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Seminário II: Comunicação e Artes [Ciências da Comunicação (D)]

2021/2022

As mortes e as ressurreições da arte: uma breve visita ao antigo e ao novo, e à


emergência de um sistema social

(Paulo Alexandre Dias Gameiro1)

Resumo

Abordaremos a emergência e evolução da arte desde o início da sua era, com o


Renascimento, bem como o fim da sua história com a chegada da contemporaneidade,
segundo Arthur Danto e Hans Belting. O caminho seguido interpretado à luz da Teoria
dos Sistemas de Niklas Luhmann, coteja os paradigmas do clássico, moderno e do
contemporâneo, percorrendo o sistema da arte desde o seu surgimento, até aos dias de
hoje. Sob o obituário da arte contemporânea de Avelina Lésper, permitimo-nos ainda
lançar algumas pistas sobre o seu futuro e sobre os riscos que corre.

Palavras chave: arte, morte, história, autopoiesis, moderno, contemporâneo.

Introdução

1
Doutorando de Ciências da Comunicação da Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias/ 2021/2022 para o Seminário Comunicação e Artes
1
Podemos assumir que em sociedades anteriores os objetos que agora percebemos
como arte e armazenamos em museus “foram produzidos como suportes para outros
círculos funcionais” em vez de ter um propósito, uma função especial na arte.
(Luhmann, 2000, p.137) Falamos em particular da simbologia religiosa, mas também
“da transgressão lúdica” (Luhmann, 2000, p.137) no que diz respeito à produção de
objetos que outrora tinham uma utilidade comum. Em retrospetiva, descrevemos as
“intrincadas combinações, especificamente artísticas de obras ornamentais da igreja” - a
arte sacra é hoje o nome da roupa com que a produção de objetos e pinturas do
catolicismo se vestia -, “ou a produção como episódicas”. (Luhmann, 2000, p.137-8)
Em todo o caso, a ligação entre a especificação funcional e a diferenciação dos sistemas
funcionais constitui um nexo socio-histórico, que há muito permanecia protegido por
contextos familiares2, até que as possibilidades artísticas deste tipo atingiram um
elevado grau de evidência e independência. A função específica da arte assumiu-se
como um atrativo para criar formas que agora seguem a sua própria dinâmica e
começaram a reagir à sua própria realização. Isto aparentemente aconteceu pela
primeira vez na Grécia clássica e depois novamente durante um período chamado de
"Renascimento". (Luhmann, 2000, p.137-8)
Arthur Danto (Danto, 2014) e Hans Belting (Belting, 2006) identificam esse
período iniciado com a descontinuidade ocorrida no Renascimento, e designado pelos
autores como a “era da arte”, que terá perdurado até finais dos anos 60 do século
passado, período esse em que a arte e o conceito de artista emergiram e foram sendo
sucessivamente definidos. (Danto, 2014, p.1). O que agora entendemos como artistas
eram vistos como artesãos virtuosos, com mérito e inspirados, talvez, pelo divino.
À luz destes dois autores e cotejado pelos desideratos de Niklas Luhmann sobre
a arte e a diferenciação do Sistema da Arte 3 daremos breve conta, nos capítulos
seguintes, das mudanças que terão ocorrido no sistema da arte, em particular desde o
final da década de 60 do século XX e que segundo aqueles Danto e Belting sucedera
2
Exemplo paradigmático é o caso dos Médicis que em Florença do século XIV apoiavam a
arte como forma de legitimar politicamente o dinheiro adquirido de forma duvidosa, o que concorria por
sua vez para a consolidação da sua posição política.
3
Niklas Luhmann, (1927-1998) ao longo de mais de 30 anos foi construído uma teoria geral da
sociedade, em que os sistemas sociais adquirem uma importância crucial nas dinâmicas e evolução nas
sociedades. O sistema da arte foi dos últimos por ele abordado, encarando-o como um subsistema, mas
como todos os outros, autoreferente, autopoiético, e com um sentido da comunicação (da arte) exclusivo.
Cf. Luhmann, N., (2000). Art as a Social System, Stanford California, Stanford University Pres. pp. 133-
84.

2
com o esgotamento da “arte moderna”. Perscrutaremos também os caminhos que a
sucedânea “arte contemporânea” e o seu sistema parecem percorrer, e a critica feroz que
sobre ela, a critica de arte Avelina Lésper vem tecendo.
Sob o ponto de vista funcional e da diferenciação do sistema da arte, as
perguntas que se colocam desde o início da “era da arte” debruçam-se sobre o que
sucede com a arte se a diferenciação funcionalmente orientada de outros sistemas
empurra a sociedade como um todo para a diferenciação funcional? Será que a arte se
tornou submissa de outros sistemas funcionais, tais como a economia, a política ou a
religião, especialmente desde os anos 60? Ou será que - como Danto e Belting
argumentam, e como iremos ver - a autonomia crescente de sistemas funcionais desafia
a arte a descobrir a sua própria função e a focar-se exclusivamente nela? Os
desenvolvimentos iniciados na Itália Renascentista e a disrupção em plena ocorrência na
arte contemporânea confirmaram esta última hipótese.

Os obituários da história da arte e o fim de uma era

Antes da disrupção da arte moderna iniciada nos anos 60, já tinha havido um
prenuncio de final de ciclo, uma “morte da arte” inicialmente vaticinada pelo filósofo
Georg Hegel (1770-1831) na sua obra intitulada Vorlesungen über die Ästhetik.4 e
publicada depois da sua morte, em 1886. Hegel aventou o definhamento do pensamento
metafísico, em primeira mão na filosofia, e junto com ele na arte; argumenta que o
desenvolvimento hegemónico do positivismo lógico haveria de empurrar a arte para o
esquecimento da história. A arte, à luz hegeliana é entendida como uma manifestação
do espírito, a par da filosofia ou da religião, submetida aos condicionalismos e à
ordenação histórica. Desse modo, a razão instrumental iria sanear todas as esferas da
sociedade onde imperasse os frutos da genialidade espontânea, do imprevisto ou até da
arte entendida como potência criadora que reside antes da obra e se estende para além
dela. O tema da estética e das relações e implicações entre sujeito e objeto, para
utilizarmos uma dicotomia clássica, eram comuns à metafisica que segundo o filósofo

4
A problemática do “fim da arte” nos Cursos de Estética de Hegel, pode ser assumida a partir
de dois pontos de partida. No primeiro a arte é entendida como uma manifestação do espírito, e cede lugar
a outras manifestações da mesma natureza mais potentes como a religião e a filosofia; o segundo diz
respeito às modalidades sucessivas de expressão artística apontadas pelo filósofo sob a forma da arte
simbólica, clássica e romântica, incluindo as formas específicas das artes, todas elas submetidas a uma
ordenação histórica, tais como a arquitetura, a escultura, a pintura, a música e a poesia.

3
era necessário distinguir da razão instrumental por via do conhecimento científico.
Desse modo, o novo impulso epistemológico na Filosofia dado por Hegel remeteu a arte
para uma forma de “manifestação do espírito”, e por isso dependente dos cambiantes da
história, e nessa medida sujeita ao esquecimento.
O autor terá interpretado esse fim da arte como o seu final, o que
manifestamente e em retrospetiva, não ocorreu. Contudo esse prenúncio de morte sob o
desígnio da submissão da arte à ordenação histórica, deixou sementes por onde
emergiram novos anúncios fúnebres, designadamente de Arthur Danto e Hans Belting
durante a década de 80 e até ao final do séc. XX, quase em simultâneo, ignorando, no
início, os construtos um do outro. (Danto, 2014, p.1)
Arthur Danto (1924-2013) foi professor emérito da Columbia University, em
Nova Iorque, tendo sido presidente da American Philosophical Association e
da American Society for Aesthetics. Neste trabalho, focamo-nos essencialmente na sua
obra After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, por ser uma
coletânea de diversos artigos sob a temática da arte contemporânea, reunidos após
décadas de investigação sobre a evolução da arte e da sua complexificação na relação
entre objeto artístico e objeto cotidiano. Nessa obra Danto investiga a arte após a morte
da sua própria história, isto é, após esse processo de autonomia em que a arte
contemporânea e a filosofia passaram a seguir caminhos radicalmente distintos, e onde a
primeira deixa se estar refém da inteligibilidade da segunda, terminando aí, na opinião
do autor, o programa da arte moderna. O seu primeiro capítulo do total de onze será
aquele sobre o qual nos iremos mais debruçar por conter a matriz do seu pensamento à
cerca dos temas abordados neste trabalho.
Por sua vez Hans Belting nascido em 1935 é um historiador de arte alemão e
reconhecido especialista da teoria da imagem e arte contemporânea. A sua investigação
sobre a produção de imagens anterior à “era da arte” conflui para a construção integrada
da história da arte, propondo ao invés uma “história das imagens” que acolha no seu
discurso inclusive a produção pré e pós-artística 5, isto é antes e após a “era da arte”. O
autor percorreu um longo caminho, incremental e sempre na mesma direção iniciado em
1983, com a publicação da obra O fim da história da arte?6. Após alguns ensaios, em
1995 acaba por escrever o livro intitulado O fim da história da arte: uma revisão dez
anos depois7. Já em 2003, a Universidade de Chicago onde lecionava publica uma nova
5
Cf. https://www.academia.edu/30933980/_O_fim_da_hist%C3%B3ria_da_arte_segundo_Hans_Belting
6
Belting, H. Das Ende der Kunstgeschichte? Munique: Deutscher Kunstverlag, 1983
7
Belting, H. Das Ende der Kunstgeschichte: Eine Revision Nach Zehn Jahren. Munique: Beck, 1995.

4
versão do texto revisado de 1995 em que Belting para além de algumas modificações no
seu conteúdo, dá-lhe um novo título designadamente, A História da Arte após o
Modernismo8 que entende como o mais apropriado do que os outros anteriores ao
estabelecer incisivamente a descontinuidade existente entre o discurso moderno e pós-
moderno:
A arte moderna, que teve uma história mais longa na Europa do que em qualquer outro
lugar, sempre foi mais do que uma prática artística; é também um modelo que permitiu a
história da arte estabelecer uma progressão ordenada, linear. “A História da Arte
depois do modernismo” não significa apenas que a arte se apresenta diferente hoje, mas
também significa que o nosso discurso sobre a arte tem tomado um rumo diferente, se é
seguro dizer que tomou uma direção absolutamente clara (Belting, 2003, p.7)

Quando Arthur Danto escreveu o After the End of Art: Contemporary Art and the
Pale of History, e Hans Belting Art History After Modernism tinham ambos atingido um
estádio de maturidade nos seus estudos que lhes permitiu aclarar o que entendiam por
“morte da arte” ou mais precisamente o “final da história da arte”. Ambos os autores
entendem que essa morte ou final não diz respeito à interrupção da sua produção e
muito menos da disciplina da arte, mas antes ao fim da sobreposição da arte à narrativa
que sobre ela é contada. Isto é, como o período “pós-moderno” - termo preferido de
Danto para intitular a contemporaneidade -, se descola das narrativas que lhe serviam de
estrutura, e por isso o autor refere-se a uma pós-narrativa, e ao período liberto da
história, isto é, ao período pós-histórico, expurgado de resquícios da metafisica que
ainda impediam a arte de se referir apenas ao que é interior à própria arte. De certa
maneira, esse processo libertou-a de uma “narrativa legitimadora”. (Danto, 2014, pp. 1-
10), isto é, das narrativas que lhe eram alheias. Esse processo inicia-se com a crise da
“antiga história da arte”, ao deixar de imitar a natureza, sob os desígnios da beleza ou do
virtuosismo do artista para passar a representá-la de modo estilizado, encruzado,
indefinido, como acontece na “história dos estilos” descrita por Belting (Belting, 2006,
pp. 162-74) que acomoda e é substância na arte moderna.
Ambas as crises, são também manifestações das crises da metafisica que Hegel
evocava como sintomáticas da ordenação histórica a que a arte, segundo o autor, devia
estar subjugada. Todavia, e ao contrário do que o filósofo aventava, essas crises
parecem ter dado novo impulso à arte; de convulsão em convulsão foram catalisando

8
Belting, H. Art history after modernism. Chicago: The University of Chicago Press, 2003

5
novos processos de autorreferência sistémica como Luhmann sobejamente caracteriza
os sistemas sociais, isto é, sistemas que se constituem com referência a si mesmos e não
sobre o que lhe externo. Esta aparente tautologia, apenas sugere a autonomia que o
sistema da arte ganha sucessivamente aos outros sistemas, como a religião, a política ou
a economia.
Na obra de Niklas Luhmann é desde logo observável a substituição da
subjetividade da ação do homem, presente na teoria de Talcott Parsons, pelo paradigma
da autorreferência que é entendido pelo autor como a unidade constitutiva do próprio
sistema consigo mesmo, feita da unidade de elementos, de processos, e dos próprios
sistemas (Luhmann, 1998: 55). A discussão epistemológica sobre a ação do homem
versus a do sistema não faz parte do âmbito deste trabalho, mas podemos ainda assim
socorrer-nos desse conceito de autorreferencia sistémica que se assume como condição
indispensável à ocorrência de outro conceito, esse verdadeiramente fundamental nas
Teorias da Comunicação e na Teoria dos Sistemas de Luhmann, e que será precioso
para a nosso breve estudo da arte contemporânea debatido no capítulo seguinte;
referimo-nos à autopoiesis.
Segundo Luhmann a “autorreferência permite voltar aos acontecimentos
anteriores ou às ações de uma forma que consiste numa possibilidade permanente”
(Luhmann,1998, p.93). Isto significa que se pode voltar ao passado e orientar a ação na
mesma ou noutra direção, o que é desde logo indiciador de um conjunto de predicados
próprios especialmente da arte contemporânea. Contudo, tais processos autoreferentes,
ainda que quase sempre em direção única, já se podem observar na arte clássica,
designadamente na pintura renascentista que é seguida pelo barroco, que é seguido pelo
rococó, que por sua vez é seguido pelo neoclassicismo num pequeno movimento na
direção ao passado, e que por fim é seguido pelo romântico (Danto, 2006, p.3). A
unidade constitutiva está bem presente em cada um dos estilos clássicos que tem como
referência o outro ou outros que o antecedem.
Por sua vez, a arte moderna, a que corresponde sensivelmente ao período entre
1880 e 1965 é povoada pelos numerosos e plurais estilos entre outros, o
Expressionismo, Simbolismo, o Fauvismo, o Cubismo, o Futurismo, o Abstracionismo,
o Dadaísmo, ou o Surrealismo que fervilham num curto espaço semântico, indo ao
passado na tentativa de encontrar um futuro, de africa ao ocidente, como que querendo
fugir desesperadamente para outro lugar e outro tempo. Esse lugar e tempo, onde
atualmente nos encontramos, terá começado a ser ocupado ainda pela Pop Art, um estilo

6
charneira entre o moderno e o contemporâneo. (Danto, 2006, p.3) Contudo, e apesar de
parece não haver condicionalismos provocados pela história, pelos conceitos, materiais
ou estilos, a autorreferência do sistema da arte não consegue explicar satisfatoriamente
como a arte produz arte na contemporaneidade. As propriedades relativas à
autorreferência são indispensáveis à existência de um sistema ou subsistema social, mas
não são suficientes para que se possa entender como funciona um sistema complexo e
autónomo. Para melhor debater esse assunto faremos uma breve incursão ao conceito da
autopoiesis no próximo capítulo.

O novo e o contemporâneo e a emergência do sistema da arte

O que aqui se defendeu é a criação e evolução do sistema da arte desde o início da


sua era, sensivelmente após o sec. XV, com movimentos críticos e crises que ainda
assim deram robustez aos seus processos de autorreferência. Danto parece mais radical
do que essa posição ao encarar que a arte moderna, sem sequer precisar de se referir à
antiga, precisa de referenciais externos para se afirmar, como são disso evidencia os
manifestos de cada um dos quase infinitos movimentos da vanguarda modernista, que
serviam de linha orientadora das diversas convulsões culturais da primeira metade do
séc. XX, designadamente até à década de 60. De modo diferente, o autor argumenta que
a arte pós-histórica prescinde e só floresce a partir da eliminação dessa necessidade
obsessiva de definição e autodefinição em forma de rótulos e movimentos, orientações
rígidas (Danto, 2014, p.3-4). Isto significa que de acordo com Danto e à luz da
interpretação Luhmaniana, só a arte contemporânea é verdadeiramente autoreferente
dispensando por completo a comunicação que lhe seja exterior. No entanto, importa
calibrar alguns conceitos usados por Niklas Luhmann e que importamos para esta
discussão. Para tal e em primeiro lugar regressamos ao conceito de autopoiesis, um
neologismo criado pelos biólogos Humberto Marutana e Francisco Varela que serviu a
Luhmann para descrever um sistema social e que consiste num conjunto de
propriedades de um sistema complexo que lhe permitem criar uma rede onde processa a
sua própria produção. Essa produção é interna, operacionalmente fechada e conduz à
constituição de uma unidade distinta e delimitada. Temos assim que, enquanto a
autorreferência se assume como a possibilidade do sistema relacionar unidades de
elementos, a autopoieses refere-se à capacidade de relacionar e produzir esses

7
elementos. Esse passe conceptual de Luhmann, indispensável ao seu edifício teórico,
pode ter sido o passo que a arte contemporânea tenha dado e que Danto interpreta como
a independência perante os movimentos, estilos e manifestos artísticos no período da
arte moderna, isto é a autonomia da produção artística face a referencias históricas,
tendências e narrativas que lhe são em rigor externas. Em segundo lugar e como o autor
reconhece, apesar das evoluções do “moderno, para o pós-moderno e contemporâneo”,
as galerias, as escolas de arte, as publicações, os museus, os curadores permaneceram
relativamente estáveis (Danto, 2006, p.1) isto significa que as estruturas do sistema da
arte mantiveram-se, apesar das alterações profundas que a arte já tem no seu portefólio
evolutivo. Ora isto indicia que o seu sistema está constituído desde então, apesar da
crescente complexificação na sua produção, o que não seria possível sem pelo menos
processos de autorreferência instituídos.
Poderemos assim entender que sob os construtos de Niklas Luhmann, se a arte
moderna deu consistência aos seus processos de autorreferencia, indispensável à sua
autonomia, a arte contemporânea só adquiriu viabilidade com a autopoiesis cujas
propriedades permitem, ao sistema da arte, a própria produção artística, sem depender
ou se suportar em estilos ou movimentos vanguardistas de referência, ou em materiais
eleitos, referencias históricas ou geográficas, enfim sem espartilhos de alguma espécie
para além das ideias. A arte contemporânea tem assim nas suas operações um caracter
indefinido, e por isso pode ter várias realizações futuras, um leque que se abre
constantemente a novos caminhos. Todavia a arte, por esse motivo, corre o risco de ser
tudo, e a indiferenciação (e não o a indefinição) pode ser o seu maior risco.
Hans Belting apesar de coincidente com Arthur Danto quanto ao fim da história
da arte e das suas narrativas, dá-nos uma perspetiva holística, e historicamente
enquadradora da arte. Defende que a “arte pura” e a tradição imagética formam um
aglutinado artificial desde o início da “era da arte|” na cultura europeia que está
plasmada na sua história e nas narrativas contadas. Por isso fala da importância em se
pensar numa história da imagem ao invés de uma história da arte enquanto história de
estilos que não consegue suportar todo um conjunto de acontecimentos que moldaram,
forjaram a produção de imagens antes da Renascença, antes da “era da arte”. Desse
modo, a separação que Belting advoga entre a “arte pura”, isto é a arte aplicada à arte
(Danto, 2006, p.8), “Pure art was correspondingly art applied to art”, e as imagens por
outro, permitirá discutir ideias ao invés de discutir obras de arte; e com isso evitar a
discussão sobre a história da arte. Entende, inclusive, referindo-se ao subtítulo do livro,

8
“Uma história da imagem antes da “era da arte”, que a “arte”, entendida da forma como
hoje é estudada, é uma “invenção” ocorrida após a Idade Média, com o advento do
Renascimento. Hans Belting vai ainda mais longe ao considerar que:
Após a Idade Média, no entanto, a arte assumiu um significado diferente e tornou-se
reconhecida por seu próprio interesse - arte como invenção [criação] de um famoso
artista e definida por uma boa teoria. Enquanto as imagens de velhos tempos foram
destruídas por iconoclastas no período da Reforma, as imagens de um novo tipo
começaram a encher as coleções de arte que estavam sendo então formadas. A era da
arte, que está enraizada nestes eventos, se estende até os dias de hoje. Desde o início,
tem sido caracterizada por um determinado tipo de historiografia que, embora seja
chamado de história da arte, na verdade trata da história dos artistas. (Belting, 1994,
p.XXI)

Refere-se, portanto, às imagens que sempre estiveram presentes desde a pré-


história humana e sempre existirão independentemente da arte produzida; as imagens
que são de resto os elementos constituintes que qualquer arte tenta captar. Essa tese,
apesar de aparentemente adversa à própria arte, pode ser entendida como a descrição de
um sistema autopoiético que emerge sob um ambiente complexo anterior e mais
complexo que o próprio sistema, um novelo de elementos informativos que o sistema
tenta tornar inteligível; no caso da arte, esses são as imagens que interpreta e reproduz.

O obituário da arte contemporânea, segundo Avelina Lésper

Ao contrário de Hans Belting e Arthur Danto que percecionam o fim da história


da arte com o início da contemporaneidade, Avelina Lésper faz uma feroz critica à
própria natureza da arte contemporânea, dir-se-ia que para a autora, a arte
contemporânea é uma aberração, um perigo para a própria sociedade.
Esse radicalismo que assumimos é baseado no facto de, segundo Lésper, a arte
ter-se transformado numa ideologia ortodoxa que condiciona os críticos de arte (Lésper,
2012), e os transforma numa espécie de evangelistas da fé. A arte passou a ser
dominada por dogmas, como o conceito e o contexto que por transubstanciação, como
de magia se tratasse, são capazes de transformar qualquer objeto em arte; a arte passou
por isso a substanciar-se em ideias e não em obras. Por esse motivo, temos em todos

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nós a capacidade de ser artistas, e por isso, qualquer um que se intitule artista pode
designar o que é arte. (Lésper, 2012)
Sustenta a sua tese com o facto de o dogma ser uma ideia que não aceita replica
ou questionamento à priori. Se o fizesse diluir-se-ia na dúvida e deixaria de assumir essa
natureza. Resta por isso à critica, analisar o seu significado e crer nele ao invés de
analisar a obra. A consequência da falta de rigor nas obras, porque os critérios estão
subvertidos, permitiu que o vazio de criação, o acaso e a falta de inteligência passassem
a ser os valores dessa arte falsa, permitindo que qualquer coisa possa ser exposta nos
museus. (Lésper)
Avelina Lésper explica que os objetos e valores estéticos que
se apresentam como arte são aceites em completa submissão aos princípios de uma
autoridade impositora. Isto faz com que, a cada dia, formem-se sociedades menos
inteligentes e aproximando-nos da barbárie. (Lésper, 2012, 1)
Os dogmas elencados por Lésper são vários e começam pelo da
transubstanciação, em particular pelo dogma do conceito, dando o exemplo de Marcel
Duchamp e da “A Fonte” que segunda a autora, por uma mudança mágica, isto é, por
um capricho de Duchamp transformou um objeto de uso comum, numa obra de arte.
Lésper aborda este tema do Ready Made, considerando que perante esta corrente
“artística” trata-se de regressão ao mais elementar e irracional do pensamento humano,
um retorno ao pensamento mágico que nega a realidade. Segundo critica de arte, esta foi
reduzida a uma crença fantasiosa e a sua presença num mero significado, como ela
refere: “Necessitamos de arte e não de crenças”. (Lésper, 2012, 2)
Prossegue com outros dogmas que perpassam as ideias de que o génio artístico
deixou de existir. O proclamado artista “…é prescindível e qualquer obra se substitui
por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade. Nesse sentido,
a substituição constante de artistas dá-se pela fraca qualidade de seus trabalhos,
“tudo aquilo que o artista realiza está predestinado a ser arte, excremento, objetos e
fotografias pessoais, imitações, mensagens de internet, brinquedos, etc. Atualmente,
produzir arte é um exercício egocêntrico; as performances, os vídeos, as instalações
estão feitas de maneira tão óbvia que subjuga a simplicidade criativa, além de serem
peças que, na sua grande maioria, apelam ao mínimo esforço e cuja acessibilidade
criativa revela tratar-se de uma realidade que poderia ter sido alcançada por qualquer
um.” (Lésper, 2012, 9)

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Neste sentido, Lésper entende que, ao se conceder o estatuto de artista a
qualquer um, todo o possível mérito é-lhe dissolvido e ocorre uma banalização, o que
remete para o risco da indiferenciação como referido no capítulo anterior.
Lésper assegura que, nos dias que correm, a arte deixou de ser inclusiva, pelo
que se voltou contra seus próprios princípios dogmáticos e, caso não agrade ao
espectador, acusa-o de ser ignorante, estúpido e diz-lhe com grande arrogância que, se
não agrada é porque não a percebe. (Lésper, 2012, 4) Por essa razão, o espectador, para
o evitar submete-se a toda alegada arte, porque o público que não se submete a
ela é considerado imbecil, ignorante e nunca estará à altura da peça exposta ou do artista
por trás dela. Desta maneira, o espectador deixa de presenciar obras que
demonstrem inteligência. (Lésper, 2012, 3,11)
Em suma, Avelina Lésper sinaliza que a arte contemporânea é dogmática e
sobranceira, produzida pela sua própria estrutura, favorecendo apenas as instituições e
os seus patrocinadores. Podemos argumentar que segundo a critica de arte, a obsessão
pedagógica, e a necessidade de explicar cada obra, a cada exposição gera a
sobreprodução de textos que nada mais é uma encenação implícita de critérios, uma
negação à experiência estética livre, uma sobre intelectualização da obra para
sobrevalorizá-la e impedir que a sua perceção seja exercida com naturalidade. (Lésper,
2012)

Notas finais

Primeiro o divino e o mimetismo, depois os estilos e os movimentos modernistas


que não deixaram de estar ancorados na materialidade da obra, eram lugares seguros da
arte; meios como a tela ou a pedra perduram no tempo e por isso podia-se sobre ela
discorrer história. A arte moderna tenta se desviar desse esquema conceptual, sem
sucesso, mas já desafia o público na sua perceção sobre os critérios da beleza e do
virtuosismo do artista. Na contemporaneidade o desafio consiste em deixar cair por terra
esses critérios. Isso remete a arte para uma aparente vulgaridade; ela já não é o
repositório de nada que mereça verdadeiramente adorar. Esta constatação é difícil de
aceitar e inconformados, podemos perguntar onde obter, no social, a beleza? E o prazer
de a comtemplar? Essas podem ser as perguntas que Avelina Lésper tenta responder e
para as quais não terá resposta. Mas no plano inverso pergunta-se se a arte serve para

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ser adorada? Ou ainda se arte é serva da beleza ou do mérito de quem a produz? A
resposta que é dada pela própria contemporaneidade, e essa é a negação às perguntas. A
arte deixa de responder a propósitos que não sejam os da arte, personalizados pelo
artista; a arte já não responde a ninguém se não aos próprios artistas e curadoria. Esse
movimento autopoiético é aquele que também se pode encontrar nos sistemas da
ciência, da política, da economia ou da religião. O sentido da comunicação na ciência é
a verdade, na política o poder, na economia o dinheiro, na religião a moral, e cada uma
delas responde a si mesmo: a verdade procura a verdade, o poder o poder, o dinheiro o
dinheiro, e a moral a moral, como movimentos visíveis da autorreferência e da
autopoiese sistémica. Essa é a lógica de cada um dos sistemas e dos seus meios de
comunicação simbolicamente generalizados. E qual o meio de comunicação simbólico
da arte? Segundo Lésper podemos entender que são os conceitos e as ideias, e nesse
caso os conceitos respondem só aos conceitos e as ideias só às ideias e assim parece
acontecer. Se a arte tivesse que responder exclusivamente a uma obra de arte e à
materialidade era como se o sistema da economia tivesse que responder às caixas fortes
e carrinhas de valor, a política aos parlamentos, a moral ao altar, e assim por diante.
Os argumentos de Avelina Lésper, são, contudo, compreensíveis. Afinal, tudo se
resume a um nível extremo de intangibilidade e de imaterialidade que tem, naturalmente
muita dificuldade em conseguir fazer-se comunicar, mesmo que através de um sistema
social com o seu próprio meio de comunicação simbólico, como a arte, essa
corresponde, de resto a uma fragilidade que à luz das teorias de Luhmann põe em causa
a eficácia da autonomia e por isso a autopoieses do sistema da arte (contemporânea).
Trata-se da tentativa de suprimir o intangível e o imaterial com a dependência que a arte
assume sob os textos interpretativos sobre a própria arte e que Lésper evoca; desse
modo não se custeia sozinha; o valor simbólico da arte não é suficiente, precisa de
narrativas para a legitimar, ainda que essas só a ela digam respeito. Ora, a critica e ao
mesmo tempo o argumento sobre o fim da história da arte, segundo Danto e Belting
consiste nessa colagem às narrativas que sobre a arte eram contadas; essa colagem
corresponde também a dependência sobre as estruturas semânticas que perduram ao
longo do tempo, e por isso são reconhecíveis pela história. Ora parece que com a arte
contemporânea está a suceder precisamente o mesmo. Pode-se desde já, e apesar da sua
breve existência, seguir sua evolução através das narrativas interpretativas que lhe estão
associadas e que servirão para mais tarde contar a sua história, porque afinal, das obras
de arte e da sua imaterialidade pouco ou nada restará. Corre-se o risco de daqui a umas

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décadas ou séculos, poderemos estar a anunciar o fim da pós-narrativa, o fim da pós-
história da arte que agora intitulamos como contemporânea.

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Bibliografia

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