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CAPA

VÔOS
GIORGIO GASPARRO
VÔOS

GIORGIO GASPARRO
VÔOS
1ª EDIÇÃO

GIORGIO GASPARRO
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SUMÁRIO

Capa ................................................................ 1
Introdução ......................................................... 7
Egito ............................................................... 12
Palestina .......................................................... 30
Itália ............................................................... 50
Mundo novo...................................................... 69
Quarta capa ...................................................... 79
O homem pode crer sem culpa em qualquer doutrina,
mas se nela um dia perceber confusões e contradições,
tem o dever de indagar para esclarecê-las. Assim dará o
primeiro passo no caminho da perfeição.
INTRODUÇÃO

Existe uma virtude indefinida que eleva a inteligência


consciente a penetrar uma atmosfera rara cujo efeito é uma
viagem maravilhosa. Nesta conjuntura, o corpo permanece
sentado à escrivaninha, insensível aos estímulos distrativos,
olhos arregalados perante uma superfície monocroma; a ima-
ginação projeta as figuras os ambientes dos evos passados,
futuros. Às vezes o corpo, deles experimenta sensações. A
segunda da opinião do indivíduo, a imaginação pode ser clas-
sificada de visão, inspiração de qualquer procedência.
Quais pessoas empreendem esta viagem, parece fácil
dizer: o prisioneiro perpétuo, cansado de desejar a liberdade,
emigra com o pensamento além das grades e revive eventos
ocorridos em liberdade.
O cientista, forçado a uma cadeira mecânica por uma
rara doença, mas que lhe preserva a inteligência penetrante,
se adentra nos espaços cósmicos, observa os “Buracos negros”
para saber deles o procedimento e as funções naturais, perce-
bendo assim os desígnios da mente criativa. Depois, já cansa-
do por tanta especulação, desce à realidade presente, chama
a si a graciosa enfermeira e com arte sapiente, tanto a afaga e
a beija da farla gozar a fim de que lhe retribua um inusitado
prazer ao seu corpo imóvel.
O rato de biblioteca, exaltado com os feitos de dom
Quixote, chega a acreditar-se também herói atual que enfrenta
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o capitalismo mundial em Wall Street, os socialismos matiza-


dos na praça de Moscou, e destes vence facilmente os partidá-
rios. Existe, também, um indivíduo que pode ser chamado “a
flor da cimieira”. É o impaciente, o nervoso, que não tolera a
ignorância e o raciocínio errôneo, que arrisca o enfarte a cada
manifestação destas. O insatisfeito voa altíssimo nas estradas
do indefinido, perto da nuvem divina que imagina satura de
conceitos vaporosos, que radia inspiração e sentimento. Satis-
feito, repleto de plenitude divina, plana docemente como
condor andino, sobre as cenas dos grandes acontecimentos de
todos os tempos. Então torna-se audaz, até arrogante.
Com o indicador em riste, ergue-se contra o cônsul ro-
mano e o apóstrofa: “César general, invicto, levaste entre os
muros de Roma com a glória dos teus feitos, os germes da
desagregação.” Proclama Rodrigo Bórgia “Vergonha de Pedro,
fermento maléfico”. Duvida de alguns profetas e escribas cria-
dores de religiões diferentes em torno do mesmo e único per-
sonagem; escritas e religiões causas de discórdias sanguinosas.
Enfim, o insatisfeito encontra a paz. Na sua imaginação,
distingue a pomba bíblica que tem no bico o ramo de oliveira
e, a mais, entre os patinhas, o verde louro, neste caso, símbo-
lo da glória perene. Mas não se peça onde a pomba encon-
trou os novos auspícios, se tudo foi destruído da violência
dos elementos e submerso do dilúvio.
A cultura ajuda a “viajar” acima de tudo as histórias, as
crônicas, as ciências novas aplicadas pelo pensador original à
imaginação popular. A cinematografia muito mais; intelectos
elevados se valem de diálogos eficazes de intérpretes expres-
sivos, de músicas sugestivas, para despertar nos espectadores
a comoção e a perspectiva de possíveis verdades insuspeitadas.
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De fato, a visão do profeta antigo composta com pobre mate-


riais mnemônicos amealhados em sua vida, não é superior a
uma cena cinematográfica de uma obra-prima, composta com
os conhecimentos de cultos e refinados artistas. É inegável a
forte impressão causada pela presa em “primo piano” de um
detalhe. A cinematografia é um meio para instruir rapida-
mente espectadores de ignorância atávica criados juntos aos
ingênuos carneirinhos da família.
Onde a cultura se difunde e induz à reflexão, as mentes
modificam as convicções. Assim, a consideração do homem a
respeito da personalidade divina é muito melhor das de sécu-
los passados. Hoje, é inaceitável um Deus iracundo, castigador,
partidário de um povo em dano de outro cujo rei foi insisten-
temente e mal aconselhado pelo mesmo Deus. A fé admite, a
razão nega. Por brevidade pode-se dizer: Deus é pessoa alta-
mente racional, equilibrada, portanto dedutível. O homem
deve sempre procurar a verdade com o exercício do espírito
pensante que Deus mesmo lhe deu. Porque o mito pode ser
uma fábula mesclada a lembranças atávicas; uma visão, uma
sarabanda de fantasias projetadas no espaço e de impressões
violentas que até tangem a carne e convencem a consciência.
Ao contrário, o fato documentado e provado pode ser sem-
pre examinada com os sentidos, incluída nos cânones da ex-
periência comentada de qualquer mente equilibrada.
Agora, cada espírito pode sobrevoar a república confe-
derada das histórias e das ciências, considerá-las longamente
e formular o próprio e consciencioso juízo. Ele não é mais
obrigado a aceitar subitamente as nações inculcadas desde o
tempo da inconsciência, por alguns doutores por motivos con-
tingentes. É o impulso que nasce com o terceiro milênio. Nada
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de extraordinário, puro e simples exercício do livre arbítrio


sem constrangimentos e medos.
Então, quais virtudes o bom senso atual reconhece à per-
sonalidade divina além daquelas da eternidade, da omnisciên-
cia, ubiquita etc., virtudes compreensíveis, mas que nenhum
pensador procurou explicar aos indagadores. Pode-se dizer
que Deus é dinâmico: continua incansável a criar ou seja pen-
sa, define, realiza uma obra bem definida que parece não ter
fim. E vai entre nuvens de energia e de matéria no cosmo, que
fazem pensar a reservas de materiais a serem aspiradas por
fenômenos e formar novos mundos no ilimitado canteiro de
obra. Pode-se acrescentar que ele é extremamente racional e
conseqüente, basta pensar à singularidade mencionada por
Hawking. Desta tiveram origem inúmeras leis físicas que re-
gem a realidade, outra impossíveis de definir, podem de im-
proviso, mudar estados naturais, situações complexas e co-
meçar um novo “divenire”.
Esta última possibilidade é uma espécie de reserva de
manobra estabelecida por uma inteligência irrequieta e
imprevisível. Sobre esta racionalidade divina, a reflexão hu-
mana tem que insistir para saber o motivo, a evolução, o fu-
turo da criação e esquecer as historietas tradicionais. Pode-se
afirmar que Deus é rico de sentimentos porque são os senti-
mentos que excitam a criatividade, é moral pois impõe-se
limites definidos entre os quais relaciona-se igualmente com
as suas criaturas sem determinar prerrogativas.
É convicção universal que as virtudes foram conferidas
ao homem com a fórmula bíblica: “Fazemos o homem a nossa
imagem e semelhança”. É difícil achar uma explicação
satisfatória em termos vulgares. Na mencionada convicção
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parece ser: “Fazemos o homem a nossa imagem...”, ou seja,


criatura com espírito que procede da alma hereditária que
enriquece-se e enobrece com a experiência... e “semelhan-
ça” ou seja detentora embora em medida limitada, das virtu-
des e sentimentos divinos. As virtudes são muitíssimas, como
os sentimentos, as combinações dos dois são em números
infinito. Assim o Autor imprimia em cada sua criatura, a
unicidade personificada e iniciou uma correspondência de
pensamentos, idéias, na atmosfera confusa de sentimento in-
distinto. Uma perspicácia que entretém qualquer mente.
Após quanto afirmado, pode-se deduzir um corolário
discordante do pensamento oficial: o homem não pode com-
portar-se como “servus servorum Dei”, mas como livre pen-
sador atento aos eventos criativos revelados pela ciência e bom
senso, e indagar deles os porquês e quando possível, coope-
rar na realização dos próprios eventos.
Enfim o homem deve-se perguntar sem preconceito e
responder com cândida honestidade: Por que Deus criou
quando podia existir sem perturbação no nada inexpressivo?
Seguramente ele ignora a possibilidade de fazer da sua
obra uma apocalíptica omelete.
EGITO

A minha mente considerada tais argumentos, quando


percebi de decolar suavemente. No íntimo da minha consci-
ência, tinha-se manifestado o estímulo da evasão, de emigrar
para outros tempos e espaços para conhecer novas experiên-
cias. Disto conseguia grande prazer.
Viajava como se fosse um enviado divino, mas logo a
consciência acusou-me de soberbia. Me justifiquei afirman-
do que usava com agrado as virtudes divinas recebidas por
semelhança. Mas depois concordei que era um simples via-
jante curioso como um Marco Pólo no Oriente.
O espírito viajante recebeu as sensações de experiências
vividas que o cérebro a seu tempo enviou após sublimação,
matérias básicas para formar visões e profecias quando a mente
é inspirada.
A cena era de tramonto vermelho, mormaço sufocante;
distante pirâmides desiguais interrompiam o horizonte,
cameleiros apeados conduziam camelos carregados de volu-
mosas somas. Aqui e acolá brilhavam as águas de um grande
rio. Próximo a mim balançavam as folhas peniformes de pal-
mas recurvas. O dia se deitava.
Acompanhava do alto casebres alinhados cobertos de fo-
lha, das paredes de barro e palha, com portas estreitas e por
janelas, fendas pouco iluminadas. A vereda que os unia era
poeirenta, as anfractuosidades mal se distinguiam pelas pisa-
das dos pés.
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Agora, entre eles, dominava em silêncio e respeito.


Quando próximo e acima, vi dois anciões que caminha-
vam devagar, espiavam onde possível, através das janelas. En-
fim, começaram a dialogar a baixa voz. Embora falassem idio-
mas diferentes e mortos, consegui saber como ambos, e eu
também, nos entendíamos. Existe uma virtude até agora in-
suspeita que dá origem a comunhão universal. Quando ins-
taurada na pessoa, o forte desejo de conhecimento, fala-se
com ênfase natural e segurança honesta, as palavras saem di-
tadas pela razão e pelo sentimento. Estas suscitam no enten-
dimento do ouvinte o senso desejado do locutor. É a explica-
ção lógica da predicação dos apóstolos analfabetos aos gentios.
Então, por uma estranha associação de idéias, vi no calor
do fulgor, os velhos da minha infância. Eles sentados a uma
mesa de uma taberna, a frente de uma garrafa de vinho, meia
vazia, contavam histórias fantásticas dos seus avós... E eu ex-
perimentei a saudade que aperta o peito.
Um dos dois que parecia o mais sabido, instruía o outro,
que aparentava ser homem rude.
— Não existem provas históricas, inscrições nas pedras
dos monumentos e nos papiros, mas se transmite a voz que o
povo hebreu padece do tempo da escravidão imposta pelos
egípcios guiados pelo faraó do qual ignora-se o nome. O fato
não é novo. Antes aconteceu ao povo de Malabar, do Catai e a
outros. Porém, esses povos entre sofrimentos e privações,
nunca conceberam uma divindade única como foi aventado
por outro faraó Amenotep-Akenaton e posteriormente ado-
rado pelo patriarca Abraão. Este era um aramaico da região
de Ur que acreditava no Deus único doador de terras e bens.
Parece que estes dois, Akenaton e Abraão, foram os únicos a
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captar a inspiração superior difundida pelo universo. O


monoteísmo era um conceito novo que não entrava na mente
dos povos e na cultura povoada por uma confusão de deuses
cruéis e orgíacos. O Deus único impõe aos adoradores uma
certa ordem e formalismo, obrigações, disciplina e raciocí-
nio. Enfim, esta nova religião melhora a personalidade huma-
na como se filtrasse a bebida turva. Porém, na opinião geral,
ser um povo monoteísta não constitui algum privilégio, nem
hegemonia com pensadores interessados dão a entender, pelo
contrário, todos os homens são criaturas do único Deus.
Olhou o companheiro. Ele não tinha entendido muito.
— No decorrer da nossa peregrinação pelos desertos e
pelos vales, não vimos os sinais das nove chagas aplicadas ao
povo do Egito. Nem participamos à disputa entre Arão e os
sacerdotes do faraó.
— O escriba afirma que se cumpriu um prodígio.
— Não seja simplório! Nós viajamos nos espaços, nos
tempos, participamos de acontecimentos significativos, nos
aproximamos aos vivos e deles lemos os seus pensamentos,
para saber com precisão e clareza o que os homens chamam
simplesmente de bem e de mal... Então sejamos comedidos
no juízo, nunca crédulos... Ensino-te isto para abreviar o teu
exílio... o meu também... Então narra o escriba que Arão
para impressionar, jogou sobre o pavimento na frente do anô-
nimo faraó, o cajado que se transformou em serpente. O
monarca, para diminuir o prodígio, ordenou aos seus magos
e feiticeiros de cumprir igual feito. Realizado, a serpente de
Arão engoliu as dos magos e dos feiticeiros. Trata-se de um
ato de magia ilusória limitada no tempo e na substância. Deus
não violenta as suas leis; aceitá-lo seria um contra-senso. É
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razoável pensar que a cena seja uma reminiscência de um conto


indiano, avivado de uma veemente força íntima no qual o duelo
é vinto da uma mente muito experiente e eficiente, sobre
outra primitiva e convencional...
— Então se Deus não é mago ilusionista, quem pode ser?
— Neste caso penso que Deus seja unicamente conse-
lheiro, ou melhor, suscitador na imaginação de Arão de lem-
branças remotas e de inusitadas energias. Analisa o caso: o
livre-arbítrio humano é preservado pois o conselho não é
imposição.
— E se Arão, após a aparição das serpentes sobre o pavi-
mento, apesar da inspiração não conseguisse imprimir à sua
serpente o impulso canibalesco?
— Existem leis insuspeitadas que agem inexplicavelmen-
te em determinadas condições.
— Explica-te.
— Além dos grandes mares do ocidente, existe uma terra
que possui vegetação exuberante onde crescem árvores que
tem a madeira cor da brasa. Vivem também serpentes entre
as quais um que tem o nome de “muçurana” devora os seus
semelhantes venenosos mas não ameaça o homem. Disse um
bruxo em transe que uma coisa ou um vivente podem ser
transformados em energia a qual volta a ser matéria no lugar
determinado da mente prodigiosa. Mas esta deve possuir von-
tade inflexível, imaginação nítida para guiar a energia, pois
ela não possui memória e inteligência.
— Nunca ouvi falar de bruxaria semelhante!
— Não te impressiones. Nas religiões, nas mitologias
encontram-se histórias estranhas de todos os gêneros, aceitas
pela credulidade humana. Imagina que na Índia venera-se deu-
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ses para todas as ocasiões e todas as coisas, aqui no Egito te-


mos alguns deuses que juntamente com as almas dos faraós e
de outros imortais, fazem excursão sobre o grande rio, na
Grécia, existe também o deus lança-raio e sedutor de donze-
las sob a aparência do cisne; na Arábia aquele deus que recom-
pensa com terras virgens, os defensores da religião. Não cito
os exércitos de deuses que povoam todos os lugares sempre
misteriosos, irascíveis e sanguinários. Quanto é pobre a ima-
ginação humana! Deixo de mencionar os da tua gente, com-
petitivos, briguentos, por prazer, contra os gigantes das neves;
tudo acaba sempre em um melancólico crepúsculo vesperti-
no. Mas por preguiça mental ou limitação intelectual, ao Deus
racional, construtor do todo até o nada, ninguém pensa. Os
homens continuam a imaginá-lo antropomorfo com persona-
lidade semelhante à própria, inclusive os defeitos. Lembra-te
sempre dos meus pensamentos, eles te ajudarão a descobrir as
contradições sacralizadas que vão pelo mundo. Lembra, tam-
bém, que ninguém sobe ao céu com dúvidas no espírito.
— Conclusa esta peregrinação de penitência e aprendi-
zado, nos concederão a assunção?
—Tu és preparado a beijar a fronte suada do teu inimigo
que te ofendeu vergonhosamente e que depois mataste com
prazer sádico? Tu serias complacente com o estrangeiro que
não te entende?
O interrogado não respondeu, não achava o senso das
frases.
— Precisamos ainda de muitos e edificantes exemplos
para merecer a assunção. — Passou o indicador e o médio da
esquerda para limpar os lábios de um imaginário fragmento
de comida pegajosa. Recomeçou.
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— Enquanto aguardamos a aplicação da última praga,


lembro-te alguns particulares. Ninguém menciona nos livros
sagrados o nome do faraó castigador, sinal de que os fatos fo-
ram assentados após serem transmitidos oralmente por sécu-
los e sacralizados na escrita; que o Mar Vermelho sofre sur-
preendente baixa-mar, especialmente próximo ao povoado de
Clysma, tanto para permitir o vau a um povo em fuga verso o
Sinai e também aos seus perseguidores. O escriba informa:
Na primeira praga as águas dos rios se avermelharam de san-
gue, apodrecendo e se tornaram fétidas, assim os peixes mor-
reram, provavelmente crocodilos e outros seres que nela vivi-
am. Porém parece que o efeito fosse limitado e superficial:
durou poucos dias, durante os quais os egípcios cavaram po-
ços junto ao rio dos quais tiravam águas potáveis. Seguiram as
chagas das rãs, dos mosquitos, das moscas que são variações
do mesmo castigo, contadas por uma inteligência de imagina-
ção repetitiva, seguiu a quinta chaga: a peste. Morreram cava-
los, burros, camelos, ovelhas excluído o gado que pertencia
aos filhos de Israel. Assim os escravos-proprietários foram pro-
vavelmente usurpados pelos patrões empobrecidos. A sexta
praga é um péssimo precedente transmitido às futuras gera-
ções que poderão aplicá-la ao próximo justificando-se com
qualquer motivo especioso. De fato, depois que Moisés e Arão
lançaram ao vento as cinzas venéficas das fornalhas, os egípci-
os sofreram por úlceras e intumescimento improvisos. Mais
uma vez o faraó permaneceu impassível: ele que devia ser
persuadido a libertar escravos, fazia-se facilmente endurecer
o coração do próprio Deus. Sobreveio o granizo que assolou
os campos e danificou os telhados das casas. É lícito pensar
que após o acontecido o Egito fosse destruído: com pouca
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água potável, sem gados, sem alimentos, o povo sobreviveu


enfermo e enfraquecido. A invasão de gafanhotos parece per-
feitamente inútil já que nada tinha sobrado das prósperas plan-
tações. Provavelmente os bichinhos devoradores compulsivos
praticaram o canibalismo. Chegaram as trevas a adequada e
eficaz praga que teria forçado a rendição incondicional do faraó
mal aconselhado. Ao contrário, as trevas duraram somente
três dias, tempo insuficiente para consumir as reservas de com-
bustível para archotes, obrigando o povo egípcio a procurar
os povoados hebreus, sobre os quais brilhava o sol.
— Estas histórias chegam estranhas ao meu entendi-
mento.
— No meu, domina a impressão que o Supremo endu-
receu mais uma vez o coração do faraó em vez de abrandá-lo,
para justificar a manifestação da sua potência e a sua prefe-
rência pelo povo escravo perante os homens.
— Parece que foi isto que o escriba-profeta interpretou
da inspiração superior... E pensar que duas pragas somente,
teriam sido suficientes, a segunda, prolongada até a liberação
dos escravos para concluir o episódio... mas este perderia em
teatralidade e sensacionalismo.
— Sabe tu quantas mentes perderam a fé sobre estes
segredos e impensados pergaminhos! Quantas dilaceraram a
razão a ponto de crer desesperadamente... Agora tu sabes por-
que estás comigo, quanto é difícil subir mais um degrau em
direção ao conhecimento e expurgar-me dos meus pecados.
— Afinal, quem és tu?
— Em vida, o meu nome foi Saulo Salim, supervisionei
o abastecimento alimentício do povo do Nilo. Recebi honra-
rias e bênçãos pela minha magnanimidade. Na verdade, fui
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ladrão desavergonhado. Com a desculpa de anos adversos à


agricultura, do assalto de roedores vorazes, surrupiei alimen-
tos que depois vendi, às escondidas, ao povo faminto. Quan-
do doava alimentos (com cobrança posterior em favores), o
fazia com as expressões de uma piedade hipócrita, ato que
alguns subalternos divulgavam à baixa voz. A fama de caridoso
administrador acresceu muito à minha riqueza. O louvor po-
pular chegou ao conhecimento do faraó que, feliz, confiou-
me também o ofício de superintender as obras públicas. As
roubalheiras foram tantas, e de tão grande monta, que tive de
amontoar os tesouros em vários lugares, a que chamei de “pa-
raísos ocultos”. Se foi pecado odioso sonegar alimentos aos
famintos, vergonhoso foi o exemplo que dei aos meus subor-
dinados. Assim, a comunidade daquele tempo teve um cor-
rupto que ensinou a arte a concussionários famélicos. Era o
tempo no qual se difundia entre nós a idéia do Deus único
severo, mas paterno e piedoso. Era o tempo de Amenotep IV.
Próximo da morte, vi com os olhos do arrependimento a
miséria causada por mim e chorei. Vi no Deus único a salva-
ção. Então chamei para perto de mim os pobres e famintos e
lhes disse: “Procurais em tal lugar e achareis riquezas para vós
e os vossos”. Os filhos me acusaram de dissipação, que os
empobrecia. Então, lhes disse: “Ensinei-vos com o exemplo e
a palavra a roubar o dinheiro público. É culpa gravíssima e
receberei castigo doloroso. Agora vos revelo como conquis-
tar a paz do espírito. Imitai o meu exemplo, dai tudo aos ne-
cessitados.” Morri aliviado. Foram estes atos que me salvaram
do aniquilamento perpétuo ao qual sobrevive somente a cons-
ciência implacável. Agora sou transeunte no reino do espírito
para espiar e ensinar... E tu, quem és?
20 G I O R G I O G A S PA R R O

— O meu nome foi Horst, filho de Heinrich. Nasci so-


bre as rochas de um fiorde, entre os gelos perenes. Fui mari-
nheiro vigoroso, guerreiro viking valente. — E para corro-
borar o que dizia, mostrou o rosto. Tinha um olho só, um
tapa-olho de couro escuro e luzidio fechava o olho esquerdo.
Sobre a garganta e às bochechas, brotava um chumaço de barba
ruiva e besuntada que se confundia sobre os parietais com a
juba leonina espalhada de estilhas miúdas e claras. — Nave-
guei muito, enfrentei impávido os vagalhões do mar raivoso.
Quando em terra, eu e os tripulantes do barco entregávamo-
nos à orgia e à rixa. A festança terminava com a caça às mu-
lheres, fossem jovens ou anciãs, eram estupradas entre berros
e gargalhadas. Eu preferia as mocinhas virgens.
Com o comandante Barba Ruiva, em nosso dracar, na-
vegamos além do mar gelado e chegamos a uma terra desco-
nhecida a que nomeamos Vinland. Nunca revelamos a rota e
o segredo morreu conosco. Durante a orgia habitual, o dege-
nerado Thor tomou para si um garotinho nativo pelos cabe-
los. Embora encharcado pelo hidromel, insurgiu-me com a
espada na mão, para defender o inocente. Com um golpe de
mestre, recebi cinco dedos de ferro abaixo do esterno. Caí-
do, arfando pelo último alento enquanto os companheiros
zombavam da minha atitude, pensei: “Fui guerreiro devasso,
mas temido. Agora, para proteger um menino, morro entre
o escárnio da minha gente.” Antes de expirar, invoquei justi-
ça. Somente por este último ato de minha vida, estou aqui
para purgar-me e melhorar.
Saulo Salim concordou após tê-lo medido com um olhar
dos pés à cabeça. Horst tinha-se erguido. Era grande e tinha
uma presença dominante.
VÔOS 21

— Esta espera me irrita.


— Tenhamos sempre paciência... tudo acontece a seu
tempo. Afinal, para que pressa, para assistir a uma matança de
inocentes?
Saulo pensou e repensou. Sofria um tormento. Enfim
venceu o temor:
— Com a consciência sobre a palma da mão, na luz mais
clara do dia, afirmo que o vingador descrito pelo escriba, que
vai de noite entre os casebres para matar os primogênitos, se-
jam recém-nascidos, crianças ou garotos, não me agrada. En-
tão inspirará incredulidade a historieta do pastor amoroso que
procura na noite a ovelha desgarrada, renunciando ao mereci-
do descanso. É grande demais a diferença de mentalidade entre
os dois narradores. Surpreende-nos saber que a vingança sobre
a primogenia recaía também sobre o gado já exterminado du-
rante as pragas precedentes. Qual tortura sofre o pensador. A
fé impõe-lhe a ignorância das contradições e o silêncio da ra-
zão, a mesma que Deus concedeu-lhe para dialogar com Ele.
— Mas o Deus criativo não poderia achar uma solução
pacífica e segura?
— Talvez queira mostrar a sua inclinação ao sacrifício
cruel!
— Contra os inocentes e os indefesos? Deveria golpear
o faraó inflexível e ministros insensíveis.
— Não adianta recriminar. Assim o escriba transmitiu,
assim veremos a experiência. Queira Deus que não se reflita
nos séculos futuros!... É inaceitável até para um homem de-
vasso como tu o foste!
— Como acontecerá a execução? Talvez o Onipotente
com o dedo unhado e adunco degolará e estripará os primo-
22 G I O R G I O G A S PA R R O

gênitos, ou os anjos potentados, armados de paus, ou os ar-


canjos com espadas de fogo executarão o massacre.
— Talvez nada disso: o sangue das vítimas jorra e man-
cha a clâmide imaculada; com o tempo, o sangue se faz escu-
ro. Provavelmente, o pai dos mortais suprimirá o coração das
vítimas até a parada definitiva ou, para evitar contato, as fe-
chará em uma caverna para asfixiá-las.
Os dois estremeceram. Horst queixou-se:
— Ó Deus único do qual nada sei, por que devemos
assistir à repetição de um massacre? Nada há de edificante, e
nos embrutecemos ainda mais.
— Para não entender o velho conceito que contradiz o
novo, nunca subiremos ao âmbito do conhecimento absolu-
to. Estaremos perdidos permanentemente.
Saulo Salim pareceu acordar repentinamente e depois
ficou absorvido do vaivém dos pensamentos.
— ... E se esta história das pragas do Egito for um mito,
ou pior, uma grande mentira para dar crédito ao chefe e ao
povo hebreu?
Os dois olharam-se dentro das pupilas, trocando senti-
mentos indistintos.
— A dúvida levanta novos raciocínios. Antes não po-
díamos nem imaginar... Errávamos como o artesão sem fer-
ramentas para iniciar o trabalho. Agora temos a dúvida, no-
vos raciocínios... Não nos podemos esquivar, não somos co-
vardes.
— Se esta história fosse falsa, o autor seria acusado de
difamação do nome e da personalidade divina, de superiori-
dade religiosa.
— ... Então, ímpio, merecedor de castigo...
VÔOS 23

Saulo Salim o corrigiu com tolerância:


— Durante esta peregrinação, convenci-me de que Deus,
no fim, não castiga o pecador e acaba por perdoá-lo se ele
demonstra um grãozinho de arrependimento. Mas, se não
acontece, Deus afasta a sua atenção do pecador.
— Mas que perdão, vingança!
— Calma, a razão é a arma dos sensatos. Procuramos o
Deus imutável, absoluto, criador lógico da realidade e não
aquele apresentado a qualquer capcioso... Calma, aguarde-
mos para ver e julgar... Acompanha sempre o bom senso. —
Considerou longamente: Horst tinha ainda o aspecto do bár-
baro impulsivo. Suspirou. Seria difícil mudá-lo.
Afastaram-se.
— Silêncio! Começa a última e mortífera praga!
De longe, uma bola de fogo densa como magma incan-
descente chegava aos pulos, como penedo que desce das altu-
ras. Rodava; os raios luminosos avermelhavam as trevas, es-
grimia o ar e causava um sibilo terrível. A pressa era daquele
que quer chegar pontualmente ao encontro; demonstrava ira
quentíssima, vingança lancinante. Era de um tamanho no qual
caberia uma pessoa de pé, com os braços abertos. Chegado
aos primeiros casebres, parou para considerar a tarefa pro-
gramada.
Saulo Salim e Horst estavam sobre uma pequena eleva-
ção, longe da cena, mas podiam observar comodamente.
— É este o Deus absoluto?
— Deus é espírito. Os homens simples o vêem como
bola de fogo pronta a matar; outros, como um velho reumá-
tico sentado numa poltrona de nuvens com um triângulo so-
bre a cabeça; os artistas o pintam como um homem de meia
24 G I O R G I O G A S PA R R O

idade com um corte de cabelo singular, carregado com fadiga


pelos pequenos e fofos anjinhos; o profeta ardoroso o imagi-
na como um fogo incombustível entre os espinhos. Mas a ra-
zão nos propõe que ele seja nuvem de sensibilidade, inteli-
gência, vontade, energia que não possui frente ou costas, por
isso ninguém fica à sua direita, mas próximo, em atitude de
excelsa correspondência.
— E agora, o que ele faz?
— Observas os batentes das portas. Se pincelados com
um ramalhete de isopo tinto no sangue de um animal sacrifi-
cado, o anjo exterminador não entrará. Caso contrário, Deus
adentrará a porta sem sinal para flagelar mortalmente os pri-
mogênitos dos animais e dos egípcios. — Horst escancarou
as pálpebras.
— O Deus que lê nos corações dos homens precisa de
um sinal para saber atrás de qual porta estão os seus predile-
tos!... Então os escravos não viviam segregados em guetos,
mas misturados aos patrões e com o próprio gado... Durante
a praga da escuridão, as trevas devem ter deixado janelas para
iluminar exclusivamente, de manhã até a tarde, as casas do
povo hebreu... De onde saiu o anjo exterminador que tu não
mencionaste primeiro?
— Assim foi dito, assim acontecerá — depois acrescen-
tou a voz pouco baixa, falando para si próprio — E eu pensei
que fosse um bárbaro estúpido!
Neste momento, abriu-se uma portinhola de um case-
bre próximo. Da fresta, escapou um gatinho colorido com a
cauda em riste. Um menino, nu como um cupido, o seguiu
cambaleando para agarrá-lo. Os dois desapareceram atrás da
parede de barro. Daí irrompeu um miado sufocado e logo
VÔOS 25

seguiu um grito agudo que rasgou o silêncio. Ambos eram


primogênitos.
— Nego-me a crer no que vi. Deus é racional, guia a
realidade infinita e não se degrada a ponto de suprimir ino-
centes e bichinhos. Isto não é amor, é um ato contra o bom
senso!
— Diz-nos que Deus pode tudo. Isto explica todos os
eventos.
— ... Porém entre os limites da moral que ele determi-
nou. Se não existissem, não os teria dado ao homem.
— É uma imposição da fé.
— ... Ou do raciocínio humano.
— Então este espetáculo e de Deus ou...
— Ou do homem que dispõe inapropriadamente das
virtudes recebidas para sua exclusiva vantagem?
— ... Sacralidade dos sagrados... Que Deus me perdoe,
não possuo inteligência para explicar este mistério.
Os dois silenciaram. A inteligência deles estava pros-
trada. Pobres espíritos, quais situações e dúvidas tinham de
enfrentar e vencer. Para clarear a verdade, são necessárias
observações minuciosas, argumentações sensatas, disputas
prolongadas durante os séculos. É melhor ter fé e crer, é
mais fácil. Mas, humanidade, mantenha distância dos falsá-
rios da fé!
De muitos casebres chegaram, em um rápido crescen-
do, gritos, lamentos e choros. Deus e o anjo exterminador,
usando a virtude da ubiqüidade, davam andamento ao exter-
mínio programado em todo o Egito.
— Vamos embora, nada temos a aprender deste triste
espetáculo.
26 G I O R G I O G A S PA R R O

— Ao contrário, atravessemos o caminho às escondi-


das, espreitemos na janela que agora se ilumina com luz in-
tensa. Eu sei, naquele casebre está-se perpetrando outro ho-
micídio.
Em silêncio, ajoelhando-se para não serem vistos pelo
espírito assassino, aproximaram-se de uma janela fechada pela
metade por um farrapo.
Saulo Salim pediu em surdina:
— Fala à voz baixa; levantamo-nos um pouco para olhar.
Se nos virem, seremos suprimidos como testemunhas incon-
venientes.
Levantaram-se com a lentidão do velho. Então viram um
rapaz em pé no meio do vão; um linho amarrado à cintura lhe
cobria a virilha. Mantinha a cabeça ereta, as mão cruzadas
sobre o peito. Manifestava a segurança estática da razão irre-
futável. Assim um escultor teria personificado a verdade.
Além da porta, a bola incandescente dardejava lâminas
de luzes. De trás, chegavam os gritos, as blasfêmias e os cho-
ros dos familiares supérstites.
— É assim que espera a morte! É um estóico!
— É um mártir inocente!
Os dois, trêmulos, abaixaram-se por detrás da janela e
esperaram, sem respirar, o grito que foge da boca da vítima.
Mas nada escutaram. Esticaram novamente os pescoços para
espionar. O rapaz continuava ereto com o olhar inflexível di-
rigido ao centro da bola.
— Deus, que ampara a vida e alimenta todas as criatu-
ras, até as mais ínfimas, misericordioso porque preserva as
cidades dos ímpios para não castigar também alguns homens
honestos; amoroso porque abre os braços ao filho arrependi-
VÔOS 27

do; imploro-te, não cumpras a matança dos primogênitos.


Eles não têm culpa dos erros dos seus governantes, eles são
inocentes. Tu deixas de endurecer o coração do faraó quando
ele tende a conceder a liberdade ao povo de Moisés que vive
desde muito tempo entre nós, tem o próprio gado e pratica
livremente a sua religião. Tu não tens outro meio coercitivo,
mais engenhoso, além do massacre? Talvez tu queiras osten-
tar benevolência e amor aos teus devotos e aos opressores a
tremenda potência do teu caráter? Esta trágica história, que
será transmitida por um escriba sem arte e sem lógica, será
fixada na experiência dos vindouros, e quando sacralizada,
tornar-se-á um exemplo a ser aplicado por qualquer louco
sanguinário. Sou jovem, ainda não amei nem procriei, a mor-
te, juntamente com a dos meus companheiros, tornar-se-á
ato insensato, já que tira o motivo de nossa existência. Mor-
reremos com o ressentimento no espírito, o nosso sangue
clamará inocência, através dos séculos em tua presença. As-
sim tu nos entrega ao teu inimigo.. Mas se tu estás determi-
nado a me matar, cumpra-se a tua vontade. Consola-me a
esperança que, na perenidade, saberei o motivo, se existe,
deste horrível massacre.
Abaixou a cabeça aguardando calmamente a execução
do ato.
Durante o monólogo, a bola de fogo reduziu lentamen-
te o rodar das lâminas de luz até transformá-las em esplendor
fulgurante; a forma tinha-se modificado para um grande ovo
diáfano, dentro do qual divisava-se a forma de um homem
despido. O sibilo agudo tinha-se enfraquecido até silenciar.
Uma voz robusta, com tons de canto e prosa, soou.
— O que diz? — pediu Horst.
28 G I O R G I O G A S PA R R O

Saulo Salim respondeu:


— Não sei dizer, mas os sons chamam à minha mente o
sentido: “Com o conhecimento e o bom senso, tu percebeste
que o procedimento divino segue a eqüidade e o bom senti-
mento. Tu pronunciaste palavras para argumentar, nada de
rezas e adulações e invocação e vinganças cruéis.Tu me elevas
a um novo sentimento que te distingue frente ao meu juízo.
Levanta-te, vivas, seja sempre sensato.”
Então, o jovem surpreendeu-se muitíssimo, levantou a
cabeça e os olhos se animaram de audácia!
— Onipotente, faz que esta história se aniquile no tem-
po e no espaço e nas futuras gerações. Anule o gosto do ex-
termínio.
— Não violo a minha lei e, tampouco, o livre arbítrio
do homem. O escriba tendencioso escreva a sua história, mas
a verdade emergirá das profundezas dos séculos.
O vão encheu-se de comoção. O ovo luminoso assumiu
totalmente a forma de um homem. Ele disse:
— Urzé, vem comigo ao ar aberto — Um braço de luz
pousou sobre o ombro do rapaz. Com a mão direita indicou
o céu.
— Este era o Nada inútil e inerte no qual eu existia.
Precisei de muitas reflexões para imaginar que nele podia
introduzir alguma coisa. Fiz a realidade cada vez mais com-
plexa, variada, volúvel, mas dominada por leis ocultas. De-
pois, nela coloquei vida e eu também comecei a viver. Por
fim, soprei o espírito inteligente e emotivo e me tornei sen-
sível e amoroso. Tu e os teus levarão a vida aos mundos. Mas
primeiro deverão sofrer sem limites, pensar muitíssimo para
entender e evoluir. Lembrarão do Autor com sentimentos
VÔOS 29

renovados e ao Autor agradará o ato, assim não estará mais


só, circundado pelo silêncio. Usando a ubiqüidade, ele está
onde há vida.
A pessoa luminosa afastou-se pelo caminho, talvez em
companhia do anjo exterminador que não se via.
Enfim, as trevas recompuseram-se.
Urzé chorava.
Saulo Salim, recuperado da estupefação, prorrompeu:
— Isto sim, é fé, a verdadeira fé nas virtudes divinas...
Horst, agora nos é demonstrado que este vagar além dos limi-
tes naturais é necessário e proveitoso... E repito: Aquele que
não eliminar as dúvidas, nunca avançará no conhecimento.
Enquanto falava, passou o gatinho com a cauda em riste,
seguido pela criança gorducha e nua como um cupido.
Os dois ouviram chegar, de perto e de longe, um vozerio
de comensais. Depois, encaminharam-se para uma destinação
ignorada.
Horst pediu a Saulo Salim:
— Qual o nome desta virtude que muda o ser em não-
ser, e o não-ser em ser?
— Só Deus sabe!
PALESTINA

Voltei a voar.
Enquanto ia pelos tempos, entre imagens fulgentes, atra-
vessando atmosferas diferentes, a percepção penetrava me-
andros da mente à procura de uma precisa explicação destas
muitas fugas.Assim como a pessoa se liberta de coisa inopor-
tuna, conclui que o desejo de evasão no desconhecido, era o
estímulo insistente. Mas o que é explicado de modo simples
causa sempre uma desilusão. Após instantes de branco mne-
mônico, lembrei-me das conclusões passadas ou seja, o por-
que dos “por quês”: as derradeiras deduções convergiam a
uma única inteligência dominante, origem de todas as expli-
cações. Naquela ocasião, pareceu-me pobre e forçada a con-
siderar esta inteligência motor imóvel produtor de efeitos.
Surpreendeu-me a afirmação peremptória de uma imaginá-
ria assembléia. “A explicação da realidade reside na persona-
lidade da inteligência superior”. Estudemo-la e deduzamos.
A afirmação freou o vôo. Desci da alta atmosfera da re-
flexão para uma realidade do tempo passado. Bamboleei como
um papagaio: comecei a distinguir, depois a sentir, enfim pa-
rei sobre a Palestina dos anos romanos.
Notei imediatamente o calor luminoso que queima a
epiderme, o ar denso como algodão nas narinas, entre o pala-
dar e a língua. Embora uma sensação incômoda, não me sur-
preendi: a percepção tinha escolhido bem a comparação, que
VÔOS 31

provei ao examinar do alto o cadinho de pirita. Com ela che-


gou à consciência, a idéia concebida no momento de uma
queda na massa incandescente. Horrível impulso suicida que
afoguei depois com um abundante trago de vinho e uma so-
nora risada. O céu de índigo puríssimo, mudava para um tur-
quesa do oriente, raras estrelas começavam a brilhar como
gotas de água pura sobre o veludo. A paisagem mostrava-se
acidentada e poeirenta.
Subiam a ladeira pedregosa, dois caminhantes, com pas-
sos incertos, evitando aos pés doloridos os seixos e anfrac-
tuosidades, cobertos de panos grosseiros para proteger-se do
causticante sol e absorver a umidade dos corpos. Um condu-
zia com uma corda frouxa um burrico que balançava a cabeça
sob a carga excessiva. Ambos seguiam o diálogo com atenção.
Assim se dirigiam à pousada, além da curva depois da ladeira
que leva à pequena esplanada, junto a um poço rodeado com
pedras sem ligante, sombreado pelas palmeiras e por uma
velha oliveira. Aí, no frescor vespertino, os andarilhos acham
a quietude: água fresca, comida sadia, tranqüilidade sobre uma
cama de tiras de couro.
— ... foi hosanar, filho de David. Poucos dias depois, foi
desacreditado, julgado fomentador de revolta popular, conde-
nado. Negaram-lhe o perdão que foi dado a um sedicioso ho-
micida...Torturaram-no entre escárnios e humilhações. Enfim,
deram-lhe a morte na cruz como um delinqüente comum. Posto
no sepulcro, o seu corpo desapareceu... Nesta louca Palestina,
tudo pode acontecer; o seu povo é de limitada cultura, muito
emotivo e crente até o fanatismo. Aqui não se raciocina. Assim
temo freqüentemente discórdias, desordens, derrame de san-
gue. Parece que a divindade tem um inexplicável propósito a
32 G I O R G I O G A S PA R R O

respeito deste povo: nega-lhe o uso da razão com a qual pode-


ria reconciliar-se; desperta-lhe periodicamente profetas, às vezes
exaltados, sempre confusos. O resultado é uma divindade
passional, castigadora e ilusionista: prometeu-lhe uma pátria
onde corre o leite e o mel, na verdade escorre o sangue e o fel.
Afinal, todo o mundo e aldeias; coisas semelhantes acontecem
em qualquer lugar, embora em tom menor. A religião regida
pelo homem, proclamada infalível e que exige dos fiéis fé faná-
tica, enfim se perde, se fragmenta. Onde não há razão e liber-
dade, aí nasce a discórdia e a guerra. Nascem novos profetas.
— Acontece o proselitismo, sempre do mesmo modo:
em lugar público, o santo profeta divulga a sua doutrina, cum-
pre prodígios, surpreende e vence a incredulidade dos pre-
sentes que se transformam em convertidos.
— O supliciado era um santo?
— Difícil dizer. Seguramente um espírito superior.
— Afinal, quem era ele?
— Era um de nós. Nasceu em Belém, na Judéia, viveu
em Nazaré, na Galiléia. O seu nome era Jehosciu, sabia ler e
escrever, falava o aramaico com o povo, o hebraico com os
sacerdotes do templo. Diz-se que freqüentou a escola dos or-
ganizados e eruditos essênios. Comentava as Sagradas Escritu-
ras, nada de historietas fantasiosas, folclore hebraico, esclare-
cia passos onde o significado era obscuro e o comentário
incerto, com a segurança como a do próprio autor. O pai dele
era um carpinteiro que terminava as repetidas viuvezes des-
posando garotas virgens. A última foi uma de cerca de treze ou
quinze anos, de nome Maria. Esta ilibada, auxiliar do Templo,
manifestou gravidez incipiente, embora nunca fosse tocada por
homens. Aqui entra a fé, o sobrenatural que explica o inexpli-
VÔOS 33

cável. Resolvido o caso, a jovem mãe encontrou-se na inusita-


da situação de ser madrasta de filhos de idade igual ou superi-
or à sua. De qualquer modo, deve ter sido uma mulher enér-
gica para manter unida e obediente uma tal família. Ao filho
carnal, parece, não agradou a situação. Quando a mãe o man-
dou chamar, ele disse ao mensageiro: “Quem é minha mãe,
quem são meus irmãos?” não se aplicava ao trabalho do pai
verdadeiro.Tinha a cabeça repleta de idéias, considerava repe-
tidamente as noções ensinadas na escola dos essênios. Prati-
cou o jejum prolongado na solidão absoluta sem que a sua pes-
soa padecesse os danos da inanição. Durante o jejum, o espírito
pontificou no corpo já disciplinado no exercício das virtudes.
No começo, quando a inteligência perceptiva era inexperiente,
o espírito emanava premonições, lampejos, visões, mas quan-
do alcançou a maturidade mental, convenceu-se de que pos-
suía natureza divina além da humana, da qual suportou estoi-
camente todas as condições, até as mais dolorosas.
— Surpreendente o efeito da sugestão.
— Não diria sugestão, mas efeito da vitalidade heredi-
tária.Tu não esqueças que a mãe, quando criança, foi serva do
Templo. Absorveu e encarnou os fluxos do ambiente, da at-
mosfera... entre as espirais de incenso, a cena das chamas que
queimavam as carnes sobre o altar... o sussurrar monótono
das rezas no grande vão da cúpula...
— Dizem que ele foi prodigioso.
— O espírito, quando se torna potente e se eleva, move
as leis naturais.
— Seria o pressuposto pai a suscitar elevação e potência?
— A relação entre pai e filho pareceu-me tão íntima que
torna-se complexa uma explicação. As afirmações, as invoca-
34 G I O R G I O G A S PA R R O

ções filiais, fazem-me crer que duas são as mentes de perso-


nalidade distintas e animadas de vontades singulares, porém
dirigidas a um único escopo. Seriam necessários testemunhos
escritos de pessoas fidedignas, sobre os quais poder ponde-
rar. Como dizem os romanos, experientes em situações se-
melhantes: “Verba volant, scripta manent”.
— Foram seguramente os sapientes essênios a moldar a
sua natureza.
— Disse-me um amigo conhecedor destas coisas, que
entre os essênios havia um pensador e copista de textos sa-
grados que apurava a idéia de conhecer Deus mais que os
profetas com o uso da fantasia racional. Afirmava que a razão
é o meio dado a todos os homens para alcançar o máximo do
conhecimento, que Deus é racional movido pelo sentimento.
Então pode ser conhecido pela lógica sadia. Imagina que o
escriba conseguiu perceber que Deus, em um determinado
momento, constatou de ser sozinho e único no Nada, experi-
mentando um sentimento de solidão tão veemente que o in-
duziu a criar, ou seja, a construir uma realidade empenhando
o pensamento, a vontade, a energia, imprimindo-lhe leis e a
seqüência dos eventos... O escriba-copista e filósofo, tudo
isto pensou pela insatisfação causada pela leitura da Gênesis,
que confunde a criação das estrelas com a da nossa terra, caso
seguramente devido à arbitrária inspiração histórica e ao de-
feito de termos e cultura.
— Explicação razoável, mas voltemos ao nosso espírito
superior. Tu o conheceste?
— Acompanhei-o por algum tempo entre os seguidores
e os apóstolos com os quais tinha o hábito de comentar a
doutrina do maestro.
VÔOS 35

— Sim, certo, mas como ele era?


— Distinto. A natureza dá freqüentemente vida a ho-
mens semelhantes, mas Jehosciu era único. Revelava-se
emotivo e reflexivo. Uma combinação que exaltava a perso-
nalidade sempre temperada da razão tolerante. Era tempes-
tade que se aquietava em chuva benéfica sobre o agreste ári-
do. Somente uma vez descontrolou-se: distribuiu pontapés e
chicotadas aos vendilhões do templo. Sem dúvida foi um im-
pulso da natureza humana. Era sedutor, amado e desejado
pelas mulheres. As mulheres, animadas pelo instinto mater-
no, desejam o mais belo e o melhor pai para a sua futura pro-
le. Jehosciu tinha as íris negras sobre as cândidas escleróticas,
olhos que seduzem todas as mulheres de todas as pátrias, pos-
suía a inteligência de perceber as íntimas aspirações da alma
feminina, a gentileza das palavras e dos gestos que serenam
os ânimos rancorosos, pensamentos elevados que suscitam
imagens na mente do ouvinte, possuía a beleza espiritual cân-
dida e luminosa. Perante a tantas virtudes, a mulher matriz
sentia-se cativa. Usando o bom senso e a lógica, conclui-se
que ele permaneceu casto até com Marta e a irmã dela, que
caiu extasiada aos seus pés, abrasada pelo desejo natural. Muito
menos com a pública meretriz, uma tal de Maria de Magdala,
experiente na arte do amor. Parece que a mais ousada foi
uma moça no período quente da juventude. Ela foi ao poço
para tirar água e, quando chegou à margem, deparou-se com
o jovem que aguardava. Admirou-o e o desejou em um mo-
mento, mas Jehosciu, com máxima delicadeza, que não ofen-
de ao contrário, que mitiga o ardor feminino, fez-lhe enten-
der que ela merecia mais: a satisfação perpétua do espírito.
Mas não acreditai diferente! Ele foi másculo, valente com total
36 G I O R G I O G A S PA R R O

domínio dos sentidos, como o demonstrou durante a vida e


na cruz. Se rejeitou degustar o mel aromático do prazer car-
nal, foi por racionalidade e coerência: ele se declarou filho de
Deus; unindo-se a todas as mulheres que o desejavam, teria
sinceramente gerado. Assim, a humanidade adoraria um Deus
avô e os seus muitos descendentes. Um novo politeísmo.
— Por que disseste que ele foi prodigioso?
— Realizou verdadeiros prodígios: mudou a água em
ótimo vinho, devolveu repentinamente a saúde aos doentes, a
vida aos mortos (o mais complicado dos milagres), multipli-
cou poucos pães e peixes frescos para alimentar a multidão
em jejum, amainou a tempestade, caminhou e fez caminhar o
apóstolo hesitante sobre as águas (nota bem, não separou as
águas para caminhar sobre o fundo do lago), um prodígio prá-
tico e racional com pouco dispêndio de energia espiritual.
Tudo fez para chamar a atenção do povo sobre a sua filosofia.
O ofendido oferecer a outra face do rosto ao tapa, parece
uma afronta à razão, ao contrário, é comportamento medita-
do. Ao ofensor, o fato causa surpresa e interdição ao sucessivo
ato impulsivo, o induz a reflexão, abre o espírito à sentimen-
tos elevados. É um exemplo prático aplicado ao conhecimen-
to da personalidade humana. Também perdoar as ofensas so-
fridas, causa efeitos semelhantes. O ofendido se engrandece à
frente do ofensor causando-lhe confusão. O fundamento des-
ta filosofia é o sentimento de amor, não aquele carnal, conju-
gal, mas o delicado, o mental que quer perto de si a pessoa
livre para uma troca de nobres sensos. O sentimento que mais
lhe parece é aquele que tem a força do chamamento do san-
gue; eis porque se fala de pai e de filho por semelhança à con-
dição humana. Na divindade existe Deus que procede de Deus.
VÔOS 37

— Então, um inovador.
— Muito mais, um mestre... assim o chamavam alguns,
porque ensinava com o exemplo além da palavra que chegava
sempre clara na consciência dos ouvintes. Os fariseus o defi-
niram perturbador da ordem porque têm mentalidade limi-
tada pela ortodoxia imóvel dominados pela ignorância tradi-
cional. Os sacerdotes o odiavam e o condenaram pois temiam
a limitação dos seus privilégios e da sua autoridade. Procura
imaginar a impressão, Jehosciu gritar no meio da praça das
colunas com o dedo acusador em direção ao Sinédrio: “Vós
vos proclamais infalíveis e praticardes asneiras históricas; sois
amorosos, porém condenastes ao fogo perpétuo os vosso ir-
mãos; sois legisladores, mas ignorais as leis da natureza que
Deus imprimiu na criação... Todos a sapar o campo, a suar
para merecer o pão cotidiano”. Ele era um revolucionário
destinado ao patíbulo desde o princípio. Os sacerdotes o que-
riam morto, porém sem manchar as mãos de sangue. Em-
purraram a tarefa ao procurador Pôncio Pilatos, o qual não
reconheceu culpa nas respostas do maestro, embora este de-
monstrasse clara indolência em sua própria defesa. Jehosciu
pressentia o seu próximo fim e o aceitava como perfeita con-
clusão para sua vida. Enfim o procurador, habilmente pressi-
onado pelos sacerdotes, temendo o julgamento dos superio-
res, o condenou contra a sua convicção. Como prescrevem as
regras, foi despido, pendurado pelos pulsos, flagelado, escar-
necido, coroado de espinhos pelos algozes, depois vestido de
púrpura com os braços ligados ao “patibulum” (a travessa da
cruz). Sobre o Calvário, foi pregado aos pulsos sobre o
“patibulum”, aos pés sobre a haste. A agonia durou cerca de
três horas; a morte chegou solícita, dando fim aos tormentos
38 G I O R G I O G A S PA R R O

e às humilhações. Soprou o espírito invocando o pai que não


lhe respondeu.
— É tremendo enfrentar a morte na solidão e na ce-
gueira dos últimos momentos.
— Aos pés da cruz choravam a mãe, a tia Madalena, a
amorosa meretriz convertida, o amedrontado João. Dos as-
sim chamados irmãos, nenhuma presença. Os apóstolos su-
miram. Chegou ofegante José, da cidade de Arimatéia, nobre
seguidor oculto.Verificada a morte do seu mestre, chegou-se
a Pilatos para haver o corpo. O procurador maravilhou-se da
rápida agonia do condenado que dura, normalmente, dezenas
de horas. Interpelado, o centurião confirmou. O fato faz su-
por que o pai respondeu à invocação final encurtando os so-
frimentos. Como foi retirado o corpo da cruz, não sei dizer.
Necrólogos contratados, provavelmente descalçaram a haste
e deixaram cair a cruz com o morto. Sobre o solo, foi fácil
despregar os pés e os pulsos, limpar e untar sumariamente o
corpo com as cem libras de mirra e aloe trazidas por Nicode-
mos, enfim depor o corpo no lençol adquirido por José. O
lençol inconsútil, novo, um pouco rijo, possuía o comprimento
de duas estaturas de homem, a largura de dois braços. A mãe
Maria apressou-se a compor na pudica posição, aquela carne
martirizada que gerou anos atrás. Já que o tecido não parecia
sustentar o peso, foi dobrado e segurado pelos portadores pelas
quatro pontas, formando uma maca para o transporte do cor-
po a um sepulcro próximo e novo, e o corpo foi pousado so-
bre um plano de pedra. Em seguida, os portadores desdobra-
ram o lençol para cobrir a parte frontal do corpo. As piedosas
mulheres decidiram concluir o embalsamamento no primei-
ro dia da semana, já que começava a anoitecer. De fato, foram
VÔOS 39

elas a encontrar o sepulcro escancarado e a chamar os apósto-


los. Ninguém deu atenção se a tampa sepulcral foi rolada de
fora ou tombada pelo lado de dentro. A caverna estava vazia.
O lençol amarrotado, jazia sobre a pedra como se o defunto a
tivesse jogado, ao contrário do paninho que se encontrava
dobrado com cuidado a um canto. Este paninho, parece, ser-
viu para cobrir uma ferida grave nos occipitais e parietais do
morto, causado pelos incompetentes necrólogos, quando do
tombamento da cruz. Desapareceu logo. Ninguém sabe dizer
onde ele se encontra. Alguns fiéis acreditam que reaparecerá
daqui há alguns anos, séculos, milênios, como sinal de conso-
lação à humanidade em um período de grande angústia, assim
como se revelará no lençol a impressão do supliciado devido
ao resfriamento da carne e à exalação dos ungüentos mescla-
dos ao sangue. Diz-se também que o desaparecimento do cor-
po deve ser atribuído ao rapto, pelos apóstolos, ou a um súbi-
to recobramento de Jehosciu após umas quarenta horas de
morte aparente.
Os dois respiraram profundamente. As imagens suscita-
das pelas palavras permaneciam nas suas mentes, giravam len-
tamente como pássaros hesitantes sobre a direção a seguir,
para depois migrar além dos mares nos novos continentes.
Iniciara-se o processo de fixação na estrutura mental no vazio
imaginário daqueles que não participaram com os sentidos,
às palavras e ao exemplo do mestre. A difusão e a devoção
milagrosa, veriam mais tarde.
— Pode-se concluir com certeza: o cadáver nunca foi
enterrado, permaneceu estendido sobre o lençol e coberto
por ele, provisoriamente, para depois receber os últimos cui-
dados. Não foi enfaixado como era o costume em determina-
40 G I O R G I O G A S PA R R O

dos casos; as mulheres foram as primeiras a ver o lençol e a


perceber a falta do paninho. Vale uma observação: nos acon-
tecimentos cruentos, o sangue derramado solicita, nos espí-
ritos dos consangüíneos, pressentimentos, visões, sonhos de
tragédia. Os pressupostos irmãos e irmã não se mostraram
nem se manifestaram. Não existia consangüinidade.
— Aprovo este filho de Deus. Não proclamou guerras
santas, sacrifícios coletivos, holocaustos pavorosos... Mas pro-
pôs, no relacionamento entre os homens, um sentimento
novo, amoroso e o bom senso.
— Eu o admiro. No exemplo e na predicação revelou-
se de uma inteligência superior. No sacrifício, foi de uma rara
suportação humana.
Na pausa seguinte, as mentes dos dois repassaram os úl-
timos pensamentos ao som da esfrega das sandálias sobre as
pedras.
— Porém... Porém, este santo que operou todos os
milagres imagináveis, cumpriu aquele de devolver o mem-
bro mutilado a um velho guerreiro ou a um infortunado?
— Segui por um tempo o mestre, conversei longamente
com os seus seguidores... Se este milagre aconteceu, teriam-
me dito. Soube de um apóstolo que cortou uma orelha a um
servo com um golpe de espada; Jehosciu apressou-se a grudá-
la. Mas ignoro o reaparecimento de um membro perdido anos
atrás, a uma pessoa.
— Eis um milagre impossível também ao filho de Deus
— e caíram em reflexão.
Despertou-os uma voz que ressoou como um chamado
amigo:
— Homens de bem, posso eu juntar-me a vós?
VÔOS 41

Os dois voltaram-se à esquerda e viram um jovem tostado


do sol. Tinha cabelos que descansavam calmamente sobre os
ombros, barba até o peito, íris reluzentes. Usava uma vesti-
menta clara e surrada, sandálias gastas, sem alforges. Os hema-
tomas no olho direito e o nariz ferido faziam pensar em uma
queda recente, mas ele não demonstrava dor. Estava sentado
sobre uma pedra, à margem do caminho visivelmente cansado.
Examinada a pessoa e julgada merecedora de confiança,
o mais ancião dos dois disse-lhe:
— Podes juntar-te a nós. Chegaremos à pousada do Sol
para refeição e descanso. — E o observou com renovada in-
sistência: o rosto lhe parecia familiar. O jovem apanhado de
imprevista simpatia, acrescentou:
— Se tu não tens dinheiro, não te preocupas, pagarei
por ti.
— A tua generosidade cura-me até o cansaço.
Com poucos passos, juntou-se ao grupinho e pôs aten-
ção ao diálogo que os dois tinham recomeçado:
— ... Para cumprir o prodígio é necessário um grande
poder que o supliciado e os mestres essênios não possuíam.
— Nem as Sagradas Escrituras contam de um prodígio
semelhante... É impossível: o que foi perdido e corrompido
não voltará jamais.
Os dois pararam. De boca aberta, olhar ao céu, procura-
ram imaginar o que definiam como impossível.
— Se vocês me permitem, poderei aclarar algo?
— Também tu ouviste falar dos prodígios do supliciado?
— Como vocês sabem, o milagre não é um prodígio da
habilidade humana que alcança os sentidos de todos nós, li-
mitados no tempo e nos efeitos. Se assim fosse, seria magia
42 G I O R G I O G A S PA R R O

ilusionista de mago bondoso para maravilhar o observador,


ou bruxaria de necromante para passar a possuir o simplório
e torná-lo súcubo. O milagre não viola as leis naturais, não
provoca danos às coisas, não mata pessoas, segue o fio de um
elevado sentimento... Com o tempo, o homem aprenderá a
fazer prodígios, curará logos os doentes, multiplicará os ali-
mentos, navegará acima e abaixo das águas.
— Tu ouvistes nossas palavras quando ainda estávamos
longe de você.
— Nas horas vespertinas, o ar leva as palavras aos ouvi-
dos atentos, embora distantes.
— O que te parece? — o jovem perguntou ao ancião.
— Parece-me o início, mas preciso muito mais para uma
explicação convincente... Como pode-se caminhar sobre as
águas se os nossos pais caminharam com muito sacrifício, so-
bre o fundo do Mar Vermelho?
— É suficiente gerar uma força igual e contrária para
sustentar o corpo.
— ... E devolver a vida ao corpo de Lázaro em estado
de decomposição há dias?
— Onde há vida, existem fermentos vitais. Chamados e
unidos, refazem o que a decomposição desfez. De fato, o ato
milagroso cumpre-se na hora, mas se completa com o tempo.
Todas as leis da natureza vigoram, mas podem ser apressadas.
— Onde chamar e como usar estas forças contrárias,
estas fermentos vitais?
— É a convicção absoluta e indestrutível nascida no ín-
timo, às vezes, até a revelia da consciência porque “existem
razões que a própria razão desconhece”, que o próprio espí-
rito eleva à vontade superior.
VÔOS 43

Tudo que ele tinha dito, a julgar das expressões dos vul-
tos, parecia não penetrar na mente dos dois. A flecha com
ponta aguda escorrega sobre o mármore levigado.
O jovem que seguramente tinha renunciado a compre-
ender, encurtou:
— ... E por que nunca aconteceu a um mutilado reaver
o membro perdido?
— Alguém invocou ou imaginou a graça?
Os dois se olharam surpresos: nunca ouviram falar de
uma invocação semelhante. Sabiam dos leprosos, cegos, invá-
lidos e deformados curados, mas de um amputado beneficia-
do pela graça junto à piscina de Siloé, nunca.
— Mas se vocês querem mais, digo-vos: quando acon-
tecerá o milagre do membro mutilado, não aparecerá logo,
mas renascerá lentamente como o rabo à lagartixa. A nature-
za tem as suas exigências...
O jovem, demonstrando impaciência, interveio:
— Convicção, comoção, não explicam o milagre. Este
deve ser anunciado e acontecer na frente dos olhos dos incré-
dulos!
O ancião observou com ostentada ingenuidade:
— Milagre... Por que o mistério? Talvez o pai dos mor-
tais queira-nos curiosos? Como nós podemos entendê-lo e
amá-lo se ele é misterioso?
— O pai ama o filho, deseja que ele cresça em sabedo-
ria, com o exercício da inteligência, todos os dias. O filho, no
empenho diário de acumular experiência, acabará desven-
dando fatos e sentidos ocultos nas profundezas dos tempos,
nos lugares mais distantes. A verdade acaba, como bolha, su-
bindo à tona.
44 G I O R G I O G A S PA R R O

O jovem truncou o diálogo com alegria:


— Após muito andar, vejo a pousada do Sol!
O ancião acrescentou:
— Precisamos mesmo de alimento, bebida fresca e con-
fortável cama — e suspirou — para acabar o dia.
Os três, junto à porta, sacudiram o pó das vestimentas e
sandálias, depois entraram. Na frescura sonolenta do ambien-
te, provaram do conforto e, com um breve suspiro, saudaram:
— Shalom.
De um canto obscuro, veio a resposta:
— Shalom.
Os andarilhos aproximaram-se de uma bacia na qual
gotejava água limpa de um caniço e molharam mãos e rostos.
O ancião perguntou ao companheiro:
— E o burrico?
— Tirei-lhe a carga e o liberei para pastar onde lhe for
possível.
Enxutos, afrouxaram os cintos e sentaram-se à mesa.
Esta, estava próxima do ângulo do vão com alguns bancos,
dois fixados às paredes, o maior embaixo de uma pequena
janela velada em parte por um pano que se agitava de quando
em vez. Na última luz do dia, esvoaçava uma mosca da qual o
zumbido se calava quando pousava sobre o ramalhete de ale-
crim dependurado do teto com um lacete.
Uma mulher, sem ser chamada, chegou perto da mesa.
Tinha a cabeça descoberta, mostrava uma cabeleira corvina e
comprida que fazia ondear com graça.
De um rústico tabuleiro, tirou uma moringa, cujo barro
transpirava pelo frescor da adega, e três copos. Quando recli-
nada, os homens podiam ver-lhe, pelo decote, o busto. O
VÔOS 45

ancião pediu a refeição, o terceiro acrescentou uma cebola.


Logo depois, a mulher colocou sobre a mesa de tábuas gastas
e lascadas, um grande disco de pão chamuscado à borda, uma
tigela de azeitonas pretas que formavam um montinho no
meio, uma tigela maior cheia de figos secos com sementes e
uma cebola com um toco de talo cortado da réstia. Com um
sorriso, emitiu um suspiro que moveu o peito. Foi-se sem
fazer barulho.
Sempre o ancião despejou o vinho nos copos. Pelo am-
biente difundiu-se a fragrância da “maresca” azedinha, viu-se
o luzir da granada, o colar de pequenas bolhas aos bordos do
copo. Era vinho estrangeiro que os navegantes de Tiro trazi-
am de lugares longínquos, das terras que ficavam no fim de
um mar longo e estreito, após ultrapassar a foz paludosa de
um grande rio. Sorveu-o repetidamente e julgou-o ótimo,
pois elevou os olhos ao teto, emitiu um longo suspiro de sa-
tisfação. As papilas da língua, a mucosa das bochechas, a gar-
ganta, todas haviam gozado a virtude da bebida.
— É vigoroso, e macho; os fenícios sabem onde encon-
trar mercadoria deliciosa.
Quando todos tiveram o copo cheio na mão, o terceiro
dos viandantes o levantou e proclamou:
— Agradeçamos a Deus que nos providencia de comi-
da e bebida, embora hoje não tenhamos trabalhado para
merecê-las.
O ancião tomou o disco de pão, o rasgou em três partes
quase iguais e as distribuiu. Com ele, o jovem comeu as azei-
tonas, colocando com cuidado as sementes sobre a mesa. O
terceiro descascou com a faca a cebola, esfregou uma metade
sobre a parte tostada do pão. A mastigação dos três era com-
46 G I O R G I O G A S PA R R O

passada, a boca fechada, a respiração fazia-se pelas narinas


dilatadas. De tanto em tanto, ouvia-se a deglutição facilitada
por um trago de vinho. Naqueles momentos, eles estavam
ausentes. Os olhos imóveis penetravam profundezas desco-
nhecidas. A cena era impressionante. Os personagens, no úl-
timo claror, adquiriam coloração quente e traços carregados
sobre o fundo da penumbra confundida acolá e além de refle-
xos líquidos derramados e do barro úmido.
A mosca voltou a zumbir no ar distante; devia ser o últi-
mo vôo do dia.
Após os figos secos, acabado o vinho, os comensais de-
ram-se por satisfeitos. Ergueram-se. O ancião, cotovelo so-
bre a mesa, começou a tirar docemente alguns pêlos da barba
com os dedos da mão esquerda. Refletia.
— Enfim, o que podemos pensar do supliciado?... Ensi-
na com doçura ao povo, cumpre prodígios benéficos, procla-
ma-se filho de Deus, e morre escarnecido sobre o patíbulo...
— ... E depois de três dias ressurge completamente
despido e descalço; mas não se mostra ao povo e aos juízes
para que eles acreditem, mas aos acólitos, somente. Depois
desaparece entre as nuvens.
— A ascensão impressiona muitíssimo: corpo e espírito
vão ao paraíso. Quem sabe quantos fiéis sugestionados atri-
buirão aos seus profetas e santões...
— A mim parece estranho divulgar ao povo uma nova
filosofia com parábolas. Os romanos não a consideram, os
sacerdotes a julgam perturbadora, os seguidores fabulam a
respeito e acrescentam alguns condicílios levíticos a próprio
favor... Além do mais, Jehosciu ir ao além entre os condena-
dos e de lá voltar discorda com o que disse a Dimas, o malfei-
VÔOS 47

tor arrependido, pouco antes de morrer: “Em verdade te digo:


hoje tu entrarás no paraíso” e a Maria desenganada: “Não me
tocas porque ainda não subi a meu Pai...” Parece-me uma aven-
tura pagã. Os helenos contam que Orfeu procurou Eurídice
no reino dos mortos para reavê-la... Mas afinal, por que o
supliciado foi ao inferno?
O terceiro seguia com atenção as palavras dos compa-
nheiros. Após uma pausa, interveio:
— O corpo é energia que sai da origem e retorna à ori-
gem seguindo a determinação da vontade... Aquele que usa a
virtude da ubiqüidade é semelhante à mente que lê um livro
e segue por outros ambientes... O juiz imparcial aplica aos
réus do passado e do presente a mesma lei, mas também a
mesma misericórdia.
— Então a divindade imutável altera o procedimento.
Antes condenava e exterminava, agora concede clemência às
suas criaturas... Em um determinado momento, gera um fi-
lho e o induz ao sacrifício para sancionar a mudança. Percebo
uma atmosfera de tragédia semelhante àquela na qual Abraão
é convencido a sacrificar o filho Isaac, que tem alma, vonta-
de, sensibilidade, personalidade próprios. É o mesmo autor.
O terceiro levantou a cabeça e inspirou profundamente.
Os fatos possuem a nudez natural e a simplicidade única,
sem atributos.As contradições nascem na descrição testamental.
As transmissões sucessivas à primeira nada são que interpreta-
ções da interpretação. Na propagação, a palavra muda, às ve-
zes, o sentido, conforme o tom: nova imagem nasce no enten-
dimento do ouvinte, pior quando é imprecisa ou tendenciosa.
Somente às privilegiadas inteligências é atribuída a escolha e a
aceitação, entre tantas, da real e verdadeira versão do fato. É
48 G I O R G I O G A S PA R R O

crível que o profeta ou visionário do fato sobrenatural receba


uma particular assistência superior, mas é temerário afirmar
que lhe é fornecida a palavra adequada para a descrição, a ima-
gem precisa, quando ambos não existem na memória e na cul-
tura dos assistidos. Seria violação do livre arbítrio que se repe-
tiria durante todas as traduções em outros idiomas, e para ser a
assistência superior universal, existiria uma única religião.
É inevitável que a mente humana caia na dúvida embora
insista na procura de uma clara e indiscutível definição. Can-
sada e sem resultados satisfatórios, comporta-se como espo-
so que respeita a castidade da noiva até a noite das bodas, mas
não além. Assim a mente acaba de abraçar uma definição es-
peciosa, pois necessita de um apoio assim como o manco da
bengala. Quase sempre aceita a fé como sustentação. Entre
tantas fés, ela é induzida a crer naquela que satisfaz o bom
senso e procede com lógica e precisão. O autor da inspiração
superior construiu a realidade por um escopo bem definido,
donde se deduz que ele é calmo e racional porque existe na
eternidade; com as suas criaturas de intelecto é reto e amo-
roso porque entre ele e a mente humana estabeleceu-se uma
troca de nobres sentimentos; é liberal pois é supremo e inte-
ligente e sabe que o homem contribuirá a alcançar o escopo.
A fé verdadeira não suprime a razão, não favorece o fa-
natismo, o misticismo visionário e cabalístico, não lança o
homem contra o seu semelhante. Quer a mente livre de che-
gar às mais altas camadas da sabedoria.
O jovem, como se quisesse desculpar-se, disse:
— Mas por que Jehosciu não falou assim às gentes?
— Haveriam os simples entendido se os sapientes não
entenderam?
VÔOS 49

— Necessitará de tempo para que sejam descobertos,


pelo entendimento comum, estes sentidos.
— Séculos, a fim de que os sentidos da realidade e da
sua existência sejam plenamente aceitos.
Seguiu o silêncio que dilatou-se como óleo sobre o már-
more levigado. As palavras na mente dos três adquiriram a
substância dos significados importantes.
Jorro de luz vespertina alcançava o relevo da face do ter-
ceiro viandante: as sobrancelhas, os zigomas, o septo nasal, a
proeminência do queixo barbudo eram pincelados de clari-
dade; as íris de ônix luziam; o resto do vulto se perdia nas
sombras.
Chegou novamente a mulher, ainda mais decotada, e
trouxe uma lâmpada com três bicos. Quando abaixou-se para
recolher a louça, difundia-se sob as narinas dos hóspedes, o
cheiro quente dos seios maduros.
— No estábulo, perto do meu quarto, há camas rústi-
cas. Aí vós podereis descansar. Se precisardes de algo durante
a noite, chamai-me e vos servirei logo e com prazer.
O céu tinha-se apagado, o vento soltou a cortina que ve-
lava a janela. A mosca incômoda voltou a esvoaçar zunindo,
alcançada pelo calor das chamas que subiam direitas como
ciprestes. Enfim perdeu-se num canto escuro e silenciou. Fora
passou e repassou uma pomba branca; a batida das asas afas-
tou as palavras da mulher que pareciam repetir-se no silêncio.
Quando os três, absortos, deitaram-se, era noite.
ITÁLIA

Retornei a voar.
A sensibilidade percebeu um toque indistinto na parte
superior da cabeça. Fiz como o professor de literatura costu-
mava fazer durante a lição: passei e repassei a unha do indica-
dor para afastar a estranha sensação, depois recompus os ca-
belos com a palma da mão.
Todavia, sentir-me livre, suspenso no tempo e no espa-
ço, causa-me sempre uma satisfação semelhante a do aviador
que conduz a sua aeronave dentro ou acima das nuvens e es-
quece-se por momentos de seus limites e de sua máquina.
Bendita semelhança à personalidade divina!
Voando, com os braços abertos, acompanhava os cimos
dos Apeninos. Deixado atrás o Lazio antigo, mantinha à mi-
nha esquerda a ubertosa e ondulada campanha toscana, já dis-
tante da Maremma, espalhada de casas e olivais; à minha di-
reita, a região umbra, montanhosa e recolhida, aqui e acolá
manchada de aldeias coloridas e de traços brancos de riachos
espumosos. Então lembrei o que disse o professor da unha,
um florentino arguto e zombeteiro: “Nestas regiões o povo
cultiva as piores virtudes e os defeitos mais agradáveis, assim
geram santos batalhadores, navegantes visionários, artistas
extravagantes depois ‘capiscuola’ geniais”. Assim porque a
originalidade genial não é somente um produto da combina-
ção genética, mas da magia sugestiva dos lugares. Aqui a
VÔOS 51

genialidade brota como hortaliças na terra humífera no de-


correr da primavera luminosa e úmida. No meu navegar tu-
rístico e reflexivo, soube de “lugares semelhantes” a estes além
dos Alpes e nas ilhas nórdicas. E, convicto que a genialidade
é, acima de tudo, uma confirmação divina, agrada-me imagi-
nar um anjo diligente durante o vôo, retirar de algo seme-
lhante a uma cornucópia, uma espécie de sal brilhante e
espalhá-lo sobre esta região; depois proceder, para o Norte,
além da cadeia alpina e ignorar a fuga do precioso sal durante
a viagem. Mas, como contam algumas crenças, se por acaso
chegasse sobre esta região o anjo apocalíptico, vestindo a ar-
madura e rodando sua espada, com seus companheiros para
começar um dos tantos morticínios, favorecer epidemias,
convulsão telúricas já anunciadas, ele diria:
— Antes de serdes cruéis e destruidores como vos foi
comandado, paremos para beber vinho cor de rubi, espumante
em taças de cristal resplandecente! Aqui estamos na Itália, e
não somos feitos de ferro e ódio, mas providos de inteligên-
cia, de sentimentos, de livre arbítrio.
Na verdade, para mim, esta história de anjos carrascos é
fábula de mentes fanáticas que querem incutir o temor que
arrasa os seus semelhantes. Tenho certeza que com o mais
sensível telescópio da razão, não enxergaria dos anjos nem
uma pluma de confirmação. Então Deus não manda matar e
destruir para castigar; é o próprio erro que traz consigo o
castigo.
Lembro um dia. Ambrogio, um estudante “debilóide” no
meio de um grupo de colegas, afirmou solenemente:
— A partir de hoje, para mim dois vezes dois dão cinco!
Alguém observou:
52 G I O R G I O G A S PA R R O

— As tuas contas sairão sempre erradas. Reprovado!


Alcançar a verdade parece fácil: basta acompanhar a re-
alidade; mas não é assim. O que Deus pretende afinal com o
seu trabalho criativo? Ele, por sua natureza, é irrequieto, ou
melhor, dinâmico. A sua obra está em perene movimento. O
que não muda é o seu desígnio. Qual?
É necessário constatar: Existe um cosmo aparentemente
vazio e inútil que recebe e transforma energia em matéria me-
diante um complicado sistema de violenta atração, uma verda-
deira incógnita, mas que está em perpétua expansão a conquis-
tar o Vazio. Nele existe vida e vida inteligente, num planetinha
de um ínfimo sistema estelar de uma modesta galáxia que pro-
vavelmente não forma sequer uma nebulosa. Então? Convém
lembrar a parábola do grão de mostarda que dado à terra tor-
na-se árvore frondosa na qual encontram abrigo os pássaros do
céu.Comparação tão a gosto da mentalidade divina que tem
por princípio natural o engrandecimento: do micro ao macro.
Então, é razoável pensar que Deus não cria para liberar
sobre a criação impulsos sádico-vingativos como nos dão a
entender certos profetas de inspiração duvidosa e de cultura
paleolítica. Então, deduz-se que ele queira receber eflúvios
de sentimentos dos intelectos assim como o velho sensível e
alegre aprecia em volta de si a alegre companhia dos netos
sapecas. O futuro remoto provavelmente confirmará.
Mas tem mais. Quando eu queria saber de imediato algo,
pedia ao pai:
— E o amanhã como será?
— Amanhã é outro dia — respondia para se livrar do
embaraço.
Nesta “coisinha” pensei quando surgiu a pergunta:
VÔOS 53

— Se o futuro já está definido, como conciliá-lo com o


livre arbítrio do homem?... E dos anjos? Estes pobrezinhos
na opinião dos especialistas são reduzidos a adoradores com-
pulsivos, mensageiros mercuriais; justiceiros insensíveis, pro-
tetores de infantes, enfim, relegados à categoria de serviçais
peníferos... Mas se alguns deles se revoltassem, assim como
o fizeram Lúcifer e companheiros?... Sim, ao menos existe o
livre arbítrio de desobedecer. Se assim não o fosse, no Empíreo
dominaria uma férrea disciplina militar que parece impossí-
vel. Mas há sempre dúvidas.
Relembro: Durante a guerra, após um bombardeio aé-
reo sobre o piso da igreja de S. Leonardo, eram alinhados
uma centena de corpos tirados dos escombros para uma su-
mária identificação dos possíveis parentes. Chamava a aten-
ção o cadáver quase intacto de uma mulher grávida de sete
ou oito meses. A saliência do feto estava deslocada totalmen-
te sobre o flanco esquerdo. Uma anciã, ao ver tal espetáculo,
exclamou indignada:
— Como é permitido aos homens uma tal coisa? Deus
não vê?... Deus não existe!
No templo, um sopro de vento fez tremer as chamas das
lamparinas.
Saí na viva luz de abril e pensei:
— Antes no bom e no melhor, Deus existia. Agora, não
mais.
Assim me convenci de que o homem é livre de compor-
tar-se até como fera sanguinária, que Deus não intervém nos
assuntos terrenos. A morte de seis milhões de criaturas não
aconteceu por omissão ou tácito consentimento divino,mas
em conseqüência dos erros acumulados pelas religiões, tradi-
54 G I O R G I O G A S PA R R O

ções, interpretações balordas. Mas há exceções atribuídas à


providência, à casualidade ou a ambos, invocadas intensamente
por uma mente esperançosa. Não é por acaso que anda pelo
mundo: “Fortuna juvat audaces”, e alguém contar estas coisas.
Quando parou o fluxo dos pensamentos, encontrava-me
a pouca altura sobre os campos próximos a uma aldeia. Então
vi, sentado no chão, recostado a um monte de gavelas, um
homem que bicava bagos de um cacho de uvas vermelhas.
Agucei a vista e reconheci logo o viking que vi e ouvi no Egi-
to no tempo das pragas bíblicas. Continuava a ostentar uma
barbaça fulva e encardida, os calçados acalcanhados, os panos
dos pés imundos e esfarrapados. O casacão de couro escoria-
do abria-se sobre o peito veloso e mostrava um ferimento
mal suturado abaixo do esterno, as calças manchadas e rasga-
das repetidamente. Não tinha melhorado o aspecto de bárba-
ro sujo desde que o vi com o egípcio. Deduzi que a sua evolu-
ção mental, que influi no aspecto, tinha avançado pouco. O
que fazia em terra da Umbra, tinha que adivinhar.
O toque indistinto sobre o occipital, desvaneceu incon-
tinenti.
O primeiro impulso foi de interrogá-lo, mas me segu-
rei. Para tomar contato com os vagantes transpassados, é ne-
cessário tirar do íntimo e usar algumas virtudes das quais eu
nunca experimentara. Assim, fiquei como macaco sobre o
galho, um macaco atento e difidente.
Após ter comido a uva, o viking Horst emitiu um es-
trondoso arroto de satisfação; liberou-se dos líquidos supér-
fluos, e deitou-se sobre a palha, em vigília.
Pouco depois, passou na frente das gavelas, um fulano
com aparência de religioso.Vestia um saio tão gasto que pare-
VÔOS 55

cia uma teia de aranha dobrada com diligência, várias vezes.


Tinha os pés sujos calosos, deformados. Aquele há muito tem-
po tinha deixado o mundo dos vivos. O jovem, não mais de
trinta anos terrenos, segurava as mãos juntas sobre o peito,
salmodiava à voz baixa, frases das quais as palavras confusas se
repetiam em estribilho.
— Ei, tu, vem aqui! — intimou o bárbaro.
O chamado veio titubeante e parou à frente do deitado.
— Aonde tu vais?
— Eu vou a Assis, o lugarejo mais adiante. Ali vive e
opera o Pobrinho.
— Quem te mandas aí?
— A intuição — respondeu tremulamente.
— A fazer o quê?
— A observar o Pobrinho e, com seu exemplo, apren-
der humildade e melhorar.— Calou-se, mas o desejo de hu-
milhar-se para purgar os erros do passado o impeliu a falar
novamente — Na vida terrena fui o orgulhoso e prepotente
Marcelo Flavio Rufino. Para mero prazer, impus tormentos
aos plebeus e escravos, subjuguei ao meu prazer as escravas e
as mulheres de outros homens. Por causa de um imprevisto
arrependimento, defendi uma mãe e a sua criança da morte
segura das feras, no circo. O imperador, zangado, condenou-
me à arena, onde caí exangue sobre o leão abatido. Agora sou
frade Caliga, sou peregrino pelo mundo de todos os tempos
para saber o caminho melhor para chegar ao estado de co-
nhecimento e a beatitude.
— Eu também fui induzido a chegar em Assis embora a
minha culpa não seja a soberba — acrescentou Horst. Men-
tia; na verdade não sabia para onde ir.
56 G I O R G I O G A S PA R R O

— Qual é?
— A luxúria violenta, o meu prazer imposto com a for-
ça. Fui estuprador de jovens virgens.
— Que horror!
— Que prazer! — Seguiu a exclamação uma risada hor-
rível.
— Mas tu estás aqui para...
O bárbaro o calou com um vozeirão guerreiro.
— Imagina prostrar a virgem sobre a enxerga, arrancar
a vestimenta como se descasca um fruto tenro, afundar o ros-
to ríspido de barba no vale dos seios, abrir com o joelho
prepotente entre choro e arquejos, o caminho até penetrar a
porta da cidadela, enfim arrancar-lhe o grito da rendição e
daí dominar a submissa...
Então frade Caliga assumiu a antiga postura do centurião
corajoso e tempestou:
— Bárbaro infame, tu estás aqui para purgar a tua besti-
alidade e tu te vanglorias de gestos desonrosos? — Ergueu-
lhe o punho direito como se segurasse um gládio vingativo
— Andarás errante no mundo e nos milênios até quando a
tua mente resplandecer pureza. — Recompôs-se na modés-
tia penitencial. Abaixou a voz:
— Agora sabemos porque vais a Assis: aí terá à tua fren-
te um raro exemplo de amor imaculado entre o Pobrinho e a
jovem Clara. Deles aprenderá o gesto puro e expressivo, as
doces palavras de um límpido sentimento. Por comparação,
terás repugnância do teu passado.
Horst deixou cair a cabeça entre os joelhos, talvez para
não mostrar as lágrimas silenciosas do adulto, agora criança.
Enfim, disse com voz quérula:
VÔOS 57

— Temo não entender. Aliás, nunca entendi coisa algu-


ma. Sou pedra bruta, participei a todos as malvadezas sem
remorso... Sob o comando do brutal e severo Barba Ruiva,
naveguei muito tempo no seu dracar para alcançar lugares
longínquos. Um dia chegamos a uma terra desconhecida cha-
mada Vinland. Durante a viagem, vivi arrastado, como todos
os companheiros em brigas e ameaças: a comida era pouca e
estragada, o cansaço nos ossos. Quando se aguardava o vento
de popa, mordia o couro da cintura, molhava os lábios com
água gelada, depois abandonava a cabeça sobre o costado do
barco, as mãos sobre os remos, assim descansava sonhando
com a terra. Às vezes, quando o sono demorava, observava as
ondas distantes chegar a bater no flanco do barco e desman-
charem-se em espumas. Após muita repetições, distingui pon-
tos luminosos. O mar revelava um mundo cheio de significa-
dos, percebi, mas nunca entendi o por quê. Por causa da
incapacidade de raciocinar, após a morte fui obrigado a andar
pela Grécia, no tempo dos pensadores e dos filósofos sofistas
para ouvir as argumentações deles até o exaurir a paciência.
Ó céu, por que não tenho capacidade de entender? — Le-
vantou o rosto dentre os joelhos. Aquele mastodonte
desvirginador de donzelas chorava pelo único olho. Com as
lágrimas e o suor que corriam pelo rosto, uma certa oleosidade
suja saiu-lhe do rosto, adquirindo um tímido toque juvenil.
Frade coliga observou, do alto, Horst sentado como pe-
nitente abatido e assentiu que, enfim, tinha-se entreaberto a
porta do vão escuro e uma lâmina de luz incidiu o duro piso.
— Meu Deus, quanto sofre este espírito! O ambiente
no qual viveu cegou-lhe o intelecto; tudo lhe foi escondido!
— Depois, com tom paterno, disse-lhe: — Levanta-te, es-
58 G I O R G I O G A S PA R R O

prema do teu íntimo a vontade de melhorar... Vamos ver o


frade Francisco.
Começaram a caminhar vagarosamente em direção ao
exemplo que ensina e dignifica. Frade Caliga começou a ins-
truir o companheiro.
— O verdadeiro motivo de existir e vagar, é assistir a
experiência instrutivas e adquirir conhecimentos. As expe-
riências induzem a reflexão, esta revela-te a realidade. Por
exemplo: Se tu imaginas a divindade semelhante a um déspo-
ta irascível, justiceiro cruel, é porque tu viveste entre homens
impulsivos e violentos e te tornaste tal; se tu o descreves um
velhinho afável e misericordioso, tu o crês um pai de família
como observaram alguns; se a razão te representa Deus como
nuvem de sabedoria, sentimento e vigor da qual saem raios
de energia volitiva para o azul da criação, tenha confiança e
contentamento, porque tu estás próximo da verdade. Deus é
imutável; mas se a ti é difícil raciocinar usando os novos pen-
samentos, crê somente. O querer crer firmemente, faz nas-
cer na tua mente a convicção que revela.
— A minha opinião e diferente.
Frade Caliga virou-se.Viu um austero senhor acompanhá-
lo a distância, no lado oposto do caminho. Alongava os passos
com cuidado entre os seixos rolados, a longa vestimenta ad-
quiria pregas caprichosas que se desfaziam quando um pé ul-
trapassava o outro. Uma olhada indagadora também nos de-
talhes da pessoa, fez suspeitar quem fosse o viandante. Este
tinha sobre a cabeça um capuz do qual o cume chegava à cin-
tura, debaixo aparecia uma touca com dois pequenos nastros
brancos que pendiam sobre os ombros para segurar a cabelei-
ra seguramente longa e vasta. O nariz adunco pendia sobre a
VÔOS 59

boca cortada para baixo, compunha uma expressão desde-


nhosa, até zombeteira, o olhar altivo confirmava a primeira
impressão. Este senhor era certamente convencido de sua
superioridade. No observador despertava a imagem de águia
atenta sobre o alto cimo.
Frade Caliga, depois de observá-lo longamente, da cin-
tura acima, com a máxima cortesia, disse-lhe:
— Não é suficiente ter uma opinião para julgar, é neces-
sário ter convicção firme.
A águia levantou o queixo e as sobrancelhas.
Horst julgou a atitude ofensiva. Ergueu-se em toda a sua
estatura, encheu o peito com prepotência.Voltou a ser o bár-
baro brigão.
Frade Caliga, experiente em disputas, interpôs-se entre
os dois. Estes continuaram a confrontação mirando-se com
olhar irado sobre a cabeça, cada um de um lado do introme-
tido. Este implorou:
— Horst, moleque cabeçudo, domina teus impulsos...
Vamos.
Apertou-lhe o bíceps esquerdo e o trouxe a si. Depois
de alguns passos, sussurrou-lhe ao pé do ouvido:
— Demonstre respeito e consideração. Tu não sabes
quem foi este personagem... Foi um que sofreu muitas expe-
riências dolorosas e grandes desilusões, por este motivo tor-
nou-se áspero e soberbo.Viu uma só vez e amou perenemen-
te uma moça, mas não foi retribuído... Nunca a tocou. A ima-
gem dela dissolveu-se no tempo para tornar-se visão. Foi
político apaixonado, os adversários o condenaram ao exílio
da sua cidade. Perambulou pela pátria antiga a mendigar um
teto e comida; lamentou quanto é salgado o pão da caridade
60 G I O R G I O G A S PA R R O

e, ao pôr-do-sol, experimentava saudade da casa e dos afetos


distantes. E a saudade foi amaríssima por causa da inutilidade
dos sacrifícios: foi-lhe negado o louro poético no Campidoglio
e as honras da arte triunfante. Morreu na solidão, mas antes
negou à cidade natal os seus ossos. Pouco o consola que foi
indicado um dos grandes poetas do mundo dos vivos.
Horst admirou-se, boquiaberto prorrompeu, enfim:
— Mas que mundo é este onde poetas soberbos, ladrões
corruptos, estupradores choram juntos?
Frade Caliga, embora surpreso, explica-lhe calmamente:
— Esta é a comuna da expiação. Somos irmanados pois
somos criaturas do único criador.
— Frade... frade, desejaria unir-me a ti. Ouvindo-te
entendi que das muitas experiências, tu tens destilado sabe-
doria.
— Se é para o teu bem, vem comigo e ouve. Mas ficas à
minha esquerda e não mudes de posição.
Ao longo do caminho, amestrava aquele que lhe dava
ouvido.
— Francisco Bernardone não é mais senhor, é simples-
mente o Pobrinho de Assis. Filho de um rico mercador, tal-
vez toscano, e de uma senhora provençal, experimentou o
desgostoso sabor da vaidade das vaidades, renunciou ao bem-
estar e às comodidades, saiu da casa paterna despido e imitou
o seu mestre na bondade e no sacrifício. Hoje ele fala aos
animais que o ouvem e o obedecem, cura os doentes, alivia
os desesperados, mas, acima de tudo, cumpre a missão de
indicar aos extraviados o cainho do bem com a palavra e com
o exemplo. Por isso nós chegamos de tempos longínquos para
apreciar o exercício da virtude. Ele, para nós, é santo. So-
VÔOS 61

mente ele soube renunciar ao indispensável, dormir no frio


sob as estrelas, descansar o corpo sobre a pedra, viver com
um mínimo de agasalho, descalço para não violar a pobreza.
Quando necessário, intercedeu o milagre. Para tal compor-
tamento sagrado, recebeu nas mãos e nos pés os signos da
crucificação do mestre.
Horst assumia, durante a lição, uma expressão cada vez
mais forte de contrição que lhe alterava o aspecto. Alguns
cabelos caíam e voavam, a fronte agora mostrava-se alta e
espaçosas, transpirava humor avermelhado e denso que vinha
do íntimo o líquido coava sobre as faces também já úmidas, as
rugas cancelavam-se, os lábios intumesciam e coravam. As-
sim devia ser o rosto de Horst na mocidade. O frade observa-
va impassível, somente os olhos demonstravam deleite. O
Águia, ao contrário, tornou-se reflexivo: ponderava cada pa-
lavra ouvida e estremecia.
— Possui fé inabalável que suprimia qualquer dúvida,
remetendo a explicação aos mistérios, à sabedoria superior.
Um dia mordi a maçã: senti o desejo veemente de explicar
cada coisa e satisfazer a curiosidade... Agora ando pelo mundo
e pelos tempos para saber... até quando eu não sei... Fui a
uma região chamada Índia, mãe prolífera do gênero huma-
no, próxima a altas montanhas. Aí soube de Sidarta Gauta-
ma, filho de um potente de casta elevada. Ele cresceu em
um paraíso de delícias e prazeres construído pelo pai amo-
roso. Quando entrou na realidade o jovem inexperiente fi-
cou pasmado: conheceu a miséria, a doença, a morte. Con-
venceu-se que o desejo, o egoísmo eram a causa delas. Sidarta
Gautama se impôs à meditação insistente, à regra de ali-
mentar-se cada vez menos até quando ele conseguisse so-
62 G I O R G I O G A S PA R R O

breviver com um único grão de arroz por dia. Assim ele


venceu o desejo e o sofrimento. Uma irracionalidade que
permaneceria se o contrário também fosse verdadeiro. Dei-
xou a regra porque a iluminação reveladora não chegava.
No homem, existe harmonia que não pode ser violada entre
o espírito e o corpo; se desequilibrada, a mente se altera,
perde a racionalidade, devaneia e o corpo padece. No fim, o
indivíduo cai na sonolência mística, na indolência. Sidarta
Gautama voltou a uma dieta saudável, a uma ascese mode-
rada e chegou à iluminação. Daquele dia em diante, o seu
nome é Buda.
Julgai o exemplo pobre, nele não encontrei o método
que guia a mente a entender e explicar tudo. Não se pode
vencer uma partida desmanchando-a.
Aproximei-me também dos santos e sapientes, e soube
que o espírito humano, depois de elevar nobres sentimentos,
por mera concessão superior, adquire salvação e conhecimento
no estado definitivo do sobrenatural... É possível tantas difi-
culdades para alcançar o bem-estar íntimo, aquele que faz do
homem senhor atuante em todas as realidades? Se assim for,
entrevejo um Paraíso deserto e silencioso! — O queixo caiu
sobre o peito, as pálpebras baixaram.
Frade Caliga percebeu o olhar do Águia: a obra produzi-
da com tanto afinco doloroso durante anos, esmigalhava-se,
sugada pelo tornado de uma idéia mórbida. Ele não conhecia
à justa medida.
— Agora este Francisco, já conhecido até entre árabes,
para fortalecer o espírito, impõe-se penitências além do bom-
senso.Vive em lugares inóspitos entre os empestados, os en-
jeitados. Age assim porque ama a Deus e ao próximo. Um
VÔOS 63

homem santo que podia viver cem anos, oferecendo sabe-


doria e exemplos edificantes, morre consumido do morbo
aos quarenta anos. Os sacerdotes afirmam que o corpo é um
dom divino, sagrado habitáculo do espírito. Então tem que
ser preservado. O suicídio é condenado; não se deve tolerar
penitências cruéis nem sobre a própria pessoa nem transcurar
os ferimentos. A gangrena, que dizem doloríssima, faz a fe-
rida fétida e nojenta. Induz o gangrenado a invocar a ampu-
tação ou a morte... É possível que durante um martírio se-
melhante, Deus paternal compraza-se do sofrimento da dileta
criatura e a aconselhe a apertar mais o cilício?... Ou por
amor ou por piedade, conceda-lhe o fim dos sofrimentos?...
Para os médicos, a criatura perdeu momentaneamente a ra-
zão. Ela vive com fraquezas orgânicas, excitações diversas,
um estado mórbido misturado a um misticismo sem refe-
rência, de paixão pela dor física, imitações de exemplos
legendários, de êxtases povoados de visões culturais ou im-
pressões transmitidas por herança genética. Acontece em
todas as religiões... Acabada a perturbação, entre os fumos
rarefeitos da exaltação, a vida natural reage. A mente da cri-
atura distingue o movimento das imagens, os sons, experi-
menta os estímulos da fome e da sede, enfim, o contraste
entre o real e o imaginário... O santo dei santi, qual o verda-
deiro estado? Seria melhor aproximar-se do autor da reali-
dade em perfeito equilíbrio mental, ou seja, sem perturba-
ções íntimas, dialogar para saber mais e deduzir e, oxalá
temendo pela audácia, convidá-lo idealmente à agape em um
sereno ambiente. O mestre dialogava com os malfeitores,
brincava com as crianças, sorria às mulheres... O pai dele é
menos do que o filho?
64 G I O R G I O G A S PA R R O

Os ouvintes ficaram suspensos durante a peroração, en-


fim sopraram um suspiro.
— Tu me colocas uma questão que não sei resolver. Pa-
rece-me um caso extremo que está entre o certo e o duvido-
so, o limite ficaria onde a convicção razoável determina. Deste
caso, percebe-se que no reino do espírito, vigoram leis que
ainda não conhecemos.
— O conseguimento da sabedoria deve ser sempre do-
loroso?
— Depende da natureza da pessoa: se público, verda-
deiramente doloroso, causa impressão nos observadores, gra-
va-se na memória para transmitir aos descendentes e gera
um precedente determinante nos duvidosos. Além disso, o
exemplo pode causar remorso em algumas consciências, a
razão espiritual que acaba cancelando a culpa; sem dúvida
um hábil recurso misericordioso superior.
— Porém o remorso violento pode causar emoções
incontroláveis, obsessões na mente humana. Mais uma vez
deve-se usar a razão, que no final não explica tudo... Verda-
deiramente... de fato, difunde-se entre os habitantes da
Umbria, o poético e maravilhoso episódio no qual Francisco
comanda aos pássaros, peixes e lobos, e é obedecido. O acon-
tecimento causa-me perplexidade. Sempre me foi dito que
os bichos não têm alma racional, por isso, não têm capacida-
de de entender e querer e menos ainda de receber mérito
pelas suas ações. Nunca ouvi falar de animais no reino do so-
brenatural... ou vale a doutrina da transmigração?
— Demonstras erudição e habilidade no raciocinar para
ser um simples espírito entre tantos e ter cometido uma cul-
pa tão vulgar.
VÔOS 65

— Como tu suspeitas, fui escritor, poeta, raramente fi-


lósofo. O exercício da razão tornou-se cada vez mais insis-
tente. Nos últimos anos da minha vida terrena, a convicção
religiosa construída com amor e perseverança, atenuou-se.
Agora procuro a explicação de qualquer mistério.
— A tua inteligência imponha dentro de ti uma trégua
durante a qual procura convencer-te: nem tudo pode ser ex-
plicado, muito deve ser intuído. os conceitos que dão origem
às idéias e aos pensamentos vem de cima, após conseguir, então
terá explicações.
Entre os dois interpôs-se o silêncio daquele que sopra
sobre o lago de águas fundas, sem marola, sobre, sem vôos de
aves...
O Águia agora estava cabisbaixo, após a descida lá do
cimo. Por alguns momentos, pensou, o frade Caliga, ter-lhe
esclarecido questões importantes, valendo-se das tantas ex-
periências vividas em tempos e lugares diferentes. Ao con-
trário, o frade o aconselhava a convencer-se, a esperar.
— Por que não se rasgam as nuvens para mostrar-nos o
sol e outras estrelas? — imprecou o Águia à voz alta. Os bra-
ços escorregaram do peito aos flancos. — Tenho que me con-
tentar com as costumeiras explicações, metáforas, arrufos
coreográficos de visões que não explicam nada nem escon-
dem a ignorância humana. — Por um instante, provou res-
sentimento contrário a convicção do frade Caliga. Então lhe
pediu com aspereza:
— Qual o motivo que justifica as impressões das estig-
mas do maestro crucificado, no corpo do Francisco?
— Julgo o acontecido um reconhecimento do doador
pela santidade do frade. Parece que os estigmas são indolores,
66 G I O R G I O G A S PA R R O

superficiais, assépticos, de duração limitada. Então as impres-


sões não são manifestações de crueldade religiosa, mas de
bem-querer e solidariedade.
— Porém não são todas, parece faltar o ferimento às
costas, a laceração da derme sobre as costas produzida pelo
“flagellum”, os arranhões profundos produzidos pelos espi-
nhos da coroa na fronte e nos têmporas.
— A falta revelaria o bem-senso do doador: concede
alguns sinais na carne, suficientes para provar o agrado da fé e
das obras sem exageros.
— Esta condescendência parece ser concedida com faci-
lidade e de forma contraditória. Como disse, por inspiração
superior, fui aconselhado a vagar pelo Oriente Médio. Uma
vez, pus atenção, aos diálogos entre Mulah e doutores das leis
corânicas, por isso dignos de fé. Vim a saber que alguns sufis,
após elevada ascese, receberam na carne os estigmas dos
ferimentos que o profeta Maomé recebeu na batalha contra
os infiéis politeístas. Não te surge o pensamento que a apari-
ção dos estigmas seja o resultado de uma intensa sugestão? —
Após alguns átimos de reflexão, acrescentou: — Podes escla-
recer diversamente a duplicidade divergente? Se tu não po-
des, não me surpreende... Eu sei há muito tempo que a igno-
rância é a nossa limitação, que nós mascaramos desonestamente
entre volteios dialéticos. — Depois de notar o desânimo do
frade Caliga, com tom de bonomia, prosseguiu: — Perdoa-
me se despejei em ti a minha dúvida. A minha pergunta não é
insidiosa e muito menos de contestação irada. Estamos aqui
para conhecer e distinguir para eliminar contradições, para
chegar à verdade. E este é o verdadeiro escopo: “Mente infor-
mada, fé redobrada!” Louvores exagerados, rezas convencio-
VÔOS 67

nais e repetidas mecanicamente, fastiam a todos, revelam al-


mas servis, abusam da paciência divina. Por experiência, ago-
ra sei que os espíritos em dúvida assim como os ignorantes,
não sobem, condenam-se a uma perpétua procura... Mas de
volta ao primeiro argumento: podemos pensar que receber
os estigmas de um martirizado ou ferido não seja um aconte-
cimento raro, mas o seria ao recebê-las de forma diferente. O
bom senso induz a pensar que Jesus de Nazaré foi pregado aos
pulsos por um motivo prático: as palmas das mãos não teriam
agüentado e rasgariam-se pelos pregos por causa do peso do
corpo. A observação é confirmada pelo lençol mortuário que
envolveu o corpo crucificado. Nele, nota-se entre as tantas, a
impressão de sangue sobre o pulso esquerdo, pulso que reco-
bre o direito e ambos com as mãos, a virilha. O dorso da mão
esquerda, não mostra ferida perfurante.
Então frade Caliga levantou a cabeça, abriu a boca para
inspirar, escancarou os olhos assim como o cego percebe, por
fim, a luz. Podia ser o efeito de uma inspiração ditada em suas
meninges.
— O fato extraordinário não é magia, é efeito do senti-
mento que solicita as potências do espírito, as quais agem
sobre as leis da natureza. Os resultados se revelam de acordo
com a cultura da mente. A santidade não é perfeição absolu-
ta, os santos também erram... Que dizer dos profetas?
Prosseguiram.
Na paisagem além do caminho, mostrou-se um peque-
no lago de águas tranqüilas e límpidas sobre as quais resplan-
decia o sol informe como massa fundida. Às margens, sal-
gueiros reverenciavam-no deixando às águas os longos ramos.
No ar, acima, andorinhas traçavam vôos quebrados.
68 G I O R G I O G A S PA R R O

Os três pararam. Perceberam na efervescência do ar a


aproximação do evento.
Frade Caliga abriu os braços e começou a admirar-se: o
rosto radiou calor intenso, as faces coraram até tornarem-se
luminosas, o olhar fixou-se distante e além do desconhecido.
O pobre saio regenerava-se sobre o corpo ardente, os pés
magros de uma beleza esculpida, tinham sandálias. Frade
Caliga renovava-se.
Horst e o Águia olharam-se por detrás do companheiro
para assegurarem-se da expressão do outro. Ambos estavam
pasmos.
— Irmãos, estou sendo glorificado!... Chamam-me...
Eu vos deixo. Continuai a procurar.
Voltou a caminhar, agora em direção ao centro do lago,
sobre as águas, como Pedro, mas sem titubear.
Horst, de uma candura nórdica no rosto, com pômulos
em chamas, balbuciou:
— Ele alcançou a sua meta... após muitos séculos.
— ... Depois de muitas experiências — emendou o
Águia.
— Nós não possuímos a convicção de poder caminhar
sobre as águas...
— Mas não nos falta a esperança... Quando acontecerá,
até as estrelas estarão a olhar...
Os dois tornaram-se amigos.
MUNDO NOVO

Enfim este vagar sem limites me provocou cansaço.


Soltei a contração dos músculos, apaguei as imagens so-
nhadas como se desfaz o embaciado invernal sobre os vidros
da cozinha, tremulei as narinas para tatear o ar vespertino,
dei atenção ao zunido contínuo nos pavilhões dos ouvidos.
Desejei repouso. Provei-o imaginando deslizar sobre
uma canaleta curva e levigada de um tobogã, caindo no mar
e provocando borrifos e ondas e depois naufragando doce-
mente com a lentidão dos momentos prolongados. Senti o
afago da marola ao nível das pupilas, as gotículas d’água nas
sobrancelhas e nos cílios como toque úmido de fascinação.
Embaixo de um céu incolor, anulava, aos poucos, a cons-
ciência do existir...
— O Nirvana? Saia de mim esta atmosfera de preguiça
mórbida da qual o espírito, sem nenhuma vontade, se aban-
dona cansado das liturgias convencionais, dos discursos me-
tafóricos; assim a matéria humana acabaria amontoada per-
petuamente em um depósito de inutilidades. Humanos, todos
nós recebemos consciência ativa, personalidade singular para
praticar as virtudes e conhecer a realidade... É melhor sofrer
o sofrimento nos momentos despertos, faz-nos desejar o bem,
dá sabor à vida e, se insuportável, correr de encontro ao ideal,
abraçando-o, beijando-o como o faz a criança sobre a face
barbuda do pai.
70 G I O R G I O G A S PA R R O

Reuni todas as fibras de vontade e de ímpeto saí do mar


mórbido. Num relâmpago, vi todos os audazes, de Ícaro a
Magalhões, até o desafortunado e generoso Amundensen.
Enquanto subia, argumentava:
— Não alcancei a verdade, mas me aproximei um pou-
co mais dela. Agora, distingo melhor... Eliminei uma possibi-
lidade errônea.
Provei a satisfação de saborear um alimento gostoso.
— Provavelmente serão úteis ao pensamento universal
estas observações. Dante escreveu acertadamente nas últi-
mas linhas da sua obra: Após anos, vem sempre alguém que
esclarece e aumenta o conhecimento... Eis outra lei do espí-
rito humano.
Reparei de ter penetrado em um ambiente indistinto,
pois escapava à periferia da percepção: passavam luzes de in-
tensidades diferentes, borrões multicoloridos, linhas retas,
ondeadas, tracejadas, pontuadas, enfim comecei a ver paisa-
gens. Fiz como Dédalo alado, planei e diminuí a velocidade,
pus os pés sobre o chão completando alguns passos e parei.
Recolhi os braços emplumados e comecei a observar o lugar.
Embaixo de uma luz crua, olhei o horizonte composto com o
perfil de montanhas que nunca provaram o efeito da abrazão.
À minha frente e aos lados, desertos poeirentos cheios de
fragmentos líticos agudos e cortantes, em qualquer lugar,
marcas de meteoritos cheias de sombras escuras, destacavam-
se da cor dominante. A cena era dominada pelo silêncio den-
so. Levantei a cabeça: o espaço era escuro e pontilhado de
muita e tênues luzes. Pensei: “Como uma mente humana pode
captar a divindade nesta desolação? Aqui o homem deverá
trabalhar muitíssimo!”
VÔOS 71

Andei cambaleante, reparei a falta do ar que acaricia a pele,


sensação que se transforma em percepção que chega ao espíri-
to. Ao invés, experimentei o frio na sombra de um monólito
agudo; calor, na luz violenta. O espírito estristeceu-se.
— A criação incompleta não me agrada! — e pedi men-
talmente desculpa ao autor.
Depois de muito andar, mostrou-se a minha direita uma
grande cratera. No fundo e no meio, surgia um montículo
que projetava uma sombra oblíqua sobre a superfície côncava.
Mirado de cima, o todo parecia uma abertura ocular surrealista,
e me pedi o significado daquela singularidade natural. Da bor-
da da cratera, rolei como pedra esférica até o fundo perto do
montículo. A observação mostrou uma entrada estreita e obs-
cura. Penetrei-a. Após um caminho tortuoso em aclive, che-
guei a um vão augusto. Distingui uma luz débil. Ao redor dela,
seis pessoas retiravam seguidamente, os escafandros espaciais.
Sob o solo, perto das paredes, ferviam volumosas compressas
que livravam fumaça leve e inodora. Esta subia até a abóboda
baixa e descia sobre o fundo, enchendo a caverna. Sobre um
prato, queimavam pequenos cubinhos, difundindo calor e luz.
Os astronautas, agora com vestimentas apropriadas, aperta-
vam-se em volta do fogo, pois a nova atmosfera era fria e seca.
As sombras dançavam sobre a parede. Eram três homens que
tinham aspecto vigoroso e três mulheres coradas de saúde e
com quadris prolíferos. Um dos três gracejou:
— Temos que gravar alguns grafites para perpetuar o
evento? — Sorriu. Não esperava resposta.
Aquele que demonstrava ser o chefe, pela presença do-
minadora e por um topete de cabelos grisalhos, começou a
exortação:
72 G I O R G I O G A S PA R R O

— Após uma viagem perigosa, descemos, felizmente, so-


bre o planeta. A missão a cumprir é de importância primordi-
al: simplesmente justifica a existência do homem na realida-
de.Vale a pena lembrar sucintamente para valorizar o evento.
Nos tempos remotos e de convulsões geológicas, o pre-
destinado animalesco recebeu a possibilidade e a inspiração
de projetar sobre a tela incolor da sua imaginação algumas
simples imagens. Mais tarde, conseguiu dar-lhes movimen-
tos determinados pela sua necessidade ou vontade incipiente.
O exercício repetitivo, ensinou-lhe a lembrar a querer, a pen-
sar, em princípio, depois, com capricho digressivo, a racioci-
nar. A alma primitiva enriquecia-se de experiências e com o
tempo transformou-se em espírito com qualidades indefini-
das, depois chamadas virtudes. A besta tornou-se homem.
Uma qualidade indefinida foi a curiosidade de conhecer.
O desejo de conhecimento é um grão de sal introduzido em
sua natureza, que o obriga a beber a nascente para saciar a
sede. Aprendeu a defender-se dos perigos, a vencer dificulda-
des e sofrimento com o uso da força e da razão. O sofrimento
e o modo de evitá-lo foram e são motivo de melhoria física e
elevação mental. Assim, através dos milênios, uma odisséia que
lhe fortalece a consciência da sua importância na realidade.
Agora, pedimos qual o motivo e o útil empreendimento
arriscado. Carregamos em nós um patrimônio milenar de sa-
bedoria, ou melhor, da nossa ciência, a ânsia de evasão dos
limites terrenos, conhecer novos horizontes cósmicos, um
indeterminado presságio de cumprir o destino. Mas por quê?
Não devemos parar à primeira resposta, mas escalar até a últi-
ma, ou seja, a nascente, para obter uma satisfação clara, com-
preensível, razoável para que todas as mentes possam enten-
VÔOS 73

der, um sagrado direito de todas as criaturas humanas. Eis:


todas as coisas têm um princípio, o princípio tem um motivo,
para gerar um motivo, é necessária a origem inteligente,
conceptiva, volitiva, enfim, emotiva. No estado de existência,
a origem povoa solidão. Personifica o Nada diferenciando-o
do inútil, inerte, insensível, inexpressivo, quando a razão o
queria útil, expressivo, dinâmico, reativo. Esta foi a primeira
constatação lógica da origem. Esta então, liberou com entusi-
asmo a fantasia singular, a inteligência racional, a vontade rea-
lizadora, explodiu energia. O resto nós sabemos. O que nós
ignoramos é o quanto foi grande a sua desilusão ao constatar a
obra incompleta. Onde encontrar o dinamismo, a variedade,
o desenvolvimento, enfim, porvir causador de sentimento?
Nascia a vida. A vida foi criada, bruta de aparência desagradá-
vel, inadequada ao ambiente. Com esta vida podia-se estabe-
lecer uma troca de sensos puros, grandiosos exultantes?
Companheiros, fomos sobre a Terra, agora estamos no
cosmo exatamente: difundir a vida racional e emotiva na re-
alidade em contínua expansão, entrelaçar no que foi o Nada,
uma rede de troca e de sentimentos, entretenimento gáudio
da Origem e dos espíritos. Estou seguro que os votos de gra-
tidão recebidos por vós, serão muitos.
Fez uma pausa. Todo o volume da singularidade criada
parecia abarrotar o vão augusto. Qual responsabilidade para
os astronautas, serem os primeiros pais de novas humanida-
des. Eles se prospectavam um apocalipse ao inverso. É possí-
vel que profetas, adivinhos se enganarão tão redondamente?
O chefe voltou a sorrir.
— Conscientes da nossa responsabilidade, começamos
a obra imaginária: o nada é infinito. Já nos iluminamos com
74 G I O R G I O G A S PA R R O

luz artificial, respiramos o ar produzido por uma reação quí-


mica que libera os gases vitais segurados na matéria, um pro-
cesso cíclico perene. Agora providenciaremos a água.
O chefe fez um gesto para dar início. Uma das astronau-
tas assentou um par de óculos sobre o septo nasal, extraiu de
um cilindro metálico aos seus pés, uma massa mole seme-
lhante à do pão. Na parede próxima, escolheu um nicho e
nele aplicou a massa com barulho de bofetada. Daí a pouco a
rocha começou a transpirar, a umidade dissolveu-se logo na
atmosfera seca, quando maior, formou gotas que escorriam
ao solo árido; saturado, formou-se uma poça.
— Assim como Moisés, fazemos jorrar a água vital da
rocha. Sairá em tal quantidade, de alagar esta caverna, o fun-
do, a cratera, transbordará formando regatos, rios, lagoas,
mares e, por evaporação, atmosferas quentes e frias,
tempestivas e calmas. Escolheremos o chão apto, ambiente
úmido e lhe confiaremos as nossas preciosas sementes: dare-
mos início à primeira flora. Não nos faltará os alimentos e
daremos prosseguimento, agora sim, ao preceito: “amai-vos
e multiplicai-vos”, porque aqui há espaço e haverá abundân-
cia de alimentos. Então, na nova atmosfera, ressoarão vagi-
dos, palavras, risadas, choros.
Os novos colonizadores, em pé, reunidos em círculos,
formavam uma assembléia, a primeira do cosmo. Agora, os
seus traços iluminados de lampejos de luz, exprimiam temor
a julgar pela imobilidade do olhar e esperança com a contra-
ção risonha dos lábios.
— Mundo novo, nova sociedade. Deixamos na Terra os
fanáticos, os que se consideram eleitos porque aqui não quere-
mos guerras. Estamos convencidos de que as histórias em tor-
VÔOS 75

no da origem da realidade nascidas na Índia, elevadas na


Mesopotâmia, difundidas na Palestina e daí pelo mundo todo,
não são verdades sagradas, são interpretações de cenas imagi-
nárias para satisfazer a curiosidade congênita dos povos. Não,
não é com estas histórias que nós formaremos a nova civiliza-
ção. Porém são válidas as palavras do perceptivo devoto do
Egito antigo: “Deus, mente genial repleta de doces sentidos,
emanaste energia que enche o nada de matéria. Suscita em nós
os pensamentos claros para poder ajudar-te no teu trabalho
sem fim. A humanidade levará na criação a vida e o teu conhe-
cimento. O Nada perderá definitivamente a sua natureza”.
A nossa filosofia do viver será regulada pela verdade ci-
entífica, provada pelo bom senso... Lembremos o passado
somente para não repetir os erros. Aplicaremos no relaciona-
mento pessoal, a racionalidade, meio universal de compre-
ensão de todas as mentes. Evitaremos quanto possível a me-
táfora, as semelhanças para não motivar interpretações
capciosas sobre as grandes incógnitas da vida. As verdades
indemonstráveis, portanto presumidas, serão propostas por
nós, jamais impostas. Por experiência, sabemos que a impo-
sição causa discórdias, impele os assim chamados defensores
da fé a castigar e martirizar os renitentes, a transmitir tais
exemplos bárbaros que perturbam nos séculos, as consciên-
cias e as mentes das gerações futuras. Então cada um de nós é
livre de manifestar as suas convicções; a evolução do pensa-
mento e a experiência demonstrarão a validade deles... Mas
sem guerras, com calma verdadeira armadas fortes. O nosso
viver será cooperativo: as noções adquiridas pela mente pri-
vilegiada, postas à disposição da comunidade, formarão o pro-
gresso na nação. O nosso dizer cotidiano deve ser claro e só-
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brio semelhante aos dos navegantes como somos, porém mi-


tigado pela bonomia, pois também a verdade causa dor e res-
sentimento. Também neste novo mundo remoto, continua-
remos a procura da perfeita definição do bem e do mal para
aplicá-lo aos nossos atos a fim de que estes se revelem livres
de excessos e de defeitos à frente do juízo de todos os pensa-
dores dos tempos futuros. Acima de tudo, durante os conta-
tos com as novas gerações, demonstrai-vos nobre sentimen-
tos, estímulos valiosos a cumprir o bem. Lembro-vos que a
nossa sobrevivência e felicidade de todas as humanidades que
de nós terão princípio, dependem do nosso próximo. Não
deixemos resfriar a esperança, damo-nos recíproco incitamen-
to, pois o trabalho é ilimitado, poucos os braços e as mentes.
As palavras adejaram longamente pela nova atmosfera,
enfim desvaneceram nas rochas para se difundirem sobre os
futuros estados, agora montanhas e desertos estéreis. Mo-
mentos esculpidos na história que os descendentes tratarão
como a lenda de Rômulo.
O chefe da expedição permaneceu ereto, em silêncio,
esperava um aceno, uma palavra dos companheiros.
A sua direita, um astronauta, provavelmente o segundo
da expedição, procurou alguma coisa em um dos bolsos in-
ternos do macacão. Achada, apareceu entre as suas mãos um
livrinho no qual a capa negra levava impresso um candelabro
dourado com sete braços. Folheou para encontrar uma frase
para ler e confirmar a solenidade do momento. O chefe o
parou com a mão aberta.
— Seguimos o exemplo do nosso predecessor e dize-
mos: “Este é também um grande passo para a humanidade”.
Outro passo seguirão os que nos fazem felizes. O resto nós
VÔOS 77

guardamos na memória. Todos nós sabemos quais e quantos


danos provocaram as religiões codificadas pelo homem e con-
tinuam a provocar na mãe Terra. Aqui não se praticarão
fratricídios, guerras santas, inquisições, holocaustos nem se
proclamarão privilégios de um ou outro clã. Com estes ma-
teriais não se constrói uma sociedade perfeita. É por isso que
a inteligência superior retificou pessoalmente o que se acre-
ditava bem e justo. Consciente do que nos ensina os eventos
nos milênios, estabeleceremos, na nova pátria, o império da
razão e dos bons sentimentos.
Se malograremos na aplicação das intenções, difundir-
se-á em pouco tempo na comunidade espacial os sentimen-
tos reprovados, previstos pelos magos, profetas, teólogos das
gerações passadas.
Então alguém exultará ao ver o grande desígnio da Mente
criadora desfazer-se em uma apocalipse cósmica.
Do mesmo autor de:
BREVE HISTÓRIA DA REALIDADE

Próximo livro:
ENTREVISTA
QUARTA CAPA
Vôos
Neste trabalho, o autor manifesta discordância
de alguns eventos julgados históricos e de
crenças religiosas, e deles revela as contradições.
Ele propõe esclarecimentos. Quando isto lhe é
impossível, prova a mortificação, mas não perde
a esperança!
Possui uma fé cerebral que se manifesta sem
formalismos laudativos à Divindade e que tem
como premissa: “Tudo o que existe faz parte de
uma seqüência programada pela Mente superior
movida pelos sentimentos”.
O autor afasta interpretações proféticas ditadas
por mestres fanáticos. Segue o caminho indicado
pelo bom senso para conciliar-se com a razão;
razão que foi dada ao ser quando a Mente
decretou: “... Façamos o homem a nossa
imagem e semelhança.”
Vôos pode ser o princípio de uma explicação
universal que daria início a uma compreensão da
realidade e de seu motivo de ser.

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