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Marx e crítica à forma salário*

Carlos Prado**

Resumo
O objetivo desse artigo é descrever, a partir da leitura de “O Capital”, a
crítica de Marx a forma salário. Tal categoria é fundamental para encobrir e
mistificar as relações entre capital e trabalho. A partir de uma feroz crítica a
Economia Política, Marx afirma que fetiche da forma salário cumpre a
função de ocultar a apropriação da mais-valia pelo capitalista. Por
conseguinte, trata-se de uma forma fundamental para a manutenção das
relações capitalistas de produção.
Palavras-chave: Salário; Capital; Trabalho; Fetiche.

Abstract
The objective of this article é describe, from reading of “The Capital”, the
Marx`s critique of salary form. This category é crucial to conceal and
mystify the relations between capital and labor. From a fierce critique to
Political Economy, Marx argues that fetish of salary form meet a function to
hide the appropriation of surplus value by the capitalist. Therefore, it’s a
fundamental form to maintenance the production capitalist relations.
Keywords: Salary; Capital; Labor; Fetish.

______________
*
Este trabalho é parte modificada da minha dissertação de Mestrado.

**
CARLOS PRADO é Mestre em Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

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formas aparentes se tornam verdades
incontestáveis. A sociedade capitalista é
cercada por ilusões e formas
fantasmagóricas por todos os seus lados,
dentre as quais a categoria salário
consiste em uma das mais importantes
formas de encobrir e mistificar a
realidade do processo de produção
capitalista.1
A categoria salário é um dos principais
alicerces de sustentação das relações de
produção capitalista. Consiste em um
importante pilar da exploração ao
trabalhador, pois é sobre sua base que se
levanta um mundo encantado de
aparências e ilusões. O objetivo de
Marx é justamente superar essa esfera
cercada de superficialidades e
desmistificar a forma salário.
Ao desvelar a mais-valia, Marx O fetiche da forma salário
demonstrou que a produção capitalista, A relação capital-trabalho surge a
divide a jornada de trabalho em trabalho princípio como uma relação entre dois
necessário e excedente. O trabalho agentes livres, iguais e independentes
gratuito apropriado pelo capitalista que se encontram na esfera do mercado.
negou o princípio da troca entre O salário é a categoria que faz a
equivalentes. Contudo, a consciência mediação estritamente monetária entre
imediata e adormecida, presa as os dois lados envolvidos na troca.
aparências e ilusões fantasmagóricas Segundo Marx (OC Ib, p.127; MEW 23,
não reconhece a exploração e não p.557)2: “Na superfície [Auf der
equivalência estabelecida nas relações
entre trabalho e capital. Presa as formas ______________
1
abstratas, a consciência do trabalhador, “Sobre a forma-salário repousam as mais
não percebe a divisão entre trabalho fantásticas e superficiais ilusões acerca da
igualdade e da liberdade na sociedade
necessário e excedente, não compreende capitalista. Desmistificar a forma-salário,
que parte da sua jornada é apropriada revelar sua natureza falsa e enganosa significa,
pelo capitalista na forma de trabalho ao mesmo tempo, desmistificar toda a superfície
gratuito. Para a compreensão dessa da ideologia do capital.” (ANTUNES, 2005,
problemática é fundamental a p.401).
2
As referências de “O Capital” serão citadas no
investigação em torno da forma salário. texto da seguinte forma: a) MARX, Karl. O
Marx identifica que é o fetiche da forma Capital: crítica da economia política. V. I: O
salário que encobre a dualidade da processo de produção do capital. São Paulo:
jornada de trabalho, esconde e apaga as Abril Cultural, 1983, será citado no corpo do
horas de trabalho gratuito fornecidas texto como OC Ia, seguido pelo número da
página. b) MARX, Karl. O Capital: crítica da
pelo trabalhador ao capitalista. economia política. V. II: O processo de
produção do capital. São Paulo: Abril Cultural,
Do Fetiche da mercadoria, do dinheiro e 1984, será citado no corpo do texto como OC
do salário, surge à desfiguração da Ib, seguido pelo número da página. c) MARX,
realidade e, para a consciência imediata, Karl. Das Kapital. In: MARX, Karl; ENGELS,

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Oberfläche] da sociedade burguesa, o mercado, ele não possui valor, não é
salário do trabalhador aparece mercadoria e não pode ser trocada.
[erscheint] como preço do trabalho, É sobre essa questão que Marx
como um quantum determinado de
desenvolveu uma importante crítica a
dinheiro pago por um quantum
Economia Política, pois esta, não foi
determinado de trabalho.” O salário
capaz de perceber que no mercado não
enquanto valor do trabalho, enquanto
se relacionam trabalho e capitalista, mas
mediação monetária desperta no
sim, trabalhador e capitalista. O
trabalhador a ilusão de que o pagamento
trabalhador quando vai ao mercado não
que ele recebe é o quantum
vende o seu trabalho, mas sim, a sua
determinante pago pela sua jornada de
força de trabalho. Segundo Marx:
trabalho.
A Economia Política clássica tomou
Essa mistificação cria a ilusão de que o de empréstimo à vida cotidiana,
trabalho é a mercadoria que o operário sem maior crítica, a categoria
aliena no mercado. O salário aparece “preço do trabalho”, para
nessa relação como a categoria que perguntar-se depois, como se
determina o respeito à troca de determina esse preço. [...] o que ela
equivalentes, na qual os dois valores se chama de valor do trabalho (value
defrontam e se equivalem. Portanto, o of labour) é na realidade o valor da
salário forja uma ilusão na qual a troca força de trabalho que existe na
entre não-equivalente apareça como personalidade do trabalhador e
difere de sua função, o trabalho,
uma troca entre equivalente e, portanto,
tanto quanto uma máquina de suas
fundamentada os princípios da operações. (OC Ib, p.129; MEW
igualdade entre trabalhador e capitalista. 23, p.559-600).
A ilusão de que o salário regula uma É sobre a confusão entre os conceitos de
troca entre equivalentes, se fundamenta trabalho e força de trabalho que repousa
na afirmação de que o salário é o mais uma crítica de Marx à Economia
quantum correspondente ao valor do Política clássica de Smith e Ricardo. A
trabalho. Ora, o trabalho é a medida do força de trabalho é a capacidade que o
valor, portanto, não é uma mercadoria trabalhador tem para realizar um
que pode ser levada ao mercado. “Tão trabalho, portanto, é trabalho não
logo seu trabalho realmente começa este materializado. Por outro lado, o trabalho
já deixou de pertencer-lhe e, portanto é a ativação, a realização desta
não pode mais ser vendido por ele. O capacidade de trabalhar. A mercadoria
trabalho é a substância e a medida que o trabalhador oferta no mercado é a
imanente dos valores, mas ele não tem sua força de trabalho e não o seu
valor.” (OC Ib, p.128; MEW 23, p.559). trabalho.
Logo, o trabalho não pode ser vendido
como mercadoria. Ele é apenas a O trabalho é o valor de uso da
substância e à medida que determina os mercadoria força de trabalho. A força de
valores das mercadorias, pelo tempo trabalho enquanto mercadoria não é
médio necessário para a produção. O valor de uso para o trabalhador e por
trabalho não pode ser levado ao isso, ela é alienada no mercado, muda
de mãos, não pertence mais ao
trabalhador, mas sim, ao capitalista. O
salário jamais poderá ser valor do
Friedrich: Werke (Band 23). Berlim: Dietz
Verlag, 1968, será citado no texto como MEW trabalho, pois, o trabalho a ser realizado
23, seguido pelo número da página. já não pertence ao trabalhador.

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O grande mérito de Marx ao penetrar no se transformado no tempo é apenas a
íntimo das relações de produção forma como se viabiliza a apropriação
burguesa foi compreender a produção de trabalho gratuito pela classe
da mais-valia. O salário enquanto dominante. Para identificar as diferentes
mediação monetária da relação capital e formas que a exploração adquire no
trabalho provoca uma mistificação e capitalismo, Marx confronta os
esconde para a consciência dos homens diferentes modos de produção e alcança
a diferença entre trabalho e força de as suas particularidades.
trabalho. A categoria salário cumpre um
importante papel entre as diversas Marx salienta que durante a idade média
categorias aparentes da sociedade as relações entre suserano e vassalo
produtora de mercadorias. “A forma eram claras, pois o servo sabia
salário extingue [löscht], portanto, todo exatamente quanto trabalhava para ele e
vestígio da divisão da jornada de quanto estava trabalhando para o senhor
trabalho em trabalho necessário e mais- feudal. A relação entre camponês e
trabalho, em trabalho pago e trabalho senhor feudal é clara e direta, pois não
não pago. Todo trabalho aparece se baseia em formas fantasmagóricas. A
[erscheint] como trabalho pago.” (OC relação feudal era mediada por uma
Ib, p.130; MEW 23, p.562). Ao receber série de impostos que o vassalo pagava
3 xelins pela jornada de trabalho diária, ao seu suserano. O primeiro deles é a
o operário pensa estar recebendo por Talha que determinava a obrigação de
toda a jornada de 12h. A exploração do entregar ao dono do feudo uma parte
capitalista, às 6 horas de trabalho não das colheitas e certo número de animais
pagas desaparecem das relações entre do rebanho. O segundo é a Corvéia,
operário e patrão, desaparece a dever de trabalhar três dias por semana,
apropriação de trabalho gratuito. gratuitamente, nas terras do senhor e,
ainda prestar outros serviços.
Toda essa mistificação da forma salário
vela pela igualdade na medida em que “Na corvéia distinguem-se espacial e
encobre a exploração do capitalista temporalmente, de modo perceptível
sobre o trabalhador. O salário esconde e para os sentidos [handgreiflich
oculta à dualidade da jornada de sinnlich], o trabalho do servo para si
trabalho, forjando uma aparência de que mesmo e seu trabalho forçado para o
a troca entre operário e patrão se senhor da terra.” (OC Ib, p.130; MEW
fundamenta numa troca entre 23, p.562). As relações sociais de
equivalentes. Dessa maneira, o fetiche trabalho, mesmo sendo abençoadas
da forma salário cria para a consciência pelos dogmas do catolicismo, não são
imediata e alienada do trabalhador uma tomadas por formas fantasmagóricas e
falsa noção de igualdade na relação com mistificadoras. O vassalo tinha pleno
o capital. É pela forma salário que a conhecimento que determinado
extração de mais-valia é ocultada ao quantum do seu trabalho lhe era
trabalhador, encobrindo a apropriação roubado, ele sabia exatamente que uma
de trabalho sem equivalência. parte do seu trabalho lhe pertencia e que
outra era entregue ao seu senhor
A partir dessa análise, Marx destaca a
gratuitamente. As relações feudais não
particularidade histórica do modo de
estão encobertas por ilusões, mas, se
produção capitalista. O conteúdo da
realizam as claras e são perceptíveis
história da luta de classes é a exploração
tanto ao camponês, como ao senhor.
de uma classe sobre a outra. O que tem

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Na sociedade burguesa essa mesma determinante a toda a sua jornada de
realidade se repete na produção da trabalho. Ambas as formas de trabalho
mais-valia. Todavia, a consciência do são mistificadas por categorias forjadas
trabalhador presa às aparências acredita no interior do próprio processo de
vender ao capitalista o seu trabalho e produção. Por um lado, o trabalho
não sua força de trabalho, por isso, escravo é mistificado pela relação de
também acredita que está envolvido em propriedade estabelecida, na qual o
uma relação na qual reina apenas a escravo não é livre, por outro lado, o
liberdade e a igualdade. As relações operário livre juridicamente tem sua
mistificadas pelo fetiche do salário escravidão encoberta pela forma
impedem o trabalhador de reconhecer monetária do dinheiro, pelo salário que
que entrega parte de sua jornada aparece como o pagamento por toda sua
gratuitamente ao capitalista. jornada. Marx evidencia esse processo:
Sobre essa forma de manifestação
Marx também defronta a sociedade
[Erscheinungsform], que torna
capitalista com a sociedade invisível a verdadeira relação
escravocrata. A primeira vista, o [wirkliche Verhältnis] e mostra
trabalho do escravo é todo apropriado justamente o contrário [Gegenteil]
pelo seu proprietário e, portanto, o dela, repousam todas as concepções
escravo não fica com nenhuma parte do jurídicas tanto do trabalhador como
seu trabalho. Todavia, o trabalho do do capitalista, todas as
escravo não se difere do trabalho do mistificações [mystifikationen] do
servo ou do operário. Marx afirma que: modo de produção capitalista, todas
“No trabalho escravo, a parte da jornada as suas ilusões de liberdade
de trabalho em que o escravo apenas [freiheitsillusionen], todas as
pequenas mentiras apologéticas da
repõe o valor de seus próprios meios de
Economia vulgar. (OC Ib, p.130;
subsistência, em que, portanto, MEW 23 p.562)
realmente só trabalho para si mesmo,
aparece como trabalho para seu dono.” O salário funciona como uma nuvem de
(OC Ib, p.130; MEW 23, p.562). O fumaça que encobre as vistas do
escravo também tem sua jornada de operário e o impede de enxergar que o
trabalho dividida em necessária e seu salário não corresponde ao
excedente, pois ele não é alienado de pagamento de toda sua jornada.
todo seu trabalho, afinal, uma parte Também aos olhos do capitalista a
retorna na forma de seus meios de mais-valia, o trabalho não pago, é
subsistência sem os quais ele não pode encoberto pela ilusão da forma salário.
prover a sua reprodução. O capitalista explica o seu
enriquecimento por meio da compra de
Como o escravo é juridicamente uma mercadoria abaixo do valor e da
propriedade de um senhor e não recebe sua posterior venda acima do valor pelo
salário pelo seu trabalho, na sua qual foi adquirido anteriormente. Para o
consciência imediata todo o seu capitalista o seu enriquecimento não
trabalho aparece como trabalho não tem sua gênese na dualidade da jornada
pago. Com o operário ocorre justamente de trabalho, pelo contrário, para ele o
o mesmo processo, porém, em sentido seu lucro não é outra coisa senão,
inverso. O operário, não é propriedade resultado de sua ardilosa capacidade
de seu patrão, portanto, ele é para o comércio. O capitalista “Por isso,
juridicamente livre e acredita receber não chega a compreender que, se
por meio do salário o quantum existisse realmente algo como valor do

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trabalho e se ele pagasse realmente esse Salário por tempo
valor, não existiria nenhum capital e seu
dinheiro não se transformaria em Depois de investigar as particularidades
capital.” (OC Ib, p.131; MEW 23, mais gerais da categoria salário, Marx
p.564). avança para o exame de algumas
peculiaridades das diferentes formas
O fetiche da forma salário desconfigura que o salário pode assumir. A produção
e distorce o mundo real construindo um de mercadorias desenvolveu no interior
mundo de aparências e, é justamente da fábrica, variadas formas de salário.
esse mundo de ilusões que é tomado Marx destacou que sua obra não poderia
como verdadeiro e real. Eis a faculdade investigar detalhadamente cada uma
do fetiche que transforma aparências em dessas diferentes formas e, portanto, se
verdades e ilusões em realidade. No dedicaria respectivamente a
entanto, não é o capitalista que investigação das duas formas
conscientemente forjou esse mundo de predominantes do modo de produção
cabeça pra baixo. Afinal, o fetiche da capitalista: o “salário por tempo” e o
mercadoria, do dinheiro e do salário não “salário por peça”.
engana apenas a consciência do
operário, mas também o próprio Quando o capitalista compra a força a
capitalista. Segundo Marx (OC Ib, força de trabalho de um operário no
p.138; MEW 23, p.572): “somente a mercado, sempre a compra por um
aparência [Schein] das relações de determinado período de tempo que é
produção se reflete no cérebro do acordado entre ambas as partes
capitalista. O capitalista não sabe que o envolvidas no processo de troca.
preço normal do trabalho também Surgem então, as formas “salário por
encerra determinado quantum de hora”, “salário diário”, “salário
trabalho não-pago e que esse trabalho semanal”, “salário mensal”, etc.
não-pago é a fonte normal do seu
lucro.” A primeira vista o valor do salário por
tempo parece ser determinado pela
O burguês também desconhece os variação do tempo da jornada de
mecanismos pelos quais se desenvolve e trabalho, contudo, o valor do salário por
realiza a exploração do trabalho alheio. tempo é determinado em última
Na consciência do capitalista o salário é instância pela variação do preço do
justo e seu valor corresponde a toda trabalho e, não pela extensão da jornada
jornada realizada pelo trabalhador, ele de trabalho. A unidade de medida do
também não reconhece a dualidade da salário por tempo é o preço da hora de
jornada de trabalho. A categoria salário trabalho. As relações de produção
tem a propriedade de mistificar as capitalista evidenciam que o aumento
relações de produção não apenas para o da jornada de trabalho proporciona, ao
operário, mas também para o capitalista. contrário do que se imagina a redução
Tanto aos olhos do capitalista como do valor da hora de trabalho. Isso quer
para o trabalhador esse processo de dizer que trabalho e salário estão na
troca mediado pelo salário aparece razão inversa, pois mais trabalho
como natural, como justo e de acordo significa para o operário menos salário,
com a troca de equivalentes, ou seja, pois cai o valor de sua hora trabalhada.
dentro dos limites da igualdade, no qual “É um fato geralmente conhecido que,
o operário recebe o quantum quanto mais longa a jornada de trabalho
determinado pelo seu trabalho. num ramo industrial, tanto mais baixo é

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o salário.” (OC Ib, p.136; MEW 23, ilusões de que o salário por tempo é
p.570). determinado pela duração da jornada de
trabalho.
Marx observou que as fábricas com as
jornadas de trabalho mais prolongadas O salário por tempo não repousa sobre
eram respectivamente as que pagavam o uma base fixa, ou seja, o tempo que o
menor preço da hora de trabalho. capitalista ocupa a força de trabalho do
Portanto, para compensar esse baixo operário pode ser completamente
valor da hora de trabalho o operário tem variável. Essa indeterminação da
que trabalhar para além das 12 horas jornada de trabalho acarreta drásticas
diárias, para somente assim, conseguir conseqüências ao trabalhador. O
garantir a sua sobrevivência. Segundo capitalista tem toda a liberdade para
Marx “quanto mais baixo o preço do ocupar a força de trabalho do operário
trabalho, tanto maior precisa ser o apenas pelo tempo que lhe agrade, de
quantum de trabalho ou tanto mais acordo com seu interesse momentâneo.
longa a jornada de trabalho, a fim de “O capitalista pode agora extrair
que o trabalhador assegure ao menos determinado quantum de mais-trabalho
um parco salário médio.” (OC Ib, p.136; do trabalhador, sem conceder-lhe o
MEW 23, p.570). Por isso é comum que tempo de trabalho necessário para seu
operários realizem duas jornadas diárias próprio sustento.” (OC Ib, p.135; MEW
de trabalho. O trabalhador pode dividir 23, p.568).
a sua jornada de trabalho entre dois O salário por tempo é mais uma clara
capitalistas, trabalhando em dois manifestação da liberdade do capital
empregos. Isso se torna uma para explorar a classe trabalhadora.
necessidade para o operário, pois pode Mais uma vez se evidencia a liberdade
ser o único meio de alcançar um salário para o capital e a não-liberdade, a
médio. Nesses casos a sua jornada de submissão do operário aos ditames do
trabalho não encontra limites e capitalista. O trabalhador só receberá o
geralmente ultrapassam às 12h diárias. valor correspondente ao número de
horas de trabalho que o capitalista
Está claro que o aumento da jornada de
realmente precise. O capitalista garante
trabalho, longe de garantir um melhor
que a sua produção será regularizada
salário ao trabalhador e melhorar sua
sem nenhum desperdício, não pagará
qualidade de vida, age pelo contrário, na
nenhuma hora além do necessário. Por
proporção inversa, pois significa a
outro lado, o operário se vê numa
redução do preço da hora de trabalho.
situação completamente inversa, sem a
Na nota de rodapé 41, Marx comprova
garantia de uma jornada fixa, ele não
suas conclusões, destacando um fato
tem a certeza de que conseguirá receber
concreto. Eis a passagem: “Os
o suficiente para satisfazer as suas
trabalhadores que fazem pregos a mão,
necessidades.
na Inglaterra, por exemplo, em virtude
do baixo preço do trabalho, têm de Nesse ponto da exposição, Marx faz
trabalhar 15 horas por dia para uma inserção histórica e a luta de
conseguir um salário semanal dos mais classes é destacada. Em 1860, na cidade
parcos.” (OC Ib, p.136; MEW 23, de Londres, os trabalhadores do ramo
p.570). A análise do preço do trabalho da construção se revoltaram contra seus
determinado pela divisão entre valor patrões, quando estes tentaram impor-
diário da força de trabalho pela jornada lhe o salário por hora. A luta pelo
de trabalho supera as aparências e salário é a luta de classes. É em torno da

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categoria salário que patrão e operário forma no pagamento do salário em nada
se digladiam na defesa de seus altera sua essência [Wesen], ainda que
interesses mais imediatos. O salário uma forma possa ser mais favorável que
deixa evidente o antagonismo entre as a outra para o desenvolvimento da
classes envolvidas no processo de produção capitalista.” (OC Ib, p.140;
produção capitalista. MEW 23, p.575).
Marx defende a revolta dos Na forma mais aparente, o salário por
trabalhadores como “absolutamente peça é o pagamento exclusivamente ao
racional” e afirma que: “A limitação que o operário produziu. O salário
legal da jornada de trabalho põe fim a corresponde assim, a produtividade do
esse abuso, porém, naturalmente, não à trabalhador, ao número de mercadorias
subocupação decorrente da concorrência por ele produzidas. O salário por peça
da maquinaria, das mudanças na aparece como o pagamento ao trabalho
qualidade dos trabalhadores concreto, ao trabalho já objetivado na
empregados e das crises parciais e mercadoria, encobrindo e mistificando a
gerais.” (OC Ib, p.135; MEW 23, verdadeira relação, ou seja, o salário
p.569). Essa passagem evidencia que a como valor correspondente à força de
conquista de uma jornada de trabalho trabalho do operário. “O salário por
limitada legalmente é apenas uma peça parece, à primeira vista, como se o
vitória parcial para os trabalhadores, valor de uso vendido pelo trabalhador
pois se por um lado significa a não fosse função de sua força de
ampliação de direitos, por outro lado, trabalho, trabalho vivo, mas trabalho já
significa a perpetuação da ordem objetivado no produto [...]” (OC Ib,
capitalista. Diante da pressão da classe p.139; MEW 23, p.574).
trabalhadora por melhores condições de
vida, o capital se vê constantemente O pressuposto de Marx comprova que a
incumbido de ampliar direitos aos forma salário por peça não é nada além,
trabalhadores, fazendo concessões de uma forma modificada do salário por
parciais. tempo. Supõe-se que durante uma
jornada de 12 horas, o operário que
Salário por peça trabalhou com o grau médio de
intensidade, gastando apenas o tempo
A exposição avança agora, para a
de trabalho socialmente necessário na
investigação do salário por peça. Trata-
produção, produziu 24 peças. O valor de
se de outra forma mistificada que o
cada peça por ele produzida será de 1
salário pode assumir na sociedade
1/5 pêni, quer dizer que pelas 24 peças
capitalista. “O salário por peça nada
produzidas em 12 horas de trabalho, o
mais é que uma forma metamorfoseada
operário receberá um salário de 3
[verwandelte] do salário por tempo, do
xelins. A consciência imediata do
mesmo modo que o salário por tempo é
trabalhador não reconhece que o valor
a forma metamorfoseada [verwandelte]
de 12 peças ou 6 horas de trabalho
do valor ou preço da força de trabalho.”
repõe o valor da sua força de trabalho,
(OC Ib, p.139; MEW 23, p.574). O
enquanto que nas outras 12 peças se
salário por tempo e o salário por peça,
corporifica a mais-valia. Apesar de
apesar de parecerem formas diferentes,
algumas particularidades, em todas as
na realidade são apenas variações que
suas metamorfoses a categoria salário
preservam a mesma essência
preserva a forma mistificadora e
mistificadora e aparente. “Em si e para
ilusória.
si fica claro, porém, que a diferença de

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Sob a forma do salário por peça, o trabalho diário, então se o despede.”
operário é enganado por formas (OC Ib, p.141; MEW 23, p.576). O
fantasmagóricas, pensa estar recebendo controle que o capitalista adquire sobre
de acordo com o número de o tempo médio para a produção de cada
mercadorias que produziu, pensa peça é mais um elemento que possibilita
receber o valor de todas as peças por ele o exercício do seu despotismo no
produzidas. Não reconhece que seu interior da esfera produtiva.
salário corresponde ao valor de sua
Controlando o tempo para a produção
força de trabalho, mas pelo contrário,
de cada peça, o capitalista submete
pensa que seu salário corresponde ao
todos seus operários a uma incessante
seu trabalho objetivado, como se o
luta contra as batidas do relógio.
capitalista comprasse as peças por ele
Controla a intensidade do trabalho de
produzidas.
cada operário e se ele é qualificado
O salário por peça apresenta algumas como insuficiente, por gastar na
particularidades, que a diferenciam do produção de uma peça, um tempo mais
salário por tempo, que são atrativos para elevado do que a média social, então
que os capitalistas optem por está forma este operário não tem lugar no interior
de salário, pois ela encerra uma série de da fábrica e é substituído por um
benefícios e vantagens; evita trabalhador que produza com maior
desperdícios, aumenta a intensidade e a intensidade.
produtividade e, ainda implica no O salário por peça também possibilita o
rebaixamento da força de trabalho. chamado subarrendamento do trabalho.
Marx destaca que “o salário por peça se Segundo Marx trata-se de “um sistema
torna a fonte mais fecunda de descontos hierarquicamente organizado de
salariais e de fraudes capitalistas.” (OC exploração e opressão [eines
Ib, p.140; MEW 23, p.576). Todas as hierarchisch gegliederten Systems der
peças produzidas pelos trabalhadores Exploitation und Unterdrückung].” (OC
precisam possuir uma qualidade média Ib, p.141; MEW 23, p.577). O
e, somente por estas peças o operário subarrendamento do trabalho se
receberá o pagamento. Se alguma peça caracteriza pela presença de
estragou durante o processo de intermediários entre o capitalista que
produção ou teve sua qualidade compra a força de trabalho e o operário
prejudicada de alguma maneira, deverá, que a vende. Nesse sistema, o capitalista
ser descontada do salário do operário. que precisa de determinadas peças
Tal processo amplia a liberdade que o estabelece um contrato apenas com um
capitalista exerce no interior da fábrica, trabalhador e, fecham um acordo
amplia o seu despotismo sobre o estabelecendo o valor X por peça. Este
trabalhador. trabalhador, por sua vez, é o
intermediário que contratará outros
Além disso, a experiência no interior da
trabalhadores auxiliares para a
fábrica possibilita ao capitalista ter o
conclusão das peças.
controle exato sobre o tempo
socialmente necessário para a produção “A exploração dos trabalhadores pelo
de cada peça. Com a intensidade do capital se realiza aqui mediada
trabalho controlada pelo capitalista [vermittelst] pela exploração
ocorre que “Se o trabalhador não possui [exploration] do trabalhador pelo
a capacidade média de produção, não trabalhador.” (OC Ib, p.141; MEW 23,
pode fornecer determinado mínimo de p.577). O sistema manufatureiro criou a

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hierarquização entre a classe proporção o seu salário. Afinal, na sua
trabalhadora, rompeu com a igualdade consciência imediata quanto maior o
entre os próprios operários e número de peças por ele produzidas,
proporcionou a exploração e submissão maior será o seu salário.
de uns pelos outros. O subarrendamento
do trabalho é mais um desdobramento Segundo, para aumentar o seu salário
do sistema hierárquico forjado pela diário ou semanal o operário também
manufatura. acaba por aumentar a sua jornada de
trabalho, para assim, produzir um
Eis uma importante característica do número maior de peças. Segundo Marx
salário por peça. Ele proporciona que, (OC Ib, p.141; MEW 23, p.578): “é
mediante essa intermediação, a extração interesse pessoal do trabalhador
da mais-valia se realize de uma nova prolongar a jornada de trabalho, pois
forma, intermediada por outro com isso sobe seu salário diário ou
trabalhador e não diretamente pelo semanal.” No entanto, ele nos alerta que
capitalista, pois os trabalhadores “o prolongamento da jornada de
contratados pelo arrendatário não trabalho, mesmo permanecendo
estabelecem qualquer vínculo com o constante o salário por peça, implica em
capitalista. “O ganho dos intermediários si e para si uma baixa de preço do
[Zwischenpersonen] decorre trabalho.” (OC Ib, p.142; MEW 23,
exclusivamente da diferença entre o p.578).
preço do trabalho que o capitalista paga
Diferentemente do salário por tempo,
e a parte desse preço que eles realmente
onde todos os operários recebem o
deixam chegar ao trabalhador.” (OC Ib,
mesmo salário por uma jornada de
p.141; MEW 23, p.577). Isso quer dizer
trabalho de 12 horas, onde se adota o
que uma parte do trabalho não-pago é
salário por peça predomina as
apropriado pelo intermediário e a outra
diferenciações individuais devido aos
fatia fica nas mãos do capitalista.
diferentes níveis de habilidade, força e
O salário por peça encerra uma série de intensidade entre os trabalhadores. Quer
vantagens ao capitalista, pois está forma dizer que mesmo todos os trabalhadores
variada da forma salário, acaba por realizando uma jornada de 12 horas, o
fazer com que os trabalhadores, por salário diário de cada um apresenta
interesse próprio aumentem a produção, diferenciações, provocando uma
sem ser necessária a coerção do concorrência entre eles. Na aparência o
capitalista. Uma fábrica que adota a salário por peça é o pagamento por um
forma salário por peça tem sua determinado quantum de peças
produção elevada em dois sentidos. produzidas pelo operário. Por isso, à
Primeiro, pelo aumento da intensidade primeira vista o trabalhador que produz
do trabalho, pois, como argumenta um número maior de peças, recebe um
Marx “é naturalmente do interesse salário mais elevado do que o
pessoal do trabalhador aplicar sua força trabalhador menos habilidoso que
de trabalho o mais intensamente produz um número menor de peças.
possível, o que facilita ao capitalista Essa forma também reforça a ilusão de
elevar o grau normal de intensidade.” que o salário é o pagamento do trabalho
(OC Ib, p.141; MEW 23, p.578). O e não dá força de trabalho.
trabalhador se esforça ao máximo e [...] a maior liberdade que o salário
aumenta a intensidade do seu trabalho por peça oferece à individualidade
objetivando aumentar na mesmo tende a desenvolver, por um lado, a

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individualidade [Individualität], e e o rebaixamento dos salários. Na
com ela o sentimento de liberdade medida em que se aumenta a produção
[Freiheitsgefühl], e independência e de peças em uma jornada de trabalho, o
autocontrole [Selbständigkeit und valor pago por cada peça cai e, portanto,
Selbstkontrolle] dos trabalhadores;
o salário diário ou semanal do
por outro lado, a concorrência entre
eles e de uns contra os outros. (OC
trabalhador continua inalterado, mesmo
Ib, p.142; MEW 23, p.579). com o aumento da produtividade.

Portanto, a forma do salário por peça Nesse ínterim, mais uma vez a luta de
desenvolve a noção para operário de classes é revelada e destacada por Marx.
liberdade e de individualidade, de Ele evidencia a luta dos trabalhadores
maneira com que pareça que o próprio contra o rebaixamento do preço do
trabalhador determina o seu salário. trabalho devido ao aumento da
Sobre está forma mistificada da qual o produtividade. Em nota de rodapé,
preço ou valor da força de trabalho se Marx cita e descreve casos históricos
transforma em salário por peça, repousa nos quais os trabalhadores organizados
os alicerces da noção de liberdade e em torno das Trade Unions reivindicam
igualdade no chão da fábrica. Preso a seus direitos, cobrando principalmente o
essas formas aparentes, os aumento dos salários de acordo com o
trabalhadores, assim como os aumento da produção. A luta em torno
capitalistas não percebem que todas dos salários é a prova de que as formas
essas formas mistificadas do salário aparentes da produção capitalista
apenas encobrem uma parte de trabalho também podem ser superadas e negadas.
não-pago. Os trabalhadores aumentam a
jornada e a intensidade do trabalho não Referências
devido à coerção direta exercida pelo
ANTUNES, Jadir. Da possibilidade à
patrão, mas por interesse próprio, assim, realidade: o desenvolvimento dialético das
as longas jornadas e a estafa parecem crises em O Capital de Marx. Campinas:
ser resultado da própria liberdade do Unicamp/IFCH (Tese de Doutoramento em
trabalhador e não das relações Filosofia), 2005.
contraditórias entre capital e trabalho. ______. Das Kapital: Kritik der politischen
ökonomie. In: MARX, Karl; ENGELS,
Analisando todas essas particularidades Friedrich: Werke (Band 23). Berlim: Dietz
e vantagens que o salário por peça Verlag, 1968.
proporciona ao capitalista, Marx conclui
______. O Capital: Crítica da Economia
que “o salário por peça é a forma de Política. Tradução de Régis Barbosa e Flávio R.
salário mais adequada ao modo de Kothe. Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril
produção capitalista.” (OC Ib, p.142; Cultural, 1983.
MEW 23, p.580). Fazendo referencias ______. O Capital: Crítica da Economia
aos famosos “Livros Azuis”, Marx Política Tradução de Régis Barbosa e Flávio R.
demonstra documentos que evidenciam Kothe. Vol. I, Tomo 2. São, Paulo: Abril
o prolongamento da jornada de trabalho Cultural, 1984.

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