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jean delumeau A QVILIZACAO DO RENASCIMENTO volume 1 Titulo original: La Civilisation de Ia Renaissance Mustracao da capa: A Anunciagéo com Santo Emidio (pormenor), de Crivelli ‘National Gallery, Londres Capa de Soares Rocha Tradugio de Manuel Ruas Copyright B. Arthaud, Paris, 1964 Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1983 ara a lingua portuguesa Agradecimentos Prefiicio Introductio A PROMOCAO DO OCIDENTE =O termo «Renascimento»: uma etiqueta cOmoda =O dinamismo. da civilizagio ocidental =0 melhor © 0 pior . ~Reinterpretacto do Ren profundidade a 2 Primeira Parte LINHAS DE FORCA Cap. IA explosdo da nebulosa crista — Panorama politico da Europa cerca de 1320 Panoraina politico d Europa cerca de, 1620 Supressio do ideal de uma Cristandade Nascimento “das consciéncias nacionais Cap. A Asia, a América e @ conjuntura europeia ... —Mundos exéticos atraentes temiveis 08, lle 9 = As cansas das viagens de Descobrimentos 33 As etapas dos Descobrimentos 6 =A implantagéo ibérica na América < ., eer = Conjuntura seonémiea e produgio de metas precosos ” —Cenjuntura ecmovimente: demogratico na Buropa nov sé: alos XIV © Vn a fese_centast — Eittca ca tose wentastroties SO prosresso apés 180. PREFACIO Esta Civiligio do Renascimento, que ficamos a dever a Jean Delu- ‘meau, vem agora inscrir-se entre os dois volumes que Jacques Le Goff Pierre Chaunu jd publicaram nesta coleceao, dedicados, respectivarente, 4 Idade Média ¢ @ Europa Classica. Embora, nos aspecios gerais, estejam todos em conformidade com a estrutura escolhida para a toralidade da série «Grandes Civilizagdes» ?), estrutura que corresponde aos desejos necessidades do leitor e Ihe permite sentir-se numa paisagem que the é id familiar, cada um destes livros tem a sua face peculiar. De facto, so zroduto da reflexdo de historiadores com temperamentos bern diferentes Sempre abarcardo os assuntos em toda a sua ampliddo, cada um deles uminow o seu de modo original e pessoal. Iss0 corresponde perfeitamente 120 proprio espirito desta coleceéo. Era nosso propésito que a clareza da exposipdo e a riqueza dos informes ndo excluissem nem sequer ocultassem @ originalidade das opinides, As pesquisas recentemente realizadas vieram abrir novas perspectivas que mostram a uma luz por yezes imprevista ‘3 problemas ainda ndo resolvidos. Nao era justo que se pudesse deplorar @ sua auséncia nestes trabalhos. Devido aos seus anteriores estudos, que tinham incidido sobre a vida econdmica e social da Roma do século XVI, J. Delumeau estava espe- clalmente habilitado a renovar um assunto que id foi centro de tantos ensaios ¢ de tantas sinteses. O plano que ele adoptou para rratar esse vasto movimento de civilizerdo coberto pelo termo Renascimento é de uma nitidez e de uma clareza verdadeiramente cldssicas, O triptico da Historia, das realidades da vida de todos os: dias e da menialidade e ‘aspiragées novas permitiuthe ordenar harmoniosamente os conhecimentos © as reflexdes que colheu no seu passado de erudito, O que na sua expo (©) Coleeso das ations B. Artaud, a que perience esta obra. (N. do T.) 3 sicdio impressiona é, sem duivida, « escrupulosa prudéncia que transparece 20 longo de ‘odes os capitulos e de todas as pdginas. Dar juizos de conjunto sobre sisuagdes muito complexas e que, em tal ou tal aspeéto, ‘nda sao imperfeitamente conhecidas parece-the perigoso , muitas vezes temerdrio ¢ ele sente necessidade de matizar a apreciagdo para que ela ndo ¥d além dos limites impostos pelo presente estado das informacées dis- oniveis ¢ pela complexidade dos factos, Logo a partida, o préprio termo Renascimento, que devemos ao humanismo italiano, parece-the insu- ficiente € quase injusto. Renascimento pressupde, pelo menos, um tor- por, um sono prévio. Ora é ilusério buscar uma nitida ruptura na trama continua dos tempos. Portanto, o valor extensivo do termo seré limitado @ ideia, justa e precisa, da promogo do Ocidente e do avanco que este rapidamente tomou sobre as civilizagdes paralelas. Dé satisfagio que J. Delumeau tenha acentuado como convinha as igacées com 0 pastado sem ignorar 0 valor da renovagéo. Assim se pode ‘medir melhor a importdncia do progresso material e téenico do século XVI europe e se aprecia com maior justeea 0 impeto surpreendente das navegacdes ¢ a multiplicidade das grandes descobertas planetdrias que largaram, quase brutalmente, 0 limitado horizonte dos seus con- tempordneos, o aparecimento da imprensa, que velo, no momento exacto, dar resposta a um profundo apelo da curiosidade humana, 0 progresso, cenfim, da civilicagdo urbana com o desenvolvimento de téenicas destina- das a um grande futuro, como a da banca. Exta reflexGo, saida da boca de wm observador espantado, «a arte da guerra é agora tal que & preciso aprendé-la de novo de dois em dois anos», tem um sabor terrivelmente ‘moderno, De facto, nessa época, o aperfeicoamento do armamento obri- ava a constantes modificagdes da téctiea ¢ da estratégia e 03 répidos progressos da utilizagio do canho forgaram a invenedo de novas ¢ efi- cazes formas de amurathamentos e fortificagées. Talvez seja, precisamente, esta nocdo de modernismo que, no fim do estudo, apareca com maior evidéncia e com mais viva~ claridade © Renascimento, ligado por numerosas fibras aos séeulos anteriores, mos- tra, porém, na figura dos seus homens e das suas obras, tracos e cores que preludiam de forma espantosa os caracteres do nosso tempo. Sem diivida que se néo deve procurar alhures a origem dos movimentos e das profundas aspiragdes do nosso tempo. Promogao do individuo, da pessoa, reabititacdo da muther, reforma da educagio —que se pretende que seja uma verdadeira formacio do homem e jé néio uma Initil sobrecarga do esptrito, esmagado por um fardo de conhecimentos—, revalorizacao do corpo e da educagio fisica, reflexdo pessoal e livre sobre o homem, 4 sua natureca ¢ a sua religido, tmpeto entusidstico, enfima, para as con. auistas lterdrias e téenicas e gosto apaixonado da gléria que faz reviver as mais belas tendéncias da Grécia e de Roma, pols no é verdade que tudo isso, que pertence verdadeiramente ao século XVI europeu, nos Surge ao mesmo tempo como axsunto nosso? 16 © movimento humanista e 0 regresso a0 antigo ndo devem ter para nds uma restondncia apenas artistica e literdria, No fundo, é toda uma nova filosofia da vida que se elabora e se define. Os Antigos servem, reste aspecto, de modelos e de inspiradores e a ligagdo com eles & muito profundamente seniida. Mas aquilo que fundamenta de novo modo a Yyalorizagio do corpo humano e propée como objective supremo da vida um equiltbric harmonioso entre 0 desenvolvimento da alma e 0 desen- volvimento do corpo é uma refiexdo viva e pessoal. A pedagosia de Rabelais, e depois a de Montagne, prenunciando a de Rousseau, mode- lam-se na natureza humana definem com clareza 0 objective junda- mental de toda a educagdo: nao mutitar 0 homem, mas desenvolvé-lo harmoniosamente na sua totalidade; ¢ a educagdo fisica e os cuidados com © corpo tém de encontrar o lugar que merecem. Quanto 4 instrugdo propriamente dita, os prinetpios de um Montaigne ‘so validos hoje como 0 eram hd perto de quatro séculos; e 0 nosso ensino {enta, sem sempre o conseguir, conformar-se a eles. Formar a capacidade de jutzo, evitar, antes do malt, sobrecarregar a meméria com um amdl- gama de conhecimentos tantas vezes iniieis—eis as regras que todos aceitamos mas que ainda hoje é bem dificil levar a prética. E no entanto 2 ensino 36 desempenhard verdadeiramente o seu popel quando a erianga puder pastar tudo pelo crivo da sua inteligéncia sem «arrumar nada na cabeca apenar pela autoridade de quem tho dizo. Hd muito quem hoje se sinta pouco a vontade na leitura de Mon- taigne por causa do cardeter ainda arcaico do francés da época, desse francés que 0 ardor apaixonado dos poetas da Pléiade contribuiu para impor ao seu século, Mas & preciso ler e reler Montaigne, saborear a apetitosa frescura do seu estilo, o rebrilhar das suas palavras € das suas frases. E preciso observéslo, como ele desejava e como nos convida a Jazélo, na sua «maneira simples, natural e corrente, sem contengao nem ariificiov. A sabedoria a que ele aspirava e que soube aleancar é, real~ ‘mente, aqueta que convém a condicdo do homem. Qual ndo & 0 prazer que sentimos ao reler esta definicéo de um ensino que tem de ensinar @ pensar: «Quem vai atrds de outrem nada segue e nada encontra: nada procura mesmo. Non sumus sub rege, sibi quisque se vindicet ()»? No dia em que totos os povos — mas estard préximo esse dia? — se confor- marem a semelhante regra poderemos certamente falar também de um verdadeiro Renascimento, Raymond Bloch (©) No dependemos de um ue cada um sea senhor de sl prépro. (N. do 7.) 7 INTRODUGAO A PROMOGAO DO OCIDENTE ‘A nossa compreensio do periodo que vai de Filipe, 0 Belo a Henri- ue IV ficaria muito facilitada se fossem suprimidos dos livros de His- t6ria dois termos solidérios e solidariamente inexactos: «dade Média» © «Renascimento». Com isso se abandonaria todo um conjunto de pre- conceitos. Ficarse-ia, especialmente, livre da idela de ter havido ‘um corte brusco que veio separar uma época de luz de um periodo de trevas, Criada pelos humanistas italianos e retomada por Vasari, a nopio de uma ressurreicdo das letras e das artes gragas ao reencontro com a Antiguidade foi, seguramente, fecunda como fecundos séo todos os mani festos lancados em todos os séculos por novas geragées conquistadoras. Essa nogdo significa juventude, dinamismo, vontade de renovagio. Teve em si a inevitivel injustica das abruptas declaragdes de adolescentes, que rompem ou créem romper com os gostos ¢ as categorias mentais dos seus antecessores. Mas o termo «Renascimento», mesmo na acepeio estrita, dos humanistas, que o aplicavam, essencialmente, & literatura e as artes pilisticas, parece-nos actualmente insuficiente, Parece rejeitar, como bér- baras, as criagées simultaneamente solidas e misteriosas da arte romanica © aqueloutras, mais esbeltas e dindmicas, da idade gotica, Nao da conta nem de Dante, nem de Villon, nem da pintura flamenga do século XV. B, principalnente, ao ser alargado as dimensdes de uma civilizacto pela historiografia romAntica, mostrou-se inadequado. Nao afirmou Burekhardt —que nio tinha em conta a economia—, hé jé um século, que, no essencial, 0 Renascimento no fora uma ressurreigko da Antiguidade? Ora, se dermos aos factos da economia ¢ A técnica o lugar que Ihes cabe, © jutzo de Burckhardt ganha ainda mais verdade, Pois o regresso a Anti Buidade cm nada influiu na invengxo da imprensa ou do relégio meci- nico, nem no aperfeigoamento da artilharia, nem no estabelecimento da contabilidade por partidas dobradas, nem no da letra de chmbio ou das feiras bancésias, Mas as palavras ttm muita vida. Impdem-se-nos contra 19 1 nossa prépria vontade, Com que haverfamos de substituir a palavra «Renascimento»? Com que outro yocdbulo designariamos essa grande evolugdo que levou os nossos antepassados a mais ciéncia, mais conhe- cimentos, maior dominio do mundo natural, maior amor pela beleza? Na falta de melhor, conservei, portanto, ao longo de todo este trabalho, 2 palavra consagrada pelo uso. Mas que fique entendido: esta palavra ja no pode ter o sentido original. No ambito de uma Hist6ria total, significa (€ no pode significar outra coisa) a promocao do Ocidente numa época ‘em que @ civilicagéo da Europa ultrapassou, de modo decisivo, as eivili- zagdes que the eram paralelas. No tempo das primeiras cruzadas, a técnica ea cultura de Arabes e Chineses igualavam, ¢ suplantavam até, a técnica © a cultura dos Ocidentais. Em 1600 ja nio era assim. Propus-me, pois, estudar 0 porqué e 0 como da ascensdo do Ocidente no momento em que ele elaborou uma civilizagio de tal modo superior que, seguidamente, se imps pouco a pouco a todo © mundo. * Os diversos espagos atribuidos no Renascimento so tantos quantos 5 historiadores. Na minha éptica, os problemas da periodizagio — um dos pesadelos da historiografia ao’ debrugar-se sobre a época intermédia que separou a idade feudal da era de Descartes — perdiam acuidade. Optei por uma histéria longa, sem tentar estabelecer cortes artificiais. Tudo 0 ‘que se mostrasse como elemento de progresso seria chamado a figurar ‘numa vasta paisagem que se estende do fim do século XIII até a aurora do século XVII e que vai da Bretanha 8 Moscéyia. Em contrapartida, vvisto que toda a construcio histérica tem, necessariamente, rejeicdes. € siléncios, deixei de Iado, as mais das vezes, os factores de estagnacio— que indiscutivelmente pesaram numa civilizagdo, apesar deles, rica de Inovagées. O quadro geral estava assim delineado e era evidente que 0 Renascimento aqui proposto no se revelaria especialmente artistico nem pparticularmente italiano. O acento t6nico recaiu no dinamismo de toda ‘a Buropa. A ciéncia pictérica dos Van Eyck e as miniaturas do rei René, 1 invengfo do alto forno ¢ a realizago da caravela, as antecipagées pro- féticas de Nicolau de Cusa e 0 irenismo de Erasmo pareceram-me signifi- car a promosio do Ocidente no mesmo pé que os estudos de perspectiva de Piero della Francesca e de Leonardo, B certo, no entanto, que a Itélia, pelos seus humanistas, pelos seus artistas, pelos seus homens de neg6- cios, pelos seus engenheiros ¢ pelos seus matemiticos, foi o pais de van- guarda, o principal responsivel pelo grande avango curopeu. (© historiador fica confundido perante 0 dinamismo que hé um milénio 0 Ocidente tem vindo a mostrar. Durante o periodo abrangido pelo nosso estudo, nemo peso das estruturas ¢ téenicas rurais nem o conservantismo das corporacées nem a esclerose das tradipbes escolésti- cas conseguiram equilibrar as forcas de movimento, cujo poder se mani- 20 festou sempre com nova energia. Porque essa encrgia? O legado da civi~ lizagio greco-romana, 0 contributo fecundante do cristianismo, o lima temperado, as terras’férteis—eis af outros tantos factores, sem divida fa juntar a muitos outros, que favoreceram os homens que se tinham concentrado ne Oeste do continente euro-asiitico. Mas também nfio fal- taram as provagdes: umas naturais, como a Peste Negra; outras provo- cadas pelo jogo das competicdes politicas, econémicas € religiosas. Entre 1520 e 1450 abateu-se sobre a Europa uma conjungio de desgragas: pri- vvas6es, epidemias, guerra, aumento brutal da mortalidade, diminuigio da produgio de metais preciosos, avango dos Turcos; desafios esses que foram yencidos com coragem ¢ com génio. A histéria do Renascimento € a historia desses desafios e dessas respostas. A critica do pensamento clerical da Tdade Média, a recuperagio demografica, os progressos téoni- cos, a aventura maritima, uma estética nova, um cristianismo reelaborado f rejuvenescide: eis os principais elementos da resposta do Ocidente as ‘tH variadas dificuldades que no seu caminho se haviam acumulado, Desatfio e respostay: pode-se aqui reconhecer a terminologia de A. Toyn- bee, e eu pento que ela traduz admiravelmente o fenémeno do Renas- cimento. Mas nfo vou mais além na esteira desse grande historiador inglés, Vistas s uma certa distancia, a hist6ria da Humanidade em geral fe, mais especialmente, a da humanidade ocidental parecem menos uma sucesso de crescimentos © de desagregacdes que uma marcha para diante, ‘entrecortada, € certo, de paragens e regressUes; mas paragens e represses apenas provisérias. B verdade que houve porgdes de humanidade local- mente falhadas, mas a Humanidade, globalmente considerada, nunca deixou de progredir de século em século, e isso também nos periodos de conjuntura desfavordvel. Assim, e sem negligenciar 0 estudo da conjun- tura na €poca do Renascimento, insisti principalmente nas modificagies, ‘das estruturas materiais mentais que permitiriam a civilizagio curopeia avangar, entre os séculos XIII e XVII, no caminho do seu extraordi- nério destino, * ‘dentificar um caminko no implica aché-lo sempre belo, como nao implica que nfo haja outro possivel. Como ao historiador compete com- preender e nfo julgar, nfo procurei saber se 0 perfodo do Renascimento deveria ser preferido & xidade das catedraisy ou privilegiado em relacio ao grande século», Para qué essa estranha mas frequente distribuigio de prémios?, Por isso nfo apresentel um Renascimento em que tudo fosse Exitos ¢ beleza. Pelo contrério, a mais elementar obrigago de lucidez conduz-nos a declarar que os séculos XV ¢ XVI viram, de certo modo, uum aumento de obscurantismo—o obscurantismo dos’ alquimistas, dos astrélogos, das feiticeiras © dos cacadores de feiticeiras. Continuaram a dar relevo a tipos de homens — por exemplo, 0s condottieri— © de sen- a timentos, como o desejo de vinganga, que durante muito tempo foram tidos por caracteristicos do Renascimento quando, na verdade, consti- tufam heranga do periodo anterior. Tempo de édios, de lutas terriveis, de processos insensatos, a época de Barba-Azul ¢ Torquemada, dos ‘massacres dos povos americanos e dos autos-de-fé, impressiona também © historiador do século XX pela dureza da sua vida social, Néo 36 jinaugurou a deportagao dos Negros para o Novo Mundo como também alargou, na propria Europa, o fosso que separava os humildes dos privi- legiados. Os ricos tornaram-se mais ricos, os pobres passaram a ser mais pobres. Nio se repisou jé muito a ascensio da burguesia na épaca de Jacques Coeur, dos Médicis © dos Fugger? A realidade ¢ mais complicada, ois, 0s novos-ricos apressaram-se a passar & nobreza, que assim se vit renovada e insuflada. Claro que ela foi cada vez mais décil em relagdo 0 Principe. Mas nem por isso deixou de ser a classe possuidora, E, a0 converter-se & cultura —fenémeno cuja importéncia ainda nio foi bas- tante salientada—, imp6s a civilizagio ocidental uma estética e uns gos- tos aristoritices que tinham por contraartida o desprezo pelo trabalho manual, Raramente numa fase da Historia o melhor ombreou tanto com o ior como no tempo de Savonarola e dos Borgia, de Santo Inicio ¢ do Aretino. Por isso o Renascimento surge aos nossos clhios como um foceano de contradigdes, um concerto por vezes estridente de aspiragses divergentes, uma dificil concomitincia da yontade de poderio e de uma cigncia ainda balbuciante, do desejo de beleza e de um apetite malsio pelo horrivel, uma mistura de simplicidade ¢ de complicagées, de pureza de sensualidade, de caridade ¢ de Gdio. Recusei-me, portanto, a mutilar © Renascimento ¢ a ndo ver nele, como H. Haydn, sendo um espirito anticientifico ou, em sentido oposto, como E, Battisti, senfo a caminhada ara o racional, Nisso residem 0 seu carter desconcertante, a sua com- plexidade © a sua inesgotével riqueza. Por exemplo, a0 dar ao mimero, nna tradigio dos pitagéricos, um cardcter quase mistico ¢ religioso, © Renascimento foi, todavia, conduzido, por esse caminho indirecto, para (© quantitativo ¢ para a nosZo cientificamente fecunda segundo a qual a ‘Matemitica constitui o tecido do Universo, * © Renascimento tina 0 gosto dos caminhos escusos. 1 por isso que ainda hoje o regresso Antiguidade obceca certos espfritos que preten- dem avaliar a época de Leonardo em funcio desse aspecto e Ihe repro- vam ter-se deixado atrasar por aquele passado jé de ha muito suplantadi ‘Na verdade, 0 aparente regresso as fontes da beleza, do saber ¢ da reli- sifto foi apenas um meio de progredir. Alegremente se apithou os templos de Atenas ¢ de Roma» para ornamentar os de Franca, de Espanha e de Inglaterra, A partir do século XVI identificouse em’ Miguel Angelo o 22 maior artista de todos os tempos. Demoliu-se Aristételes com base em Plato e Arguimedes. Colombo descobriu as Antilhas gragas aos erros de céleulo de Ptolomeu. Lutero e Calvino, julgando restaurar a Igreja primitiva, deram uma face nova ao eristianismo. O Renascimento, que se comprazia com os ccmblemasy © os cripiogramas, dissimilou a sua profunda originalidade e 0 seu desejo de novidade por tris de um hic r6glifo que ainda causa enganos: a falsa imagem de um regresso a0 passado. ‘Através de contradigdes, ¢ por caminhos complicados, mas sempre sonhando com parafsos mitolégicos ou com impossives utopias, 0 Renas- cimento deu um extraordinério salto para diante. Nunca uma civilizaca0 era tio grande lugar a pintura e a musica, nem erguera a0 céu tio altas cipulas, nem elevara ao nivel da alta literatura tantas linguas nacionais encerradas em tio exiguo espaco. Nunca no passado da Huma- nidade tinham surgido tantas invengdes em tio pouco tempo. Pois 0 ‘Renascimento foi, especialmente, progresso técnico; deu ao homem do Ocidente maior dominio sobre um mundo mais bem conhecido. Ensinou- Ihe a atravesar 0s oceanos, a fabricar ferro fundido, a servir-se das armas e fogo, a contar as horas com um motor, a imprimir, a utilizar dia a dia a letra de cimbio ¢ o seguro maritimo. ‘Ao mesizo tempo — progresso espiritual paralelo ao progresso mate- rial—, inicion a libertago do individuo ao tiré-lo do seu anonimato ‘medieval e comecando a desembaragé-to das limitagbes colectivas. Burck- hardt observou de forma genial esta caracteristica da época que estudava. ‘Todos os seus sucessores 0 tém de seguir nesse caminho, mas sublinhando quiio dolorose foi esse nascimento do homem moderno, acompanhado por um sentiment de soliddo e de pequenez. Os contemporineos de Lutero € de Du Belly descobriram-se pecadores e frigels, sujeitos as ameagas do Diabo e das estrelas. Houve uma melancolia do Renascimento. E tal- vez no tenha sido errado —sob condicdo de se nao tomar a formula em ‘mau sentido— o definir-se a doutrina da justificagio pela f¢ como um «romantismo da consolacdo». Mas falar apenas de descoberta do Homem € dizer muito pouco. A historiografia recente demonstrou que o Renas- ‘cimento foi também descoberta da crianga, da familia, no sentido estrito a palavra, do casamento ¢ da esposa. A civilizacdo ocidental fez-se entio ‘menos antiferinista, menos hostil ao amor no lar, mais sensivel 2 fragili- dade ¢ delicadeza da erianca. © cristianismo viuse nessa altura perante uma nova mentalidade, uma mentalidade complexa, feita do receio da danagio, da necessidade de devocdo pessoal, da aspiragiio a uma cultura mais laica e do deseio de integragio da vida e da beleza na religifo. © anarquismo rel dos séculos XIV ¢ XV levou, sim, a uma ruptura, mas também a um cristianismo rejuvenescido, mais estruturado, mais'aberto as realidades do dia a dia, mais habitével pelos leigos, mais permedvel a beleza do corpo € do mundo. O Renascimento foi, sem daivida, sensual; e optou, 23 por vezes, especiaimente em Pidua, por uma filosofia materialista, Mas © seu paganismo, mais aparente que real, iludiu certos esplrites que bus- cavam, principalmente, o anedético e o escandaloso, Destumbrado com a beleza do corpo, péde restituir-the © seu legitimo lugar na arte ¢ aa vvida. Mas, com isso, nfo aspirava a romper com o cristianismo. A maioria dos pintores representou com igual convicezo as cenas biblicas © 05 nus mitol6gicos. Ao fazé-1o, no tinham o sentimento de estar em contra- digio consigo préprios. ‘A mensagem de Lorenzo Valla foi compreendida: cristianismo nico significava, forgosamente, ascetismo. A laicizagio ¢ a humanizago da religito néo constituiram, nos séculos XV e XVI, uma descristianizacio, Esta explicactio convida a outra, de natureza diferente. Ambes, porém, provém do mesmo desejo de explorar em profundidade um periodo que tem sido fascinante principalmente pelo seu cenério, as suas festas e os seus excessos. Pois ni irfamos aqui ceder a facilidade ¢ apre- sentar um Renascimento em que veneno dos Borgia, as cortesis de ‘YVeneza, os easamentos de Henrique VIIT ¢ os bailes da corte dos Valois tivessem posigo de primeiro plano, Em vez disso, 0 que deve chamar as ‘tenses sio as transformagdes de incalculdvel alcance, escondidas por falsas perspectivas como as que todas as épocas tém. Seguindo John U. Nef, acentuei, portanto, a promogio do quantitativo © a elevacio do espirito de abstraccio © de organizaclo, a lenta mas firme consolidagao de uma mentalidade mais experimental e mais cientfica. Fugindo a caminhos muito trilhados, & anedota © ao superficial, desejoso de oferecer uma sintese nova e de empreender uma reinterpre- tagdo do Renascimento, tive todavia a constante preocupacio de evitar © paradoxo ¢ as formulas, que atordoam mas nfo convencem. Procurei fem vez disso, demonstrar, esclarecer, fornecer ao Ieitor uma documentacio ‘Ho vasta quanto posstvel, Quando’ estava a escrever este livro veio-me muito & meméria uma frase de Calvino. No fim da vida, ao dar uma othadela as suas obras, Calvino disse: eesforcelme por alcancar a simpl cidade». Também eu procurei fazer @ mesmo. Estas poucas paginas de introducdo tiveram a finalidade de criar uma ligacio, uma cumplicidade entre o leitor e o auter. Eu devia a quem viesse a ler-me as explicagves necessérias. Chegou agora o momento de recolher-me ¢ dar lugar ao assunto que tratel; mas nfo sem mostrar 0 pplano seguido. A. primeira parte constitui uma colocagio dos principais factos nos quatro dom{nios: politica, econémico, cultural e religioso. ‘A segunda € uma penetracZo no interior das realidades concretas da vida ‘quotidiana, A terceira, paralela a segunda. mas na ordem espiritual, pro- cura identificar uma mentalidade diferente da do passado e captar a vinda {superficie de novos sentimentos, PRIMEIRA PARTE LINHAS DE'FORCA

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