Você está na página 1de 7

Portas ferradas

14 janeiro

Tragicomédia tradutória em três atos e um epílogo. Os nomes foram trocados, mas a história é autêntica.

Antigamente, não tinha Internet: a gente ia ao escritório do cliente. Dá para imaginar? E toda tradução
vinha em papel. Dá para imaginar? E, nas tabelas, para reduzir custos e abreviar prazos, a gente não
digitava os números, só o texto. O “pool” de secretárias do cliente passava tudo a limpo, no papel
timbrado deles, copiando os números do original. Às vezes, o original vinha manuscrito.

Isso tudo para introduzir uma história de que até hoje dou risada. Fui entregar a um cliente um serviço
pronto, mas com uma dúvida. Um item, em um demonstrativo, me escapava ao entendimento: “portas
ferradas”. Que raio é uma porta ferrada?

Levei o serviço ao cliente, uma firma de auditoria, e comecei minha via crucis pelo gerente encarregado
do serviço.

Ato I: Dramatis personae:

Danilo Nogueira, Tradutor,

Genésio Gerente, Gerente de auditoria.

Cenário: sala de gerente de auditoria, papéis por todo lado.

– [Danilo] Genésio, o que são “portas ferradas”?

– [Gerente] (Sem levantar os olhos do papel, para indicar que tinha mais que fazer do que falar comigo)
Eu é que sei?
– [Danilo] Está no relatório da Xpeteosa, com a sua assinatura.

– [Gerente] Eu assinei, mas quem fez foi o Antônio Auditor.

– [Danilo] Pergunta para ele, por favor.

– [Gerente] Está fora, em outro cliente, não posso ligar.

– [Danilo] Bom, então, não posso entregar o serviço.

– [Gerente] O prazo que você deu era hoje.

– [Danilo] Mas se o texto não faz sentido, não posso traduzir.

– [Gerente] Como, não faz sentido?

– [Danilo] “Portas ferradas” não faz sentido.

– [Gerente] Como, não faz sentido? Deixa ver esse troço. Está aqui, claro, letra boa, fácil de ler, só ter boa
vontade, (uma indireta normal, a gente finge que não entende) p-o-r-t-a-s f-e-r-r-a-d-a-s. Entendeu?

– [Danilo] E o que são “portas ferradas”?

– [Gerente] Eu é que sei? Lá sei eu, coisa do cliente. O tradutor é você, cara. Sabe o que é porta, sabe o
que é ferrada? Então, meu, se vira!
– [Danilo] A gente ferra cavalo e burro, não porta.

– [Gerente] Ah, Danilo, se vira, eu estou ocupado.

– [Danilo] Vou falar com o Sérgio Sócio, então.

– [Gerente] Se você conseguir… Ele está em reunião.

Ato II: Dramatis personae:

Danilo Nogueira, Tradutor, e

Cenossélia Secretária,

Cenário: sala de secretária em firma de auditoria, papéis por todo lado.

– [Danilo] Cenossélia, bom dia, preciso falar com o Sérgio Sócio.

– [Cenossélia] Por quê? Não pode. Ele está em reunião com um cliente importante.

– [Danilo] Porque tem uma dúvida no relatório da Xpeteosa.

– [Cenossélia] Que dúvida? Deixa ver que eu resolvo.


– [Danilo] O que são “portas ferradas”?

– [Cenossélia] (Tentando desviar a conversa) Para que você quer saber disso?

– [Danilo] Está no relatório e eu não sei o que é.

– [Cenossélia] Ué, traduz e manda pra frente.

– [Danilo] Não se pode traduzir o que não se entende. É por isso que não traduzo russo: porque não
entendo russo.

– [Cenossélia] Procurou no dicionário?

– [Danilo] Sim, não tem.

– [Cenossélia] Como, não tem? Porta ferrada, não tem? Tem porta, ao menos, esse teu dicionário?
(Depreciar o equipamento ou os conhecimentos do outro, quando não se tem uma resposta, faz parte
do jogo) Tem o verbo ferrar, pelo menos?

– [Danilo] Sim, tem os dois, mas não faz sentido.

– [Cenossélia] Como não faz sentido? “Portas ferradas”, não faz sentido?

– [Danilo] Para mim, não. Para você faz?

– [Cenossélia] Claro!
– [Danilo] Então, me explica.

– [Cenossélia] Você é chato. Vou ter que interromper uma reunião do chefe por tua causa.

– [Danilo] Por minha causa, não. Por causa de quem me entregou um texto sem pé nem cabeça.

– [Cenossélia] O texto está perfeito. Você é que não entende.

– [Danilo] Então, me explica, já pedi.

– [Cenossélia] [No telefone] Dr. Sérgio, o Danilo está aqui, com um problema com o relatório da
Xpeteosa. Diz que não pode entregar sem resolver. … Tá, obrigado. [Para mim] Pode entrar!

Ato III: Dramatis personae:

Danilo Nogueira, Tradutor,

Sérgio Sócio e

Cláudio Cliente, gerente da Xpeteosa.

Cenário: sócio, papéis por todo lado.

– [Danilo] Bom dia, desculpe interromper, tem um trecho aqui no relatório da Xpeteosa que eu não
entendi bem.
– [Sérgio] Opa, você chegou na hora certa. O Cláudio aqui é gerente da Xpeteosa. Se alguém nesse
mundo sabe, é ele mesmo. Pergunta para ele.

– [Danilo] Prazer, Cláudio! Me conta uma coisa, que são “portas ferradas”?

– [Cláudio] Prazer, Danilo! “Portas ferradas”? Não faço ideia. Deixa ver. [Pega o relatório na mão,
examina, dá uma gargalhada.] São porta-ferramentas!

– [Danilo] Ah, obrigado. Porta-ferramentas eu sei o que é.

– [Sérgio] Resolvido? Quando fica pronta a tradução?

– [Danilo] Em coisa de minutos, é só avisar as datilógrafas. Então, até logo e, mais uma vez, obrigado.

Epílogo:

Dramatis personae:

Danilo Nogueira, Tradutor, e

Cenossélia Secretária

Cenário: sala de secretária em firma de auditoria, papéis por todo lado.

– [Cenossélia] Resolveu?
– [Danilo] Sim.

– [Cenossélia] E?

– [Danilo] Eram “porta-ferramentas”, não “portas-ferradas”.

– [Cenossélia] E como é que você não notou?

Pano rápido.

Você também pode gostar