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21 poemas para o Dia Mundial

da Poesia

Nuno Costa Santos

Texto

Contas certas: são 21 poemas porque é a 21 de março que se


celebra a poesia. Outros tantos poetas escolheram os seus textos
favoritos e explicam porquê.
21 mar 2016, 09:293

 

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mais variados apetites. Cada instinto perseguiu um registo. Há quem,
na sua escolha, pretenda fixar em arquitectura literária superior a
fugacidade da vida, há quem, também se fixando nesse desgaste,
aproveite para a festejar (Ferreira Gullar, evocado pelo brasileiro
Antonio Cicero), há quem se sinta confrontado por um poema-soco ou
por um poema que, para falar de amor, traz a sombra da morte. Ou
ainda por um poema que despoja o homem de pulsões que o
diminuem.

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São também convocados poemas (como o de Lawrence Ferlinghetti,


escolhido por Tiago Gomes) que celebram o gosto perigoso em viver e
outros que também relevam os aspectos técnicos – aqueles que, se bem
cozinhados, conseguem criar a emoção poética que só a grande arte
consegue atingir. E, aqui e ali, emerge a ironia, estratégia de
sobrevivência de uma poesia que, se tremendamente grave, poderia
parecer escusada.

Num poema de António Amaral Tavares, autor recém-descoberto por


Renata Correia Botelho, diz-se: “Doutor há muito pouco tempo para a
poesia”. Podemos vir com a conversa de circunstância, habitual nos
salões e nas redes sociais: todos os dias são dias para a poesia. Não são,
até porque há dias em que é preciso ir pagar o IRS. E por isso, já que
existe um dia só consagrado ao género, que o aproveitemos para
lermos e dizermos poemas, para celebrar a poesia como serena
partilha, numa comunidade diversa.
Luís Filipe Castro Mendes
“Magnificat” de Álvaro de Campos
Cada poema é um encontro, no processo em que é escrito tanto como
no processo em que é lido. Encontrei há muito tempo este poema e sei
que de repente ele me veio cortar a respiração e ferir-me com a terrível
consciência de que nunca poderemos sair do nosso próprio ser, nem
pela vida nem pela morte. Cárcere do ser, li mais tarde no mesmo
Álvaro de Campos. Mas o soco que o poema dá em nós (“e a dor dói
como um soco”, Alexandre O’Neill) só o sentimos bem nesses
momentos em que da ideia se passa ao espanto quase físico do
encontro com uma verdade de nós que nós não sabíamos. O poeta é
afinal aquele que sabe dar-nos de surpresa um soco no mais fundo do
que somos. Para com isso aprendermos a ver melhor o esplendor do
mundo.

Quando é que passará esta noite interna, o universo,


E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!
Inês Fonseca Santos
“Passagem”, de Manuel António Pina
Escolho o poema que fecha a obra de Manuel António Pina, se é que tal
é possível, um poema que feche seja o que for, em vez de abrir. E
escolho-o porque, figurando como poema final, como derradeiro
poema, aponta, logo no título, para a noção de “Passagem”, para esse
movimento cíclico a que está condenado o poeta, o criador, «[a]gora
que os deuses partiram». Esse eterno retorno às palavras que se situam
«tão sem peso por cima do pensamento» é a maior celebração da
poesia no que ela tem de possibilidade de fuga ao uso comum da
linguagem e no modo como ela, a poesia, se continua a escrever (e
inscrever) mesmo não tendo mais do que palavras para dizer o mundo.
Dá-se ainda o caso de este poema me ser dedicado. Lembrá-lo hoje — e
todos os dias — é o meu modo tosco de agradecer e retribuir a Pina.

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Com que palavras ou que lábios


é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,


e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?

Manuel Cintra
“Muriel”, de Ruy Belo
É, desde sempre, não só o meu poema de amor favorito em toda a
literatura portuguesa (que eu conheça) como é, mais do que isso, o meu
poema favorito. Acontece que o tema dominante no que escrevo é o
amor, e dentro do amor, por razões muito pessoais e objectivas, o
desencontro. Este poema fala de ambos, como a meu ver só o Ruy Belo
soube fazer. Para além da música das palavras, como sempre
incomparável, o Ruy consegue aqui uma emoção, uma intensa tristeza,
uma maneira de ir ao encontro do amor tornando-o impossível que me
comove sempre, e que se me entranha de cada vez que o leio, seja para
mim, seja para outrem. Como sempre, a ferramenta certeira é, além
disso, a morte. O Ruy utiliza a morte, seu tema obsessivo, tanto para
falar de amor como para o que quer que seja. Ora fá-lo com uma
profundidade e uma melancolia tais, que sempre, há trinta anos que
leio este poema, ele renasce em mim, e põe-me a chorar por dentro.
São razões muito físicas e emotivas, nada intelectuais.

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Às vezes se te lembras procurava-te


retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava […]

[este é um excerto de “Muriel”. Ouça aqui o poema na íntegra:]

Francisco José Viegas


“Os Justos”, de Jorge Luis Borges
O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há
poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a
morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e
sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum
material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida,
que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um
fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que
busca a nossa perplexidade.

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.


O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Inês Lourenço
“Não só quem nos odeia ou nos inveja”, de Ricardo
Reis
Nos tempos que correm, apetece saborear esta ode pessoana, enquanto
desafiante e sabotadora dos actuais estilos de vida e de pensamento.
Vão pela borda fora os empreendedorismos, o ter cada vez mais e
melhores coisas, os hedonismos vários e até os monoteísmos, que
tantas guerras sangrentas proporcionam, seguindo o poema um
paganismo sadio e ético. Claro, que há a questão das influências,
horacianas, epicuristas, estóicas ou heraclitianas. Mas os grandes
poetas são intemporais. Dão-nos sempre capacidade acrescida de
respiração e de aceder a uma total liberdade, anulando as
contingências do mundo.

Não só quem nos odeia ou nos inveja


Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

João do Nascimento
“O pai morava no fim de um lugar”, de Manoel de
Barros
Descobri a poesia de Manoel de Barros em 2001, e não foi preciso mais
do que a leitura breve de alguns dos seus poemas para que me tocasse.
A visão profunda que transpira na sua escrita dos elementos vulgares,
tão quotidianos quanto imensos e desimportantes, é tão grande que
ganha nos seus textos a dimensão harmoniosa daquilo a que alguns
chamarão: alma.

Senhor do pormenor, em Manoel de Barros tudo é tão insignificante


quanto grandioso, percepcionando-se a essência humana em objectos
simples e banais misturados de forma imprópria, irónica, tocando-se a
natureza, o lixo, os despojos do quotidiano e os lugares, de maneiras
imprevisíveis e luminosas. Os rios caminham sobre latas e os alicates
dormem em esteiras. Realidade só revelável pela voz da poesia.

Ainda que português, ou cidadão de outra qualquer nacionalidade, ao


ler os textos tão intrinsecamente brasileiros de Manoel de Barros, o
leitor percebe o que é isso de linguagem universal. O que é isso de
poesia.

O pai morava no fim de um lugar.


Aqui é lacuna de gente – ele falou:
Só quase que tem bicho andorinha e árvore.
Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã.
Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de
suspensórios e ademanes.
Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam
caranguejos.
E era mesma a distância entre rãs e a relva.
A gente brincava com terra.
O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina.
Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas.
O doutor espantou as rolinhas.
João Luís Barreto Guimarães
“Musée des Beaux Arts”, de W. H. Auden
Porque encontro neste poema – para além de aspectos mais técnicos de
oficina que me agradam profundamente, como por exemplo a métrica
ou a dicção -, todo aquele sentido trágico da vida e do sofrimento que o
acaso dos dias tantas vezes nos apresenta colado à comicidade.
Tragédia e comédia, só aparentemente opostas. Alguém escreveu que a
tragédia é somente comédia mal desenvolvida. E o facto deste poema
interligar a mitologia grega com a pintura de Brueghel, numa ekkfrasis
de tom quase coloquial, torna este poema moderno hoje como daqui a
cem anos. A persona poética conversa com o leitor através de uma
qualidade de verso assinalável, com vários estratos de leitura, o que faz
com que o poema, aparentemente, não se esgote. É um texto de um
grande grande poeta, dono de uma intelecção pensada e repensada.
Imenso.

Acerca do sofrimento, nunca se enganaram


Os Velhos Mestres: quão bem entenderam
A condição humana; como está presente
Enquanto alguém se alimenta ou abre uma janela ou monotonamente
segue a caminhar;
Como, enquanto os velhos esperam apaixonada e reverentemente
Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver
Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando
Num lago na orla da floresta:
Nunca esqueceram
Que até o mais terrível martírio deve seguir o seu curso,
Custe o que custar, a um canto, nalgum lugar descuidado
Onde os canídeos acorrem em suas vidas de cão, e o cavalo do
torturador
Coça seu inocente traseiro por detrás de uma árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afasta


Ociosamente do desastre; o lavrador poderá
Ter ouvido o splash, o grito desamparado,
Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou
Como soía sobre as pernas brancas que desapareceram na verde
Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter avistado
Algo espantoso, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino para ir e afastou-se calmamente.
Tiago Gomes
“Ocupamos a praia do Amor”, de Lawrence Ferlinghetti
Um poema sobre ocupantes, amantes e demais revolucionários. Do
sobrevivente da geração beat, um poema que também pode ser uma
celebração das maravilhosas praias portuguesas. Ferlinghetti, figura
menos conhecida da geração beat, mas de importância fundamental
como editor, por exemplo, do livro “Uivo” de Allen Ginsberg e
fundador das importantíssimas livrarias City Lights em São Francisco,
epicentro do movimento da beat generation. Lawrence Ferlinghetti,
para mim, mestre da poesia do quotidiano, social e de uma
simplicidade desarmante. A ler, muito actual. O autor cumpre 97 anos
no dia 25 de março.

Ocupamos a praia do amor


entre bandolins de Picasso repletos de areia
e patas de esfinge semi-enterradas
e papéis de piquenique
patas de caranguejos mortos
e marcas de estrelas do mar

Ocupamos a praia do amor


entre sereias encalhadas
com seus bebés berrando e maridos calvos
e bichinhos de madeira feitos em casa
com colheres de gelados a fazer de pés
que não podem amar ou andar
excepto para comer

Ocupamos a orla do amor


seguros como só os ocupantes sabem ser
entre poças remanescentes
de maré salgada de sexo
e os suaves regatos de sémen
e balões flácidos enterrados
na carne macia da areia

E ainda rimos
e ainda corremos
e ainda nos deitamos
nos botões do amor
mas é mais profundo
e mais tarde
que pensamos
e tudo se gasta
e todas as nossas boias d’amor falham
E bebemos e afogamo-nos

Miguel-Manso
“O Autocarro”, de Leonard Cohen
Não sei explicar bem o porquê de escolher este e não outro. Na verdade
podia ser outro. Mas este tem um sentido aventureiro que me agrada.
Cumprir uma aventura sem sair da secretária.

Era o último passageiro do dia!


Estava sozinho no autocarro
feliz por estarem a gastar todo aquele dinheiro
só para me levarem pela oitava avenida acima.
Condutor! — gritei — somos só tu e eu esta noite
Vamos fugir desta grande cidade
para uma cidade mais pequena, mais de acordo com o coração
Vamos guiar através das piscinas de Miami Beach
tu no assento do condutor e eu vários assentos atrás
Mas nas cidades raciais trocaremos de lugar
para mostrar como te arranjaste no Norte
e vamos descobrir alguma pequena vila piscatória americana
na desconhecida Florida
e parar junto à areia
um enorme autocarro chamando sobre si as atenções
metálico, pintado, solitário
com matrícula de Nova York

Margarida Ferra
“O Canto da Chávena de Chá”, de Fiama Hasse Pais
Brandão
Não é a primeira vez que repito este poema quando me pedem um.
Gosto do modo como Fiama chama a poesia e a natureza para
contracenarem além das deixas decoradas. Também porque sou uma
leitora feliz diante do lirismo temperado com ironia. E apesar de
duvidar muito, ainda acho que, a servir para alguma coisa, a poesia
estará aqui para nos trazer à mesa novos sentidos, chamando os
nossos, vivos, e outras explicações. Como esta de que a porcelana e o
osso estão ligadas além da mão que segura a chávena e de que as
palavras de um poema encontram o lugar certo no universo para uma
mesa de verga (imagino-a desfiar-se, a chávena de chá, agora mal
equilibrada, sobre o tampo).

Poisamos as mãos junto da chávena


sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.
Carlos Alberto Machado
“Tenho de construir hoje esta planície”, de R. Lino
Em cada livro de poemas aprende-se de novo a respirar (como a um
corpo amante): o prazer de dizer o poema como nosso, deixarmos de
existir entre a sua respiração e a nossa qualquer diferença.
A poesia de R. Lino concentra poderosamente a força e a violência que
advêm da “geografia” e do esgaçar da memória, numa serena e delicada
mutação em palavras – implodem e espalham a sua força pelo interior,
sem o estrondear do definitivo (mortal).

Tenho de construir hoje esta planície.


Separo as ruas, entrego os lados
aos quatro pontos cardeais, faço
do largo um sítio, abro as portas
de um castelo já sem uso.
Subo pelas escadas da torre
até ao cimo dos telhados
uma mancha meio branca
por entre os tapetes de pedra.
Em cima, fica a rua de cima
um gato passa entre as duas
em baixo, fica a rua de baixo.
Escolho as varandas ao redor
há um rio que me leva como um barco
nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho
de construir esta planície
as estevas das fronteiras
uma mudança de países
o outro lado retalhado
por vacas e por verdes trabalhados.
Do lado do cemitério
a vida é talvez mais selvagem
os coelhos e as perdizes
e o que nasce sem se plantar.

Rui Almeida
“Nem nos defende a ausência”, de José Augusto
Seabra
Dos 21 poetas, nascidos entre 1930 e 1941, incluídos por António
Ramos Rosa no volume que constitui a quarta série das ‘Líricas
Portuguesas’ (1969), José Augusto Seabra (1937-2004) é, tanto quanto
sei, aquele que nunca teve a sua obra poética reunida ou com uma
ampla antologia. E todo o sentido faria, pois trata-se de alguém que,
nos 14 livros de poemas, publicados entre 1961 e 2002, reflecte um
percurso pessoal riquíssimo, que vai desde a experiência do exílio, por
causa da oposição ao Estado Novo, até à carreira diplomática que o
levou a vários países como embaixador, passando pela experiência
académica, em Paris, que o revela como um dos mais importantes
estudiosos de Fernando Pessoa, ou pela profunda reflexão crítica da
relação da cultura com a cidadania. O poema escolhido é do seu
primeiro livro e revela já a marca da «lúcida perscrutação de um
espaço interior», apontada por Ramos Rosa, que acompanhará toda a
sua obra.

Nem nos defende a ausência:


é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa


de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.
Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.


Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

Leonardo
“IX”, do “Discurso sobre a reabilitação do real
quotidiano”, Mário Cesariny
Por (e para) altura do nosso tempo imediatista, que, por milagre ou
paradoxo, consegue estagnar nas coisas mais velhas do mundo, surgir-
nos-ia Cesariny. Os seus versos, aqui, não deixam de me lembrar uma
cabeça de que se derramasse uma cascata. À superfície temos a
imprevisibilidade dos lados para que se derrama, o ritmo estrondoso
das águas a bater em si próprias. Depois, são as imagens que se riem
ruidosamente de nós, «homens só até aos joelhos», «lindas lindas
raparigas só até ao pescoço», «poetas até à plume», riem-se que
permitamos que nos fechem o caminho para a «noite Cadillac
obsceno». E quem diria que voltaríamos ao tempo (ou nunca saímos?)
em que «o joelho está tão barato»? Já no fundo de tanto riso, acredita-
se, há-de haver alguma amargura. E, portanto, esperança. Pelo que a
maravilha da poesia está aqui: quando as palavras se conseguem
alimentar de um tempo e de um espaço posteriores, corroendo-os.
Muito mais estará nestes que pisamos, em que se diz muito pouco, ou
em que aquilo que se pode dizer tem os seus respectivos estágios de
afogamento.

no país no país no país onde os homens


são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno

e no país no país e no país país


onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história de amor só até ao pescoço

e no país no país que engraçado no país


onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma – ora aí está –
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)

diz que grandeza de alma. Honestos porque.


Calafetagem por motivo de obras.
relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato

Cláudia R. Sampaio
“Homens que são como lugares mal situados”, de
Daniel Faria
Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade
assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e
visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia
que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena
exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no
lugar.

Homens que são como lugares mal situados


Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas


Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias


Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis


Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Pedro Mexia
“A de Sempre, Toda Ela”, de Paul Éluard
Lembro-me do tempo em que comecei a ler seriamente poesia, e em
que «a poesia» se identificava quase por completo com este poema de
Paul Éluard (traduzido por António Ramos Rosa): aspiração,
celebração, invenção, espanto. Comecei por encontrar uma tradução de
Hölderlin, clássico-romântico, poeta de grandes exaltações e grandes
odes, mas logo depois descobri Éluard, mais acessível, mais
contemporâneo, um dos surrealistas franceses, talvez o maior poeta
francês do seu tempo. E até encontrar um estilo que fosse mais ou
menos meu, este era o estilo eu imitava: a de um intimismo comovido,
reiterativo, agradecido, poemas sobre a grande alegria de ter ou não
ter, a candura de esperar, a inocência de conhecer. Mas Eliot refreou-
me essa tendência, tal como os disfóricos Hardy e Larkin, e Álvaro de
Campos, e a vida também. De modo que hoje vejo Éluard como uma
recordação de um momento em que a poesia era uma evidência, uma
omnipresença. Já não acredito nisso, mas estou grato por essa ficção de
juventude

Se eu vos disser: «tudo abandonei»


É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.

O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos


Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.

Canto a grande alegria de te cantar,


A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.

Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.


Antonio Cicero
“Anoitecer em Outubro”, de Ferreira Gullar
Observe-se uma característica curiosa desse poema. Ele evoca a
transitoriedade da vida humana, porém não é depressivo. É que o
poema celebra esse momento particular da vida, logo, celebra a vida,
mesmo reconhecendo sua finitude. O poema é um monumento a esse
momento efêmero da vida, momento mais valioso ainda até mesmo em
virtude de sua efemeridade. “Efêmero” é o que dura um dia: e o poema
colhe esse dia: “carpe diem”, como se diz em latim.

A noite cai, chove manso lá fora


meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer


não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier

Renata Correia Botelho


“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da
minha cabeça”, de António Amaral Tavares
Era-me, até há poucas semanas, desconhecido o seu nome: António
Amaral Tavares. Nunca lera nada dele, não me soava sequer familiar.
Cheguei à sua poesia depois de o saber vencedor, no final de 2015, do
Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão
Celeste. Foi dos encontros mais impressionantes que vivi. Um estrondo
que nos fica a latejar, impiedoso, entre os dedos e o coração. Despojado
de astúcias poéticas, cru e dorido como a noite. E, no fim das palavras,
como se à noite não se seguisse mais nada.

Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça


um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011
não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar

e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo


e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz
como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.

Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim


o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas
doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois

quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem


o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito
e não me diga para lhe contar tudo como a um padre

eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio.
Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo
tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro

acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar


já fundi muitas lâmpadas só com o olhar
e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício

rasante e belo como uma garça.


Doutor há muito pouco tempo para a poesia.
Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.
José Anjos
“Como?”, de Vasco Gato
Poema absoluto do Vasco Gato sobre o mistério da sublimação e do seu
maior ofício: o gesto. o gesto de colher, de receber na medida certa da
intenção (a nossa e a das próprias coisas); o gesto que desaparece para
dar lugar ao fruto; o gesto de ter escrito— o “mover de mão” —; o
poema — gesto e fruto ao mesmo tempo; o gesto de ter acabado de o ler
pela primeira vez; o gesto de repetição; a pergunta — gesto de
empreender a percepção do que ainda não existe; a espera — gesto do
tempo; o tempo — gesto de Deus.

colher
dos ramos altos
sem saltar
o fruto sereno
da tua passagem
— como?
Carlos Bessa
“Desculpas não faltam”, de José Miguel Silva
Entre os muitos poemas de que gosto escolho “Desculpas não faltam”
(do livro Serém, 24 de Março. Averno, 2011), de José Miguel Silva, pelo
tom e pelo modo como, em poucos versos, se mostra que a poesia que
realmente importa seduz, emociona e deslumbra, podendo mesmo
brincar prosaicamente com topos e temas clássicos e transfigurar, com
algum humor, pequenos aspectos do quotidiano, que ganham assim
outra claridade.

Uma casa junto ao Vouga,


rio de água suficiente,
onde apenas se mergulha
até à cintura, a pequena horta
de Virgílio, o amor robustecido
por nenhuma esperança
e tantos livros para ler
– que desculpa vou agora dar
para não ser feliz?
João Rios
“Ao lado”, de Joaquim Castro Caldas
Verso a verso o poema entranhou-se como corpo de pássaro sobre a
toalha de mesa. Do seu voo restam ainda cores de incêndio e a mais
genuína arte de reeducar o silêncio.

havia tantas coisas


que eu te queria dizer
se não fosse o abismo

de te perder num afago


de te ter do outro lado
do medo à minha beira

havia tantas coisas


que eu te queria dizer
se não fosse o amor
que há noites ao teu lado
em que me dói não sei
onde é que a distância ai

Rui Cóias
“The Hollow Men”, de T.S. Eliot (excerto)
Ler e pensar este poema de Eliot é como escolher o fim de um mundo,
o início de um tempo agonizante, acompanhar uma mão que vai
esculpindo, com o seu rigor, crueza formal e limpidez absolutamente
inebriantes, as lamentações de ideais perdidos do primeiro quartel do
século XX, que são, na sua essência, como que uma estrela crepuscular
na história que nos dirige através do desmoronamento e da
ambiguidade sombria.

A sua imagem permite-nos a rememoração enigmática, como se


andássemos ao longo de um vale vazio (hollow valley) atormentados
pelas cinzas da esperança, da nossa, e do mundo, enquanto, mesmo por
isso, ouvimos para sempre os seus versos na voz entrecortada de
Marlon Brando, entre as sombras, da selva, do Apocalypse.

Nós somos os homens vazios

Somos os homens de palha

Apoiados uns nos outros

A parte da cabeça cheia de palha. Ai

As nossas vozes foram secas e quando

Juntos sussurramos

São serenas e sem sentido

Como vento em erva seca

Ou pés de ratos sobre vidro partido

Na secura da nossa cave

Molde sem forma, tonalidade sem cor,


Força paralisada, gesto sem movimento;

Os que cruzaram

Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte

Lembram-se de nós – quem sabe – não de

Violentas almas perdidas, mas somente

De homens vazios

Homens de palha.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e


Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com
Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy
Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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