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Artigos

de pesquisa
Adolfo Pizzinato
Jorge Castellá Sarriera

Identidade Étnico-Nacional
e Competência Social
em Escolas de Porto Alegre
Ethnic and Nacional Identity and Social Competence
on schools of Porto Alegre (Brazil)

Resumo
Este estudo pretendeu identificar no que diferem crianças imigrantes de seus pa-
res não imigrantes no que diz respeito à competência social e à identificação étnico-
nacional. Para tanto a amostra foi composta por alunos e alunas de escolas públicas e
privadas de Porto Alegre (32 imigrantes e seus colegas de classe, perfazendo um total
de 575 alunos e alunas participantes). Foi adaptado para a pesquisa o Revised Class
Play com fins de avaliação da competência social, além de desenvolvido um instru-
mento de avaliação da auto-atribuição de identidade étnico-nacional. Os dados obti-
dos na investigação revelam a existência de diferentes perfis entre os grupos, com uma
percepção dos alunos imigrantes como mais isolados e menos agressivos e sociáveis
que seus colegas. Também revela-se uma importante tendência de hibridização identi-
tária entre ambos os grupos, indicando um processo adaptativo por parte dos imigran-

______
Adolfo Pizzinato: Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade, Doutorando em Psicologia de
l’Educació pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Grupo de Pesquisa Desenvolupament
Humà, Intervenció Social i Interculturalitat da mesma Universidade. Bolsista CAPES.

Jorge Castellá Sarriera: Psicólogo, Doutor em Psicología Social pela Universidad Autónoma de Madrid
(Espanha). Pesquisador do CNPq, Professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Psicologia
Comunitária da PUCRS.

______
Endereço para correspondência: E-mail: adolfo.pizzinato@campus.uab.es

Aletheia
Aletheia19, jan./jun. 2004
Canoas n.19 jan./jun. 2004 p. 7-20 7
tes e uma manutenção das raízes étnico-migratórias do estado do Rio Grande do Sul
por parte dos demais participantes.
Palavras-Chave: Imigração, competência social, identidade étnica.

Abstract
This studyng aims at identifying how immigrant children differ from their non im-
migrant peers concerning social competence and ethnical and national identity. The
sample was composed by students from public and private schools of Porto Alegre (Bra-
zil) (32 immigrant children and theirs classmates, in a total of 575 students, male and
female). We adapted to this research the Revised Class Play with the objective to evalu-
ate the social competence; besides, an instrument to evaluate self attribution of ethnic
and national identity was created. The data obtained at this investigation revealed the
existence of different profiles between the groups, with the perception of immigrant chil-
dren as being more isolated and less aggressive and sociable than their classmates. The
investigation also revealed an important tendency of identity’s hybridization within both
groups, indicating an adaptive process by the immigrants and maintenance of the ethni-
cal migratorial roots of the state of Rio Grande do Sul through the other participants.
Key words: Immigration, social competence, ethnical identity.

As migrações humanas são um fenô- cas que prezem a qualidade de vida e a igual-
meno constante ao longo da história e não dade entre as pessoas. Os principais objeti-
existe um povo ou nação que não seja her- vos envolvidos no desenvolvimento de pro-
deiro ou resultante de uma grande migra- gramas sociais junto a grupos migrantes,
ção. Desde 1750, mais de 350 milhões de são os que buscam evitar ou minimizar o
pessoas abandonaram seus países de ori- intenso processo de exclusão social ao qual
gem para instalar-se em outro destino (a estes grupos estão envolvidos. As origens
metade destes, europeus) e durante o sé- possíveis da exclusão, do rechaço ao outro,
culo XIX esta cifra chegou a representar estão vinculados à própria cidadania. Uma
quase 100 milhões, dos quais mais de 50% sociedade que funda o pertencimento dos
se vincularam a uma migração transoceâ- demais grupos sobre as bases de abertura,
nica com destino à América (EUA, Cana- diálogo e respeito, não se converte em uma
dá, Argentina, Brasil, Cuba e Uruguai) (Gar- sociedade excludente e segregacionista. Ao
cía, Martínez & Santolaya, 2002). contrário, a exclusão é o resultado inevitá-
Em 1989, a ONU estimava em 50 mi- vel de uma sociedade que concebe e prati-
lhões o número de pessoas (emigrantes, asi- ca a cidadania centrando-a exclusivamente
lados, refugiados, etc) que viviam fora de na unidade de seu grupo humano e, por
suas fronteiras. As contínuas guerras, a po- conseguinte, na irredutível divergência das
breza, a perseguição política e os desastres culturas, dos países e das civilizações (Pe-
ecológicos fizeram que em 1992 essa cifra trella, 1997; Sarriera, 2000).
fosse duplicada. Nesse sentido, a questão A eleição dos temas considerados por
da imigração internacional está se conver- esta investigação, atende a questões impor-
tendo em um dos desafios mais importan- tantes para a Psicologia Comunitária, es-
tes para os sistemas políticos, econômicos pecialmente dentro de um enfoque preven-
e sociais do mundo (García, Martínez & San- tivo, conforme sugerem Fernández-Ríos
tolaya, 2002). (1994), Sarriera (1998) e Gregório Gil, Díaz-
Nesta perspectiva, a preocupação com Gómez, e Rivas Nina (1994).
uma maior integração sócio-cultural dos Assim, o primeiro deles, a competên-
grupos minoritários, é um fator decisivo em cia social, nesta pesquisa é entendida como
termos de planejamento de políticas públi- as formas de manifestações ou ações soci-

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ais, por parte do grupo em relação a um inserida entre as tarefas e as estratégias soci-
membro e/o de um membro em relação ao ais elaboradas pelas próprias crianças em sua
grupo. Estas formas podem representar, interação durante o desenvolvimento de ati-
desajuste ou ajuste deste(s) em relação ao vidades entre pares. Estratégias sociais asso-
contexto social escolar, num determinado ciadas com a competência entre pares po-
momento. Estes desajustes envolvem si- dem ser avaliadas em termos de entrada no
tuações que representem algum risco de grupo, resolução de conflito e manutenção
isolamento ou agressividade para o indiví- das atividades (Guralnick, 1999; Pizzinato
duo em questão e/ou para outras pessoas & Sarriera, 2003).
com as quais se relacione. Os fatores de A interação social com outras pessoas,
ajuste dizem respeito à sociabilidade - li- principalmente em processos interativos
derança de um membro em relação a um nos quais existe suporte ou ajuda específi-
grupo de pertencimento e/ou do grupo em cos de uma das partes (a mais especializa-
relação a um indivíduo (Pizzinato & Sarri- da na dada situação), constituem elemen-
era, 2003). tos decisivos no desenvolvimento das habi-
Embora tenha sua relevância já afirma- lidades humanas (Coll, Palacios & Marche-
da nos estudos sobre a infância, a definição si, 1996; Mestres & Goñi, 1999).
de competência social ainda é vaga. Ter- Já a definição de identidade étnico-
mos como competência social, comporta- nacional, é ainda mais complexa, sobretu-
mentos pró-sociais, habilidades sociais, re- do se considerarmos a falta de tradição de
sultados sociais, condutas socialmente nossa psicologia em abordar os temas ditos
adaptadas ou adequadas, competência cog- “culturais” à partir de um referencial pró-
nitiva, e competência sócio-cognitiva mui- prio. Existem muitas confusões no meio
tas vezes são usados como sinônimos ou acadêmico sobre esse construto. Essa iden-
temas afins, sem maior distinção efetiva (Ji- tidade, como qualquer identidade coletiva,
ménez Hernández, 1995; Guralnick, 1999). é construída e transformada na interação
Estes termos são mais úteis se utiliza- de grupos sociais através de processos de
dos separadamente, como por exemplo, exclusão e inclusão que estabelecem limi-
para distinguir entre comportamentos so- tes entre tais grupos. Estes limites vêm a
ciais específicos (habilidades sociais) e o definir aqueles que integram ou não deter-
impacto destas condutas nos agentes soci- minados coletivos (Poutignat & Streiff-Fe-
ais (competência social). Além disso, as ori- nart, 1995).
gens destes conceitos são diferentes. A ori- As etnicidades trazidas e construídas
gem das habilidades sociais enquanto cons- por imigrantes, por exemplo, são situacio-
truto teórico advém dos modelos e inter- nais, e não identidades primordiais imutá-
venções comportamentais (operantes) e a veis. Em diversos momentos, os imigran-
competência social é um construto que tes e seus descendentes podem abraçar tan-
nasce da psicologia e da psiquiatria comu- to sua identidade de referência histórica,
nitárias (Jiménez Hernández, 1995; DuBois quanto à identidade do país de acolhida
& Felner, 2000, Pizzinato & Sarriera, 2003). (Lesser, 2001).
A competência social infantil pode ser A etnicidade, por sua vez, é uma for-
conceitualizada como a habilidade das cri- ma de organização social baseada na atri-
anças para, eficaz e apropriadamente, sele- buição categorial que classifica as pessoas
cionar e levar a cabo uma meta e realizar seus em função de sua origem suposta, que se
objetivos interpessoais. No contexto das in- acha validada na interação social pela ati-
terações entre pares, estas metas interpesso- vação de signos culturais socialmente dife-
ais usualmente tomam a forma de tarefas renciadores (Barth, 1969/1997). Esta defi-
sociais importantes como a inserção ativa em nição mínima é suficiente para circunscre-
grupos de pares, resolvendo conflitos ou ver o campo de pesquisa designado pelo
sustentando atividades. Esta concepção está conceito de etnicidade: aquele do estudo

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dos processos variáveis e nunca termina- te à realidade que muda (Constantino,
dos pelos quais os atores identificam-se e 2000, Pizzinato, 2003).
são identificados pelos outros na base da O simples fato que diferenças étnicas
dicotomização Nós/Eles, estabelecidas a par- existem dentro de uma mesma cultura, por
tir de traços culturais que se supõe deriva- exemplo, não identifica os elementos da
dos de uma origem comum e realçados nas amplitude do sistema de crenças culturais
interações sociais (Barth, 1969/1997, Pizzi- que direcionam as conseqüências desenvol-
nato, 2003). vimentais específicas, não apenas seu co-
Um dos mais importes postulados das nhecimento das interações, mas a natureza
teorias da etnicidade é que a identidade multidimensional de diferentes níveis nes-
étnica nunca se define de maneira pura- te sistema (McLaren, 1995/2000).
mente endógena, pela transmissão da es- Assim, uma sociedade plural que faz
sência e das qualidades étnicas por meio referência a grupos étnicos que não se assi-
do membership, mas que ela é sempre e ine- milem entre si encara que possam estar in-
vitavelmente um produto de atos significa- terdependentes em termos econômicos
tivos em relação a outros grupos (Barth, (Barth, 1969/1996). O pluralismo é enten-
1969/1997; Streiff-Fenart & Poutignat, dido como um conceito político que faz
1995/1997; Seyferth, 1997). Ela se constrói referência à crença da igualdade de poder
na relação entre a categorização pelos não- entre os principais grupos étnicos em situ-
membros e a identificação com um grupo ações coloniais, mas também na constru-
étnico particular. A pertença a um grupo ção de sistemas políticos democráticos (Pi-
étnico é questão de definição social, de in- zzinato, 2003).
teração entre a autodefinição dos membros
e a definição dos outros grupos. É esta re-
lação dialética entre as definições exógena Método
e endógena de pertença étnica que trans-
forma a etnicidade em um processo dinâ- Descrição da Amostra
mico sempre sujeito à redefinição e à re- A amostra foi composta por 575 cri-
composição (Barth, 1969/1997; Streiff-Fe- anças e adolescentes imigrantes e seus co-
nart & Poutignat, 1995/1997; Seyferth, legas imigrantes (32) de aula em salas con-
1997, Pizzinato, 2003). vencionais de escolas públicas e privadas
Os critérios ou parâmetros que se uti- de Porto Alegre, entre a 2ª e a 8ª séries do
lizam para determinar o pertencimento de ensino fundamental. A escolha das esco-
alguém a um dado grupo são muito hete- las a participarem da pesquisa, atendeu a
rogêneos, freqüentemente ambíguos e ma- um sorteio de um terço das 476 escolas
leáveis, e diferem no tempo e no espaço em de ensino fundamental de Porto Alegre.
que são colocados em funcionamento. Em Destas escolas sorteadas, participaram
geral, referem-se a ter nascido ou casado apenas aquelas em que havia alunos imi-
dentro de determinados grupos ou territó- grantes e que se dispusessem a partici-
rios, compartilhar determinados idiomas, par da investigação (total de 17 escolas
religiões e outras “heranças culturais” de diferentes).
conhecimento, apresentar caracteres feno- A amostra dos alunos não-imigrantes
típicos semelhantes e outras características (543) era composta de 51 % de meninos e
de conteúdo destas noções, de caráter pre- 49% de meninas, de acordo com a distri-
dominantemente político (Meyer, 1998). buição normal nas salas de aula e, a dispo-
A identidade étnica é uma construção sição das famílias em participarem da in-
cultural que se realiza em um período his- vestigação. A maioria das famílias dos par-
tórico, onde grupos étnicos em situações ticipantes tinha entre 3 e 5 integrantes
reais se recriam constantemente, e a etnici- (73,8%) e de orientação católica (51,4%). A
dade é sempre reinventada para fazer fren- maioria dos alunos estudou em menos de

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3 escolas (89%), embora estude há menos (Alpha de Crombach). Alcançou-se um re-
de 2 anos (41,6%) na escola atual. Apenas sultado alpha 0,88 na versão adaptada, con-
10,4% dos alunos são ajudados nas tarefas siderado um resultado satisfatório, posto
escolares pela família, em idioma que não o que a escala obteve alpha de 0,93 em sua
português. Entre os alunos, 25,3% já havia formulação original (Masten, Morison &
sido reprovado e, deste total, 27,7% foram Pellegrini, 1985).
reprovados pelo menos uma vez na 1ª série As 32 perguntas são de caráter nomi-
do ensino fundamental. Cerca de 73% dos nal, onde cada aluno preenche no espaço
alunos estudavam em escolas públicas e indicado o nome do colega que mais ca-
27% em escolas privadas. racteriza-se com a questão proposta (como
Entre o grupo de crianças imigrantes por exemplo: Quem é um(a) bom(a) líder?
(32), figuram 59,4% de meninos e 40,6% Ou Quem é normalmente triste?). Após cate-
de meninas, com famílias com número de gorização (de acordo com sexo e origem),
componentes entre 4 e 5 (72%) e de orien- é realizada a análise descritiva de tais re-
tação religiosa predominantemente católi- sultados.
ca (44%). Os países de origem mais fre-
qüentes na amostra foram o Peru e o Uru- Procedimentos de coleta dos dados
guai (18,8% cada); Angola e Alemanha O instrumento foi aplicado coletiva-
(9,4% cada); Colômbia, Chile, EUA e Bolí- mente em 32 turmas de ensino fundamen-
via (6,3% cada) e Japão, Líbano, Itália, Ar- tal de escolas públicas e privadas de Porto
gentina, Rússia e Israel (3,1% cada). A mai- Alegre, que tinham entre seus integrantes,
oria do grupo vivia há menos de 4 anos no alunos (as) imigrantes. A aplicação foi leva-
Brasil (64,5%), havia estudado em menos da a cabo pelo primeiro autor e uma auxili-
de 2 escolas diferentes (50,1%) e estudava ar de pesquisa, em sessões que variaram
há menos de 2 anos na escola atual (68,8%). entre 30 e 60 minutos. Nas instruções, ex-
Dentro deste grupo, 53,1% havia estudado plicava-se que a investigação objetivava co-
menos de 2 anos em seu país de origem, e nhecer melhor as relações entre os grupos
a mesma proporção de alunos possuía pais de alunos e alunas, sobretudo em contex-
que não utilizavam português na comuni- tos como os apresentados em Porto Alegre,
cação referente às tarefas escolares. Apenas onde figuravam pessoas advindas de ou-
15,6% destes alunos já havia sido reprova- tros países, estados e municípios, ou des-
do sendo a terceira série do ensino funda- cendentes diretas de pessoas que passaram
mental, a que obteve maiores escores de re- por tais mudanças.
provação (40%). A maior parte deles (65,6%) A Identidade Étnico-Nacional foi ava-
estudava em escolas públicas. liada de forma qualitativa, através de um
instrumento de caráter nominal, após mi-
Instrumentos nucioso rapport e apresentação de uma fo-
Para a avaliação da competência social lha contendo dezenas de possibilidades,
entre pares, foi utilizado o Revised Class Play dentre as quais os participantes seleciona-
(RCP) (Masten, Morison & Pellegrini, vam aquelas com que mais se identificavam.
1985). Este instrumento caracteriza-se pela Além das opções oferecidas, havia espaço
aplicação de forma sociométrica, com o para a eleição de outras possibilidades não
objetivo de uma avaliação de competência previstas.
dos aspectos que são considerados pela Foram realizados, inicialmente, conta-
cultura de cada grupo específico. Desta for- tos diretos com 17 escolas de Porto Alegre,
ma, cada sujeito atribui sua opinião aos públicas e privadas, que oferecem ensino
demais colegas e estes procedem de mes- fundamental com, pelo menos, uma crian-
ma forma em relação a ele. Para verificar a ça com experiência de imigração em, pelo
fidedignidade do instrumento, foi testado menos, uma turma, a fim de obter-se auto-
seu Coeficiente de Consistência Interna rização para a realização da pesquisa entre

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seus alunos. Antes da aplicação dos instru- Resultados
mentos, foi feita uma visita preliminar à es-
cola, onde foram entregues os termos de A Identidade Étnico-Nacional
consentimento informado a serem assina- Este construto foi avaliado principal-
dos pelos pais ou responsáveis de todos os mente à partir da questão: Aqui em Porto Ale-
alunos e alunas das turmas. A aplicação dos gre convivem pessoas de diferentes origens, com
instrumentos realizou-se apenas com o re- pais, avós e bisavós originários de outros países ou
torno do consentimento informado. As cri- estados. Portanto, em todo o Brasil, existem várias
anças não autorizadas por seus pais a par- formas de uma pessoa se identificar: como brasi-
ticiparem da pesquisa (em torno de 3,5%), leiros, italianos, alemães, uruguaios, etc... mar-
realizaram neste período alguma outra ati- que no quadro abaixo, a qual ou a quais destes
vidade, previamente combinada com seus grupos você acha que pertence mais. Após a ques-
(suas) professores (as). tão, apresentava-se uma série de opções que
Uma vez obtida a autorização e feita a caracterizam os principais grupos étnicos do
visita preliminar, combinou-se um horário estado, além de possibilitar a inserção de tan-
para entrar nas turmas de ensino funda- tas outras formas de identificação quanto
mental, na qual se realizou a aplicação gru- achassem necessárias. As respostas foram ca-
tegorizadas segundo seus conteúdos afins,
pal do instrumento de pesquisa junto aos
conforme o modelo de análise categorial pro-
alunos, durante uma hora. Os alunos tive-
posto por Clemente-Díaz (1992).
ram liberdade de optar por responder ou
As categorias foram definidas a posteri-
não à pesquisa. Foi elaborado um termo de ori, chegando a 7 categorias de conteúdo,
consentimento informado, a ser assinado assim distribuídas: (1) brasileira, (2) híbri-
pelas próprias crianças e por seus pais, an- das nacional-regionais (ex: brasileiro e gaú-
tes da aplicação do instrumento. cho, brasileiro e paulista), (3) híbridas naci-
onal-estrangeiras (ex. brasileiro e italiano,
Procedimentos de análise dos Dados brasileira e alemã, etc.), (4) híbridas estran-
Tratando-se de uma amostra intercul- geiras (ex. argentino e italiano, peruano e
tural, buscou-se identificar, através de uma espanhol, etc.), (5) híbridas regional-estran-
análise discriminante, que aspectos pre- geiras (ex. gaúcho e argentino, gaúcha e uru-
sentes na escala diferenciavam imigrantes guaia, etc.), (6) estrangeiras (ex. alemão, ita-
de não imigrantes, no que tange a compe- liana, polonesa, etc.) e de forma mais com-
tência social infantil no âmbito escolar. De plexa, (7) híbridas regionais, nacional e es-
mesma forma a descrição dos aspectos de trangeiras (ex. gaúcho, brasileiro e italiano,
identidade étnica auto-atribuída também gaúcho, brasileiro e argentino, etc.).
foram submetidos a uma análise descriti- Tais categorias, conforme ilustra a ta-
va antes de serem submetidos à análise ca- bela 1, encontram-se distribuídas de for-
tegorial. mas bastante diferentes entre os grupos.
Tabela 1: Distribuição por tipo de identidade étnica auto-referida entre os grupos de imigrantes e não
imigrantes. Freqüências e porcentagens.
Não Imigrantes Imigrantes
Freqüência Percentagem Freqüência Percentagem
1. Brasileira 58 10,68 1 3,1
2 Híbridas brasileira – regionais 20 3,7 0 0
3 Híbridas brasileira – estrangeiras 148 27,3 3 9,4
4 Híbridas estrangeiras 47 8,7 7 21,9
5 Híbridas regionais-estrangeiras 61 11,2 1 3,1
6 Estrangeiras 115 21,17 12 37,5
7 Híbridas regionais, nacional e 94 17.3 8 25,0
estrangeiras
Total 543 100 32 100

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Cerca de ¼ dos participantes imi- Lesser (2001), a etnicidade vem-se tornan-
grantes, definiu sua identidade como na do um tema mais popular no Brasil de hoje.
categoria 7, ou seja, mesclando a identi- Embora expressões tão óbvias ainda sejam
dade regional de “gaúcho”, com a nacio- novidade, a etnicidade foi de fundamental
nal brasileira e com a de seu país de ori- importância para a negociação da identi-
gem, além de muitas vezes acrescentar dade nacional brasileira nos últimos 150
origens étnicas de países que colonizaram anos (Lesser, 2001).
seu país de origem (como por exemplo, Essas identidades eram múltiplas e
nomear-se gaúcho, brasileiro, uruguaio e muitas vezes contraditórias, e os símbo-
espanhol). Essa aproximação identitária los disponíveis para serem usados e re-
para com o Brasil e o Rio Grande do Sul, trabalhados estavam em constante fluxo.
não se definiu nem pelo tempo de vida O processo de construção dessas identi-
no Brasil, nem pelo país de origem da dades não foi um processo fácil ou suave,
criança. Esse percentual obtido entre os e as tentativas de legislar ou impor a bra-
imigrantes (25%) é significativamente silidade nunca tiveram êxito. Ainda hoje,
maior do que o obtido entre os partici- no terceiro milênio, o Brasil permanece
pantes não imigrantes (17,3%). um país onde a etnicidade hifenizada é
A idéia de um Brasil “uno”, homogê- predominante, embora não reconhecida
neo, sem diferenças, conforme postulavam (Lesser, 2001).
os cientistas sociais da década de 1930 (Les- A análise dessas posições díspares su-
ser, 2001), está cada vez mais distante. As gere que as “teorias de mestiçagem” (como
diferenças existem, apresentam-se e pro- a de Gilberto Freyre {1933}, por exemplo),
põem uma discussão sobre uma nova iden- que muitos estudiosos viram como signifi-
tidade brasileira (brasilidade). As formas de cando o surgimento de uma “raça” brasi-
identidade étnica auto-atribuída pelas cri- leira nova e uniforme, a partir da mistura
anças expressam parte do fenômeno da di- de povos, foi muitas vezes entendida como
ferenciação entre os grupos de imigrantes. uma união (e não uma mistura de fato) de
Observa-se na distribuição dos grupos uma diferentes identidades, como a criação de
tendência maior por parte dos imigrantes uma multiplicidade de brasileiros hifeniza-
em atribuírem-se identidades étnicas refe- dos, e não de um grupo único e uniforme
rendadas na sua nacionalidade de origem, (Lesser, 2001).
posto que apenas um (a) participante imi-
grante nomeou-se com a identidade brasi- Competência Social
leira. Este resultado também expressa ape- A fim de considerar a influência e a
nas 10,68% entre as respostas do grupo de capacidade de predição das variáveis pre-
não-imigrantes. sentes nesse estudo, utiliza-se aqui a análi-
Os participantes não imigrantes ten- se discriminante, que aproveita a informa-
dem a atribuírem-se predominantemente ção conjunta de todas as variáveis de for-
identidades “hifenizadas”, ou seja, que ma simultânea, diferenciando assim os gru-
mesclem origens étnicas de diferentes paí- pos estudados, no que diz respeito à com-
ses excluindo o Brasil (em 21,17% dos ca- petência social. A análise discriminante uti-
sos), ou incluindo a identidade brasileira liza a variável de agrupamento, neste caso,
com as distintas origens étnicas internaci- a origem do participante, e busca a combi-
onais (em 27,3% dos casos). nação linear das variáveis independentes
Para uma melhor compreensão de tais (preditoras) que maximiza a distância (di-
dados, encontra-se nos estudos sobre a et- ferença) entre os grupos.
nicidade ea formação da identidade étni- Dentre as variáveis que mais diferenci-
co-nacional, elementos que podem ampli- avam os dois grupos de participantes, en-
ar o escopo da discussão. De acordo com contram-se variáveis relativas aos principais

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eixos desenvolvidos pela escala de competên- As questões do eixo referente à
cia social: sociabilidade, isolamento e agres- agressividade/disruptividade que mais
sividade. A diferenciação entre os grupos pesaram na discriminância foram a que
quanto a competência social apresenta carac- busca identificar o (a) colega que “ex-
terísticas relativas à multidimensionalidade plode” facilmente (-0,452) e o (a) que
do construto. perde a paciência com facilidade
Das 32 variáveis apresentadas pela esca- (0,193). Estas foram às questões que, na
la, foram selecionadas pela análise as 14 mais análise descritiva, os participantes imi-
influentes. Estas 14 variáveis são divididas grantes indicaram como mais caracte-
em: duas dentro do eixo da agressividade/ rísticas de si dentro de tal eixo. Embora
disruptividade; três dentro do eixo do isola- os alunos não imigrantes foram os mais
mento/depressão e nove dentro do eixo soci- apontados neste eixo, tanto por eles (as)
abilidade/liderança. Tais diferenças entre os mesmos (as), quanto por seus pares imi-
três eixos da escala proposta caracterizam grantes e pelo corpo docente, nestas
algo já apontado na análise descritiva dos duas questões reside a diferença entre
dados, que apresentava um maior desequilí- os grupos: a citação (mesmo que auto-
brio nas avaliações que envolviam este eixo referida e não consensual) dos (as) par-
em relação aos dois grupos participantes. ticipantes imigrantes.

Tabela 2. Matriz estrutural das principais variáveis utilizadas na análise discriminante


Variável Função
Quem e um bom líder 0,452
Quem gosta mais de estar com os outros do que sozinho -0,452
Quem explode facilmente -0,452
Quem ajuda os outros colegas quando necessitam 0,395
Quem deixa os grupos 0.369
Quem faz novos amigos facilmente 0.295
Quem faz os demais colegas rirem 0,280
Quem perde a paciência facilmente 0.193
Quem e normalmente feliz 0.187
Quem e normalmente triste 0.137
Quem fica mais sozinho do que com os outros 0.118
Quem costuma ter boas idéias de coisas para fazer 0.104
Quem e o colega em que se pode confiar 0.076
Que colega não desobedece à professora 0.071

Já se comentou aqui das diferenças cul- ferente de agir com tais sentimentos, ain-
turais que possam ter originado essa forma da que seus colegas imigrantes não com-
distinta de perceberem-se ambos os grupos. partilhem desta mesma opinião. Essa ma-
Entretanto, o ponto principal a ser discutido neira de agira das crianças imigrantes apa-
aqui, é a forma de autodefinição dos partici- rece em manifestações culturalmente não
pantes imigrantes. Estes sujeitos definem-se percebidas como hostis por parte dos não
de forma menos estereotipada que seus pa- imigrantes, ou também poder ser repri-
res não-imigrantes. A auto-atribuição de ca- mida por uma série de dificuldades psi-
racterísticas de agressividade e, portanto “ne- cossociais de adaptação, conforme ilus-
gativas”, denota certa maturidade de auto- tram Hagendoorn, Drogendijk, Tumanov
conceito, assim como ilustra uma maneira di- e Hraba (1998).

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No eixo de questões envolvendo a di- derar QUE o processo migratório pode
mensão isolamento/depressão, as variáveis ser um predisponente de sintomatologia
selecionadas foram as que buscavam co- depressiva (Hidalgo & Abarca, 1994). Tal
nhecer os (as) participantes que normal- suspeita deve ser investigada com maior
mente deixavam o grupo de atividades profundidade, posto que a depressão in-
(0,369), eram tristes (0,137) e ficavam mais fantil pode ocupar papel decisivo no pro-
tempo sozinho do que acompanhado pe- cesso de desenvolvimento social (Hidal-
los pares (0,118). As questões deste eixo go & Abarca, 1994).
foram as que os participantes não imigran- Dentre as questões que figuravam den-
tes mais identificaram como característi- tro do espectro de sociabilidade/liderança,
cas de seus (suas) colegas imigrantes. En- foram selecionadas nove, como as mais in-
tretanto, assim como nas perguntas sobre fluentes no processo de discriminação en-
a dimensão de agressividade, estas foram tre os grupos. As nove variáveis seleciona-
as com que os (as) participantes imigran- das diziam respeito à posição de liderança
tes também se identificaram de forma sig- dentro dos grupos (0,452); da convivência
nificativa. preferencial na presença de pares (-0,452);
A diferença entre os grupos reside da identificação do (a) colega que normal-
aqui, justamente, no consenso, já que as mente ajuda os demais (0,390); quem faz
demais questões deste eixo apresentam novos amigos facilmente (0,295); quem é
padrões bastante distintos de avaliação normalmente feliz (0,187); quem costuma
entre os dois grupos, onde os (as) não- ter boas idéias de coisas para fazer com os
imigrantes percebem seus colegas imi- demais (0,104); quem é o colega em que se
grantes como típicos, mas estes não se pode confiar (0,076) e, finalmente quem é
atribuem tais características. O fato de o (a) colega que não desobedece ao profes-
deixar freqüentemente os grupos e, estar sor (a) (0,071).
mais sozinho do que em companhia dos Nestas variáveis selecionadas pela
pares, podem identificar um padrão de análise discriminante, há uma percepção
maior isolamento e dificuldade de inte- de desempenho e autoconceito bastante
gração grupal dos (as) participantes imi- diferentes em relação ao grupo de imi-
grantes. Dentro da perspectiva ecológica, grantes. Nestas questões, a despeito do
tal fenômeno é entendido como de du- que consideravam seus pares não imi-
pla via, onde a caracterização deste pa- grantes, os participantes com origens em
drão de relação não é responsabilidade outros países consideravam-se bem me-
exclusiva de integrantes deste ou daque- lhor colocados, ou seja, mesmo que os não
le grupo, tampouco responsabilidade ex- imigrantes não os vissem como compe-
clusiva da escola em que estão inseridos. tentes, eles auto-avaliavam-se como pos-
Este é um processo em que todos os seg- suidores de tais características. O poder
mentos envolvidos, querendo ou não, de diferenciação das atribuições de pa-
possuem sua responsabilidade enquanto péis entre ambos os grupos está no fato
sujeitos ativos de tal cenário social (Pizzi- de que os participantes imigrantes acre-
nato & Sarriera, 2003). ditam figurar mais como expoentes de
Evidentemente, as cobranças se dão competência que consideram seus pares
em níveis diferentes de exigência e pode- (Pizzinato & Sarriera, 2003).
se pensar na necessidade de criarem-se
diversas alternativas que contornem tais
situações. A caracterização de “tristeza” Discussão
como uma característica consensual atri-
buída às crianças imigrantes leva a consi- A forma como a competência social é

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trabalhada nesse estudo indica uma noção 2001), a intensificação da interdependên-
interativa entre diferentes dimensões sistê- cia transnacional e das interações globais
micas onde a pessoa vive. Assim, entende- faz com que as relações sociais pareçam
se que a percepção de competência social hoje cada vez mais desterritorializadas, ul-
advém da relação entre os pares de classe e trapassando as fronteiras dos costumes, do
do autoconceito dos participantes acerca de nacionalismo, do idioma, da ideologia e
sua competência social. de todos os demais “marcadores” de fron-
Os (as) participantes imigrantes não teira antropológica validos desde o século
acreditam ser menos competentes (em ní- XIX, até bem recentemente. Contudo, aí
vel de socialização) do que consideram seus emerge outra das características da pós-
(suas) colegas. Aqui, a discriminação resi- modernidade: a ambivalência, a dualida-
de na própria diferença entre as percepções de, a contradição.
de ambos os grupos em relação ao desem- Ao mesmo tempo, se assiste ao surgi-
penho social dos participantes imigrantes. mento de novas identidades regionais e lo-
Os resultados referentes à avaliação de com- cais alicerçadas numa revitalização do di-
petência social entre pares (conforme a pro- reito às “raízes” (em contraponto ao direi-
posta do instrumento utilizado) indicaram to à escolha). Essa referenciação tão local,
haver uma tendência dos alunos não imi- que poderia outrora ser categorizada como
grantes em avaliarem seus colegas imigran- pré-moderna, e hoje é renomeada pós-mo-
tes dentro de um espectro de isolamento, derna, apresenta-se mais intensa entre pes-
enquanto que as crianças imigrantes ten- soas e grupos “translocalizados”, confor-
dem a categorizar socialmente seus cole- me definição de Santos (1995/2001). Es-
gas brasileiros de forma semelhante à como sas pessoas, em maioria, imigrantes e/ou
avaliam a si mesmos, levando em conside- seus descendentes, estão conectadas por
ração, basicamente a variável sexo (onde há um sentido de lugar específico, de territó-
uma melhor avaliação social de colegas de rio, seja ele imaginário ou simbólico, real
mesmo sexo). ou hiper-real.
No que diz respeito à identidade ét- Essa referenciação de identidade é ain-
nica auto-atribuída pelos alunos de am- da mais explícita se considerarmos uma
bos os sexos apresenta-se uma tendência à das principais facetas da pós-modernida-
hibridização étnica da identidade. Tanto de: a globalização. A globalização tem exis-
o grupo de imigrantes, quanto o grupo de tido por muitos séculos (sobretudo após a
alunos brasileiros identificam-se com gru- Revolução Comercial do final do século
pos étnicos de diversas naturezas, simul- XV) como processo pelo qual culturas in-
taneamente. Assim figuram identidades fluenciam-se e tornam-se mais próximas
regionais (como gaúchos, ou catarinenses) através do comércio, imigração e o inter-
e nacionais (brasileiros, alemães, uruguai- câmbio de informações e idéias. Entretan-
os, entre outros) mescladas na maior par- to, em décadas mais recentes, o grau e a
te dos integrantes de ambos os grupos, o intensidade de conexões entre diferentes
que evidencia uma certa tendência à na- culturas e diferentes regiões globais tem
turalização das diferenças entre os grupos, acelerado dramaticamente graças aos
embora urge a necessidade de melhores avanços em telecomunicações e no rápido
programas de integração de alunos de ba- incremento de interdependências financei-
gagens étnicas minoritárias, dadas às difi- ras e econômicas através do mundo. Con-
culdades de integração apresentadas por sequentemente, em anos recentes, a glo-
muitos, de acordo com a avaliação de co- balização tem se tornado um dos termos
legas e professores. mais amplamente usados para descrever
Conforme aponta Santos (1995/ o atual estado mundial (Arnett, 2002).

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O fato desta concepção ser indiscrimi- clui na consciência dos eventos, práticas
nadamente usada, a contribuição da psico- estilos e informações que fazem parte da
logia para o entendimento da globalização cultura global. Sua identidade global os
tem sido ainda predominantemente indi- permite comunicar-se com pessoas de di-
reta. Embora os efeitos indiretos da globa- ferentes lugares quando viajam, migram
lização em aspectos da identidade e da acul- quando pessoas chegam à sua comuni-
turação sejam descrito em pesquisas e teo- dade. Além disso, a televisão é crucial
rias psicológicas, a globalização exerce uma nesse processo de desenvolvimento de
influência primária em muitas questões da uma identidade global, pois provê expo-
identidade nos dias de hoje, sobretudo atra- sição de pessoas, eventos e informações
vés da mídia global. de todas as partes do mundo. Entretan-
O fenômeno da globalização apesar to, para as futuras gerações de crianças e
de ter se intensificado dramaticamente adolescentes, a internet será ainda mais im-
em anos recentes, o mundo está distante portante na comunicação global, pois gera
da possibilidade de ter uma cultura glo- acesso direto e instantâneo a toda sorte
bal homogênea. De muitas formas as di- de informações.
ferenças tecnológicas e de estilo de vida Simultaneamente com sua identida-
entre países ricos e pobres e entre áreas de global, as pessoas continuam a desen-
urbanas e rurais entre países têm persis- volver sua identidade local, baseada em cir-
tido e até aumentado (Arnett, 2002). cunstâncias, ambientes e tradições locais
Como uma das conseqüências da glo- do lugar onde cresceram. Esta identidade
balização está o desenvolvimento de uma é a mais usada no dia a dia, em interações
identidade bicultural, onde parte da pró- familiares, com amigos e comunidade (Sar-
pria identidade é enraizada na cultura riera, Dellazzana, Silveira, Pizzinato & Ran-
local enquanto outra parte origina-se de gel, 2002).
uma consciência de sua relação com a Enquanto o desenvolvimento de uma
cultura global. Outra conseqüência é a identidade bicultural significar um retrai-
difusão de uma confusão de identidade, que mento da identidade local em relação à iden-
pode ser incrementada entre jovens de tidade global, não há dúvida que as cultu-
culturas não ocidentais. Como as cultu- ras locais estarão sendo modificadas pela
ras locais, que mudam em resposta à glo- globalização. Especificamente na introdu-
balização, alguns jovens não se sentem ção da mídia global, economia de mercado
“em casa” em nenhum lugar do mundo. aberto, incremento da escolarização formal
Sobre estes conceito, faz-se necessária e o decréscimo nos casamentos e na pater-
uma maior explanação. nidade (Arnett, 2002).
O conceito de identidades bicultu- O incremento da imigração têm sido
rais, neste sentido, vem há muito tempo especificado como uma das forças promo-
sendo discutido, mas apenas em relação toras da globalização, e nesse sentido, as
à identidades desenvolvidas por imigran- identidades tornam-se ainda mais comple-
tes e membros de minorias étnicas (Ber- xas para os imigrantes. Eles podem desen-
ry, 1997, 2001; Sarriera, 2000; Phinney volver tanto identidades que combinem as
& Devich-Navarro, 1997), mas poderia identidades das culturas nativas com as
também ser ampliado frente ao processo identidades dos novos locais de vida, assim
de globalização. Isso significa que neste como adotar apenas estas ou manter suas
contexto em que, somado a sua identida- identidades originárias de forma mais ou
de local, pessoas desenvolvem uma iden- menos segregada do contexto onde vive
tidade global que as dá então um senso (Pizzinato, 2003).
de pertencimento a cultura global e in- Entretanto, pese as diferenciações

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manifestas na investigação, não parece ha- bolos significativos da identidade étnica
ver um processo marcadamente segrega- (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995).
cionista em relação aos alunos imigran- Além disso, a constituição da identi-
tes nas escolas estudadas. Entretanto, a dade étnica permeia a proposta de uma
forma como são vistos pela maioria de suposta origem comum, através da fixa-
seus pares e docentes, indica um fator a ção de símbolos identitários que fundam
ser considerando, em relação à percep- a crença numa origem comum. O que di-
ção estigmatizada dos (as) alunos (as) ferencia, em última instância, a identida-
imigrantes. de étnica de outras formas de identidade
Ainda assim, a questão da etnicida- coletiva é o fato dela ser orientada ao pas-
de deve ser levantada. A ideologia nacio- sado (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995).
nalista de nossa República, assim como o Desta forma, finaliza-se o presente ar-
idealismo euro-orientado de nosso Impé- tigo propondo a discussão, por parte da psi-
rio, em nome do dogma da unidade do cologia e seus referenciais, de questões tão
Estado-nação, sempre negou a diversida- importantes como a identidade (sob uma
de étnica da maioria da população brasi- perspectiva étnica) e a forma como perce-
leira. As próprias noções de etnia ou gru- bemos e tratamos as diferenças em nossa
po étnico são suspeitas, especialmente de sociedade, marcadamente esquiva à tais dis-
comprometimento ou de cumplicidade cussões.
com a ideologia racista (Poutignat & Strei- Compreender a realidade das ques-
ff-Fenart, 1995; Seyferth, 1997). É com- tões étnicas no relacionamento entre cri-
preensível que uma sociedade como a dos anças contribui para a análise de um pro-
Estados Unidos da América, cuja popu- cesso social que permeia nosso dia a dia.
lação é quase totalmente originária de A competência social, desenvolvida nes-
uma imigração proveniente de todas as te contexto, é nosso foco de interesse,
partes do mundo, tenha-se preocupado posto que as crianças, com sua capacida-
com questões práticas e científicas susci- de de superação das contingências, são o
tadas pelas relações interétnicas e cultu- caminho para relações étnico-sociais mais
rais (Poutignat & Streiff-Fenart, 1995). equilibradas e satisfatórias.
Mas será que a realidade brasileira é tão
diferente assim?
O que importa é procurar saber em Referências
que consistem tais processos de organi-
zação social através dos quais mantém-se Arnett, J. J. (2002). The psychology of glo-
de forma duradoura as distinções entre balization. American Psychologist, 57(10), pp.
“nós” e “os outros”, mesmo quando mu- 774-783.
dam as diferenças que para “nós”, assim Barth, F. (1969/1997). Grupos étnicos e suas
como para “os outros”, justificam e legi- fronteiras. São Paulo: Unesp.
timam tais distinções (Poutignat & Strei- Berry, J. (1997). Immigration, acculturati-
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