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Definição Cultural

1. Cultura: um conceito reacionário?


O conceito de cultura é profundamente que aparece na expressão “cultivar o espírito”. O
reacionário. É uma maneira de separar autor designa “sentido A” à “cultura-valor”, por
atividades semióticas (atividades de corresponder a um julgamento de valor que
orientação no mundo social e cósmico) em determina quem tem cultura, e quem não tem: ou
esferas, às quais, os homens são remetidos. se pertence a meios cultos ou se pertence a meios
incultos. O segundo núcleo semântico agrupa
O modo de produção capitalista funciona
outras significações relativas à cultura. Designa
também através de um modo de controle da
“sentido B” como a “cultura-alma coletiva”,
subjetivação, que o autor chamaria de
sinônimo de civilização. O terceiro núcleo
“cultura de equivalência” ou de “sistemas de
semântico, designado pelo autor, “sentido C”,
equivalência na esfera da cultura.” Desse
corresponde à cultura de massa e ele o chama de
ponto de vista o capital funciona de modo
“cultura-mercadoria”.
complementar à cultura enquanto conceito de
equivalência: o capital ocupa-se da sujeição Com a ascensão da burguesia, a cultura-valor
econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva. parece ter vindo substituir outras noções
E quando falo em sujeição subjetiva não me segregativas, antigos sistemas de segregação
refiro apenas à publicidade para a produção e social da nobreza. Já não se fala mais em pessoas
o consumo de bens. É a própria essência do de qualidade: o que se considera é a qualidade da
lucro capitalista que não se reduz ao campo cultura, resultando de determinado trabalho.
da mais-valia econômica: ela está também na
As elites burguesas extraem a legitimidade de
tomada de poder da subjetividade.
seu poder do fato de terem feito certo tipo de
• Cultura de massa e singularidade trabalho no campo do saber, no campo das artes
e assim por diante.
Essa cultura de massa produz, exatamente,
indivíduos: indivíduos normalizados, articulados Vai-se chegando à definição B, a da cultura-alma,
uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, que é uma noção pseudocientífica, elaborada a
sistemas de valores, sistemas de submissão – partir do final do século XIX, com o
não sistemas de submissão visíveis e explícitos, desenvolvimento da antropologia, em particular
como na etiologia animal, ou como nas sociedades da antropologia cultural. No início, a noção de alma
arcaicas ou pré-capitalistas, mas sistemas de coletiva é muito próxima de uma noção
submissão muito mais dissimulados. Não somente segregativa e até racista, grandes antropólogos
uma produção da subjetividade individuada- como Levy-Bruhl retificam essa noção de cultura.
subjetividade dos indivíduos- mas uma produção Fala-se, por exemplo, que as sociedades
de subjetividade social, uma produção da primitivas têm uma concepção animista do
subjetividade que se pode encontrar em todos os mundo, uma “alma primitiva”, uma “mentalidade
níveis da produção e do consumo. E mais ainda: primitiva” – noções que servirão para qualificar
uma produção da subjetividade inconsciente. modos de subjetivação que, na verdade, são
perfeitamente heterogêneos. E, depois, na
A palavra cultura teve vários sentidos no evolução das ciências antropológicas, com o
decorrer da História: seu sentido mais antigo é o estruturalismo e o culturalismo, houve uma
tentativa de se livrar desses sistemas de
apreciação etnocêntricos. Alguns continuaram a
ter uma visão etnocêntrica, outros, em mesma significação quando veiculada nos meios de
compensação, como Kardiner, Margareth Mead, elites sociais ou nos meios de comunicação de
Ruth Benedict, com noções tais como massa.
“personalidade de base”, “personalidade cultural
A cultura não é apenas uma transmissão de
de base”, “pattern cultural”, quiseram livrar-se
informação cultural, uma transmissão de
do etnocentrismo. Mas no fundo, pode-se dizer
sistemas de modelização, mas é também uma
que se essa tentativa consistiu em sair do
maneira de as elites capitalistas exporem o que
etnocentrismo – renunciar a uma referência geral
eu chamaria de um mercado geral de poder.
em relação à cultura branca, ocidental, masculina,
etc. – ela, na verdade, estabeleceu uma espécie A questão que se coloca agora não é mais “quem
de policentrismo cultural, uma espécie de produz cultura”, “quais vão ser os recipientes
manipulação do etnocentrismo. dessas produções culturais”, mas como agenciar
outros modos de produção semiótica, de maneira
Já a categoria cultura-mercadoria – o terceiro
a possibilitar a construção de uma sociedade que
método de sentido – se pretende muito mais
simplesmente consiga manter-se de pé. Modos de
objetiva: cultura aqui não é fazer teoria, mas
produção semiótica que permitam assegurar uma
produzir e difundir mercadorias culturais, em
divisão social da produção, sem por isso fechar os
princípio sem levar em consideração os sistemas
indivíduos em sistemas de segregação opressora
de valor distintivos do nível A (cultura-valor) e
ou categorizar suas produções semióticas em
sem se preocupar tampouco com aquilo que eu
esferas distintas da cultura.
chamaria de níveis territoriais da cultura, que
são da alçada do nível B (cultura-alma). Não se O autor diria que os problemas da cultura devem
trata de uma cultura a priori, mas de uma necessariamente sair da articulação entre os
cultura que se produz, se reproduz, se modifica três núcleos semânticos que evocou
constantemente. anteriormente. Quando os meios de comunicação
de massa ou os Ministros da Cultura falam de
Há uma complementaridade entre esses três
cultura, querem sempre convencer de que não
tipos de núcleos semânticos. A produção dos meios
estão tratando de problemas políticos e sociais.
de comunicação de massa, a produção da
Distribui-se cultura para o consumo, como se
subjetividade capitalista gera uma cultura com
distribui um mínimo vital de alimentos em
vocação universal. Esta é uma dimensão essencial
algumas sociedades. Mas os agenciamentos de
na confecção da força coletiva de trabalho, e na
produção semiótica, em todos esses níveis
confecção daquilo que o autor chama de força
artísticos, as criações de todas as espécies
coletiva de controle social.
implicam sempre, correlativamente, dimensões
Atrás dessa falsa democracia cultural continuou macros/micropolíticas. Neste momento, algumas
a se instaurar- de modo completamente pessoas na França, consideram muito importante
subjacente- os mesmos sistemas de segregação inventar um modo de produção cultural que
a partir de uma categoria geral da cultura. quebre radicalmente os esquemas atuais de
poder nesse campo, esquemas de que dispõe o
Os Ministros da Cultura e os especialistas dos
Estado atualmente, através de seus
equipamentos culturais, nessa perspectiva,
equipamentos coletivos e de sua mídia. Como
modernista, declaram não pretender qualificar
fazer para que a cultura saia dessas esferas
socialmente os consumidores dos objetos
fechadas sobre si mesmas? Como organizar,
culturais, mas apenas difundir cultura num
dispor e financiar processos de singularização
determinado campo social, que funcionaria
cultural que desmontem os particularismos
segundo uma lei de liberdade de trocas. No
atuais no campo da cultura e, ao mesmo tempo,
entanto, o que se omite aqui é que o campo social
os empreendimentos de pseudodemocratização da
que recebe a cultura não é homogêneo. A difusão
cultura?
do livro, do disco, etc., não tem absolutamente a
Não existe, ao ver do autor, cultura popular e mercado que inclui outras pessoas além de seu
cultura erudita. Há uma cultura capitalista que criador.
permeia todos os campos de expressão semiótica.
E isso que tento dizer ao evocar os três núcleos Cultura: um conceito antropológico
semânticos do termo “cultura”. Não há coisa mais
horripilante do que fazer a apologia da cultura Roque Barros Laraia
popular, ou da cultura proletária, ou sabe-se lá o
que dessa natureza. Há processos de Uso do conceito de cultura
singularização em práticas determinadas, e há
procedimentos de reapropriação, de recuperação, 2020.1- 1° período
operados pelos diferentes sistemas capitalistas.
Antônio Rafael Barbosa
No fundo, só há uma cultura: a capitalista. É uma
cultura sempre etnocêntrica e intelectocêntrica
(ou logocêntrica), segundo o autor, pois separa os
universos semióticos das produções subjetivas.

Assim como o capital, é um modo de semiotização


que permite ter uma equivalente geral para as
produções econômicas e sociais, a cultura é o
equivalente geral para as produções de poder. As
classes dominantes sempre buscam essa dupla
mais-valia: a mais-valia econômica, através do
dinheiro, e a mais-valia de poder, através da
cultura-valor.

• Resenha
O sentido A é definido como cultura-valor,
corresponde a um julgamento de valor que
determina quem tem e não tem cultura. É
manifestado, por exemplo, em certos diálogos
corriqueiros nos quais se fala que “tal sujeito é
bem-educado, estudou em colégios caros, tem
cultura”. O sentido B é o de cultura alma-
coletiva, algo que, todos têm, seria o conjunto de
produções, valores e modos de fazer e viver. A
cada alma coletiva (os povos, as etnias, os grupos
sociais) é atribuída uma cultura: em muitos
casos, é também sinônimo de civilização. O sentido
C proposto pelo autor é o de cultura-mercadoria,
como um produto posto em um mercado de
civilização monetário. É um sentido mais objetivo
que os outros dois, pois se refere a algo que
podemos ver e tocar: um livro, um quadro.
Poderíamos usar esse sentido para designar
outra noção, a de bens culturais, que seriam
aqueles objetos postos em circulação em um

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