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plantei
a cerca farpada,
plantei a queimada.
plantei
a morte matada.
matei
a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada…
eu plantei o nada.
Confissões do Latifúndio
Essa grande luta conjunta é, como dizem Ferreira e Felício, “para além das
cercas” (Ferreira & Felício, 2021, p.43). Cercas físicas geradas por processos históricos
de desterritorialização e de concentração de terra nas mãos de poucos. E cercas que
imaginamos separar pessoas, povos e organizações que enfrentam opressões do
colonialismo, capitalismo, racismo, patriarcado e LGBTQIA+fobia.
O que Joelson desenvolveu ao longo dos anos como programa da Teia passou da
oralidade para a escrita com a colaboração de Erahsto Felício de Sousa. Professor da
educação básica e mestre em história pela Universidade Federal da Bahia, Erahsto é da
Divisão de Comunicação da Teia dos Povos.
Logo se vê que muitas mãos escreveram a análise com base em vivências pessoais
e coletivas específicas, entrelaçadas em torno de uma jornada comum revolucionária por
terra e território.
Por isso, embora não seja contra sua execução, a Teia não reivindica reforma
agrária. Pois essa teria sido reduzida a uma política pública que andou junto com a
concentração fundiária no país.
Como assim?
Assim, para a Teia, o território é princípio, meio e fim. É o objetivo final, o meio
de atingi-lo e o princípio de tudo. Por isso muitos povos falam em Mãe Terra
ou Pachamama. Como princípio da vida, é indivisível. Ou deveria ser indivisível.
“lugares com vida, com comunidade, onde rios, matas, animais, poços,
nascentes, tudo possa ser respeitado e cuidado. Se continuarmos a lutar a partir
das cercas, elas seguirão nos separando, nos dividindo; são elas que permitem que
alguém degrade o rio em um canto e que as demais pessoas que não o fazem sejam
impactadas pela destruição desse mesmo rio em outro lugar.” (Ferreira & Felício,
2021, p.43-44).
Como Ferreira e Felício (2021, p.44) apontam, essa noção de terra cercada,
possuída, foi reproduzida pela política de reforma agrária.
Esses projetos, por vezes chamados de extrativistas, têm sido promovidos pelo
Estado, independentemente da linha progressista ou reacionária dos governos
federais (Nota 2).
Dessa forma, a Aliança Preta, Indígena e Popular articula raça, etnia e classe. E é
atravessada por debates de gênero e sexualidade. Daí a formação da rede de mulheres na
Teia dos Povos, protagonizada por elas mesmas.
Como lutar?
Além de terra e território, chama a atenção, no subtítulo do livro, a palavra
“caminhos”.
Na arte de tecer alianças, as caminhadas são o grande desafio, pois daí podem
surgir desavenças. Já a jornada e os passos são mais fáceis de sincronizar.
Por isso, observam que “Nós precisamos ser antropólogos profundos de nosso
próprio povo” (Ferreira & Felício, 2021, p.143). Com essa “antropologia desde baixo”,
feita pelos próprios povos, podem transformar as diferenças em oportunidades.
Assim podem “suprir nossas demandas e curar nossas feridas, sejam as que
carregamos em nossos corpos, em nossas relações ou em nossos territórios.” (Ferreira &
Felício, 2021, p.145).
Fios e rios que viram teias e mares. Duas fortes imagens das lutas territoriais.
Não à toa, as metáforas do rio e dos fios que compõem teias/tecidos/malhas têm
tido um papel relevante em obras interdisciplinares e de preocupação ecológica.
Antropologia ecológica
O britânico Tim Ingold, por sua vez, tem sido um grande expoente
da antropologia ecológica.
Como um título de seu artigo diz, Ingold (2012) busca “trazer as coisas de volta
à vida”. Sua crítica reside justamente na inversão ocidental de reduzir coisas (como
cadeiras, árvores e a terra) a objetos delimitados por superfícies fixas.
Mas as superfícies das coisas, diria Ingold, são vazadas e temporárias. E as coisas
são vivas porque vazam. Ao invés de substantivos, as coisas são verbos, movimento. Se
coisificam pela reunião de fios. São lugares onde “aconteceres se entrelaçam”. São nós,
cujos fios “deixam rastros e são capturados por outros fios noutros nós” (Ingold, 2012,
p.29).
Logo, o cercamento da vida por superfícies é a morte. Contra essa morte das
coisas, Tim Ingold resgatou a imagem da teia de aranha. Os fios da teia são extensões
do corpo da aranha à medida em que ela se movimenta.
“São as linhas ao longo das quais a aranha vive, e conduzem sua percepção e ação
no mundo” (Ingold, 2012, p.40).
Ou seja, moscas e aranhas não são objetos delimitados fixos que são conectados
pelos fios das teias. Os fios tecidos em teia possibilitam o encontro das aranhas com as
moscas.
Romper cercas
Entre caça e caçador não existe diálogo. Quem
aceita a verdade de seu algoz merece o destino
que tem.
Patrice Lumumba (1925-1961),
líder anticolonial congolês
(Ferreira & Felício, 2021, p.175)
As últimas palavras do livro defendem a ruptura das ilusões que têm imposto
obstáculos à conquista da luta por terra e território. Mestre Joelson e Erahsto argumentam
que, entre um passo e outro, não devemos perder de vista a longa jornada.
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Sumário do livro.
O último capítulo se chama “Por fim, romper com a ilusão”.
Para os autores, a maior ilusão é acreditar que a criação da nova sociedade virá
por poderes institucionais. Afinal, esses historicamente deram continuidade à lógica de
cercamento do latifúndio.
Ao mesmo tempo, enfatizam que a mudança é para hoje, e não para um futuro
incerto de conquista.
A unidade dos povos em luta contra cercas físicas e imaginárias revela-se, por fim,
tanto destino quanto caminho. Meio e fim.
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NOTAS
Nota 1
A capa desta resenha é a cópia da arte do livro “Por terra e território”, realizada
por Iago Aragão (@iaiagooo).
Nota 2
Nota 3
Nota 4
fios. Cada comunidade que está na teia é um fio, e a teia tem um fio que é super-
resistente.”.
Nota 5
Nota 6
Tim Ingold criticou a imagem de rede para descrever essas relações entre
humanos e não humanos. Imaginamos que redes conectam pontos, certo?
Por isso prefere a imagem de teia, porque seus fios não conectam nada. São
entrelaçamentos – por isso, a teia de aranha pode ser substituída pela imagem de tecidos
ou malhas.
Para uma crítica do emprego da metáfora da teia de aranha, ver Alfredo Wagner
Berno de Almeida e Sheilla Borges Dourado (2013, p.25-26), os quais preferem o uso da
ideia de rede para enfatizar hierarquias na “difícil articulação de diferenças” da
construção social de identidades e territórios.
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Alfredo Wagner Berno de Almeida & Sheilla Borges Dourado (Org.). Consulta e
participação: A crítica à metáfora da teia de aranha. Manaus: UEA Edições;
PPGSA/PPGAS-UFAM, 2013.
Fritjof Capra. A teia da vida: Uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.
Joelson Ferreira & Erahsto Felício. Por terra e território: caminhos da revolução
dos povos no Brasil. Arataca: Teia dos Povos, 2021.
Patricia Hill Collins & Sirma Bilge. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo,
2020. E-book.
Paul Bohannan. Africa’s land. The Centennial Review of Arts & Science, v.4, n.4,
p. 439-449, 1960.
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• TamborCast
• Brasil de Fato
• Racismo Ambiental
Para saber mais sobre o livro, entre em contato com a Teia dos Povos:
E-mail: terraeterritorio@protonmail.com