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Sorofobia, o Preconceito Sem Nome
Sorofobia, o Preconceito Sem Nome
Capa
Rodrigo Lago a partir da imagem Trans-sexuality, de Gerld
Altmann
Realização do projeto
Programa de Pós-graduação em Literatura
Universidade Federal de Santa Catarina
Conselho Editorial
Anselmo Peres Alós (UFSM)
Luciana Borges (UFG)
Liane Schneider (UFPB)
Maximiliano Torres (UERJ)
Marcia Almeida (UFJF)
E-book (PDF)
ISBN 978-65-87206-39-4
CDU: 305
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Marcio Markendorf
(organizador)
1ª edição
Florianópolis
UFSC
2020
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Apresentação
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global/local, orgânico/maquínico, humano/animal, normal/queer,
heterossexual/homossexual, objeto/abjeto, dentre outras categorias.
Deve-se sublinhar que, para nós pesquisadores e pesquisadoras, é
necessário pensar para além da dicotomia homem/mulher,
masculino/feminino, uma vez que se desentranhou de um tipo de
armário secular um espectro muito mais variado de expressões de
sexualidade e de práticas sexuais, com as quais devemos conviver
pacificamente. As multidões queer, para usar uma expressão de Paul
B. Preciado, possuem movimentos dinâmicos que vão dos gays aos
goys, das drag queens às drag kings, das pessoas trans às não
binárias, do trisal ao poliamor.
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indivíduo, um grupo ou comunidade. É, por fim, uma vontade
humanitária por um mundo horizontal, livre de qualquer batalha.
Marcio Markendorf
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SUMÁRIO
INTIMIDADES REVELADAS
Tânia Regina Oliveira Ramos 163
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Sorofobia, o preconceito sem nome
– representações da soropositividade em meios
publicitários e audiovisuais –
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a capacidade de agenciar a desconstrução de estigmas e
instrumentalizar a luta contra as violências simbólicas e/ou físicas.
O caráter abstrato do preconceito apenas pode se desvanecer se é
acompanhado de uma segmentação adjetiva dotada de concretude.
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sensibilização pública para quanto ao uso consciente de preservativo
nas relações sexuais. A campanha publicitária, com circulação
também pelo Brasil, teve como slogan “Sem camisinha você está
dormindo com AIDS. Proteja você mesmo” e duas peças: na
primeira, um homem branco, de cabelos escuros, faz sexo em uma
cama com um colossal escorpião; na segunda, uma mulher loira,
branca, posicionada em um sofá, recebe sexo oral de uma gigantesca
tarântula.
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representados como “terríveis inimigos”, animais magnificados,
seres impuros e perigosos. Ora, na senda do imaginário das
monstruosidades, os aspectos mencionados – repulsa e ameaça –
pertencem às tradicionais morfologias do gênero de horror
(NAZÁRIO, 1998; CARROL, 1999). Logo, este é um modo de
representação que só reforça devastadores estigmas associados ao
vírus e à doença decorrente dele, colocando as pessoas que vivem
com HIV como agentes de vilania, figuras monstruosas das quais é
preciso se proteger a todo custo. Afinal, dormir (com ou sem)
camisinha com esses sujeitos, segundo o conceito preconceituoso da
campanha, seria um intercurso monstruoso e grotesco. Lembremos:
se A é igual a B, o soropositivo é destituído de humanidade.
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dos círculos especializados e da comunidade dos que convivem com
HIV. Trata-se da sorofobia.
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provocando grande destruição. Constituindo uma espécie atípica de
zumbis, os chamados “rotters” (figura 2) poderiam ser tratados com
remédios, uma vez que eram vitimados por uma enfermidade: a PDS
(Partially-Deceased Syndrome), Síndrome do Parcialmente Morto.
Para que os doentes pudessem ser reintegrados à sociedade, um
combo de dispositivos (tais como terapia em grupo, maquiagem e
lentes de contato) deveria ser usado pelos mortos-vivos para
mascarar as marcas da enfermidade, algo associado a injeções
diárias de medicação para o controle da síndrome no corpo dos
infectados, tratamento muito similar às terapias antirretrovirais.
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Os hospitais estatais de tratamento de In The Flesh, muito
semelhantes a campos de concentração, parecem dar materialidade
às preocupações de Alan Moore de 1988, registradas no prefácio de
V de Vingança, acerca de seu receio de que centros de confinamento
militar para pessoas com AIDS fossem construídos, desejo
acalentado por jornais tabloides do seu tempo (MOORE, 2018). Ou,
ainda, o horror do roteirista quanto às declarações do governo
conservador sobre a proposta de reduzir a homossexualidade (ainda
lida como doença) a um valor abstrato (MOORE, 2018). Exemplos
que só relembram que, na esteira da história, muitos foram
vitimados pelo irrealismo da normatividade e pela marginalização
fóbica e opressiva – indígenas, judeus, negros, homossexuais,
soropositivos, pessoas com deficiência etc. É o preconceito como
combustível de uma fábrica de monstros, uma vez que é nos portões
da diferença que residem as formações monstruosas (COHEN,
2000).
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enfoca o aspecto nauseante de uma doença sexualmente
transmissível agindo sobre o corpo, constituindo a ficcional
enfermidade uma clara referência aos efeitos da doença provocada
pelo HIV75 (não é à toa que, em determinada cena, seja mostrado um
banco com publicidade para o Festival de Música da Califórnia –
Caminhada pela AIDS). A produção audiovisual, com tal ênfase,
acaba por sugerir que aquilo que poderia ser uma fonte de prazer
pode tornar-se exatamente o desprazimento mais incisivo,
tendenciosamente produzindo uma ideia do ato sexual como um
objeto fóbico.
75 A imagem aqui faria eco com a farta iconografia “terrorista” sobre o HIV no
início dos anos 1980, focada naqueles que chegaram a desenvolver AIDS e não
sobreviveram.
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um tipo de DST necrótica que transforma a pessoa contaminada em
algo próximo de um zumbi: pele coberta de feridas, comportamento
desumanizado, atitude agressiva, além de ser um corpo em
deterioração e canibal (o que faz recordar a relação metafórica entre
soropositivo e monstro na citada campanha da AIDES). Trata-se de
um vírus patogênico, sem nome, altamente contagioso, disseminado
por uma espécie de terrorista biológico, um fundamentalista avesso
à raça humana. Aqui outro paralelo com HIV/AIDS pode ser
mencionado, pois, frente à demora em uma resposta governamental
de combate à epidemia, muito se aventou que se tratava de um
ataque terrorista biológico, algo devotado ao extermínio de
homossexuais (PERLONGUER, 1987). O audiovisual, nesta
sequência, repete a estética gore do primeiro filme para reforçar o
imaginário de horror e de abjeção acerca do ato sexual e da
disseminação de doenças, sobretudo as sexualmente transmissíveis.
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Também é importante destacar que o núcleo narrativo encabeçado por Jay é
de um grupo de adolescentes que ainda não teve suas primeiras experiências
sexuais. É na noite em que Jay, confessando ao namorado suas fantasias sobre
sexo e relacionamento, acaba perdendo a virgindade e contraindo a maldição.
77 É preciso lembrar que há relatos de grup0s integrados por HIV positivos nos
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metáfora para a epidemia de AIDS nos anos 1980 – afinal, a
“condição fantástica” dos personagens é tratada pelos cientistas da
narrativa como uma enfermidade transmitida pelo sangue. Outra
referência à síndrome da imunodeficiência adquirida também
estaria presente em Amantes Eternos (Only lovers left alive, Jim
Jarmusch, 2013), pois os vampiros evitam o ser humano e suas
portas de contaminação adquirindo ilegalmente sangue testado em
bancos de sangue de hospitais. Curiosamente, ambos os filmes
sequer mencionam a palavra vampiro em suas histórias.
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sexuais, um passado representado por várias outras mãos que
também acariciam o homem em primeiro plano. Em outra imagem,
vê-se um casal heterossexual em um sofá: a mulher, de costas,
sentada no colo do homem, é abraçada por diferentes mãos,
metafóricas relações pretéritas.
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Em certo sentido, o histórico invisível de relações sexuais
poderia ser lido como a metáfora presente no filme Corrente do Mal
– pessoas conhecidas (com quem se teve relação sexual) e
desconhecidas (com quem indiretamente se teve uma relação sexual
pelo corpo do outro) podem perturbar a tranquilidade psicológica na
busca pelo momento zero da infecção. Os fantasmas persecutórios,
de acordo com tal hipótese interpretativa, seriam os possíveis
responsáveis pela condição sorológica dos “amaldiçoados” (um tipo
especial de vítima-monstro).
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e/ou campanhas de prevenção mais humanizadoras seriam algumas
possibilidades. Afinal, se a igualdade é um desejo planetário, a única
saída possível dessa “crise da diferença” é pela via da humanização
das relações, a que permita que os fatos sejam tratados sob a ação de
efeitos afetuosos. Para todos, sem distinção.
Referências
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SONTAG, Susan. Doença como metáfora e AIDS e suas metáforas.
Tradução de Rubens Figueiredo e Paulo Henriques Britto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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Sobre xs autorxs do volume
Paulo Valente foi professor de ensino superior nos cursos de Letras nas
Universidades Federal do Pará e do Estado do Pará. Atualmente é doutorando
no Programa de Pós-Graduação em Literatura, na Universidade Federal de
Santa Catarina, sob orientação da professora doutora Simone P. Schmidt.
Graduado em Letras – Língua Portuguesa e em Jornalismo, integra o grupo
LITERATUAL - Núcleo de Estudos Feministas e Pós-Coloniais de Narrativas da
Contemporaneidade, na UFSC. (professorpaulovalente@gmail.com)
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Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (1997). Realizou
pós-doutorado pela Psicologia Social na UFMG (2009) e na Universidade do
Minho/Portugal (2009-2010). Co-coordenadora do GT Psicologia, Política e
Sexualidades (ANPEPP), 2014-2016. Tem experiência na área da Psicologia,
ênfase em Psicologia Social e Institucional, com interesse principalmente nos
seguintes temas: gênero e feminismo, masculinidades, saúde sexual e
reprodutiva, diversidade e direitos sexuais, violência de gênero, travestilidades.
(juracy@cfh.ufsc.br)
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Tânia Regina Oliveira Ramos é Professora Titular da Graduação em Letras
da Universidade Federal de Santa Catarina, lecionando também no Programa de
Pós-graduação em Literatura da mesma instituição. Possui graduação em Letras
pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestrado e doutorado em
Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Atualmente e coordena o núcleo Literatura e Memória da UFSC,
núcleo com projetos aprovados pela FAPESC e CNPq Atua, pesquisa e publica
nas linhas de pesquisa História e Memória, escritas de si e gênero.
(taniareginaoliveiraramos@gmail.com)
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(2004) e Pós-Doutorado pela Universidade do Porto, através do Programa
Estágio Sênior no Exterior - CAPES. Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura. Coordenadora do GT da Anpoll A Mulher na Literatura,
no biênio 2014-2016. Integrante do Grupo de Pesquisa do Instituto de Estudos
de Gênero - IEG/UFSC. Integrante da Editoria de Artigos da Revista Estudos
Feministas - REF. Coordenadora do Núcleo Literatual - Estudos Feministas e
Pós-Coloniais de Narrativas da Contemporaneidade. Co-coordenadora do IEG -
Instituto de Estudos de Gênero, da Universidade Federal de Santa Catarina,
entre 2015-2016. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.
(rosanack@yahoo.com.br)
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