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Título original:

Malhas que as Império Tecem. Textos Anticoloniais, Contextos Pós~Colaniais

Introdução:© Manuela Ribeiro Sanches e Edições 70,Lda., 2011


Desta edição:© Manuela Ribeiro Sanches e Edições 70, Lda., 2011

W. E. B. Du Bois , Do nossa esforço espiritual: © Penguin Group; Alain Locke, O nova Negro: © Scribner;
Léopold Sédar Senghor, O contributo da homem negro,© Éditions du Seui1, 1961; George Lamming, A presença
africana: © The University ofMichigan Press, 1960, 1992; C. L. R. James, De Toussaint L 'Ouverh1re a Fidei
Castro: © Random H ouse 1963; Mãrio (Pinto) de Andrade, Prefácio à Antologia Temática de Poesia Africana:
©Sã da Costa 1975; Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo:© Gallimard, 1950; Georges Balandier,
A situação colonial: uma abordagem teórica: ©PUF, 1950; Aimé Césaire, Cultura e colonização: © Présence
africaine; Frantz Fanon, Racismo e cultura: © Frantz Fanon 1956; Kwame Nkrumah, O neo-colonialismo em
IÍfrica: © Kwame Nkrumah; Eduardo Mondlane, A estrutura social- mitos e factos: ©Janet e Eduardo
Mondlane Jr.; Eduardo Mondlane, Resistência~ A procura de um movimento nacional: ©Janet e Eduardo
Mond1ane Jr.; Amílcar Cabral , Libertação nacional e cultura: ©Centro Amilcar Cabral.

Capa de FBA

Ilustração de capa:
«lt's Hard to Say Goodbye!», caricatura da descolonização de África, de «Ludas Matyi>),
2 Agosto 1960 (litografia a cores), Hegedus, Istvan (fl.l960) I Priva te Collection
I Archives Channet I The Bridgeman Art Library

Apesar de várias tentativas, não foi posslvcllocalizar o proprietário dos direitos da ilustração
utilizada na capa. Para qualquer informação, contactar a editora através do endereço
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Biblioteca Nacional de Portugal- Catalogação na Publicação


MANUELA RIBEIRO
SANCHES, Manuela Ribeiro, 1951~

Malhas que os impérios tecem.- (Lugar da história)


ISBN 978~972-44-1651-9
SANCHES (ORG.)
CDU 94(4-44)
325 MALHAS QUE
Paginação:
RITA LYNCE

Impressão e acabamento:
OS IMPÉRIOS TECEM
PENTAEDRO

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TEXTOS ANTICOLONIAIS,
EDIÇÕES 70, LDA.
om
Abril de2011
CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS
Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa
por Edições 70

EDIÇÕES 70, Lda.


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Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passivei de procedimento judicial.
W. E. B. DU BOIS (I)

Do nosso labor espiritual

Notação musical do espiritual <<Nobody knows the trouble I seem>

Ó água, voz do meu coração, clamando n~ areia,


Clamando toda a noite num clamor lúgubre,
Enquanto, deitado, escuto, sem poder compreender
A voz do coração em mim, ou a voz do mar,
Ó água, clamando por repouso, serei eu, serei eu?
Toda a noite a água clama por mim.
Água sem descanso, não haverá descanso
Até que a última lua caia e a última maré falhe,
E o fogo final comece a arder no Ocidente;
E o coração ficará cansado e admirar-se-á e clamará como o mar,
Clamando durante toda a vida em vão,
Tal como a água clama por mim durante toda a noite.

ARTHUR 8YMONS

Entre mim e o outro mundo existe sempre uma pergunta por fazer: por
fazer, por parte de alguns, por sentimentos de delicadeza; por parte de
outros, devido à dificuldade em a enquadrar correctamente. Contudo, todos

(l) «Of our spiritual striving>>, The Souls of Black Folk. Nova Iorque: New American
Library 1969 [1903], pp. 43-53. Tradução de Manuela Ribeiro Sanches. Revisão de Maria
José Rodrigues.

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giram em tomo dela. Abordam-me de um modo semi-hesitante, olham- vilhosos que fervilhavam em mim- havia de arranjar um modo. A luta
-me com curiosidade ou compaixão e, depois, em vez de dizerem directa- não foi tão bem-sucedida para outros rapazes negros: a sua juventude
mente «Como é ser-se um problema?», dizem, «Conheço um homem de definhou numa subserviência de mau gosto ou num ódio silencioso ao
cor extraordinário na minha cidade»; ou, «Lutei em Mechanicsville» (2); mundo pálido que os rodeava e na desconfiança trocista de tudo o que
ou, «Não fazem estes ultrajes sulistas o sangue ferver-lhe nas veias?» fosse branco; ou foi esbanjada num clamor amargo «Porque me fez Deus
Perante isto, sorrio, fico interessado ou deito água na fervura, consoante W um pária e um estrangeiro em minha própria casa?» As sombras da casa-
a ocasião. À pergunta real: «Como é sentir-se um problema?» raramen- ll ·prisão baixaram sobre todos nós: paredes finas e resistentes para os mais
te respondo com uma palavra que seja. ~ brancos, mas implacavelmente estreitas, altas e inexpugnáveis para os
E, contudo, ser-se um problema é uma experiência estranha, pecu- ~ filhos da noite que têm de labutar, resignados, nas trevas, ou bater, em
El
liar, mesmo para alguém que nunca foi outra coisa, a não ser, talvez, ~ vão, com a palma da mão contra a pedra ou observar, teimosamente,
durante a infância e na Europa. Foi nos primeiros tempos de uma infân- ~ quase desesperados, a réstia de céu azul.
cia traquinas que a revelação irrompeu em mim, assim, um dia, tudo de '' Depois do Egípcio e do Índio, do Grego e do Romano, do Teutónico
uma vez. Lembro-me bem quando a nuvem me varreu. Eu era uma coisa
t' e do Mongol, o Negro é uma espécie de sétimo filho, nascido com um véu
pequena, vivendo longe, entre os montes da Nova Inglaterra, onde o e dotado de uma segunda visão neste mundo americano- um mundo que
escuro Housatonic serpenteia por entre um leito acidentado entre o Hoo- não lhe concede uma consciência de si verdadeira, mas apenas lhe permi-
sac e o Taghkanic em direcção ao mar. Numa escolinha de madeira, te ver-se a si mesmo através da revelação do outro mundo. É uma sensa-
alguém meteu na cabeça dos rapazes e raparigas que tinham de comprar ção estranha, esta dupla consciência, esta sensação de se estar sempre a
lindos cartões de visita- a dez cêntimos o maço- e de os trocar entre si. olhar para si mesmo através dos olhos dos outros, de medir a nossa alma
Foi uma troca jovial, até que uma rapariga alta, recém-chegada, recusou pela bitola de um mundo que nos observa com desprezo trocista e pie-
o meu cartão; recusou-o peremptoriamente, sem hesitar. Foi então que dade. Sente-se sempre esta dualidade- um Americano, um Negro; duas
me foi dado a ver, numa certeza repentina, que era diferente dos outros; ahnas, dois pensamentos, dois anseios irreconciliáveis; dois ideais em con-
ou, porventura, semelhante no coração, na vida e nos desejos, mas excluí- tenda num corpo escuro que só não se desfaz devido à sua força tenaz.
do do mundo deles por um enorme véu. Não desejei, depois disso, des- A história do Negro americano é a história deste conflito - deste
truir esse véu, esgueirar-me por entre ele, mas passei a desprezar tudo o anseio por atingir um estado adulto consciente de si, por fundir esta dupla
que estivesse para além dele; e passei a viver acima dele, numa região consciência num ser melhor e mais verdadeiro. Não deseja que nenhu-
de céu azul e vastas sombras flutuantes. Esse céu era mais azul, quando ma das anteriores consciências se perca através desta fusão. Não preten-
conseguia superar os meus companheiros, ser mais rápido nos exames de africanizar a América, pois a América tem muito a ensinar ao mundo
ou nas corridas ou mesmo quando conseguia vencer as suas cabeças e à Àfrica. Não pretende branquear a sua alma de Negro numa corrente
ocas. Infelizmente, com os anos, todo este frágil sentimento de superio- de americanismo branco, pois sabe que o sangue negro tem uma men-
ridade começou a dissipar-se, pois as palavras por que eu ansiava, e todas sagem para o mundo. Apenas deseja que um homem possa ser, ao mesmo
as suas oportunidades deslumbrantes, eram deles e não minhas. Mas não tempo, negro e americano, sem ser amaldiçoado e humilhado pelos seus
haveriam de conservar esses prémios, dizia para comigo; havia de lhes próximos, sem que as portas da oportunidade lhe sejam brutalmente
conquistar alguns, todos. Só não conseguia decidir-me quanto ao modo fechadas na cara.
de o fazer: estudando direito, curando os doentes, contando os contos mara- Esta é, portanto, a finalidade do seu anseio: participar na construção
do domínio da cultura, escapar à morte e ao isolamento, proteger e usar
(2) Referência à Batalha de Mechanicsville (1862) durante a Guerra Civil americana. os seus melhores poderes e o seu génio latente. Estes poderes do corpo

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e da mente foram, no passado, estranhamente desperdiçados, dispersos :sonho, a escravatura era, com efeito, a soma de todas as vilanias, a causa
ou esquecidos. A sombra de um poderoso passado negro perpassa a nar- ,de toda a aflição, a raiz de todo o preconceito, e a emancipação, a chave
rativa da Etiópia, a sombria, e a do Egipto, o esfingico. Através da his- ·para uma terra prometida jamais entrevista pelos olhos de israelitas
tória, os poderes de indivíduos negros brilham aqui e ali, quais estrelas exaustos. Nos seus cânticos e exortações, irrompeu um refrão- Liber-
cadentes, morrendo, por vezes, antes que o mundo tenha reconhecido dade; nas suas lágrimas e maldições, o Deus a que implorava segurava
adequadamente o seu brilho. Aqui, na América, nos poucos dias decor- a Liberdade na mão direita. Finalmente, veio - súbita, assustadora -
ridos desde a Emancipação, o vaivém do homem negro, num anseio ·como um sonho. E, num carnaval selvagem de sangue e paixão, veio a
hesitante e duvidoso, levou frequentemente a que a sua força perdesse mensagem, com as suas cadências fúnebres:
eficácia, aparentasse ser ausência de poder, fraqueza. E, contudo, não é
fraqueza- é a contradição de objectivos duplos. A luta com o objectivo «Clamai, ó crianças!
duplo do artesão negro - de escapar, por um lado, ao desprezo branco Clamai, sois livres!
perante uma nação de meros lenhadores e aguadeiros e, por outro, de Pois Deus comprou a vossa liberdade!»
arar, pregar e cavar para uma multidão vítima da pobreza- só pôde levar
a que se tomasse num artesão medíocre, pois apenas se empenhou par- Passaram-se anos desde então dez, vinte, quarenta anos de vida nacio-
cialmente em ambas as causas. O pastor ou o médico negro foi tentado, nal, quarenta anos de renovação e desenvolvimento- e, contudo, o espec-
dada a pobreza e ignorância do seu povo, a praticar o charlatanismo e a tro sombrio continua a ocupar o seu lugar habitual no banquete da Nação.
demagogia; e, dada a atitude crítica do outro mundo, a abraçar ideais que É em vão que proclamamos perante ela o nosso maior problema social:
o fizeram envergonhar-se das suas tarefas menores. O aspirante a erudito
negro viu-se confrontado com o paradoxo de que o conhecimento de que «Toma qualquer forma menos essa, e não mais
o seu povo precisava era uma banalidade para os seus vizinhos brancos, os meus nervos firmes tremerão!»
enquanto que o conhecimento que traria algo de novo ao mundo branco Nunca mais tremerão!»
era estranho à sua própria carne e sangue. O amor inato da harmonia e
da beleza, que pôs as almas mais rudes do seu povo a dançar e a cantar, A Nação ainda não expiou os seus pecados; o liberto ainda não
apenas suscitou confusão e dúvida na alma do artista negro; pois a beleza encontrou na liberdade a sua terra prometida. Apesar de tudo o que de
que lhe era revelada era a beleza da alma de uma raça que o seu público bom estes anos de mudança possam ter trazido, a sombra de uma pro-
mais alargado desprezava, não conseguindo articular a mensagem de um funda desilusão cobre o povo negro -uma desilusão tanto mais amarga
outro povo: Este desperdício de objectivos duplos, este desejo de satisfa- quanto o ideal por atingir não conheceu outros limites a não ser os da
zer dois ideais irreconciliáveis, teve efeitos tristemente destrutivas sobre ignorância simples de um povo humilde.
a coragem, a fé e os actos de milhares e milhares de pessoas, levando-as A primeira década foi tão só um prolongamento da procura vã da
frequentemente a adorar falsos deuses e a invocar falsos meios de salva- liberdade, a bênção que parecia estar sempre a escapar-se-lhes- tal fogo
ção, tendo, nalguns momentos, parecido levá-los a sentirem-se envergo- fátuo tentador, enlouquecendo e enganando a vítima desorientada. O holo-
nhados de si mesmos. causto da guerra, os horrores do Ku-Klux Klan, as mentiras dos charla-
Nos tempos longínquos da escravidão julgaram ver num aconteci- tães, a desorganização da indústria e os conselhos contraditórios de
mento divino o fim de toda a dúvida e desilusão; poucos homens alguma aliados e inimigos levaram a que ao servo libertado perplexo não restas-
vez veneraram a Liberdade, nem que fosse com metade da fé cega, como se outra palavra de ordem a não ser o antigo grito pela liberdade. À medi-
o Negro americano o fez durante dois séculos. No seu pensamento e da que o tempo passava, começou, contudo, a apoderar-se de uma nova

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ideia. Para ser atingido, o ideal de liberdade exigia meios poderosos e l·..·. em quem a consciência, a realização e o respeito por si começaram a
estes foram-lhe dados pela Décima Quinta Emenda('). Passou a encarar despontar. Nessas florestas sombrias do seu esforço, a sua própria alma
a votação, que anteriormente vira como um sinal visível de liberdade, J; ergueu-se diante dele, e viu-se a si mesmo- de um modo tão escuro como
como o principal meio para conquistar e aperfeiçoar a liberdade que a ~ através de um véu; mas reconheceu em si mesmo uma ténue revelação
guerra, parcialmente, lhe concedera. E porque não? Não tinha o voto ! do seu poder, da sua missão. Começou a ter um vago sentimento de que,
A~
feito a guerra e emancipado milhões? Não tinha o voto concedido direi- para obter o seu lugar no mundo, teria de ser ele mesmo e não~ outro.
tos civis aos libertos? Seria algo de impossível para um poder que fizera Pela primeira vez, tentou analisar o fardo que carregava consigo, esse
tudo isto? Um milhão de homens negros principiou a lutar, a votar, com peso morto da degradação social parcialmente camuflado pelo semide-
zelo renovado, para que fossem reconhecidos os seus direitos. E assim signado problema do Negro. Sentiu a sua pobreza; sem um cêntimo, sem
passou a década; veio a revolução de 1876, deixando o servo semilivre casa, sem terra, sem ferramentas ou poupanças, entrara em concorrência
cansado, perplexo, mas ainda inspirado. Lenta mas tenazmente, uma com vizinhos ricos, com latifundiários, com qualificados. Ser um homem
nova visão começou, nos anos seguintes, a substituir-se gradualmente pobre já é difícil, mas ser uma raça pobre numa terra de dólares é a mais
ao sonho do poder político- um movimento poderoso, o emergir de um pesada das adversidades. Sentiu o peso da sua ignorância- não só em
o~tro ~deal par~ guiar os que andavam à deriva, uma outra coluna de fogo relação às letras, mas também à vida, ao negócio, às humanidades; a
a IlUminar a nmte depois de um dia nublado. Era o ideal de «aprender com indolência, a inércia e o embaraço acumulados durante decénios e sécu-
os livros», era a curiosidade, nascida da ignorância forçada, de conhecer los agrilhoavam-lhe as mãos e os pés. E o seu fardo não se limitava à pobre-
e pôr à prova o poder das letras cabalísticas do homem branco, o desejo za e à ignorância. A mancha vermelha da bastardia, que dois séculos de
de saber. Parecia ter-se finalmente descoberto o caminho montanhoso sistemática profanação legal das mulheres negras haviam imprimido na
para Canaã; caminho mais longo do que a estrada principal da Emanci- sua raça, significava não só a perda da antiga castidade africana, mas
pa~ão e da jus_tiça, íngreme e acidentado, mas que conduzia, certeiro, a também o peso hereditário de uma massa de corrupção de adúlteros bran-
altitudes suficientemente elevadas para avistar a vida. cos, quase ameaçando a obliteração do lar negro.
Subindo este novo caminho, a vanguarda labutou, lenta, pesada, A um povo tão incapacitado não deveria ser requerido que compe-
tenazmente; só quem observou e guiou os pés vacilantes, as mentes ene- tisse com o mundo, antes devia ser-lhe concedida autorização para dedi-
voadas, os entendimentos entorpecidos dos alunos escuros destas esco- car todo o seu tempo e a sua reflexão aos seus próprios problemas sociais.
las conhece o esforço insistente e comovente destas pessoas por aprender. Mas, infelizmente, enquanto os sociólogos contabilizam jubilosamente
Foi um trabalho árduo. O estatístico anotou, friamente, os centímetros os bastardos e prostitutas, a própria alma do homem negro, na sua labu-
de avanço aqui e acolá, também aqui e acolá, quando um pé escorrega- ta e no seu suor, é obscurecida pela sombra de um enorme desespero.
ra ou alguém caíra. Aos olhos dos trepadores cansados, o horizonte sur- Os homens chamam à sombra preconceito e explicam-no eruditamente
gia permanentemente sombrio, as névoas frequentemente frias, Canaã como a defesa natural da cultura contra a barbárie, da sabedoria contra
sempre vaga e distante, as vistas não desvendavam, por ora, um objecti- a ignorância, da pureza contra o crime, das raças «superiores» contra as
vo, um lugar de descanso, só pouco mais do que lisonjas e críticas. Contu- «inferiores». Ao que o Negro retorque com um Ámen!, jurando que se
do, a viagem deu-lhes, pelo menos, a disponibilidade para a reflexão e verga, humilde, e obedece docilmente a este estranho preconceito, basea-
para o auto-exame, transformando o filho da Emancipação num jovem do numa justa homenagem à civilização, à cultura, à equidade e ao pro-
gresso. Mas, diante desse preconceito anónimo que excede tudo isto, fica
. (~) ~rnenda à ~onstituição dos Estados Unidos da América, datada de 1870, que aboliu indefeso, consternado e quase sem fala; diante desse desrespeito pessoal
a dtscnmmação racial no exercício do direito de voto (N T.). e da troça, da ridicularização e da humilhação sistemática, da distorção

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dos factos e da licenciosidade desregrada da fantasia, do ignorar cínico do aça crédula ou doces devaneios de um outro mundo que não conhece e
r .
melhor e do aplauso ruidoso do pior, do desejo avassalador de incutir o "não quer conhecer o nosso poder. Para serem realmente verdadetros,
desdém por tudo ó que seja negro, desde Toussaint ao demónio- diante todos estes ideais têm de ser dissolvidos e fundidos num só. Precisamos
disto, nasce um desespero mórbido que desarmaria e desencorajaria qual- hoje mais do que nunca da preparação de escolas - do treino de mãos
quer nação, à excepção desse hóspede negro para quem «desencoraja- expeditas, de olhos e ouvidos rápidos e, sobretudo, de uma cultura mais
mento» é uma palavra inexistente. ampla, mais profunda, mais elevada, de mentes dotadas e corações puros.
Mas enfrentar um preconceito tão vasto não podia senão trazer o Carecemos do poder da votação como mera autodefesa - que mais nos
autoquestionamento, a autodepreciação inevitáveis, bem como o menos- há-de livrar de uma segunda escravatura? A liberdade, esse bem procu-
prezo dos ideais que acompanham sempre a repressão e se multiplicam rado durante tanto tempo, ainda a procuramos- a liberdade de vida e de
num ambiente de desprezo e ódio. Surgiram sussurros e presságios trans- movimento, a liberdade para trabalhar e pensar, a liberdade para amar e
portados aos quatro ventos: Senhor, estamos doentes e moribundos, clama- aspirar. Trabalho, cultura, liberdade- de todos carecemos, não individual-
ram os hóspedes escuros; não sabemos escrever, votamos em vão. Para mente mas em conjunto, não sucessivamente mas em conjunto, todos cres-
que precisamos de educação, se temos de cozinhar e servir sempre? E a "cendo individualmente, mas apoiando-nos uns aos outros, todos ansiando
Nação ecoou e confirmou esta autocrítica, dizendo: Contentai-vos em 'pilr esse ideal mais vasto que brilha diante do povo negro, o ideal da fra-
ser servos e nada mais. Para que precisam os semi-humanos de alta cul- ternidade humana conquistado através do ideal unificador da Raça; o
tura? Abaixo o direito de voto do homem negro por imposição ou frau- 'ideal de promover e desenvolver os traços e os talentos do Negro, não
de -, olhai o suicídio de uma raça! Não obstante, do mau surgiu algo de "efu oposição ou com desprezo por outras raças, mas antes em ampla con-
bom- quanto mais cuidada for a adaptação da educação à vida real, mais formidade com os maiores ideais da República Americana, para que, um
clara se toma a percepção das responsabilidades sociais dos negros e dia, em solo americano, duas raças mundiais forneçam uma à outra aque-
mais lúcido o sentido do progresso. 'las características que lamentavelmente agora lhes faltam. Nós, as raças
Foi assim que nasceu a madrugada do Sturm undDrang(4 ): atempes- 'mais escuras, não chegamos, mesmo agora, de mãos completamente
tade e o impulso abanam hoje o nosso pequeno barco nas águas revoltas vazias: não existem, actualmente, expoentes mais verdadeiros do puro
do oceano do mundo; existe, dentro e fora do som do conflito, o queimar 'espírito humano da Declaração da Independência do que os negros ame-
do corpo e o render da alma; a inspiração luta com a dúvida e a fé com ti canos·, só existe uma verdadeira música americana, as doces melodias
questionamentos vãos. Os magníficos ideais do passado - a liberdade selvagens do escravo negro; os contos de fadas e a cultura popular ame-
fisica, o poder político, o treino dos cérebros e das mãos - todos estes ticanos são indígenas e africanos; e, no seu conjunto, nós, os homens
ideais cresceram e decresceram, até que mesmo o último se tomou vago ,negros, parecemos ser o único oásis de fé simples e de reverência num
e nublado. Serão todos eles erróneos ou falsos? Não, não é isso, mas cada deserto poeirento de dólares e astúcia. Tomar-se-á a América mais pobre,
um era excessivamente simples e íncompleto- sonhos de ínfância de uma se substituir o seu brutal erro dispéptico pela humildade negra, leviana,
mas determinada; o seu humor rude e cruel por uma jovialidade afectu-
osa; ou a sua música rude pela alma dos espirituais?
(4) Sturm und Drang -literalmente «tempestade>> _e «impulso». Movimento literário O Problema Negro é apenas um teste concreto aos princípios fun-
- cujo nome se inspira no título da peça (1776) homónima de Friedrich Maximilian von
damentais da grande república, e o anseio espiritual dos filhos dos homens
Klinger- surgido nos territórios alemães, em finais do século xvm, questionando os valores
do cânone clássico de influência francesa na literatura e nas artes, dando ênfase à genialidade livres é a labuta das almas cujo fardo vai quase para além da medida da
do indivíduo e à sua capacidade criadora, bem como apelando ao regresso à autenticidade sua força, mas que o suportam em nome de uma raça histórica, da terra
das raízes locais. Teve em Friedrich Schiller, Johann WÜlfgang Goethe e Johann Gottfried
Herder alguns dos seus principais protagonistas (NE.). dos pais dos seus pais e da oportunidade humana [ ... ].

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