Você está na página 1de 206

Prefácio

Cristiano Lopes Furtado (ou Tino, para os mais


próximos) nasceu em 15 de Maio de 1976, na cidade de
Formosa-GO. Filho e neto de caçadores, teve a sua
infância e grande parte da sua adolescência vividas na
“roça”, convivendo de maneira intensa com o povo do
interior. Seu pai, além de professor dos rios e matas,
sempre foi grande incentivador da vida e das atividades ao
ar livre por isso, desde cedo levava os seus dois filhos às
grandes viagens de pescarias nos Rios Araguaia, Urucuia
e nos rios do distante sertão do Tocantins.
O autor deste livro cresceu apaixonado pela vida
nos campos, rios e matas e pela sabedoria do povo do
sertão. No decorrer da sua adolescência aprendeu com os
mateiros caçadores do interior do Brasil alguns dos
segredos do mato e dos bichos. Formou-se em Agronomia
pela União Pioneira de Integração Social – UPIS, em
Brasília-DF, e depois desse período fez inúmeras viagens
para os sertões distantes à procura de conhecimento,
aventuras e vivências nos mais remotos sertões do Brasil.
A paixão pela leitura surgiu ainda na infância. Já
na adolescência, inspirado por suas leituras e pelas suas
muitas viagens e aventuras, começou a escrever e registrar
em uma caderneta detalhes e observações colhidas em
suas andanças. Os anos passaram e, em 2000, o autor
resolveu resgatar alguns dos seus antigos textos, que até
então não tinham sido divulgados, e passou a postá-los em
sites da rede mundial de computadores que tratavam do
tema. Os textos contavam histórias e particularidades
sertanejas, algumas dessas reais, outras fictícias,
histórias que há muitos anos não eram mais contadas por
livros brasileiros. E pela simplicidade, riqueza de detalhes
e sensibilidade com que eram contadas, fizeram sucesso
imediato.
Ao longo desses onze anos como escritor informal, o
autor, com seu estilo peculiar e sua rica narrativa,
conquistou grande número de admiradores. E foi do apoio
e da insistência desses admiradores que surgiu este livro
de contos e causos. Esperamos que seja o primeiro de
muitos!
Vitor Guimarães Marques
Agradecimentos

Pai, mãe, muito obrigado pelo esmero em nossa


criação, educação e bons exemplos que sempre nos deram.
Pai, o seu apoio irrestrito e a sua atitude de sempre
alimentar e incentivar a paixão que temos (eu e meu irmão)
pelos rios, matas e bichos não só foram primordiais para
a formação do nosso caráter, mas também foram de suma
importância para que esse livro se tornasse realidade.
Deixo aqui também os meus sinceros agradecimentos aos
meus muitos amigos virtuais, principalmente os
pertencentes à comunidade Mateiro (Orkut), que sempre
apoiaram e incentivaram a minha escrita simples. Não
citarei nomes, pois mesmo ocupando uma página inteira,
ainda estaria sendo injusto... afinal, é impossível eu me
lembrar de todos. Vitor Guimarães Marques, agradeço de
coração pela sua boa vontade na ajuda durante a revisão
dos textos. Sem a sua paciência, o seu empenho e a sua
dedicação eu não teria conseguido revisar o livro e deixá-
lo com aquele sotaque sertanejo que sempre desejei.

Tino
Sumário

O caçador consciente ........................................... 9


Feito dourado na corredeira ............................... 19
O caçador dos chapadões centrais ..................... 31
Do cerrado e dos bichos ..................................... 47
Coisas boas, coisas de caçador .......................... 60
A promessa ........................................................ 64
A minha primeira noite nas selvas do Pará ........ 84
Vozes do mato...................................................106
A onça de três e quinhentos ..............................108
Feitiço ...............................................................118
Caçador de espera... bicho doido! .....................122
Bicho de caçada azarenta .................................128
Rastros .............................................................133
Remédio para reumatismo ................................137
O gateiro ...........................................................143
Dia santo ..........................................................154
Gritando onça ...................................................165
Fobré otomática ................................................169
Onça na zagaia .................................................175
Manias, crenças e simpatias sertanejas ............184
Uma velha pendenga ........................................189
O caçador consciente

Uma das primeiras lembranças nítidas que tenho


da minha infância é de estar no quintal de uma fazenda
que possuíamos no interior da Bahia, andando bem
devagar e com cuidado para não fazer barulho ao pisar nas
folhas secas. Carregava nas mãos um pedaço de madeira
rusticamente recortado em forma de espingarda. Com pés
descalços e olhos arregalados, negaceava fixamente um
bando de marrecas imaginárias. Caminhava com o corpo
abaixado, até que cheguei atrás de um pé de amora, depois
apoiei o meu pedaço de pau junto ao caule da amoreira,
fiz demorada pontaria e "disparei” dois tiros o mais alto
que pude gritar. Junto com o tiro, saí correndo para
buscar minhas “marrecas” dentro do mandiocal.
Na minha infinita imaginação de criança, as folhas
de mandioca de talo branco eram uma espécie de marreca,
as de cor avermelhada de outra espécie. Arrancava ali
duas ou três folhas de cada cor e amarrava em um
barbante fino, depois colocava a ponta do barbante por
dentro do elástico do calção e vinha com meu pedaço de
pau dependurado no ombro, de peito estufado e com o
maior orgulho do mundo. Nessa época eu não devia ter
mais que cinco ou seis anos de idade, mas me lembro
perfeitamente do que acabo de descrever.
Quando era criança eu não queria ganhar
carrinhos, não queria fazendinhas, não queria pipas.
Queria um revólver de espoletas, queria um boné e uma
bota de caçador. Aos onze anos (e até hoje) nas excursões

9
da escola, quando passava por locais de matas
exuberantes à beira da estrada, eu colava a testa no vidro
da janela do ônibus e ficava o tempo inteiro olhando o
mato, imaginando quantos veados, pacas, antas e onças
não devia ter ali. O resto dos garotos da minha idade pouco
se importava com o mato ou com os lagos e rios da beira
da estrada... preferiam jogar baralho, falar das meninas ou
se distraíam com pequenos jogos eletrônicos. Minha
adolescência não foi diferente, as férias escolares eram
todas vividas na fazenda, não queria saber de cidade ou
viagens para o litoral, como faziam os meus pais, queria
entrar de férias logo para poder ir para a fazenda com meu
avô.
Fiz esses breves comentários sobre a minha
infância e adolescência para dizer que não viramos
caçadores... NASCEMOS caçadores. É instintivo, está no
sangue, vem da alma, nasce com a gente. Não sei como ou
porque, mas a atração pelo mato, pelos peixes, pelos
animais e a fome de aventuras exerce uma força
imensurável dentro dos que, como eu, nasceram
caçadores.
Hoje vivemos tempos difíceis em nosso país, somos
completamente mal entendidos e o nome caçador tornou-
se genérico para descrever qualquer atividade de
perseguição, captura ou abate indiscriminado de animais
selvagens. A opinião pública de maneira geral não procura
se informar e é constantemente alimentada pela mídia com
informações e imagens totalmente distorcidas, que
rotulam o caçador como sendo uma pessoa cruel e
inconsequente. Isso, além de ser uma gigantesca
inverdade, é também uma injustiça.

10
Nos países desenvolvidos ao redor do mundo, a
incrível quantidade e diversidade de animais selvagens que
ainda perdura em meio a uma população humana de mais
de 7,3 bilhões de pessoas em muito deve a sua existência
aos caçadores. Para os leigos no assunto isso pode parecer
um absurdo, mas explico: nós caçadores é que pagamos
(caro!) para sustentar vários parques, órgãos de
fiscalização, repressão, pesquisa e conservação da vida
selvagem no mundo inteiro.
Pergunte a um ecologista dessas muitas ONGS
verdes que existem por aí quantos reais do próprio bolso
ele gasta por ano visando a proteger e salvar da extinção
uma espécie selvagem ameaçada. Anote esse valor e depois
pergunte a um caçador americano que caça em três ou
quatro modalidades diferentes ao longo de uma temporada
quantos dólares ele gastou com armas, munições,
equipamentos esportivos, combustível, passagens aéreas,
impostos e licenças de caça ao longo do ano, e pergunte
ainda quanto desse dinheiro é diretamente revertido em
favor da conservação dos parques e das espécies animais.
Aposto que iria se surpreender com a diferença entre os
valores.
Nós, caçadores conscientes, apaixonados pelas
florestas e pela vida selvagem, não entramos no mato com
uma arma de fogo atirando em tudo que se move e não
somos psicopatas sedentos por sangue como muitos
ecologistas costumam rotular. Se o nosso prazer não fosse
caçar, mas pura e simplesmente matar animais, não
seríamos caçadores, mas sim trabalharíamos em
abatedouros ou frigoríficos.

11
Quem não caça imagina que o prazer que sentimos
em caçar é proporcionado apenas pelo ato de matar o
animal, mas isso não é verdade. Para quem é caçador, uma
caçada é uma mistura enorme de atividades prazerosas
que vão desde o planejamento, passando pela expectativa
da partida, a viagem, a companhia e o convívio com os
amigos de gosto em comum, o contato direto com a
natureza, o clima do acampamento, a sensação de voltar
às origens, o desafio de conseguir encontrar e vencer o
animal com todas as suas defesas e por fim o prazer de
saborear um alimento caçado por você mesmo.
Muita gente leiga no assunto acha que o caçador é
covarde, mas não penso assim, estou perseguindo uma
presa em um território onde ela nasceu e viveu durante
toda a sua vida. Ou seja, o animal que aqui sobrevive está
totalmente adaptado a esse meio. Os sentidos dos animais
de caça são muito mais apurados que os dos humanos,
eles enxergam muito melhor do que nós à noite, têm faro
apuradíssimo, são velozes, espertos e esquivos. E é por
isso que as caçadas sempre são muito difíceis e levam o
caçador aos limites físicos, sendo poucas as tentativas com
sucesso.
Covardia é engordar um boi preso por 15 meses e
abatê-lo sem chances de defesa, ou um frango por 50 dias,
preso em um lugar super lotado e iluminado para que se
alimente dia e noite inteira e depois abatê-lo com um corte
na garganta. Você já parou para pensar quantos milhares
de porcos são abatidos diariamente para alimentar a
população mundial? E porque a vida desses animais é
diferente da vida dos animais selvagens, sendo que no
passado era deles que nos alimentávamos? A única

12
diferença que vejo em tirar a vida de um frango a de uma
perdiz é que a perdiz teve chances de fugir e se defender,
mas o frango não; o mesmo digo na comparação entre um
carneiro e um veado ou um porco e um javali. Morte é
morte. Por isso, quem gosta de comer carne não deveria
criticar os caçadores responsáveis.
Nós somos pessoas normais, honestas e
trabalhadoras. Somos gente de bem, pagamos em dia os
nossos impostos, temos amigos, família e sonhamos em
poder um dia caçar legalmente no nosso país. Nós,
caçadores conscientes, temos princípios, regras e ética.
Defendemos a regulamentação da caça responsável e o
manejo sustentável. Lutamos contra o desmatamento, o
tráfico de animais e a caça predatória, e o que mais
queremos no Brasil é que um dia o nosso governo abra os
olhos a tempo de salvar as nossas matas, os nossos rios e
os nossos animais da total extinção. Ninguém mais do que
nós tem o interesse na preservação da flora e fauna
nativas, afinal de contas, se elas não existirem, não
teremos onde ou o que caçar.
Os nossos governantes e os diretores dos nossos
órgãos ambientais precisam entender que o simples ato de
proibir não protege nem garante nada. Em todo o Brasil
ainda há desmatamentos, a nossa belíssima floresta
amazônica ainda tomba indiscriminadamente ao som dos
motosserras, o que ontem era selva hoje está se tornando
pasto para criação de gado. No centro do Brasil, apesar da
fiscalização, o cerrado ainda cai sobre a força devastadora
dos correntões e depois arde na boca vermelha dos fornos
carvoeiros. Ontem, o que era cerrado repleto de vida é hoje
lavoura de soja e milho, porque hoje, para os donos das

13
terras, é isso que dá dinheiro, floresta no chão. Sem
mencionar que a caça predatória e sem critérios, além do
tráfico de animais, estão presentes em todo o interior do
Brasil, agindo justamente no pouco de mato que sobrou
dessa interminável devastação.
O governo, por falta de vontade política, falta de
cobrança da nossa parte e por falta de conhecimento
específico sobre o assunto, se omite; os órgãos de
fiscalização não têm pessoal nem recursos para fiscalizar
toda a nossa extensão territorial; os ecologistas das ONGs
ambientais muitas vezes erram o alvo, fazendo campanhas
contra iniciativas realmente efetivas para a proteção do
meio ambiente.
Um exemplo clássico que se tem disso é a
manifestação contrária por grande parte dos
ambientalistas, governo, órgãos ambientais e população
em geral à liberação da caça regulamentada para o
controle dos javalis. Essa é uma espécie alienígena, sem
predadores naturais no Brasil e que tem agravado o
desequilíbrio ambiental em grande parte do nosso
território.
Áreas invadidas por esses animais perdem boa
parte da sua diversidade de espécies, já que os javalis são
animais agressivos, vorazes e de alimentação bastante
generalista, o que os tornam predadores de outros animais
silvestres menores. Além disso, a distribuição geográfica
desses animais, bem como o número de seus indivíduos,
vem aumentando assustadoramente nos últimos anos.
Como se não bastassem os prejuízos à fauna e flora
nativas, os javalis ainda trazem enormes prejuízos aos

14
agricultores, que não sabem mais o que fazer para proteger
suas lavouras do ataque desses animais. E por que não
promover o manejo de controle dos javalis por meio da
caça regulamentada? Qual é a justificativa técnica e
realmente embasada para que isso não seja possível e
viável? Em alguns estados do Sul do país a caça foi
liberada durante alguns anos, mas vinha constantemente
sendo impedida por meio de liminares da justiça e por
indefinição dos órgãos ambientais. Essas mesmas
questões podem ser feitas a respeito das populações de
búfalos asselvajados do Guaporé, que há muitos anos
representam ameaça àquele ecossistema e a cada ano se
tornam mais populosos.
Os ecologistas, ao invés de enxergarem o caçador
consciente como um aliado, tratam-nos como inimigos; em
vez de se unirem a nós para que trabalhemos juntos para
o bem comum, em uma espécie de parceria, eles nos
criticam e nos perseguem. Eles precisam entender que a
questão ambiental é séria e não deve ser tratada com
ideologias radicais, mas sim com argumentos técnicos,
embasados e plausíveis, pois radicalismo nunca resolveu
nem nunca resolverá nada. O mundo inteiro tem exemplos
claros disso.
A verdade é que estamos sozinhos nessa luta. Por
isso, nós, caçadores conscientes, é que devemos tomar a
frente e levantar essa bandeira. Temos que nos organizar
e fazer com o que nossos governantes entendam que a
única maneira de salvar o que temos é agregando valor ao
que ainda existe. Temos que mostrar a eles que o Brasil é
um dos poucos países do mundo onde a caça é proibida, e
por isso, por mais contraditório que possa parecer, está se

15
acabando. Mostrar o sucesso do programa americano, que
hoje, mesmo sendo um país superpopuloso, tem uma
quantidade de animais selvagens maior do que a
estimativa das suas populações à época do descobrimento
daquele país.
Temos que criar um departamento de caça e vida
selvagem, fazer estudos de populações, delimitar reservas,
regulamentar temporadas, estabelecer populações
seguras e abater apenas os excessos, de modo a nunca
desequilibrar o sistema ou colocar em perigo de extinção
qualquer uma das nossas espécies.
Os recursos para tudo isso viriam das licenças de
caça, do turismo e dos impostos cobrados sobre armas,
munições e materiais esportivos usados nas atividades de
caça e lazer ao ar livre. Parte desses recursos recolhidos
seria usada para estudos e preservação da vida selvagem
e no combate ao caçador ilegal. Poderíamos fazer um
programa de treinamento, visando a transformar os
sertanejos que caçam ilegalmente e capturam animais
selvagens para vender em guardas florestais e guias de
caça. Dar dignidade e uma oportunidade de uma vida
melhor para essas pessoas.
Ótimos exemplos estão ai, às centenas. A Europa
inteira caça, milhares de euros são movimentados todos
os anos em torno da caça legalizada e todos aqueles
pequenos países têm uma quantidade incrível de animais
selvagens de interesse cinegético, com populações
estabilizadas ou em crescimento, longe do risco de
extinção. Na América do Sul, países como Uruguai e
Argentina recebem turistas do mundo inteiro em suas

16
fazendas de caça... e por causa do manejo sustentável, as
suas populações de animais nativos que são atraentes aos
caçadores jamais beiraram a extinção, muito pelo
contrário.
Grande parte do PIB sul-africano vem dos safáris
legalizados. Lá o governo concedeu aos fazendeiros o
direito para explorar os animais selvagens. Todos
cercaram com telas enormes as suas propriedades, e os
animais que ali se encontram podem ser por eles
explorados de forma racional e controlada. Cabe a cada
fazendeiro observar, estudar, vigiar e gerenciar os seus
rebanhos, enquanto cabe ao governo recolher taxas e
fiscalizar a atividade. No início, a maioria dos fazendeiros
teve que reflorestar suas áreas, que haviam sido
anteriormente desmatadas para plantio, pois para eles a
floresta em pé, que abrigaria os animais e tornaria a caça
mais esportiva, seria bem mais lucrativa do que as
atividades agrícolas até então desenvolvidas naqueles
locais.
Hoje, pessoas do mundo inteiro vão caçar nessas
fazendas sul-africanas e deixam por lá milhares de dólares
por ano. Cada animal tem um valor e uma cota anual que
pode ser abatida. O fazendeiro cuida e maneja os animais
da fauna silvestre como se fossem parte do seu rebanho,
pois eles valem muito dinheiro. O governo recebe de cada
fazendeiro uma porcentagem por cada animal abatido.
Esse dinheiro alimenta uma instituição federal de guarda
florestal que fiscaliza, estuda e dá assistência profissional
aos fazendeiros no cuidado e manutenção dos rebanhos
selvagens. Os biólogos do governo, além do monitoramento
das populações, também estudam os hábitos reprodutivos

17
e promovem a troca de animais entre as fazendas, visando
a manter a diversidade genética entre as diferentes
espécies.
Agregando valor aos animais e colocando os
próprios fazendeiros para cuidar deles e protegê-los, o
governo sul-africano melhorou a vida daquelas pessoas,
gerou emprego para a população nativa (que antes caçava
ilegalmente e de forma predatória), gerou receita,
aumentou incrivelmente o ganho com o turismo, acabou
de vez com a caça ilegal, o desmatamento e nunca mais
nenhuma espécie nativa da África do Sul beirou a
extinção.
A verdade é que ficamos para trás, enquanto o
mundo todo evoluiu no manejo da vida selvagem o Brasil
se manteve estagnado, fingindo de conta que o simples ato
de proibir magicamente iria resolver de uma vez por todas
os nossos problemas. O tempo nos mostra que a política
adotada está completamente errada, proibir e reprimir não
adianta. Ficar na frente de um computador se dizendo
ecologista e criticando os outros também não adianta.
Temos que nos organizar, levantar e fazer acontecer. Nosso
potencial é ENORME, temos incríveis ecossistemas e
muito a ser explorado e somos um povo capaz. O que nos
falta e organização e coragem; portanto, vamos nos unir e
fazer a nossa parte.
Pense a respeito.
Tino

18
Feito dourado na corredeira

Sou um privilegiado, nasci num berço onde a


tradição das caçadas e pescarias vinha há muitos anos
sendo repassada de geração para geração. O meu bisavô
por parte de mãe, o saudoso Coronel Cândido Eliodoro, foi,
em seu tempo, um dos maiores caçadores que o estado de
Goiás já teve. Caçava de tudo, mas a sua maior paixão era
sem dúvida as chamadas "soltas” ou caçadas de "corrida".
Essas caçadas eram feitas com a ajuda de grandes
matilhas de cães "veadeiros”, perseguindo caça grossa
levantada das “camas” dentro do mato ou a partir de
rastros frescos. Após o levante, iniciava-se uma grande e
barulhenta perseguição, que aos ouvidos leigos parecia
desorganizada, mas sempre trazia ao alcance dos sedentos
canos paralelos da belga calibre 28 do velho um sem-
número de veados-mateiros, antas, catetos, queixadas e
onças.
O caçador do qual tenho orgulho de ter o sangue
nas veias era, naquela época, dono de uma enorme porção
de terras na beira do rio Urucuia, em Minas Gerais.
Fazendeiro de nascença e homem do mato por paixão,
passava de seis a sete meses por ano no mato, ocupando-
se apenas com a atividade que mais amava: CAÇAR.
Viajava distâncias incríveis em grandes comitivas sobre o
lombo de burros e mulas cargueiras, caçando nos planos
mais altos do centro do Brasil. Para os idos de 1910,
aquelas viagens dependiam de grande logística, eram
verdadeiros safáris e mobilizavam uma quantidade de
gente e de recursos enorme.

19
O meu bisavô viajava vivendo intensamente cada
momento, sempre rodeado por homens experimentados e
pela imensa matilha de "veadeiros”, que na sua maioria
era composta por belos representantes das raças
americano e nacional. As soltas sempre eram feitas em
grandes propriedades particulares, pertencentes a
compadres e amigos de paixão em comum. Nessas
propriedades, depois das caçadas, aconteciam grandes
festas com mesas fartas, as melhores cachaças da época e
noites inteiras de conversas animadas sobre armas, cães
e as incríveis caçadas do passado... tudo isso à beira de
grandes fogueiras, com muita fartura e ao som de
sanfonas e violas.
Meu avô, o único herdeiro do velho Coronel, muitas
vezes nos contou que o pai chegava a ficar seis meses
seguidos longe de casa, embrenhado em sertões distantes.
Gostava tanto de praticar o salutar esporte que morreu
longe da família, em um acampamento de caça dentro da
mata. Contam os antigos que morreu “de repente”
enquanto tirava o couro de uma anta-sapateira por ele
abatida naquela manhã. De certa forma, o fato de ser
encoberto pelo manto negro da morte fazendo o que mais
gostava serviu de consolo a muitos amigos e familiares.
Como a distância a ser percorrida até a terra natal
do velho caçador era enorme, demandando semanas de
penosa viagem, tomaram a decisão de enterrar ali mesmo
o corpo, marcando o local com um grande cruzeiro de
aroeira. E assim foi feito: ali morreu e ali mesmo foi
enterrado o velho caçador. Hoje, a única pessoa viva que
presenciou tal acontecimento não sabe precisar a

20
localização exata do sepultamento, pois na data do
ocorrido esse velho homem era apenas uma criança.
Seu eu pudesse ter escolhido, queria ter nascido
seu filho, não seu bisneto. Aquela era uma época de
fartura, não havia perseguições nem proibições aos que
amavam a caça, a pesca e a vida ao ar livre, sem mencionar
na fartura de matas, animais e peixes que tínhamos. Teria
sido muito bom ter um professor como ele em uma época
como aquela.
Meu pai também sempre foi grande professor e
incentivador. Aos seis anos ele já me levava com ele para
dentro das choças nas atiradas de marreca à beira das
lagoas que se formavam com as vazantes das águas do rio
Preto, lá no interior da Bahia, onde tínhamos uma fazenda.
Ao longo da minha infância e toda a minha adolescência,
sempre tive, além do meu pai, muitos professores com os
quais aprendi tudo que podia sobre o mato. Gente da roça,
mateiros caçadores. Mas desses professores que tive, o
mais constante e o que mais me ensinou sobre os segredos
do cerrado foi um bom caboclo mineiro chamado Jozino
Ferreira de Sousa, ou simplesmente Joza.
O Joza morava em um casebre feito de barro, taboca
e palhas de buriti lá em cima da chapada de Serra Bonita.
Homem bom, que nasceu e se criou na roça. Pai de oito
filhos e marido da dona Joana. Trabalhava em
empreitadas limpando roça, fazendo cercas de arame e
currais para os fazendeiros da região. Para complementar
a renda da casa e sustentar a numerosa família, caçava,
pescava e tirava mel de abelha. De certa forma, vivia com
o que a natureza tinha para lhe oferecer. Desvendou como

21
nenhum outro os segredos do cerrado, das veredas e das
matas de galeria... desvendou também os mistérios dos
rios, córregos e lagoas daquele enorme vale. Conhecia o rio
Pasmado da nascente até o ponto em que ele se encontra
com o grande Urucuia. Não costumava falar que ia pescar,
falava que ia ali, "buscar um peixe...".
Lembro-me até hoje das palavras alegres e simples
que ele usava para me dizer que o mato era a sua casa, as
pedras o seu travesseiro e as estrelas o seu teto. Achava
bonito ouvir aquilo. Como caçador, o Joza usou durante
toda a sua vida uma só arma, e foi com ela que criou os
seus oito filhos. A arma, “matadeira” por si só, merece todo
o capítulo de um livro, mas encurtando o que já vai longo,
farei apenas uma breve descrição técnica: trata-se de uma
espingarda de um só cano, em calibre 36, com inscrições
há muito consumidas pelo tempo, portanto de marca e
modelo desconhecidos (mas acredito ser uma Rossi
Pomba). Nela foram feitas algumas alterações bem
originais, mais pela necessidade de mantê-la funcionando
do que por alguma melhoria técnica ou estética. No lugar
do percussor existe um prego, o que impossibilita que se
atire para cima com ela (pois o prego cai). Segundo o Joza,
isso não é problema, uma vez que ele não atira em
“porquera” (aves como pombas, Jacus, mutuns...).
Como a mola que fornece a força para o percussor
golpear a espoleta está muito fraca, ele amarrou um
pedaço de liga preta (que o Joza faz questão de nos
esclarecer se tratar de liga de câmara de ar de patrola, a
mais forte que existe). Essa precária liga de borracha negra
é presa ao guarda-mato e à “cabeça” do cão, e serve para
ajudar a mola e garantir força suficiente para a detonação

22
da espoleta. Dentro do guarda-mato, junto com o gatilho,
existem dois pequenos parafusos que estão prendendo
alguma coisa lá dentro da caixa da culatra. Aquilo quase
impede que o dedo seja colocado sobre o gatilho, só quem
tem unha maior ou dedo fino é que consegue atirar com a
espingarda. Como uma trava auxiliar, garantindo que a
arma não se abra no momento do disparo, foi colocada
uma braçadeira metálica, dessas de colocar em
mangueiras mais grossas. Segundo ele, a braçadeira é de
aço “jalvanizado”. Essa braçadeira abraça a báscula e,
apesar de não vedar as folgas entre a báscula e o cano,
mantém as duas peças bem unidas e realmente dá ao
atirador uma segurança a mais. Claro que isso atrasa em
quase um minuto o ato de remuniciar a arma, mas,
segundo o Joza, isso não é problema, pois foram poucas
as vezes que ele teve que disparar mais de uma vez para
colocar comida na mesa.
Antes da câmara, onde deveria existir um extrator,
existe apenas uma meia lua bem fininha, desgastada mais
pela corrosão e pelo passar do tempo do que pela
quantidade de tiros. A coronha e a telha de madeira são de
fabricação própria, e são as peças que ele mais se orgulha
de ter feito, fazendo até questão de citar o nome da
madeira e o tempo que levaram para ficarem prontas. Por
baixo do cano e amarrada por umas “presilhas” de couro
cru vai uma vareta de ferro bem fina, que, segundo ele,
serve para retirar o cartucho depois de disparado. Essa
necessidade surgiu pelo fato de a câmara há muito ter sido
dilatada, rachando complemente os cartuchos, que
sempre são de carga fortíssima.

23
Uma pergunta quase obrigatória vinha à mente de
quem pela primeira vez tinha nas mãos a tal espingarda
para uma inspeção mais detalhada:
– Ela atira, Joza?
A resposta sempre era a mesma:
- Hã? Num só atira, como é boa pra cortá i tem um
venenu danado.
Em seguida, apontava para a parede de tabocas do
velho paiol, onde sempre havia esticado o couro de algum
bicho grande, todo arrendado de chumbo.
Eu adorava vê-lo disparar aquela espingardinha,
principalmente durante a noite, era um espetáculo
pirotécnico... a quantidade de faíscas que saíam pelas
frestas entre o cano e a báscula era enorme, aquilo parecia
com os efeitos especiais de um filme de ficção científica.
Mas o fato que me deixava mais encabulado não
eram as condições da velha espingarda, e sim o amor que
ele tinha por ela. Tentei várias vezes trocar essa arma por
uma mais moderna e em melhores condições, mas ele
nunca aceitou, sempre fez questão da velha e precária 36.
- É nessa qui tenho cunfiança, cara!
Esse é o homem, um dos meus maiores mentores.
E é ele um dos responsáveis pelo pouco que sei e por muito
do que vivenciei... tudo por assim dizer ensinando com
prazer, sem nenhuma obrigação e por puro
companheirismo. Lições práticas, um pouco de cada vez e
sempre tendo como sala de aula o mato ou o rio. O

24
conhecimento vinha do bate-papo natural entre dois
amigos. Foram noites e noites em esperas nas galhas das
fruteiras, e foram muitas as longas caminhadas nas matas
ainda molhadas pelo orvalho da noite, caçando de esbarro,
seguindo rastros frescos ou procurando fruteira para fazer
espera.
Foi assim que passei todas as férias da minha
adolescência, caçando, pescando, dormindo no mato,
comendo carne de bicho assada no fogo que espantava o
frio, tirando mel de jataí com lasca de pedra, bebendo água
de vereda e vivendo como nunca, sempre de forma sadia,
e sempre na companhia desse bom amigo. A esse saudável
estilo de vida credito o fato de ter tido uma adolescência
tranquila, a salvo dos perigos da cidade grande, como o
álcool, o cigarro e as drogas.
Certo dia, quando nos refrescávamos nas
corredeiras do rio Urucuia depois de uma pescaria, notei
que no pé direito do Joza havia uma grande cicatriz;
parecia um corte, descia do peito do pé e ia bem além do
calcanhar... por pura curiosidade, perguntei a ele como
havia conseguido aquela impressionante marca. A
resposta demorou um pouco, mas veio com uma cara de
más lembranças:
- Ah, isso aqui já tem muinto tempo, foi da veiz qui
eu aprendi a nunca mais enfiá o pé em buraco di bicho.
Insisti em ouvir a história toda, e com pouco custo
foi ele satisfazer a minha curiosidade.
Estavam ele, o seu tio Gustavo e o compadre
Zequita em uma caçada há muitos anos, lá na beira do

25
ribeirão Pasmado. Caçavam paca usando três cachorros
paqueiros. Saíram cedo, andaram muito é o sol já estava
alto quando lá na curva do rio um dos cães ganiu na beira
do barranco, acusando presença de caça. Chegaram
rápido, atendendo a acuação... o Joza, com a energia da
juventude, subiu rapidamente para cima do barranco à
procura de um provável suspiro por onde a suposta paca
poderia escapulir. Os outros dois caçadores se puseram a
observar a boca do buraco; os cães estavam
entusiasmados, cavavam e mordiam raízes enquanto
ganiam excitados.
- Ta aí dento, Joza, e é das grande!!
– Rmbora rancar... - Falou o compadre Zequita.
Iniciaram-se as “obras", um tirava os cães enquanto
o outro cortava as raízes da velha ingazeira. O Joza, que
estava com o enxadão, começou a cavar na parte de cima
do buraco, tirou a camisa e sacudiu o braço, terra voava
para todo lado. Em pouco tempo de trabalho disposto o
buraco estava grande, mas os cães curiosamente tinham
tomado uma postura diferente, eles latiam, mas não
entravam de jeito nenhum para dentro da lapa.
O Joza não parava de falar:
- Num tá veno, tio, que num tem nada aí dento, num
tá veno, isso é calango-verde, esses cachorro tão danado
pá mentir, eu falo pra num tratar... cachorro quando
ingorda fica mintiroso.
Realmente convencido, e para mostrar que não
havia nada dentro do buraco, o Joza enfiava a perna lá
dentro para empurrar a terra prá boca cá embaixo.

26
– Jozino, meu fio, num infia a perna aí! Pode di tê
argum bicho nojento qui mordi genti...
- Tem nada aqui não, tio, tô inté venu a luz du
buraco aí imbaixo.... isso é esses cachorro severgoinho
mintinu, latinu calango.
De repente, um grito! Subiram rápido para olhar o
que era. O Joza estava com a perna direita todinha dentro
do buraco e mordia os lábios, em uma clara expressão de
dor.
- O qui foi, meu fio?
- Sei não, tio, um bicho pegô meu pé aqui dento.
- Intão tira o pé daí, uai!
- Num sai, ele tá garrado!
- Eu falei, eu falei!!!... Jozino, num põe o pé aí, num
põe... mais é teimoso dimais, num mi iscuta!!!
Tentaram puxar o Joza pelo braço, mas não
conseguiram. A dor era grande, cavar mais também não
dava, tinha muita raiz... poderiam acertar a perna dele.
-É, num teim otro jeito, nóis tem é que te puxar
mesmo, meu fio.
- Tão tá, puxa logo que não to mais guentanu, o
bicho tá futucano meu pé.
- Nóis vai puxá e se ocê gritar nóis num vamo parar,
tá bão? Só vamo parar quando te ranca... pode?
- Pode! Puxa logo essa mizera!!

27
E agarraram de dois, um em cada braço, e puxaram
com fé. A gritaria foi grande, mas depois de esticar o braço
quase todo, o bicho finalmente largou o pobre Joza. O pé
estava só a lazeira, o couro do meio do pé tinha vindo parar
lá para cima do calcanhar. Rapidamente ele enrolou no pé
a camisa e se pôs de pé em uma perna só, em seguida
agarrou o enxadão com as duas mãos e, sem falar uma
palavra, começou novamente a abrir a boca do buraco.
Poucos minutos e algumas furiosas enxadãozadas depois,
foi revelado o vilão da história. O cheiro de cupim não
deixava dúvidas: era um grande meleta-amarelo
(tamanduá-mirin), ele estava escondido em uma pequena
curva dentro do buraco. O Joza agora brigava furioso com
os cachorros para que não mordessem o bicho, ele o queria
só para ele. Sacou o grande facão ponta direita e picou o
meleta de uma forma tão raivosa que o maior pedaço que
sobrou cabia em uma latinha de rapé.
Depois disso, ele passou dois meses internado em
um hospital de Buritis de Minas, quase perdeu o pé por
infecção e ainda teve que fazer uma cirurgia para
reimplante de pele. Até hoje, quando conta a história, ele
coloca a culpa nos cachorros mentirosos, talvez tentando
desviar o foco e encobrir a sua inexperiência e
desobediência aos mais velhos... coisas da idade. Lição
dolorosa, mas valiosa, quem ganhou com tudo isso fui eu,
que aprendi sem cicatriz.
O Joza hoje está velho e bem debilitado. Perdeu sua
terrinha em uma jogada de cartório, malvadeza de um
grande criador de gado da região. Não tendo para onde ir
com a família, arrumamos uma casa simples para ele na
cidade... mas chegou e não se adaptou. Não aguentava

28
ficar longe do mato, vida de cidade não era para ele. Os
meninos entrando na marginalidade, as meninas se
envolvendo com maconheirinhos safados, engravidando, a
mulher triste e melancólica. Não teve jeito. Arrumamos
para ele uma inscrição no movimento dos sem-terra, e hoje
ele é um dos assentados em um pequeno lote de terra na
região do Vale da Boa Esperança. Vive do pouco dinheiro
do INCRA e complementa o sustento plantando roça de
terreiro e criando umas vaquinhas de leite.
Os seus quase setenta anos aliados a uma doença
nos olhos (glaucoma) e a um sério problema de coluna (que
vai e volta) não mais permitem que ele faça as “estripulias”
que fazíamos muitos anos atrás. Por causa dos
expedientes da vida, mudei de cidade e nos afastamos um
pouco, mas nunca perdi totalmente o contato com meu
cumpanhero, e sempre que posso estou lá na casa da filha
dele, na periferia da cidade de Formosa-GO, ou no
pequeno sítio onde ele mora.
Sempre que vou por lá levo alguns remédios, umas
cestas-básicas e umas roupas usadas que antes serviam
para os filhos, mas hoje servem para os muitos netos. O
Joza ainda é cumpanhero muito bom... temos uma
amizade pura e verdadeira, e ele gosta muito de receber as
minhas visitas. Sempre que vou por lá, nunca consigo
voltar no mesmo dia, e mesmo não tendo mais nada para
se caçar lá no assentamento, sempre acabamos no fim do
dia caminhando pelas matas e beiras de rio, conversado
sobre o mato, comentando o piar distante de uma jaó
solitária, ou a linda florada de um pequizeiro bem galhado
e bom de armar rede. E realmente me emociono quando
me lembro das nossas aventuras do passado. Nem tem

29
muito tempo, na despedida da minha última visita, dei um
abraço no meu cumpanhero véio e, sem querer, acabei
perguntando a ele:
- Por que o tempo passa tão depressa, hein, meu
amigo?
E ele, com a serenidade de sempre, me respondeu:
- A vida é assim mermo, cumpanhero... ligeira feito
dourado na corredeira.

30
O caçador dos chapadões

centrais

O sertanejo caçador do interior do Brasil é uma


criatura extremamente adaptada ao meio em que vive.
Normalmente sabe tudo sobre o bioma que habita,
conhece o hábito dos animais, o ciclo das chuvas, o tempo
da reprodução dos bichos, a época do florescimento e
frutificação das melhores esperas e as variações do clima
no correr dos meses do ano. Mas é incrível como esses
sertanejos caçadores são vulneráveis fora dos seus
“habitats”. Eu Já levei verdadeiros mestres mateiros do
cerrado para as matas altas do Pará e lá eles se sentiram
quase perdidos, assim como já levei mateiros nascidos e
criados na mata alta para o cerrado de campos abertos,
onde eles pouco se viraram. O mato é diferente, as
fruteiras são diferentes, os hábitos e as manias dos bichos
também são outros.
Engana-se quem imagina que todo sertanejo é
caçador e pescador. É verdade que a grande maioria dos
que moram no mato ou na beira dos rios tem sim algum
conhecimento prático a respeito do assunto, e certamente
saberá tirar o couro de um cateto, uma capivara ou um
veado; também será um remador melhor do que um
civilizado que se diz pescador, afinal de contas, foram
criados nesse meio. Porém, caçadores mesmo, daqueles
que além do conhecimento profundo sentem prazer pela
caçada, são poucos... e foi com alguns desses poucos que
conheci que aprendi (e ainda aprendo!) grandes lições.

31
O ensinamento desses mateiros começa ainda na
infância, mas não ocorre como um treinamento
propriamente dito. A absorção de informações é algo
gradativo, natural, vem com a vivência do dia a dia,
acompanhando o pai nas caminhadas e caçadas pelo
mato. Ainda na infância eles são selecionados, e o
interessante é que essa seleção não é feita pelo pai, mas
sim pelo próprio filho. A grande maioria, apesar de ser filho
de mateiro caçador, não tem o instinto do pai no sangue.
Acabam virando agricultores, criadores de gado, ou
quando têm oportunidade, tentam e se contentam com
uma vida bem modesta na periferia das cidades. Já os
poucos que despertam grande interesse pelas coisas do
mato, esses sim irão se tornar habilidosos mateiros e
dificilmente irão abandonar a vida na roça.
Aprendem desde muito jovens a subir em árvores, a
cortar de machado, tirar abelha, carregar espingarda ou
cartuchos, aprendem a distinguir as plantas e árvores
frutíferas, aprendem sobre o rio e sobre o comportamento
dos peixes... e tudo isso de maneira natural, em contato
direto com a prática pura e simples.
Certa vez, na época das flores dos pequizeiros, fui
visitar um conhecido, amigo mateiro lá na chapada da
Serra Bonita, na divisa de Goiás com Minas Gerais. Com
o intuito de sairmos para uma caçada de espera, cheguei
bem cedinho, ainda escuro. Porém, quando cheguei à
casinha simples no alto da serra, fiquei sabendo através
da esposa desse amigo que ele estava tirando madeira em
outras fazendas, empreitada de mês inteiro. Triste por ter
perdido a viagem, ia entrando no carro para retornar à
cidade quando ela me disse:

32
- Uai, vai mais Joaquim, ele tomém sabe caçar.
O rapaz, de mais ou menos 15 anos, magro, alto e
de cabelo precisando de tesoura, não me inspirou
confiança. Mas já que tinha perdido a viagem, topei andar
com ele atrás de umas esperas de veado no vale que ficava
logo depois do quebrar da pequena serra.
Apesar da pouca idade, o garoto logo me
impressionou com o seu conhecimento sobre o mato e
sobre os bichos daquela área. Saímos logo cedo, e como a
região pedregosa era famosa pela quantidade de cobras
cascavéis, calcei um reforçado coturno militar, mochila,
calça camuflada, facão, água, rede, matula reforçada,
arma e munição. Iniciamos a caminhada descendo uma
pequena serra na intenção de alcançar o cerrado seco do
vale, e logo na descida perguntei a ele, que usava sandália
de dedo e bermuda, se não tinha medo de cobra.
– Tem cobra do lado de cá da serra não... só de lá.
A princípio pensei que ele estivesse brincando
comigo. Mas vendo minha cara de descrédito, ele
acrescentou:
– De cá é descida fria e escura, o sol nasce da banda
de lá, e elas ficam por lá, modi a quinturinha do sol logo
cedo.
Sendo a cobra um réptil, animal de sangue frio, era
natural apreciar o sol logo pela manhã. De certa forma,
tinha um pouco de lógica o dizer do rapaz.
Logo atingimos o plano do vão, que era composto
por um cerradinho baixo em forma de pequenas ilhas de

33
mato enfeitando uma grande campina de cascalho fino.
Havia por toda parte antigos trieiros de gado, e andávamos
por eles à procura de rastros de veado-catingueiro. Volta e
meia ele achava uma marquinha em forma de “V” em tom
mais claro e me mostrava. Incrível como tinha os olhos
treinados.
Do topo de um morrote avistamos uma pequena
matinha de pequizeiros ao longe. Disse a ele para a gente
dar uma olhada por lá, mas ele recusou, justificando logo
em seguida:
- Piqui em morro de cascalho dá pauzin miúdo, sem
jeito de subir pra armar rede, nem adianta perder tempo
com aqueles.
Pelo tipo do solo o garoto conhecia o porte das
árvores. Passamos indiferentes bem pelo meio da pequena
mata de pequis, e realmente não achei nada em que
pudesse subir e armar uma rede... nem nos pequis, que
eram baixos e retorcidos (devido à acidez do solo muito
intemperizado) nem em outras árvores das imediações,
que consistiam em paus-terra, sambaíbas bem frágeis e
pequenos arvoredos de mangabas.
Continuamos a caminhada e meia hora depois
descemos em um vão de terra sem cascalho. O capim de
campo sumiu, o descampado virou uma capoeira suja de
média altura, cheia de camas de veado catingueiro, uma
praga para pegar carrapatinho. De longe avistamos o mato
alto da beira de uma grota. Andamos mais um pouco e vi
à nossa direita, na beira da tal grota, dois enormes
pequizeiros. Querendo parecer caçador experiente ao

34
enxergar primeiro que ele as possíveis árvores de espera,
disse com voz firme:
- Olha ali dois pequis bem grandes, vamos dar uma
olhada.
- Adianta não, só dá fulô os que trocam as fôia, e
quando troca ficam verdin, esses aí não trocaram.
E mais uma vez ele estava certo, parei e olhei a copa
dos pequizeiros pela lente da luneta da minha .22 e não
tinha sequer um botão floral.
Atravessamos uma grotinha de pouca água e
entramos em um cerradão seco de árvores maiores.
Achamos uma caraíba amarelinha e bem florada, logo
adiante dois ipês também jogando flor. No segundo ipê
tinha muita flor no chão e uma bostinha velha de
catingueiro. Perguntei o que ele achava da espera, e ele
disse:
– Tá bão não, muita flor velha (murcha) no chão,
sinal que o bicho tá comendo pouco. Espera boa tem que
ter no chão só flor nova.
Continuamos na direção de um pequeno capão de
pequi que ele sabia que estava caindo flor. Quando
chegamos por lá, no meio da tarde, o garoto começou a
rodar em volta, checando todos os trieirinhos de gado que
se entrelaçavam nas imediações do pequizeiro. Segundo
ele, para não fazer barulho, o veado catingueiro chega à
espera pelos trieiros batidos do gado. E realmente isso era
verdade, pois olhando atentamente conseguimos
encontrar a pegada de dois veados que entraram por um
trieiro, comeram e saíram por outro. No capim ou nas

35
folhas do carrascal jamais iríamos conseguir enxergar
aqueles rastros.
Embaixo do tronco cinza do grosso pequizeiro tinha
dois rasgos, um de cada lado do tronco, pareciam duas
cutiladas com uma foice cega. Olhei atentamente e não
consegui identificar que marca era aquela. Onça eu sabia
que não era. Perguntei ao garoto mais uma vez, testando
o seu conhecimento, e ele sem nem olhar disse já saindo
para olhar outro pequi:
- Isso é vadiagem de bandeira limpando unha!
Olhei com atenção os “rasgos” e realmente tinha
terra vermelha misturada com a seiva do pequi. O
tamanduá bandeira usa a unha forte e o braço potente
para destroçar os cupins, e às vezes ficam restos de terra
da curva da unha dele. Aí ele fica de pé, abraça o tronco
do pequizeiro e trás os braços rasgando com as unhas a
casca da árvore, de cima para baixo, para poder limpá-las.
Mais uma que aprendi naquela tarde de caminhada com
um garoto filho de sertanejo caçador que tinha metade da
minha idade.
A última lição do dia foi repassada a mim debaixo
do pé de pequi mais promissor que encontramos. Só de
pegar a flor que estava caída no chão o garoto sabia há
quanto tempo ela tinha caído. Segundo ele, as flores do
pequi caem de manhã, ali pelas oito horas, e só caem as
que os morcegos "beijaram” (polinizaram) durante a noite.
Segundo o rapaz, estando à sombra do pequi, as
flores aguentam sem murchar até as quatro da tarde, de
modo que dá para saber quanto tempo tem que a flor está

36
no chão sem bicho comer. Ele também mede a frequência
das visitas do veado na espera pela quantidade de rastros
novos e pela consistência do estrume encontrado mais ou
menos no mesmo local embaixo da árvore.
Daquela vez rodamos aquele cerrado seco até quase
escurecer, mas tenho absoluta certeza que o rapaz me
colocou na melhor árvore de espera que havia naquele
vale, pois fiz ótima caçada e suamos muito para carregar
nossa carga na volta.
Ao contrário dos sertanejos que habitam a beira dos
rios de vegetação mais alta e preferem as cartucheiras de
pequeno calibre, os caçadores que moram nos planos mais
abertos das chapadas preferem as carabinas calibre .22
LR, que disparam munição barata e têm um bom alcance.
Esses sertanejos caçadores são peritos com essas
diminutas carabinas e possuem uma noção de distância e
compensação de tiro de dar inveja em muitos atiradores
militares. Usam rústicas miras abertas e preferem as
miras fixas e sem regulagem de altura, chegando alguns a
colar com Durepoxi a regulagem de algumas massas de
mira tipo jacaré, para que não mais saiam do “prumo”.
Segundo eles, a graduação ou elevação do ponto de
impacto não se faz mexendo na mira que já está regulada,
mas sim com o olho bom, enchendo (subindo) ou
minguando (abaixando) o ponto (massa de mira) dentro do
corte da alça de mira, de acordo com a distância do alvo.
Em geral, usam armas antigas de manobra por ferrolho
pelas quais possuem grande estima. As armas são quase
sempre de fabricação nacional, mas já vi algumas
importadas de canos enormes, sendo muitas delas de tiro

37
único. Aliás, canos compridos são o que mais procuram,
entre eles existe uma crença de que quanto maior o cano,
mais longe será a distância que a arma irá "jogar”.
Algo que também observei nos sertanejos dos
chapadões planos do centro do Brasil foi como colocam
bem os seus tiros. Como o projétil calibre .22 LR é
pequeno, leve e praticamente não têm poder de parada,
eles têm que colocá-lo em um ponto vital e bem especifico
do corpo do veado, senão perdem a caça, que foge ferida.
O sertanejo caçador aprende sobre os pontos vitais do
animal quando tira o couro e limpa a carcaça. Com o
tempo e a prática, aprendem exatamente onde têm que
visar para que sejam atingidos os órgãos vitais internos.
Segundo esses caçadores, os pontos que são mais
“seguros” são a paleta e o pulmão, pois um tiro que quebra
a paleta de um veado diminui em quase 50% a sua
mobilidade. Muitos caem e não levantam mais, e os que
depois de atirados ainda correm de "três pernas” não vão
muito longe. Aí, o segredo é não ir atrás naquele
momento... segundo os sertanejos:
- Ocê tem que esperá o veneno da bala trabaia.
Então, marque bem o rumo da corrida e espere a
hemorragia fazer efeito, para só depois iniciar o rastreio. O
tiro de pulmão é da mesma forma fatal, o veado corre um
pouco, mas logo deita sufocado por violenta hemorragia
pulmonar. É como dizia o Joza:
- Ocê já viu argum bicho correr sem fórgo (fôlego)?
Outra prática que tem o sertanejo caçador dos
chapadões e também alguns no norte do Brasil é o de abrir

38
o bucho do veado e descobrir do que ele está se
alimentando. É assim que eles descobrem novas frutas
que servem para a alimentação do bicho. Durante todo ano
tem no mato sempre alguma coisa que o veado está
comendo, basta descobrir o que é para ter espera o ano
inteiro.
Mas não é a caçada de espera a modalidade que o
sertanejo das chapadas mais usa para pôr carne na mesa.
Muitos deles preferem a caçada de “traição” ou “esbarro”,
que consiste em fazer pequenas queimadas nos campos de
veredas e buritizais poucos dias ates da chuva em dias
sem vento, de modo que possa ser controlado o fogo, pois
se a queimada ficar muito grande é trabalho desperdiçado.
No início de outubro, logo depois dessa queimada
planejada, costumam cair as primeiras chuvas. O potássio
das cinzas, provenientes da queimada, reage com a água,
o que aduba a terra e faz com que a rebrota do capim
venha vigorosa... e aí os veados-do-campo, que são doidos
no rumo de um capim tenro e verde, viajam distâncias
incríveis apenas para pastar um pouco dessa rebrota.
O tamanho ideal da queimada é o de dois campos
de futebol, sendo esta cheia de ciências: o local a ser
escolhido tem que ter vento constante e firme; altos onde
os ventos mudam várias vezes durante do dia não devem
ser escolhidos; dentro da área queimada o campo deve ser
limpo e permitir ver longe, mas não limpo de tudo, pois
árvores maiores nas pontas ou no meio são
imprescindíveis para que se possa fazer uma espera
quando os bichos estão manhosos para entrar na área
queimada.

39
O veado-do-campo chega à queimada com os
primeiros raios do sol, verifica o vento, olha as
extremidades e vai pastando e caminhado da borda para o
meio. Segue devagar, sempre levantando a cabeça para
observar por longos minutos... e está sempre alerta às
reações dos outros animais da campina. Se a gralha-de-
topete grita acusando algum movimento, ele se liga no
mesmo instante. Se a ema corre, ele mesmo sem saber
corre junto, e se o gavião-perdigueiro ou o pinhé dá sinal,
ele também entra em alerta. Os veados comem até o sol
esquentar, e ali pelas dez horas abandonam o campo em
busca do cerrado cru (que não queimou).
No cerrado de capim alto procuram sombrosas
moitas de coqueirinho ou capim-de-vereda e fazem suas
camas. Passam o período de sol alto deitados, remoendo a
pastagem macia da manhã. Ali pelas quatro da tarde,
levantam-se e refazem o itinerário. Se tem outra queimada,
não repetem a frequentada pela manhã, preferem não
ariscar. Comem o capim macio até escurecer, depois vão
atrás dos frutos de fim de ano, que são a cagaita (no
cerrado de mato alto) e a mangaba (no cerrado mais ralo).
Todo esse comportamento que acabo de descrever é
fruto da vivência e da observação do sertanejo caçador das
chapadas do Centro Oeste. Levaram anos para entender o
comportamento desses animais e desenvolver técnicas
para vencê-los de dia e em campo limpo.
A caçada de “traição” ou “esbarro” nas altas
campinas abertas é uma das modalidades mais difíceis e
emocionantes, sendo, no meu modo de ver, a que mais nos
faz sentir caçadores de verdade. Acompanhei experientes

40
caçadores nessa modalidade e todos sem exceção tinham
duas características marcantes: calma e paciência.
Eles fazem essa caçada de junho a dezembro, sendo
o forte da temporada os meses de outubro, novembro e
dezembro. Nesses três últimos meses do ano eles evitam
abater o macho, ou veado-galheiro. É a época do cio das
fêmeas e os machos exalam terrível odor característico.
No final de outubro rebrotam as queimadas feitas
vinte dias antes. O caboclo chega ainda escuro à campina,
e a primeira providência é fazer uma pequena fogueira com
um arbusto chamado goncalinho. Com a fumaça desse
fogo o caçador toma um defumador que irá ajudá-lo a
disfarçar seu cheiro no ambiente da queimada. Tem esse
ritual, além da função de disfarçar o cheiro, certa
conotação supersticiosa. Antes de o sol sair, o sertanejo
margeia lentamente a queimada olhando o chão... todo
caminhar é vagaroso, e a todo instante ele para e faz longas
observações. No cerrado de média altura, abaixa-se e
passa longos minutos olhando por baixo das centenas de
troncos finos e retorcidos, à procura da perna dos veados.
Técnica incrível que funciona muito bem, pois no cerrado
os caules estão enegrecidos pelo fogo, e a perna do veado,
de cor avermelhada, destaca-se de longe entre eles.
No chão está fácil de ver o rastro, o fogo queima a
palha seca do capim e mostra o chão amolecido pela
chuva. Se no rastro os dois cascos estiverem juntinhos o
veado estava caminhando, se tiverem as unhas bem
abertas é sinal de veado correndo. O grande segredo dessa
caçada é avistar o animal antes que ele aviste você... e se
isso acontecer e o vento estiver soprando de face, ou seja,

41
do bicho para você, as chances do caçador experiente são
muito grandes.
Quando se chega à campina logo ao clarear do dia
e se encontra um corredor de rastro por onde os veados
estão entrando, é fácil escolher uma árvore e fazer uma
espera. Agora, quando se chega à campina e os bichos já
estão lá, ou os rastros frescos mostram que eles estão
entrando em várias direções, o que vai definir o sucesso ou
o fracasso vai ser a capacidade de aproximação do
caçador, pois a distância máxima para um bom tiro com
uma carabina .22 LR é de 100 metros, sendo o tiro ideal
na faixa dos trinta até cinquenta metros.
A aproximação visando à distância segura para um
tiro é feita no rastejo, barriga no chão, roupa camuflada de
ramos e deslocamento bem lento. Por isso que o sertanejo
tem que conhecer e entender todas as variações na
mudança da direção do vento ao longo do dia, e mesmo
assim, durante o rastejo de aproximação, a todo o
momento ele retira do bolso um pequeno isqueiro, risca a
chama, levanta um pouco a mão e observa atentamente
para que lado a chama vai “dançar”. É assim que conferem
se o vento continua "bom”, ou seja, soprando do animal
para ele.
Sempre que o veado está de cabeça baixa o
sertanejo se arrasta, se o bicho ergue a cabeça ele para. O
caboclo sabe que o veado tem visão excelente; por se tratar
de presa muito visada pelos predadores, desenvolveu ao
longo de milhares de anos de evolução os dois olhos
postados nas laterais da cabeça, o que proporciona a ele
uma visão de aproximadamente 180 graus. É como se um

42
ser humano encostasse o queixo no ombro direito e girasse
a cabeça até o queixo encontrar o ombro esquerdo... esse
é o ângulo de visão do veado, e ele consegue fazer isso sem
mover a cabeça. Por conta dessa visão apurada, o
sertanejo sabe que só deve se mover com o animal
pastejando, de cabeça baixa.
Cuidado redobrado esses caçadores têm com os
“guardas” delatores das campinas, como os gaviões-
penacho e pinhé e os bandos de gralhas-de-topete, não
sendo raras as vezes que esses pobres animais com
territórios em áreas perto dos campos de caça são abatidos
a tiros de .22 na ocasião da demarcação das queimadas.
Uma vez completada a aproximação, o caboclo
apóia bem a carabina e, deitado no solo, espera uma
posição boa para o tiro. Quando o veado se posta de lado,
ele faz demorada pontaria e finalmente dispara. Raros são
os que caem no impacto. Os veados saltam ao serem
atingidos e correm para a direção que a cabeça aponta,
não sendo incomum que, desorientados, corram na
direção do caçador. Este, em tal ocasião, tem a
oportunidade de, sem dificuldade, aplicar um segundo tiro
e finalizar de vez a caçada.
Quando correm feridos para o largo, procuram o
cerrado alto das imediações para se refugiar. Quando
conseguem chegar ao cerrado mais espesso, deitam e não
levantam mais. O sertanejo, sabendo de tudo isso, espera
passar uns trinta minutos e em seguida vai até o local do
tiro procurar o "fincapé”, que são as marcas do casco
cortando o solo na arrancada do bicho. A partir dessa
marca, segue lentamente o rastro. Com a certeza do tiro

43
bem colocado, não tardam a encontrar o animal deitado e
já morto.
É interessante como os sertanejos das chapadas
não se importam com o couro, chifres ou qualquer outra
parte do animal que não seja a carne e os miúdos... o que
o caçador esportivo chama de troféu, eles chamam de
flagrante. E por isso é costume, logo após o abate,
dependurar a caça, tirar o couro, ensacar a carne e deixar
o resto para raposas, tatus-peba, lobetes e urubus.
A caçada do veado-do-campo de dia, no esbarro, é
modalidade para caçador experiente. Requer calma,
conhecimento e MUITO sangue frio. O sertanejo caçador
das chapadas do Brasil central caça o veado-campeiro até
o final de dezembro, mas em janeiro eles deixam os veados
em paz, pois as fêmeas estão com cria na barriga ou
filhotes novos e os machos cheiram tão forte que fica
impossível aproveitá-los para consumo. Os homens do
campo mudam então a sua atenção para as emas (fazendo
cevas de osso picado), para os catetos (nos saleiros
naturais e beira de grandes lavouras) e para os tatus.
O tatu-bola do cerradão, que adora sair depois das
chuvas para comer tanajuras, os sertanejos caçam nas
aragens do fim de tarde. Já o peba eles caçam em duas
modalidades: à noite com cachorro ou então com
armadilha de lata. A armadilha consiste em enterrar uma
lata dessas que vêm com leite em pó e colocar dentro dela
tripa de galinha fedida ou ovo choco. O peba, que adora
coisa mal cheirosa, enfia a cabeça na lata, e as laterais da
cabeça, que têm formato de ponta de flecha, ficam presas
na borda interna da lata. Sem enxergar nada, saem

44
batendo nas árvores e nunca encontram o buraco, assim
no dia seguinte o sertanejo vem e pega o tatu facilmente
nas imediações de onde foi colocada a simples armadilha.
O tatu-galinha ou tatu-veadeiro, que tem casco
mais branco e dois chifrinhos na ponta do rabo, eles
pegam usando cães ou eventualmente matam nas esperas
de paca nos capões de mato de beira de brejo. Esperam
também a cotia no coco-buriti e no cajuzinho, e quando a
oportunidade aparece, abatem o tamanduá-bandeira, que
tem carne forte, mas bem temperada e na falta de outra
vai bem.
Certa vez, andando com um desses caboclos,
encontramos em uma moita bem escondido um pequeno
filhote de veado-do-campo que, pintadinho, aguardava
imóvel a volta da mãe. Pela fraqueza e situação debilitada
em que se encontrava, percebemos que a mãe não o
alimentava há dias... ela certamente não voltaria. Levamos
o pequeno para casa e o cumpanhero cuidou dele por
meses. Era um machinho, que cresceu rápido e ficou
muito custoso e Inteligente. Amansou com o pessoal de
casa e adorava brincar com o cachorrinho da família, mas
aos doze meses, quando começaram a apontar os chifres,
tornou-se agressivo e investia nos meninos. Pura
brincadeira, mas para a garotada era um perigo. Então
esse amigo amarrou uma fita no pescoço dele e, levando o
bichinho piado na cabeça da sela em uma viagem de dia
inteiro, soltou o pequeno macho em uma campina bem
distante e protegida. Para quem não entende a alma de um
caçador a atitude parece incoerente, mas para quem
conhece de perto o coração desse povo, não se surpreende
com um ato desses.

45
Por causa da simplicidade, conhecimento e pela
humildade e bondade com que tratam a gente, sou
fascinado por esse povo lá da beira do mato.

46
Do cerrado e dos bichos

Das exuberantes selvas do Norte sou aluno, da


magnífica Mata Atlântica, aprendiz; da riquíssima planície
alagada do Mato Grosso, um estudioso dedicado, e dos
Pampas Gaúchos sei apenas o que li em livros. Mas do
Cerrado central do Brasil, arrisco-me a professorar alguns
segredos.
Como goiano que engrossou os braços subindo em
espera de pequizeiro, mirindiba, caraíba e ipê-amarelo,
digo-lhes que nos planos mais altos de Goiás é no inicio de
maio que as chuvas vão raleando, as manhãs ainda são
nubladas e quase sempre nos meios da tarde desce aquela
garoinha rala, mas persistente. Na roça chamamos de
chuvinha de molhar bobo. À tardinha ecoam trovões
compridos e o sertanejo diz que é a chuva se despedindo...
e à noite arriscam-se algumas estrelas nas frestas das
nuvens.
É o tempo em que as perdizes estão largando aos
cuidados do mundo as crias da última das suas três
chocadas. Porque perdiz é assim, iniciam o namoro piado
ali pelo início de agosto, acasalam-se no Início de setembro
e a fêmea fica junto com o macho só até prepararem o
ninho. Depois, ela põe os ovos e, como uma mãe
desnaturada, cai no mundo piando atrás de outro
namorado. O árduo trabalho de chocar e cuidar dos
meninos fica por conta do pai dedicado. Estratégia danada
de inteligente essa, pois só assim ela consegue pôr no
mundo três ninhadas de setembro até o início de abril.
Como a mortalidade entre os pequenos é alta, sem isso a

47
perdiz há muito já teria acabado pela boca do lobo, pela
fome descomedida do lagarto teiú (que fora dos chapadões
procura e encontra muito os seus ninhos) ou pela maldade
indiscriminada do fogo, que consome as campinas do
centro do Brasil nos meses mais secos.
No início de abril o tempo está verde, os campos
exuberantes e dentro do mato qualquer moitinha esconde
fácil um bicho grande. A chuva já se despediu, a terra fica
firme e os rios começam a limpar a água.
Nas rocinhas de milho das vazantes, o caçador
experimentado pode ver fundos os carreiros das pacas nos
barrancos dos rios. Nesse tempo elas estão loucas por
milho, sendo as rocas mais sujas de mato as primeiras a
serem atacadas. Para quem tem experiência e sabe ler as
marcas, fica fácil fazer uma espera no carreiro delas. O
segredo maior é saber escolher o ponto: nunca no limpo,
pois ficam inseguras. Procure um bom armador dentro de
uma latada de cipo, antes ou depois da roça, e debulhe
meia espiga de milho seco na beira do carreiro e em um ou
dois pontos promissores das imediações. Não tem paca
que passe por cima sem parar e comer ruidosamente. Para
esse tipo de espera, a lua boa é a lua no quarto crescente,
quando entra ali pelas nove da noite, pois muita paca mora
longe da roça e, quando se espera nos primeiros dias de
lua cheia (como se costuma fazer nas cevas artificiais), ela
pode não ter tempo de chegar à roca antes de a lua sain e
clarear tudo... caminhar com lua clara ela caminha, para
isso usa as sombras do mato, mas comer em pontos fixos
com lua clara é muito difícil. Só mesmo quando estão
realmente desesperadas de fome. Por isso, as esperas com

48
a lua entrando são bem mais promissoras do que aquelas
em que a lua irá sair cedo da noite.
No início de junho, as águas das veredas ficam
friinhas e o mato da beira dos rios também esfria muito ao
cair da tarde e nas horas mortas da madrugada. Nos
grotões e vazantes de chão preto e mata alta, cai a fruta do
buraim... pau linheiro que só engalha lá depois de dez
metros de altura. A casca dele é fininha feito casca de
jabuticaba, tem folha miúda e, para ver os frutinhos, só
achando no chão. O fruto é uma goiabinha miúda e
amarelada no formato do araçá maduro, dá espera de
primeira para paca, veado-mateiro, mutum e jacu. Se
achar um pé caindo em lugar de mata sossegada, pode
cortar as varas, amarrar o mutá e amolar a faca.
Junto com o buraim, nas pedreiras de serras e
bocainas íngremes, cai a flor rosa da barriguda. Espera de
mateiro melhor não tem, pois cai em um tempo de pouca
comida nas matarias de serra. Para o caçador de espera,
que é apaixonado pelos sons do mato, não tem emoção
maior do que ouvir no meio de uma noite escura um
mateirão caminhando lentamente serra a baixo, rolando
pequenas pedras e farejando o perfume doce da flor da
barriguda. E como são pesados! Desconfio que o ambiente
íngreme desenvolva de forma mais acentuada a
musculatura dos mateiros que se adaptaram a viver
nessas serras, pois sempre são eles mais corpulentos do
que os seus irmãos que habitam as matarias de planície.
Junho vai correndo, e ali pela metade do mês
começam a cair no cerradão cru que fogo não queimou as
flores brancas do canudeiro, também chamado de

49
paineira. E para quem quiser furar costela de veado-
catingueiro, basta sair de tarde nos grotões secos e armar
a rede em um capão de canudeiros. Só fiquem atentos,
pois o chão da mata ainda não tem muita folha seca e as
flores são grandes. Eles as comem quase em silêncio total,
uma ou duas, e seguem em frente cumprindo o seu
sistemático itinerário de alimentação noturna.
No final de junho também é tempo das favas negras
da faveira-do-cerrado. Veado-catingueiro é morto no rumo
daquilo. Onde não há gado no campo, eles gostam de
comer de dia, depois das nove da manhã, ou de tardinha,
depois das quatro. O fruto maduro é preto, seco, fino e
curto, que nem um canivete grande. Quebrando-o, sente-
se cheiro de baunilha; já provando da polpa, encontra-se
um gosto doce-amargo. Dizem que é abortivo para o gado
e que também tem fins farmacêuticos. Em pé de faveira
ninguém arma rede, é fino e frágil, de folhinha miúda e
sombra mirrada. Armamos "particular” (em árvores
paralelas), como gostam de dizer os sertanejos do árido
Tocantins.
Quase no final do ciclo produtivo da faveira começa
a cair o frutinho do pau-d'óleo. Esses frutos normalmente
são encontrados dentro do mato fresco, na beira dos
grotões sombreados pela cambaúba (bambuzinho) e
refrescados pela água cristalina que desce das serras à
procura dos rios perenes. No norte o chamam de copaíba,
mas aqui para o sertanejo goiano é pau-d'óleo. A frutinha
é miúda e quase que só uma sementinha preta, dura e
brilhosa, mas grudado nessa sementinha vem um
“emborrachamento” miúdo e adocicado de cor laranja. A
borrachinha" laranja é a recompensa para quem se dispõe

50
a esparramar os filhos da árvore. O bicho de boca maior
come com tudo, a semente passa pelo trato digestivo, que,
com sua acidez, quebra a dormência do embrião. Quando
ela sai, já é depositada no solo adubada pelas fezes do
animal e bem longe da planta mãe, o que é o mais
importante. É a mãe natureza dando seu show. Também é
assim com as sementes da esponja, mirindiba e tamburil:
quem planta é o gado, a anta, os veados, jacus, mutuns,
catetos, queixadas e macacos.
No interior existe uma crença reforçada que bicho
que está comendo a fruta do óleo não morre fácil, se o tiro
não for de calibre adequado e a colocação não for mortal é
bicho ferido em fuga. A carne da paca e do veado que come
o óleo não é boa, fica cheirando forte e tem o seu sabor
original alterado, isso é fato. Mas o que tem de ruim a
carne desses bichos quando sustentados por fruta de pau-
d'óleo tem de cheirosa e saborosa quando os mesmos
bichos comem o coco-macaúba ou o fruto do jatobá. E a
do porco-queixada comendo o milho verde, nossa!!! Carne
melhor não existe.
No início de julho, entramos oficialmente no
inverno, de dias quentes e curtos, com noites secas, frias
e longas. Pobre do vivente que subir em uma espera de
pequizeiro ou pau-d'óleo na boca de um varjão de buriti.
O vento gelado do chapadão vem por baixo da rede,
assoviando e trazendo o frio que entreva o caçador. Aí o
sujeito tem duas escolhas: ou forra a rede com um
colchotene fino, que vai servir como isolante térmico, ou o
jeito é pular no chão, juntar um montão de folha e tocar
fogo pra não endurecer os ossos do espinhaço.

51
Em julho também cai o jatobá maduro. Em Goiás
temos dois tipos, o jatobá-da-mata e o jatobazinho-do-
cerrado, este de tamanho menor, gosto mais doce e casca
mais fina. Espera boa demais! Anta, veado-mateiro, cateto,
queixada, paca, cutia, tudo come. A paca, ao quebrar a
casca dura do jatobá com o dente, produz um estalo alto
que vai longe dentro da mata silenciosa. Quem não
conhece acha até que é tiro de .22. E para o caçador é uma
emoção bem parecida com a que se sente quando se escuta
o mastigar ruidoso dela no caroço da mirindiba, ou o roer
acelerado que ela faz quando tem na boca a semente dura
do coco-macaúba. Escutar uma paca estourando um
jatobá numa noite de lua escura num mato sossegado da
beira de um riachinho de água limpa enche de satisfação
o coração da gente e só isso já paga a noitada do caçador
que é apaixonado por caçada de espera.
Julho vai correndo, e quando chega ali pelo final do
mês, começa a cair a rainha das fruteiras de espera. No
sul do estado chamam-na de piúna, mais para cima
chamam de mirindiba... já no Mato Grosso chamam de
tarumã ou boca-boa. Mas independente de que nome o
sertanejo dê a ela, essa é sem dúvida nenhuma a rainha
das esperas no Brasil central. Tudo no mato come
mirindiba: o rato, a paca, a cotia, a cigana, as três raças
de jacu (tinga, verdadeiro e o pemba), os mutuns pinima e
cavalo, do catingueiro-xuré ao veado-mateiro, do cateto ao
queixada, do boi bravo à anta, TUDO. Elas frutificam
demais em um ano e no outro não dão carga alguma. O
sertanejo fala que Deus fez assim pra não matar o gado de
desinteria.

52
Como são árvores grandes, suas cargas são
duradouras. Conheço pés centenários que, quando
carregam, vão desenvolvendo e amadurecendo os frutos
gradativamente, de modo que começam a cair no início de
julho e vão até fim de novembro jogando as últimas frutas,
com os ventos que trazem as chuvas do fim do ano.
Embaixo não fica folha inteira, é carreiro de paca, pé de
anta e casco de veado moendo o chão. Mas quem quiser
saber notícias da noite, tem que chegar ao clarear do dia
debaixo da mirindiba, pois é só o sol subir dois palmos e
começar a secar o orvalho da capoeira que o gado vem
babando para debaixo das fruteiras. Pisam e defecam
debaixo até depois do meio dia, limpam todas as frutas no
chão. Daí, achar o rastro fino de um catingueiro por cima
do massador do gado é tarefa para poucos.
O sol esquenta e o dia passa quieto. Às cinco da
tarde vêm os quatis, de longe a gente só vê o rabo
bandeirando no ar, uma fila enorme. Sobem em
segundos... depois, a cada fruta que comem, jogam duas
outras frutas no chão. De longe a cotia escuta o “poft”
delas caindo nas folhas secas. Aí entram à surdina,
caminhadinho engraçado, catam uma fruta com a mão
esquerda, sentam graciosamente sobre seus calcanhares
lisos e:
- Crup, crup, crup!!
Comidinho ligeiro, bem diferente do da paca. Os
quatis descem e chegam os jacus. Bandos de oito a dez
escandalosos, não apreciam a fruta verde (pois aperta a
língua deles), aí vão só às amarelas das pontas dos galhos.
Cada pouso de um pesado jacu-verdadeiro derruba no

53
chão outra porção de frutas. Engolem inteiras até as
maiores... ô bicho da moela grande.
De julho em diante o mato é seco, e quanto mais
chegamos perto de setembro, mais o clima esquenta e as
noitadas ficam confortáveis.
Agosto é o mês de fartura no cerrado, cai a flor do
pequizeiro, a mirindiba, o restinho derradeiro dos jatobás
e os primeiros tamburis derrubados ainda verdes pelas
maritacas. O pequizeiro por si só merecia um livro, sua flor
tem hora certa para cair. As flores caem logo pela manhã,
depois que os passarinhos bebem o resto do néctar que
sobrou da farra dos morcegos durante a noite toda. O
vento do romper do dia no cerrado vem na posição e na
medida certa para derrubar as flores que já cumpriram o
seu papel de polinização. Descem rodando feito hélice de
helicóptero e batem nas folhas secas com um som gostoso
e abafado. O vento vai embora, o sol esquenta e as abelhas
chegam. Aí pode ficar atento e prevenir a .22, pois o veado-
do-campo está chegando. Reparem nas gralhas-de-topete
que gritam longe, ou no gavião-pinhé, que ao ver o
movimento do veado-campeiro dobrando o espigão
denuncia-o para o ouvido afiado de quem entende a
dinâmica das campinas abertas do cerradão de chapada.
Entrando setembro, o cardápio ganha mais uma
página. Além das esperas anteriormente citadas iniciam-
se o ipê-amarelo, o ipê-roxo, a caraíba e o tamburil de
dentro das matas altas. Nas capoeiras secas, cai também
a fruta da espinhosa esponja, espera boa de catingueiro,
veado-mateiro e pacas, caso a encontrem caindo em
distância segura da beira d'água. Junto com a esponja vem

54
a mutamba, e junto com a mutamba, seca e cheirosa, a
farra dos jacus, veados e principalmente dos catetos e
queixadas. A mutamba é árvore de madeira dura e forte,
de altura considerável e que tem galhas de arquitetura boa
para se armar rede. O defeito é que no ano que dá é geral,
e a escolha da espera tem que ser feita observando o mato,
pois o bicho tem o lugar certo, predileto e mais seguro para
se alimentar.
Em certos sertões secos e durante o mês de
setembro, as poucas barragens que resistiram à sede do
sol e os olhos d'água sombreados pela mata são ótimas
esperas. Olhando-se atentamente, notam-se as
mensagens que a lama que vai secando deixa impressa
para o caçador experiente. Conta do veado, que pisa
fazendo furo; do jacu, que passa arrastando a ponta do
rabo; do macaco, que tem mão de menino; do tatu, que
revira lama atrás de minhoca, e do lagarto, que passa
arrastando o rabo que nem rastro de bicicleta. Subir em
espera de bebedouro é presenciar um dia inteiro de
procissões de milhares de abelhas mansas e bravas,
moscas, besouros, passarinhos de tudo que é cor, lagartos,
raposas, pombas-juritis, pequenas e engraçadas filas de
jaós. Sem falar nos bichos maiores, como os bandos
pequenos e desconfiados de catetos, que chegam ao
finzinho do dia para beber e se enlamear, e dos predadores
oportunistas, como a onça-suçuarana e o gato-maracajá,
que espreitam nas árvores ou selados no capim, com os
olhos vidrados nos passarinhos. O que é bonito de ver é a
graciosidade dos bandos de centenas de borboletas,
colorindo a beira lamacenta do bebedouro e sugando os
sais na superfície do barro úmido.

55
Setembro corre e entra outubro quente; as fruteiras
estão no auge, algumas terminando o ciclo, outras no
início. É tempo da flor vermelha do mulungu e da frutinha
verde do casco-danta, única fruta do cerrado que dá
espera de tatu-galinha. É tempo de gameleira ou figueira,
das pacas e do veado-mateiro.
Ali pelo meio de outubro as cigarras destampam a
cantar na mata, adivinhando chuva. Iniciam-se longos
trovões pelas madrugadas frescas e, assim que caem as
primeiras chuvas, o tamburil que caiu no chão absorve
água amarga e só serve para a boca desaprumada da anta.
Só elas continuam comendo os frutos amargos de olhos
fechados, enquanto o caldo escuro escorre em seus
pescoços. Com a chuva, crescem as favas do doce ingá-de-
cordão, comida que macaco-guariba derruba para veado-
catingueiro e paca. Amadurece o saputá-da-mata e o
saputá-do-cerrado, também conhecido como grão-de-galo.
No cerradão da chapada alta cai a fruta da cagaita para
dar de comer ao veado-do-campo, que precisa do açúcar
dela para digerir melhor os brotos curtos que surgem nas
cinzas das campinas depois das primeiras queimadas.
Amadurece a espinhenta lobeira (do lobo-guará) e a
mangaba-leitosa (dos catingueiros). Nos matos baixos da
beira do rio cai o jenipapo, que aguardou o longo período
seco totalmente formado. Espera boa para veado, anta e
paca; cateto gosta, mas é falhador... como vive em uma
infinita caminhada itinerante, não se deve confiar na
rotina dele.
Entra novembro e a chuva firma, o arroz está sendo
colhido nas grandes lavouras alagadas que tiveram os

56
drenos fechados para permitir a entrada das colhedoras
calçadas de esteiras. Milhares de marrecos, patos e
bandos intermináveis de pombas asa-branca chegam de
vários lugares para o banquete. É hora de guardar a .22,
respeitar a reprodução dos bichos de pêlo e praticar o tiro
ao voo. O cerrado muda, encorpa, o bicho consegue se
esconder com muita facilidade, o capim cresce, as veredas
são alagadas, as rãs e sapos iniciam suas festas de
cantoria, os bichos que acumularam energia e gordura ao
longo da farta estação seca, ou estão de namoro, ou de
filhote a caminho. O macho do veado-campeiro está
agitado, cheira forte; seu chifre está formado, forte e sem
couro. Ele está pronto para a disputa das fêmeas, afinal, é
a época do cio.
Os rios enchem, as pacas fogem subindo as grotas
que alimentam os rios e fazem suas moradas nos
barrancos altos e secos ou nas raizadas das grandes
árvores... ou ainda nas pedreiras da serra, longe da água
barrenta e agitada do rio principal. Cai a pitomba, as
mangas e o ingá, cai o coco-macaúba e o abundante
cajazinho-amarelo.
Entra dezembro e a enxurrada lava os barreiros de
pés de serra, expondo o salitre mineral apreciadíssimo por
quase todas as nações de bicho. No barreiro entra cateto,
queixada, anta e os veados mateiro, campeiro e
catingueiro. Esses saleiros ou barreiros, quando ocorrem
em barrancos abertos, são muito frequentados por araras
e papagaios, que consomem o mineral para ajudar na
digestão dos leitosos e tóxicos frutos que ingerem no alto
das copas das matas mais altas.

57
Entra janeiro e cai o tucum bem ao norte, cai o
jerivá nos grotões do cerrado, cai o coco-cabeçudo e o coco-
buriti nas matas de vereda. As cotias engordam e ficam
com o queixo laranja de tanto comer buriti.
Entra fevereiro, o auge das mangas para as pacas e
dos pastos altos para os veados, capivaras e porcos. O
mato está molhado, as lagoas cheias de água e de peixes
maiores que entraram para tentar caçar os menores. As
lavouras de soja, feijão e milho estão verdes e encorpadas,
os veados pastam a noite toda e sua dieta fica quase que
90% dependente de pastagens verdes. Com os porcos não
é diferente, os queixadas pastam o verde, comem a planta
pequena do milho e o barro salgado nos saleiros, os catetos
fuçam as veredas amolecidas à procura de minhocas,
raízes e pequenos insetos enquanto esperam ansiosos o
granar das roças de milho nas lavouras de beira de mato.
Entra março e a bicharada está nas roças, comendo
milho. Na mata perdura o ingá-amarelo, o coco-macaúba,
o saputá... no cerrado, a mama-cadela e o araçá.
Entra abril e cai a fruta do “sabonete”. Paca não
gosta, mas na escassez do resto, come. Não são esperas
boas devido à quantidade, são árvores comuns e que
derrubam frutos para todo lado, de jeito que o bicho não
firma rotina. Abril, que é um mês de pouca comida natural
e quando a chuva já recuou, é bom demais para fazer ceva
de milho seco e caroço de manga. Aí os dias correm, a
chuva vai espaçando, chega maio e fecha-se o ciclo,
começando tudo de novo.
Como o cerrado é um bioma que engloba nove
estados do centro do Brasil, estados esses espalhados por

58
vários paralelos, as datas, épocas e tempo de ocorrência
de algumas das flores e frutos que mencionei variam
bastante de uma região para a outra. Grosso modo, o
principal mecanismo que desencadeia toda a química
botânica da natureza está diretamente ligado ao
fotoperíodo, que é a quantidade de luminosidade
disponível durante o dia, ou a diferença (ou relação) entre
o tamanho do dia e o tamanho da noite.
Fiz um resumo baseado em anos de observações e
muita prática, não é um trabalho científico, mas é muito
parecido com o real funcionamento das engrenagens de
clima, tempo, água e comida dos animais ao longo do ano
nesse incrível bioma que é o Cerrado Brasileiro.

59
Coisas boas, coisas de caçador

Andar calado no mato seco do mês de setembro,


prestando atenção nas coisas que se movem,
acompanhando o antigo trieiro do gado e evitando pisar
nas folhas secas para não fazer barulho... caçando "de
orelha". Ouvir o pio triste e melancólico da jaó e o cacarejo
escandaloso dos jacus, correndo pelos galhos e
perseguindo uns aos outros em meio ao cipoal. Ver de
longe a esquelética copa de um tamburil desfolhado pelo
vento quente da seca. Entrar embaixo, ver os rastros e as
frutas comidas da noite anterior, ver as formigas ainda
carregando as últimas migalhas por entre as folhas. Sentir
a empolgação de uma espera boa em mato alto, armador
afastado, fácil de subir e com forquilhas desenhadas na
medida certa para uma rede bem armada. Comentar com
o cumpanhero um rastro grande e bem impresso no chão
de poeira. Ver no meio das folhas secas um monte novo de
estrume de veado-mateiro, a urina ainda secando sobre as
folhas no chão, um raspão de pata, uma desfolha de chifre.
Dar um aperto de mão, olhar nos olhos e desejar de
coração uma boa sorte ao cumpanhero, que se afasta indo
atrás da sorte dele.
Subir, armar rede, dependurar a tralha, beber água,
respirar fundo o ar puro da mata. Espantar para longe os
pensamento lá do mundo civilizado. Curtir a solidão, que
te dá tempo para prestar atenção em coisas que você
nunca antes notou. Aproveitar o seu anonimato. Espiar a
natureza escondido, em silêncio. Lá de cima, escutar a
algazarra dos guaxos na sua animada sinfonia de
imitações, o distante e metálico canto da seriema, pousada

60
para dormir em um pé de choradeira lá no espigão onde o
mato raleia e vira cerrado. E logo que escurece, escutar o
gemido perdido dos mutuns. Viver ali sozinho uma enorme
expectativa e fazer o tempo passar testando situações
imaginárias da chegada da caça.
Apreciar cada momento de uma noite escura e
quente, olhando o manto negro salpicado por milhares de
estrelas em um céu limpo e sem nuvens. Viver uma
enorme paz de espírito, enquanto mentalmente se tenta
localizar de onde vem o misterioso cantarolar do grilo e o
martelar dos sapos, pererecas e rãs numa lagoa próxima.
Escutar o ruidoso banho da anta e o estardalhaço dos
jacarés emboscando os peixes menores nas águas rasas.
De madrugada, ver a estrelinha que anda piscar luz
e virar avião. Passa bem antes do barulho... e como corre
ligeira! Imaginar as pessoas lá dentro, vestidas com
caríssimos ternos de grife, gravatas de seda italiana que
valem muito mais que essa minha estimada 28, que tão
indiferente repousa em meu colo. Eles lá, rumo à correria
do cotidiano, deitados naquelas confortáveis poltronas da
primeira classe... com um copo de wisque doze anos nas
mãos, falando sobre ganhar mais dinheiro e fingindo
descaradamente que são criaturas felizes e realizadas. E
eu aqui, desligado do mundo, sentado numa rede no topo
de uma fruteira no coração da mata, escutando o mato
sem nem lembrar que dinheiro existe.
Viajar nesses pensamentos... e quando o sono for
chegando, escutar lá na ponta capão o esturro respeitado
da calibre 20 do cumpanhero de confiança. Um tiro que
rompe a madrugada, violentando o silêncio sereno da noite

61
e interrompendo por breves segundos o cantarolar dos
grilos e sapos. O tiro do cumpanhero sempre enche a gente
de um sentimento que é uma mistura de satisfação com
uma pitada de curiosidade e lá bem no fundo aquela
pontinha de inveja boa. Sentar na rede, respirar fundo,
apanhar a garrafinha no bolso da jaqueta e tomar um
trago da amarela para esquentar a alma e comemorar o
tiro do cumpanhero.
Acordar de sono leve, ver o dia clarear bem antes de
o sol sair, a passarinhada acordar e presenciar a troca de
turno: vão os sapos, vêm os bichos de pena. O sol
esquenta, espantando o frio.
Desarmar a tralha, pisar no chão com pernas novas,
pegar a picada imaginando o descaso debochado da sorte
e alegrar-se novamente na chegada ao acampamento,
quando acontece o encontro com a cumpanherada que
passou a noite em outras esperas. Pendurar a tralha, ouvir
as histórias, dar risadas, tirar um sarro, uma foto, tirar o
couro, temperar o fígado só com sal, ali mesmo na beira
do rio, e comer na própria frigideira, pegando com a mão
ou espetando com a ponta da faca. Abrir uma cerveja
gelada, molhar a palavra, ali debaixo da lona da cozinha
mesmo, de mão suja, calça camuflada, boné para trás e
faca na cintura. Eita trem bão!!!
O que me admira é que ainda tem gente que é
viciada em cidade grande, não vive sem um celular, venera
televisão, esquece religião, come em pé, dorme sentado...
gente que se acostuma a passar a manhã inteira em
engarrafamento de trânsito, vive com pressa, se mata de
trabalhar, estranha ar sem fumaça de carro, fala mal de

62
caçador e morre pobre imaginando que morreu rico, sem
nem saber que tudo isso existe.
Pobres infelizes.

63
A promessa

Passava pouco do meio dia, o calor era forte e a


mata difícil de caminhar. Os três índios Metkitires que iam
à frente foram os mesmos que há cinco anos haviam feito
aquela picada, mas como a floresta tropical se recupera
rápido, eles caminhavam devagar, checando
cuidadosamente as antigas marcas e cortes de facão já
cicatrizados nos galhos das árvores menores para não
errarem o caminho. Por último na fila vinha calado um
caboclo moreno e alto. Caminhava decidido, trazendo no
ombro direito um pesado embornal com algumas caixas e,
no ombro esquerdo, uma espingarda CBC calibre .16
novinha. Estavam caminhando desde as cinco horas da
manhã e só chegaram ao destino por volta das duas da
tarde. O lugar era uma grande clareira dentro da mata. Ali
o caboclo retirou do embornal várias caixas de vela,
cuidadosamente enfileirou em cima de um tronco caído
154 delas e em seguida acendeu uma por uma.
Os índios aguardavam calados e apreensivos,
olhando de longe... aí o caboclo se ajoelhou, fez uma
demorada oração e, em seguida, com os olhos cheios de
lágrimas, colocou-se novamente de pé. Sem demora, todos
pegaram o caminho de volta. Caminharam o resto da tarde
e chegaram à noite na beira do igarapé de nome Clareira.
Tamanho esforço foi necessário porque os índios se
recusavam a dormir naquelas matas, pois, segundo eles,
aquele era um lugar assombrado, e só com um bom
pagamento em dinheiro foi que aceitaram guiar o aquele
sertanejo até lá. Na volta, dentro do barco, o caboclo
continuava em total silêncio... de certa forma, sentia-se

64
aliviado. Havia cumprido a única promessa que já fizera
na vida. Mas a história dessa promessa começou seis
meses antes... e foi bem assim o acontecido:
O Seu José Francisco havia chegado naquela beira
de Xingu há apenas trinta dias. Seringueiro de profissão,
nascido e criado nas selvas do Acre, veio receber uma
herança deixada por um tio, o último dos irmãos do seu
finado pai. Gostou tanto do lugar que só voltou ao Acre
para buscar sua mulher e os três filhos pequenos. Morar
ali e ser dono da sua própria terra era bem melhor do que
sujeitar-se à violência e ao trabalho quase escravo, que
assolavam a sua terra natal.
Passou a morar com a família em uma palafita
cravada em um pequeno pedaço de terra na beira do rio
Xingu, no norte do estado de Mato Grosso. A terra tinha
papel, ele a havia herdado do tio que morrera de repente
três meses antes. Assim o ex-seringueiro virou pescador.
O que ganhava com a venda do peixe na cidade não era
muito, mas complementando a renda com o alimento que
a floresta tinha para oferecer ele ia se adaptando. Por ser
pessoa boa e muito honesta, já havia feito vários amigos
ao longo do rio. Não acreditava que em uma selva
exuberante daquela não existisse seringueira, e por isso
vivia sempre procurando. Conversando com um
cumpanhero, descobriu que duas horas rio acima, depois
de uma pedra grande chamada quebra linha, existia do
lado direito do Xingu em um igarapé chamado Clareira. As
margens da cabeceira desse igarapé havia uma mata
enorme que, por ter fama de mal assombrada, não era
frequentada por garimpeiro, caçador e nem indio. Ele,
como homem religioso que sempre foi, não acreditava

65
nisso e sempre comentava com o compadre que um dia iria
explorar aquelas matas.
– Vai não cumpade, morreu um povo lá um tempo
atrás e os índios contam que escutam vozes e vê gente
vagando pela selva à noite.
– Bobagem é essa, cumpade, isso é conversa fiada
de índio pra colocar medo nos brancos e afastar eles de
suas terras. Aposto que por lá tem seringueira, muita caça
e muito peixe.
E foi assim que em uma manhã depois da chuva o
caboclo pulou dentro da canoa. Com uma cuia tirou o
pouco de água da chuva que acumulou, depois apanhou o
embornal, a cartucheira e colocou em cima do banco do
barco. Em seguida, funcionou a antiga rabeta do seu tio
movida a diesel e cortou água rio acima. la caçar no tal
lugar que ninguém ia. Rodou por duas horas, até que,
depois da pedra do quebra linha, encontrou a entrada
escondida do igarapé da clareira. Depois que entrou,
seguiu devagar, observado as margens e a exuberante
selva que cobria o pequeno córrego. Enquanto rompia,
ficou imaginando o porquê daquele nome, afinal, pelo jeito
da mata alta, não era lugar propício para clareiras ou
descampados.
Subiu por uma meia hora e encostou a canoa na
margem direita do estreito córrego. Dali para frente era
terra indígena Metktire, mas a área era tão grande que ele
certamente não encontraria nenhum indio. Por ser novo
ali e não conhecer direito na região, decidiu não
abandonar a beira do igarapé. Andou uma hora e meia na
direção do centro da mata sem abandonar a rota que havia

66
planejado e, ao parar para beber água, arrependeu-se por
não ter trazido no embornal uma linha forte e um anzol
grande. No raso do igarapé, via claramente dois trairões
enormes dormindo preguiçosamente à sombra. Fez plano
de voltar ali outro dia e seguiu adiante.
Quando o igarapé virou palmital, ele virou à direita
e subiu uma elevação dentro da selva, descendo logo
depois a vertente do lado oposto. Foi de facão
desembainhado, fazendo de quando em vez um corte nas
folhas de palmeira para marcar sua passagem. Andou
mais vinte minutos e, acidentalmente, encontrou um
enorme pé de jambo-silvestre jogando fruto. As trilhas de
pacas eram inúmeras e havia remontes (estrume) frescos
de mateiros para todos os lados, espera de primeira.
O caboclo então saiu roda do pau, cortou duas
varas de mutá, escolheu duas árvores linheiras e amarrou
de uma árvore para outra a primeira vara com cipó-tripa-
de-galinha. Subiu, amarrou a segunda e, por cima dessa
última, armou sua velha rede. Sentou-se, bebeu água,
dependurou o embornal em um galho e em outro uma
velha CBC calibre .16, herança do seu falecido tio.
Respirou fundo, conferiu a lâmpada da lanterna de
plástico e ficou pronto. O sol já ia baixo, mas fazia um calor
enorme dentro da selva. Longe, um bando de bugios
entoava seu canto grotesco e mais distante ainda outro
bando rival de território respondia a provocação. Araras
cortavam o céu com gritos poderosos. E um bando
numeroso de macacos negros dos braços longos comiam e
jogavam no chão os restos de alguma fruta trinta metros
adiante. Cansado pela longa caminhada, o caboclo
cochilou... e quando despertou, já era noite.

67
Sentou-se na rede, apanhou a garrafa plástica onde
trazia água limpa, molhou a mão, passou no rosto e depois
se serviu na panelinha com arroz, farinha e pirão de peixe.
Comeu, e terminada a refeição, bebeu mais água. Quando
foi colocar a tampa na garrafa, ela estalou o plástico e isso
foi suficiente para assustar uma paca que chegava e voltou
latindo. Lentamente ele apanhou a espingarda e ficou
pronto, esperando nova oportunidade. Vinte minutos
depois, outra paca veio da mesma direção e começou a
comer um jambo com um mastigar macio, mas quando foi
entrando na posição mais limpa onde já poderia ser
iluminada, saltou sobre ela um bicho que aguardava
imóvel dento de uma moita.
Os dois animais arrancaram em desabalada
perseguição. Tudo aconteceu tão rápido que o caboclo
sequer teve tempo de iluminar. Mas também não carecia
gastar pilha, os anos de prática diziam a ele que aquilo
havia sido uma jaguatirica esfomeada que resolveu lhe
fazer uma sociedade não anunciada. O predador selvagem
é como nós, sabe pelo cheiro que o jambo-silvestre, quando
joga frutos, é ponto de alimentação de uma infinidade de
presas.
Em minutos o mato se acalmou e o caboclo ficou
sem saber quem havia levado a melhor no jogo de caça e
caçador. Provavelmente o gato tenha se precipitado e por
isso iria ficar com fome, pois quando erra o primeiro pulo
e perde o fator surpresa ele dificilmente supera a paca em
velocidade.
A noite rompeu sem novidades. Bem mais tarde,
trovões ecoaram longe. Já era perto da meia noite quando

68
o caboclo escutou um pisar leve como uma pluma que cai
no chão coberto de folhas secas. Não moveu um músculo.
Para um principiante de pouca prática aquilo nada
significava, mas para ele não... sabia exatamente o que
era. O "fantasma vermelho” da floresta estava quase
embaixo da rede. Misteriosamente havia rompido mais de
vinte metros de folhas secas sem fazer sequer um som. Por
isso, pegou o caboclo de surpresa e totalmente
desprevenido, com a arma dependurada e os pés para
dentro da rede. Ele não tinha outra opção que não fosse
aguardar imóvel uma oportunidade. O silêncio na mata era
tão grande que ele conseguia ouvir claramente o mateiro
tomando faro à procura das pequenas frutas do jambo.
O coração acelerou, o veado rompeu farejando e
mastigando as frutas aqui e acolá. Não mais aguentando,
o caboclo, mesmo deitado, esticou vagarosamente o braço
na direção do cano da arma dependurada à sua direita. O
contato com o aço frio nunca fora tão bem-vindo.
Lentamente ele recolheu o braço e trouxe a arma para
junto do corpo. Primindo o gatinho para evitar o “clic”, fez
pressão com o polegar e armou o cão da velha CBC.
Ergueu a cabeça e, apurando os ouvidos, tentou localizar
a posição do veado. Tudo estava quieto e ele voltou a
encostar a cabeça na rede.
Segundos depois escutou um galho quebrar forte já
fora da roda do pau. Era o veado, havia escutado ou
farejado o caçador e como um fantasma saia furtivamente
de debaixo da espera. O experiente sertanejo não teve
dúvidas. Sentou-se em um movimento brusco, apoiou os
pés no mutá e iluminou adiante. Varreu o mato da
esquerda para a direita até encontrar a traseira do veado,

69
que caminhava lá na frente, todo encolhido e na ponta dos
cascos. Fez pontaria, a distância era longa, mas naquele
segundo ele decidiu arriscar. Com a luz nas costas, o bicho
acelerou a toada e, vendo que não ia ter outra
oportunidade, o caboclo marcou pontaria no meio das
costas do bicho e tocou o gatilho.
A velha CBC calibre .16 respondeu com um esturro
e o veado deu um salto para cima e caiu no chão. Fez
fincapé tentando levantar, mas não conseguiu. Sozinho lá
em cima, o caboclo apertou na mão a sua velha e confiável
.16. Naquela distância, se fosse com um calibre menor,
certamente não teria conseguido um tiro “fatal”, pensou
ele. Abria a arma para trocar o cartucho quando o bicho
se levantou cambaleante lá adiante. Iluminou e o viu de
relance caminhando para frente. Só aí ele percebeu que o
tiro distante na posição ruim não havia sido tão mortal
quanto ele imaginara, pois a carga de chumbo 3T do
cartucho de fábrica certamente havia se dissipado no
corpo do veado.
Recarregou a arma, pegou no embornal mais um
cartucho e desceu depressa. Não queria perder a carne da
semana inteira, pois sua esposa e filhos contavam com ela.
Seguiu devagar e de lanterna acesa até o ponto onde tinha
caído o veado. Viu marcas de sangue e seguiu o rastro de
dedos abertos. Desceu um baixão, passou por um enorme
tronco caído e mais à frente viu sangue novamente. Parou,
ajoelhou-se, iluminou em volta e quase morre de susto
quando o veado atirado arrancou a dez metros de
distância. Uma corrida incrível no meio das folhas
franjadas de um coqueiral baixo. Ele não teve tempo de
atirar, na verdade nem chegou a ver o veado. O que

70
enxergou no foco da lanterna foram apenas as folhas dos
coqueiros balançando e ouviu o som de galhos se
quebrando debaixo dos cascos finos do animal em fuga.
Experiente, sentou-se no chão e esperou uma meia hora,
seria o tempo de a hemorragia fazer efeito. Ele certamente
iria se deitar e não mais levantaria... aí bastaria seguir a
trilha.
Passado o tempo, o caboclo levantou-se e, de
lanterna na mão, seguiu bem devagar na direção da
corrida. Achava pingos de sangue aqui e ali e seguia
confiante na direção certa. Andou mais uma meia hora,
mas aí a lanterna começou a fraquejar e ele não mais
conseguiu encontrar sangue ou marcas. Parou, sentou-se
no escuro, olhou as estrelas nas pequenas frestas das
enormes árvores e só então se tocou do quanto havia se
distanciado da espera. Não queria deixar a busca para o
dia seguinte, pois pelo cheiro do sangue a onça certamente
iria encontrar o veado antes dele. O problema era a
lanterna, as pilhas dariam apenas para voltar e isso seria
o mais inteligente a se fazer.
Decepcionado, iniciou o caminho de volta, mas
depois de ter andado apenas uma meia hora, a lanterna
repentinamente se apagou. As pilhas não haviam se
acabado por completo, mas a pequena lâmpada, com
muito tempo de uso, não aguentou ficar ligada por tanto
tempo e queimou o frágil filamento, deixando o caboclo no
escuro. Ele tinha muita confiança em seu senso de direção
e, apesar de não ser fumante, carregava no bolso da
camisa um velho isqueiro vermelho. Juntou folhas e fez
um fogo, apesar da dificuldade por causa da alta umidade

71
da selva. Esperou queimar bem um galho e depois saiu
com ele na mão iluminando precariamente o caminho.
O galho queimou até onde deu e o fogo acabou
apagando. Por conta disso, o sertanejo não reconhecia
mais o caminho por onde havia passado na ida. Parou de
novo e fez outro fogo. Preocupado, desistiu de encontrar a
espera e resolveu passar a noite ali mesmo. Sentou-se
dentro da catana da raiz de uma enorme gameleira,
protegeu suas costas no tronco e se manteve de frente para
o fogo, com a arma atravessada no colo. A noite prosseguiu
e ele, preocupado, perdeu o sono.
Assim que a primeira claridade do dia entrou na
selva, o caboclo já estava de pé. O seu plano era encontrar
primeiro a espera, recolher o seu embornal e a rede e
depois seguir a trilha do veado ferido. No entanto, as coisas
não saíram bem como ele planejara.
A caminhada noturna praticamente sem luz havia
desorientado por completo o caboclo. Ele saiu andando na
direção que imaginava estar a espera; porém, quarenta
minutos depois, chegou em cima dos restos da primeira
fogueira que havia feito na noite anterior. Desesperou-se e
começou a caminhar acelerado, quebrando cipó no peito
sem nem ao menos se lembrar que carregava um facão na
cintura.
O sol beirava o pino do meio dia e ele ainda
caminhava desorientado, mas já não procurava mais pela
rede ou pelo veado ferido, procurava por água. Reparando
no terreno, buscava sempre terras mais baixas, até que
certa hora saiu em uma pequena mata de palmito que
cobria um embrejado. A água era pouca e estava barrenta

72
por causa do pisar de algumas antas e de um grupo grande
de catetos na noite anterior. Mesmo assim ele bebeu em
quantidade e também molhou o rosto. Sentou-se escorado
em um pau e tentou raciocinar. O correto seria seguir um
igarapé até encontrar um rio maior e foi isso que ele
resolveu fazer. Sabendo que o palmital provavelmente
seria a cabeceira de algum pequeno igarapé, seguiu em
frente. A fome já era um problema, mas ele tinha que
andar.
Como esperado, o palmital transformou-se e um
pequeno e estreito igarapé de águas limpas. Sem
abandonar sua margem, o caboclo andou o resto da tarde,
mas o igarapé simplesmente foi se estreitando e se
transformou novamente em outro palmital. Ele procurou
por frutos, mas não encontrou. Estava exausto e com
fome, então decidiu passar o resto do dia ali. Tinha que
recuperar suas forças e encontrar uma forma de se
orientar. Cortou com o facão algumas folhas de palmeira,
forrou o chão, juntou bastante lenha, tomou um banho de
roupa e tudo. Depois tirou a roupa, colocou para secar e
deitou-se para descansar. Sem perceber, acabou
dormindo... e nesse sono sonhou com sua esposa e filhos.
Acordou bem mais tarde com a ferroada dolorida das
mutucas nas suas costas desnudas. Levantou-se e vestiu
a roupa seca.
Depois, sentou-se em cima de um pau de lenha
mais grossa e, ao se lembrar do sonho que tivera há pouco,
sentiu no coração uma tristeza profunda acompanhada
por uma solidão enorme, o que o fez chorar como uma
criança. O choro deu-lhe força, e resolveu naquele
momento que iria encontrar a saída daquela selva e voltar

73
para a sua família. O dia estava no fim, e dentro do mato
quase escuro. Pensava em uma forma de conseguir
comida, quando escutou no alto o gemido surdo dos
queixadas.
– Hummm, Hummm...
Logo em seguida, alguns estalos de dente e o
gungunar dos filhotes, que acompanham as mães pedindo
peito. Desciam na direção da água, pelo barulho era um
bando enorme. Ele estava no caminho deles, e como tinha
apenas dois cartuchos, tinha que se proteger. Assim,
encontrou rapidamente uma árvore mais fina e subiu nela,
sentou-se na forquilha e ficou quieto. Os porcos vieram
descendo e chegaram até a água... uns entravam e se
enlameavam, outros bebiam, outros fuçavam o barro mole
da beira do igarapé... O mato havia criado vida em volta do
caboclo.
Mais um pouco e iria escurecer. Ele teria que
encontrar um porco grande pra fazer fogo, pois teria que
lhe servir de alimento por dois ou três dias. Além disso, o
sertanejo não dispunha de mais que um cartucho, uma
vez que teria que deixar o segundo tiro para uma ocasional
situação de defesa.
O cheiro almiscarado de porco-queixada era muito
forte, chegava a doer a cabeça. Um macho muito grande
passou a uns dez metros, sentiu o cheiro do caboclo em
cima da árvore e se arrepiou... em seguida, bufou e bateu
dentes. Vários outros machos espalhados por todos os
lados bateram dente respondendo a mensagem de alerta.
Ele não teve dúvidas: visou demoradamente a cabeça do
grande porco e fez fogo. O queixada tombou fulminado, e

74
com o enorme estampido do calibre .16, os porcos
arrancaram e correram desorientados. Só aí é que o
caboclo percebeu o tamanho do bando de porcos...
queixadas batiam dentes em todas as direções... o mato
torcia, e ele percebeu que os que chegaram ao igarapé
eram apenas a dianteira do enorme bando. Teve medo.
Uma leva enorme de grandes machos veio na direção em
que o caboclo estava.
Inicialmente, tentaram com o focinho levantar o
porco abatido, depois passaram a bufar e dar fortes golpes
de dente nele. Alguns porcos farejaram o caboclo ou a
pólvora, então chegaram a arrodear e dar cutiladas de
dente no pau em que ele estava. Ele gritou para tentar
afugentá-los, mas aquilo surtiu pouco efeito. A noite caiu
e os porcos continuaram rondando a árvore... a posição do
sertanejo era ruim; suas pernas, dobradas há muito, já
estavam adormecidas.
Aos poucos a porcada foi se dissipando, até que
tomaram seu rumo e sumiram na mata. O caboclo desceu,
juntou a lenha e acendeu um fogo na beira do igarapé.
Depois voltou, arrastou o queixada que havia abatido e,
com o facão, abriu o porco, tirou o fato e em seguida cortou
um pernil com couro e tudo. Subiu um pouco o igarapé
onde a água era mais corrente, retirou a pele do pernil e o
lavou. Depois cortou alguns bifes, improvisou um espeto e
colocou a carne para assar. Enquanto assava, ele arrumou
novamente sua cama, que tinha sido estraçalhada por pés
de queixadas, e espalhou pequenas fogueiras em um
círculo longo, formando uma boa área de claridade. Não
podia facilitar, a onça anda sempre atrás dos queixadas,
são predadores oportunistas e sempre pegam os velhos

75
que ficam para trás ou os fracos e feridos. Se um dos
filhotes facilitar e abandonar a segurança do grupo,
também vira refeição.
A noite caiu pesada e ventava muito. Aos poucos o
caboclo foi assando e comendo todo o pernil do porco. O
vento parou, e já no final da janta, de barriga cheia, o
caboclo escutou um pisar nas folhas... imediatamente ele
apanhou a arma e ficou atento. De relance, viu um vulto
enorme passar entre duas árvores maiores que ainda eram
clareadas pelo foguinho já quase apagado da fogueirinha
mais distante que ele havia feito. Era uma onça, atraída
pelo cheiro do sangue do porco que ele havia cortado. Ele
só tinha um cartucho e não podia perder o tiro. Arrastou
para perto dele o corpo do queixada e ficou pronto.
As horas passaram e ele tentava permanecer alerta,
sem nunca deixar o fogo apagar. Por muitas vezes escutou
a onça passar perto, mas sem lanterna não tinha como
fazer a visada e atirar. Foi aí que teve uma idéia: com o
facão, cortou a cabeça do porco e depois a jogou longe,
bem onde o clarão do fogo brigava com as sombras da
noite. Ficou com a arma engatilhada, de olho na isca e
pronto para fazer fogo. O tempo passou, mas nada da
onça. Por fim, extremamente cansado, o caboclo acabou
cochilando por um breve momento.
Minutos depois acordou assustado. O fogo quase se
apagava... olhou lá onde havia jogado a cabeça do porco,
mas como o fogo tinha abaixado bastante, o local estava
praticamente escuro. Colocou mais lenha, pegou um tição
de fogo e a espingarda e chegou mais perto. A cabeça do
queixada tinha sido levada. Aí ele deu uns gritos altos,

76
colocou fogo em montes de folhas secas para todo lado e
voltou para o seu esconderijo, não mais dormindo naquela
noite.
Quando clareou, ele amarrou o que sobrou do
queixada em um cipó, fez uma espécie de mochila e,
sentindo-se mais forte, seguiu em frente. Mudando
totalmente o rumo, traçou uma reta e andou metade do
dia. Parou para descansar, e foi nesse momento que
percebeu que estava sendo seguido. Olhou rápido para
trás e viu de relance, a uns trinta metros, as pintas negras
de uma onça se esgueirando entre os arbustos. As onças
daquelas selvas infinitas jamais haviam visto um ser
humano, por isso não tinham medo de gente. Tinham sim
muita curiosidade, e aquela onça em especial estava
perigosamente associando tal figura estranha que andava
em pé com o seu alimento preferido, pois foi por meio dela
que recebera a cabeça de um queixada na noite anterior.
À medida que o dia seguia e o calor aumentava, o
cheiro da carne do queixada que o caboclo carregava ficava
cada vez mais forte. Notando que estava sendo seguido e
que carregava nas costas uma isca quase irresistível, o
sertanejo resolveu tirar proveito da luz do dia e tentar
outra emboscada. Largou o pedaço de queixada no limpo
e, caminhando uns vinte metros, escondeu-se dentro de
uma galhada seca, sempre tomando o cuidado de proteger
as costas. A questão agora não era apenas encontrar o
caminho de casa, mas sobreviver à perseguição do maior
predador da selva.
Horas se passaram sem sinal da onça... apesar da
fome, ela era esperta e não iria se arriscar à luz do dia. A

77
fome do caboclo também era grande, e com a aproximação
do fim do dia, ele saiu do seu esconderijo e foi buscar sua
isca, pois teria ainda que juntar lenha para passar a longa
noite de vigília. Levantou-se devagar e foi se
aproximando... quando chegava a dois metros da isca, a
onça saltou de trás de uma árvore. Ela também fazia o
mesmo que ele, era um jogo de gato e homem, ambos de
olho na mesma comida, mas quando ela viu que ele iria
buscá-la, resolveu sair do seu esconderijo e ir defender o
que julgava ser de sua propriedade.
O ataque foi tão rápido que o caboclo sequer teve
tempo de levar a sua arma ao ombro... engatilhou e
disparou a espingarda da altura da cintura. O tiro pegou
a onça de frente, mas apesar da chumbada bem reunida,
a onça ferida, no impulso do ataque, saltou sobre o
caçador, que aos gritos lutou para se libertar. A luta de
gritos, urros e tapas durou poucos segundos, mas foi
suficiente para lhe render profundas marcas de unhas no
peito, nos braços e também um grade corte feito pelos
dentes da onça na ponta do seu queixo. O caboclo,
conseguido escapar da onça ferida, colocou-se de pé,
imediatamente sacou o facão e devagar foi andando para
trás. A onça ferida de morte fez o mesmo, com as orelhas
murchase a cabeça baixa embrenhou-se na mata, mas
tombou vinte metros adiante.
O caboclo apanhou a espingarda no chão e, com as
forças que ainda tinha, correu. Caiu de cansaço e dor cem
metros depois. Perdeu muito sangue, por isso sabia que
tinha que andar e encontrar água o quanto antes.
Cambaleando pela mata, ouviu de longe o canto do peito-
de-aço, e onde esse passarinho canta dentro da selva é

78
sabido que tem água fresca. Rompeu mais alguns metros
até chegar à beira de um igarapé.
Há pouco, o enorme bando de queixadas que ele
tinha visto um dia antes tinha passado por ali. O igarapé
virou um atoleiro enorme de lama e água suja.
Desesperado de sede e fraco pela perda de sangue, ele
entrou e se atolou na lama até os joelhos. Perdeu a
espingarda sem cartuchos e as duas botinas, mas foi se
agarrando em cipós até conseguir chegar à água. Bebeu
suja mesmo, misturada com barro. Depois rastejou até o
outro lado, ficou de pé e andou quase uma hora, até que,
muito debilitado, caiu e ali mesmo adormeceu.
Não sabe por quanto tempo dormiu, mas quando
acordou era dia claro. Estava fraco e debilitado pelos
ferimentos inflamados e sujos. Tentou ficar de pé, mas
caiu de novo. Ergueu-se novamente com muito esforço e
caminhou cambaleante até alcançar o colossal tronco de
uma castanheira. Sentou-se no chão e, com os olhos
lacrimejando, pôs-se a rezar. Pedia a Deus para que não o
deixasse morrer no meio daquele inferno verde... lembrava
dos filhos e da mulher e as lágrimas lhe corriam o rosto.
O tempo fechou e por duas horas caiu uma pesada
chuva. Usando as folhas das árvores o caboclo bebeu o que
pôde, depois lavou todas aquelas profundas lacerações em
seu corpo. Quando a chuva parou, ele seguiu em frente.
Descalço, com a calça em retalhos, a camisa em
trapos, o corpo cortado por unha e dente de onça, fraco
pela falta de alimento e pela perda de sangue ele
continuava a sua andança. Seguia rezando em voz baixa,
apoiando-se nas árvores que encontrava no caminho.

79
Andou o resto da tarde, até que ao longe viu uma luz. Era
uma clareira... ali ele poderia se orientar pelo sol.
Cambaleou até a enorme clareira e olhou para cima, mas
não via o sol, que já ia bem baixo, encoberto pela mata.
Olhou ao redor e percebeu troncos enormes de
árvores serradas... seria uma picada de madeireiros? Teria
uma estrada até ali? Procurou mas não encontrou. Muito
debilitado, encostou as costas em uma enorme pedra
coberta por trepadeiras. Mas ao deixar cair o ombro, a
“pedra” fez um barulho metálico. Ele retirou a vegetação e
pôde identificar uma enorme turbina de avião. Mais
adiante viu destroços de alumínio esbranquiçado pelo
chão da selva; cinquenta metros à frente, encoberto pela
vegetação, ele conseguiu identificar um pedaço grande da
fuselagem e da cabine de um grande avião de passageiros.
Estava muito fraco para seguir adiante, então
resolveu passar a sua quinta noite ali mesmo, junto à
grande turbina escondida por trepadeiras. Sentia que
aquela seria a sua última noite, por isso rezou muito.
Adormeceu estirado no chão e naquela noite teve um
sonho incrível.
No sonho ele viu de longe uma luz branca que se
aproximava. Veio chegando e tomando forma. Há poucos
metros, ele percebeu que se tratava de uma menina de uns
doze anos. Ela veio caminhando lentamente, sentou ao
lado dele e, com a mão branquinha, limpou o seu rosto.
Depois surgiram mais pessoas, homens, mulheres e até
alguns idosos. Ele tentava reconhecê-los, mas não
conseguia. Todos se aproximavam dele com um olhar
bondoso e todos guardavam absoluto silêncio. Em pouco

80
tempo, uma pequena multidão se formou ao seu redor, e
em volta de cada uma daquelas pessoas havia uma luz
branca. Algumas pessoas pegaram nos braços do
sertanejo e o ajudaram a se levantar. Havia uma energia
boa e aquilo lhe dava forças pra caminhar. Saíram por
dentro da mata, a menina na frente e ele sempre amparado
pelas outras pessoas, caminhando um pouco mais atrás.
Imaginou estar indo para o céu, pois no sonho ele não
sentia dor, cansaço, fome ou sede. Sentia-se em paz ao
caminhar apoiado por aquelas pessoas.
A caminhada foi longa, mas eles finalmente
chegaram à beira de um igarapé dentro da mata, onde
havia uma canoa. Com bastante cuidado, aquelas pessoas
o colocaram deitado dentro dessa canoa e em seguida se
agruparam e fizeram um grande semicirculo em volta dele.
Todos espalmaram as mãos em sua direção... o brilho foi
tão forte que ele abriu os olhos.
De olhos abertos, percebeu que o brilho vinha de
um raio de sol que vazava por um buraco na copa das
árvores e que descia diretamente sobre seus olhos. Os
pássaros cantavam e o tempo estava fresco. Ainda deitado,
olhou para os lados e se viu dentro de um casco de canoa
de madeira. Com muita dor e bem devagar, sentou-se e
mal acreditou quando, olhando para trás, reconheceu a
velha rabeta do seu falecido tio. Levou tempo para
descobrir se realmente tinha acordado ou se ainda estava
sonhando. E quando tomou consciência da sua lucidez,
chorou demoradamente. Agradeceu a DEUS em voz alta,
depois funcionou a sua rabeta e acelerou para sair o mais
rápido possível daquele igarapé.

81
Uma hora depois, já navegando no rio Xingu,
encontrou com o barco de um cumpanhero, que o
socorreu. Era um dos poucos amigos pescadores que
ainda procurava por ele no rio, pois ninguém teve coragem
de adentrar as matas assombradas para tentar encontrá-
lo e muitos já diziam que ele já estava morto ou por onça,
ou por espíritos malignos que ali rondavam. Em casa foi
recebido por toda a família e teve os ferimentos tratados,
mas como ainda estava muito fraco, no dia seguinte foi
levado de barco até o posto médico da cidade de Peixoto de
Azevedo, onde passou duas semanas internado para se
recuperar dos ferimentos. Nesse tempo, várias pessoas da
cidade apareceram no hospital para conhecer o homem
que, mesmo perdido na selva assombrada e atacado por
uma onça, conseguiu escapar e sobreviver para contar a
sua história. Mas não havia história a ser contada, a única
coisa que ele dizia é que havia sido salvo pelas mãos de
Deus.
Ainda no hospital, comentou com um médico que
era recém-chegado do Acre e que não conhecia direito a
região, por isso facilitou e se perdeu. Comentou também
que quando vagava perdido na selva havia se deparado
com alguns destroços de um avião e indagou ao doutor se
ele sabia algo a respeito. O médico, que há anos trabaIhava
na pequena cidade, contou ao caboclo que em 29 de
setembro de 2006 caiu no coração daquela selva, no norte
do estado do Mato Grosso, um Boeing 737 da empresa Gol
Linhas Aéreas. O vôo 1907 vinha de Manaus para Brasília
com 154 passageiros e caiu ao ser atingido por um jato
executivo Embraer Legacy 600, pilotado por dois
irresponsáveis pilotos americanos. O jato conseguiu

82
pousar em uma base da força aérea na Serra do Cachimbo.
Já o avião da Gol não teve a mesma sorte. No acidente, não
houve nenhum sobrevivente, todas as 154 pessoas a bordo
do avião haviam morrido e desde então os índios da região
acreditam que aquelas almas mortas antes do dia vagam
à noite assombrando aquela selva.
Os olhos do caboclo encheram-se de lágrimas... e
naquele momento, deitado naquela cama de hospital, ele
fez em silêncio uma promessa de voltar àquele local e
acender uma vela para cada um dos passageiros e
tripulantes que ali perderam as suas vidas.

83
A minha primeira noite nas

selvas do Pará

A mata que os paraenses chamam de baixão é de


arquitetura, porte e densidade bem semelhantes aos das
nossas matas ciliares em Goiás. Se não fosse pelo terreno
plano, um vivente que ali acordasse diria estar diante de
um mato de bocaina. Se bem que nossos matos de bocaina
são sempre “estradas” por onde passam os ventos que vem
assoviando, batem na serra e descem arejando a mata e
esfriando a água que brota da pedra. E lá no Pará não, no
mato não tem vento, e o sol só clareia o chão da mata mais
tarde, ali pelo meio do dia, pois antes disso as copas das
árvores não deixam a luz entrar. No arrastar do dia, folha
de pau não dança, é tudo muito parado e quente.
Esse baixão a que me refiro é a área de terra e mata
que o rio invade no tempo da cheia. As folhas das árvores
ali são sempre acinzentadas devido à fina camada de argila
deixada pelo secar da água suja da enchente, quando o rio
baixa e volta para a sua caixa. O baixão é uma faixa
inundável de largura regulada pelo relevo, é só começar a
subir e o mato muda, onde a água não inunda o chão no
tempo da cheia a mata encorpa e esverdeia por completo.
Árvores colossais sobem nos peitos de serras escondidas
pela selva.
A região do Alto Amazonas é bem dizer uma
infinidade de pequenas serras cobertas por selva
exuberante. Caminha-se na selva por três tipos de terreno:

84
ou se está subindo, ou no plano dos topos (ou espinhaços,
como dizem os paraenses), ou se está descendo a vertente
oposta. Entre as serras sempre correm pequenas águas; lá
não se usa o termo grota, os riachinhos que escorrem entre
as elevações são chamados de igarapés, e onde abrem
larguras mais folgadas e planas é que surgem os acaizais,
úmidos e frescos. Todo acaizal tem um porteiro, um
zelador que o caboclo chama de “peito-de-aço" ou
“biscateiro”. É um passarinho bem abundante, miúdo e
praticamente invisível na imensidão da selva. Possui um
canto muito potente, sendo um dos mais característicos
da floresta tropical. O índio diz que se o peito-de-aço
cantou, tem água perto.
Em volta desses acaizais de água fresca e cristalina
é que passam o dia escondidos do calor sufocante os
bandos de catetos e é neles que se enlameiam os bandos
enormes e itinerantes de queixadas (lá chamados de
porcão). É ali também que os veados-mateiros gostam de
fazer suas camas, onde piam os jacus e jacutingas e onde
se empoeiram os mutuns-castanheira. É também o limite
ou o ponto de referência do macuco, que pia nas subidas
inclinadas que muram o igarapé. Dica boa a que um índio
me deu: “Se acontecer de se perder na selva, ache e
acompanhe um igarapé, um dia você chega ao rio e o rio
te salva”.
Por causa do calor intenso e do esforço que nos
cobram as subidas, a caminhada na selva é árdua e não
se anda sem facão desembainhado, pois cipós nos
amarram a cintura e as canelas, folhas enormes de
palmeira nos bloqueiam a passagem, espinheiros de
tucum e galhadas mortas nos proíbem de seguir em linha

85
reta. Assim, subimos devagar, um atrás do outro, cortando
o mínimo possível, uma vez que a qualquer momento pode-
se esbarrar em uma fruteira de promissora caçada.
Na selva, raras são as oportunidades onde se
encontra a fruteira à distância, baseando-se no seu
desenho, formato ou cor da copa, como sempre fazemos
no cerrado. Na selva os achados são quase sempre a curtas
distâncias, muitas vezes já identificando o fruto ou a flor
no chão. Lá dentro raramente são vistas as copas maiores,
enxerga-se apenas um tronco colossal que sobe e
desaparece escondido por outras copas intermediárias. A
selva amazônica tem em geral três andares bem definidos,
compostos por árvores de portes diferentes vivendo em
harmonia plena e interligadas por cipós de várias espécies.
É por isso que lá os macacos nascem, crescem e morrem
sem conhecer a sensação de pisar em terra. Afinal, para
que se arriscar se tudo que precisam está lá em cima, "a
salvo" dos predadores?
No topo das pequenas serras o terreno fica plano e
o mato abre espaços que permitem um tiro mais longo, e é
nesses pontos que procuramos as fruteiras para a caçada
de espera.
Naquele dia já estávamos pelo meio da tarde, e
mesmo tendo andando a manhã inteira sob um calor
sufocante, eu e os dois garimpeiros não havíamos
encontrado espera boa. Rastros, trilhas e remontes de
veado-mateiro encontramos, mas nada que indicasse
rotina. Os dois caçadores sabiam, pelas marcas
encontradas, que os veados rondavam aquela serra, e por
isso insistiram em procurar as esperas, afinal os veados

86
não estariam se movimentando ali por nada. Andamos
mais alguns minutos até que um deles avistou uma
enorme castanheira.
Há pelo menos uma centena de anos ela havia
brotado ali em um meio plano, onde a subida parou para
descansar no meio da serra. Chegamos embaixo e
encontramos algumas poucas flores esbranquiçadas...
eram pequenas, enroladinhas, de miolo amarelo e tinham
um perfume delicioso. O chão ali estava furado de rastro
de mateiro e não demoramos a encontrar o estrume seco
deles, coisa de um ou dois dias atrás. Continuamos
verificando atentamente o chão de folhas e logo um dos
garimpeiros encontrou outro monte de estrume novinho,
ainda verde... “da noite anterior”, como costumam dizer.
Era uma jarana, das flores de espera é uma das mais
apreciadas pelos veados-mateiros naquela região. As
poucas flores novas (sem murchar) no chão contavam que
o mateiro estava comendo ali toda noite.
Era espera boa e não podia ser desperdiçada, então
cochicharam rapidamente os dois garimpeiros e um deles
me convidou para fazer a espera com ele. Na mochila, eu
havia levado apenas a rede, o meu revólver, lanterna, o
caderno de anotações e um facão... mas como era a minha
primeira vez na selva amazônica, resolvi aproveitar a
oportunidade para ganhar experiência e aceitei o convite.
O garimpeiro mais novo voltou ao acampamento, enquanto
eu fiquei para esperar com o outro, mais experiente. O
caboclo encostou a espingarda e começou a olhar
atentamente para o alto, procurando um local onde
coubessem as duas redes.

87
Depois de uns momentos observando, o velho
bugre, de nome Selestiano, sacou o facão, me chamou e
saímos uns cem metros serra acima. Rapidamente ele
cortou de facão três varões de madeira forte, trouxe no
ombro e, amarrando um após o outro, subiu e atou a sua
rede a uns cinco metros de altura. Depois pegou o último
varão, jogou em uma forquilha em uma árvore paralela e
amarrou junto com o seu.
Passando para a outra árvore por meio da “ponte”
que fez, o sertanejo armou a minha rede. Ficamos
compartilhando os dois punhos da cabeceira, mas os
punhos do lado dos pés amarramos em árvores diferentes.
Quando ele ainda amarrava as varas eu disse que, por
causa da inclinação da serra, seria melhor a gente colocar
mais uma vara para que ficássemos mais no alto. Ele
respondeu que se fizesse isso acabaria ficando muito alto
e a vegetação baixa encobriria completamente o solo. Na
selva densa, na maioria das vezes dois varões já são
suficientes.
Subimos, e antes de entrarmos nas redes, testamos
a segurança das amarrações... depois sentamos, bebemos
uma água e o caboclo pegou o velho pio de macuco e tirou
dele um perfeito piado de fêmea.
A tarde passou tranquila, não havia mosquitos.
Olhando em volta, cochichei com ele que, se o veado viesse
da parte de baixo ou pelo plano da descida, as redes que
ele armou estariam em boa altura para escapar do faro
apurado do mateiro... mas se viesse de cima da serra, por
causa da inclinação do terreno, o veado chegaria à nossa
espera no mesmo nível em que estavam armadas as

88
nossas redes e poderia nos perceber pelo faro. A verdade é
que, em um terreno tão íngreme como era aquele, não
tínhamos outra escolha, era contar com a sorte.
A tarde passou e relaxamos dentro das redes.
Estava quente... duas araras que nem vimos chegar
conversavam na galhada alta da castanheira bem à nossa
frente. Olhando para cima fiquei tranquilo, pois, apesar de
estarmos dentro do enorme perímetro que alcançava a
circunferência da copa da castanheira, os ouriços (frutos)
de castanha só caem em janeiro. Mas como me alertou o
sertanejo, convinha ficarmos atentos, pois as araras
arrancam os ouriços ainda verdes, apoiam o fruto no galho
e, com o bico afiado, furam buracos neles para enfiar a
cabeça e comer as castanhas ainda em formação. Vez ou
outra um fruto escorrega das unhas delas e desce como
uma verdadeira bomba.
O fruto (ou ouriço), como chamam os paraenses,
pesa em média dois quilos quando verde, e um peso desse
caindo de uma altura de mais de 50 metros pode ser fatal
para um ser humano. Quando bate no chão de folhas
chega a afundar, mata gente, mata bicho. O segredo para
ficar seguro estando no raio de uma castanheira é prestar
atenção no farelinho das cascas que vai caindo quando ela
fura o ourico, pois este nunca cai longe das migalhas
descascadas pelas araras.
Já era perto das cinco, e quase que caio da rede de
susto quando do nada ouvi um piado LIMPO e alto de um
macuco que parecia estar a menos de trinta metros serra
abaixo... estava atendendo ao pio que o caboclo havia
emitido há mais de uma hora. Logo depois do pio, o

89
Selestiano lentamente retirou de dentro da “cachorra” (é
como chamam os embornais maiores no Pará) o seu
rústico pio de madeira e ficou segurando. Esperou mais
uns 15 minutos e, caprichando para não errar, tirou do
pio um som perfeito de um macuco fêmea (tom mais
grave). Piar fêmea é uma boa estratégia, pois se for um
macho, vem atraído pela oportunidade de um
acasalamento, e se for outra fêmea, vem na defesa do
território, já que são elas as donas do terreiro. O caboclo
piou e ficamos quietos... cinco minutos depois o macuco
respondeu da mesma posição. O velho garimpeiro
cearense, com mais de trinta anos de vivências naquelas
matas, lentamente pegou a sua confiável espingarda
Sarrasqueta de dois canos paralelos calibre 20 e ficou
pronto.
Após ter passado um tempo, fiquei apreensivo lá em
cima, pois, por causa do calor, eu havia retirado a minha
calça e a minha gandola (camisa) camufladas e estava com
as pernas brancas fora da rede... e não dava mais para me
movimentar ou pôr a roupa. Tive que permanecer daquele
jeito.
Esticava o pescoço para a posição de onde tinha
vindo o último piado, mas não via nada... apesar da pouca
distância e da posição alta e privilegiada, a selva espessa
e cheia de esconderijos protegia a arisca ave. O Selestiano,
fingindo-se de difícil, demorou a responder... e o macuco,
afoito, piou alto e duas vezes quase seguidas, dessa vez
um pouco mais acima, já entrando na roda da castanheira.
Aí de imediato o caboclo piou mais baixo, mostrando
submissão. Aquilo era uma guerra de nervos, psicologia
pura, um pio respondendo a mensagem do outro e o

90
caboclo sabia exatamente o que estava fazendo. O macuco,
desconfiado, calou-se. Passou tempo e não piou mais.
Achei que ele tivesse visto a gente lá em cima, pois o mato
já começava a escurecer e já haviam passado uns trinta
minutos desde o seu último chamado. De repente:
– Fããã!!!
Pertinho e exatamente embaixo da castanheira,
estava ali o tempo todo, só esperando um de nós se mexer
ou dar algum vacilo. Permanecemos em absoluto silêncio
e em menos de dois minutos o macuco chamou de novo.
Já podíamos escutar ele pisar nas folhas secas, então
ficamos como duas estátuas... eu de olhos esbugalhados e
o Selestiano com a arma no ombro, olhando para mim por
cima da coronha com um sorriso congelado no rosto e a
pontinha do dedo indicador cutucando o ar, como quem
diz:
– Tá ali, ó!
De repente, veio do nada uma arara e pousou bem
em cima da outra que descascava um ouriço de castanha...
aí foi aquela briga de gritos poderosos láááá em cima:
- GRÁÁÁÁÁÁÁÁAÁÁÁÁ... GRÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ....!!!!
E desceu um ouriço, batendo nos galhos:
– Tufth, tufth........ BUFFFFFF no chão... caiu e
rolou um bom pedaço na descida da serra.
Quando aquela bola de castanha parou lá embaixo,
o mato quietou. E por causa da briga das araras, que ainda
se perseguiam voando de um galho para o outro lá em

91
cima, não vimos se o macuco correu ou se levantou voo.
As araras, vermelhas com azul, por fim pegaram um rumo
e foram embora com seus gritos estridentes. Nesse
finzinho de tarde não mais ouvimos esse macuco. Falta de
sorte tremenda, mais um pouco e o Selestiano conseguiria
atirar nele.
No lusco-fusco, começou a sinfonia horripilante dos
bugios... centenas deles, divididos em famílias, cada uma
em uma direção da mata. E como urram! Os bandos
parecem competir entre si para ver qual macho urra mais
alto, até que, do nada, o macho vencedor dá um repique
grotesco e calam-se todos de uma vez só. Esse é o anúncio
oficial da chegada da noite, e com o silêncio deles é que
aparece a oportunidade de se escutar o resto do mato.
Era uma típica noite amazônica, quente e sem
vento. Apareceram umas poucas carapanãs e coloquei
uma camiseta camuflada de manga longa, calça e meia,
tudo limpo e seco. O Selestiano permanecia sentado,
quieto... com a cabeça recostada em um galho, fintava nas
frestas da selva algumas estrelas... sabe lá Deus onde
estava com seus pensamentos. O mato estava vivo. Bicho
caminhava longe e havia muitos sons que eu nunca tinha
escutado. Por curiosidade, iluminei um sapinho vermelho
pouco maior que a unha do meu polegar que estava
estacionado num pau seco a uns dois metros de mim. Só
o iluminei porque ele dava um berro tão feio que parecia
criança dengosa apanhando. Não se importando com a luz,
repetiu o som, e só aí vi como se dilatava a papadinha
branca dele, parecia uma bexiga de aniversário... logo o
caboclo assoviou baixo. Entendendo o recado, desliguei a
lanterna e fiquei quieto. Minutos depois, um bicho que eu

92
nem imagino o que era soltou no alto da serra um som
igual a um míssil caindo:
- Zijijiji
iiiiiuuuuuuuuuuuuuuuwwww....
E outro demônio desse respondia lá nos infernos da
pedra, já na subida de uma outra serra pelos miolos da
mata, com um som idêntico. Deu vontade de perguntar ao
Selestiano o que era, mas como já estava escuro resolvi
manter o silêncio. Distraído com tanto som distante, logo
voltei à realidade com o barulho de folha mexendo nas
proximidades. A princípio imaginei que era um bicho
chegando, mas quando botei assunto percebi que vinha do
alto.
Por cima das nossas redes, lá no topo das enormes
árvores, passava um bando grande de macacos-da-noite.
Nunca havia visto um, então iluminei para ver como eram.
Mas saíram rapidamente, o foco da lanterna não os
interessou... um último é que deu uma parada breve em
um galho limpo e me deu tempo para uma rápida
observação. Era um macaco pouco maior que o nosso
macaco-prego, de cor cinza enegrecida nas costas e com o
peito pintado em um laranja bem escuro. Na frente da
cabeça miúda ele tinha um par de olhos enormes... firmei
bem a luz da potente lanterna Fenix e pude vê-lo
curiosamente entortar a cabeça de lado. De repente, lá na
frente, um deles soltou um grunhido estridente e
imediatamente esse que parou desapareceu em um salto
incrível. Só vi onde ele pousou por causa do balanço das
galhas. Devia ser a mãe ou o chefe do bando chamando...

93
e aposto que se eu falasse “macaquês”, teria escutado ele
dizer ao outro:
- Camijjjjjjjjjjinha, menino!
Os sons na selva amazônica são abafados, e em
poucos segundos nem o balançar dos galhos eu podia mais
ouvir. Sumiram os macacos como fantasmas da noite.
Deviam estar a caminho de alguma fruteira onde fariam
sua primeira refeição noturna, já que passam o dia
dormindo. Os índios chamam esse macaco de miriquiná e
dizem que à noite eles vêm no pescoço do caçador de
espera que está dormindo na rede e furam a jugular para
beber o sangue. Claro que isso é apenas uma crendice, tais
macacos são frugívoros e isso não passa de história
inventada para assustar turista desinformado... mas, por
“privinição”, fiquei atento e ia tentar manter o sono
afastado.
Ajeitei o corpo na rede sempre mantendo os pés no
varão, já que, cansado como estava, não ia ter força para
brigar com o sono. Assim, era melhor evitar deitar e
permanecer sentado, na expectativa de ver o cumpanhero
fazer fogo em alguma caça.
As horas passaram e notei que o Selestiano
cochilou, ressonava baixo com o corpo recostado na rede.
Apurando as vistas pude notar com dificuldade que os pés
dele ainda estavam apoiados no varão. Dentro da mata
estava tão escuro que eu mal conseguia ver o vulto do
cumpanhero, que estava a menos de dois metros de mim.
Distrai-me pensando longe quando alguém ali pertinho
gritou:

94
– Ei...!
Por puro reflexo, desgrudei as costas da rede e fiquei
sentado. A princípio imaginei ser o cumpanhero, mas o
chamado veio claramente de uma posição oposta. la
respondendo... mas me segurei. Devia ser alguém
perdido... ou teria imaginado que alguém me chamava?
Passou nem nada e chamou de novo:
- Ei...!
Correu-me um arrepio ruim no espinhaço, cismei
na hora. Parei até de respirar para ver se escutava o trem
pisar nas folhas... mas nada!
Pronto, tá aí a disgrama da lirvusia! Eu vivia
desdenhando de assombração e arrastando bagaço, agora
chegou a hora. Lembrei de o Joza me falar que quem
procura e pede para ver, um dia vê! E O trem tava ali me
chamando... faltava era coragem para responder. A boca
secou e a mão correu no cabo do revólver Taurus de cano
médio e calibre 38 que eu carregava por segurança na
mochila. Fiquei prontinho para o tiro na cara do que fosse,
mas ainda ficava a dúvida: e se assombração não morrer
com tiro? O cumpanhero está dormindo e nem sabe do
perigo que estamos correndo. Fiquei com medo de cutucá-
lo com a ponta do pé e ele se assustar ao acordar,
denunciando assim a nossa posição.
Fez-se um silêncio depois do 5o ou 6o chamado... e
eu lá, calado, com o revólver no jeito, virado para o lado da
lirvusia, ajuntando coragem e pelejando para escutar um
som que guiasse minha iluminada.

95
De repente, vem voando um bicho e pousa uns dez
metros para cima de onde eu estava. Levei a arma, mas
ainda continuei no escuro. Se fosse alma era realmente da
penada, pois pude ouvir claramente o som das penas nas
folhas. Demorou nem nada e o trem chamou alto em cima
de mim:
- EEEEEEEEEi.....!!!
Meti a lanterna e apareceu pousado num galho
grosso lá um corujão preto com dois chifrinhos na cabeça
olhando torto para mim. Ô raiva! Deu vontade de fazer um
furo nele, para ele aprender a não assustar quem se diz
corajoso. Mas deixei quieto, valeu a experiência.
Ele permaneceu lá por mais uns dez minutos, e
como não respondi logo, procurou seu rumo. Sarei da
adrenalina e tive que beber o restinho de água que ainda
tinha. Bicho desgraçado... corujão nosso lá em Goiás num
tem dessas ousadias de ficar remedando gente, não.
Nunca tinha visto aquilo.
A noite entrou e o mato deu uma quietada. Olhei no
relógio e eram 20:15... o cumpanhero ainda ressonava
baixinho. Cansado e um tanto decepcionado pelo pouco
movimento na espera, recolhi os pés para dentro da rede e
dormi. Não sei quanto tempo fiquei desacordado, mas
despertei com uma sacudida lateral no punho da rede.
Lentamente me coloquei sentado e apurei os ouvidos... um
bicho roeu um trem duro lá no outro lado da castanheira.
- Crop, crop, crop....
Mesmo que ver paca. Quietou, passou um pouco e
roeu de novo. Aí escutei pisar e logo em seguida roer de

96
novo. Eram duas pacas, cada uma com um ouriço de
castanha, pelejando para alargar o buraco que a arara
havia feito para enfiar a cabeça lá dentro. E como
barulhava o mastigar delas na parede dura do ouriço...
O caboclo, meio afobado e usando a minha lanterna
Tiablo, que tem foco mais apertado, clareou lá adiante.
Acompanhei atentamente o foco da luz branca, mas estava
longe e tinha moitas, então não vi nada. Uma parou de
comer, mas a outra nem se importou... continuou
mordendo. Guiando-se pelo mastigar, o Selestiano
encontrou o brilho de um olho. De onde eu estava, vi de
relance uma paca que passou caminhando no limpo com
aquela “bola" na boca. Passou entre dois paus, entrou
numa moita e sumiu. O Selestiano parecia não tê-la
perdido de vista, pois levou a calibre 20 no ombro e fez
demorada pontaria, enquanto ajeitava a lanterna junto da
arma com a mão esquerda. Mesmo com a luz, ela iniciou
novo mastigar... e o cumpanhero, dando pouca
importância à distância demasiada, arrastou o burraio
com o cano esquerdo.
O esturro respeitado da calibre 20 desceu serra
abaixo e ecoou longe. Pelo pampeiro, pareceu que a roda
ligeira de chumbo 3T tinha esquentado o espinhaço dela.
Desceu rolando e dando pulo, sumindo completamente do
alcance das nossas lanternas. Ainda se debateu mais um
pouco lá embaixo, até que tudo se calou. Descer e ir olhar
lá de noite é que não iríamos. Lá em cima estávamos
seguros e, como disse o Selestiano, “dentro dos nossos
direitos”. Para nos pegar, um bicho teria que chegar,
caminhar e subir... e é na subida que o caldo entorna para
o lado do curioso. Agora, lá embaixo, à noite e num fim de

97
mundo daquele, o homem que caminha no chão está todo
errado e à mercê do dente da cobra ou da fome da onça...
ou como disse o sertanejo: “Sem direito algum”. Então
ficamos quietos na rede e mataríamos a nossa curiosidade
quando o dia clareasse.
O cumpanhero trocou o cartucho e relaxamos. Uma
meia hora depois dessa bagunça com a paca escutei longe
um pisar seco. Abri as mãos em concha atrás das orelhas
e prestei atenção... nesse momento quebrou um galho
fino... aquilo era casco afiado de veado-mateiro. la
arrumando o corpo na rede quando o cumpanhero
sussurrou:
– Ói ele!!!
Sentei, apoiei bem os pés e fiquei quieto. Parou de
pisar um pouco só para recomeçar bem mais forte poucos
metros depois. Vinha descendo a serra por detrás de nós,
um pouco à esquerda. Vinha freando e arrastando um
pouco os cascos por baixo do chão de folhas secas e aquilo
fazia meu coração dar cada pique que parecia que la saltar
da caixa do peito... Ô sensação maravilhosa! A emoção é
tão grande que chega sufoca a gente, tem que abrir a boca
e dar umas respiradas compridas. O Gordo, um grande
amigo caçador, diz que o segredo é pensar em outra coisa
e fazer de conta que não está se importando com aquilo,
senão periga até sufocar mesmo. Mas quem é que dá conta
de pensar em outra coisa com um mateirão moendo folha
seca serra abaixo?
Veio firme até uns trinta metros, na entrada da
espera parou e não fez mais nem um ruído. Os minutos se
arrastavam e eu que fiquei ansioso... O cumpanhero, por

98
sua vez, não fazia nem menção de iluminar, permanecia
imóvel na rede.
O veado-mateiro tem na selva um complexo
itinerário de alimentação, são dezenas de fruteiras ao
longo de um longo percurso. Ele passa sistematicamente
em cada uma dessas árvores, come uma ou duas flores (ou
frutos) de acordo com a sua preferência e segue em frente.
Tem um faro apuradíssimo e sempre que sente algo
estranho não vacila, volta na ponta dos cascos sem fazer
um ruído sequer. E naquela selva infinita, como eles têm
muitos lugares para se alimentar, não fazem mesmo
questão de correr o risco.
Andei atrás desse animal magnífico em muitos
sertões do Brasil e afirmo com segurança que não existem
mateiros mais espertos do que os do Pará. Na cabeça da
gente era para serem os mais bobos, pois são os mais
isolados e os que menos têm contato com o homem... mas
o problema é que, por serem os mais isolados, são os que
mais sofrem pressão dos predadores naturais. A
quantidade de onças que andam naquelas matas atrás
deles é muito grande, não estão a salvo em nenhum
minuto do dia ou da noite, pois dividem exatamente os
mesmo territórios e vivem no mesmo ambiente que as
onças, sucuris e outros felinos menores. Assim,
sobrevivem apenas os mais capacitados, os de faro mais
apurado e os de comportamento mais arredio. É a mãe
natureza usando a seleção natural para construir uma
perfeita máquina de escapadas, pois são os que
sobrevivem que irão dar origem a outros de iguais
características.

99
Essa dificuldade imposta pelo bicho aliada à
ENORME dificuldade logística de se caçar naquelas selvas
inóspitas fazem dos esperadores de mateiros do norte do
Brasil um bando de doidos. É como diz meu grande amigo
Marcelo Guatapará: "Para conseguir um, tem que ter
sangue no zóio”.
O mateiro que estava chegando embaixo daquela
castanheira provavelmente já havia nos sentido, pois as
nossas redes estavam armadas no mesmo nível que ele
vinha, de cima para baixo. Os minutos arrastavam-se sem
nenhum sinal dele... mas mal sabíamos nós que ele havia
parado exatamente onde passamos algumas vezes indo e
depois voltando com os varões que cortamos para fazer os
mutás. Senti no coração que realmente íamos ficar sem o
bicho... na verdade, até já achava que ele tinha sumido,
pois quando sentem a gente assim, parece que criam asas
nas laterais do espinhaço e saem sem pisar no chão.
Creio que o Selestiano pensava da mesma maneira
que eu, achava que o bicho tinha voltado no carreiro e ido
embora. Sem ter o que fazer depois de quase vinte minutos
de total silêncio, ele resolveu arriscar uma iluminada na
direção de onde ouvimos os últimos passos. Ele iluminou
e eu reforcei a lanterna dele com a minha. Para a nossa
surpresa, sob a luz das duas lanternas acenderam-se no
mesmo segundo, lá longe, dois braseiros enormes.
Firmaram em nós, depois se abaixaram e sumiram atrás
de um coqueirinho rasteiro. Daí os olhos subiram de novo
e o mateiro ficou mexendo sem parar por um segundo a
cabeça. O corpo estava parado, só a cabeça se movia, ele
provavelmente estava tentando desvendar que cheiro e que
brilho eram aqueles. Aquela visão me hipnotizava, e o que

100
me trouxe de volta à readildade foi o URRO desbocado da
Sarrasqueta calibre 20 do cumpanhero.
O veado acusou o impacto fulminante de um balote
de chumbo redondo atrás da paleta empinando totalmente
a dianteira e caindo quase de costas. Caiu de lado,
levantou-se em um milésimo de segundo e saiu como um
raio, correndo paralelamente à subida da serra e jogando
folhas e galhos podres para cima.
Tudo o que descrevi deve ter acontecido em dois ou
três segundos, e não teve como ver nada depois que ele
arrancou, só escutamos o tropel. Correu parecendo ter
sido ferroado por um ferrão de arraia, mas ferrão de arraia
não tem tanta velocidade nem entra fundo como um balote
calibre 20.
A corrida durou uns três segundos e escutamos
claramente a queda, caiu por cima de uma touceira nova
de babaçu. Ainda meteu o pé no chão na tentativa de
levantar, um desespero doido, de longe parecia alguém
batendo um cacete na palha seca de um coqueiro... aí
parou de tudo. Fez-se um silêncio mortal e pudemos ouvir
um último suspiro. Era a vida se esfiapando para campos
mais verdes e matas que não têm caçador, era o xeque-
mate no difícil jogo de vida e morte entre caça e caçador.
Eu lá em cima, apesar de estar como plateia, me
emocionei demais... iluminei o cumpanhero, e ele bebia
um gole d'água com a normalidade de quem parecia estar
fazendo algo rotineiro. Demonstrando a minha admiração
pelo tiro bem feito, estendi a mão para cumprimentá-lo.
Ele inocentemente me ofereceu a garrafa de água.

101
- Quero água não, cumpanhero, quero é pegar na
sua mão, dar parabéns pelo tiro bonito.
Ele rindo apertou forte a minha mão, e deixando
escapar um pouco da sua emoção contida, riu baixinho e
disse:
- A Sarrasqueta véia busca longe, né?!
Anagar
Apagamos as lanternas e eu me agoniei na hora,
com medo de a onça roubar o nosso troféu, que havia
tombado longe do alcance das lanternas. Mas o
cumpanhero me tranquilizou dizendo que as onças
daquela serra, quando escutam o esturro da calibre 20
dele, mudam para outra, pois já sabem que, se beirarem,
ganham o delas. Entendi como uma brincadeira e não
insisti no assunto. Ajeitamo-nos na rede para dormir o
resto da noite. Afinal, a lida e a caminhada do dia seguinte
iriam ser duras.
Dormi tranquilo até umas três da madrugada,
quando acordei com um bicho pisando... vinha longe, mas
pisava forte. Ergui a cabeça e percebi que o Selestiano
também já estava acordado, de arma em punho, orelha
virada para o lado do chegante e bem atento à
aproximação.
Pelo caminhado em arranques percebi logo que era
um tatu... já bem perto pude ouvir até o arrastar do rabo.
Quando chegou exatamente embaixo da castanheira,
passou a poucos metros das nossas redes. Iluminei
juntinho com o Selestiano... era um enorme tatu-quinze-
quilos, raça de tatu que quanto mais se desce para o sul

102
mais o povo desconhece. Não temos literatura ou registro
científico sobre ele, ao menos nunca encontrei nada. É um
tatu idêntico ao nosso tatu-galinha, só que criado no
“Toddy” e de proporções bem maiores, chegando a pesar
15 quilos quando bem gordos... daí o seu nome.
Considerando o fato de que um tatu-galinha bem grande
não passa de 6 quilos, fica fácil imaginar o tamanho e a
beleza de um monstro daquele.
Com a luz das lanternas ele não se importou, parou
no limpo, enfiou a cabeça por baixo da folhas e ficou
fuçando. O cumpanhero fez pontaria demorada para baixo
e, quando o tatu se movia, finalmente veio o tiro. Esse nem
pulou, só ficou dando pauladas no chão com aquele rabo
grosso. Deu umas duas esperneadas para frente e quietou.
Mais carne para o espeto! Fiquei doido para amanhecer
logo e ver de perto esse bicho que nunca tinha visto e só
conhecia de histórias que ouvi quando estive no rio Teles
Pires, no norte de Mato Grosso.
Depois do tatu, dormi pesado e acordei antes do
clarear como cumpanhero em pé no varão, urinando
dentro de uma garrafa plástica. Espreguiçava-me abrindo
os braços quando o macuco da tarde anterior piou
procurando por nós. O velho Selestiano catou a espingarda
que estava dependurada e desceu ao chão, chamando a
mim para que o acompanhasse.
Andamos uns vinte metros para a direita e
entramos em uma moita boa para fazer esconderijo.
Minutos depois o caboclo piou chamando por ele. Passou
pouco e o macuco respondeu... era o que faltava para
coroar com medalha de diamantes aquela minha primeira

103
noite na selva. Conhecia o macuco só por fotos e vídeos e
estava louco para ver um de perto.
O sol foi saindo e a gente continuava naquele
namoro dengoso, ele orgulhoso sem querer vir e o
Selestiano se fazendo de difícil sem poder ir. O bicho veio
até certo ponto, depois agarrou lá a uns 20 metros e não
tinha Deus com boa vontade nem o capeta com um gancho
que o tirasse de lá. O caboclo tentou de tudo, mas ele não
vinha, decerto queria era que a gente fosse. Mal sabia ele
que nossos pés eram muito grandes pra irmos até lá sem
fazer barulho.
O sol subiu e esquentou. Preocupado em ir atrás do
mateiro, resolvemos largar o macuco para lá. De repente,
pisou algo atrás de nós... com o revólver na mão virei
lentamente a cabeça e lá vinham três figurinhas estranhas
caminhando. Conversavam numa língua alienígena,
tinham pernas relativamente compridas e o corpo preto.
Levei o 38 só para brincar de fazer mira. Chegaram bem
perto, ciscando folha e catando coisinhas... até que um me
percebeu e levantou voo com um canto barulhento.
Indaguei o Selestiano e fiquei sabendo que se tratavam de
jacamins.
Nisso o macuco se calou. Desistimos dele de vez e
voltamos para a espera. Enquanto ele subia e
desarrumava as nossas tralhas, eu fui atrás da paca. Achei
o lugar do tiro com talos dependurados e, olhando de dia
de la para onde nos havíamos amarrado as redes, parecia
impossível ele ter acertado bem aquele tiro, pois numa
distância daquelas o chumbo abria uma roda bem grande.
Achei sangue e também o lugar onde ela se arrastou

104
descendo a serra... desci atrás uns vinte metros, mas ficou
muito íngreme e o rastador simplesmente sumiu. Mais na
frente achei uma poça de sangue grande e muita formiga
preta, parece que ali ela parou e morreu, mas não estava
mais lá. Provavelmente deve ter sido levada por alguma
onça, ou algum gato-do-mato (jaguatirica).
The Para resumir o que já vai longo, encontramos
com facilidade o mateiro, que havia corrido só vinte
metros. Dependuramos, tiramos o couro, dividimos o peso
nas mochilas, depois pegamos o tatu e levamos inteiro.
Chegamos ao simples acampamento dos seringueiros por
volta das duas da tarde, aí fomos fazer um almoço
reforçado, tomar um banho de rio e à tarde fomos fazer
produtiva pescaria de trairão nas bocas de igarapés que
caíam no rio Bacajá.
Homens de fibra são os mateiros do norte, possuem
uma noção de direção incrível, conhecem profundamente
aquelas matas e sabem tudo sobre aqueles rios. São
verdadeiros índios quando se trata de caça e sobrevivência
na selva. Essa foi a primeira das MUITAS noites que passei
nas matas do Pará, depois disso aprendi muito e vivi
inúmeras aventuras ao lado desses homens do mato...
mas essas são outras histórias, algumas já escritas, outras
apenas na memória, esperando que a saudade da selva
aguce a minha criatividade e me ajude a eternizar essas
minhas aventuras em uma folha de papel.

105
Vozes do mato

Nos derradeiros de setembro, nas esperas de bicho,


sentando-se na rede no topo das fruteiras que povoam as
férteis vazantes de matas ciliares das beiras dos rios em
Goiás, é possível presenciar um grande espetáculo da
natureza. Basta manter o silêncio, encostar a cabeça na
rede e viajar nos sons. A princípio tudo parece quieto, mas
à medida que o sol vai esfriando, o solitário e constante
piar da rolinha-fogo-apagou começa a ser acompanhado
pelo gemido distante de uma pomba-juriti na sombra
fresca da mata. Não demora nem nada e responde em
timbres fortes lá no galho seco da árvore mais alta da beira
do rio uma pomba-asa-branca, e é esse o anúncio oficial
do início do fim da tarde.
Dando prosseguimento ao espetáculo e
aproveitando o silêncio da pomba-verdadeira que espera
resposta, entra um sabiá-de-peito-laranja. Ele tem um
canto melodioso, que parece vir de lugar nenhum. Aquilo
ecoa no mato de tal forma que lá dentro da rede a gente
fica meio perdido, sem saber direito de onde vem o som.
Escutar o sabia-da-mata desperta na gente um sentimento
de paz, uma tristeza gostosa, uma saudade de sei lá o quê.
O que trás a gente de volta é o canto metálico das
seriemas do cerrado. Incrível como nunca catam sós, e
mais impressionante ainda é a forma como são afinadas
no dueto, pois uma entra exatamente entre as notas da
outra... um encaixe perfeito, um arranjo sofisticado. Quem
não conhece ou dá pouca atenção para essas coisas acha
até que se trata de um artista solo.

106
Dando fundo a toda essa cantoria de dentro do mato
vêm as cigarras. Começam devagar, mas progressivamente
vão aumentando o volume e a repetição das notas. Quando
embalam não param mais, basta uma começar que outra
vem logo arremedar... e depois das cigarras não tem mais
pausa nem apresentações individuais. Com o sol já
namorando o espinhaço da serra, entra com a primeira voz
o inhambu-chitão da capoeira, e logo depois do seu canto
a saracura “três-potes” também alegra a mata com um
canto estridente, alegre e cheio de plástica. Se a gente
prestar bastante atenção, percebe que as notas bem
nítidas repetem o seu nome no final do canto: “três potes...
três potes... três potes”.
Faz-se um breve silêncio, acho que é a passagem do
dia para a noite, até que já quase escuro o jaó encerra de
vez o espetáculo. Eu acho até que é por isso que o seu pio
é tão triste e melancólico. Depois disso o manto escuro da
noite penetra definitivamente na mata e acontece a troca
de turnos: vão-se os pássaros e entram em cena os grilos,
sapos e rãs. O espetáculo agora é misterioso e os artistas
quase anônimos. São incansáveis, produzem sons com
uma diversidade e uma riqueza de combinações incríveis.
Elá dentro da rede, prestando atenção em tudo isso,
esquecido do mundo, eu acabo me sentindo um tanto
pequeno... uma criatura insignificante perante tanta
grandeza. Resta-me apenas agradecer ao criador por ter o
privilégio de vivenciar tudo isso e depois espalhar para os
desavisados que esse espetáculo, além de diário, é gratuito
e está aos ouvidos de todos. Basta ter um bom coração,
amar e respeitar a natureza e ter a sensibilidade suficiente
para entendê-la.

107
A onça de três e quinhentos

Era alta madrugada na bocaina do córrego do


Mamão. Estava tão frio que nem mãe-da-lua piava. Do
lado de lá do vale, umas nuvens esparramadas que
encobriam o espigão da Serra das Camarinhas tampava a
lua crescente, que já ia baixinha. E o mato ali quieto,
sisudo e de sombras compridas... o frio era de trincar os
ossos. Lá inriba, na forquilha mais alta de uma craibeira,
um cumpade de voz trêmula sussurrou para o outro, que
estava numa galha mais embaixo:
- Cumpadi...
- Hum?
– Rmbora, hômi. – Rô naaaaada! A isfomiada taí. É
só a lua sumir que ela entra.
– Vem nada, acho inté que já prinssitiu nóis.
– Pois intão, se prinssitiu é que num desço mais.
Agora num tem vorta, ou furamo ela de chumbo ou só
apiamo quando clarear.
- De dois num há pirigo, hômi... nóis caminha
vigiando as costa um do outro e vamo drumi no barraco...
tá frio dimais.
- Fica nessa. Quando ela cumeu Girso de Liziário,
Silvano só foi dar fé do sumiço do irmão depois que saiu
do meio do capim vedado lá do pasto do engenho. Gato,
que é bicho pequeno, pega rolinha, q. sabe avuá... onça, q
é bicho grande, num vai pega nóis que só corre?

108
- Verdade, num podemo facilitar.
A lua sumiu e a sombra tomou conta do mundo.
Não passou nadinha e estralou uma folha seca uns trinta
metros adiante. No mesmo instante, o sertanejo que estava
na forquilha de cima recebeu na sola do pé o toque do cano
gelado de uma velha carabina Winchester 1.873.
- Ói ela, cumpadil
– Hunrum!
A novilha que jazia caída e parcialmente devorada
logo embaixo era baia, tinha cerca de um ano e meio e na
orelha esquerda trazia a marcação de dois brincos de
plástico amarelo, indicando procedência de gado puro. Só
naquele mês de junho essa onça já havia pegado duas
novilhas, uma vaca leiteira, estragado a garupa de uma
égua famosa e comido por inteiro o pônei pampa da neta
do coronel. Por tudo isso, a sua cabeça já valia seis meses
de salário de um peão bom de serviço naquele vale do
Pasmado.
Essa novilha de raça foi morta pela onça no finzinho
da tarde do dia anterior, quando desceu até o bebedouro
do córrego do Mamão para tomar água. As marcas da luta
contavam claramente como a onça pulou, derrubou e, com
uma mordida na parte superior do pescoço, matou e
depois arrastou a rês de mais de 12 arrobas no rumo do
morro. No pé da serra, ela entrou em um vedado pasto de
Jaraguá e comeu a língua, o fígado, os rins e parte do
quarto traseiro. Depois, cobriu o que sobrou com ramos de
marmelada-de-cachorro e largou a carcaça lá. O povo

109
entendido diz que quando ela cobre com ramos é porque
vai voltar para o repasto.
O capataz da fazenda, de nome Juvêncio, achou a
carcaça nas primeiras horas do dia seguinte, quando viu
dois urubus pousados no galho mais alto de um tamburil
que o fogo tinha queimado. Seguiu o capim amassado pelo
arrastar e chegou à pequena clareira onde a onça tinha
comido partes da sua vítima. Do lado da carcaça havia um
enorme pé de caraíba, alto e bem enforquilhado, bom
demais para fazer uma espera. Voltando para a sede na
hora do almoço, o capataz comentou com dois sujeitos que
estavam fazendo de empreita um curral para o coronel:
– Eita diabo, se Deus me faz com um pouco mais de
coragem ia ganhar um dinheirão essa noite.
- O coroné te empreitou pra matar gente, Juvêncio?
- Nada, de gente tenho medo não, mas onça é bicho
treiteiro. O coronel tá remuendo de raiva de tanto prijuízo
que já levou por causa dessa onça e anunciou na região
que paga trêis e quinheto pra quem matar essa bicha.
Descobri uma carniça fresca dela que é só subir.
- Quanto?!?
– Trêis e quinhento e inda tem uma leitoa do
Agripino e um litro de pinga do Domingão Preto. Ela andou
comendo uns bizerros deles no janeiro úrtimo.
- Da leitoa e da pinga não duvido, agora os cobre do
coroné ninguém vê, não. Aquilo é sangue ruim. Judiou
demais de muita gente e faz tempo que é muquirana e
perverso de fama esparramada.

110
- Moço, a onça comeu o cavalin da neta dele. O hômi
reuniu todo mundo aqui e falou de cima da escada da casa
grande que o funcionário que matasse a onça ganhava
trêis e quinhento. Por que qui ocê acha que Girso mais
Silvano foi atrás dela? Dinheirão desse nego fica doido pra
ganhar.
- Eita peste!! – Exclamou um dos fazedores de
curral.
– Pois coragem eu tenho sobrando, só não vou
pruque num tenho arma boa. – Disse o outro.
- Uai, se me der a leitoa e a pinga, te empresto a
carabina 44 do coronel que fica comigo pra privini cigano.
- Falou Juvêncio.
- Borá, Zé? Dois mil meu e mil e quinhento seu. -
Uai, pru que ancê vai ganha mais qui eu, Belarmino?
– Ocê num sabe atirá! Um hômi que erra uma
raposa parada e com uma galinha na boca à queima-
bucha não há de acertar uma onça de noite no meio do
mato.
- Aquele dia a lanterna tava ruim, Belarmino. Mas
se nóis matar, além dos mil e quintento ocê me ajuda eu
mintir pra Beatriz falando que foi eu que matei?
– Judo!
- E lanterna, ocê tem, Juvêncio?
– Se for mesmo e me der a leitoa e a pinga te
empresto uma boa, as pilha tão fraca, mas tiro do radio
que é nova e ponho nela.

111
- Feito.
- Mas aviso pros dois, ela é esperta pru dimais. Roda
essas serras já tem tempo e foi ela que matou e comeu
uma banda do Girso.
– Tenho medo dela não. Por trêis i quinhento o medo
some... né, Zé ?
– Sumir num some não, mas dá uma infraquicida.
Depois do armoço ocê ajeita as traia e leva nois lá,
Juvêncio?
– Cumbinado!
E foi assim é que foram parar lá em cima da galha
do pé de caraíba os dois caçadores de pouca prática. Sem
rede, sem água e sem blusa de frio, só com uma lanterna
velha, uma carabina que nem sabiam se atirava, um paletó
cinza e muita vontade de ganhar três e quinhentos.
Outro estalo seco, dessa vez bem mais perto... o
coração dos sertanejos essa hora quase que sai da caixa
do peito. O combinado era iluminar na primeira mastigada
de carne. O Belarmino, que estava com a carabina, já não
aguentava mais. O frio sumiu, as oreIhas dobraram para
frente, os olhos se esbugalharam na tentativa de
atravessar a penumbra, os pés cruzaram a galha fina da
craibeira de casca branca para dar firmeza para o corpo
ser preciso no disparo. Foi então que o Zé, que estava mais
no alto, apanhou a velha lanterna Rayovac de três
elementos, que estava no bolso do paletó cinza, e ficou
pronto para clarear. O Belarmino meteu o polegar de unha
suja no cão da velha .44 do coronel Selestiano, consertou
o sentado na madeira e ficou no jeito para pregar fogo.

112
A onça finalmente chegou debaixo. Estralou as
orelhas e deitou para comer a novilha. Como combinado,
na primeira mastigada o foco vermelho da lanterna varreu
a carcaça. A onça enorme murchou as orelhas, achatou-
se no chão, chicoteou o rabo no ar, olhou para a luz e
arreganhou os beiços mostrando os dentes. O Belarmino
afobou-se e o tiro saiu sem que ele se lembrasse que na
arma existia uma alça e uma massa de mira. O pesado
projétil calibre .44 entrou atrás da última costela da onça,
de cima para baixo. Ela deu um esturro e um enorme salto
para trás, sumindo no emaranhado amarelo do capim alto
do pé da serra.
- Acertou?
– Eu acho!
- Sei não, Belarmino...
- Acertei, Zé. Passa a lanterna pra mim e desce lá
pra oiá que eu lumio procê!
- Hunrummmm!!! Esparrama aí nessa furquia e me
espera.. desço jazin!
- Vai lá, hômi, que medo é esse?
- Ocê caga no tiro e eu que tenho que ir oiá,
Belarmino?!? Vô nunca!!!
- Bora nóis dois, intão.
- Ai, ai... tá bão... vamo.
Pularam no chão. O atirador manobrou a carabina
e, de lanterna em punho, adentrou junto com o

113
cumpanhero no capim alto. Não haviam andado vinte
metros quando encontraram marcas de sangue no caule
fino e seco do capim.
- Não falei, Zé... acertei ela!
- Moço, vamo largar isso pra manhã, de dia nóis
ruma uns cachorro e vortamo pra cá.
- É doido, criatura? Largar tréis e quinento assim,
no meio do maaaa...
E o pobre infeliz não teve tempo nem de completar
a frase, quem dirá de acionar o gatilho. De uma moita que
mal escondia um gato doméstico, em meio a um rugido de
gelar o sangue de qualquer vivente neste mundo, saltaram
sobre ele cem quilos de músculos e fúria pintada. O
impacto foi tão grande que rolaram no chão. A carabina
caiu de lado e o Zé saiu louco atrás dela na tentativa de
salvar o amigo, que aos gritos tentava tirar o pescoço para
longe da boca da onça. Toda a ação foi rapidíssima, o Zé
encontrou a carabina e, iluminando com uma mão e
empunhando a arma com a outra, atirou à queima-couro
na cabeça da onça, que amoleceu abraçada ao corpo já
desarticulado do Belarmino.
O tiro ecoou longe... e em alguns instantes, o que
eram gritos de desespero e urros de vingança cessaram. O
silêncio só não foi total por causa dos suspiros abafados
do sobrevivente inconformado, que ficou ali sentado ao
lado da onça e do cumpanhero morto até o amanhecer do
dia. Depois reuniu forças, apoiou-se na coronha da
carabina, tirou o paleto e cobriu o corpo do amigo. Em

114
seguida, sacou o facão, cortou a cabeça da onça, colocou
dentro de um saco e caminhou em direção à fazenda.
Ao chegar sozinho e desolado, todo mundo
adivinhou o pior. O coronel estava na varanda sentado
numa grande cadeira de balanço fumando um cachimbo e
fitou o chegante com ar de desprezo. O Zé tirou a cabeça
da onça de dentro do saco e jogou ao chão.
– Tá aqui sua onça, seu coroné... saiu mais cara do
qui o sinhô imaginou. Me custou a vida di um cumpanhero
de mais de vinte anos de vivença.
- Não te pedi pra ir atrás da onça, sujeito, você foi
por livre escolha e com o agravante de levar minha arma
sem autorização.
- Fomos pru causa do dinhêro, não pelo sinhô!
- O dinheiro prometido valia apenas para os
funcionários da fazenda, não para gente de fora. Seu amigo
morreu à toa. Caçar onça não é tarefa pra gente frouxa e
de pouca prática. Agora enterre seu amigo por lá mesmo,
pegue suas ferramentas e saia da minha fazenda.
- Me arrume ao menos um burro imprestado, pra
qui eu leve o meu cumpanhero pra casa, seu coroné.
– Tem sorte por eu não te cobrar a munição que
usou, infeliz! E ainda vem me pedir um burro
emprestado?!? Devolva a arma para o capataz e deixe a
fazenda antes que eu mande os meus cabras chutarem
você para fora daqui.

115
O coronel disse isso na mais pura arrogância do
mundo... depois se levantou, tirou o cachimbo da boca,
ajeitou as calças e deu as costas para o pobre homem. Ia
saindo e o Zé gritou:
– Uma úrtima palavrinha, seu coroné... dê
lembranças minhas pru Belarmino!
O coronel virou-se no mesmo segundo em que um
pesado projétil .44 entrava acima do seu olho esquerdo. O
cachimbo voou longe e ele morreu antes mesmo de cair no
chão.
Os peões que assistiram a tudo, boquiabertos, não
tiveram reação. O caboclo manobrou a carabina, olhou em
volta e disse:
- Meu cumpanhero morreu por descuido, a onça
morreu por malinar no gado alheio e o véio diabo aí morreu
por não respeitar a coragem do morto e nem o luto de um
amigo de verdade. Desgracei minha vida e agora num
tenho nada a perder além das seis balas que inda tenho
dentro dessa carabina. Si alguém aí tem arguma coisa pra
falar, essa é a hora!
Nunca se viu um silêncio tão profundo.
O caboclo foi ao barracão, arreou um cavalo, laçou
um burro e passou no meio dos peões com a carabina na
mão. Olhou de novo para o capataz e disse:
- Os animar e a arma levo pagando os trêis e
quinhento, leve a cabeça da onça, receba sua leitoa e sua
pinga e quando for dar o primeiro gole, alembre di dar um
viva pro Belarmino.

116
Em seguida ele deu as costas para o povo reunido
em volta do corpo do coronel e ganhou o mundo na direção
do córrego do Mamão.
E nunca mais se teve notícias do Zé.

117
Feitiço

Como já fiz saber, nunca fui um supersticioso.


Respeito sim as crenças, lendas e contos populares, mas o
que realmente merece a minha atenção é o que eu posso
ver, entender e tocar. Porém, entre os sertanejos e caboclos
desse nosso enorme Brasil, é grande a crença nas ciências
ocultas. Isso se deve a uma mistura de medo e
desconhecimento, mistura essa que acabou virando
herança cultural e que é repassada de uma geração para
a outra sem nunca perder forma. O Joza, meu grande
amigo, professor e companheiro de caçadas, sempre foi um
desses fieis crentes no mal-assombrado... tudo que ele vê
no mato ou lhe acontece sem que possa explicar ou
entender com alguma lógica é automaticamente
relacionado ao sobrenatural.
- Isso é ispritu ruim... feitiço, Tino!
E foi assim que em uma caçada há muito tempo,
nos sertões do norte de Goiás (hoje Tocantins), o Joza em
uma semana errou 4 tiros em 4 esperas diferentes. Um
caititu, um veado, uma paca e uma cotia, isso usando uma
calibre 20 de cano simples e munição 3T de fábrica.
Quando perguntei a ele o que estava acontecendo, ele me
respondeu que os caçadores sertanejos lá da região tinham
"colocado ele debaixo do braço” (enfeitiçado), por isso
errara tantos tiros fáceis... e disse que nem ia mais caçar,
não adiantava ir contra o despacho dos marvados.
Aquela ideia fixa causou tanto impacto na mente
fantasiosa do pobre Joza que só findaríamos a pescaria
seis dias mais tarde, mas ainda assim ele não quis sair do

118
acampamento mais nenhum dia para caçar. Na viagem de
volta ele me contou que já tinha sido vítima de um desses
feitiços uma vez. Contou que há muito tempo, lá nas Minas
Gerais, atirou em uma campeira em uma espera de flor de
pequi e ela fugiu baleada. O lugar era um chapadão de
veredas e chão de cascalho fino, difícil de ver rastros. O
Joza não perdeu tempo, foi até a casa de um cumpade seu
que morava perto e pegou com ele dois cães emprestados
para seguir a trilha do veado ferido.
Só que, ao chegar à casa desse seu compadre, lá se
encontrava um velho baiano de pouca prosa e aparência
misteriosa. Ostentava no pescoço vários colares de contas
e patuás. Disse-me o Joza que na hora o tal velho lhe pediu
o couro da campeira, falando que era para fazer um
pandeiro. O Joza respondeu que nem sabia se iria
encontrar o veado, por isso não podia garantir o couro.
Após essa rápida conversa, o Joza partiu para a busca.
Com a ajuda dos cães e seu instinto infalível, não
demorou a achar o bicho ferido. Estava deitado num mato
ralo da beira de um brejo e deu pouco trabalho para
terminar a caçada. Ali mesmo o Joza esfolou e esquartejou
o veado, seguindo depois para sua casa. Os cães, que já
conheciam o caminho, voltaram para a casa do compadre;
partiram alegres e empanturrados de merecida buchada.
Dois dias depois, o Joza voltou ao sítio do seu
compadre com o intuito de levar para ele uma manta de
carne passada de sol, como forma de agradecimento pelo
empréstimo dos cães. Lá chegando, encontrou também o
velho baiano, que olhou para o Joza com cara ruim e disse
baixinho:

119
- Ancê num quis mi dá o côro da campera, né?! Pois
intão... a próxima veiz que ocê mirá essa sua ispingarda
num viado, ela vai fazê: pefo!!! Pefo!!! Pefo!!! | ocê nunca
mais vai mata dessa caça.
Assim foi dito e assim foi que se realizou. Por quase
um ano o velho Joza não matou veado, empurrou (deixou
fugirem feridos) mais de 10 veados-campeiros, mas não
conseguia achar a trilha de nenhum. Teve uma campeira
que ele deu três tiros e, certo de que estaria morta, desceu
da espera para apanhá-la... estava tão convicto da morte
da caça que deixou a arma em um galho lá em cima. Mas
quando pisou no chão, a campeira levantou-se e arrancou
em desabalada carreira. Foi perseguida de perto por mais
de quilômetro, até que se embrenhou em mata da bucaina
e desapareceu para sempre. Segundo ele, o feitiço era tão
forte que nem com a ajuda dos cachorros ele conseguia
mais encontrar a caça.
Quase um ano e meio depois que a espingarda foi
enfeitiçada e com o Joza quase desanimando de caçar, um
velho raizeiro de Buritis de Minas, ensinou-lhe o “remédio"
para desfazer o feitiço... e a vocês repasso a receita como
me foi descrita pelo Joza:
São 7 lascas de pau em que trovão caiu (não serve
raio, tem que ser trovão), 9 pés de capim-chato seco, uma
pena branca do papo do urubu-rei, metade de uma batata-
de-purga (tipo de raiz) e um punhado de pelo do rabo do
veado-do-campo. Com os ingredientes, faz-se um fogo em
uma encruzilhada à meia noite de uma sexta-feira e toma-
se um defumador com a fumaça desse fogo por uns 20
minutos, você, a espingarda e os cartuchos. E atenção!!! É

120
muito importante que a fumaça passe por dentro do cano
da arma.
Depois lave a arma e também tome um banho em
água corrente. Em seguida, pode lubrificar a espingarda,
carregar os cartuchos e ir para a espera. Assim o Joza fez,
e na mesma noite subiu em uma espera de "grão-de-galo”
(saputá-do-cerrado). Nessa caçada matou dois veados no
romper do dia, uma campeira e um galheiro. PRONTO!!!
Estava desfeito o encanto e nunca mais faltou carne na
mesa da mulher e dos oito filhos do supersticioso caçador.
Eu adorava ouvir essa história, e sempre que
estávamos no meio de gente que não a conhecia, eu pedia
a ele para repeti-la. Achava maravilhosa a fé e a paixão
com que ele contava o causo. O jeito que ele abaixava a
voz, quase sussurrando, quando contava sobre o veado
entrando embaixo da espera e a mímica da levada da
espingarda com o braço esquerdo eram empolgantes. Por
fim, o momento do tiro gerava tanta expectativa que
chegava a dar ansiedade na gente para saber do resultado.
E ai de quem falasse para ele que feitiço não existia.

121
Caçador de espera... bicho doido!

Ali pelos meados de julho, quando a chuva já ficou


para trás e começa a soprar aquele vento quente dos meses
secos, dá uma agonia danada na gente, uma vontade sem
fim de ir para o mato. Com a data marcada a ansiedade
aumenta, as semanas começam a ficar compridas e vamos
procurando amenizar a lerdeza do tempo com a arrumação
da tralha. Amolamos as facas e os facões, conferimos os
punhos da rede e a mira da carabina .22, trocamos as
pilhas da lanterna, compramos mais um par de cordas
para a amarração dos mutas e vamos engambelando as
horas e encurtando os dias.
Na noite que é véspera da saída sempre se dorme
tarde, pois mesmo com a organização de todos os detalhes
sendo iniciada com grande antecedência é depois do
expediente da sexta-feira que conseguimos reunir todo
mundo, acabar de fazer as compras (gelo, carne,
cerveja...), embarcar a tralha e enlonar a carga. Já tarde e
depois do banho tomado a gente deita, mas não consegue
dormir. A ansiedade é tremenda, mas apesar do cansaço a
cabeça se ocupa tanto com os planos e as outras coisas lá
do mato que o sono acaba ficando velhaco.
Dormimos tarde, mas a alvorada é de madrugada.
Primeiro toca o telefone, logo em seguida buzina a
camionete lá na porta. Passa aqui e apanhamos um, acolá
buscamos outro até que finalmente a turma se completa e
pegamos a estrada. Quando o sol bota a cara quente de
fora, há muito já deixamos o asfalto dos civilizados e o
cheiro da poeira da estrada de chão já é parte da viagem.

122
A chegada e a arrumação do acampamento é
trabalho duro, mas prazeroso: estendemos lona aqui,
varremos folha ali, cortamos pau acolá, capinamos,
armamos barraca, trempe, fazemos jirau com madeira
verde bem amarrada, montamos o fogareiro, penduramos
o lampião, juntamos lenha, tiramos a poeira das tralhas
de cozinha, pegamos água, aprontamos um almoço rápido,
jogamos trato de quirera na ceva de piau e todos saem para
o mato, cada um em uma direção, investigando trilhas,
conferindo copas de fruteiras, procurando esperas para
passar a noite. O calor da seca é infernal. Por conta das
antas, tem tanto carrapato caminhado na gente que parece
festa de folia da roça.
De volta ao acampamento, mal dá tempo de tomar
um banho no rio e pegar a matula já preparada pelo
cozinheiro... pé na estrada de volta para dentro da mata.
Em mato de fácil perdida e onde tem muita onça, fazemos
espera de noite inteira. Esse tipo de espera tem que ter
armador bom, confortável, pois o tempo que se passa lá
em cima é grande. Às vezes temos que amarrar mutá
(varas entre duas árvores que servem para subir e apoiar
os pés), cortar varas longe da espera, limpar, carregar nas
costas, amarar um após o outro... 3, 4, às vezes até 6
metros para cima, e tudo isso fazemos cada um por conta
própria.
Depois é subir e armar a rede, dependurar a tralha,
descer e tirar um garrancho aqui outro acolá, que é para
não atrapalhar o tiro a noite. Quando terminamos toda
essa arrumação, o ponteiro do relógio lambe as 18:30, às
vezes mais tarde... o corpo está banhado de suor e os
carrapatos fazendo festa. Quando se pega só do lazão e do

123
rodoleiro grandão ainda vai, mas quando esbarramos em
uma folha repleta daquele miudiquim, aí é triste. Fica
difícil parar quieto lá dentro da rede.
Ainda de dia vêm as mutucas... a pretinha de asas
curtas não incomoda muito, mas aquela grandona que tem
as costas cabeludas e o zói pintado de verde metálico é um
inferno, a mais insistente de todas. Pousa embaixo da
rede, em lugar que a gente não enxerga e, com uma
cutucada de ferrão, traça quase um centímetro de pano,
cravando o prego nas costas da gente. É uma ferroada dos
diabos, aí tapa come, e tudo isso em silêncio, que é para
não incomodar a velhacaria dos bichos.
O sangue esfria, o suor seca e o corpo reclama o dia
puxado. As mãos estão cheias de pequenos cortes e
espinhos. O tempo passa... e com a chegada sorrateira da
noite, vem o sono. O olho vai pesando... e o corpo
escorregando para dentro da rede. O sujeito só não dorme
mesmo por causa da nuvem de muricocas que envolve a
cabeça dele, no lusco-fusco do final do dia é uma zoeira
sem fim! Aqui para nós tem delas de três qualidades
diferentes, mas é a carapana-de-pés-calçados a mais
escandalosa de todas. Escandalosa e esfomeada... para
economizar tapa, espero juntar umas três pertinho uma
da outra e mato num golpe só. Nos dias quentes elas vão
até alta madrugada aborrecendo a paciência do vivente.
Cobrir a cabeça às vezes alivia um pouco, mas o calor
sufoca e a gente não escuta o pisar do bicho na folha seca.
Repelente resolve, querendo passar pode, mas aí pode
esquecer o veado-mateiro. Se entrar veado, vai ser um
catingueirinho desses fubocas lerdos, cheio de negaça e
velhaco na luz da lanterna.

124
A noite vai encompridando e nada do bicho, o sono
há muito beira a fronteira do insuportável. A gente aguenta
até um ponto, depois dorme que nem vê. Daí para frente
só mata bicho quem tem sono leve, desassossegado,
daquele que faz a noite ficar comprida.
O sol nasce, mas o clarear vem bem antes, um
espetáculo. Quando o bicho não veio por não vir é
aceitável, mas quando vem e por erro nosso fugiu sem tiro
ou mal atirado a raiva é grande, a decepção pessoal é
enorme e a única coisa que nos resta a fazer é desfazer a
arrumação, jogar a tralha toda dentro da mochila e tomar
o caminho do acampamento esperando sorte melhor na
noite seguinte.
A gente vem de cabeça baixa, com o zóio vermelho,
ardendo e parecendo que tem areia dentro, só imaginado
que sorte teve o cumpanhero, ou quem terá dado aquele
tiro que ecoou pela madrugada. As costas ficam meio
tortas e a cara chumbada de picada de muricoca. Na
cabeça, uma só preocupação: chegar logo ao
acampamento, tomar um café, um banho e vestir no
mundo de novo procurando espera para a noite seguinte,
afinal o tempo é curto e ninguém quer voltar para casa
com o dedo atolado.
Enfrentar cinco dias e cinco noites seguidas nessa
rotina não é tarefa fácil, mas é basicamente essa aí a vida
de um caçador de espera. Os que têm pouca ou nenhuma
afinidade com as coisas do mato acham esse o maior
programa de índio do mundo, aventura de gente
desmiolada. Confesso que às vezes até me preocupo, pois
devo ser doido varrido, tamanha é a minha paixão por uma

125
espera de bicho. Aproveito ao máximo cada minuto lá no
mato, seja ele de sofrimento ou de emoção. Para mim as
dificuldades é que valorizam o final de uma caçada bem
sucedida, quanto mais difícil melhor o troféu e mais doce
vai ser o gosto da vitória.
Não foi a minha intenção usar essas palavras para
amedrontar ou desencorajar alguém que um dia queira
experimentar as sensações de passar a noite no alto de
uma fruteira no coração da mata. Quis apenas mostrar
que caçada de espera é trabalho duro, árduo. Não basta só
conhecer, entender e gostar. Tem que ter garra, força de
vontade e, principalmente, muita paixão pelo mato.
Claro que nem todas as esperas são tão difíceis
assim... mas existem outras ainda piores, existem outros
perigos e outros desconfortos. Pequenos inconvenientes
como as formigas-cortadeiras, que são um perigo para as
cordas da rede durante a noite, as colônias de cupim que
no meio da madrugada tomam de assalto a árvore e a rede
com a gente dentro, as cobras que passeiam pelos galhos
à procura de ovos e pequenos pássaros, as chuvas e
tempestades que surgem do nada, os galhos que
despencam do alto das fruteiras durante as ventanias no
meio da noite, as perdidas no mato, o frio congelante do
mês de junho, a picada dolorosa da caranguejeira que se
esconde no oco dos paus, o perigo das quedas e acidentes
com armas, o mijo ácido dos macacos-guaribas, as
abelhas-tataíra "caga-fogo", que atacam sem provocação,
as onças à espreita de viventes desassuntados pelos
trieiros da mata nas horas mortas da madrugada... liiiiiiii,
melhor parar, senão espanto de verdade a cumpanherada.

126
Caçar de espera, passar a noite inteira sentado
numa rede esperando bicho com quem nem se marcou
trato só pode ser mesmo ideia de gente doida.

127
Bicho de caçada azarenta

Um dia desses, lá ia cumpade Tuniquin montado


num burrão ispritado que atendia pelo nome de Curisco,
animal açoitado no rumo de correr bicho. la tão embalado
que nem no chão encostava direito. Tamanho desespero
era com intenção de alcançar o bicho de caça antes do
baixio da vazante.
De pareia adiantada dentro do mato ia a
cachorrada, entoando cantiga uivada atrás de uma anta-
sapateira que rasgava embira e esfacelava pau no peito. Lá
bem na frente, o jegue (anta) saiu do mato que raleou e
quis cruzar o pasto de um capão pro outro. Pra ataiar, o
véio Tuniquin arrochou o burro na espora e, cortando
volta, embicô bem juntinho de uma cerca nova de arame
liso. O burro, vendo a anta, deu tudo que tinha. Já vinha
emparelhando com ela quase em posição de tiro, mais ali
logo adiante, bem na beira da cerca, havia uma enorme
moita de espinho de agulha... pra livrar da moita de
espinho, o curisco deu uma guinada pra direita. Aí o
caminho estreitou e o joelho direito do véio achou a quina
de uma lasca triangulada de sucupira-branca que fazia o
papel de esticador do arame.
Foi uma pancada lascada!!! A perna do véio dobrou
pra trás e não voltava mais pra posição certa. Seu
Tuniquin conta que quase que caiu de dor e só não pintou
as calças porque não tinha “bala na aguia”. Mas o véio era
danado... mesmo deitado na sela, ainda empareou com a
bicuda que lá já ia cansada e das seis que tinha no tambor
do ximite 38, enfiou 4 na costelada dela. Ai a anta tombou

128
na beirinha do rio e acabou de morrer no dente dos
cachorros.
Por causa dessa pancada, o véio passou a mingau
ralo, mancou uns três meses e quase que teve que fechar
o ferro velho dele por não dar conta de trabalhar. Com
muita carne seca de anta, arnica e cuidado da muié, foi
aprumando devagar. Quando sarou de tudo, já tava doidin
pra caçar anta de novo. E mesmo com toda falação do povo
e recomendações do doutor João, num domingo de muito
sol lá foi ele pras banda do rio Crixá. Na ocasião,
arrumaram pra ele um cavalin de nome Briante, murcho
e com cara de já morreu. Bão, foi sair do tabocal na curva
da ponte e a cachorrada levantou um "anto macho".
Corre aqui, cerca acolá, ataia mais inriba e o seu
Tuniquin junto. Até que lá numas alturas, fazendo valer a
sua fama de entendendor da caçada, riscou de espora o
cavalin e já saiu do mato colado na anca do jegue. Livrando
o pescoço de umas imbiras de capoeira, puxou da cabeça
da sela o seu velho ximite 38 de cano longo e cabo de
madrepérola e, usando mais da prática do que da mira,
levou a arma e rastou o dedo. Deu que, na hora que ele
puxou o gatilho, o cavalo levou um trupicão numa bacada
na descida de um morrinho cabeludo de capim e baixou a
mão do véio.
Pronto!! Estava (“Tava” não fica melhor?) feita a
maçaroca. O tiro entrou bem nó pé do ouvido do cavalin...
e foi pá bosta!!! Um tiro tão bem dado que o pobrezinho
morgô das pernas e ficou pra trás. E no embalo que vinha,
o véio sobrou no ar e foi de barriga morro abaixo. Quem
viu diz que ele arou uns trinta metros de cascalho grosso

129
e só parou lá na frente, quando rumou a cara num toco
queimado de pequizeiro.
Bateu e ficou gemendo de dor com a barriga pra
cima. Ia ficar bão ligeiro se fosse só a pancada na testa e
as tiras de couro que arrancou do bucho, o problema foi
que, no deslizar, o joelho bichado do véio arranjou o beiço
duma pedra dessas tapiocanga cor-de-uva, que dá em
morrote de cascalheira de chapada. Aí o trem zangô tudo
de novo.
Hoje tá lá o véio, de cara amuada inriba duma
cadeira de balanço chienta, fumando cachimbo e olhando
desinquieto para um par de muletas encostado na
muretinha da varanda... aleijado de anta. Bicho de caçada
mardiçuada, segundo ele!
E pra quem gosta de jogar a culpa no descaso da
sorte e ainda não se convenceu dessa fama que o “jegue”
tem, emendo esse acontecido com outra caçada ingrata
feita pelo Manelão corta-fumo. É Manelão do dente de
ouro, primo do finado Odário cunsertador de espingarda.
Pois bem, na ocasião, ele e uma turma de
assentados lá do Vale da Boa Esperança mataram na beira
do Extrema uma antona sapateira. Deu que, na hora que
ele jogou um quarto da bicha em cima da garupa dum
cavalin carroceiro de nome Piloto, o bicho se assustou e
deu-lhe um coice bem em cima da rodeira do joelho. Quem
viu disse que a pancada foi tão ajeitada que o couro
esbraquinceu e empelotou pra cima (pra riba não ficaria
melhor?)... e no lugar da lapada subiu um bodongão
azulado. Sei que até hoje o hômi caminha meio manco;
quem o vê de longe com aquele caminhadinho faiado fala

130
até que uma perna encurtou. E de longe se conhece a
chegada dele. É só ele aprumar lá embaixo na esquina do
bar do Sipiquiti que os desocupados que ficam sentados
no bancão de madeira cá debaixo da gameleira comentam:
- Ói lá Manelão. Pia só o caminhado: 29,30,29,30...
E o povo cai na gaitada! Aí um abestado pergunta:
-Eo que diabo foi aquilo?
Na fumaça da pergunta vem a resposta do Zé
taxista, chefe dos fofoqueiros:
- Uai!!! E num foi um quarto de anta morta!!
E os desocupados desapeiam na risada. O bão é que
sempre, entre um fôlego e outro, um esclarecido levanta
pra esmiuçá a estória e dela tem uma versão que diz que
o cavalo, amarrado lá por muito tempo, tava era dormindo
em pé na sombra de dentro do mato, aí o Manelão chegou
já fungando com a língua pra fora e, de açoite, jogou em
cima da garupa do pobre animal o quarto da anta morta.
Aí um repica:
- Uai!!! Assim até eu dava coice... kkkkkkkkkkkk.
Aí o povo tosse segurando a risada pro Manelão, que
já vem chegando, não perceber que é o motivo da fofoca. E
assim que ele passa e dobra a esquina da frutaria, o povo
enxuga os zóio e muda o rumo da prosa pro lado da
safadeza da muié do açougueiro.
Bão, mas voltando ao assunto, se ainda acham que
anta não é bicho vingativo, aí vai mais uma.

131
O Tonho fazedor de tarrafa, que tem um buteco lá
na feira, também anda com uma perna dura por causa de
uma caçada de anta. O ocorrido foi o seguinte: Com a
bicha já morta e uma banda dela dependurada num varão
de mutambeira, vinham ele e o Vicente lanterneiro
gemendo dentro do mato. Essa tinha morrido numa espera
de tamburil, e vinham eles na segunda viagem trazendo a
última banda da espera pra dentro de uma canoa
estacionada no barranco do rio. Já vinham estropiados,
pois a espera era longe. Aí, num estreito corredor que o
gado fez no barranco indo e voltando pra beber todo dia, o
cumpanhero da frente embalou por causa da ladeira. O
Tonhão, que vinha atrás, acompanhou a toada. O
problema foi que o peso era grande e balangou no varão.
No balançar, desequilibrou quem vinha atrás. Ah, não deu
outra. O Tonhão caiu de joelho bem inrriba de uma quina
de pedra. Quem socorreu contou que a pancada foi tão
disgramada que cortô no meio aquela bolachinha que a
gente tem no joelho.
Nunca mais o pobre do Tonhão andou que presta,
pois a dobra da perna ficou dura. Aí, quando ele anda, essa
perna dura dele vai ficando pra trás. Com isso ele ganhou
o apedido de “deixa que eu chuto" e largou inté de caçar.
E procêis que tão com plano de caçar anta, eu não
desaconselho a idéia, mas cuidado!! Previna uma proteção
pra rodeira do joelho, pois é como o povo diz:
– Anta é bicho de caçada azarenta!!!

132
Rastros

É no inicio de julho que começam a cair as


primeiras flores Ldo pequi lá no sertão do Tocantins. O
chão do cerradão cru está duro, e embaixo do pequizeiro
as folhas mortas que caíram da troca de antes da florada
forram o chão. A gente para na sombra do pau, olha para
o chão e não bota fé. Aí o sertanejo, que vem atrasado no
trieiro pelejando para acender o pito, chega, coloca o
paieiro que não acendeu atrás da orelha, dobra o braço
esquerdo para cima e, com a ponta dos dedos da mão
direita, coça o cotovelo. Sem pressa, corre os olhos
varrendo o chão para lá e para cá. Depois apanha o pito
de novo, coloca na boca, chama a binga nele, dá uma
puxada de envermelhar o braseiro e, enquanto solta o
fôlego aos poucos, diz com voz misturada de fumaça:
– Ele aqui num passa das oito hora...
A gente, que se julga possuidor da sabedoria lá dos
civilizados, não acredita. A descrença dá uma coceira na
cabeça... a ideia de ficar a noite toda trepado em espera
ruim espanta o entusiasmo. O sertanejo, percebendo a
nossa falta de fé, rompe um pouco e, com a ponta do facão,
mostra as marcas. Digo marcas porque rastro ali embaixo
do pequi ninguém vê, não. A surpresa vem quando se olha
atentamente o apontar do caboclo seguido da explicação,
que ajudam no convencimento.
Logo os olhos da gente enxergam o que antes não
viam. Para todo lado aparecem os furinhos que o casco do
veado faz nos montes de folhas secas. E se pegar um
talinho e for virando folha aqui e acolá, dá para achar os

133
montinhos de estrume que eles deixam embaixo da espera.
Umas estão duras e pretas, coisa de semanas, outras num
marrom escuro de ontem... e ói lá um montinho ainda
mole da noite passada. Lá na frente, já quase saindo da
roda do pau, o sertanejo agacha e apanha uma folha
grande. Metade ainda está úmida e com o cheiro da urina
do bicho.
Já indo embora, cinquenta e tantos metros depois
da espera, na travessia de um trieiro limpo pelo vai e vem
do gado, ele esbarra na minha frente e mostra lá no chão
o desenho esbranquiçado de um “V” curtinho. É a marca
da ponta do casco do veado na terra dura. Ele vem lá do
capão, come no pequi e segue para o rumo das lagoas. E
quem duvidar dessa rotina é só subir e tentar a sorte.
Nem escurece direito e tá lá o moleque de cascos
duros e oreIhas entesouradas entrando velhaco embaixo
da copa do pequizeiro. Feliz do caçador que confia na
vivência do sertanejo.
A sutileza e a simplicidade com que o matuto
enxerga as marcas dos bichos no mato sempre me
impressionaram. A propriedade com que eles afirmam e
defendem as suas suposições é incrível. Desde muito
jovem, convivo com esse povo lá do mato... e quando digo
povo do mato, refiro-me principalmente aos sertanejos que
gostam de caçar, pois as pessoas aqui da cidade têm a
falsa impressão de que todo caboclo é caçador, e isso é
uma inverdade. Conheço homens que moraram na roça a
vida inteira e nunca pegaram em uma espingarda para dar
um tiro numa juriti. Eles lá são tão poucos quanto nós
aqui, caçadores da cidade.

134
Mas é com os poucos que caçam que a gente
aprende que rastro de veado-mateiro, além de ser maior
do que o do catingueiro, tem as pontas do casco mais
arredondadas. Que dá para se medir o tamanho do jacaré
na luz do farol à noite pela distância entre um olho e o
outro. Que no pé do lobo-guará as unhas tocam e chão e
os dedos são mais longo do que os dos cães. Que as mãos
da onça fêmea são do mesmo tamanho dos pés, enquanto
que nos machos as patas posteriores são maiores que as
anteriores. Que porco-queixada, além de vir em cima de
imitação de latido de cachorro, tem rastro maior do que
caititu... e que mesmo quase cego, é o bicho de dentro do
mato que tem o melhor faro.
Aprende-se ainda que tatu galinha tem três dedos,
mas só dois deles deixam marca de unha no chão. Que
toda morada de paca tem um ou dois suspiros, que além
de conduzirem ar, servem como saídas de emergência. Que
risco estreito em praia de areia é rastro de camaleão, e não
de jacaré miúdo. Que leite de folha de imbaúba espanta
mosca-varejeira. Que os dedos do gato-do-mato fazem
desenhos perfeitamente redondos no chão de terra mole e
só mostram as unhas quando esses felinos estão correndo.
Que aquela meia lua funda com a ponta torta para dentro
é rastro de tamanduá-bandeira. Que jacaré só come com
a cabeça fora d'água. Que não se pode arrancar tatu-peba
em morada de formigueiro, pois a terra é fofa e ele cava
mais rápido do que a gente. Que veado-mateiro, além de
localizar as fruteiras de jatobá por causa da quebração dos
macacos no fim da tarde, também sabe quebrar a casca
dura da fruta com a pata dianteira.

135
Outros ensinamentos dos caboclos mostram que a
única diferença entre o pé da perdiz que atravessa a
estrada nos campos de vereda e o do jacuzinho-pemba que
habita os capões de chapada é o rastador do rabo. Que no
buraco só tem tatu quando murivoca voa na boca. Que o
veado-do-campo usa a gralha-de-topete, a ema e o gavião-
de-penacho para vigiar os seus campos de pastagem nas
queimadas do fim do ano, e que essa mesma espécie de
veado corre de rabo eriçado para mostrar para os outros
do bando o aviso de alerta. Que macaco-prego sabe dar nó,
trela palha de milho e carrega espigas penduradas no
pescoço. Que a cotia, a arara e a paca são os únicos bichos
do mato capazes de abrir o duríssimo coco-palmeira. Que
todo aquele escândalo do guariba no fim da tarde é feito
apenas pelo macho alfa. Que a paca gosta de morar em
grotas secundárias e não faz carreiros na entrada das
moradas. Que as antas se comunicam a longas distâncias
emitindo assovios. Que filhote de jacu já nasce bem dizer
sabendo voar. Que onça sobe em pau fino e faz emboscada
em fruteiras da mesma forma que os caçadores...
Bem, melhor parar com isso, senão daqui a pouco a
cumpanherada esmorece de ir lá no mato descobrir
alguma coisa por conta própria.

136
Remédio para reumatismo

Logo que vencemos a corredeirinha rasa do segundo


poço, o Joza tirou de um saquinho plástico, guardado
debaixo do boné azul de propaganda política, a palha já
cortada e o fumo na quantia certa para um cigarro. E
enquanto ele ajeitava o fumo na palha com cuidado para
não molhar, olhou para cima e disse:
- É, Tino... o tempo hoje tá “mussungado”.
Realmente, o céu estava cheio de nuvens e uma
sombra enorme tomava conta do vale do Pasmado... com
a molhada da lida, qualquer ventinho era motivo de frio
gelado. Já íamos para hora e meia de pescaria batendo
tarrafa aqui e acolá sem muito sucesso, o Joza dizia que
em dia de água fria peixe "caminha pouco”. De fato, o
resultado magro de duas papa-terras-piau (curimata) e
uns seis cascudos pequenos comprovava o dizer do
cumpanhero.
O relógio devia estar marcando perto das quatro
horas, mas como esse ninguém tinha um, estávamos meio
sem saber como andava a pressa do sol. Já encostando na
barra do pequeno ribeirão das Camarinhas, deu para ver
a prainha de areia alva lá por baixo da corredeira. Era lá o
ponto final da nossa pescaria, ainda bem que faltava
pouco. Eu, moleque franzino, participava na função de
saqueiro. Com os dedos enjinhados, aguardava
encorujado lá em cima duma pedra bem no meio do rio...
só rompia quando pegavam um peixe. Gritavam de lá:
- Saqueiro!!!!

137
Fora isso, só chegava até o raso, com os braços
cruzados para enganar o frio. De cá de cima da pedra,
observava o Joza com água pelo bico do peito, sacudindo
com grande habilidade a tarrafa. A roda ia bem de junto
das galhadas de pau onde o peixe devia estar escondido, e
só não saía nada nas malhas porque ali não tinha mesmo.
Conosco naquele dia vinham dois cumpanheros, seu
Zelão, morador lá do pé da Serra do Vai Quem Quer, e seu
filho, um rapazote alto e magro e de um negro meio
avermelhado, cabelo enrolado, dentes falhados e de sorriso
fácil. O apelido dele era Chumbo... invocado a pescador e
metido a tarrafeiro, fazia a graça da peaõzada lá da fazenda
porque era meio gago... quando bebia ou ficava nervoso,
desgramava a patinar e não saía nada. O pessoal pegava
no pé dele dizendo que ele era chegado em “malinar" com
uma bezerrinha nova.
Naquele dia ele estava dos mais felizes, pois havia
pegado em uma só tarrafada as duas curimatãs que
compunham o resultado nobre da pescada. O Joza estava
apenas com seis cascudos de boca de corredeira... por
isso, a todo momento o Chumbo, para provocar, gritava de
la:
-- Cadê, Joza????
E o Joza de cá... calado, só rindo de canto de boca.
Já mais embaixo, bem na boca do poço que
terminava na prainha marcada como ponto final da
pescaria, tinha uma pedra grande. E ali o Joza lançou o
desafio:

138
- Chumbo, vô pega um peixe cá mão aqui dibaxo
dessa pedra.
- Duvideodó, Joza!!
Então o Joza sacudiu a tarrafa embrulhando a
pedra e, com água pela barriga, foi ajeitando com o pé a
armadilha. Depois tirou o pito apagado da orelha, colocou
em cima de outra pedra menor e mergulhou,
desaparecendo. Vimos a sola branca do pé esperneando
até que a fundura do rio não nos permitiu ver mais nada.
A água alisou, o tempo passou e nada do Joza... daí a
pouco brotou uma borbulha, depois outra e em seguida lá
veio ele dando cafungadas atrás do ar. Na mão uma
curimatã de palmo e meio com a cabeça escangotada para
trás... pegou dentro da loca que ficava embaixo da pedra.
Passou a mão no rosto de barba ruiva e gritou:
- Chega, saquero!!!! E lá fui eu... enfrentar o frio e
apanhar o peixe.
o Chumbo, para não ficar para trás, fez o mesmo...
cobriu com um lance da tarrafa a cabeça de uma pedra
paralela que mal apontava da água e com os pés ajeitou o
cerco. Segundo ele, ali tinha uma loca funda que ficava
cheia de peixe quando escutavam o saracotear da tarrafa
lá na boca do poço.
Deu uma respirada profunda, arfou as bochechas,
fechou os olhos e sumiu tampando o nariz... não demorou
nadinha e veio de volta esbaforido, gemendo e passando
ligeiro a mão esquerda na curva lisa do antebraço direito.
Daí olhou gemendo, jogou um pouquinho de água com a
concha da mão e de lá vimos sair um fiapo de sangue, obra

139
de um mandi que, quando espremido nas pedras lisas da
loca, fez valer o seu ferrão. O Joza riu de largar de lado a
tarrafa... eu segurei bem até ele começar a gaguejar...
depois foi só gargalhada. Quando chegamos à praia,
enrugados de tanto frio, o Chumbo foi seco ao embornal
em que estava a pinga. Abriu o tal embornal e a cachaça
não estava lá. Olhamos mais na frente e lá estava o seu
Zelão, deitado com a cabeça apoiada na raiz de uma
gameleira, roncando de fazer barulho. Ele tinha vindo por
fora trazendo a pinga e a nossa roupa enxuta, e o
combinado era esperar na praia, mas o miserável do véio,
enquanto esperava, bebeu sozinho o meio litro de pinga!
Estava bodado, roncando de boca aberta.
De nós três o mais revoltado era o Chumbo, filho
dele. Já vinha nervoso com a ferroada do mandi e estava
doido para beber uma pinga para espantar o frio e aliviar
a dor. Foi lá, retirou o litro vazio de debaixo do braço do
véio, levou à boca e não caiu sequer uma gota. Danou a
gaguejar e a dar pequenos chutes na planta do pé do véio,
que só gemia. Para acalmar a turma, dei a ideia de irmos
embora e largarmos o seu Zelão lá dormindo, servindo de
pasto para os borrachudos e porvinhas que tanto atacam
no fim da tarde. O pessoal aprovou a malvadeza.
Limpamos os peixes, ajuntamos as coisas, trocamos de
roupa e já íamos saindo quando o Joza ouviu de la de
dentro do mato um barulho... era zunido de caixa de
abelha “Oropa”. Fizeram morada em um grosso caule de
embaúba que enchente matou sem arrancar do chão.
Passamos por elas bem caladinhos, e quando já íamos lá
dentro do mato, o chumbo lascou uma pedrada de

140
estilingue no tronco oco da embaúba. De longe escutamos
o eco da pancada.
Na hora não aconteceu nada, mas passado pouco
tempo o mato empretejou de abelha. E bastou uma farejar
o seu Zelão lá morgado no pé da gameleira para meter o
ferrão na barriga pelada dele. E abelha "Oropa” é bicho
bruto, onde uma ferroa larga um cheirinho, aí o resto cai
em cima, querendo ferroar no mesmo lugar... não foram
nem duas ferradas e o véio sarou da pinga. Pulou em pé
gemendo e esfregando a barriga e, variado, em vez de
correr para o rio, veio dando tapa no vento e foi para dentro
do mato, bem na direção da embaúba. Nessa manobra
infeliz encontrou de frente com o grosso do enxame
raivoso, aí o trem ficou feio. Era grito e tapa para todo lado,
cai aqui, levanta acolá, até que conheceu o rumo do rio e
saiu dobrando saroba que nem capivara corrida de
cachorro. Do jeito que veio caiu n'água... mas por azar, era
uma rasura de pedras. Ele tentando nadar ou afundar e
as bicha montadas nas costas, tusquiando o ferrão no
lombo do véio.
A maçaroca foi feia e quase que ainda sobrou para
nós, que assistíamos de longe. O Chumbo, de tanto rir
alto, levou uma debaixo do braço e eu, curioso demais com
o sofrimento do veio, levei uma na testa, bem por cima do
olho direito. Só quem escapou foi o Joza, que foi rompendo
devagar no trieiro, sem fazer questão de assistir àquela
malvadeza.
Brincadeira de mau gosto aquela. O véio Zelão
tomou para mais de 20 ferroadas, perdeu a binga, o
chapéu e quase quebra as costelas nas pedras rasas da

141
beira do rio. De bom mesmo foi só a cura de um
reumatismo que ele tinha, pois depois que foi picado pelas
abelhas, podia esfriar o tempo que ele nunca mais teve
uma crise da doença. E por conta desse acontecido até
hoje o povo lá da beira do Pasmado conta que o melhor
remédio que tem pra reumatismo é meio litro de Velho
Barreiro e 20 ferroadas de abelha “Oropa”.
E o “pobre” Chumbo, jurado de cacete, passou para
mais de seis meses sem poder pisar dentro de casa.
Bons tempos aqueles.

142
O gateiro

Na entrada da cidade de Altamira, no norte do


estado do Pará, tem à esquerda de quem chega uma viela
estreita de chão batido que lá na frente se abre e vira uma
estradinha esburacada. Seguindo reto, avistam-se várias
palafitas e, mais a diante, um pé de caju que sombreia dois
cepos puídos do sentar nos fins de tarde. Os bancos
improvisados estão estacionados na fachada simples de
um botequinho feito de tábuas pintadas de um azul
descascado pelo tempo.
Quem for entrar, cuida a cabeça porque a portinha
é baixa. O assoalho também é de tábuas e o lugar é
pequeno, mas bem limpinho. Lá dentro existem dois ou
três tamboretes de couro de boi e algumas prateleiras
cheias de sortimentos: fumo de rolo, pinga, bolachas e
refrigerantes baratos, rapadura, açúcar e café. Do lado
direito tem dois pequenos cavaletes e uma tábua comprida
atravessada. Em cima da tábua, sacos de pano branco
com a boca dobrada, feito barra de calça. Dentro deles tem
arroz, farinha d'água feita por índio, feijão de corda e uma
lata com gordura de porco. Tudo vendido por litro ou por
prato, medidas dos antigos, quando balança ainda não
existia.
Por cima dos sacos tem um barbante fino, encerado
com cera de abelha-uruçu para formiga não transitar, e
dependurado no barbante vocês verão mantas enormes de
trairões abertas e salgadas. Em cima do balcão repousa
uma balança tão velha quanto o dono do lugar, uma faca
do cabo amarrado por fio de cobre, uma moringa de barro

143
cheia de água fria e uma caixinha de madeira com os
pesinhos da balança, que têm a serventia de pesar o peixe
vendido.
Atrás do balcão tem uma rede armada, curta e em
forma de cadeira espreguiçadeira, e do lado direito de
quem entra estica-se um corredor comprido, sempre de
tábua. Quem seguir por ele vai chegar numa janela sem
janela e quem olhar através dela vai encher os olhos com
a imagem do grande rio Xingu, correndo liso e sereno.
Barcos de todos os tamanhos estacionados no porto,
meninos gritando em festa tomam banho, alguns nus,
outros usam apenas cuecas frouxas. Mais embaixo,
alguns desocupados pescam em cima de um casco velho
de um barco meio afundado. E lá no meio, enormes barcos
de madeira coloridos de azul e vermelho cortam o canal
principal com um som de motor que lembra uma
locomotiva em marcha lenta. Marujos descamisados
andam por cima do teto plano dos barcos, uns carregam
fardos, outros amarram cordas. Nos barcos maiores,
notam-se várias redes armadas, mulheres, crianças e até
cães no convés. Nos menores, pilhas de sacos, balaios,
porcos, galinhas, bolas de borracha já defumada e gente,
muita gente indo e vindo.
Tricotando o canal no meio dos barcos maiores
navegam algumas voadeiras compridas, de mais de 8
metros, equipadas com motores a diesel, além de enormes
rabetas que, na tentativa de enganar as pedras, levam a
hélice quase fora d'água. Seguem cheias de caixas
enormes de isopor encardido. Umas sobem o rio indo à
pesca, outras descem trazendo o fruto de trabalho árduo
de muitos dias longe de casa. Lá no meio, depois do canal

144
principal, tem uma ilha de barranco alto e mato bem verde,
comprida a sumir de vista, tão comprida que os
desavisados acham que é o fim do rio. Mas sem que se
pergunte, o pessoal nativo informa que do lado de la
daquele mato estreito corre outro tanto daquele de água.
Contam e logo em seguida abrem largos sorrisos falhados
numa clara demonstração de orgulho pela beleza e largura
do rio que ali representa tudo para eles.
A vendinha que acabo de descrever em nada difere
de tantas outras que existem ali naquela vila pobre e cheia
de gente de alma boa. O que a torna tão especial é o seu
proprietário. Se repararem na rede por trás do balcão, irão
notar a presença de uma figura simplória, um preto velho
de gargalhada alta e banguela da parte de cima da boca,
bigode ralo e esbranquiçado e pouco cabelo para coçar na
cabeça. Estará sempre trajando apenas uma bermuda e
uma sandália de couro. Seu nome é Jozelino Pereira. Ele
não é dali, nasceu em uma currutela de nome Lagoas, no
baixo Amazonas, aos vinte e cinco dias do mês de agosto
do ano de 1915.
De infância muito pobre, sempre trabalhou. Aos 16
anos de idade comprou o seu primeiro barco de madeira e
o seu primeiro motor de popa. Com vontade de ter uma
vida diferente, juntou a coragem que tinha com seu
espírito aventureiro e resolveu cair no mundo à procura de
aventura. Passou a juventude de porto em porto, subindo
rios selvagens e vivendo situações dificilmente imagináveis
pelo povo da cidade. Quando chegou à cidade de Altamira,
em 1934, seu Jozelino nos conta que a cidade que havia
começado como uma missão jesuítas em 1850 mal
passava de um porto de abastecimento e comércio. Ali não

145
tinha estradas, só picadões de tropeiros que se deslocavam
em comitivas de mulas e carros-de-boi. Era apenas a
currutela, o rio e a selva sombreando e abafando tudo.
- Flechei peixe bem ali onde hoje é aquela farmácia.
– Aponta o dedo mostrando um bairro próximo cheio de
casas e lojas.
No início, o movimento da cidade girava em torno do
comércio de mantimentos para os seringais e garimpos. Os
barcos levavam arroz, feijão, sal, açúcar, munição e
cachaça, e da selva traziam a castanha-do-pará e as bolas
de borracha. Como o rio era o único caminho, havia muito
trabalho para quem tivesse um barco bom, um motor
confiável e uma espingarda grossa. E ali ele se instalou.
A princípio, trabalhou como pescador. Depois, com
um barco maior, trabalhou transportando índios,
seringueiros e garimpeiros por toda aquela imensidão de
água e selva. Foi nesses anos que conheceu a fundo todos
os caminhos dos rios, atalhos, cachoeiras e canais daquela
região. Ao longo da sua vida viveu incontáveis aventuras,
caçadas e pescarias em um tempo onde tudo ali era
intocado. Foi por várias vezes o primeiro negro a penetrar
nos grandes igarapés, subiu o Pariaxá e o Bacajá, que era
famoso pela quantidade de onças, e no ano seguinte
navegou até a confluência do rio Xingu com o Iriri,
subindo-o até onde ele afinava por completo.
Conheceu lugares completamente selvagens,
contou-nos da curiosidade dos mutuns, que não corriam
ou voavam do bicho homem, de como era fácil abater as
jacutingas e dos monstruosos jacarés que quaravam nas
praias de areia quente nas primeiras horas das manhãs

146
nas cabeceiras dos afluentes. Falou-nos sobre os peixes
gigantescos e de quantas vezes teve que cortar sua linha
de mão (no Pará chama-se de tela) para não virar o barco.
Nas suas viagens, transportando garimpeiros, ele foi até
onde ninguém tinha coragem de ir. Na selva correu de
índio bravo, e nos rios, por mais de uma vez, teve o barco
flechado. Por fim, largou de lado o transporte de gente e,
no auge dos seus tempos de aventura, viveu por vinte e
cinco anos da sua vida apenas da profissão de gateiro.
Nas décadas de 40 e 50, o mercado de pele de gatos
brasileiros estava a todo vapor. Milhares de toneladas de
peles por ano saíam do Brasil para a Europa. Era a época
em que os casacos de pele eram símbolo de status na alta
sociedade européia. Com a valorização das peles, caçar
onça e gatos selvagens no Brasil virou profissão.
– liiii, meu fiu, naquele tempo couro de gato era
dinheiro na mão, e não tinha quantidade. Todo tanto que
a gente trazia vendia no porto de Altamira pra cumpanhia
ingresa. Vendia e recebia na hora. Um gato-maracajá
primeira era 100 contos de réis, um gato-mourisco, 120;
onça-suçuarana, 130; pintada da grande valia 250, e a
preta, 300. Não tinha peixe que dava isso, e naquele tempo
sem lei, vida de garimpo era muito perigosa. Apois prefiro
topar com dez onças na mata do que contar com a sorte
em uma tocaia feita por garimpeiro ladrão.
Segundo ele, na profissão de gateiro o dinheiro era
mais seguro, de modo que muito gateiro morreu lá
naqueles mundos caçando onça sozinho.
– Perdi dois cumpades, um por cobra surucucu e o
outro desorientado. Perdeu no mato e passou quase ano

147
sumido, uns soldados que esticavam um tal “telegra”
(linha de telégrafo) encontraram ele esmolambado
comendo carne de paca crua perto da então vila de
Marabá. O cumpanhero tinha andado muito. Entrou no
Bacajá e só deu conta de sair da selva perto da vila de
Marabá. Os sordado salvaram o hômi, mas ele nunca mais
prestou. Morreu doido num hospital vendo gato virar
fumaça dentro do banheiro e onça esturrar de noite
debaixo das camas. Perdi também um filho, sumiu na
mata, ninguém sabe que fim teve, sabe lá se foi indio
bravo, onça ou cobra. Achamos a canoa, mas dele nem o
rastro. Era sofrido, mas meus tempos de gateiro foi um
tempo de fartura e de muito dinhêro, comprei uma
“Vinchesti" papo amarelo novinha, barco bom e motor
maior.
Ele nos contou ainda que passava meses sozinho
embrenhado na selva na caçada de onças e gatos.
Perguntei que métodos ele usava, e ele disse que matou
onça e gato de tudo que era jeito, com armadilhas
principalmente.
Uma das armadinhas era a arataca de mola. Essa
armadilha funcionava por meio de um mecanismo formado
por uma mola muito forte e mais uma estrutura com
dentes cegos, que se fechava "mordendo” assim que a onça
pisava nela, atraída por alguma isca. Tal armadilha não
podia prender o pé do animal de forma que impedisse a
sua locomoção e nem podia ser de dentes muito afiados,
pois senão a onça presa lutava para se desvencilhar da
armadilha até ter a pata decepada, quando então fugia
ferida. Assim, seu Joselito soldava na armadinha uma
corrente e um gancho de três pontas. A onça vinha na isca

148
de peixe ou jacaré e, ao pisar no buraco raso coberto de
folhas onde ficava a armadilha, desarmava o mecanismo e
ficava com a pata presa nele. Desesperada, a onça saía se
arrastando e se prendendo nas raízes (por conta do tal
gancho), perdia sangue, cansava e não ia longe. Ao
caminhar, deixava trilha de folhas arrastadas e paus
quebrados, fácil de seguir, aí era só chegar com cautela e
empurrar a Winchester .44 na cabeça para não estragar o
couro. Estava feita a caçada.
O defeito da arataca era que ela cortava a pata dos
gatos menores, pois mordia muito alto, estragando e
desvalorizando o pelo. Por isso, seu Jozelino pegava os
gatos mais na arapuca de caibros. Entrava na mata com
machado e facão, cortava madeira pesada, cipó e construía
uma arapuca enorme. Fazia três em um dia sem chuva.
Iscava com isca de peixe, atravessava para outra margem
e, para não perder a noite, subia no muta e passava a
madrugada esturrando onça.
Ele nos contou que certa vez chegou para conferir
uma arapuca grande e ela não estava no lugar, tinha
“caminhado” uns vinte metros. Quando se aproximou da
armadilha ela se ergueu. Dentro havia uma enorme onça
preta que, quando ficava de pé, a pesada armadilha se
erguia a um palmo do chão. Deu uns dez tiros nessa onça
para matá-la, pois a madeira grossa da armadilha
atrapalhava a trajetória da bala e o esturro do gatão
tremendo o chão atrapalhava a pontaria dele.
Dond
Perguntei se ele não usava cães nas suas caçadas,
ele me disse que naquela época cachorro em Altamira era

149
difícil, e que mesmo os bons não duravam muito. A maioria
morria estraçalhado por dente de queixadas, que andavam
em varas gigantescas nos baixões alagáveis das beiras de
rio. Eram comuns varas com mais de quinhentos porcos.
E os cachorros que os queixadas não matavam, as onças
davam fim. Ou era nas brigas de acuação, ou então elas
vinham buscar os cães no acampamento de madrugada.
Segundo o velho, onça é bicha traiçoeira e atrevida, pega
na covardia e adora carne de cachorro.
Além da esturradeira (feita de couro de cotia em
bambu oco), da arataca de ferreiro e da arapuca de
madeira verde, havia uma quarta modalidade que eles
chamavam de arrasto. Consistia em matar um bugio
(guariba), cortar a garganta e os pulsos do animal, amarrar
a ponta de uma corda de uns três metros em seu rabo,
amarrar a outra ponta no cinto do caçador e sair
arrastando aquilo pela selva. Quanto mais longe se
arrastava, maiores eram as chances de se conseguir uma
onça.
Ele nos conta que arrastava aquilo a tarde inteira.
Quando ia escurecendo, escolhia um local mais aberto
para favorecer o tiro, largava o macaco lá no chão,
amarrava duas varas de mutá entre as árvores, subia e
armava a rede por cima da última. Ele disse que não tinha
nesse mundo uma onça que pulasse um arrasto de bugio
sem parar e cheirar antes de seguir a trilha. Mesmo de
barriga cheia ela vinha atrás. Mas volta e meia aconteciam
imprevistos. Antes de escurecer, a onça achava o arrasto
e vinha tomar dele o macaco. Passou apuro várias vezes
com esses imprevistos, mas era rápido e, na época, tinha
vista boa e pontaria firme, de modo que onça nunca

150
colocou a unha nele. Gabava-se de sua saúde, e nos
contava a gargaThadas que, mesmo com 95 anos, ainda
dava conta de esfriar o fogo de uma morena quente nas
noites de lua boa.
Casou-se 3 vezes, foram dois casamentos com
indias Kaiapó e um último com uma india Xipaya de
pernas grossas e longos cabelos negros (todas falecidas).
Com elas ele teve 13 filhos, três deles faleceram. Um
desapareceu caçando onça, o outro foi soterrado no fundo
do rio Xingu dragando areia em garimpo e um terceiro
morreu ainda menino, atacado pela malária. Perguntei a
ele se nunca tinha contraído malária ou qualquer das
febres tropicais. Ele bateu no peito, levantou da rede e nos
mostrou uma cicatriz enorme na altura do estômago.
– Essa foi minha única doença, serviço de um
garimpeiro safado em uma desavença num bordel de
garimpo. Estripulia do tempo que eu era menino assim
como ocêis.
- Corte feio, hein, seu Jozelino!!
- Foi sim e quase me leva, mas sou duro e fiquei
com a minha marca pra mostrar... Já ele não teve jeito de
mostrar a dele.
Falamos-nos por mais uma meia hora e ele nos
contou da vez que teve que matar uma suçuarana de facão
para proteger os meninos. Disse que tinha soltado os cães
perto da aldeia e aguardava no barco pra ver se caía no rio
algum mateiro. Na curva do rio, lá em cima, pulou um
veado que a nado alcançou uma ilha enorme. A cachorrada
veio nadando atrás, e quando ele chegou lá a remo, já

151
escutava a algazarra. Entrou no mato achando que era o
mateiro que os cães tinham derrubado, nem levou arma,
pois o veado já devia estar morto pelos cães, que latiam
acuando no mesmo lugar. Pior que não levar arma foi levar
dois filhos pequenos, de 7 e 9 anos, para ver a cachorrada
segurando o bicho. Quando chegou à acuação, não era um
mateiro, mas sim uma enorme suçuarana acuada no chão.
Assim que a onça viu o caçador, abriu o cerco e veio nele.
Para se defender ele sacou o facão, mas com os meninos
agarrados na perna quase que não dá conta de desferir o
primeiro golpe. Gritou para os meninos, que correram na
direção do barco e, em seguida, com muita ajuda dos cães,
acabou de matar a onça no facão.
Escrito assim e visto a nossos olhos civilizados
parece tarefa improvável, conversa fiada de caçador, mas
saindo da boca de um homem velho e respeitado que trás
no corpo as marcas do tempo e na voz a mansidão da
experiência, torna-se algo extremamente convincente e
impõe respeito. São histórias de um outro mundo, uma
outra época, um outro tempo. Pessoas como seu Jozelino,
que perdeu a conta do número de onças que matou e dos
lugares intocados que desbravou, estão se extinguindo por
completo. Os gateiros são remanescentes de uma época e
de um Brasil totalmente selvagem. O passar dos anos foi
levando um por um. Foi por isso que resolvi escrever e
eternizar um pouco dos ótimos momentos que passamos
com ele. A conversa era para ter sido mais longa, mas aí
chegou o filho mais velho dele, metade índio, metade
negro. Tinha o enorme rio na palma da mão e seria o nosso
piloteiro nos 80 quilômetros de Xingu que planejávamos
descer. Despedimo-nos com a promessa de voltarmos para

152
ouvir mais histórias e caímos no Xingu, cada um com sua
cabeça repleta de sonhos, desejando viver apenas um
suspiro das aventuras vividas por aquela incrível figura
que tivemos a felicidade de conhecer naquela manhã.
A tarde caiu, e assim deixamos para trás as torres
da cidade de Altamira. Eu, sentado na proa da embarcação
com o sol se pondo no horizonte, molhei a mão na água
morna do rio, passei no rosto e, enquanto o vento do tocar
potente do motor 40 me refrescava, respirei fundo. E
misturando a expectativa das grandes caçadas que
estariam por vir com as histórias que havia acabado de
ouvir, viajei longe em minha imaginação. Sensação muito
boa de bem-estar, o resto do mundo simplesmente deixa
de existir, acabam-se os problemas, as contas, as mágoas
e preocupações. E só o que reina é uma paz de espírito
enorme. A noite já caía quando fui trazido à realidade pela
mão amiga do cumpanhero que, por cima do meu ombro,
oferecia-me uma cerveja gelada e um brinde merecido a
mais uma expedição nos rios e matas do Pará.

153
Dia santo

Era um dia de tarde quente... O sol dependurado no


meio do céu espantava nuvem e encompridava o dia,
enquanto à sombra de uma palhoça, esparramado dentro
de uma rede olhando para o teto de palha de buriti, o
caboclo estava agoniado. Até tentava desviar o
pensamento, mas de vez em quando o zóio escapulia e
corria lá para a parede do outro cômodo, onde estavam
dependurados em um prego cravado num esteio de
sucupira-branca o embornal de munição e a velha
espingardinha de carregar pela boca. Aí não tinha jeito,
vinha na lembrança do sertanejo a visão daquele pé de
buraim lá da beira do ribeirão.
O caboclo havia passado por lá na tarde do dia
anterior, e como havia noticiado o cumpadi Tonho, o
danado realmente estava derramando fruta. Embaixo, na
área da sombra formada pela copa da árvore, deu para ver
a furação dos veados na areia branca da beira do rio. E
não era chibéu não, era veado-mateiro. Ali a mata é grande
e larga, acompanha o rio inté muito depois da barra do
riachinho dos Potes, e como é recanto de muita erva,
ninguém solta criação, é matona sossegada.
Para ativar a vontade, o sol quente contava como
seria a noite: lua escura, na passagem de cheia para nova,
noite quente, ar parado, folha seca da estiagem fazendo
palmo no chão... até grilo que pulava se escutava. Aquela
sem dúvida era uma noite boa para subir em espera de
mateiro.

154
Atrapalhando mesmo só tinha a data. Final de
Semana Santa, uma Sexta-Feira da Paixão, dia de se
guardar em casa, treinar preguiça. O dia correu, e na rede
o matuto começou a ficar sem posição. O saquinho de
fumo ia pelo final e ele, já não aguentando de agonia,
resolveu testar a reação da esposa devota. Sentou-se na
rede... e com voz misturada de preguiça, comentou:
- Muié... vô numa ispera.
A mulher pela cozinha, mexendo numas panelas de
fundo preto, nem respondeu. De costas, fingindo
entretimento com a arrumação das vasilhas em uma
prateleirinha de madeira, não deu assunto. Aí o caboclo
insistiu, ensaiando uma justificativa.
- Tem quais semana que só como peixe, tô doido de
vontade de comer um lombo assado e a espera tá boa
dimais... nããããão, i é logo ali na fonte, num estantin tô lá.
Apontou com a cabeça, erguendo a ponta do queixo.
A mulher, ainda de costas, só balançou a cabeça e
murmurou alguma coisa parecida com gemido de mandi
enganchado em anzol. Aquilo era sinal de reprovação, e lá
da rede, o sertanejo preparou os ouvidos. Ele conhecia a
companheira há vinte e nove anos, sabia que vinha prosa
ruim. Não demorou nadinha o abrir da matraca. E ali
quando abre é que nem latido de cachorro amarrado, dura
um dia inteiro de sol quente. Ela ergueu o corpo, olhou
para ele de rabo de olho, apertou o lenço que cobria o
cabelo crespo e começou:
| – Respeita ao menos os santo, hômi! Hoje né dia
disso!!! É dia bento, feito pra guardá em casa, rezar,

155
agradicer a chuva do milho e da mandioca. Num tá venu
qui é pecado? Ocê parece que nasceu premero do que o
mato, quando num tá dento di canoa mexenu com anzol,
tá invorvido com caçada de bicho... será o Binidito?!
E não parou por aí, falou tanto que o caboclo
resolveu. Aproveitando que ela estava de costas,
devagarzinho levantou-se da rede, com um puxão
cuidadoso nos laços desatou as cordas, passou a mão no
embornal, na espingardinha e, na ponta dos pés vazou,
pela portinha da sala. Passou por de trás do paiol, pegou
no jirau a cabacinha de pôr água e o velho facão sem
bainha mesmo. Depois, ajeitando o chapéu desfiado,
pegou o trieiro no rumo do rio. Saiu tão na surdina que
nem os cachorros o acompanharam... já ia longe e ainda
escutava a ladainha da muié falando para o vento lá dentro
da cozinha.
Apertou o passo e a prosa dela foi ficando longe, até
que se misturou com o cantarolar dos passarinhos de
dentro do mato e sumiu de vez. No caminho, passou pela
grota da aguadinha para pegar água fria enquanto
proseava com a própria consciência.
- Deus há de perdoar, ele sabe qui eu num tava
querendo ir, tô indo mermo só pra num ficar, pois se fico
brigo cá muié, aí piora... pois hoje num é dia de mal
querênça... e lá na ispera se entrar bicho só atiro depois
da meia noite, já no Sábado Aleluia.
Chegou ao mato já com o sol baixo, aí olhou o pau,
primeiro para cima, depois para baixo. As frutinhas em
formato de goiabinhas amarelas estavam forrando o
chão... e embaixo estava puído de tanto rastro. Na prainha

156
de areia branca viu um rastro novo, grande e bem
desenhado, pé de mateiro. Aí o sangue ferveu e o
entusiasmo cresceu. Andando em roda achou os montes
de estrume da noite anterior e também os de dois dias
antes
- Virgi Nossa, tá comendo é toda noite!
O buraim era miúdo, estava carregado de penca,
mas miúdo, não servia de armador para rede de quem
tinha planos de passar uma noite inteira. Então o
sertanejo tinha que ficar meio “particular”, como se diz.
Olhou de pareia um ingazeiro bem aforquilhado e com
altura apropriada, aí sem demora foi subindo. Subiu,
armou a rede puída pelos anos de uso e experimentou o
sentar. Depois dependurou a tralha, deu umas goladas na
água fresca, dependurou a cabacinha e se acomodou na
rede para descansar o corpo. A noite chegou depressa,
tempo quente, ar parado... nem curiango piava,
respeitando a data santa.
Sertanejo em geral é cheio de superstição, mas o Zé
era uma exceção, homem de pouca crença e medo
minguado. Aliás, medo mesmo só tinha de cidade, no mato
estava em casa. Sentia-se bem dentro da rede, escutando
os barulhos dos bichos e o murmúrio da corredeira do
grande rio... a tranquilidade e o silêncio da caçada de
espera traziam paz ao coração dele. O escuro foi
pretejando e o caboclo viajando... despreocupado, fintava
lá no manto negro as Três Marias, estrelinhas alinhadas...
e descontraído perguntava a si mesmo mentalmente, na
sua ignorância de matuto:
- Como é que avião desvia de tanta estrela?!

157
Até que lá longe quebrou pau... opa, ói o bicho!!!
Sentou-se na rede com cuidado, levantou a cabeça e botou
assunto. Lá na curva da grota, pisando em cascalho solto,
o mateiro desceu batendo casco. Veio cauteloso, andando
e parando para cheirar. Fez barulho até pegar a areia fofa
da beira do rio... e já cevado na fruteira, entrou sem cisma.
Chegou, parou e fungou, tomando faro para encontrar as
frutas miúdas espalhadas no chão de folhas.
Sem demora a lanterninha do caboclo acendeu lá
em cima. Era um mateiro grande, e foi surpreendido no
limpo. Sob a luz da lanterna, o bicho encolheu o corpo e
olhou para cima, aí o par de olhos se acendeu no facho da
lanterninha de plástico. Sem afobamento o caboclo firmou
o braço, apurou o ponto e, caprichando em lugar matador,
arrastou o dedo.
Foi um tiro tremendo!!!
Em meio à fumaça do tiro, o bicho deu um pulo de
lado e, com a paleta arrepiada, caiu... fincou pé, levantou
torto, correu de três mãos uns quinze metros até que lá na
frente caiu de vez.
Lá em cima do pau o caboclo riu calado, puxou os
beiços e mostrou a falha dos dentes... aquilo era pura
satisfação. Sem intento de pressa, apanhou no embornal
a pólvora e a bucha de taboca caprichosamente tirada na
manhã daquele dia. Depois, em um saquinho de pano
sujo, catou uns grãos de chumbo grosso e foi recarregar a
espingardinha. Socava a bucha de taboca por cima da
pólvora e volta e meia parava para escutar o gungunar do
mateiro caído lá adiante. Era o “veneno" do chumbo
terminando o serviço.

158
Com a arma carregada numa mão e a lanterninha
de plástico na outra ele desceu, foco vermelho, pilha velha.
Caminhou pouco no rumo certo e não demorou a
encontrar o bicho deitado de lado. Carecia de acabar de
matar mais não, com um tiro daquele ele já tinha corrido
“morto”. O animal atirado era um mateirão macho com
duas brilhantes hastes no topo da cabeça, pescoço
prateado e da cara preta, pesado demais para dependurar
de corda sem ajuda de um cumpanhero. Então, com uma
faca pontuda o caboclo fez um talho na barriga do veado
e, por esse talho, dependurou na ponta de um toco
pontiagudo de meia altura o bicho morto. Não queria
facilitar a vida da onça oportunista, que quando pega no
chão suspende e leva sem fazer barulho.
Como ainda estava cedo e o local estava bem pisado
de bicho, o sertanejo achou que poderia entrar outro
mateiro, então subiu para a rede de novo, sentou-se, deu
mais um tapa na cabaça d'água, limpou o suor da testa e
fez um cigarro com muito fumo. Depois dependurou a
espingarda e recostou na rede. Enquanto pitava, em
pensamento tentava afastar a culpa e ensaiava para o
santo uma “justificação” por ter atirado antes de meia
noite. O cigarro apagou e ele colocou os pés para dentro
da rede... de caçada pronta, acabou dormindo.
A madrugada ia alta e serena, o sertanejo
pestanejava um sono leve quando, de repente, num baque
surdo, calaram-se os grilos. Caiu no chão um bicho
pesado. Por conta do susto, quase que o caboclo cai da
rede.

159
– Eita que deve de ser a onça querendo facilidade,
bicha dus diabo, Deus dá o talento pra ela pega o dela e
ela vem pega o meu que já tá pegado. Pois vai levá chumbo
grosso, tô mermo querenu um couro.
Quando de lanterna na mão o caboclo mirava de
orelha para focar o bicho, ele de la veio andando. Vinha
devagar, mas produzia um pisar seco que nem pisada de
veado, não parecia a mão macia da onça. Veio no rumo e
parou quase embaixo da rede. Sem demora o sertanejo
engatilhou o primitivo gatilho da sua bate-bucha e
acendeu a lanterna. Aí os olhos do bicho brilharam que
nem dois braseiros... pareceu que eles já encaravam o
caçador lá em cima mesmo antes do acender da luz.
Eita mateiro graúdo! Era mesmo que ver o primeiro.
Quietinho, o bicho continuava a encarar o caçador lá no
alto da árvore, parecendo esperar o chumbo. E o caboclo,
entendendo o convite da oportunidade, não perdeu tempo.
Marcou ponto entre os olhos e “rastou o burraio”. A carga
forte de uma casca e meia de .44-40 ecoou na madrugada
silenciosa daquela beira de Tocantins por longos
segundos. A fumaça da pólvora preta misturou-se com a
luz fraca da lanterna e atrasou as vistas do sertanejo, mas
nem tinha que se afobar não, a distância era curta e o
mato limpo... não tinha como errar. Com o impacto do
cheio da carga embolada na cara, esse nem pulou, só
dobrou as pernas e a embarrigou cobrindo o rastro.
O caçador, já satisfeito, nem carregou mais a
bucheira, pendurou para esfriar. Ali tinha carne para mais
de mês e mais do que ele dava conta de carregar em uma
viagem só na manhã do dia seguinte. Por isso, se entrasse

160
mais bicho ele nem ia iluminar. Preocupado com a lida de
transporte da carne que iria chegar com o sol, ferrou em
sono gostoso e sonhou com cheiro de lombo assado.
O sol ainda estava escondido, mas há tempos o dia
estava claro. A passarinhada acordava ainda em alvoroço,
cantando para tirar aleluia. O caboclo sentou-se na rede,
espreguiçou abrindo os braços, coçou a cabeleira
esgafinhada e depois, cheio de orgulho, olhou para o chão
e tomou um susto. Dos dois veados, só tinha um tombado.
Aí ele mais que depressa desceu xingando a onça de
“ladrona”, sem entender como pôde dormir tão pesado.
Parou em pé estudando a situação, tentando refazer
o acontecido pelas marcas deixadas no chão. O veado que
restou foi o que estava embaixo da rede, o segundo que
matou, como bem mostrava o tiro na cara. O estranho era
um trilho de sangue nas folhas que vinha lá do toco seco
e pontiagudo onde ele tinha dependurado o primeiro.
Assustado, pegou o veado e abriu as pernas, e tava lá na
virilha o corte feito pela ponta da faca por onde pendurou
o bicho no galho seco. Tinha também o primeiro tiro dado
na paleta do outro lado. Três ferimentos no mesmo bicho!!!
- É o mermo!! Sinhora Nossa, o bicho morreu duas
veiz!! Vô leva só pra mostrá, pois só di contar não vão me
acreditá.
Piou o bicho, jogou na cacunda e aprumou no rumo
de casa. Chegou suado e todo torto por causa de tanto
peso. Foi chegando e jogou o veado no chão lá mesmo no
terreiro de terra batida do fundo do ranchinho de palha,
depois ajeitou o chapéu e, com os olhos fixos no bicho,

161
nem entrou para beber água. Colocou as mãos espalmadas
segurando os quadris e foi logo gritando:
- Muiééé, aô ô muié!!!
Agarrada na barra da saia, caminhado comprido e
trazendo na mão um sabão de barra, veio afobada lá do
rego a muié.
- U qui é, hômi!! Tá morrenu?
- Não... pior.
De platéia tinha só o afilhado, dois cachorros
magros e calombentos e a muié, aí ele tomou o fôlego e
devagar contou o acontecido, mostrando como prova os
três ferimentos do bicho.
- Eu num falei, hômi, que era data santa! Issu é o
puro castigo di Deus!!!
Aí a ladainha foi comprida, cheia de juras e
desconjuras que sempre lembravam o calado sertanejo dos
avisos que a muié tinha lhe dado na tarde do dia anterior,
e sempre acabando em um:
- Eu te falei... mais ôce num mi iscuta!
Terminava a prosa só para poder começar de novo.
Até que, com a orelha quente e a paciência pelo fim, o
caboclo abriu a boca:
- Bão, já tá morto e joga fora é que num vô, me ajuda
a pindurá, minino.

162
– Ta pirtubado, hômi?! Idéia ruim essa sua, onde já
viu cumê coisa mardiçuada, é cumê i morrê... eu qui num
como!
- Mió ainda, assim sobra mais pá nóis, né,
Tuniquim ?
- Vô quere não, padin, bibi leite cum farinha... tô
fastiado.
- Ô povo besta! Carne é carne, gente! Cendi o fogo,
Marcilina, vô armoçá o figo.
Faca no couro, agilidade de caçador antigo. Num
instante ele tirou a “camisa” do bicho. E foi só tirar o couro
que a carne começou a feder, uma carne preta, preguenta
e de cheiro ruim. E a muié, de longe, volta e meia chegava,
dava uma espiada e dizia:
- Num falei, é carne mardiçuada!
E ele:
- É, tá isquisita mermo... arrisurvi, vô cumê na
janta, passa de pouco sol, fazê frita.
Debaixo de cheiro ruim e para livrar vergonha, o
caboclo retalhou e salgou as mantas de carne dos dois
pernis. Aí esticou num cordão e colocou a carne ao sol.
Sentou de longe num tamborete e ficou olhando. Foi só por
ao sol que a carne começou a pingar, pingar... e não parava
mais. Pingou o dia todo feito água engoteirada, de jeito que
de tardinha só ficou o varal vazio e as manchas no chão.

163
- Num falei, nem os cachorro tomaru gosto, isso é
coisa mardita, disquerênça de santo, é o puro castigo,
hômi!
Aí, sentado no tamborete, com a mão no queixo e o
zóio vidrado no varal vazio, o caboclo respondeu:
- Ééééé... pode.
Depois disso ele panhô mais respeito e deu até de
ensaiá uns terço com a muié. Ano e pouco depois do
acontecido a história correu o sertão do Tocantins, e foi
nessa corrida que ela chegou aos meus ouvidos. Chegou
não de quem ouviu contar, mas pela boca do próprio
vivente pecador. Contou olhando aqui nos meus olhos, e
já pertinho do final a mulher dele saiu lá da cozinha do
ranchinho e, da portinhola da salinha, com uma panela e
uma concha na mão, disse:
- Mas farta de avisação é qui num foi, meu fio, eu
bem qui falei... num vai!! Hoji é dia Santo!

164
Gritando onça

Era de tardinha e o caboclo, à procura da mistura


para o trivial arroz com feijão, caminhava calado na beira
de um grotão seco de pé de serra. Caçava de ouvido,
negaceando jaó na folha seca, e volta e meia corria o zóio
na copa das árvores mais altas, doido para um jacu
facilitar a velhacaria.
la entretido, quando lá numa altura correu um
bicho. Não chegou a ver o que era, mas o arranque pareceu
coisa de porco caititu. Livrando o mato trançado da beira
da grota, cortou volta por fora para atalhar a corrida. Fez
o corte lá mais para baixo, entrou no leito seco da grota e
ficou esperando... mas passou eito de hora e não apareceu
vestígio de nenhum vivente. Cansado de esperar, o
sertanejo subiu caminhando devagar por dentro da grota,
até que achou lá num barrancão da pedreira o limpo da
entrada de um buraco.
Pela folhada na boca e o rastador do rabo, viu logo
que era tatu-galinha. O chão seco e de pedra dura da beira
da grota não permitia cavar, e água naquele miolo de
agosto só tinha láááá na beira do rio. O jeito era fazer uma
espera ali, na boca do buraco, até o bicho sair. Podia
demorar e varar madrugada, mas também podia ser
espera curta, pois num calorão daquele bicho não perderia
noite enfurnado em miolo de pedreira passando sede.
Como tempo era o que ele tinha, a vontade de comer uma
boa farofa de tatu falou alto. Já que no embornal tinha
fumo, palha, a lanterna e mais um cartucho de chumbo
fino, o sertanejo resolveu fazer a espera.

165
Tampou a boca do buraco com dois torrões de terra
dura e entre eles enfiou uma varinha verde, deixando de
fora mais da metade dela. Assim, quando o tatu viesse
para sair, a pontinha da vara, que estava de fora da toca,
mexeria e preveniria a atenção do caboclo que, de cão
engatilhado, faria fogo na cabeça do bicho logo que ele
apontasse. Ajeitou a varinha verde, depois varreu ali perto
da boca do buraco um pedaço de chão com vassoura de
palha de coqueirinho e, cuidando cobra, desvirou um toco
velho para fazer banco. Em seguida, recostou as costas
num pé de angico para proteger traição de onça e depois
se sentou. Fez um paieiro de muito fumo para espantar os
musquitin lambe-zoio e deixou o tempo passar.
A noite estava escura, era passagem de lua nova, o
mato estava quieto e o caboclo lá... de olho na ponta da
varinha, vigiando a boca do buraco do verdadeiro. Lá pelas
tantas, com a vontade de pitar voltando, fuçava no
embornal procurando a binga quando estralou um galho
seco lá mais para baixo, no vão da grota funda. Estralou,
firmou o passo e veio caminhando macio grota acima... era
pisado de veado. Mais que depressa o sertanejo engatilhou
a espingarda, enfiou a cara na coronha e mesmo não
botando muita fé no carrego de chumbo fino que tinha feito
para passarinhar, arregalou os olhos e firmou o ponto.
Deixou para iluminar já bem encostadinho... e quase cai
do toco quando no clik da lanterna se acenderam ali a
poucos metros os dois braseiros brilhantes da cara de um
enorme veado-mateiro. Com a luz na cara o bicho quis
voltar, virou a cabeça, deu a táboa do pescoço e ia saindo
quando a velha Rossi calibre .28 urrou no grotão... O tiro
ecoou por cinco léguas de distância.

166
Com o cheio da carga no pé do pescoço, o bicho
sentou e depois tombou de lado. Caiu, mas caiu vivo, e
num rebuliço firmou pé para levantar. O sertanejo, vendo
que o bicho não morria e com do de gastar o último
cartucho que guardava por segurança, recostou a
espingarda no pau que lhe servia de apoio para as costas
e caiu de unha em cima do bicho, numa briga doida de
pega não pega. As a ladeira da grota, obedecendo à
gravidade, fez os dois rolarem embolados grota abaixo... e
brigando foram descendo ladeira e deixando para trás
primeiro a lanterna, que caiu e apagou, depois a faca com
bainha que estava dentro do embornal. Este, por sua vez,
quebrou a correia e ficou enrolado numa raiz.
Quando o caboclo conseguiu parar no vão da grota
e segurar o bicho no chão, o veado novamente buscou
forças e tentou nova reação, mas no terreno plano o
sertanejo levava vantagem. Com uma das mãos agarrou
na orelha e depois firmou forte o seu joelho na virilha do
bicho. A briga teve uma trégua... cansado e todo lanhado
de espinho, pé e chifre, o caboclo tateava o chão à procura
de um cacete ou de uma pedra. Achou por sorte um coco-
palmeira e foi desse que fez arma. Segurou na palma da
mão o duro coco e golpeou com força a testa do veado. A
pancada foi tão forte que o bicho berrou, e foi por causa
desse berro que veio lá de dentro do mato escuro um outro
bicho correndo. Veio de trote mirando a peleja e ia bater
em cima, mas já ali encostando foi pressentido pelo ouvido
afiado do sertanejo, que largou o veado no chão, deu um
pulo para cima e um grito mais feio do mundo, desse que
a gente da quando pressente a chegada da morte. Sem

167
lanterna, espingarda, faca ou facão, a arma que sobrou foi
o grito. E gritou tanto que ficou rouco.
Depois do escândalo, não mais se ouviu buia, só o
fungado baixo do veado acabando de morrer e o cantarolar
dos grilos nas folhas. Para garantir a segurança, o
sertanejo ainda catou lá no chão uma meia dúzia de cocos
e os atirou no escuro grota abaixo, bem na direção de onde
vinha a galope o tal quem é. Não ouvindo mais barulho e
com a cor do beiço voltando ao normal, largou lá o veado
semimorto e voltou de quatro pés ladeira acima, tateando
o chão à procura do embornal e da lanterna.
Andou de gatão quase uma meia hora, e se não
fosse uns vaga-lumes que vadiavam baixo por dentro do
mato, só teria achado as suas tralhas no romper do dia.
Passou o resto da noite comprida sentado na varrida da
boca do buraco... e de tão assombrado que estava ainda
perdeu o tatu, que quase o matou de susto quando saiu
ligeiro soprando terra e folha lá pelas tantas da
madrugada. Com o dia claro e a coragem renovada, o
caboclo desceu lá embaixo da grota para buscar o mateiro
e, aproveitando a descida, foi ver o rastro para confirmar
o autor da investida. E lá estava no chão de areia fina o
limpo da freada que fez a onça nas folhas secas, duas
marcas de meio metro de comprimento e quase palmo de
largura, mãozona de onça preta, bicha esfomeada que
quase lhe toma a vida e o mateiro que tinha sido presente
da sorte.
- Onça?! Besta é quem facilita com onça!

168
Fobré otomática

Já era pelo meio do ano e até então o véio Bento não


tinha provado carne de caititu. Depois que um cachaço
valente sangrou o Barão, seu cachorro mestre, nunca mais
teve sorte na caçada dos porcos. Nas três vezes que topou
com eles as coisas desandaram.
A primeira foi lá na passagem do grotão, lugar de
mato seco. Chegou negaceando, de vento na cara, mas
porco é bicho que escuta longe... perceberam o negaceio e
alarmaram uns aos outros, não dando ao véio
oportunidade de tiro. Na segunda vez, topou com eles de
lamaceio lá na beira da lagoa seca. O mato lá é ralinho,
nem moita tem. Mesmo assim o véio relou o bucho no chão
até onde deu. Não podendo chegar mais, atirou de longe.
Hunrum... só serviu pra atiçar velhacaria... sumiram na
maravaia. O terceiro e último encontro foi lá na rocinha de
mandioca. Fez espera de dois dias, e no segundo eles
entraram debaixo. O problema foi que antes de escurecer
caiu um pé d'água miserável, segundo ele foi a tal “chuva
do caju”. Aí não teve jeito, a danada da espingarda
bucheira molhou a carga e negou fogo.
Cansado de levar capote de porco, o véio recebeu a
notícia de que um conhecido pescador da região estava
vendendo uma fobré nova. Uma arma sem igual, segundo
os que a viram. Assim, na madrugadinha do dia seguinte,
riscou o chão lá pro rumo do Campo Alegre e encontrou o

169
hômi vendendo peixe no porto do Tocantins. Prosearam
uma conversa bem dita e deu negócio, sendo que era dessa
viagem que ele vinha satisfeito e cheio de planos.
Distraído, vinha ajeitando na palma da mão fumo
suficiente pra um paieiro enquanto consultava a
consciência com medo de ter feito negócio ruim ao dar na
carabina .22 uma novilha de ano e meio, um burro das
mãos tortas e uma quarta de arroz sujo. Bem, pra ele havia
sido negócio bão, pois o burro só servia pra buscar água
na grota e arroz a roça tinha dado de sobra naquele ano...
falta mesmo só ia fazer a novilha. Mas ia valer a pena, pois
daquela fobré ainda não tinha aparecido lá por aqueles
sertões. Era levinha, toda preta e tinha uma coronha de
plástico que acompanhava até quase acabar o cano. Nela
punha bala era num furo que tinha no fundo da coronha.
Lá dentro cabiam pra mais de 12 balas e era "otomática",
ou seja, manobra só precisava dar na primeira munição,
depois era só chamar o dedo no pinguelo que ela ia
mandando chumbo pra frente e cuspindo casca pra fora.
Realmente, dessa o povo lá do Bom Jardim não conhecia...
ia ser um espanto só quando cumpade Henrique visse
aquela máquina!
Já de sol pendendo ia o sertanejo atravessando lá
na passagem da grota do palmital quando de longe sentiu
o cheiro de porco caititu. Tirou do ombro a .22, jogou o
chapéu pras costas e desceu a ladeirinha da grota de
negaceio. Na beira da grota a água ainda estava suja, e no
chão de barro mole via-se a furação de rastros frescos.
Estavam descendo da mata de palmito lá do vão,
certamente à procura de roca pra dar prejuízo. Passaram
não tinha muito tempo. Como o campo fora da beira da

170
grota era limpo e o mato ali era faixa estreita, por
experiência o sertanejo sabia que de dia os porcos
desceriam acompanhando o mato. Como a grota era de
muita curva, ele calculou que se corresse por fora e em
linha reta, daria pra ataiar a linha deles antes que
cruzassem a rodagem (estrada) e sumissem no mato
grosso da beira do rio.
E assim fez. Abandonando o mato da beira da grota,
abriu na carreira cortando volta comprida pra dar o corte.
Lá na frente esbarrou, devagarzinho entrou no mato e
tirou rastro. Ainda não haviam passado, mas resolveu não
ficar ali porque o lugar não favorecia emboscada. Aí ele
desceu mais uns quinhentos metros até que o mato abriu
distância e claridade. Trepou no galho enforquilhado de
um pau-d'óleo e tentou controlar o fôlego, pois não queria
estar afobado pela canseira quando os porcos chegassem.
Deus estava ajudando, o vento estava paradinho.
Passou pouco e só então, quando experimentava na cara
a mira da carabina, é que se lembrou que não tinha
colocado bala na fobré. Mais que de pressa tafuiou a mão
no embornal e foi zunhando o fundo procurando as
balinhas miúdas. Tinha só onze, eram bem antigas e
estavam com a cabeça suja pelo pó do fundo do embornal.
Desajeitado e com pressa no carregamento, ainda
deixou cair pelo meio dos dedos duas delas, que sumiram
perdidas entre as folhas que o início da seca derrubava no
chão. Espragueijando cochichado nem perdeu tempo em
descer e procurar, pois a qualquer momento a linha de
porcos ia brotar bem ali na sua frente. Colocou as balas,
empurrou e rodou travando a vareta, depois deu um golpe

171
seco no ferrolho e puxou só um tiquim a alavanca pra ver
se a bala havia mesmo entrado na câmara, bem do jeito
que tinha lhe ensinado o Guedin, o antigo dono da arma.
Com a mira não ia ter problemas, na ocasião da compra
deu um tiro pra experimentar e quebrou longe uma fruta
seca de tingui.
O tempo foi passando e nada dos porcos... já com a
perna dormente, o sertanejo começava a desconfiar que a
porcada houvesse estacionado em algum barreiro ou,
contrariando o costume, tivesse deixado a segurança do
mato e tomado outro rumo. Ia formando ideia de descer e
ir subindo devagar por dentro do mato quando escutou lá
adiante o estralo de pau quebrando. Vinha longe, mas era
porco.
Firmou o corpo, tirou o suor da testa com as costas
da mão, correu o polegar na travinha que ficava na nuca
da .22 e ficou no jeito. Estava de plano deixar passar os
que vinham na frente, pois quando bala comesse não tinha
perigo de a linha voltar pra trás. Escutava o gungunar da
conversa dos caititus, mas com o olho vidrado lá na ladeira
da boca da grota, não via nada. Passou pouco e viu cruzar
um vulto escuro, depois outro... não iam passar bem como
ele queria e sim um tanto à direita. Pelo barulho a linha
era grande, coisa de uns quinze ou vinte porcos.
Os primeiros passaram sem tiro, mas não por
escolha dele. De três só viu de relance o lombo de um
maior. Preocupou-se e, com medo de ficar sem nenhum,
preparou pra fazer fogo no primeiro que The desse alvo.
Com as vistas firmes lá onde passaram os primeiros, nem

172
percebeu os outros que saíram em boa posição. Quando
deu por si, já vinham quase embaixo.
Eram dois porcos médios e uma porca prenha.
Cocou levemente a garganta imitando porco e eles
pararam pra escutar. Aproveitando a pausa, o véio visou a
cabeça de um dos médios e a .22 estralou. O tiro entrou
um tanto adiantado, um pouquinho à frente do canto do
olho e de cima pra baixo. O porco deu um pulo e, rodando
no mesmo lugar, começou uma gritaria. Em segundos o
mato criou vida, pois imediatamente dois outros vieram
encima desse ferido e deram nele de dente. Na bagunça da
briga o véio também furou esses dois. Um atrás da orelha,
que caiu morto, e o outro duas vezes pelos meios do corpo,
que fugiu furado na direção da estrada de rodagem.
Ficaram no chão o machucado de bala e dente e o que caiu
fulminado.
Os que vieram a seguir passaram na carreira.
Gastou nesses as seis balas restantes tendo a nítida
impressão de ter atingido bem dois deles.
Depois que acabaram as balas, ainda passou uma
trinca de retardatários. Um deles topou com o
companheiro morto no chão e ainda teve o descaramento
de parar e dar uma arrepiada. Seu Bento conta que nele
fez mira e depois deu um sonoro tiro com a boca:
- PÁÁÁÁÁÁ!!!
O bicho arrancou com as carepas, levantando folha
na direção que tinha tomado o resto do bando. Satisfeito,
o caçador desceu. Dentro do mato era quase de noite, e de
facão ele acabou de matar o primeiro que havia alvejado.

173
Depois desceu a grota e lá estava o que feriu com dois tiros.
Com auxílio da lanterna, encontrou outro mais embaixo.
Tinha um furo bem atrás da paleta, bala essa que traçou
no meio o coração. Não se sabe como ainda correu tanto.
Quatro era mais carga que ele conseguiria levar, o
sol já tinha entrado e por isso o caçador resolveu voltar lá
pro ponto da espera. Piou os quatro porcos em duas
duplas e saiu com eles pra fora do mato. Em duas viagens
escondeu o resultado da caçada lá no pé de um pau-terra
que ficava numa ilhota de mato, bem no meio de uma
vereda. Fez plano de vir com os meninos e um burro logo
de manhã buscar a carne da semana. No caminho, pra
completar a chegada, foi pensando no tanto que foi bom
negócio catirar aquela frobé otomática, pois de bucheira
nunca tinha conseguido matar mais de um porco, e pra
isso o tiro tinha que ser de queima-bucha. Já com a fobré
não tinha distância. Agora nunca mais ia lhe faltar carne.
Voltou de manhã, saindo ainda escuro e com a
ajuda necessária, mas antes de ir aos porcos foi lá no
ponto da emboscada procurar as duas balas que tinhas
perdido. Com a claridade do início do dia, foi soprando
folha e não tardou a encontrá-las. De lá foi até onde tinha
deixado os porcos. Limpou e encangou os bichos, depois
jogou por cima do arreio de um burro cismado. Na volta
ainda veio de cara amarrada, pois de noite um mizerávi de
um guará tinha comido a banda de um dos catetos.

174
Onça na zagaia

Quando o conhecemos ele já carregava no rosto as


implacáveis marcas do passar do tempo, tinha pouco
cabelo na cabeça e um bigodão branco cujas pontas
desciam lá pelas beiradas do queixo. Era um homem
simples e de pouca prosa, o nome de batismo ninguém
sabia, atendia pelo apelido de seu Pexin. Tinha passado
misterioso. O povo lá da beira do rio Piquiri contava que
ele havia se isolado ali naquelas brenhas de pantanal por
causa de problemas com a justiça dos homens, mas nós
nunca nos importamos com isso, não... para nós o
importante era que seu Pexin conhecia de pescarias como
ninguém, tinha o mapa do generoso Piquiri na cabeça,
conhecia os melhores locais, os meThores dias e as
melhores iscas. Era piloteiro habilidoso e limpava um pacu
de dois quilos em menos de meio minuto, nunca vi
tamanha prática.
Na sua juventude, seu Pexin caçou muita onça, era
zagaieiro habilidoso e de muita coragem. Vinha gente de
longe buscá-lo na cidade de Sonora para caçadas naqueles
rincões mato-grossenses. Viveu disso por muitos anos, até
que um dia o "caldo entornou". Numa peleja de morte com
uma onça valente, sentiu no ombro o toque frio e mão
magra da morte. Dente e unha de onça, ninguém até hoje
sabe contar como ele escapou... escapou, mas carregou no
couro pelo resto da vida as lembranças daquela caçada. E
foi bem assim que aconteceu:
À noite tinha caído chuvinha rala, e o barro fresco
da beira do capão facilitou bastante o reconhecimento do

175
rastro fresco do macharrão. O grande felino havia
derrubado e bebido o sangue de uma novilha nelore de ano
e meio na beira de uma vereda um dia antes.
Depois de rápida troca de idéias, os caçadores
abriram a trela da cachorrada e foi o prazo de os cães
tomarem vento para o Barão, que era o cão mestre, ganir
fino lá dentro do capão de mato sujo. Coringa, outro dos
cachorros da matilha, reforçou acudindo com três latidos
breves e a coisa tomou corpo. Levantaram um bicho e
firmaram a corrida. Pela experiência e o costume com os
cães, o compadre do seu Pexin, do qual não me recordo o
nome, gritava eufórico avisando que era “da pintada”...
pelo rastro, dizia ainda que era macho, e enquanto corria,
prevenia os companheiros para não facilitarem porque o
bicho era valente e muito grande, pois corria pouco e,
quando o mato fechava, parava para topar de frente e
abalroar a cachorrada.
Os práticos do pantanal diferenciam a onça fêmea
do macho porque na fêmea as mãos (patas dianteiras) são
do mesmo tamanho que os pés (patas traseiras); já nos
machos, os rastros das mãos são proporcionalmente
maiores que os dos pés. O tamanho do animal os
pantaneiros medem pelo comprimento da passada, não
pelo tamanho das mãos.
Como já previam, a corrida foi curta, o bicho valente
acuou no limpo da passagem dum capão para o outro. Seu
Pexin contava que fora um dos primeiros a chegar ao local
da acuação. Lembrava-se com detalhes da incrível cena:
era um limpão que beirava uma comprida erosão causada
pela chuva. Acuada no chão, lá estava a onça, encostada

176
em um tronco tombado de sucupira-roxa que lhe guardava
as costas. Estava com as orelhas murchas e coladas à
cabeça, a mão direita firmemente apoiada no solo e a
esquerda levemente dobrada pairando no ar, pronta para
o golpe mortal. Apesar da barulheira de latidos e da
constante ameaça de ataque dos cães, a onça aparentava
uma ameaçadora tranquilidade. Conhecedora da sua
força, aguardava imóvel e com os olhos apertados,
vigiando de rabo de olho a ousadia dos cães. Era um
macho adulto muito grande e de mocotós colossos. Parecia
não se incomodar com a gravidade da situação presente...
ou era preguiçoso ou valente demais para desistir da
corrida e acuar no chão de campo tão limpo.
Chegaram os homens e prudentemente
conservaram a segurança da distância. Entre eles e a
onça, a cachorrada desenhou um semicírculo... uns latiam
e outros ganiam, mas nunca permaneciam parados em um
só lugar nem se aproximavam muito da onça, cada qual
esperando a coragem do outro. De longe se ouviam os
latidos e os ganidos de excitação da cachorrada e,
ressoando entre eles, em uma nota bem mais grave, vinha
um rosnado surdo de gelar o sangue de qualquer vivente
neste mundo.
|_ A situação ficava cada vez mais perigosa... apesar
de o campo ser aberto, o que favorecia o tiro, os cães
estavam ficando impacientes e a onça, desinquieta. O que
atrasava o fim da caçada era a moleza do atirador, que na
intenção de cortar volta para ser o primeiro a atender ao
apelo dos cães, acabou perdido dentro de um grotão de
barranco alto, e com isso dobrou a distância para chegar
ao local da acuação.

177
Esse atirador era um seu “dotô devogado” lá de
Cuiabá. Segundo seu Pexin, o tal tinha fama de bom
atirador, mas era iniciante em caçada de onça. Trazia nas
mãos uma brilhosa carabina Winchester em calibre
.44.40. Além do atrasado atirador, compunham a comitiva
o seu Pexin como zagaieriro, um compadre que apesar de
também ser experiente estava responsável apenas pela
lida com a cachorrada, um peão da fazenda conhecedor
das invernadas e um rapazote de uns 13 anos que ficou
cuidando da tropa amarrada lá num colchete da vazante.
As armas de fazer fogo nessa caçada eram apenas duas: A
brilhosa carabina .44 do "seu dotô” e um velho “ximiti” .38
de cano longo do compadre do seu Pexin.
Depois de penosa espera, eis que finalmente surge
o homem da carabina a quem estava reservado o privilégio
do tiro. Chegou ofegante, rasgado de espinho e banhado
de suor. Afobado, procurava de pescoço esticado a onça no
meio da acuação lá na frente. Estava tão excitado que nem
escutava as recomendações do cachorreiro, chefe da
caçada.
Depois de breve combinação e vendo que a qualquer
momento a onça romperia o cerco, decidiram-se pelo tiro.
Então, escoltado pelo seu Pexin, que vinha de zagaia em
riste, iniciaram a aproximação... 20, 15... e finalmente
chegaram a 10 metros da onça. Apesar da insistência do
seu Pexin, o homem assustado e trêmulo não mais quis se
aproximar. Estacou ali que nem burro cismado e não
rompia mais. Em seguida, levou a arma ao ombro, armou
o cão e deu início a uma trêmula pontaria.

178
Com o apontar da arma e os gritos do dono da
matilha, a cachorrada treinada, adivinhando o tiro,
apertou a acuação. Quando a coisa ferveu, a fera se
levantou e tentou recuar mais, andou de costas uns dois
passos até que esbarrou no troco da sucupira... olhou de
banda e, mais acuada do que nunca, mostrou a dentaria
e soltou um arroto monstro.
O caçador, que já estava tremendo e muito ofegante,
bambeou ainda mais. Agora, no trêmulo cano da carabina
parece que caminhava um papagaio... e assim o tiro não
saía. Orientado pelo preocupado dono dos cães, esperava
uma brecha para fazer fogo... e aí a coisa esquentou.
Quando tudo parecia que não ia se resolver, a onça, em
um movimento elástico, deu meio que de lado um salto
sobre o tronco tombado da sucupira, e quando bateu em
pé lá em cima a .44 falou alto.
Acusando o impacto, a onça deu um espetacular
salto para cima, contorceu o corpo em pleno ar e
desapareceu do outro lado daquele grosso tronco que
havia sido derrubado pela erosão. Os cães mais
experientes, que já se dirigiam para o lado de lá do tronco,
atiraram-se imediatamente sobre a onça baleada. E ali
dentro de umas moitas ralas de capim-colchão iniciou-se
uma terrível luta, era a vantagem numérica contra a raiva,
a agilidade e a força bruta. Ganidos finos de dor e rosnados
potentes de ódio davam a idéia de quem levava vantagem.
Mas naquele momento ninguém sabia ao certo o que
acontecia do outro lado.
Seu Pexin conta que quando conseguiu voltear a
enorme raizada do tronco tombado, viu a onça deitada de

179
barriga para cima, em uma luta feroz com os poucos cães
que ainda restavam. Preparou o golpe de zagaia para
prendê-la ao chão, mas não pôde completar o movimento
porque o caçador afobadamente tomou-lhe a frente e
disparou à queima-roupa o seu segundo tiro. Disparou
sem mirar, no meio do “bolo”, e por isso o tiro atingiu o
pescoço do cão mestre, o melhor deles. Quando o pipoco
desse segundo tiro ecoou, a onça rompeu caminho à tapa
e veio na fumaça. O ataque da onça foi tão rápido que não
houve tempo para que fosse manobrada a alavanca do
rifle, e foi nesse momento que o zagaieiro fez valer o seu
nome. Mesmo atrapalhado pelo estático atirador, Seu
Pexin conseguiu com a ponta da zagaia atingir o quarto
traseiro e desviar o ataque da fera.
Ao ser golpeada, a onça mudou o motivo do ataque.
Com a agilidade que só pertence a essa nação de bicho,
caiu em pé e armou pulo na direção do zagaieiro. O “seu
dotô” a essas alturas já não se lembrava mais de como era
a manobra da carabina e quase desmontou o ferrolho da
Winchester tentando colocar munição na câmara. Por fim,
jogou a .44 no chão e, em meio à invocação de uma dúzia
de santos, correu de costas pulando moita até que rolou
barranco abaixo dentro da erosão.
A onça, de pé novamente, aproximava-se de cabeça
baixa, sangue na boca, cotovelos colados ao chão e salto
armado. Dos sete cães, apenas dois ainda estavam de pé:
três haviam tombado por unha e dente, o quarto
debandado com uma orelha faltando, o mestre prostrado
por desastroso disparo de carabina e os dois restantes só
ainda estavam ilesos porque eram muito ariscos e latiam
de longe contra o avanço da fera. A carabina caída no chão

180
refletia na sua báscula brilhante os raios do sol, mas o seu
dono, o "dotô devogado”, não mais podia ser encontrado
com uma olhada rápida.
O compadre do seu Pexin, dono da cachorrada
estilhaçada pelo chão, estava tão impressionado com a
violência e ferocidade da luta que perdeu a ação... e em vez
de andar para frente, caminhava de banda, afastando-se
da peleja com a mão trêmula sobre o cabo de madrepérola
do “ximite” ainda no coldre. Do peão que assistia tudo de
longe só se via a fralda branca da camisa aberta e esticada
pelo vento, tão grande era o embalo que ele ia no rumo que
tinham amarrado os cavalos.
Não tinha jeito, aquela era a hora da verdade... era
o zagaieiro, a onça e entre eles apenas muita coragem e
uma haste de pau-ferro de um metro e noventa com uma
ponta de aço encastoada.
Fitaram-se por alguns instantes, até que a onça
tomou a iniciativa do ataque. Como uma flecha, partiu
para cima do zagueiro, que firmou o cabo da zagaia no
chão e esperou o caminhar em pé da onça. Só que isso não
aconteceu, essa não veio em pé como costumam vir os
gatos quando atacam. Seu Pexin contou-nos que nunca
houvera visto uma onça atacar daquela forma. Ela veio
rasteira, querendo abraçar a cintura... e por isso a
estocada da zagaia foi curta, mais defendendo do que
atacando.
Com um tapa a onça desviou o golpe, enterrando a
ponta do ferro no chão, e com agilidade acrobática “subiu”
pelo cabo da zagaia e saltou sobre o corpo do homem,
cravando-lhe profundamente as garras da pata traseira

181
nas coxas, enquanto as dianteiras procuraram o pescoço.
Devido ao peso e à força do gato, imediatamente ambos
foram ao chão.
Seu Pexin conta que gritou muito e achou que ia
morrer... por várias vezes a pintada tentou abocanhar sua
cabeça, mas ela era grande e os dentes escorregavam pelo
crânio, deixando apenas alguns riscos brancos no couro
cabeludo. Para se defender ele tentava desesperadamente
empurrar o peito da onça para longe... e foi nesse momento
que viu o “ximite” de cano longo entrando quase que rente
à sua testa, e em seguida escutou dois pipocos de mão
quente. Daí nada mais viu ou ouviu... acordou muitos
minutos depois de dor devido aos sacolejos do jipe nos
buracos da estrada que levava à cidade de Sonora.
- Os dois tiros do compadre atingiram à queima-
roupa o pescoço da onça, que largou o zagaiero e fugiu
levando a morte consigo. Ainda percorreu uns cinquenta
metros com balas levantando poeira a sua volta. Foi
seguida bem de perto pelos dois barulhentos cães, os
únicos que ainda estavam de pé. Em seguida, penetrou em
um capão de mato sujo e ali padeceu devido aos
ferimentos.
Saldo da caçada: Um homem retalhado e quase
morto, quatro cães mortos, um sem orelha, um
cachorreiro sem cachorro e disposto a largar da profissão,
um peão assombrado com onça para o resto da vida, um
"dotô devogado” todo breado de merda e um menino
traumatizado com o tanto de sangue que viu.
As cicatrizes dessa batalha eu vi com os meus
próprios olhos, difícil acreditar que tenha o velho resistido

182
à gravidade dos ferimentos. Passou ruim muitos meses,
perdeu grande parte do couro cabeludo e a liberdade de
movimento no braço direito. Conta que só sobreviveu por
que a sua cabeça é grande, e a onça, já enfraquecida pelos
ferimentos, não teve tempo de achar uma posição boa para
sangrá-lo. O couro dessa onça ele tinha guardado até
pouco tempo, quando foi um dia o Ibama esteve por la
investigando um garimpo clandestino e ele, por medo de
ser dedurado, escondeu esse couro junto com muitos
outros no mato... dias depois, quando foi buscar, cupim
tinha estragado tudo.
Há dois anos recebi a notícia da morte do seu Pexin.
Fora encontrado boiando no rio que tanto conhecia...
estava todo comido de peixe. Morreu baleado, mas nunca
soubemos quem ou porque cometeram tal perversidade.
Alguns disseram que foi acerto de contas antigas... coisa
de mais de 30 anos. Triste fim pra um corajoso zagaieiro.
Escapou da valentia da onça para morrer atocaiado pelo
bicho homem.

183
Manias, crenças e simpatias

sertanejas

Dos rios e dos peixes...


Saiu pra pescar e trupicou com o pé esquerdo? Pode
voltar pra trás. Peixe esse dia não pega. Se for pescar de
linhada, um ramo verde na orelha vai ser a diferença entre
o sucesso e o fracasso da pescaria. Mulher grávida pulou
a sua vara de anzol? Pode jogar fora, essa não pega mais
peixe. Pegou cagado? Também pode trocar o anzol, aquele
está enfeitiçado... e cuida como "dente”, pois se esse bicho
te morder, só solta quando trovejar. Vai pescar em rio que
tem Nego d'água? Tem que levar a pinga e o fumo, se ele
aparecer, lhe pedir e você não tiver, ele vira a canoa ou
desgrama a malinar nos anzóis dando puxadas imitando
peixes, isso quando não amarra a linha em raízes no
fundo.
Jau grande mordeu a isca e está arrastando o
barco? Passa a cuia de tirar água da canoa na linha que
ele logo vira a barriga pra cima. Se tiver fumo de rolo, mió
ainda. Menino que quer aprender a nadar tem que engolir
piaba viva. Pirara e Piraíba são peixes perigosos,
perseguem canoa, afogam criação que atravessa rio e
comem curumim. Nos rios maiores do norte, tem uma
arraia monstra chamada de rodeiro, pescador facilitou no
barranco ela pula, encobre o caboclo e o arrasta para o
fundo.

184
Carne de peixe de escama é bem mais "saudia” do
que a carne dos peixes de couro. Quer curar a dor da
ferroada do mandi? Arranca o zóio dele e passa em cima
da ferida. Arraia ferrou? Tem que providenciar uma
mulher pra tirar a calcinha e sentar encima do ferimento,
é o único remédio que tira na hora a dor da esporada da
arraia.
Do mato, das armas e dos bichos...
Existe espingarda mais “cortadeira” e mais
envenenada do que outras. Veado morreu com a língua pra
fora, é sinal de boa sorte... logo o caçador vai matar outro.
Cano de espingarda, se limpar, tira o veneno. Cartucho
carregado com chumbo em número par num é bão para
matar. Bucha de taboca raspada Sexta-Feira da Paixão é
o melhor veneno que tem pra espingarda. Revólver 32 de
pertinho não é bão, mas deixa tomar uma distanciazinha
pra ver o tanto que corta.
Arma mais mortal do que espingarda quarentinha
com bala de 38 só mesmo as filobés .22, para essas não
tem distância. Bicho que estiver comendo a fruta do pau-
d’óleo não morre fácil, o tiro tem que ser muito bem
colocado. Vergaio de anta cortado às fatias, torrado na
chapa do fogão caipira e moído em cima da comida ajuda
a reerguer a moral do homem que afrouxou cedo. O lobo-
guará tem o poder do hipnotismo, chega debaixo da
mangueira onde as galinhas dormem, olha pra cima, firma
o olho nelas e uma por uma vão caindo no chão
encantadas.
As cobras também têm os seus particulares: a
caninana corre atrás, a cobra cipó dá surra em pescador

185
que facilitar a noite no trieiro do rio, a sucuri engole boi e
deixa só a cabeça com os chifres para o lado de fora da
boca por uma semana, esperando que apodreça e caia. Já
a urutu-cruzeiro, se morder, ou mata ou aleija, e a
cascavel tem dentro daquele chocalho na ponta do rabo
umas formiguinhas vermelhas que se morderem alguém,
é duas vezes pior do que o veneno da própria cobra. De
onde você acha que vem aquele barulho do guizo? Carne
de paca é reimosa, mulher de resguardo tem que passar
longe e homem que teve doença de rua, se comer, volta
tudo. Bico de anu-preto torrado na chapa do fogão, se
jogar em cabelo de menina nova, ela se apaixona na hora.
Menino que não é bão pra comer é só dar capa de moela
de ema torrada. Gordura de capivara é um santo remédio
pra bronquite e males respiratórios. Fel de paca é remédio
pra quase tudo: segundo a medicina popular, serve como
remédio para asma, para tiração de estrepes (espinhos)
enterrados fundo na sola do pé e para mais uma infinidade
de males”. Paçoca de carne de anta feita em pilão de
sucupira com farinha de mandioca, rapadura, pinga e
água de vereda são os segredos da potência, longevidade e
da energia do sertanejo do interior.
A chuva do resto do ano é medida pelo tamanho do
fel da paca morta no mês de janeiro: quanto maior a
quantidade do fel, maior a quantidade de chuva que vai
cair. Olho de lobo é o segredo dos catireiros (negociantes).
Se quiser fazer um bom negócio, arranca um olho de lobo,
coloca pra secar e, depois dele seco, coloca no bolso e vai
pra negociação. O sujeito faz o negócio do jeito que você
quer e com o tempo você fica rico. Onça, se franzir o couro

186
da testa, bala não entra, e se o tiro for mal dado, ela vem
na fumaça atrás de quem atirou.
É na Semana Santa, tempo de quaresma, que o
lobisomem vem no terreiro das casas roer couro velho... se
não prender a cachorrada, não fica um vivo. No tempo das
chuvas e de muito vento, é comum aparecer nas fazendas
do interior mineiro o Rumãozinho. Caboclinho atentado,
que derruba coisa, estraga pertences e gosta de trelar o
rabo do gado solto no pasto. No mato tem outra criatura
perigosa, um homenzinho barbudo e de orelhas pontudas,
que tem os pés virados para trás e anda montado em cima
de um porco-queixada, vigiando e cortando na peia o
caçador que mata mais do que precisa. Tem também o pé-
de-garrafa, que deixa um rastro redondo na terra mole, é
primo do tinhoso e gosta de fazer trato no cemitério para
ensinar violeiro sem talento a tocar viola e "fechar” contra
bala o corpo do matador covarde. Na hora é bão, mas
depois ele vem cobrar o trato e, como pagamento, leva a
alma dos infelizes arrependidos.
Tem nas selvas do norte o Pai-da-Mata, que é
grande, cabeludo e vive andando sem rumo e dando gritos
aqui e ali dentro dos soturnos de mata fechada. Por isso é
que não convém responder grito de desconhecido. No rio
tem o boto, menina nova apareceu grávida, foi o boto.
Animal abençoado que já salvou muito marmanjo de 38 e
de casamento.
E outras crenças...
Filhote de cachorro do céu da boca preto sempre vai
ser o mais valente da ninhada. Mudou de uma fazenda
para outra? Logo que chegar ao sítio novo tem que pegar o

187
cachorro pela coleira e dar três voltas com ele em volta da
casa, só assim pra ele não voltar para a antiga morada.
Cobra entrou no terreiro? Chama uma muié, manda que
ela dê um nó na barra da saia e faça a oração certa. A
cobra fica amarrada e dali e não sai, dá tempo de ir lá
dentro buscar a espingarda e até de carregar um cartucho.
Menino de colo tem que ir à benzedeira pelo menos
uma vez por mês, principalmente se for bonitinho, pois
tem gente do olho ruim que sem querer coloca quebrante
e adoece a criança. Benzedeira boa é a que usa o ramo de
mastruz no benzimento. Pra cortar unha, cabelo, capar
porco ou cavalo, existe a lua certa, ou lua boa. Abelha-jataí
só pode ser retirada no mês de janeiro, senão não dá mel!
O dente de leite do menino caiu? Tem que jogar em cima
da casa pra poderem vir dentes fortes e saudáveis. Doce
de goiaba tem que ser feito em tacho de cobre com lenha
de tingui e a cozinheira não pode estar naqueles dias,
muito menos inverter a posição que iniciou na mexida do
doce, senão vai açucarar...
Eita Brasil maravilhoso!!! Eita imaginação fértil essa
dos nossos sertanejos!!
Tino

188
Uma velha pendenga

Era início de outubro, e apesar da chuva pesada que


havia caído na véspera, no céu brilhava um sol tremulante
e dentro do mato subia um mormaço abafado que
encharcava a roupa de gente de suor... eu já tinha
caminhado bastante e, desanimado, já descambava no
rumo do acampamento. As chuvas do início das águas
deixaram os frutos do tamboril com casca fofa e gosto
amargo, embaixo só tinha pisado anta... bicho sem termo,
parece não se importar com a amargo das frutas.
Lá num cotovelo de rio achei uma imbaúba que
tombou com o desmoronar de um barranco que a enchente
lavou... aproveitei a pinguela e fui dar uma saracoteada lá
do outro lado. Panhei o rumo de um último tamboril onde
um cumpanhero tinha derrubado uma mateira grande um
ano antes. Lá chegando descrencei ainda mais, do
tamboril só restava um grande esqueleto preto, um fogo
que lambeu o mato tinha queimado o pé e matado a árvore.
O jeito seria beirar o rio para ver se encontrava
algum carreiro de paca, senão perigava voltar para casa
sem nem tirar a rede da mochila. E foi nessa função de
beirar o rio que vi cá no barro mole do trieirinho de o gado
ir beber o rastro fresco de um mateiro enorme, coisa da
noite passada depois da chuva... marquei o rumo da ponta
do casco e fui seguindo devagar, estudando se aquilo era
rastro de andarilho vadeando de madrugada ou de bicho
rotineiro, cevado em alguma fruteira. Andei pouco e de cá
vi a copa carregada de um pé de jenipapo. Entrei debaixo
e fui assuntando com cuidado; por causa da chuva que

189
amoleceu as folhas no chão e da quantidade de rastro de
anta estava difícil achar o rastro do mateiro. Com um
galhinho seco fui revirando folha aqui e acolá, até que
descobri um monte de estrume dele... um aqui, outro ali,
uns mais novos, outros mais antigos, mas todos com uma
coloração bege... mesmo que ver a polpa da fruta do
jenipapo.
Estranhei o adiantamento da fruteira, jenipapo só
começa a cair mesmo depois que a chuva molha bem a
terra funda da raiz, lá pelos fins mês de novembro. Esse
adiantou a carga... o tempo anda mesmo bagunçado. Bem,
no chão não vi frutas, mas não tinha dúvida que um
mateiro grande estava de rotina ali, por isso saquei do
facão e fui cortar uns paus para fazer o mutá. O mutá é
um tipo de andaime que construímos com varões de
madeira verde e cordas, as duas primeiras travessas
servem para subir e a terceira para apoiar os pés quando
se senta na rede.
Veado-mateiro é bicho astuto, por isso escolhi umas
árvores altas e um tanto afastadas do pé de jenipapo. Com
uma meia hora de trabalho duro consegui me instalar lá
em cima. O sol já ia namorando o espinhaço da serra
quando abri o cantil para espantar o calor e remediar a
secura da boca... escutei uns trovões distantes, mas ali o
tempo estava quente e aberto, ia fazer uma noite tranquila
e de céu estrelado.
Já escurecendo, passaram em um voo de galho em
galho por trás de mim uns jacus, vi uns dois ou três de
relance; o mato era muito sujo e eles seguiam com pressa,

190
certamente de papo cheio no rumo de algum poleiro para
passar a noite.
Passou nem nada e começaram a cair jenipapos no
chão... olhei para cima e vi lá na copa do jenipapeiro um
quati “anda só”. O quati “anda só” não é uma raça
diferente dos menores que andam em bando, trata-se de
um macho alfa que perdeu o seu reinado para um macho
mais jovem e foi expulso do bando, por isso anda sozinho
pela floresta. Ele é normalmente maior e mais gordo
porque é um adulto em idade avançada, e todo alimento
que encontra não tem que ser dividido entre vinte ou trinta
parentes.
Experimentando as frutas, o quati só ia às
maduras. Apertava, arrancava, cheirava uma, depois
mordia e, não estando do seu agrado, jogava no chão...
entretido com os jacus, não vi o danado subindo no pé de
jenipapo. Ficou zanzando de galho em galho um bom
tempo, de jeito que quando escureceu o chão estava
forrado de frutas... ou seja, mesmo sem vento, a natureza
deu um jeito de pôr as frutas no chão para o repasto dos
bichos que não têm habilidade para ir buscá-las lá em
cima.
Nem tinha acabado de escurecer direito lá fora do
mato quando um bicho quebrou pau. Pelo destrambelho
da pisada, de longe conheci, era uma anta. Veio até
pertinho e parou, gastou lá um pedaço grande de tempo
fazendo sabe lá Deus o que, até que resolveu e entrou de
vez. Catou um jenipapo aqui, outro acolá, e quando entrou
em posição boa, destravei a arma e enfiei a lanterna na
cara dela... ficou pardinha, só quietou o mastigado.

191
Levei a 22 no rosto e, com a anta meio de lado,
coloquei a cruz da luneta bem no escuro do ouvido...
arrastei o gatilho até endurecer o curso, mas aí tirei o
dedo. Brincadeira de mau gosto aquela... já pensou,
derrubar um bicho daquele tamanho no meio de uma mata
daquelas e longe do acampamento? Na ocasião, éramos só
eu e mais um cumpanhero, ia dar mão de obra para um
dia inteiro, sem falar que ia encher a caixa de gelo e
teríamos que levantar acampamento no mesmo dia. Ainda
fiquei iluminando aquela anta por um bom tempo, até que,
desconfiada, ela saiu de mansinho e sumiu nas sombras
do mato.
Aguentei acordado até umas onze e meia, daí para
frente o cansaço de um dia inteiro de viagem e uma tarde
quente de caminhada tomou a rédea e dormi. Acordei com
um bicho pisando perto da espera. Estava frio... ainda
meio desorientado, zunhei o pau procurando a carabina,
que estava dependurada, tirei os pés para fora da rede e,
imaginando que o bicho tinha comido e ia saindo, acionei
a lanterna e clareei na direção que ouvia o pisado. Quando
o clarão da lanterna bateu lá na frente, só escutei um trote
curto e mais nada. Varri o mato com a luz, mas não
visualizei bicho algum. Apaguei a lanterna... e uns cinco
minutos depois escutei os cascos do bicho estralando já
longe nas pedras da beira do rio. Foi-se com a sua
velhacaria.
O ponteiro miúdo do meu relógio fintava as duas da
madrugada. Indignado com o meu sono pesado, refiz o
acontecido com mais sobriedade e descobri que perdi o
bicho por afobação, iluminei na hora errada. Ele não
estava saindo com a barriga cheia como eu imaginei, mas

192
sim chegando para comer. Se espero mais um pouco, o
mateiro entraria debaixo da rede. Esperei brigando com o
sono até raiar o dia, mas não escutei mais nada além do
piar dos curiangos nas clareiras do mato.
Logo que clareou, pulei no chão e panhei o rumo do
acampamento. Fui de cabeça baixa, desolado,
inconformado com a minha precipitação e disposto a voltar
e repetir aquela espera na noite seguinte. Para isso, cobri
a rede com uma pequena lona plástica que carrego na
mochila para tampar chuva e a deixei armada lá mesmo.
Passei o dia encafifado. Pela manhã, o cumpanhero
pescou uns piaus no acampamento que foram o nosso
almoço. Depois de almoçar, dormi até as quatro da tarde,
queria estar preparado para ficar acordado até o bicho
entrar.
Na espera que o gordo ficou vieram duas antas, a
mãe e um filhotão ainda chitado de branco. Segundo ele,
um filhote como aquele, de carne macia, não ocuparia toda
a nossa caixa de gelo, mas se atirasse no filhote ia ter que
atirar na mãe também, pois de junto dele ela não arreda
pé. Mesmo ele estando morto ela ficaria ali, andando em
volta, vigiando, pronta pra morder e dar coice em qualquer
coisa que encostasse. Ainda bem que ele não atirou.
Na segunda noite, bem mais descansado, voltei ao
jenipapo e o gordo subiu estralando as galhas de um pé de
esponja que derrubava as últimas frutas. Lá no jenipapo
eu resolvi mudar o armador da rede; o bicho estaria
ressabiado, por isso eu decidi ficar mais para dentro do
mato, bem alto e protegido pela copa verdinha de um pau-
d'óleo.

193
A trabalheira foi grande, mas depois de amarrar três
varões fiquei alto e bem camuflado. Quando subi para a
rede, percebi que essa mudança de posição me tirou quase
todo o espaço por onde podia visualizar o mateiro. O mato
fechado só me deixava uma área pequena bem junto do
jenipapeiro, então desci lá e, com a ponta do facão, catei
todos os jenipapos que estavam espalhados e fiz bem no
lugar mais limpo um montinho de frutos... ali ia ser o meu
ponto seguro de tiro.
A noite veio... e quase antes de escurecer eu já
escutei a anta-sapateira quebrando barranco lá na beira
do rio. Veio que veio de trote, chegou e, sem cerimônia, foi
entrando de orelha murcha. Só bem perto é que percebi
que eram duas... quando entraram na roda do pau, acendi
a lanterna e pude ver nitidamente apenas uma delas. A
outra estava encoberta por uma galhada e não gostou da
luz, saiu na ponta das unhas e desapareceu no meio de
uma moita de macambira. Essa uma que estava no limpo
não se importou, veio andando na direção do jenipapeiro e
parou bem de junto do meu montinho de fruta. Parou lá,
abaixou a cabeça, com uma torcida de tromba pegou um
jenipapo e começou a mastigar... comia esse de olho no
resto do monte.
Firmei o ponto quatro dedos por cima da junta do
queixo dela e com a boca dei um leve assovio. Ela parou
de mastigar e ficou durinha como se fosse uma estátua...
aquele seria o momento do disparo. Se ao menos
tivéssemos levado um saco de sal! Mais uma vez eu a
espantei para longe sem molestá-la.

194
Nessa noite segurei acordado até alta madrugada, e
quando já ia no limite da resistência, escutei ainda
distantes os cascos do mateiro nas folhas secas. Como
sempre, ele vinha pelo trieiro do gado até bem perto da
espera, depois largava a estradinha e entrava no mato.
O coração acelerou, a mão transpirou e o sono
pulou longe. Lentamente sentei na rede, apoiei os pés,
destravei a carabina e fiquei no jeito, só aguardando o
momento certo. Ele veio devagar, caminhando macio e
compassado... e ao entrar na roda do pau, procurou
calmamente os jenipapos... encontrou apenas um, que
havia caído depois que escureceu. Comeu com boca boa e
vagarosamente avançou, usando o faro para achar o
monte de frutas. O barulho nas folhas secas era tão alto
que parecia que o bicho estava embaixo de mim. Faltava-
me o fôlego, o coração nessa hora vinha bater aqui, no pé
da goela... uma emoção mais sufocante do mundo.
Perto do limpo, mas ainda protegido pela última
moita, ele parou. Eu, que já não aguentava mais de
ansiedade, achei que ele estivesse sobre o montinho de
jenipapo. Levantei a cabeça, enfiei a 22 no rosto e
pressionei o silencioso interruptor da Maglite. A noite virou
dia, mas lá só estava o monte de frutos, e não o mateiro.
Corri a luz para a esquerda e ainda deu tempo de ver o
vulto vermelho se encolhendo para dentro da sombra da
moita. Firmei a luz lá e procurei pelo brilho dos olhos, mas
a moita era fechada e certamente ele me deu as costas,
pois nem de relance pude ver qualquer faísca de olho.
Apaguei a lanterna esperando uma movimentação dele
para guiar uma segunda tentativa, mas mesmo estando a

195
menos de dez metros de mim eu não ouvi mais nada,
parece que tinha criado asas nas costas e saído a flutuar.
Nesse dia não me envergonho em dizer que me deu
vontade de chorar... se tivesse esperado ele comer uma das
frutas para ter certeza que ele estava no limpo, teria tido a
minha oportunidade!! Fiquei doente de vontade de fazer
um furo naquele bicho, seria capaz de beber o sangue dele
lá, na hora, tamanha foi a paixão que ele me despertou.
De manhã desci, e pelos rastros do bicho, refiz o
acontecido. Perdi esse mateiro por menos de meio metro...
se espero mais um pouco ele tinha saído no limpo. O
consolo foi que ainda me restavam três noites, e a partir
daquele momento aquela era uma questão de honra.
Voltei para o acampamento e encontrei o
cumpanhero também inconformado. No tamboril que ele
havia passado a primeira noite ficou um monte de estrume
de mateiro, fresquinho, e na esponja que ele esperou na
segunda só entrou um mangote de gado procurando
malhador para se esconder do sereno. Realmente a sorte
não estava do nosso lado. Abrimos umas cervejas, fritamos
duas jaós que eu quebrei voltando da espera e fomos
afogar as magoas com um banho de rio até dar mais tarde
para voltarmos até as esperas.
Esse dia não dormi... quando o sol foi baixando a
cara, larguei de uma pescaria de varinha até produtiva,
entrei debaixo do mochilão, panhei a 22, uma matula,
enchi o cantil e aprumei para dentro da mata. Cheguei e
não demorei, foi só pular dentro da rede, que já estava
armada.

196
Ao escurecer, veio pulando de galho em galho um
bando de jacus, acredito que os mesmos do primeiro dia.
No entanto, não dei importância a eles, estava concentrado
no meu objetivo e não queria contaminar a espera com
cheiro de pólvora gasta com bicho pequeno.
Lá pelas 23 horas escutei as antas, mas esse dia
elas estavam agitadas, não sei se cruzando ou brigando,
sei que foi um corre e cerca dentro do mato que dava para
escutar de longe. Não chegaram a entrar na espera, com a
baderna tomaram outro rumo e fiquei sem saber se era
briga de amor ou de desavença.
Aguentei bem até as 23 horas, depois tenho mais
nada para contar, não. Dormi um sono leve e acordei
várias vezes com o vai e vem dos ratos nas folhas secas.
Por volta das três da madrugada, escutei um bicho
pisando bem embaixo e um pouco atrás da minha rede.
Fiquei quieto, embrulhado e só com os olhos abertos. Era
o mateiro... havia entrado por um lugar diferente e pisado
tão levemente nas folhas que me pegou de surpresa.
Passou na ponta dos cascos por baixo da rede e foi
direto no monte de jenipapo, pegou um e começou a
comer... a adrenalina entrou na corrente sanguínea em
tamanha quantidade que eu me tremi todo. A cada
mastigada que ele dava, eu fazia um movimento... em
câmara lenta, tirei de cima de mim e deixei que escorresse
para baixo o saco de dormir, que ficou dependurado no
pau que me servia de apoio para os pés.
Com as mãos, para não estralar a junta do joelho,
tirei uma perna de dentro da rede, depois a outra... e bem
devagar fui aprumando o corpo. Em seguida, tateei o galho

197
à direita até achar a 22, dependurada pela bandoleira.
Destravei o percussor com os dois dedos para não fazer
barulho, depois levei a arma ao ombro e, com o polegar da
mão esquerda, procurei o interruptor da lanterna,
amarrada junto a ela com uma liga.
Eu me tremia muito e não senti segurança para o
tiro, pois além da tremedeira, as pernas ainda estavam
pendentes. Aí firmei o pé direito no varão que passava por
baixo da rede e, quando fui levar o pé esquerdo para
também apoiá-lo, enganchei a ponta dos dedos no saco de
dormir, que estava pendurado. Por estar de meias, não
percebi que vinha trazendo o saco de dormir com o pé... o
pau do varão era verde e liso, e ao trazer o saco de nylon
enganchado na ponta do pé, o peso ficou maior em um dos
lados, o que fez com que o saco pendesse e escorresse para
o chão o chão a fora. O barulho não foi alto, mas bastou.
Esse mateiro deu um arranque e correu feito louco.
Parou lá na frente, e a uns trinta metros bateu com o pé
três vezes no chão, deu um espirro e arrancou de novo
jogando folha para cima... e sumiu no mundo!
Mesmo sendo madrugada, eu desci da espera,
peguei o trieiro do gado e fui até a beira do rio. Joguei uma
água no rosto, sentei na raiz de um pé de vazante, olhei
para o céu estrelado e respirei fundo. Aquilo só podia ser
feitiço! Dessa vez não deu nem para ligar a lanterna... onde
tinha ido parar a minha sorte, meu Deus?
No quarto dia tivemos que mudar o acampamento,
pois íamos encontrar uma turma grande de outros
cumpanheros que estavam chegando à fazenda do outro
lado do rio. Com a mudança do acampamento, a minha

198
espera, que estava a uns três quilômetros, foi para quase
cinco. Era uma caminhada puxada de mais de uma hora
por dentro da mata, um lugar sem estradas, de mato
fechado e muito carrapato. Cansado e com três noites
seguidas na mesma espera, imaginei que o mateiro,
velhaco e seguidamente incomodado, não viria mais ali por
aqueles dias... por isso passei a noite do quarto dia no
acampamento com a cumpanherada nova que tinha
acabado de chegar. Aproveitei para afogar as minhas
mágoas em uma cerveja gelada... e mais tarde, ouvindo
moda de viola, inventei de entrar numa rodada de truco
para desviar um pouco o pensamento da má sorte.
Na tarde do quinto e último dia, por pura
curiosidade, eu voltei lá no bendito pé de jenipapo
encantado. Fui entrando debaixo e dando de cara com um
enorme monte de estrume tão fresco que ainda estava
úmido. O miserável veio e limpou meu monte, comeu a
noite inteira... não era possível um trem daquele! O
mateiro estava sem dúvida nenhuma me desafiando para
mais uma partida.
Voltei para o acampamento disposto a buscar a
tralha e subir mais uma vez no jenipapo, só que na volta o
tempo foi fechando... nuvens negras escureceram o céu e
um vento forte sacudiu a copa das árvores, pau gemia para
todo lado... estava armando a maior chuva do mundo. Aí
ficamos todos lá no acampamento, de mochila nas costas,
braços cruzados e espingardas no ombro, um do lado do
outro, olhando calados de longe a barreira de nuvens
grossas e a ventania de folha seca dentro do mato. Dois
dos companheiros desistiram de ir e foram lá para trás

199
reforçar a lona da tenda da cozinha e cuidar de guardar o
que não podia molhar.
Eu, apegado no dizer que cachorro que muito ladra
não morde, aguardava firme... tinha esperança que o vento
levasse a chuva para longe e me desse a oportunidade de
uma última noite lá na espera do jenipapo.
À medida que foi escurecendo, o vento foi
minguando e a chuva só ficou mesmo em uma dúzia de
pingos grossos. Aí resolvi de vez: arriei de novo a mochila
e panhei o mundo. Fui contrariando sermões e
recomendações da cumpanherada toda, mas fui. Eles não
entenderiam se eu explicasse, era minha honra que estava
em jogo ali naquela noite, algo que há muito tinha se
tornado pessoal, um jogo de nervos e astúcia entre mim e
um audacioso comedor de jenipapo.
Como saí muito tarde, quase escuro, cheguei de
noite à espera. Sofri que nem um burro véio, mas mesmo
no escuro, amarrei de novo os mutás, subi, armei a rede e
fiquei pronto.
Até as 20 horas correu tudo bem, mas depois disso
começou uma ventania de fim de mundo. Eu estava
disposto a aguentar firme lá em cima, mas quando escutei
uma enorme galhada despencar ali bem pertinho, mudei
de ideia. Desci e me sentei no chão do trierinho de gado,
lá no aberto de fora do mato. Se uma galhada daquela cai
em mim lá dentro da rede, iria me partir ao meio.
Fiquei ali fora do mato, embrulhado em um plástico
e sentado no chão até mais tarde. Numa mão o facão, na
outra a carabina destravada, morrendo de medo de uma

200
onça me confundir com algum bicho besta. Bem, melhor a
onça do que levar uma cacetada de mais de uma tonelada
no peito. Esse tempo que passei lá sentado no chão me
serviu para concordar com o pessoal lá do acampamento:
só mesmo um doido pra ir para a espera com um tempo
daquele.
Entramos madrugada adentro e o vento, depois de
muito pau quebrar, foi diminuindo até quase parar. E nem
tinha parado por completo quando começou uma
trovoada. Relâmpagos riscavam o céu desenhado
verdadeiras hidrografias aéreas no fundo negro, e depois
vinha um trovão comprido, parecendo tiro de espingarda
12 dentro de grotão de serra. Com medo de levar um raio
na cacunda e com o vento bem fraco, voltei para dentro da
rede. Passei uma corda por cima da cabeça e fiz um
"esteio”, depois joguei a lona por cima e foi só acabar de
ajeitar tudo que o mundo derreteu em água... choveu
muito forte. Eu me agasalhei dentro do saco de dormir e
fiquei esperando a noite acabar.
A chuva foi escorrendo nos paus em que estavam
enrolados os punhos da rede e lentamente encharcando o
pano... uma hora depois, já sentia o frio da rede molhada
nas costas. Sem providência para remediar aquilo, tentei
me acostumar com o desconforto. Volta e meia dava um
cochilão, mas mesmo assim aquela foi uma das noites
mais compridas da minha vida.
Já perto de clarear despertei com o fim da chuva, as
gotas que escorriam pelas folhas pingavam na lona
fazendo um barulho alto. Puxei um pouco o plástico e vi
entre os paus da mata o vermelho da barra do dia, que

201
vinha clareando atrás da serra. No chão o mato ainda
estava escuro, mas logo ia clarear. Deitei de volta na rede
e fiquei pensando no sofrimento que passei, no quando
andei, nas quatro noites inteiras que passei dentro do
mato, no frio, no medo e na má sorte que tive. E até
imaginei lá dentro da rede: como é que Deus me deixa sem
recompensa depois de um esforço desses? E foi bem no
meio desse pensamento que escutei o estalo de um
galhinho lá perto do jenipapo... veio esse seguido de um
outro bem mais leve ainda. Cheguei a sorrir irônico lá
dentro da rede, sabia que aquilo nunca poderia ser o
mateiro, não depois de uma tempestade daquelas e com o
dia quase claro. Não dei confiança, e com a certeza de ser
um quati ou um rato à procura dos frutos que a chuva
derrubara, firmei as mãos na borda da rede e sem nenhum
cuidado me ergui ruidosamente, empurrando com o pé o
resto da lona plástica, que ainda cobria a rede.
Foi quando levei um tremendo susto com o salto e
o trupelo do mateiro, que já vinha chegando embaixo do
jenipapeiro. Olhei na direção da corrida e, no lusco-fusco
do amanhecer, ainda pude ver a seda branca do rabo dele,
eriçado para cima enquanto saltava uma moita de
espinho. Por causa das folhas molhadas não o escutei
chegar... fez pouco barulho e eu imaginei ser um bichinho
à toa.
Apoiei os cotovelos nos joelhos, baixei a cabeça e
espalmei as duas mãos no rosto. Toquei o canto dos olhos
com a ponta dos indicadores e, com os polegares, firmei o
queixo... fiquei ali naquela posição um eito de hora,
remoendo raiva e lamentando incompetência. Depois dei
um sorriso irônico, um suspiro triste, desarrumei as

202
tralhas molhadas, coloquei na mochila e rompi mato na
direção do acampamento. Quem me visse naquele
momento, caminhado por dentro da mata com a cabeça
baixa e com ar de derrotado, cabelo e roupa molhados
pelas goteiras do mato, barba por fazer, a cara chumbada
de muriçoca e os olhos vermelhos, ia dar notícia de um
zumbi de beira de rio.
No acampamento cheguei de pouca prosa, e até hoje
ninguém sabe direito o que realmente aconteceu lá
naquela espera. Nesse dia senti algo que nunca tinha
sentido antes: lá no mato, fiquei agoniado e me deu uma
vontade enorme de voltar para casa. Vai ver foi o efeito do
cansaço misturado com o desânimo da derrota.
Foram cinco noites sem ter conseguido colocar
direito os olhos nele. Prometi lá no acampamento em voz
alta que no ano seguinte, na caída dos primeiros
jenipapos, estaria lá em cima de novo, prontinho para
reencontrá-lo. Dessa vez iria preparado para passar umas
dez noites e levaria a minha calibre 12 de canos
sobrepostos com carga de chumbo grosso. Não iria carecer
nem vê-lo direito não, bastaria um vulto caminhando no
meio das moitas, o brilho de um olho ou um rabo branco
saltando lá na frente. E no calor da promessa, chequei a
jurar para todo mundo lá que daquele mateiro eu comeria
o fígado e beberia no vira um copo lavrado de pinga boa.
Mas o tempo passou, e como o vento leva a chuva,
o passar dos dias levou aquela raiva para longe. Por falta
de oportunidade e por causa da correria da gente atrás de
dinheiro para sobreviver aqui no mundo dos civilizados, eu
nunca mais pude voltar lá naquele jenipapeiro. Daquele

203
início de outubro ficou só uma paixão enorme e só há
poucos meses é que, por obrigação de outros negócios,
voltei lá naquela fazenda.
Eram meados de janeiro... depois que concluímos lá
o serviço de medição de umas glebas de terra, eu resolvi
dar uma volta lá para os rumos da beira do rio. Fiquei
triste por que lá está tudo muito diferente. Uma estrada de
dentro da fazenda agora passa beirando a estreita faixa de
mato que restou próximo às margens do ribeirão, o resto
que era mata frondosa virou pasto desmatado e capoeirão
de espinhos cheio de vacas magras.
Deu trabalho e até achei que não encontraria o pé
de jenipapo, mas o encontrei... e mais feliz ainda fiquei
quando vi lá embaixo dele o chão forrado de jenipapo
maduro e o desenho perfeito do pé daquele mateiro
enfeitiçado... O velho companheiro com quem tenho uma
antiga pendenga.
A princípio, marquei lá com ele uma nova peleja
para o final da semana seguinte. Mas na volta, dirigindo
sozinho à noite e refletindo sobre todas aquelas mudanças,
e também sobre os nossos duelos do passado, cheguei à
conclusão que aquele mateiro é um vitorioso, um
sobrevivente que há anos tem resistido à pressão do
homem no pouco que resta do seu habitat. O coração
amoleceu e dei por perdido o desafio... aquele veado
mereceu a vitória. E, se depender de mim, morre de velho.

204
205
206

Você também pode gostar