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Experiência da Transgressão
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“A fonte contém,
a cisterna transborda”
William Blake
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Uma Arqueologia do Gozo a Partir da Experiência da Transgressão em Georges Bataille1
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Rodrigo Pinto2
Universidade de São Paulo, SP
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RESUMO
Este trabalho se propõe a analisar a descrição do movimento pelo qual o sujeito ultrapassa os limites
da consciência objetiva do mundo do trabalho, através de um conjunto de experiências
transgressoras, alcançando a dissolução das formas constituídas e gozando de si mesmo no ápice de
seu ser.
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Palavras-chave: experiências interiores; erotismo; transgressão; interdito; trabalho
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TEXTO DO TRABALHO
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Georges Bataille foi, sem dúvidas, um escritor de difícil definição. Nascido na região de
Auvérnia, na França, em 1897, escreveu obras que abordaram assuntos provenientes de diversos
campos do conhecimento, tal como filosofia, antropologia, sociologia, literatura, história, economia.
Possivelmente, foi essa proliferação de saberes de diferentes áreas que levaram Bataille a abordar o
sujeito de maneira incomum, apelando para uma vertente mística do homem, o que acabou por lhe
render o apelido de “filósofo maldito”, alusão ao termo utilizado para retratar os poetas que
perseguem uma vida errante de forma a não serem aprisionados pelo sistema de normas de uma
sociedade. Em síntese, os escritos batailleanos, produzidos principalmente nas décadas de 40 e 50
do século XX, devem ser vistos como uma tentativa de impedir a redução do homem a um nível de
instrumentalização e alienação através da valorização de aspectos interiores do ser.
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Inicialmente, é interessante lembrar que Bataille foi de uma geração francesa ávida por
inovações no campo filosófico. Tal geração, da qual podemos destacar filósofos como Jean-Paul
Sartre e Maurice Merleau-Ponty, foi fortemente influenciada pela forma de Nietzsche desconstruir a
filosofia. Os escritos nietzschianos tiveram uma ressonância estrondosa na França durante a
primeira metade do século XX e impactou todos os que, naquela época, estudavam filosofia. A
apropriação dos textos do alemão pelos franceses, naquele período de ascensão do nazismo, foi de
grande importância, pois, conforme relata Fernando Scheibe, “reivindicar Nietzsche, naquele
momento, era um gesto político, era retirá-lo das patas dos fascistas, era mostrar como era grosseira
a apropriação que estava sendo feita de seu pensamento” (Fernando Scheibe, 2013). Bataille, tal
como Nietzsche, desenvolveu uma crítica ao culto da racionalidade e buscou incessantemente não
reduzir o homem ao domínio daquilo que é puramente racional, de modo a valorizar os movimentos
“Chegou o momento de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É muito tarde
para tentar ser razoável e instruído – o que levou a uma vida sem atrativos. Secretamente ou
não, faz-se necessário se transformar em algo totalmente outro ou cessar de ser”. (BATAILLE,
2013, pág. 02)
A capa da mesma revista também será uma demonstração inegável daquilo que Bataille
buscava, já que nela está desenhado um homem decapitado, o que representava a busca por uma
superação da figura do homem moderno, por se tratar de uma construção social que limitava o
homem. Michel Surya descreveu da seguinte forma:!
“Um homem decapitado (Acéphale é aquele que despreza tão profundamente o espírito e a
razão que de bom grado se representa subtraído de seu duplo império), entregue aos livres jogos
de sua paixão de estar no mundo, não tem mais Deus nem razão; ele não é mais exatamente um
homem, nem exatamente um Deus, mas talvez tenha mais vantagem do que um e outro.
Certamente ele é mais do que qualquer outro eu, um monstro híbrido, um monstro
feliz.” (SURYA, 2012, pág. 287)
Os esforços de Bataille para atingir o objetivo de superar a figura do homem que julgava
ultrapassada estiveram representados em praticamente todas as suas obras, especialmente nas que
penetram mais profundamente no campo da filosofia. Para tecer uma crítica consistente à
racionalidade, o escritor maldito penetrou em estudos antropológicos para entender de que forma a
razão humana foi formada. No campo antropológico, destaca-se a influência determinante que as
obras de autores como Marcel Mauss, Michel Leiris e Roger Callois, os quais faziam parte do
mesmo círculo intelectual francês de Bataille, exerceram para que ele construísse sua linha de
raciocínio.!
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Bataille retornará aos tempos mais remotos, investigando em qual momento foi dada a
determinação fundamental que definiu os fundamentos sobre os quais a racionalidade iria erigir. O
momento preciso, pelo qual a racionalidade começou a se estruturar, foi o da invenção do trabalho,
que significou a tomada de consciência de si pelo homem e a diferenciação elementar entre o
homem e o animal. Engels assinala bem a mudança que tal acontecimento introduziu na espécie
humana:
“O trabalho exige uma conduta em que o cálculo do esforço, relacionado à eficácia produtiva, é
constante. Exige uma conduta razoável, em que os movimentos tumultuosos que se liberam na
festa e, geralmente, no jogo, não são admitidos. Se não pudéssemos refrear esses movimentos,
não poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz justamente a razão de refreá-
los” (BATAILLE, 2013, pág. 64)
Interessa, à razão do mundo do trabalho, mais trabalho e menos jogo, mais discurso e menos
poesia, mais lógica e menos paixão. O tempo organizado torna-se tempo ganho, enquanto o tempo
inoperante é tempo perdido. O futuro é garantia para o presente, de forma que o tempo futuro se
descola do presente, perdendo a relação imediata com a vida. Todas ações são baseadas numa
relação causal que vislumbra uma idealidade localizada sempre no futuro. A vida torna-se um
projeto de conquistas em longo prazo através do controle do dia a dia, buscando torná-lo o mais
planejado possível, evitando a imprevisibilidade do instante e do acaso.
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A crítica de Bataille irá se desdobrar especificamente sobre esse aspecto referente a razão do
homem transformada pelo trabalho. Para produzir tal crítica, ele irá buscar extrair uma verdades dos
comportamentos que o homem tinha já no estado natural, antes do trabalho, e que permaneceram
com ele, sem deixar-se suprimir pelas transformações causadas pelo trabalho. De antemão, é
interessante evidenciar a diferença entre a teoria batailleana e as críticas sociais marxistas que
estavam sendo elaboradas naquele período. O escritor maldito não limitou-se à denúncia de
condições de exploração e injustiça econômica e ao esboço de uma sociedade onde o sujeito estaria
livre de tais formas de opressão, pois ele acreditava que mesmo que o sistema econômico fosse
alterado, consumando-se uma transformação radical na divisão social do trabalho e uma
coletivizarão dos meios de produção, a natureza servil do trabalho, que implica que os sujeitos se
obtemperem às atividades de forma calculada e medida, não seria alterada, o que significa que a
dimensão formadora dos indivíduos permaneceria a mesma. Bataille construiu sua teoria com o
objetivo de colocar o espírito para “colocar o espírito para além, em busca de todo o possível que
ele pode abrir para si” (BATAILLE, 2013, pág. 57).!
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Para atingir tal meta, o filósofo apelou para o fundo de violência que insiste em subsistir no
homem, ou seja, algo que o homem tinha já em seu estado natural e que sobreviveu em meio às
mudanças do sujeito engendradas pelo mundo do trabalho. Essa violência está materializada nas
atividades de caráter excessivo que o sujeito amiúde executa. O seu caráter excessiva é devido ao
fato de não se confundirem com os enfadonhos cálculos da produção e pela falta de uma razão
utilitária que a defina, já que elas não são suscetíveis a esse tipo de análise visto que não se
destinam a satisfação de nenhuma necessidade da produção, mas somente ao gozo irrestrito do
sujeito que a executa.!
“O mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana, mas o trabalho não nos absorve
inteiramente; e, se a razão ordena, nossa obediência tem limites. Por meio de sua atividade, o
homem edificou o mundo racional, mas nele sempre subsiste um fundo de violência. A própria
natureza é violenta e, por mais razoáveis que tenhamos nos tornado, uma violência que não é
mais a natural pode nos dominar novamente: a violência de um ser racional, que tentou
obedecer, mas sucumbe ao movimento que nele próprio não pode se reduzir à razão. Há na
natureza, e subsiste no homem, um movimento que sempre excede os limites e só pode ser
reduzido parcialmente. Geralmente não podemos nos dar conta desse movimento. Ele é mesmo,
por definição, aquilo do qual nada pode dar conta, mas vivemos sensivelmente sob seu poder: o
universo onde vivemos não responde a nenhuma faculdade delimitada pela razão, e se tentamos
fazer com que Deus responda por ela, só fazemos associar, desrazoavelmente, o excesso infinito
em presença do qual está nossa razão, com esta razão. Mas, pelo excesso que está nele, esse
Deus de quem gostaríamos de formar a noção apreensível não cessa, excedendo essa noção, de
exceder os limites da razão.” (BATAILLE, 2013, pág. 63)
Ou seja, por mais que a atividade produtiva tenha imposto incontáveis restrições ao homem ao
procurar excluir aquilo que em seu comportamento era excessivo e violento, permaneceu algo no
interior do sujeito que impossibilita que o comportamento do sujeito permaneça sempre restrito e
controlado segundo uma apreciação de seu valor utilitário e racional. Isso porque, a atividade
produtiva, ainda que seja derivada de um processo racional secular que também se tornou um modo
de controle do excesso, é incapaz de gerar sempre a si mesma, dando margem à manifestação das
forças violentas, que seriam aquelas que existiam nos seres humanos em seu estado animal pré-
trabalho. São elas que contestam o funcionamento homogêneo da vida pela regulamentação do
trabalho e que preenchem um espaço no ser que a atividade produtiva é incapaz de preencher. por
meio de condutas como a do êxtase, da embriaguez, da efusão erótica, do riso, da efusão do
sacrifício, da efusão poética. Bataille concluí que essa violência que sempre retorna não é nada além
da violência natural, que apesar de ser afetada pelas necessidades da produção, jamais cessaram de
ocorrer, pois “nunca, com efeito, os homens opuseram à violência (ao excesso do que se trata) um
não definitivo. Em momentos de desfalecimento, eles se fecharam ao movimento da natureza:
tratava-se de um tempo de parada, não de uma imobilidade derradeira” (BATAILLE, 2013, pág. 86).
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O não que o homem impôs aos movimentos violentos de sua natureza são os chamados
interditos, que são as restrições criadas para refrear a natureza excessivamente libertina do homem e
atender às exigências do trabalho. No entanto, ainda que a necessidade de produzir induza no
homem a razão para comportar-se de maneira moderada, respeitando os interditos; por outro, a
violência, própria do movimento da natureza, irá sempre retornar, como uma força que busca fazer
com que os homens excedam seus limites, estabelecidos racionalmente pelo mundo homogêneo do
trabalho produtivo, para gozar de si mesmo Conforme escreveu Lacan: “o gozo é aquilo que escapa
a regra da utilidade” (LACAN, 2012). Os movimentos que o ser humano irá executar buscando
exceder os seus limites utilitariamente são os movimentos de transgressão, pois transgridem com o
universo de normas e deveres imposto pelos interditos.
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À visto disso, Bataille irá identificou na oposição inconciliável entre essas duas formas de se
comportar - isto é, o interdito e a transgressão - a particularidade pela qual se deve compreender a
realidade humana, pois eternamente o indivíduo estará dividido por essas duas maneiras de agir,
onde cada uma será responsável por proporcionar um ganho efetivo ao sujeito. Diferentemente do
que uma leitura desatenta do texto batailleana poderia causar no leitor, a teoria do francês não pode
ser traduzida como um ataque à existência dos interditos ou como uma espécie de manifesto pelo
retorno dos homens ao seu estado natural. Bataille, ao apontar as duas formas do homem se
comportar - adequada aos interditos ou transgredindo-os - buscou enfatizar a importância de cada
uma no espírito humano. Através dessa forma dicotômica de ser, Bataille extraiu uma mística que
glorifica e valoriza o espírito humano, os movimentos de sua alma e seus feitos realizados pelo
trabalho.
Por um lado, o mundo do trabalho trouxe uma inovação ao mundo da espécie humana sem o
qual ela não poderia atingir um nível de consciência tal qual ela detém hoje. Foi esse avanço de sua
consciência que permitiu que a espécie humana teorizasse todo o universo de conhecimentos sobre
o qual ela baseia seu desenvolvimento. Os inevitáveis interditos, diretamente ligados ao processo
produtivo do mundo do trabalho, possibilitaram que o ser humano utilizasse suas energias
eficientemente em seu progresso:!
No entanto, ainda que o trabalho houvesse sido essencial para a formação da consciência dos
indivíduos, Bataille fez questão de destacar que “a atividade humana não é inteiramente redutível a
processos de reprodução e conservação” (BATAILLE, 2013, pág. 21). Sendo assim, o homem
desenvolveu uma gama de atividades heterogêneas que diferenciam-se das atividades homogêneas
do mundo do trabalho e são marcadas pelo princípio da transgressão. Através dessas experiências, o
homem estava a agir o princípio do gasto, isto é, a partir de um dispêndio de energia desviada da
atividade produtiva. O triunfo de Bataille foi observar nessas atividades heterogêneas princípio vital
da dinâmica humana que permite que o homem sempre restabeleça a sua ligação com a potência
natural, subsistente na medida em que o ser humano não é inteiramente redutível à ordem instaurada
pelo trabalho. Essas atividades eram responsáveis por recuperar todo o possível que se tornou
impossível com a tomada de consciência do eu. Apelas elas tinham a força capaz de oferecer ao
sujeito um gozo desvairado e um acesso à uma verdade interior que se revela a ele durante esses
movimentos calorosos e efervescentes da transgressão que não obedecem a nenhuma lógica
racional.
Ainda que Bataille sempre cite a transgressão como uma espécie de movimento em direção
àquilo que é da ordem do natural, ele apontou uma diferença entre o homem, que saiu do estado
natural, e do animal, que lá permanece, que fez fulgurar o esplendor da espécie humana sobre todas
as outras. Apesar de tanto os homens como os animais serem dotado dessas natureza misteriosa e
excessiva por natureza, a diferença primordial está no fato de que a liberação violenta de energia do
homem não é mesma ordem da liberação animal. Enquanto a do animal vem à tona somente pelas
vias do instinto, a violência do sujeito é exercida por um ser capaz de razão que cede ao movimento
do excesso, colocando a sabedoria a serviço da violência, para extrair dessa experiência uma
verdade íntima que se apresenta por meio da experiência interior. É esse caráter auto determinado
da atitude humana que o revestirá de um traço transgressivo que o distingue da gratuidade da
violência animal. A transgressão não significa, nem de longe, um retorno ao estado natural, pois ela
suspende o interdito sem, no entanto, suprimi-lo, de forma a abrir um acesso para além dos limites
ordinariamente observados, mas reservando esses limites para não retornar à gratuidade da
violência animal que não carrega consigo uma verdade interior. Pelo movimento da transgressão, o
homem conserva o interdito para dele gozar e extrair uma verdade maior. A partir dessa ótica, é fácil
observar como a filosofia de Bataille se assemelha muito mais a uma espécie de arqueologia do
gozo do que de uma filosofia naturalista de regresso ao estado natural, tal como defendem os
anarcoprimitivistas.
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De forma semelhante, a persistência desse movimento de transgressão no espírito humano
também o tornará diferente de uma coisa, isto é, irredutível à reificação. Pois, diferentemente de
uma coisa, que é privada de todo mistério e apenas subordinada aos fins que lhe são exteriores,
existe no homem uma exuberância animal, conservada no âmago do ser, que frequentemente
transborda através das experiências heterogêneas através de um dispêndio improdutivo de energia,
focado na exploração do prazer que essa experiência oferece. A existência de uma verdade íntima,
interior e incomensurável é o que consagra o homem pois o dota de um espírito, o que não acontece
com relação às coisas.!
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Nesse ponto, podemos observar Bataille a formidável conclusão de Bataille que situa o
homem numa posição privilegiada. Por um lado, o homem não é comparável ao animal pois, através
do trabalho, ele saiu da animalidade e desenvolveu para si uma consciência clara e distinta das
coisas que fez a espécie humana se sobressair de todas as animais, ao mesmo tempo que dotou os
seus movimentos violentos de um significado mais elevado que uma simples consequência natural
do corpo. Por outro lado, em função da exuberância que ele conservou do seu estado animal, o
homem é também irredutível à coisa e aos seus processos de produção, uma vez que subsiste um
fundo de violência que o leva a exercer um tipo de comportamento que é totalmente incoerente com
a lógica racional produtiva pois não visa atingir um resultado planejado e posterior, mas somente
proporcionar uma experiência de êxtase no sujeito naquele instante.
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Assim, a filosofia de Bataille deve ser vangloriada pelo fato de apresentar aos homens a
existência de uma verdade interior que possibilita que o sujeito alcance o ápice do ser a partir de
determinadas experiências, sem que para isso precise recorrer a elevação de um Deus que garantiria
tais experiências ao sujeito. Esse é mais um ponto onde verifica-se a influência de Nietzsche na
obra do francês, pois ele busca evidenciar uma unidade do espírito humano que subsiste em todas as
pessoas e que está eternamente à espera de ascender, a partir das experiências transgressoras, para
alavancar o espírito individual do sujeito para além do limite de todo possível. Tal unidade pode ser
alcançada somente pelas vias do próprio sujeito, sem necessitar basear-se numa criatura de natureza
divina que concederia tal poder aos homens. Afinal, é somente na ausência de qualquer ente
soberano, que o homem pode tornar-se soberano e impulsor de suas próprias experiências sagradas.
Mais uma vez, enxerga-se nessa posição de Bataille uma valorização do homem.
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Uma vez que Bataille almejava proporcionar para seus leitores um acesso às experiências que
consagram o sujeito, ele estudou a fundo o surgimento delas e as formas pelas quais elas explodem,
buscando revelar o acesso a elas para o sujeito. Inicialmente, o francês mergulhou nas histórias de
antiquíssimas civilizações para buscar a descrição de comportamentos que comprovassem a sede
insaciável do homem pelo excesso, isto é, a incapacidade do homem refrear perpetuamente os seus
movimentos violentos que se baseavam no consumir e gastar as reservas de energia e riquezas, em
vez de produzir e acumular. Conforme ele escreveu em sua obra “A Parte Maldita”, de 1949, ele
encontrou nas obras de Marcel Mauss o detalhamento de situações ocorridas em tribos do noroeste
norte-americano, da Melanésia e da Polinésia que legitimam a sua teoria em função de serem
experiências onde aparece a natureza improdutiva do uso do excesso, uma vez que ocorrem o gasto
e a despesa em grande escala e sem ter como finalidade algo que não seja o gozo:!
“Em parte alguma o prestígio individual de um chefe e o prestígio de seu clã estão mais ligados
ao dispêndio e à exatidão em retribuir usurariamente as dádivas aceitas de modo a transformar
em obrigados aqueles que os obrigaram. Aqui, o consumo e a destruição são realmente sem
limites. Em certos potlatch deve-se gastar tudo o que se tem e nada conservar. É uma disputa de
quem será o mais rico e também o mais loucamente perdulário. O princípio do antagonismo e da
rivalidade está na base de tudo. O estatuto político dos indivíduos, nas confrarias e nos clãs, as
posições de todo tipo se obtém pela ‘guerra de propriedade’ assim como pela guerra, ou pela
sorte, ou pela herança, pela aliança e o casamento. Mas tudo é concebido como se fosse uma
‘luta de riqueza’. O casamento dos filhos, o assento nas confrarias só se obtêm ao longo de
potlatch trocados e retribuídos. Os bens se perdem no potlatch como são perdidos na guerra, no
jogo, na luta. Em alguns casos, não se trata sequer de dar e de retribuir, mas de destruir, a fim de
nem mesmo querer dar a impressão de desejar ser retribuído. Queimam- se caixas de óleo de
olachen (candle-fish), peixe-vela) ou de óleo de baleia, queimam-se casas e milhares de mantas;
os cobres mais caros são rompidos, atirados n’água, para esmagar, para ‘fazer calar’ o
rival.” (MARCEL MAUSS, 2011, pág. 44)
Todas as experiências semelhantes à essa extraída da obra de Mauss, são classificadas como
experiências derivadas da potência do excesso, provenientes da abundância desvinculada da
produção, sendo assim experiências heterogêneas de transgressão. Bataille poderia ter buscado
milhares de outros exemplos de práticas que atestam o homem realizando uma dobra do real pela
via do excesso. Entretanto, cada uma delas seriam exemplos isoladas das diferentes maneiras da
prática do excesso se concretizar em determinada sociedade. Bataille, no entanto, não se deteu
restringiua algum conjunto isolado de práticas. Na obra “O Erotismo”, de 1957, ele irá buscou as
transgressões de caráter global, que concerniram a todas as sociedades humanas. A similaridade da
natureza das transgressões, em todas as sociedades, é devido ao interdito que as funda. Isso porque,
da mesma forma que o filósofo maldito identificou o surgimento do trabalho como o acontecimento
que marcou a diferenciação de toda a espécie humana, os primeiros interditos surgidos a partir dele
foram uniformes para todos os povos.
O primeiro interdito foi o ligado à morte. Esse interdito surgiu como consequência da atitude
humana para com os mortos. As provas da relação do homem com a morte estão representadas
inicialmente no ato dos homens guardarem os seu restos mortais. O interdito se materializou no
momento em que ocorreu uma mudança na atitude das pessoas diante do cadáver de alguém, de
buscar rejeitar e procurar se separar daquele violência através de “um movimento de recuo diante da
violência que o interdito da morte traduz” (O Erotismo, pág. 70), ou seja, tratava-se, inicialmente,
de apontar uma diferença entre o cadáver do homem e de qualquer outro objeto, como uma pedra
por exemplo, algo que não ocorria antes do aparecimento do interdito pois o homens não reagia
diferente de um cadáver ou qualquer outro objeto, o que atesta o valor diferente que a morte tinha
anteriormente ao interdito.
“Certamente, a morte difere como uma desordem da ordenação do trabalho: o primitivo podia
sentir que a ordenação do trabalho lhe pertencia, ao passo que a desordem da morte o
ultrapassava, fazendo de seus esforços um contrassenso. O movimento do trabalho, a operação
da razão, servia a ele, ao passo que a desordem, o movimento da violência, arruinava o próprio
ser que é o fim das obras úteis. O homem, identificando-se à ordenação que o trabalho operava,
se separou nessas condições da violência, que atuava no sentido contrário”. (BATAILLE, 2013,
pág. 69)
Outro dado marcante é o que, antes da morte adquirir tal valor, nem mesmo os combates entre
tribos terminavam no assassinato da tribo derrotada. Isso porque, o assassinato dos semelhantes não
ocorria no tempo dos primeiros homens, os mais vizinhos da animalidade. Ainda hoje, se
analisarmos o combate entre animais, observamos que na maioria das vezes eles não culminam, e
princípio, no assassinato. Isso porque, para eles, não existe o interdito da morte pelo qual o ato de
matar se enche de significados.!
“O interdito, que o pavor funda, não propõe apenas que o observemos. A contrapartida nunca
falta. Derrubar uma barreira é por si só algo atraente; a ação proibida adquire um sentido que
não tinha antes que um terror, que dela nos afasta, a cercasse de um halo de
glória.” (BATAILLE, 2013, pág. 72)
A unidade de significação dos interditos não se limita a conter a violência, mas ela acabar criar
configurações subjetivas no sujeito que alteram o seu modo de lidar com uma situação. A partir do
caso da morte, por exemplo, observamos a alteração ocorrida no sujeito, deflagrada a partir de um
sentimento de náusea ou nojo, quando ele se vê diante de um cadáver, por exemplo. Essa força
sensível que nos atinge por meio de um sentimento repugnante quando vemos o objeto não está
contida, em si mesmo, no objeto, mas somente na nossa subjetividade que funda a forma que nos
relacionamos com ele. Afinal, será que o homem já consideraria um cadáver como algo fedorento se
ele não houvesse se tornando antes um objeto de nosso nojo ? Possivelmente não, pois o interdito
da morte introduz um sentimento de ausência ligado a exposição de um cadáver e a putrefação e
seus odores estão diretamente ligados a essa ausência, e não a esse cadáver. Extrai-se daí a força dos
interditos e o motivo pelo qual eles constituíram-se como a causa de inúmeras sensações que os
humanos experimentam.
O segundo interdito que recaiu sobre a espécie humana foi o relacionado a reprodução, isto é, a
vida sexual. Com o surgimento do trabalho, surgiu na consciência humana um pensamento racional
que o impunha a razão para refrear seus movimentos naturais, em vistas a conservar a sua energia
para as atividades laboriosas. Foi necessário, então, interromper a exuberância da vida sexual
humana, deixando de responder aos seus impulsos naturais e passar a medir e calcular o tempo e a
energia em que poderia dispensar para exercer aquela atividade, que estaria localizada numa
posição secundária em relação a atividade principal que era o trabalho. !
“Foi pelo trabalho que a consciência clara e distinta dos objetos nos foi dada, e a ciência sempre
permaneceu a companheira das técnicas. A exuberância sexual, ao contrário, nos afasta da
consciência: atenua em nós a faculdade de discernimento: aliás, uma sexualidade livremente
transbordante diminui a aptidão sexual. Há, portanto, entre a consciência, estreitamente ligada
ao trabalho, e a vida sexual, uma incompatibilidade cujo rigor não poderia ser negado. Na
medida em que o homem se definiu pelo trabalho e pela consciência, ele teve não apenas que
moderar, mas desconsiderar e por vezes maldizer nele mesmo o excesso sexual” (BATAILLE,
2013, pág. 188)
O erotismo passou a investir sobre a ordem humana do trabalho uma espécie de desordem
pletórica desestabilizando o ambiental civilizados dos comportamentos parcimoniosos. Essa
desordem transfigurou para o homem um universo de fantasias. As fantasias explodem-se em cores
através dos movimentos eróticos pelos quais o corpo não simplesmente se relaciona com outro, mas
que também revela descobertas sobre si mesmo, visto que uma espécie de segredo oculto de ser é
revelado para o sujeito durante a consumação dos atos eróticos.!
“O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Repito-o:
dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades
definidas que somos. Trata-se de introduzir, no interior de um mundo fundado sobre a
descontinuidade, toda a continuidade de que esse mundo é capaz.” (BATAILLE, 2013, pág. 42)
“Observo então uma série de visões no instante coincidindo entre si, em que minha
experiência do riso, aquela do erotismo, a do êxtase e, enfim, a da morte, se inscrevem
numa perspectiva única: só essa perspectiva tem um sentido para mim, mas traduzi-la
em livros representa um esforço exaustivo, interminável.” (BATAILLE, 2013, pág. 336)
No entanto, mais importante que averiguar todas a fundo, é saber que todas essas experiências,
compreendidas como heterogêneas, são caracterizadas pelo princípio da soberania de si mesma, isto é, são
operações de gastos realizadas à revelia de qualquer controle e que se atém exclusivamente à própria
autoridade da experiência. A experiência em si mesma é propriamente o acontecimento principal da
heterogeneidade. Ela se faz na imediaticidade, pois seu tempo é o do instante, próprio da consumação, ao
contrário da perspectiva do futuro e da ideia de projeto que estão na base da racionalidade humana
engendrada pelo trabalho. Através das experiências, o fundo de violência subsistente no homem é trazido à
tona, dando vazão aos gastos da subjetividade, a qual, desviada da atividade produtiva, se expande, e o
indivíduo se consuma em gozo íntimo e pura perda. Em tal momento supremo, no ápice do êxtase, o sujeito
torna-se alheio a qualquer dominação, o corpo reage, isto é, potencializa-se na soberania da experiência
gerando excesso e se consumando em pura perda. São nesses momentos que o homem pode sentir o
movimento do ser em si mesmo, ao mesmo tempo que se dilacera por completo, quebrando a crisálida e
superando a consciência objetivando, alcançando o ápice do ser numa mistura de sentimentos de êxtase e
embriaguez. O sentido da experiência descrita por Bataille tem uma relação profunda com o sentimento de
felicidade presente na obra de Nietzsche:!
Os filósofos antigos combatem tudo quanto embriaga, tudo quanto impede a absoluta frieza e
neutralidade da consciência… Apoiando-se nessa falsa hipótese eram consequentes:
consideravam a consciência como um estado elevado, o estado superior, a condição da
perfeição, - quando na realidade o contrário é que é o verdadeiro…” (NIETZSCHE, 2011,
pág. 327)
A ligação íntima feita por Nietzsche entre a felicidade e as chamas das paixões é feita da
mesma forma que Bataille une as idéias da experiência-limite no interior do sujeito e as condutas
excessivas. O excedente de energia do sujeito recusa todo saber do trabalho e busca a potência,
transformada em vontade de excesso que pode ser definida como um querer mais para além de todo
limite. O improdutivo, isto é, a tal energia que não será utilizada para fins produtivos, adquire um
estranho poder, e passa a ser dotada de uma espécie de liberdade, e faz explodir no sujeito a
chamada experiência interior que se abre para o impossível na medida em que recusa o
conhecimento. Afinal, toda essa operação de êxtase se faz à revelia do conhecimento, pois é a
ocasião em que fatores exteriores ao trabalho produtivo, como o não-saber, a sorte, a chance, o
instante, ou seja, as forças heterogêneas convergem para o acontecimento singular da experiência, a
qual tem seu próprio tempo e só responde a si mesma.
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A forma de Bataille lidar com a experiência, não permitindo pensá-la a partir de explicações
utilitaristas, era exatamente o contrário da forma durkheimiana de estudar as experiências
antropológicas, conforme notamos nesse trecho de Émile Durkheim: “É preciso sentir a necessidade
da experiência, da observação, ou seja, a necessidade de sair de nós próprios para aceder à escola
das coisas, se as queremos conhecer e compreender” (DURKHEIM, 2007, pág. 20)!
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Talvez tenha sido para lutar contra a influência de Durkheim nos estudos antropológicos, que
estava bastante em alta na primeira metade do século, que Bataille tenha se unido a Michel Leiris,
Roger Caillois e Pierre Klossoviski para fundar uma espécie de sociedade secreta chamada “Collège
de Sociologie”, que buscava estudar o homem considerando o aspecto de sua experiência interior,
operação que se faz à revelia do conhecimento, pois é a ocasião em que fatores exteriores ao
trabalho produtivo, como o não saber, a sorte, a chance, o instante, ou seja, as forças heterogêneas
convergem para o acontecimento singular da experiência. Na visão batailleana, as experiências
interiores comunicam uma força desconhecida que não se deixa enquadrar numa categoria
rigorosamente objetiva ou científica, pois essa força desconhecida e só é revelada ao sujeito
interiormente, a qual é inapreensível por qualquer outro tipo de linguagem que não a experiência e
toda a efervescência paixonal, libidinal, ou melhor, humana, que o sujeito sente no momento em
que está com aquela gama de sensações à flor da pele e com o coração palpitando agressivamente,
fazendo todos os pensamentos entrarem e ebulição e tornarem-se simplesmente em resquícios
vaporizados em meio à bravura indômita do oceano das paixões. A experiência interior é, na
consciência do homem, o que nele coloca o ser em questão. E uma vez que a ciência é um regime
de descrição que não se diferencia do padrão de racionalidade que encontramos no mundo do
trabalho, ela não consegue apreender a experiência interior em seus discursos.!
“É óbvio que condutas humanas podem se tornar objeto de ciência: elas não são então
consideradas mais humanamente do que se fossem condutas de insetos. O homem é antes de
tudo um animal, ele pode estudar suas próprias reações como estuda a dos animais. Todavia,
algumas delas não podem ser inteiramente assimiladas aos dados científicos. Essas condutas são
aquelas em que, por vezes, de acordo com o julgamento comum, o ser humano se rebaixa ao
animal.” (BATAILLE, 2013, pág. 176)
O poeta cearense Patativa do Assaré, no final de sua vida, enfrentando a dor da perda da
mulher, ligada às reações diante do interdito da morte, exprimiu a incapacidade do entrevistador que
o gravava, de apreender por meio daquela entrevista a dor interior que ele estava a sentir, visto que
as experiências interiores conservam um caráter fugídio e inapreensível:!
!“Gravador que está gravando
Aqui no nosso ambiente
Tu gravas a minha voz
O meu verso e o meu repente
Mas gravador, tu não gravas
A dor que o meu peito sente
!Tu gravas em tua fita
Com a maior perfeição
O timbre de minha voz
E a minha fraca expressão
Mas não gravas a dor grave
Gravada em meu coração
!Gravador, tu és feliz
Ai de mim o que será
Bem pode ser desgravado
O que em tua fita está
Mas a dor do meu coração
Jamais se desgravará” (PATATIVA DO ASSARÉ, 2009)
!
No entanto, não se deve pensar que essa forma de Bataille colocar o problema soe como uma
crítica à ciência e seu valor. Assim como ocorreu na oposição entre mundo natural e mundo do
trabalho, Bataille, ao descrever a experiência interior e a impossibilidade da ciência de alcançá-la,
ele não está menosprezando o valor da ciência. O francês reconhece que, ao falar de objetos, a
ciência é extremamente válida dado o seu rigor minucioso e capacidade de apreender os objetos em
conceitos. Todavia, para tratar de sujeitos e suas experiências, a ciência não consegue atingir o
mesmo êxito, pois a própria transfiguração da ciência em linguagem já deturpa o signifcado daquela
experiência interior. Não há como negar que os movimentos mais inconciliáveis do ser - o excesso
exorbitante - não podem ser apreendidos no desenvolvimento coerente de um discurso. O que, antes
de soar como um fato que diminuiria o valor da ciência, deve ser visualizado como uma constatação
que, mais uma vez, valoriza o homem e coloca o seu espírito para além de todos os limites.
!
A forma final do texto bataille será fortemente marcado por essa natureza imensurável daquilo
que se passa nos recônditos do interior do sujeito, avivados pelas experiências que ele descreveu.
Em função da natureza das experiências interiores, o discurso estará sempre fadado a ocupar a uma
posição secundária em relação a experiência interior, a qual é incomensurável e irredutível a
qualquer tipo de enunciado - até mesmo ao discurso poético, que pode tocá-la mas jamais expressá-
la por completo. Em função dessas constatações, Bataille irá reconhecer o inacabamento próprio a
todo discurso, a toda forma de representação, inclusive o da sua obra. A experiência sempre terá o
primado sobre o enunciado, “o excesso excede ao fundamento”, tal como ele escreveu na
introdução de sua obra literária Madame Edwarda. Michel Foucault explicita esse aspecto da
filosofia batailleana do não-saber, onde situa-se o limite de todo o possível, inclusive o da própria
filosofia de suas obras: !
“À todos aqueles que se esforçam em manter antes de tudo a unidade da função gramatical do
filósofo - ao preço da coerência, da existência mesmo da linguagem filosófica - poderíamos
contrapor o empreendimento exemplar de Bataille que não cessou de dissipar em si, com
obstinação, a soberania do sujeito filosofante. Nisso, sua linguagem e sua experiência foram seu
suplício.” (FOUCAULT, 1992)
Na conclusão de sua obra O Erotismo, Bataille irá afirmar que “o momento supremo excede
necessariamente a interrogação filosófica”. Porém, a sua intenção jamais foi esgotar o tema, isto é,
produzir uma obra com sentido completo que permeasse todos os meandros da experiência, pois
dessa forma ele estaria se aproximando do resultante que busca o matemático, o físico, o astrônomo.
O objetivo do francês é revelar o acesso a tais experiências, pois ele acredita que ao descrever o
jogo do interdito e da transgressão - essa última fazendo insurgir as experiências interiores que
revelam o ser do sujeito - o ápice do ser torna-se mais acessível pois os acessos a ele foram
revelados à ele. Tais revelações só podem ser feitas numa posição em que o escritor situa-se numa
situação limite entre a consciência racional, presente nas descrições das experiências dos textos, e a
experiência em si mesma que não é passível de ser amplamente compreendida racionalmente.
Por fim, conclui-se que a teoria batailleana pretende, através de um louvor do excesso, mostrar
a magnitude do ser humano, uma vez que não se reduz ao animal mas que, ao mesmo tempo, guarda
a violência natural desse para transbordar em momentos de transgressão possibilitando uma dobra
do real pela via do excesso, abrindo o ser humano para a experimentação de uma experiência
interior, profunda e mística, na qual ele mesmo se coloca em questão para sentir o movimento do
ser em si mesmo, para escutar os sussurros das entranhas do seu ser, para aquecer-se com todo o
calor elevador que borbulha em seu caldo de paixões efervescentes.
É necessário observarmos a filosofia de Bataille não como algo que persevera em busca de um
saber consumado e absoluto, mas que busca encontrar um modo de se relacionar com o que excede
este saber e abre o horizonte da existência humana para o que é, em si mesmo, ilimitado. É a
tentativa da filosofia se abrir para o não-saber da experiência, aquilo que está no campo do
irracional, mesmo que problematizado a partir da razão (o que não poderia ser diferente). Bataille
faz uso da razão do excesso na base da atividade humano, buscando conciliar pensamento e
linguagem fora de um campo estrito de sentido. Isso porque, o próprio ser está sempre em falta, à
procura de um ápice. E a experiência, realizada através das experiências transgressoras, soberanas,
heterogêneas, surgem como acontecimento que, no excesso, expõe o ser ao intolerável,
consumando-o no movimento de superação.!
“eu sou o resultado de um jogo, aquilo que, se eu não fosse, não seria,
que podia não ser.”
(...)
Minha felicidade e meu próprio ser emanam deste caráter excedente.” (BATAILLE, 1992, pág.
204)
Em função de seu caráter místico, a melhor maneira de exercer algum conhecimento após
chegar ao fim de um escrito de Bataille é deixar-se levar por alguma experiência que sublimam o
caráter ilimitado do ser. Através do riso, por exemplo, pelo qual se ridiculariza a ideia de um saber
absoluto e nos abrimos para os elementos imprevisíveis, que atuam contra a razão. Afinal, há
sempre algo em nós e no mundo que se revela por outra via, que não a do conhecimento racional,
não podendo jamais ser capturado por ele. Trata-se, evidentemente, da ocorrências das forças
heterogêneas originárias do não saber no campo do conhecido e do possível. Por isso, ao ler
Bataille, “rimos desconcertados porque o chão do entendimento foi subitamente estremecido, e
nesse instante o sentido de tudo foi suspenso, o pensamento deixado à deriva e o sujeito se
desgoverna caindo em vertigem momentânea. A consciência não parece ter qualquer comando, e
tudo se condensa no efeito dilacerante da experiência. Nada fica em pé durante esse tempo no qual a
experiência faz valer sua autoridade colocando o corpo numa via de excesso”. (LUIZ AUGUSTO
BORGES, 2011, pág. 2010).
A poesia, também entendida por Bataille como soberana, provavelmente é a melhor forma de
finalizar um escrito sobre a Bataille, pois permite que ao mesmo tempo que o texto chegue ao fim,
permaneça aberto em sua base um fundo de impossível que a qualquer momento pode penetrar por
entre os escritos e desestabilizar, pela via do excesso, qualquer racionalidade do discurso:
!
“Despeje em nós teu veneno para que nos reconforte.
!
Referências Bibliográficas
ASSARÉ, Patativa do. 100 anos de Patativa do Assaré, O Poeta Eterna. Entrevista
concecida para a Revista Brasileiros, 2009
DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007
LACAN, Jacques. Livro 20: Mais, ainda. São Paulo: Zahar, 2012
MAUSS, MARCEL. Ensaio Sobre a Dádiva. São Paulo: Cosac & Naify, 2006
MORAES, Eliane Robert. O jardim secreto. Notas sobre Bataille e Foucault. Tempo Social; Rev. So
Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 7(1-2): 21-29, outubro de 1995