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14 janeiro
Tragicomédia tradutória em três atos e um epílogo. Os nomes foram trocados, mas a história é autêntica.
Antigamente, não tinha Internet: a gente ia ao escritório do cliente. Dá para imaginar? E toda tradução
vinha em papel. Dá para imaginar? E, nas tabelas, para reduzir custos e abreviar prazos, a gente não
digitava os números, só o texto. O “pool” de secretárias do cliente passava tudo a limpo, no papel
timbrado deles, copiando os números do original. Às vezes, o original vinha manuscrito.
Isso tudo para introduzir uma história de que até hoje dou risada. Fui entregar a um cliente um serviço
pronto, mas com uma dúvida. Um item, em um demonstrativo, me escapava ao entendimento: “portas
ferradas”. Que raio é uma porta ferrada?
Levei o serviço ao cliente, uma firma de auditoria, e comecei minha via crucis pelo gerente encarregado
do serviço.
– [Gerente] (Sem levantar os olhos do papel, para indicar que tinha mais que fazer do que falar comigo)
Eu é que sei?
– [Danilo] Está no relatório da Xpeteosa, com a sua assinatura.
– [Gerente] Como, não faz sentido? Deixa ver esse troço. Está aqui, claro, letra boa, fácil de ler, só ter boa
vontade, (uma indireta normal, a gente finge que não entende) p-o-r-t-a-s f-e-r-r-a-d-a-s. Entendeu?
– [Gerente] Eu é que sei? Lá sei eu, coisa do cliente. O tradutor é você, cara. Sabe o que é porta, sabe o
que é ferrada? Então, meu, se vira!
– [Danilo] A gente ferra cavalo e burro, não porta.
Cenossélia Secretária,
– [Cenossélia] Por quê? Não pode. Ele está em reunião com um cliente importante.
– [Cenossélia] (Tentando desviar a conversa) Para que você quer saber disso?
– [Danilo] Não se pode traduzir o que não se entende. É por isso que não traduzo russo: porque não
entendo russo.
– [Cenossélia] Como, não tem? Porta ferrada, não tem? Tem porta, ao menos, esse teu dicionário?
(Depreciar o equipamento ou os conhecimentos do outro, quando não se tem uma resposta, faz parte
do jogo) Tem o verbo ferrar, pelo menos?
– [Cenossélia] Como não faz sentido? “Portas ferradas”, não faz sentido?
– [Cenossélia] Claro!
– [Danilo] Então, me explica.
– [Cenossélia] Você é chato. Vou ter que interromper uma reunião do chefe por tua causa.
– [Danilo] Por minha causa, não. Por causa de quem me entregou um texto sem pé nem cabeça.
– [Cenossélia] [No telefone] Dr. Sérgio, o Danilo está aqui, com um problema com o relatório da
Xpeteosa. Diz que não pode entregar sem resolver. … Tá, obrigado. [Para mim] Pode entrar!
Sérgio Sócio e
– [Danilo] Bom dia, desculpe interromper, tem um trecho aqui no relatório da Xpeteosa que eu não
entendi bem.
– [Sérgio] Opa, você chegou na hora certa. O Cláudio aqui é gerente da Xpeteosa. Se alguém nesse
mundo sabe, é ele mesmo. Pergunta para ele.
– [Danilo] Prazer, Cláudio! Me conta uma coisa, que são “portas ferradas”?
– [Cláudio] Prazer, Danilo! “Portas ferradas”? Não faço ideia. Deixa ver. [Pega o relatório na mão,
examina, dá uma gargalhada.] São porta-ferramentas!
– [Danilo] Em coisa de minutos, é só avisar as datilógrafas. Então, até logo e, mais uma vez, obrigado.
Epílogo:
Dramatis personae:
Cenossélia Secretária
– [Cenossélia] Resolveu?
– [Danilo] Sim.
– [Cenossélia] E?
Pano rápido.