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PORTUGUÊS Ano letivo 2021/2022

Obrigado, Luís Sepúlveda, pelo porto de Hamburgo

Em 1999, o porto de Hamburgo ficava em Ferreira do Zêzere. Na cama do quarto de


cima, na casa de banho, na sala, a um canto do sofá, enquanto os adultos jogavam
Bridge: o porto de Hamburgo lavava o Verão com águas que eu, com nove anos,
imaginava escuras de crude, atacadas por um mal desconhecido. E era tal a aflição de
acudir àquela gaivota ferida, vinda do alto-mar, que eu dava voltas à casa em busca de
algo com que a salvar.

A Teresa, prima do meu pai e melhor amiga da minha mãe, dera-me o livro no dia
anterior e eu guardei-o como um achado, antes de ler a dedicatória: “Para um menino
muito especial que bem podia ensinar gaivotas a voar”. Como verdadeira criança,
acreditei nesse encantamento: seria capaz de criar uma gaivota — e, para a Teresa, seria
especial. Ainda não sabia que ser criança é ter fé em tais dedicatórias.

Mas Zorbas — o gato grande, preto e gordo — tratava de resgatar o ovo por mim.

Enquanto este não eclodia, os meus pais levavam-me pelas margens do Zêzere em busca
de lagostins, cujos rastos de fuga eram uma caça aos gambozinos. A Joana tinha vinte e
poucos anos, nadava no Zêzere sem medo dos lagostins, e saía da água com tal beleza,
com tais movimentos de coisa bem escrita, que a julgava capaz de dissipar todo o crude
do mundo.

Regressado a casa, ansioso, percebi que à beleza se responde com beleza. Chamei a
Joana a um canto da sala, anda daí que te quero ao pé de mim, e esperei que ela me
olhasse nos olhos para lhe dizer de surpresa, de mansinho e de coração: “Amo-te.” Acho
que ela sorriu, talvez tenha afagado o meu cabelo, falta-me a memória de um abraço;
seja como for, ela sorriu e foi ter com a Teresa, que me disse: “Por enquanto, quero a
minha filha para mim, pode ser?”.

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A partir daí, a Joana evitou-me de surpresa, de mansinho e de coração, a ver se eu


acalmava, a ver se encontrava beleza noutra pessoa, noutro sítio. A Teresa apontou-me
o livro de Sepúlveda, num gesto que dizia “continua a ler”, e eu passei as noites lendo
enquanto ouvia as discussões do Bridge e a voz ensonada da Joana.

Quanto mais acompanhava o zelo de Zorbas, mais o identificava com o zelo da Teresa e
a discrição da Joana, e quando os gatos votaram para falarem com os seres humanos,
entendi quanto custava quebrar um tabu. Incomodado com as tiradas macacas de
Matias, temendo que Ditosa quisesse continuar gato em vez de se tornar gaivota, não me
achava merecedor da dedicatória da Teresa, e estava visto que não merecera o amor da
Joana.

Na última noite de leitura, as discussões dos adultos estavam em ponto de rebuçado e a


voz da Joana sonolenta e distante mais e mais. Na página final, a minha barriga caiu em
vertigem acompanhando Ditosa, acabada de empurrar da torre por Zorbas. Mas a
gaivota evitou o chão e voou sobre o porto de Hamburgo, por fim sabendo ser ave.
Adormeci pouco depois, certo de que às quedas se seguem os voos.

Hoje, no meu porto de Hamburgo, Sepúlveda ainda escreve, eu ainda digo à Joana
“Amo-te”, e a Teresa ainda é viva.

in https://www.publico.pt/2020/04/16/culturaipsilon/opiniao/obrigado-luis-sepulveda-
porto-hamburgo-1912597
Afonso Reis Cabral
16 de Abril de 2020, 14:02

Professora Estagiária
Sara Silva

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