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Fio da Meada

Por Tathiane Piscitelli


Professora de direito tributário e nanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e
mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP

É possível uma reforma tributária antirracista?


É sabido que nosso sistema tributário é altamente regressivo, o que implica maiores
ônus sobre os mais pobres

São Paulo
19/11/2020 08h30 · Atualizado há uma semana

Novembro é o mês da consciência negra e debates com intelectuais negros ocupam a


pauta pública. Sendo o Brasil é um país em que 56,1% da população é negra, o que
vemos neste mês deveria ser o cotidiano. Contudo, o racismo estrutural presente em
nossa sociedade impede que todos os espaços de fala e privilégio sejam
paritariamente ocupados. Na discussão sobre a reforma tributária, não é diferente.

Mulheres negras são 27,8% da população nacional. Além disso, 40% das famílias
brasileiras, o equivalente a 57 milhões de lares, são chefiadas por mulheres. Dentre
esses, 57% estão abaixo da linha de pobreza. Se nos concentrarmos apenas nos lares
chefiados por mulheres negras, o percentual daquelas abaixo da linha de pobreza
aumenta para 64,4%.
Some-se a isso dados referentes à diferença salarial entre homens e mulheres,
considerando-se, também, o recorte racial. Segundo os dados mais recentes do IBGE,
as mulheres ganham, em média, 22% menos do que os homens. Já entre mulheres
negras e homens brancos, a diferença de rendimentos é de 53,6% em desfavor delas.
Há, ainda, a desigualdade intergênero, apontada por Sueli Carneiro no fim da década
de 80, que se mantém mais de 30 anos depois: a renda de mulheres negras equivale a
58,6% daquela das mulheres brancas. Já entre mulheres brancas e homens negros, o
cenário é igualmente alarmante: mulheres brancas ganham cerca de 26% mais do que
homens negros.

Esses números são a evidência da injustiça das estruturas que determinam a


distribuição de riqueza na nossa sociedade e revelam o racismo e machismo em que
estamos inseridos. Mas como se relacionam com o direito tributário? É sabido que
nosso sistema tributário é altamente regressivo, porque concentrado no consumo:
quase metade da arrecadação tributária provém de tributos sobre bens e serviços;
tributamos pouco a renda e a propriedade em índices irrisórios. A regressividade
implica maiores ônus tributários sobre os mais pobres, que arcam proporcionalmente
mais com os gravames advindos da tributação. No Brasil, esse grupo populacional tem
gênero e cor: são as mulheres pretas e pardas.

A tomada de consciência quanto a isso provoca uma necessária mudança de


perspectiva nos debates sobre a reforma tributária. É inviável (e inconstitucional, como
já destaquei em textos anteriores) cogitar de alterações que agravem ainda mais esse
cenário de desigualdade gritante.

Em mais de uma ocasião, já defendi que nosso direito tributário tem evoluído em bases
estéreis: por muito tempo, a academia se furtou de incorporar ao debate tributário os
impactos da tributação sobre as finanças públicas, sob o argumento de que reflexões
nesse sentido contaminariam o direito tributário com áreas que lhe eram estranhas.
Em nome de pureza científica, ficamos presos à célere frase de Alfredo Augusto Becker:
“o direito tributário termina no DARF”.

Nos últimos anos, porém, vejo alterações significativas nesse cenário. A conexão do
direito tributário com o direito financeiro e a percepção de que as formas de tributação
têm impacto no modo de financiamento do Estado e na maior ou menor realização de
valores caros à Constituição de 1988, como a redução das desigualdades sociais, tem
estado presente nas reflexões acadêmicas contemporâneas.

O mesmo movimento, parece-me, deve permear as discussões sobre a reforma


tributária. Propostas que ignorem o papel do direito tributário na redução das
desigualdades e acirrem a regressividade do sistema devem ser arduamente
combatidas. Os argumentos jurídicos são abundantes e a urgência social inegável. A
assunção da postura antirracista deve extrapolar os necessários programas de ação
afirmativa e ocupar a pauta pública também quanto à construção de políticas
tributárias antidiscriminatórias.

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