gênero” (MACHADO,
2000, p. 6). Mas será que a escola, em geral, e a educação escolar
indígena, em particular, tem proporcionado essa articulação?
Sabe-se que muitos assuntos ainda são tabus nas escolas,
ou sequer são discutidos, e os que envolvem as relações entre
homens e mulheres na maioria das vezes são postos na seara
privada e/ou naturalizadas como derivados das diferenças de
sexo (biológicas). Assim, compreender que a função da esco-
la não é reproduzir modelos – mas sim transformá-los – é o
ponto inicial para a constituição de uma escola específica, di-
ferenciada e plural, que na perspectiva freireana é libertadora,
pois o homem é um ser de relações e não só de contatos, não
apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mun-

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do resulta de abertura à realidade. Por fim, acreditamos que
a convivência com o diverso, o diferente, proporciona a cons-
trução de uma sociedade mais plural, justa, igual, solidária e
verdadeiramente democrática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas culturais e identitárias na escola devem estar


relacionadas aos estudos e práticas pedagógicas, sejam elas
indígenas ou não. No cotidiano escolar, as práticas culturais e
de afirmação da identidade devem ter por entendimento que
os sujeitos se constroem nas relações com os outros, e que,
mesmo existindo nos homens e nas mulheres características
compreendidas como permanentes, eles estão em constante
transformação e construção, visto que se transformar é uma
condição essencialmente humana.
Logo, os currículos escolares devem respeitar as diferenças
étnicas, de gênero, de identidade e de crença dos seus atores,
e se firmarem não em características monoculturais, mas sim
multi(inter)culturais. As propostas pedagógicas devem pro-
porcionar uma educação que promova o respeito, o reconheci-
mento e a aceitação do outro, do diferente.
Para as escolas indígenas assegurarem uma educação es-
pecífica, multi(inter)cultural, diferenciada e autônoma, não é
suficiente apenas que os conteúdos sejam ensinados por meio
do uso das línguas maternas, mas se faz necessário incluir con-
teúdos curriculares propriamente indígenas e acolher os mo-
dos próprios de transmissão e construção do saber indígena.
E mais, é imprescindível que a elaboração dos currículos, en-
tendida como processo de permanente construção, se faça em
uma estreita relação com a escola e a comunidade indígena a
que serve, e sob a orientação desta.

Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 291

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Entende-se que educação indígena é diferente de escola in-
dígena, pois aquela é anterior a esta e ultrapassa a concepção
de se ter alunas/os e professoras/es indígenas na escola, visto
que isso não faz de uma escola uma escola indígena. Vale ressal-
tar ainda que uma instituição escolar não é uma escola indígena
só porque está no ambiente de índios; uma escola não se tor-
na uma escola indígena só porque transmite os conteúdos que
veem nos livros elaborados pelos não índios, na língua indígena.
A educação indígena tem sua identidade em seus conteú-
dos, métodos de ensino, aprendizagem e avaliação, segundo a
diversidade étnica dos povos. Ela é uma realidade que acom-
panha todo o processo de desenvolvimento dos homens e mu-
lheres indígenas, buscando a valorização das diferenças e di-
versidades.
No Amazonas, além de contribuir para a formação de uma
identidade regional, acredita-se que o conhecimento das cul-
turas e das identidades indígenas são necessários para não
se incorrer no erro de análises e práticas destituídas de um
contexto histórico e cultural específico, pois um desafio a ser
alcançado pelos povos indígenas é vivenciar no cotidiano de
suas escolas um currículo multi(inter)cultural que favoreça a
construção das múltiplas identidades. Nessa direção, a incor-
poração da perspectiva de gênero para a promoção de uma
educação escolar indígena com igualdade de gênero deve ser
construída a partir das multiplicidades étnicas e culturais.

292 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 292 29/10/2015 16:20:08
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__________. “Resolução CP nº 1, de 17 de junho de 2004”. Institui


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

294 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 294 29/10/2015 16:20:08
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasi-
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Os limites do desenvolvimento na perspectiva de gênero 297

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298 Gênero, desenvolvimento e território

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POSFÁCIO:
O INTERESSE DO GÊNERO
PELOS TERRITÓRIOS62
Sophie Louargant

Certas questões de pesquisa merecem ser mais explicitadas


do que outras. A relação de homens e mulheres em seu espaço
de forma mais ampla nos territórios faz parte dessas questões.
Porque as questões feministas tratam das formas de violências
contra as mulheres, das formas de dominação (prostituição, tra-
balho precário, migração), das formas de reconhecimento, das
formas de participação, elas estão no coração do espaço e dos
territórios. De fato, o conceito de território é então ligado às
questões de gênero para compreender o lugar das mulheres na
sociedade, na sua relação com o espaço. A conivência entre as
lutas feministas e a constituição de uma pesquisa feminista fun-
dada sobre uma epistemologia da desconstrução das relações
entre homens e mulheres conduziu a responder problemáticas
sociais e políticas, e a desmascarar a dominação masculina pre-
sente nas sociedades. Elas foram igualmente permitidas a com-
preender a construção masculina nas relações de poder cons-
truídas pelos tomadores de decisão da política e da economia.
Assim, o número de pesquisas definiu categorias binárias
na origem da criação de relações dissimétricas e hierarqui-
zadas nas sociedades: “os opressores”, “os dominadores”, “os
oprimidos”, “os dominados” presentes nas sociedades patriar-

62 Texto original em francês, traduzido para esta obra por Elaine Cristina Rodrigues
Aguiar.

Posfácio 299

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cais. Esse caminho necessário permitiu “colocar os óculos” do
gênero, apontar os efeitos de dominação, mas igualmente as
possibilidades de emancipação para as mulheres. Hoje, não se
trata mais de olhar unicamente de maneira homogeneizante
a categorização, todas as mulheres de uma mesma sociedade
evoluindo dentro de um contexto político, cultural e social si-
milar, para questões de classe, de gênero, de origem, não têm
as mesmas capacidades de aceder à emancipação, ao reconhe-
cimento, a “ter” lugar no espaço e na sociedade.
Compreender a relação de gênero no território (LOUAR-
GANT, 2003; BARD, 2004) é entender a maneira onde as re-
lações sociais de sexo impacta a relação no espaço, no tempo
e no lugar. Essa postura liminar desenvolvida nos trabalhos
geográficos, sociológicos, antropológicos de gênero conduziu
determinar os espaços de diferenciações, de usos, de práticas,
de territorialidades, das formas de hierarquizações que se im-
põem mais do que elas não se jogam ou se negociam. Os efei-
tos de gênero sobre a construção das sociedades e dos espaços
são, então, múltiplos, mas são por trato comum de mostrar as
formas de dominação e de hierarquizações. Essas últimas, bem
que denunciadas, tiveram por efeito favorecer as formas de co-
nhecimento sem, portanto, reforçar realmente as capacidades
das mulheres em se expressarem, em se reconhecerem, em
pertencerem aos territórios tanto que utilizadoras, que cidadãs
à parte inteira sem acreditar em serem vulneráveis em face das
violências verbais, físicas, diante do acesso aos transportes, aos
equipamentos, aos parques urbanos, ao mercado de trabalho.
Essas constatações explicam que novas relações de domi-
nação são de uma atualidade crucial e acentuam de uma con-
frontação à austeridade, à sexualidade, à corporeidade, à hete-
ronormatividade e à origem. Eles revelam mais sobre os efeitos
de uma maior metropolização, de uma aceleração dos fluxos
materiais e virtuais, de uma precarização dos empregos, res-
postas são esperadas ao nível local. De fato, ele não será capaz

300 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 300 29/10/2015 16:20:08
de ter uma leitura unicamente dos efeitos de gênero nos terri-
tórios pelos usos, ele não se trata de delimitar, dentro de cada
contexto nacional e local, as respostas propostas pelas autori-
dades locais em se questionando: Como elas são elaboradas?
Por quem elas foram portadas (coletivos, eleitas, lobby)? Qual
denominação foi retida para expor uma política de igualdade
entre homens e mulheres? As feministas reivindicam? Ou, ao
contrário da questão de igualdade entre homens e mulheres,
esteve ela inserida dentro de uma temática (discriminações),
um outro objetivo (desenvolvimento durável, Agenda 21, mobi-
lidade e transportes) para melhor invisibilizá-la? Qual foi o pa-
pel das associações? Esses dispositivos foram realmente postos
em prática? Qual protocolo gerado na observação pode colo-
car em prática e experimentado com os primeiros envolvidos?
Como os homens se posicionam sobre as evoluções culturais?
Eles estavam implicados nas iniciativas conduzidas?
Essas questões permitem olhar que o gênero é, antes de
tudo, uma questão coletiva e que a categorização produzida
pelas instituições internacionais não são sempre adaptadas
para serem postas numa aproximação de gênero e do desen-
volvimento. Na hora em que as identidades de gênero se abrem
nos territórios e se agenciam sob o olhar de uma hibridação
cultural, social e espacial, as aprendizagens das aproximações
de gênero são necessárias para colocar em prática uma pe-
dagogia do gênero no ato a todas as escalas de decisão e ne-
gociação. Para alcançar os novos arranjos presentes entre as
relações de gênero e compreender os agenciamentos possíveis
entre os coletivos associativos, os cidadãos, os operadores de
franquias culturais, a travessia de fronteira é possível se, toda-
via, a sociedade é preparada democraticamente a aceitar essas
travessias. A importância do debate público, o reconhecimento
(FRASER, 2005) toma corpo nas sociedades nas quais os espa-
ços são sob contrastes, submetidas nas normas internacionais
econômicas e culturais dominantes que reforçam os efeitos de

Posfácio 301

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 301 29/10/2015 16:20:09
invisibilização das mulheres, de vulnerabilidade das mulheres.
Essas pesquisas não podem ser feitas sem trocas múltiplas na
vista da circulação das pessoas em nível mundial e no olhar
da circulação dos conceitos de gênero em nível internacional.
Essas trocas são então produzidas dentro de uma figura alter-
nativa nas construções territoriais existentes, que as mulheres
conhecem bem: as redes, entre universitárias, entre coletivos,
mas igualmente construindo as experimentações com as mu-
lheres diretamente interessadas. É necessário, então, abordar
os pontos de vista sobre os jogos atuais, como o ecofeminista,
a emancipação e os movimentos sociais nos países em desen-
volvimento ou resiliência.

REFERÊNCIAS

BARD, Christine. Le genre des territoires: masculin, féminin,


neuter. Angers: Presses de l’Université d’Angers, 2004.

FRASER, Nancy. Qu’est-ce que la justice sociale? Reconnaissan-


ce et redistribution. Paris: La Découverte, 2005.

LOUARGANT, Sophie. L’approche de genre pour relire le terri-


toire. Thèse de doctorat. Grenoble: Université Joseph-Fourier,
2003.

302 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 302 29/10/2015 16:20:09
SOBRE OS AUTORES

Ariane Serpeloni Tavares é graduada em Psicologia (Univer-


sidade Estadual de Londrina), especialista em Gestão de Pes-
soas (PUC-PR) e Gestão Empresarial (UFT), mestre em Desen-
volvimento Regional (UFT). Atua na área de Gestão de Pessoas
e na Docência do Ensino Superior e desenvolve pesquisas na
área de Gênero e Carreira Científica.

Cynthia Mara Miranda é graduada em Comunicação Social


pela Universidade Federal do Tocantins (2004), mestrado e
doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Brasí-
lia (2012). Atualmente é professora-adjunta da Universidade
Federal do Tocantins (UFT) no curso de Comunicação Social
e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Re-
gional. Pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de
Gênero (NEDiG) da UFT, foi pesquisadora visitante em 2011
na Universidade de Carleton, em Ottawa/Canadá, pelo Progra-
ma “Emerging Leaders of the Americas”, e integrou o Grupo
de Trabalho sobre Jovens Mulheres na Secretaria Nacional da
Juventude da Presidência da República entre os anos de 2011 e
2013. Área de pesquisa: movimentos sociais, desenvolvimento
regional na perspectiva de gênero, políticas públicas de igual-
dade e políticas públicas de juventude.

Denyse Côté é graduada em Organização Comunitária, mes-


tre em Política pela Universidade de Ottawa, doutora em So-
ciologia na Universidade de Montreal. É professora titular do
Departamento de Trabalho Social da Universidade do Québec
em Outaouais (Québec, Canadá) e dirige o Observatório so-

Sobre os autores 303

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 303 29/10/2015 16:20:09
bre o Desenvolvimento Regional e Análise das Diferenças de
Sexo (Orégand): <www.oregand.ca>. Área de pesquisa: grupos
comunitários e grupos comunitários de mulheres com foco
nas relações do setor associativo com as autoridades locais e
regionais no quadro da nova governança descentralizada no
Québec. Coordenou durante vários anos pesquisas sobre o su-
jeito e, mais recentemente, estuda as intervenções dos grupos
de mulheres haitianas no periodo pós-terremoto.

Denyse Mello é pós-doutora pelo Centro de Estudo Latinoa-


mericano da Universidade da Flórida e atua no Programa de
Iniciativas de Liderança em Conservação da Floresta Tropical.
No doutorado, estudou o efeito dos microempreendimentos
no empoderamento socioeconômico das mulheres rurais da
Amazônia brasileira, tendo como caso de estudo empreendi-
mentos dos estados do Acre e do Pará. Ela publicou, como co-
autora (com Francisco Costa e Silvio Brineza Jr.), Mercados e
potencialidades dos produtos de floresta secundária (Caderno
do Naea 2009), e também como coautora (Edit. por Linda Ber-
rón Sañudo), Project of the Women’s Group from the Sustainable
Settlement “Bandeirantes” – in Everything Counts! Valuing envi-
ronmental initiatives with a gender equity perspective in Latin
America (IUCN, 2004). Além disso, presta consultorias volta-
das à capacitação e a pesquisas com enfoque gênero, especifi-
camente com foco no papel das mulheres rurais no desenvolvi-
mento econômico socioambiental na Amazônia brasileira.

Diana Andreza Rebouças Almeida é bacharel em Serviço So-


cial pela Universidade Estadual do Ceará (Uece) e especialis-
ta em Políticas Públicas de Gestão de Seguridade Social pela
Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Assistente social
da Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (Semsa) e da Se-
cretaria de Estado da Saúde do Estado do Amazonas (Susam).

304 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 304 29/10/2015 16:20:09
Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em
Saúde Coletiva.

Gleys Ially Ramos dos Santos, geógrafa, mestre em Desen-


volvimento Regional pela Universidade Federal do Tocantins
(UFT), doutora em Geografia pela Universidade Federal de
Goiás (UFG) e pós-doutora em Geografia pela Universidade
Federal do Tocantins (UFT). Professora convidada do curso
de Geografia da UFT e professora-adjunta do ITPAC/Porto, é
pesquisadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de Gênero
(NEDiG) e do Núcleo de Estudos Urbanos, Regionais e Agrários
(Nurba). Área de pesquisa: Desenvolvimento Regional, Geo-
grafia Agrária, Movimentos Sociais, Geografia e Gênero.

Marcos André Ferreira Estácio possui graduação em Peda-


gogia pela Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (Fafi-
dam), da Universidade Estadual do Ceará (Uece), mestrado em
Educação pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), é
doutorando em Educação pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesqui-
sa do Estado do Amazonas (Fapeam) no Programa de Apoio à
Formação de Recursos Humanos Pós-Graduados do Estado do
Amazonas – RH-Doutorado. Atualmente é professor assistente
da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Tem experi-
ência na área de Educação, com ênfase em História Geral da
Educação, em História da Educação Brasileira e Amazônica e
em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica, atuando
principalmente nos seguintes temas: Educação, Ensino Supe-
rior, Indígenas, Movimentos Sociais, Amazonas, Ação Afirma-
tiva e Democracia.

Maria Izabel Valença Barros é advogada, graduada pela Uni-


versidade Cândido Mendes (Ucam, RJ), mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Federal

Sobre os autores 305

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 305 29/10/2015 16:20:09
Fluminense (UFF). Desenvolve estudos e pesquisas na área de
Gênero e Famílias, principalmente no que concerne ao tema
Adoção, mais precisamente sobre os efeitos da destituição do
poder familiar na vida das mulheres pobres.

Maria Teresa Nobre é psicóloga, doutora em Sociologia pela


Universidade Federal do Ceará (UFC), professora do curso de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Desenvolve trabalhos de pesquisa-intervenção sob uma pers-
pectiva etnográfica, principalmente junto aos seguintes cam-
pos: Saúde Coletiva e Segurança Pública, Políticas Públicas,
Direitos Humanos, Relações de Gênero, Violência Institucional
e Práticas de Resistência. Membro do Observatório de Saúde
Mental da UFRN e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ex-
clusão, Cidadania e Direitos Humanos (Gepec) da UFS.

Marianne Schmink é professora emérita e distinguida docen-


te de Estudos Latinamericanos e Antropologia na Universida-
de da Flórida, onde serviu como diretora do Programa de Con-
servação e Desenvolvimento Tropical (TCD) de 1988 a 2010.
Ela publicou, como coautora (com Charles H. Wood), Conflitos
sociais e a formação da Amazônia (Editora da UFPA, 2012) e
(com Mâncio Lima Cordeiro) Rio Branco: a cidade da Floresta-
nia (2008, UFPA/Ufac), além de três coletâneas e mais de 50
artigos, capítulos de livros e relatórios.

Milena Fernandes Barroso é professora assistente da Uni-


versidade Federal do Amazonas (Ufam), Campus de Parintins
(AM). Doutoranda em Serviço Social pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestra em Serviço Social e
Sustentabilidade pela Ufam. Bolsista da Fundação de Ampa-
ro à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) no Programa

306 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 306 29/10/2015 16:20:09
de Apoio à Formação de Recursos Humanos Pós-Graduados
para o Interior do Estado do Amazonas – RH-Interiorização.
Assistente social formada pela Universidade Estadual do Ce-
ará (Uece). Experiência nas áreas de Serviço Social Aplicado à
Saúde, Direitos Humanos, Gênero e Violência contra a Mulher.
Atualmente desenvolve pesquisa sobre Desenvolvimento, Vio-
lência e Políticas Públicas para as Mulheres na Amazônia.

Nívia Valença Barros é professora associada do curso de Ser-


viço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Douto-
ra em Psicologia, mestre em Educação e graduada em Serviço
Social. Atualmente, pós-doutoranda pelo Centro de Ciências
Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenadora do Núcleo
de Pesquisa sobre Direitos Humanos e Cidadania (Nudhesc-U-
FF). Desenvolve estudos e pesquisas na área de Gênero, Famí-
lias, Geração, Direitos Humanos, Segurança Pública e Proteção
Social, com ênfase na Violência contra Mulheres, Criança e
Adolescentes e de Gênero; Direitos Sociais; Assistência, Gêne-
ro e Famílias.

Rita de Cássia Santos Freitas é professora associada do curso


de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, pós-doutora pelo Centro de Ciências Sociais da Uni-
versidade de Coimbra. Vice-coordenadora do Programa de Es-
tudos Pós-Graduados em Política Social (UFF) e coordenadora
do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social. Área
de pesquisa: Gênero, Famílias, Geração e Proteção Social, com
ênfase na Violência contra Mulheres e Violência de Gênero;
Saúde da Mulher; Assistência, Gênero e Famílias.

Rosana Ribeiro Moraes é graduada em Serviço Social pela


Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Desen-
volvimento de Áreas Amazônicas pelo Núcleo de Altos Estudos

Sobre os autores 307

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Amazônicos e Terapia Familiar pela Universidade da Amazônia,
mestre em Políticas Públicas pela UFPA. Atua como técnica da
Coordenadoria Estadual de Promoção dos Direitos da Mulher
no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação
de Violência (Cram/Ananindeua), que é vinculado à Secretaria
de Estado de Justiça e Direitos Humanos. Área de pesquisa: Re-
lações de Gênero, Direitos Humanos e Políticas Públicas.

Silvia Lilian Ferro é licenciada em História pela Universidade


Nacional del Litoral (Argentina), diplomada em Gênero e Políti-
cas Públicas pela Prigepp-Flacso (Argentina), mestre em Inves-
tigações Feministas e doutora em Ciências Sociais pela Univer-
sidade Pablo de Olavide, Sevilla (Espanha). É pós-doutora em
Economia e Sociedade e professora do Programa de Mestrado
em Ciências Agrárias na Universidade Nacional do Entre Rios
(Argentina). Foi consultora do Ministério de Agricultura, Gana-
deria y Pesa dela República Argentina nos temas relacionados a
Gênero, Desenvolvimento Rural e Empresa Familiar Agropecuá-
ria, os quais são suas atuais áreas de pesquisa.

Sophie Louargant é mestre de conferências na Universidade


Pierre Mendès France (UPMF) em Grenoble e pesquisadora
na UMR Pacte. Ela é membro do Grupo de Interesse Científico
de Gênero (Gis Genre, http://www.mshparisnord.fr/gis-insti-
tut-genre). Ensina Geografia e Planejamento Territorial. Seus
trabalhos de pesquisas se inscrevem no campo de estudos de
Gêneros, mobilizando uma aproximação cultural, social, políti-
ca dos territórios e das territorialidades. Analisa os processos
de construção de ação pública (em perspectiva) no olhar das
práticas individuais desde sua pesquisa de doutorado, Reler o
território por gênero (2003). Ela organizou, em 2012, em Gre-
noble, o colóquio Masculino e Feminino: diálogos geográficos
e além... <http://biennale-genre.sciencesconf.org/> e co-orga-
nizou na École Normale Supérieure (ENS), em Lyon, em 2004,

308 Gênero, desenvolvimento e território

Miolo Livro ''GÊNERO, ...'' - Corrigido Luiz - 10.indd 308 29/10/2015 16:20:09
o colóquio: Gênero, território, desenvolvimento: qual o aspec-
to geográfico? Ela é a autora de artigos e organizou números
de revistas científicas sobre esse tema. Para ver essas publi-
cações, acessar: http://www.pacte-grenoble.fr/blog/mem-
bres/louargant-sophie/; para ideias compartilhadas no blog:
http://genregeo.hypotheses.org/; para ouvir: <http://www.
franceculture.fr/personne-sophie-louargant>.

Temis Gomes Parente possui graduação em História pela


Universidade Federal do Piauí (UFPI, 1986), mestrado em
História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE,
1996) e doutorado em História pela Universidade Federal de
Pernambuco (2001). Pós-doutora pelo Centro de Desenvolvi-
mento e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar)/
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, 2010). Atual-
mente é professora associada II da Universidade Federal do
Tocantins (UFT). Bolsista de produtividade 2-CNPq. Coorde-
nou o Doutorado Interinstitucional em História (Dinter), UFT/
UFRJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos das Diferenças de
Gênero (NeDig) da UFT. Atua nas seguintes áreas: História do
Tocantins; História Regional; História e Gênero; História das
Mulheres; História Cultural; Gênero e Meio Ambiente.

Virginia Caroliny Silva Alexandre, assistente social pela


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), especialista em
Escola e Comunidade, mestre em Psicologia Social e doutoranda
em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Foi
pesquisadora visitante na Universidade de Ottawa em 2011
por meio do Programa “Emerging Leaders of the Americas”,
onde trabalhou com Saúde, Participação e Migração. É membro
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Exclusão, Cidadania e
Direitos Humanos (Gepec) da Universidade Federal de Sergipe.
Áreas de pesquisa: Etnográfica sobre Saúde, Participação,
Cotidiano, Politicas Públicas e Relações de Gênero.

Sobre os autores 309

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Este livro foi impresso em Manaus, em outubro
de 2015. O projeto gráfico – miolo e capa – foi
feito pela Valer Editora.

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