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de Arlette Farge.
Introdução
A autora afirma que bebeu de fontes como os pensadores Robert Mandrou e Michel
Foucault, com o intuito de “inventariar certos espaços do século XVIII”, levando em
consideração as idiossincrasias de um e de outro (p. 7).
O livro se debruçará sobre situações históricas precisas do século XVIII, tal como
sofrimento, violência e guerra, além dos modos singulares de existir ou de ser e
estar no mundo. Tais aspectos ecoam na atualidade, ligados às configurações
existentes no mundo de hoje (pp. 9/10).
Foucault afirma que “a história tenta fazer aparecer todas as descontinuidades que
nos atravessam”. O descontínuo não se conecta automaticamente a um sistema liso
de continuidades e de causalidades evidentes. A história tem uma tendência a tudo
reconciliar e a tornar liso o que de fato não o é, o que dá ao leitor uma impressão
falaciosa de inelutabilidade da história. Para Emmanuel Terray, “quanto mais o
trabalho é conduzido de maneira aprofundada e convincente, mais as conexões
estabelecidas são indiscutíveis [...] e mais o leitor tem o sentimento de que as
coisas, com efeito, não podiam se passar de forma diferente daquela como se
passaram” (pp. 10/11).
Outro polo de atenção do livro são as “falas, fatos ínfimos, opiniões de um só”.
Segundo Foucault, tais fatos não devem ser para o historiador “tempo decaído, [...]
alguma coisa no devir que é irreparavelmente menos do que a história”. São, antes,
lugares em que se pode estudar o homem e a mulher em seus esboços, suas raivas
e seus fracassos. O que excede, quebra ou desloca a normalidade forma espaços
sobre os quais inclinar o olhar; o conhecimento não toma ciência e razão senão com
aquilo que o subverte e com as palavras de nada que organizam obscuras regiões a
pensar; a história também é feita dessa opacidade, aquela que se integra tão mal ao
relato ordinário do curso das coisas. Para Yves Bonnefoi, “a realidade, filha do
desejo, não é uma soma de objetos a descrever com mais ou menos fineza, mas
uma comunidade de presenças” (p. 11).
Tal atenção à desordem não recusa as interpretações usuais da história e tem como
objetivo encontrar efeitos de verdade que pode discernir. A busca de sentido e de
inteligibilidade, portanto, se coloca na pesquisa histórica como um gesto a mais, não
separado dos outros, que procura estabelecer as ligações entre passado, presente e
futuro (p. 12).
Do sofrimento
O historiador, por seu ofício, está encarregado de dar a uma sociedade sua
memória, seus laços com seu passado a fim de que possa viver melhor com seu
presente. Como ele dá conta do sofrimento? Como o trata? Que sentido lhe
empresta? Como o descreve? (p. 13)
O sofrimento não é visto como uma entidade a ser estudada enquanto tal, mas como
mera consequência dos fatos que o geram. Os gestos que o provocam, as
racionalidades que a ele conduzem, as palavras que o dizem de tal ou tal maneira e
aquelas que o acompanham não figuram como um objeto pleno sobre o qual refletir
e com algo que entra em interação com os acontecimentos (pp. 14/15).
A partir do impulso gerado pela nova história e pela história das mentalidades, de
1975 a 1985, vários historiadores se debruçaram sobre o tema do sofrimento, dentre
eles Philippe Ariès, Michel Vovelle e Robert Favre. Os trabalhos de tais estudiosos
acerca da morte apontaram em certos momentos para a conclusão de que quanto
mais tivéssemos vivido em tempos recuados, menos teríamos sido sensíveis, mais a
barbárie, a crueldade e o sofrimento teriam sido considerados “normais” (pp. 15/16).
O trabalho histórico se faz desde então a partir da função sempre movente, móvel,
cambiante – segundo os tempos e as situações – entre os ditos de sofrimento (p.
17).
A dor política
Pode-se também trabalhar sobre essa discreta, e muitas vezes muda, dor das
migrações, dos êxodos, dos deslocamentos de pessoas procurando trabalho em
todas as regiões, longe de toda sua vida afetiva tradicional, e compreender que
através desse sofrimento se tecem novos comportamentos e outras relações de
força (p. 20).