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Fichamento da introdução e do primeiro capítulo do livro “Lugares para a história”,

de Arlette Farge.

FARGE, Arlette. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

Introdução

Algumas vias “marginais” que se oferecem ao historiador na atualidade se originam


de “encontros fortes e de um percurso votado ao estudo de documentos
específicos”. No caso da autora, arquivos de polícia do Setecentos (p. 7).

A autora afirma que bebeu de fontes como os pensadores Robert Mandrou e Michel
Foucault, com o intuito de “inventariar certos espaços do século XVIII”, levando em
consideração as idiossincrasias de um e de outro (p. 7).

Um ponto bastante discutido da ciência histórica é a preocupação do historiador


quanto aos laços existentes entre seu discurso e a sociedade em que tal discurso é
inscrito. Historiadores como Michel de Certeau e Marc Bloch já manifestaram tal
necessidade em suas obras (pp. 7/8).

A análise das obras de Mandrou e Foucault permitiram à autora “tentar produzir


formas de inteligência do outrora que sirvam para interrogar o hoje”. Foucault,
especificamente, questiona a obviedade do ser historiador, ao colocar em cheque as
posturas, métodos e convicções tanto da filosofia quanto da história. O pensador
promove em sua obra a desconstrução da possibilidade de “isenção” e “objetividade”
por parte do historiador e do filósofo (p. 8).

O debate acerca da objetividade do historiador é amplo e põe à mostra uma tensão


que faz parte da essência da história: a necessidade de verdade e de resultados
seguros versus a elaboração de pontos de vista que interessem à comunidade
social. O historiador necessita, assim, em seu trabalho, do saber-fazer e do querer-
fazer. Confrontar o passado e o presente de modo a articular o que desaparece com
o que aparece (pp. 8/9).

É necessário compreender os mundos passados sem se utilizar de julgamentos


demasiado modernos, pois se corre o risco de cair no anacronismo. As questões
que se colocam aos mortos não são as mesmas que se colocam aos vivos. O
historiador deve ser perguntar o que diz a história em face do que é e está e em face
do que vem, ou seja, em face do presente e do futuro, se perguntar o que diz o
passado (malgrado o paradoxo inerente a tal atividade). Além disso, “o discurso
historiador pode também ser uma prática de antecipação” (p. 9).

O livro se debruçará sobre situações históricas precisas do século XVIII, tal como
sofrimento, violência e guerra, além dos modos singulares de existir ou de ser e
estar no mundo. Tais aspectos ecoam na atualidade, ligados às configurações
existentes no mundo de hoje (pp. 9/10).

Foucault afirma que “a história tenta fazer aparecer todas as descontinuidades que
nos atravessam”. O descontínuo não se conecta automaticamente a um sistema liso
de continuidades e de causalidades evidentes. A história tem uma tendência a tudo
reconciliar e a tornar liso o que de fato não o é, o que dá ao leitor uma impressão
falaciosa de inelutabilidade da história. Para Emmanuel Terray, “quanto mais o
trabalho é conduzido de maneira aprofundada e convincente, mais as conexões
estabelecidas são indiscutíveis [...] e mais o leitor tem o sentimento de que as
coisas, com efeito, não podiam se passar de forma diferente daquela como se
passaram” (pp. 10/11).

Outro polo de atenção do livro são as “falas, fatos ínfimos, opiniões de um só”.
Segundo Foucault, tais fatos não devem ser para o historiador “tempo decaído, [...]
alguma coisa no devir que é irreparavelmente menos do que a história”. São, antes,
lugares em que se pode estudar o homem e a mulher em seus esboços, suas raivas
e seus fracassos. O que excede, quebra ou desloca a normalidade forma espaços
sobre os quais inclinar o olhar; o conhecimento não toma ciência e razão senão com
aquilo que o subverte e com as palavras de nada que organizam obscuras regiões a
pensar; a história também é feita dessa opacidade, aquela que se integra tão mal ao
relato ordinário do curso das coisas. Para Yves Bonnefoi, “a realidade, filha do
desejo, não é uma soma de objetos a descrever com mais ou menos fineza, mas
uma comunidade de presenças” (p. 11).

Tal atenção à desordem não recusa as interpretações usuais da história e tem como
objetivo encontrar efeitos de verdade que pode discernir. A busca de sentido e de
inteligibilidade, portanto, se coloca na pesquisa histórica como um gesto a mais, não
separado dos outros, que procura estabelecer as ligações entre passado, presente e
futuro (p. 12).

Do sofrimento

O historiador, por seu ofício, está encarregado de dar a uma sociedade sua
memória, seus laços com seu passado a fim de que possa viver melhor com seu
presente. Como ele dá conta do sofrimento? Como o trata? Que sentido lhe
empresta? Como o descreve? (p. 13)

A história tem verdadeiramente o costume de fazer do sofrimento um objeto de


pesquisa e reflexão? As guerras, as revoluções e as epidemias acarretam
sofrimento, sendo que o historiador se sente mais à vontade para falar das primeiras
do que deste último. Que ligação tecer com o sofrimento, que não seja de
indiferença, miserabilismo, denegação ou voyeurismo? O historiador, responsável
pelo enunciado dos acontecimentos que nos precederam, o é também pelo
enunciado dos sofrimentos que encontra em seus documentos, dado que por vezes
a memória do sofrimento é por vezes fator de acontecimentos ulteriores (p. 13).

Trata-se de um paradoxo o fato de que na disciplina histórica as situações, os


acontecimentos, os lugares e os objetos que provocam sofrimento estão largamente
representados. Representam um dos lugares de predileção da história, seja ela
publica ou privada (temas que abordam as rupturas e as descontinuidades no mais
das vezes sofridas: morte, doença, luto, violência, divórcios, parto, migrações e
separações, na vida privada, e motins, comoções populares, penúrias, criminalidade,
revoluções, guerras, revoltas e greves, na vida pública). São todos acontecimentos
de sofrimentos sociais, físicos e políticos. A razão para isso é que a ruptura e os
acontecimentos traumáticos são ao mesmo tempo delimitáveis e visíveis, além de
serem fontes de arquivos e documentos abundantes. A paz, a cotidianidade, a
tranquilidade, a doçura e o amor são escritos nos livros de literatura e não parecem
despontar na história através de acontecimentos. O historiador marca a
temporalidade quase sempre com tais descontinuidades sofridas, encadeando o
tempo através daquilo que o rompeu, quebrou, interrompeu com acontecimentos
dolorosos ou sangrentos (pp. 13/14).

A história, deste modo, é contada durante a maior parte do tempo através de


acontecimentos que causam sofrimento, porém paradoxalmente ela não o enuncia,
não o diz, não trabalha sobre as palavras que o exprimem e as que o rodeiam. Ela
trabalha sobre acontecimentos que implicam em catástrofes humanas e políticas,
mas não se volta (ou raramente o faz) para os ditos de sofrimento (p. 14).

O sofrimento não é visto como uma entidade a ser estudada enquanto tal, mas como
mera consequência dos fatos que o geram. Os gestos que o provocam, as
racionalidades que a ele conduzem, as palavras que o dizem de tal ou tal maneira e
aquelas que o acompanham não figuram como um objeto pleno sobre o qual refletir
e com algo que entra em interação com os acontecimentos (pp. 14/15).

Atualmente surgem exceções à paradoxal constatação anterior, tais como os


transtornos e reinterrogações do tempo presente levados a cabo pelos numerosos
testemunhos do sofrimento dos sobreviventes da guerra ou dos campos de
concentração. Em tempos mais recuados, no entanto, o sofrimento dito parece
pouco fazer parte do relato histórico, a não ser quando suas implicações políticas
são flagrantes (p. 15).

A partir do impulso gerado pela nova história e pela história das mentalidades, de
1975 a 1985, vários historiadores se debruçaram sobre o tema do sofrimento, dentre
eles Philippe Ariès, Michel Vovelle e Robert Favre. Os trabalhos de tais estudiosos
acerca da morte apontaram em certos momentos para a conclusão de que quanto
mais tivéssemos vivido em tempos recuados, menos teríamos sido sensíveis, mais a
barbárie, a crueldade e o sofrimento teriam sido considerados “normais” (pp. 15/16).

A despeito dos debates levados a cabo em torno da questão da morte, a seguinte


pergunta parece não ter sido feita: a morte é menos apavorante, menos
escandalosa, menos triste por ser visível, presente, ritualizada? A familiaridade com
a morte não impede o sentimento de arrancamento que dela decorre. Este tem
formas, palavras, modos de expressão que têm implicações sociais e políticas e
pertencem plenamente à história (p. 16).

Estas moradas vivas da história

Nos arquivos do século XVIII abundam queixas, processos verbais, interrogatórios e


testemunhos: os ditos do sofrimento. Fragmentos de miséria, relíquias da linguagem
do infortúnio. São palavras de sofrimento. Encontrá-los, retranscrevê-los, é um
primeira coisa, extremamente importante: é tão raro em história escutar as falas
(p.16).
Aprender essa fala e trabalhá-la é responder à preocupação de reintroduzir
existências e singularidades no discurso histórico e desenhar, a golpes de palavras,
cenas que são de fato acontecimentos (pp. 16/17).

O trabalho histórico se faz desde então a partir da função sempre movente, móvel,
cambiante – segundo os tempos e as situações – entre os ditos de sofrimento (p.
17).

Alguns exemplos podem esclarecer a proposição: a queixa na justiça do século XVIII


traz à luz um grande número de conflitos de ordem privada ou coletiva. A cada vez,
a queixa se apresenta como uma narração, um relato oral ademais, retranscrito pelo
escrivão: as notícias se atabalhoam aí na precipitação e numa certa emoção, o
sofrimento se diz de maneira pudica ou violenta segundo o caso. A guerra é o
exemplo do sofrimento por excelência, mas de um sofrimento avalizado – ou mesmo
engolido – pelo aspecto dito necessário e inevitável do conflito – aspecto jamais
interrogado. Confissão terrível: a dor significa, e a maneira como a sociedade a
capta ou a recusa é extremamente importante (pp. 18/19).

A dor política

A dor não é uma invariante, uma consequência inevitável de situações dadas; é um


modo de ser no mundo que varia segundo os tempos e as circunstâncias e que, por
essa razão, pode se exprimir ou, ao contrário, se recalcar, se expulsar ou se gritar,
se negar ou arrastar outrem para ela. O sofrimento pode tanto repugnar quanto
seduzir, gerar modos de assistência, sentimentos de compaixão. Assim, é preciso
tentar inscrever essas falas em temporalidades definidas e compreender sua
maneira de “se atualizar” no interior dos fenômenos coletivos que sustentam ou
rejeitam o sofrimento (pp. 19/20).

Os sistemas punitivos do Antigo Regime que infligem os suplícios são um meio de


governar; um dia, no entanto, esse sofrimento exibido provocará a dor naquele que o
olha (p. 20).

Pode-se também trabalhar sobre essa discreta, e muitas vezes muda, dor das
migrações, dos êxodos, dos deslocamentos de pessoas procurando trabalho em
todas as regiões, longe de toda sua vida afetiva tradicional, e compreender que
através desse sofrimento se tecem novos comportamentos e outras relações de
força (p. 20).

O sofrimento não é um resíduo de formas imutáveis; suas falas e seus gestos


animam uma sociedade e a irradiam por todos os lados (p. 20).

Quando se trabalha sobre os grupos sociais mais desfavorecidos e desapossados, o


sofrimento dos pobres é um tema forte. Visível, afastada, a fala sofrida, restituída
pelo historiador à sua história e a outrem, é um êxodo de que a escritura historiadora
deve traçar a viagem (p. 21).
Por certo, a anedota é o que aflora com maior frequência quando se trabalha sobre
essa multiplicidade de casos encontrados em arquivos, todos comoventes, todos
espantosos. Ora, a história não é um acúmulo de anedotas, e a fala encontrada em
arquivo, quando citada, deve ser a base a partir da qual o relato histórico avança e
se transforma ele próprio (p. 21).

O testemunho precisa da disciplina para entrar num processo rigoroso de


veridicidade e de coerência, essencial para a memória de nossas sociedades
presentes e por vir (p. 22).

Não criticar e não retrabalhar os testemunhos tira a coerência e a veridicidade da


história (p. 22).

A objetividade da história reside na possibilidade que seu sistema de inteligibilidade


tem de introduzir aquilo que vem perturbar sua linearidade, suas aproximações
médias, em suma, alguma coisa de sua serenidade. Neste caso, a emoção não é
uma deficiência para a pesquisa se aceitamos nos servir dela como uma ferramenta
de reconhecimento e conhecimento (pp. 22/23).

Assim, quando tratado pelo historiador em relação a outras épocas, parece


importante que o sofrimento seja trabalhado no contexto dos mecanismos de
racionalidade que o tornaram possível, a fim de determinar com a maior frequência
possível os meios que o teriam tornado evitável. Trabalhar sobre sofrimento e
crueldade em história é também querer erradicá-los hoje (p. 23).

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