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Orelhas

A obra de Thomas Mann (1875-1955) é uma das mais importantes do


século XX e pode ser comparada, senão em efeito sobre as subsequentes
gerações de escritores, ao menos em valor, beleza e profundidade, às de
Proust, Joyce, Virginia Woolf e Faulkner.
Fm 1926, um artista de Munique pediu a Thomas Mann que lhe
escrevesse uma introdução para um in-fólio com ilustrações sobre a história
de José, filho de Jacó, da qual Goethe havia dito”Esta é uma narrativa
natural das mais encantadoras, e o seu único defeito é ser demasiado breve,
de sorte que nos sentimos inclinados a escrevê-la pormenorizadamente.”
Meditando sobre o assunto sugerido por aquelas ilustrações, e tendo
presentes as palavras de Goethe, Mann sentiu “uma indescritível fascinação
diante da ideia de relegar para um plano muito distante a moderna vida
burguesa e fazer que minha narrativa penetrasse profundamente no futuro”.
Depois de ter estudado a lenda bíblica, Mann, que acabava de receber o
Prêmio Nobel de Literatura, fez, em 1929, excursões arqueológicas ao Egito
e à Palestina, onde consultou todas as fontes de informação necessárias para
escrever sua famosa tetralogia.
José no Egito, o terceiro romance da série que começou com As
histórias de Jacó e O jovem José, consumiu três anos de trabalho e foi
publicado em Viena em outubro de 1936. Mann e toda a sua família já
haviam perdido então a cidadania alemã, por se colocarem contra a
prepotência do Reich. Em carta ao regente Bruno Waller, Thomas Mann
escreveu”Temo que este livro tenha passagens extensas e terrivelmente
pedantes, mas o creio capaz de trazer um pouco de alegria e serenidade ao
mundo, coisas de que ele está necessitando.”
Thomas Mann acreditou sempre na missão humanística da literatura, no
vínculo que une arte e moral, insistindo em defender a liberdade contra as
mazelas do totalitarismo. A tetralogia de José e seus irmãos, junto com
Doutor Fausto, é considerada o momento maior dos anos de maturidade do
escritor, uma obra admirável, tal a profundidade da sua análise, o ineditismo
de tantas circunstâncias e episódios pitorescos, o enredo magistralmente
tecido de cenas reais combinadas com passagens mitológicas, o modo
absolutamente novo de encarar personagens e fatos que, sendo de milênios
atrás, são ainda de todos os tempos porque profundamente humanos.

Contracapa

José no Egito, de Thomas Mann, descreve a ascensão do filho de Jacó


ao poder numa trajetória política de caráter revolucionário, inédito em seu
tempo.
Terceiro romance da tetralogia bíblica José e seus irmãos, este livro
combina cenas históricas com passagens mitológicas, numa linguagem
antes de tudo posta a serviço da defesa da liberdade do homem. Conforme
escreveu o crítico francês Jean Schlumberger, ”No entrecruzamento da
erudição e da invenção poética, lá onde o espírito penetra nas obscuras
raízes dos mitos, Thomas Mann soube encontrar um espaço onde a criação
épica pôde faustosamente se desenvolver.”

E assim, como o mais humilde daqueles viandantes, sem ser


notado de ninguém, sem ser mencionado com um nome qualquer
no protocolo oficial de Hor-vaz, José, filho de Jacó, entrou no
Egito.
JOSÉ E SEUS IRMÃOS

VOLUME 2

JOSÉ NO EGITO
1

A VIAGEM PARA BAIXO

O SILÊNCIO DOS MORTOS

— Para onde me levais? — perguntou José a Kedma, um dos filhos do


velho, quando eles, na baixa região montanhosa iluminada pela lua,
estavam armando ao sopé dos montes Pomar as tendas em que iam passar a
noite.
Kedma olhou-o de alto a baixo.
— És engraçado — disse-lhe, e abanou a cabeça como para fazer-lhe
compreender que não tencionava dizer “engraçado”, mas várias outras
coisas, como “simplório”, “descarado”, “excêntrico”. — Aonde te levamos?
Será que realmente te estamos levando? Nós não te estamos levando de
maneira alguma. Estás conosco por acaso, porque meu pai te comprou de
gente dura, e nos estás acompanhando aonde temos de ir. Não se pode dizer
que isto seja “levar”.
— Não? Pois seja — retrucou José. — O que eu queria dizer era
somente isto: aonde me leva Deus, enquanto vou em vossa companhia?
— Tu és e continuas sendo um rapaz engraçado — replicou o maonita
— e tens um modo tão interessante de colocar-te no centro das coisas, que
ninguém sabe se deva admirar-se ou zangar-se. Dize, Olá, acreditas talvez
que estamos viajando para que tu chegues a algum lugar onde o teu Deus
quer que estejas?
— Não penso em cal — - respondeu José. — Sei muito bem que vós,
meus senhores, estais viajando por vossa conta, para fins que tendes em
mira e ides aonde quereis. A minha pergunta não era contra a vossa
dignidade e soberania. Mas, vê tu, o mundo tem muitos centros, um para
cada criatura, e em redor de cada criatura ele está situado de modo
particular. Tu estás apenas a um côvado de distância de mim; no entanto,
em volta de ti há um mundo, cujo centro não sou eu, mas tu mesmo. Eu,
porém, sou o centro do meu mundo. Portanto, ambos os centros são
verdadeiros, quer se trate do teu, quer do meu. O que é certo é que os
nossos mundos não distam tanto um do outro que não se possam tocar. De
tal modo Deus os impeliu e entrelaçou um no outro que vós, ismaelitas,
podeis perfeitamente viajar com independência e seguindo a vossa vontade,
indo aonde quiserdes, sem deixardes de ser, nesse entrelaçamento, um meio
e um instrumento para eu chegar à minha meta. Por esta razão é que
pergunto para onde me levais.
— Ora, ora — disse Kedma, que continuava a examiná-lo da cabeça aos
pés, desviando o rosto da estaca que estava cravando na terra. — Pões-te aí
a imaginar um mundo de coisas e a tua língua corre como um
ichneumonides. Vou contar ao velho, meu pai, que tu, filho de um cão,
tomas a liberdade de perder-te em sutilezas e meter o nariz em tanta
sapiência, que pretendes ter um mundo só para ti, insinuando que nós
tivemos ordem de servir-te de guia. Toma cuidado, que lho vou dizer tal
qual.
— Pois dize — replicou José. — Não faz mal. Isto até porá de
sobreaviso a meu amo, teu pai, que assim não me venderá por qualquer
preço ao primeiro que aparecer, se algum dia tiver a intenção de fazer
comércio da minha pessoa.
— Estamos aqui para tagarelar -— indagou Kedma — ou para armar
uma tenda? — E ordenou-lhe que o fosse ajudar. Enquanto isso, ia dizendo:
— Quando me perguntas para onde vamos, queres, por meu intermédio,
saber demasiado. Se eu o soubesse, não teria dificuldade em dizer-te. Isso
só o sabe o velho, meu pai. Ele faz o que lhe dá na cabeça, e nós só
sabemos das coisas depois que acontecem. Mas o que no momento fazemos
é claro, isto é, seguimos o conselho dos teus duros amos, os pastores,
evitando o interior da região seguindo a linha divisória das águas, e nos
encaminhamos diretamente para o mar e para a planície da costa. Uma vez
lá, subiremos dia por dia até chegarmos ao país dos filisteus, às cidades dos
mercadores marítimos e aos rochedos dos piratas. Talvez em algum lugar
dali sejas vendido para remar nas galeras.
— Isso eu não tolero — observou José.
— Não adianta tolerares ou não. Tudo é feito de acordo com a cabeça
do velho, como ele pensa e quer, e onde vai acabar esta viagem talvez nem
ele mesmo o saiba. Meu pai, porém, quereria que nós pensássemos que ele
sabe tudo muito bem e com antecipação. E nós todos, Efer, Mibsam, Kedar
e eu, fingimos pensar assim... Conto-te estas coisas porque o acaso nos
reuniu agora aqui, a levantar a tenda, senão não teria motivo para contá-las
a ti. Por mim, não queria que o velho te desse tão depressa em troca de
púrpura ou de óleo de cedro. Eu preferia que ficasses conosco mais um
pouco, mais um trecho do caminho, para ouvir alguma coisa mais acerca do
mundo dos homens e de sua entrosagem.
— Como quiseres — respondeu José. — Vós sois os meus senhores e
me comprastes por vinte dinheiros de prata, incluídas na compra a minha
sabedoria e a minha língua, que estão sempre à vossa disposição; e quanto
ao que disse com relação ao mundo de cada indivíduo, posso acrescentar
ainda alguma coisa sobre as maravilhas que Deus fez com os números, que
nem sempre dão certo, cabendo então ao homem emendá-los; como
também acerca do pêndulo, do ano de Sírio, da perene renovação da vida...
— Mas agora não — atalhou Kedma. — O que agora é absolutamente
necessário é armar a tenda, porque o velho, meu pai, está cansado e eu
também. Temo que hoje não possa acompanhar a tua língua. Ainda tens
fome e sentes ainda os membros doidos das cordas com que te ataram?
— Quase nada — respondeu José. — Afinal de contas só passei três
dias na cisterna e o bálsamo que me destes para ungir-me fez muito bem aos
meus membros. Estou são e nada pode diminuir o valor e o rendimento do
vosso escravo.
Efetivamente, fora-lhe dada oportunidade de limpar-se e ungir-se; seus
donos lhe deram uma espécie de tanga e, para as horas mais frescas, um
amarrotado manto branco com capuz, igual ao que usava o rapaz beiçudo
que cuidava das montarias. A expressão “sentir-se renascer” assentava-lhe
provavelmente com mais exatidão que a qualquer outro filho de homem
desde a criação do mundo até aquele momento. Pois, na realidade, não
tomara ele a nascer? Houvera um corte, um abismo profundo que separava
o seu presente do seu passado, uma sepultura. Como morrera jovem, suas
forças vitais se renovaram depressa e com facilidade para além da cova;
isto, porém, não o impediu de distinguir nitidamente a sua existência
presente da existência passada, que tivera o seu fim no fosso, e de enxergar
em si não mais o velho José, mas um novo José. Se estar morto significa
estar indissoluvelmente ligado a um estado que não tolera o mínimo aceno e
a mínima saudação ao passado, que não permite o mais ligeiro reatamento
de relações com a vida vivida até agora; se estar morto significa ter
desaparecido e emudecido para a vida vivida até agora, sem licença nem
possibilidade de quebrar com um sinal qualquer o espaço do silêncio — se é
assim, José estava morto e o óleo que lhe deram para ungir-se, depois de se
ter purificado da poeira da cisterna abandonada, não fora outro senão o óleo
que se põe no túmulo ao lado do defunto para que possa ungir-se no outro
mundo.
Damos importância a esse aspecto da questão porque nos parece urgente
afastar de José, quer no presente quer no futuro, uma censura que muitas
vezes se lhe faz quando se considera a sua história, isto é, a questão (que no
fundo é uma exprobração) de se saber por que motivo ele, assim que se viu
livre do buraco, não procurou por todos os meios ao seu alcance pôr-se em
comunicação com o pobre Jacó, tão digno de lástima, e fazer-lhe saber que
estava vivo. Ocasião para isso não lhe deve ter faltado pouco depois da sua
libertação; ao contrário, à medida que o tempo passava mais fácil se lhe
teria apresentado a possibilidade de fazer chegar ao mísero pai enganado
notícias verdadeiras; e é inconcebível e chega a ser até chocante que ele
tenha deixado passar tais ocasiões.
Esta exprobração baralha o que é exteriormente factível com o que é
intimamente possível e não leva em conta os três dias negros antecedentes
ao renascimento de José. Aqueles dias o haviam obrigado a reconhecer, no
meio das dores que o atormentavam, o erro fatal da sua vida passada, bem
como a renunciar à volta àquela vida; haviam-lhe ensinado a corroborar a
esperança dos irmãos de que ele estivesse morto, e sua decisão e propósito
de não frustrar essa esperança eram tanto mais firmes quanto não eram
espontâneos, mas involuntária e logicamente necessários como o silêncio de
um morto. Um morto não silencia para seus entes queridos por falta de
amor, mas porque a isso se vê obrigado. Não foi por crueldade que José
nada disse a seu pai. Antes, muito penoso lhe era o silêncio, tanto mais
penoso quanto mais durava, bem se pode crer, e não mais leve do que a
terra que cobre o morto. Essa compaixão que lhe inspirava o velho que o
havia amado (ele bem o sabia) mais que a si próprio, o velho, a quem
também ele amava com a mais natural gratidão e em cuja companhia José
se fizera lançar no poço — essa piedade despertava nele uma forte tentação,
estando até prestes a induzi-lo a dar passos insensatos. Mas a piedade
inspirada por uma dor que o nosso próprio destino causou a outros é dum
gênero inteiramente particular, e é sem dúvida mais firme e mais fria do que
a piedade que se tem de uma dor que nos é alheia. José sofrerá coisas
terríveis, recebera ensinamentos cruéis, e isto tomava menos forte a
comiseração que tinha por Jacó. Mais que isso: a consciência que tinha da
responsabilidade comum de ambos lhe fazia parecer de certo modo legítima
a cruciante angústia do pai. O liame da morte impedia-o de declarar falso o
sinal sangrento que o pai devia ter recebido. Mas a circunstância de ter Jacó
necessária e irrefutavelmente considerado como sangue de José o sangue do
animal reagia sobre José e virtualmente eliminava a seus olhos a diferença
entre “isto é meu sangue” e “isto simboliza meu sangue”. Jacó o
considerava morto, e como o considerava tal de um modo incontestável —
estava José morto ou não estava?
Ele estava morto. A prova mais evidente disto era que tinha de
conservar-se mudo com o pai. Tinha-o em seu poder o reino dos mortos, ou
melhor, ia tê-lo; com efeito, dentro de pouco tempo José ficaria sabendo
que se dirigia àquele reino e que nos madianitas que o haviam comprado
devia ver os guias destinados a conduzi-lo àquele país.

DIANTE DO AMO

Partindo do monte Kirmil, já haviam caminhado vários dias na areia ao


longo do mar quando, uma tarde, enquanto José estava ocupado a fazer
bolos sobre pedras candentes, um servo de nome Ba’almahar lhe disse; —
Deves ir ter com o amo. — José dissera que sabia fazer uns bolos deliciosos
e, conquanto nunca tivesse tentado realizar essa proeza culinária, uma vez
que ninguém o julgava capaz de tal, na verdade saiu-se esplendidamente,
ajudado por Deus. Ao cair da tarde, tinham armado as tendas ao pé da fila
de dunas cobertas de juncos que, há vários dias, vinha acompanhando
uniformemente a sua marcha em direção ao país. O dia fora quente. Do céu,
que empalidecia, baixava agora um zéfiro benfazejo. A praia se estendia
com uma cor violácea. Com um frufru de seda, o mar vinha morrer em
ondas lisas e extensas na praia reverberante de reflexos úmidos, dourada e
purpurina com os últimos restos escarlates do ardor ígneo do sol que
desaparecia.
Amarrados às suas estacas, os camelos descansavam. Não longe da
praia uma tosca barcaça, que parecia carregada de madeira para construção
e cuja equipagem se compunha apenas de dois timoneiros, era arrastada
para o sul por um veleiro impelido a remos, com um mastro curto e uma
longa verga, com muito cordame e uma cabeça de animal sobre a roda da
proa que emergia da água.
— Vai ter com o amo — repetiu o servo. — Por minha boca ele te
manda chamar. Está sentado na esteira da tenda e diz que deves comparecer
diante dele. Eu passava por lá quando ele me chamou pelo meu nome,
Ba’almahar, e disse: ”Manda-me cá o rapaz comprado recentemente, o filho
dos juncos, o Olá da cisterna. Quero interrogá-lo.”
“Ah!”, pensou José, “Kedma contou-lhe o que eu lhe disse sobre os
mundos. Muito bem.”
— Sim — disse José —, ele se exprimiu assim porque a ti, Ba’almahar,
não podia de outro modo fazer compreender a quem queria referir-se. A um
simplório como tu deve falar de modo que o entendas.
— Decerto — replicou o outro. — Como havia de dizer? Quando me
quer ver, diz”Manda-me cá Ba’almahar”, porque este é o meu nome. Mas
contigo é mais difícil, porque és um sujeito a quem se chama somente com
um assobio.
— Dir-se-ia que ele te quer ver a cada passo — comentou José —,
embora tenhas um pouco de tinha na cabeça. Podes ir. Obrigado pelo aviso.
— Que ideia é a tua? — gritou Ba’almahar. — Deves vir logo, para que
eu te leve à sua presença, porquanto, se não vens, quem paga sou eu.
— Antes de ir — respondeu José — devo acabar de assar este bolo.
Quero levá-lo comigo, para que o senhor prove do meu pitéu, que está
saboroso. Para um pouco e espera aí.
Enquanto o escravo insistia, José acabou de assar o bolo; após, ergueu-
se e disse: — Já vou.
Ba’almahar o acompanhou à presença do velho, que estava sentado na
esteira, em posição contemplativa, à entrada estreita da sua tenda de
viagem.
— Ouvir é obedecer — disse José e saudou.
O velho, com o olhar fixo na púrpura evanescente do pôr-do-sol, acenou
com a cabeça e, erguendo uma das mãos, fez sinal a Ba’almahar para que se
retirasse.
— Eu soube — começou o velho — que disseste que és o umbigo do
mundo.
José abanou a cabeça sorrindo.
— Que significado pode ter tudo isso — respondeu — e que coisas
acaso terei dito, que palavras me teriam escapado na conversação que
venham repeti-las tão alteradas ao meu senhor? Vejamos. O que me lembra
ter dito é que o mundo tem tantos pontos centrais quantos são os homens
que dizem “Eu” sobre a terra, um centro para cada um.
— Ficamos na mesma — disse o velho. — Com que então, é verdade
que disseste tais tolices? Apesar de já ter viajado tanto, nunca ouvi coisa
semelhante, e bem vejo que és um blasfemador, um celerado, exatamente
como me contaram os teus antigos donos. Onde acabaria isso se todo parvo,
todo fedelho composto de carne e osso quisesse arvorar-se em umbigo do
mundo, seja qual for o lugar onde esteja? E depois, que se faria com tantos
pontos centrais? Quando te encontravas lá na cisterna, na qual, pelo que me
é dado ver, foste lançado com toda justiça, era então aquela cisterna o
sagrado centro do mundo?
— Deus a santificou — respondeu José — quando pôs os olhos sobre
ela e não permitiu que eu lá perecesse, mas fez com que passásseis vós para
me salvar.
— De modo que te salvássemos? — indagou o mercador. — Ou para
que te salvássemos?
— De modo que e para que — retrucou José. — Uma e outra coisa,
dependendo do modo de encará-las.
— És um tagarela! Até agora, no máximo parecia duvidoso que fosse
centro do mundo Babel e a sua torre, ou talvez a localidade de Abot sobre o
rio Chapi, onde Ele, o primeiro do Ocidente, jaz sepulto. E vens tu e
complicas mais a questão. A que Deus pertences?
— A Deus, o Senhor.
— Portanto, a Adon, e lamentas o pôr-do-sol. Vá lá. Em todo o caso é
uma asserção que se pode ouvir; assim como assim, sempre é melhor do
que uma pessoa dizer “eu sou um ponto central”, como se fosse um louco.
Que tens aí na mão?
— Um bolo que fiz para o meu senhor. Sei fazer bolos
extraordinariamente gostosos.
— Extraordinariamente? Vejamos.
E o velho tomou-lhe da mão o bolo, virou-o por todos os lados, depois
mordeu-o de lado, porque não tinha mais dentes incisivos. O bolo era bom
como podia ser, mas não mais que isto. O velho, porém, sentenciou:
— É muito bom. Não quero dizer extraordinariamente, porque já o
disseste tu. Devias deixar para mim um tal juízo. Mas bom é. E mesmo
excelente — acrescentou, continuando a mastigar. — Encarrego-te de
repetires a dose frequentemente.
— Será feito como ordenas.
— É ou não verdade que sabes escrever e tomar nota de qualquer
espécie de mercadoria?
— Isso para mim é uma brincadeira — respondeu José. — Sei a escrita
do homem e a escritura hierática, usando o estilo ou a cana, à vontade.
— Quem te ensinou isto?
— Aquele que administrava a casa. Um servo cheio de sabedoria.
— Quantas vezes sete entra em setenta e sete? Duas vezes, não é
verdade?
— Duas vezes, segundo a escrita. Mas, segundo o sentido, primeiro
devo tomar o sete uma vez, depois duas vezes, depois oito, para chegar a
setenta e sete, porque sete, catorze e cinquenta e seis formam este número.
Mas um, dois e oito são onze, e assim tenho a solução: sete cabe onze vezes
em setenta e sete.
— Assim tão depressa achas um número oculto?
— Ou depressa ou nada.
— Sem dúvida já o conhecias por experiência. Suponhamos agora que
eu tenha um campinho, três vezes maior que o do meu vizinho Dagantakala.
Este, porém, compra uma jeira de terra que acrescenta ao seu, ficando agora
o meu só duas vezes maior que o dele. Quantas jeiras medem os dois
campos?
— Juntos? — perguntou José, pondo-se a calcular.
— Não, cada um separadamente.
— Tens um vizinho de nome Dagantakala?
— É o nome que dou, no meu problema, ao dono do segundo campo.
-— Vejo e percebo. Dagantakala, a julgar pelo nome, deve ser alguém
da terra de Pelechet, do país dos filisteus, para o qual, segundo parece, nos
dirigimos, por vontade tua. Ele não existe absolutamente, mas chama-se
Dagantakala e na sua parcimônia vai cultivando o seu campinho que
recentemente media três jeiras, incapaz de invejar o meu senhor e o seu
campo de seis jeiras, tendo-o ele aumentado de duas a três jeiras, e, além
disto, uma vez que ele não existe nem tampouco os campos que, juntos,
fazem nove jeiras, é esta a parte cômica. Existe somente o meu amo com a
sua cabeça meditativa.
O velho fechava os olhos incerto, porque não percebera ainda que José
já havia resolvido o problema.
— E então? — perguntou. — Ah! sim. É isso mesmo! Tu já o disseste e
eu quase não o percebi, porque o encaixaste assim na conversa e fizeste uso
de tanta palrice em torno da solução que quase não a escutei. E exato: seis,
dois e três, eis os números. Estavam encobertos e ocultos: como foi que os
extraíste tão depressa enquanto palravas?
— É necessário dirigir a atenção para a incógnita; então caem os
envoltórios e já não há mais incógnita.
— Só mesmo rindo. Não tenho outro remédio — disse o velho. — Pois
não é que, enquanto papagueavas, ias intrometendo a solução sem te dares
por achado? Tenho que rir e de muito bom grado. — E na realmente com
aquela boca desdentada, inclinando sobre o ombro a cabaça, que não
cessava de balançar. Depois pôs-se de novo sério e cerrou os olhos ainda
úmidos.
— Agora escuta, Olá — disse —, e responde-me lealmente, conforme a
pura verdade. Dize-me: és deveras um escravo, filho de ninguém, um filho
de cães, um vil servo da pior espécie, gravemente castigado por causa dos
teus muitos vícios e por ofensa aos bons costumes, conforme me disseram
os pastores?
José baixou as pálpebras, arredondou, como era hábito seu, os lábios,
deixando o inferior um pouquinho saliente.
— Tu me deste uma incógnita, ó meu senhor, para que eu procurasse a
solução. Fizeste isso para me provares; e não acrescentaste logo a solução
porque do contrário não seria uma prova. Agora Deus te prova com uma
incógnita e queres ter logo por junto a solução, devendo o interrogante
responder pelo interrogado? Não vão assim as coisas do mundo. Não me
retiraste do fosso onde eu me enxovalhara como uma ovelha com a sua
própria imundície? Que filho de cães devo ser eu e quão profunda há de ser
a corrupção dos meus costumes! Movimentei dentro da minha cabeça, para
um lado e para outro, o duplo e o triplo e calculei as proporções para achar
a solução. Por favor, calcula também tu entre pena, culpa e baixeza, e com
certeza partindo de dois chegarás sempre ao terceiro.
— O meu problema era claro e consigo trazia a solução. Os números
são puros e concludentes. Mas quem me garantirá que também o cálculo da
vida tenha o resultado que têm os algarismos e que a quantidade conhecida
não iluda quanto a desconhecida? Muitas circunstâncias depõem aqui contra
a justeza das proporções.
— Então é preciso levar também isto em conta. Se o cálculo da vida não
dá o mesmo resultado que o dos números, em compensação ela está posta
diante de ti de maneira que a vejas com os teus próprios olhos.
— Onde arranjaste a linda pedra que trazes no dedo?
— Talvez a tenha roubado o filho de cães — respondeu José.
— Talvez. Mas tu deves saber como te veio ter às mãos.
— Tive-a sempre e com franqueza não me lembro se alguma vez deixei
de tê-la.
— Logo, trouxeste-a contigo de entre os juncais do pântano onde
nasceste? Porque a verdade é que tu és um filho do pântano e dos juncos.
— Sou o filho do poço de onde o meu senhor me tirou, nutrindo-me
com leite.
— Nunca conheceste uma mãe fora do poço?
— Sim — disse José. — Conheci uma mãe mais doce. A sua face tinha
a fragrância da folha da rosa.
— Vês? E não te chamou com um nome?
— Eu o perdi, meu senhor, pois que perdi a minha vida. Não me é lícito
conhecer o meu nome, como não me é lícito conhecer a minha vida que
lançaram dentro do fosso.
— Fala-me da culpa que conduziu ao fosso a tua vida.
— Digna era ela de castigo — respondeu José — e chamava-se
confiança. Confiança merecedora de castigo e pretensão cega — eis o seu
nome. Porque é cegueira e perigo mortal exigir dos homens o que está
acima das suas forças e pretender deles aquilo que eles não querem e não
podem ouvir. Diante de tal amor e de tanta estima sentem-se biliosos e
ficam como animais ferozes. Não saber ou não querer saber disto — eis
uma coisa sumamente danosa. Eu, porém, não o sabia ou não fiz nenhum
caso disso, de modo que não soube ficar calado e lhes contei os meus
sonhos para que ficassem tomados de assombro. Mas “para que” e “de
modo que” são duas coisas distintas e nem sempre andam juntas. O “para
que” veio a faltar, e o “de modo que” se chamou “fosso”.
— A tua pretensão que enfureceu os homens — disse o velho — era
sem dúvida filha do orgulho e da arrogância, bem o imagino eu, e isso não
me admira num jovem que diz”Eu sou o umbigo do mundo e o seu ponto
central.” Mas tenho viajado muito entre os rios que vão em sentidos
contrários, um de sul para norte, outro de norte para sul, e sei que neste
mundo aparentemente tão conhecido se oculta mais de um mistério e que,
por trás da sua barulhenta garrulice, serpeia um estranho segredo. Muitas
vezes até tenho tido a impressão de que, se o mundo anda tão cheio dessa
barulhenta garrulice, é para que ela esconda melhor o segredo e cubra o
mistério que está por trás dos homens e das coisas. Topei com mais de uma
coisa que não andava procurando, e coisas sobre as quais eu não fizera
indagações me caíram debaixo dos olhos. Eu, porém, não fiz caso delas,
porque não sou tão curioso que ande a sondar tudo, pois basta-me saber que
o mundo loquaz está cheio de arcanos. Aqui onde me vês, eu sou um
céptico, não porque não creia em nada, mas porque reputo tudo possível.
Assim sou na minha velhice. Sei de narrativas e de casos que passam por
inverossímeis e que todavia se deram. Sei de alguém que, possuindo
nobreza e alta posição, trajando galas régias e ungindo-se com óleo da
alegria, foi banido para o deserto e atirado à miséria...
Aqui o mercador se interrompeu e semicerrou os olhos, porque o
sentido necessário e lógico do seu discurso, a continuação, que agora devia
vir sem que ele tivesse de antemão pensado que devia vir tão subitamente, o
abismou em reflexões. Há certos rumos do pensamento, profundamente
sulcados, dos quais não se pode sair uma vez que se entrou por eles; há
associações de ideias, insolitamente fixas e prontas, que se ligam como os
elos de uma corrente, de sorte que quem disse A não tem outro recurso
senão dizer B ou, ao menos, pensá-lo; e parecem-se com elos de uma cadeia
também porque neles o terrestre e o celeste se encadeiam e se ensartam de
tal jeito que pela necessidade de falar ou de emudecer se passa de uma coisa
para outra. Assim na verdade andam as coisas, que de preferência o homem
pensa segundo fórmulas e modelos que já achou prontos e portanto não
como ele quereria, mas, como é usual, segundo lhe ocorre. Assim, quando o
velho falava daquele que da altura em que se achava foi expulso para o
deserto e reduzido à miséria, já ele viera esbarrar num lugar-comum. Mas a
isto estava fatalmente ligada a proposição consequente da ascensão do
humilhado a salvador dos homens e mensageiro dos novos tempos, e então
o bom do homem se deteve em silenciosa perplexidade.
Não era muito mais que uma ligeira perplexidade, a prudente e
respeitosa parada do homem prático, mas de boa índole, diante do
metafísico e do sagrado. Se aquela perplexidade subiu de ponto até tomar-se
uma espécie de inquietude, uma profunda consternação ou mesmo um
terror, embora passageiro e apenas percebido, a causa disso era somente o
encontro ocorrido entre os olhos semicerrados do velho e os do jovem que
estava diante dele, encontro esse não verdadeiramente merecedor desse
nome, porque o olhar de José não “encontrou” o outro nem lhe
correspondeu no legítimo sentido da palavra, como que antecipando-se a
ele, mas somente colheu aquele olhar, oferecendo-se em silêncio para ser
perscrutado até o íntimo — uma obscuridade equívoca em muitos sentidos.
Outros já haviam tentado penetrar este silencioso equívoco com o mesmo
consternado pestanejar com que o tentava o ismaelita, preocupado com a
questão que ora lhe fervia no espírito sobre a espécie de negócio, não de
todo comum ou mesmo simplesmente suspeito, que concluíra com os
pastores e sobre a aquisição que fizera. Mas ao exame de tal questão era
dedicado todo o colóquio daquela tarde; e se o ponto de vista, sob o qual a
examinava o nosso velho, se deslocara, na duração de um instante, para o
sobrenatural e o fabuloso, afinal não há coisa que não se possa encarar
também por este prisma. Mas um homem capaz sabe perfeitamente
distinguir o real do irreal e sem dificuldade volta ao lado prático do mundo.
Ao velho bastou uma tossidela para efetuar essa deslocação.
— Hum! — fez ele, num grunhido irreproduzível. — Em suma, teu amo
tem muita experiência e viajou muito entre esses rios e sabe como as coisas
acontecem. Não necessita das tuas lições sobre tal ponto, filho dos juncos,
filho do poço. Eu comprei o teu corpo e o que possuis de habilidades, mas
não o teu coração, de modo que possa obrigá-lo a revelar-me as tuas coisas
íntimas. Não só não é preciso que eu penetre esses particulares, como não é
sequer aconselhável que eu o faça, e isso até poderia redundar em prejuízo
meu, se o fizesse. Eu te achei e te restituí o alento vital. Mas não era tenção
minha comprar-te, pois não sabia se eras vendível. Eu não pensara num
negócio, mas quando muito numa gorjeta por te ter encontrado, ou num
preço pelo teu resgate. Não obstante isso, chegamos a um entendimento
acerca da tua pessoa. A iniciativa foi minha, assim a título de prova. Para
experimentá-los disse”Vendei-mo”; e se a prova devia ser decisiva para
mim, na verdade o foi, porque os pastores pegaram-me pela palavra. A
transação não foi nada fácil nem breve, porque eles eram obstinados. Vinte
siclos de prata segundo o peso, como é de praxe, pesei eu por ti diante
deles, e nada lhes fiquei devendo. Que preço foi aquele e que negócio fiz
eu? E um preço médio, nem excessivamente bom, nem ruim demais. Eu
poderia abatê-lo, alegando os defeitos que, segundo eles, te levaram ao
fosso. Dadas as tuas qualidades, posso agora vender-te por um preço mais
elevado que aquele que paguei e enriquecer a meu talante. Que ganho eu
com envolver-me nos teus problemas? Que vantagem terei se ficar sabendo
dos teus antecedentes, que talvez só serão conhecidos dos deuses, de modo
que da informação venha a resultar que tu não eras nem és vendível e que
eu assim terei perdido o meu dinheiro, ou então que, ainda por cima,
querendo revender-te, cometo uma ação má e comercio com uma coisa
roubada? Vai-te, que nada quero saber dos teus negócios particulares, não
tenho por que sondá-los. O que me compete é conservar-me puro e proceder
com justiça. Basta-me saber que tudo o que te diz respeito é um pouco
estranho e pertence à classe daquelas coisas que eu sou bastante céptico
para admitir como possíveis. Vai-te, que já falei contigo demais e sem
nenhuma necessidade, e já é hora de dormir. Desses bolos poderás fazer-me
amiúde, porque são realmente bons, conquanto nada tenham de
extraordinário. Ademais, ordeno-te que peças ao meu genro Mibsam
material para escrever — folhas, cana, tinta —, a fim de me levantares em
escrita humana uma lista das mercadorias que temos, cada espécie de per si:
bálsamos, unguentos, facas, colheres, bastões e lâmpadas, bem como
calçado, azeite para >iluminação e também vidro em pasta, discriminando
quantidade e peso, com tinta preta os objetos, com tinta encarnada o peso e
a quantidade, sem erros nem borrões, e dentro de três dias me trarás a lista.
Entendido?
— Ordem dada e ordem executada — disse José.
— Bem. Vai-te.
— Paz e doçura ao teu sono — disse o jovem. — Que a ele venham
misturar-se de quando em quando sonhos leves e alegres.
O madiaruta sorriu complacente. E ainda uma vez pensou em José.
COLÓQUIO NOTURNO

Caminharam mais três dias beirando o mar. De novo entardecia e era


hora de repouso debaixo da tenda. Onde paravam a paisagem era a mesma
de três dias antes: dir-se-ia que não tinham arredado pé do antigo lugar.
José, segurando os bolos e o rolo escrito, apresentou-se ao velho que estava
sentado sobre a esteira à entrada do seu alojamento.
— Um escravo qualquer traz ao senhor as coisas que recebeu ordem de
executar.
O madianita pôs de parte os bolos, cozidos sobre a pedra ardente, abriu
o rolo e, com a cabeça inclinada para o lado, examinou o que nele estava
escrito. Tudo isso com visível agrado. — Nem um borrão — disse. — Está
bem. Vê-se também que os sinais são traçados com prazer, com senso
estético e parecem um ornato. E de esperar que tudo coincida com a
realidade, de modo que seja não só pitoresco mas também adequado. Dá
gosto ver as coisas da gente postas figurativamente com tanto asseio,
contemplar os vários objetos simetricamente registrados. A mercadoria é
gordurosa e resmenta; aqui, porém, o negociante não suja as mãos com ela,
só lida com ela na sua forma escrita. Os objetos estão lá, mas estão também
aqui, sem cheiro, limpos, evidentes. Uma lista assim é como o Ka ou
essência espiritual das coisas que está ao lado do corpo. Sabes, pois,
escrever, e bem, Olá; sabes também contar, como já tive ocasião de tirar a
prova. Não te falta sequer uma bela maneira de te exprimires, porquanto o
modo como tu, há três dias, deste boa-noite ao teu senhor me fez bem.
Quais foram mesmo as tuas palavras?
— Não me recordo mais — respondeu José. — Provavelmente desejei
paz ao teu sono.
— Não, era mais agradável do que isso, mas não importa; não faltará
ocasião para tomares a exprimir-te como o fizeste. O que, porém, eu te
queria dizer é o seguinte. Quando não me preocupam coisas mais graves,
acontece-me também em terceiro ou quarto lugar pensar em ti. Dura deve
ser a tua sorte, porque certamente já viste dias melhores e agora serves o
mercador ambulante na qualidade de padeiro e de escrevente. Entretanto,
quero olhar por ti, embora pretenda revender-te a outros, enquanto eu,
imune de qualquer conhecimento de teus negócios íntimos, me enriqueço o
mais possível por teu intermédio.
— Muita bondade da tua parte.
— Quero apresentar-te a uma casa que conheço, tendo-me sido dado
mais de uma vez prestar-lhe serviços com vantagem minha e dela. Casa
boa, bem mantida, casa de honra e de distinção. Digo-te que pertencer
àquela casa é uma verdadeira bênção, nem que seja como o último dos seus
servos; e se há uma casa na qual um servo pode mostrar os seus finos
talentos, é justamente aquela. Se tiveres sorte e eu conseguir colocar-te ali,
terás diante de ti uma fortuna tão favorável como não podia haver melhor,
tendo-se em conta as tuas culpas e a tua vida criminosa.
— E a casa de quem é?
— Ora, de quem! De um homem... um homem... ou melhor, um senhor.
O maior entre os maiores, omado com o ouro do valor, um santo homem,
severo e bom, cuja tumba o aguarda no ocidente, um pastor de homens,
imagem viva de um deus. “Flabelífero à destra do rei”, eis o seu nome. Mas
achas que ele leva o flabelo? Não, fiz que outros o levem; muito santo é ele
para semelhante ofício. Tem somente o título. Acreditas que eu conheça
esse homem, essa dádiva do sol? Não. Diante dele eu não sou mais que um
vermezinho, ele absolutamente não me enxerga; eu só o vi uma única vez e
de longe, no seu jardim, sobre elevado sólio, estendendo a mão para dar
ordens, e eu me fiz pequeno, muito pequeno, para que ele não se
perturbasse com a minha presença ao dar suas instruções. Que lhe diria eu
se tal se desse? Mas ao seu primeiro mordomo conheço-o de cara a cara e
com ele converso. Debaixo da jurisdição deste está a criadagem, estão os
celeiros, estão os operários. Ele administra tudo. E me quer muito bem.
Quando me vê, tem para mim palavras alegres e diz”Então, meu velho,
finalmente te vejo de novo. De novo apareces em nossa casa com a tua
farragem para nos embrulhar?” Diz isso, já se vê, só por gracejo, porque
pensa que dirige um cumprimento ao mercador chamando-lhe trapaceiro
astuto, e, juntos, damos boas risadas. A este quero mostrar-te e fazer-lhe
uma proposta acerca da tua pessoa; se o meu amigo, o mordomo, estiver de
bom humor e precisar de um escravo jovem para a sua casa, estás colocado
lá.
— Quem é — perguntou José — esse rei, com cujo ouro se enfeita o
dono da casa?
José queria saber onde iria acabar, onde estava situada a casa que o
velho lhe destinara, mas não foi só isso que o induziu a fazer tal pergunta.
Ele não o sabia, mas o seu pensamento, aquele seu desejo de informar-se
era determinado por um mecanismo que vinha agindo desde tempos
remotos, desde os tempos primordiais, e patriarcais. Nele falava Abraão, o
qual formara do homem um tão alto conceito, que estava convencido de que
o homem podia servir unicamente e diretamente o Altíssimo. Abraão, cujos
pensamentos e aspirações, com olímpico desprezo de todos os ídolos, de
todos os deuses inferiores, estavam voltados exclusivamente para o Ente
Supremo, para o Altíssimo. Aqui a voz do neto perguntava de um modo
mais leve, mais mundano: a pergunta, contudo, era do avô. Com indiferença
ouvira José falar a respeito do mordomo, do qual, consoante as palavras do
velho, pendia o seu destino. Tinha até uma certa desestima pelo velho que
conhecia apenas o mordomo, mas não tinha visto sequer o titular a quem a
casa pertencia. Mas mesmo este último não o interessava muito. Acima
deste havia um mais alto, o mais alto; dele se falara nas notícias dadas pelo
velho, e era nada menos que um rei. Para ele convergiam exclusiva e
diretamente a curiosidade e o interesse de José e a respeito dele foi que a
sua língua pediu informações, ignorando que o fazia não arbitrária e
casualmente, mas por hereditariedade, por atavismo.
— Que rei é? — repetiu o velho. — Neb-ma-ra-Amun-hotpe-Nimmuria
— disse ele com cadência litúrgica, como se rezasse uma oração.
José ficou assombrado. Ele estava com os braços cruzados atrás das
costas; agora os descruza com rapidez e agarra as faces com ambas as
mãos.
— Mas este é o faraó! — gritou. Como não havia de sabê-lo? O nome
que o velho pronunciara como numa prece era conhecido até os confins do
mundo, até de povos estrangeiros dos quais tivera noticia José por Eliézer,
desde Tarchich e Kitrim até Ofir e o Elam no extremo Oriente. Como um tal
nome havia de deixar indiferente o instruído José? Se lhe tivessem ficado
incompreensíveis algumas das partes do comprido nome proferido pelo
madianita, por exemplo, “senhor da verdade é Rá” e “Amun está contente”,
devia esclarecê-lo suficientemente o acréscimo siríaco “Nimmuria”, que
significava ”Ele caminha para o seu destino.” Reis e pastores havia muitos;
toda cidade tinha um, e se José se informara tão pacientemente acerca
daquele de que se tratava, foi porque esperava ouvir o nome de algum
castelão das estradas que costeavam o mar, o nome de algum Zurat,
Ribaddi, Abdacharat ou Aziru. Ele não estava preparado para ouvir o nome
do rei em sentido tão gloriosamente elevado, com atributos tão divinos e
cercado de tanta pompa, como desejava ser escutado o nome que lhe ferira
os ouvidos. Escrito num anel oblongo, reto, protegido por asas de falcão
que o mesmo sol estendia sobre ele, vinha esse nome ao cabo de uma
gloriosa série, que ia perder-se no infinito, de outros nomes
semelhantemente dispostos em anéis oblongos; a cada um desses nomes se
ligava a ideia de guerras vitoriosas, de marcos terminais de grande relevo,
de suntuosos edifícios decantados em todo o mundo; e a seu lado aquele
nome indicava uma tal herança de sagrado respeito, tal realce de uma vida
singular e um tal direito a genuflexão, que se tornava compreensível a
comoção de José. Mas acaso não o agitava outra coisa senão um respeitoso
terror que invadiria qualquer outro que estivesse em seu lugar? Sim, é claro,
ele estava conturbado também por outros sentimentos, por um espírito de
oposição, por sensações que vinham de tão longe como a sua pergunta com
relação ao Altíssimo, e com as quais ele involuntariamente procurou
retificar logo as suas primeiras impressões: repulsa ao impudente potentado
terreno; secreta rebelião em nome de Deus contra a conjunta potência régia
de Nemrod — foi isto que o induziu a tirar as mãos das faces e a repetir
com a maior calma a sua exclamação, simplesmente como se fosse uma
averiguação”Este é o Faraó!”
— Justamente — confirmou o velho. — É esta a grande casa que tornou
grande a casa para onde eu te quero conduzir e oferecer-te ao meu amigo, o
superintendente, para que aí tentes a tua sorte.
— Queres-me levar então a Mizraim, lá embaixo, ao país da lama? —
perguntou José, e o coração lhe batia forte.
O velho sacudiu a cabeça.
— M ais uma vez — disse ele — as tuas palavras são dignas de ti. Já
meu filho Kedma me dissera que, na tua pueril prosápia, meteste na cabeça
a ideia de que nós te levamos para este ou aquele lugar, ao passo que, na
realidade, mesmo sem a tua presença, tomaríamos exatamente o mesmo
caminho que tomamos, e, quanto a ti, chegarás simplesmente aonde o nosso
itinerário nos conduz. Eu não vou ao Egito para te levar àquele país, mas
porque pretendo fazer lá uns negócios que me tomarão rico: quero comprar
objetos que lá se fabricam com perfeição e dos quais noutros lugares há
muita procura, tais como colarinhos brunidos, cadeiras dobradiças de
pequenos pés graciosos, suportes ou descansos para a cabeça, tabuleiros de
xadrez, aventais de linho pregueados. Quero comprar estas coisas nas
próprias oficinas onde são feitas e nos bazares pelo melhor preço que os
deuses do pais me concederem. Depois vou levá-las para além das
montanhas de Kenan, Retenu e Amor, ao pais de Mitani sobre o rio Eufrates
e às terras do rei Chattusil, onde são procuradas e onde os compradores, na
sua avidez, me pagarão bom preço por elas. Tu falas no “país da lama”,
como se fosse uma terra de imundície, cheia de excrementos como um
ninho de pássaros, semelhante a uma estrebaria em que nunca se tenha feito
limpeza. E, contudo, o país ao qual estou disposto a voltar, e no qual talvez
eu te possa introduzir, é o país mais belo do mundo, de costumes tão
elegantes que terás a impressão de seres um boi diante do qual alguém
tange um alaúde. Tu, miserável Amu, vais arregalar os olhos com espanto
ao veres a região atravessada pelo rio de Deus, à qual chamam “os países”
porque é dupla e duplamente coroada; mas Mempi, a casa de Ptach, é a
balança dos países. Lá se alinham vastos espaços, inauditos, antecâmara do
deserto; lá jaz o leão com o pano sobre a cabeça, Hor-em-achet, o primeiro
que foi criado, o mistério dos tempos, sobre cujo peito adormeceu o rei, o
filho de Thot, e em sonho sua cabeça foi erguida até a mais alta promessa.
Teus olhos saltarão das órbitas quando vires as maravilhas e todo o
esplendor e a magnificência do país que se chama Keme, porque é negro
por causa da fertilidade e não vermelho como o miserável deserto. E donde
lhe vem a sua fertilidade? Do rio divino e só dele. Efetivamente ele não
recebe a chuva nem a água do céu, mas da terra; e é o deus Ápis, o forte
touro, que se estira manso sobre ele e aí fica, trazendo bênçãos, durante
toda uma estação, deixando após si o negro resíduo da sua força, de maneira
que se possa semear nele e depois colher o fruto centuplicado. E vens tu
falar do país como se fosse um monturo...
José baixou a cabeça. Agora sabia que se dirigia ao reino dos mortos, já
que o hábito de considerar o Egito como o Hades e os seus habitantes como
o povo do Cheol nascera com ele e fora a única coisa que ouvira sempre a
respeito do Egito, mormente dos lábios de Jacó.
Portanto, estava fadado a ser vendido naquele triste país; os irmãos já o
tinham impelido para lá; o poço não fora mais que o ingresso adequado.
Muito deplorável e desolador tudo isso. Porém a alegria de comprovar suas
previsões contrabalançava a sua tristeza, pois a segurança que tinha da sua
morte e de que o sangue do animal era verdadeiramente o seu recebia
auspiciosa confirmação nas palavras do velho. Isto o fez sorrir, apesar de
que o caso parecia antes digno de lágrimas ao pensar em sua sorte, bem
como na de Jacó. Tinha então de ir para o país pelo qual o pai nutria viva
aversão, à pátria de Agar, o simiesco Egito! Rememorava as descrições
nitidamente tendenciosas com que Jacó procurava tomar intolerável
também a ele aquele país, que o jovem, não podendo fazer a respeito uma
ideia segura, encarava agora à luz de princípios hostis e abomináveis, à luz
do culto do passado, da fornicação, com a morte, da inconsciência do
pecado. José tivera sempre certa tendência a desconfiar da justeza desse
quadro, inclinando-se a uma curiosidade simpática, consequência natural
das paternas advertências com fins moralizadores. Se o digno, bom e
morigerado homem soubesse que o seu cordeiro ia para o Egito, para o país
de Cam, o nu, como ele o chamava, pois que se chamava “Keme”, graças à
negra terra fértil com que o mimoseava o seu deus! Essa confusão de ideias
era bem característica dos seus preconceitos religiosos, pensava José, e
soma.
Mas o seu apego filial não se manifestava apenas na contradição. Era
um diabólico gracejo ter ele de dirigir-se justamente para o lugar que o pai,
por princípio, odiava; era um triunfo juvenil poder olhar ternamente as
baixezas morais desse país da perdição. Mas a tais sentimentos, que lhe
revolviam o sangue, vinham-se misturar secretos propósitos de que o pai se
ufanaria; a resolução que tomara o filho de Abraão de não se embasbacar
em presença das magnificências que o ismaelita lhe anunciara e de nenhum
caso deixar-se arrastar a uma admiração excessiva diante da estupenda
civilização que o esperava. Um desdém espiritual que lhe vinha de longe fê-
lo contrair a boca ao pensar nas delícias da vida que, no dizer do velho, o
aguardavam; e esse desdém era outrossim uma defesa, erguida em tempo
contra a embaraçosa timidez que é o produto de uma admiração exagerada.
— A casa — perguntou, levantando os olhos — para a qual me queres
levar é em Mempi, habitação de Ptach?
— Não, não — respondeu o velho —, ainda temos de subir muito, ou
melhor, de descer, isto é, andar rio acima,, desde o país da serpente até o do
abutre. E de um simplório a tua pergunta, pois se eu te disse que o dono da
casa se chama “Flabelífero à destra do rei”, ele deve estar onde está Sua
Majestade o bom deus; e a casa está em Vese, a cidade de Amun.
Muita coisa ficou sabendo José naquela tarde, junto ao mar; diversas
informações esclareceram-lhe o espírito. Assim, devia ele ir mesmo a No,
No-Amun, a cidade das cidades, objeto dos comentários de todo o mundo,
tema predileto das palestras dos povos mais longínquos, que diziam ter ela
cem portas e mais de cem mil habitantes. Não haviam de ficar maravilhados
os olhos de José vendo a cidade mundial? Ele bem via que desde aquele
momento devia manter-se bem firme na sua resolução de não cair numa
admiração estólida. Com grande indiferença esticou os beiços para a frente;
mas por mais que ele, por temor ao seu Deus, tentasse conservar
impassíveis os traços, não lograva afastar inteiramente o embaraço em que
se achava. Um pouco de medo de No ele bem o tinha, e a culpa disso cabia
sobretudo ao nome de Amun, esse nome poderoso, que intimidava a todos e
se impunha até mesmo onde o deus era estranho. A notícia de que ele ia
penetrar na terra do culto e do poder desse deus o encheu de preocupações.
Como José sabia, Amun era o senhor do Egito, soberano das duas regiões,
rei dos deuses. A sua perturbação nascia de que um só deus enfeixasse
tantos poderes. Amun era o maior... mas somente aos olhos dos filhos do
Egito. E José tinha de habitar entre os filhos do Egito! Por isso pareceu-lhe
útil falar de Amun, exercitar-se em falar dele. Disse, pois:
— O senhor de Vese, na sua capela e na sua barca, será um dos deuses
mais excelsos deste mundo?
— Dos mais excelsos? — respondeu o velho. — A verdade é que
discorres tão bem como compreendes. Calculas quantos pães, tortas,
gansos, quanta cerveja e quanto vinho pôs Faraó à sua disposição, para seu
uso e consumo? Digo-te que ele é um deus sem igual. Se eu te quisesse
enumerar aqui os tesouros, móveis e imóveis que ele possui, antes me
acabaria o fôlego que a matéria; e o número dos seus amanuenses que
administram tudo é como o número das estrelas.
— Maravilhoso! — comentou José. — Um deus de grande peso, pelo
que de ti ouço. Eu, porém, para sermos exatos, não indaguei seu peso, mas
de sua excelsitude.
— Prostra-te diante dele — aconselhou a voz do velho —, já que tens
de viver no Egito e não sabes distinguir entre peso e excelsitude, como se
uma coisa não se tomasse pela outra e ambas não viessem a dar numa única.
De Amun são todos os navios dos mares e dos rios e dele são os rios e os
mares. Ele é também Tor-nuter, a montanha dos cedros, cujos troncos
crescem para a sua barca, chamada “a fronte de Amun é poderosa”. Na
figura de Faraó vai ter com a Grande Consorte e gera Horus no paço. Ele é
Baal em todos os seus membros e isto não te causa impressão? E o Sol,
Amun-Rá é o seu nome. Não basta tudo isto às tuas exigências de
excelsitude ou ainda não te basta completamente?
— Mas ouvi dizer — replicou José — que ele é um carneiro na
escuridão da câmara mais recôndita.
— Ouvi dizer, ouvi... Falas exatamente como entendes, nem um
pouquinho melhor. Amun é um carneiro assim como Bastet é um gato no
país do delta e o grande escrivão de Schmun é um íbis e ao mesmo tempo
um macaco. Eles são sagrados nos seus animais e os animais são sagrados
neles. Muito terás que aprender se quiseres viver naquele país, se quiseres
permanecer nele ainda que seja apenas como o último dos seus jovens
escravos. Como queres contemplar o deus se não no animal? Três são um:
deus, homem e animal. Porque se o divino se casa com o animalesco, daí
advém o homem; por isso, quando Faraó está numa festa, põe em si um
rabo de animal. Portanto, se o animal por sua vez se une com o homem,
nasce daí um deus, e o divino não pode ser contemplado e compreendido
senão nesta união, de modo que tu vês nas paredes Heket, a grande parteira,
com a aparência de um sapo, e Anup com cabeça de cão, Anup, o abridor
dos caminhos. Vê, pois: no animal se acham deus e o homem, sendo o
animal o ponto sagrado do seu contato e da sua união, solene e venerando
segundo a sua natureza, e entre todas as festas é muito veneranda aquela em
que o bode cobre a virgem pura na cidade de Djedet.
— Já ouvi falar nisso — disse José. — E o meu senhor aprova tal
costume?
— Eu? — perguntou o madianita. — Deixa o velho em paz. Nós somos
mercadores ambulantes, revendedores, aclimatados aqui como em qualquer
outro lugar, e a nós se aplica o ditado”Se tu sustentas a minha pança, eu
respeito a tua usança.” Lembra-te sempre disso, pois pode ser-te útil.
— Nunca — retrucou José — direi no Egito e na casa do Flabelífero
uma só palavra contra a venerabilidade da festa da cobrição. Mas, cá entre
nós, permite que eu recorde que isso de venerabilidade é uma armadilha,
uma cilada, uma vez que o que é velho passa facilmente por venerando aos
olhos do homem, precisamente por ser velho, e uma coisa se toma pela
outra. Entretanto, mais de uma vez a venerabilidade daquilo que é velho é
mesmo uma cilada, e justamente quando não é só velho, mas francamente
passado no tempo e já podre: parece então simplesmente venerando, quando
na realidade é uma abominação diante de Deus e uma obscenidade. Cá para
nós, a oferta da virgem humana em sacrifício em Djedet me parece antes
uma indecência.
— Como queres distinguir uma coisa da outra? E onde iriamos parar se
qualquer papalvo quisesse ser o centro do mundo, quisesse arvorar-se em
juiz e sentenciar que coisa é sagrada no mundo e que coisa é somente velha,
que coisa é ainda veneranda e que coisa é já uma abominação? Dentro em
pouco nada mais haveria de sagrado! Eu não acredito que tu refreies a tua
língua e ocultes os teus ímpios pensamentos, porque pensamentos como os
que vais acalentando têm exatamente isto de particular, isto é, sentem
necessidade de externar-se; eu conheço essas coisas.
— Ao teu lado, meu senhor, aprende-se facilmente a equiparar velhice e
venerabilidade.
— Vamos, vamos. Deixa as tuas palavras açucaradas, porque eu sou
apenas um mercador sem pouso fixo. E melhor que prestes atenção às
minhas advertências, pois com as tuas palavras levianas podes escandalizar
os filhos do Egito e arriscar a tua sorte. É uma coisa clara que tu não
consegues ocultar os teus pensamentos; deves, portanto, procurar que sejam
justos esses pensamentos e não somente discurso. Evidentemente, nada é
mais sagrado que a unidade de deus, homem e animal no sacrifício.
Considera como quiseres estes três a respeito do sacrifício e verás que nele
se integram. Os três estão no sacrifício e cada um faz as vezes do outro. Por
isso Amun se agita, como bode do sacrifício, na escuridão da câmara mais
recôndita.
— Não sei bem o que se passa comigo, meu senhor e comprador, e
venerando comerciante. Enquanto me vais ensinando, em volta de mim se
estende uma densa névoa, uma luz difusa goteja como pó de pedras
preciosas caindo das estrelas. Não tenho outro remédio senão esfregar os
olhos, perdoa-me se faço isto, pois percebo que perco a tramontana.
Enquanto estás aí sentado diante de mim sobre a tua esteira, parece-me
realmente que a tua cabeça é a cabeça de uma rã verde e que estás aí
acocorado com toda a tua sabedoria como um cômodo sapo.
— Vês como és incapaz de ocultar teus pensamentos, por
inconvenientes que sejam? Como queres e podes enxergar em mim um
sapo?
— Os meus olhos não perguntam se eu quero. Exatamente um sapo de
cócoras me pareces tu debaixo das estrelas, porque tu foste Heket, a grande
parteira, quando o poço me gerou e tu me acolheste saindo eu do ventre
materno.
— Ah, tagarela! Não foi uma grande parteira que te ajudou a vires à luz.
Heket, a rã, se chama grande porque ajudou no segundo nascimento e
ressurreição do Despedaçado, quando Lhe tocou a ele, conforme a fé dos
filhos do Egito, o mundo inferior, e a Hor o mundo superior, e Osíris, a
vítima, se tornou o primeiro Ocidente, rei e juiz dos mortos.
— Isto me agrada. Uma vez que se vai para o Ocidente, é preciso ao
menos ser o primeiro entre os de lá. Mas ensina-me, senhor meu. Osíris, a
vítima, é mesmo tão grande aos olhos dos filhos de Keme, que Heket se
tornou a grande rã simplesmente por ter-lhe assistido na sua ressurreição?
— Ele é extraordinariamente grande.
— Grande acima da grandeza de Amun?
— Amun é grande graças ao seu reino; a sua fama atemoriza os povos
estrangeiros, tanto que estes derribam para ele os seus cedros. Mas Osíris, o
Despedaçado, é grande no amor do povo, de todo o povo, desde Djanet
junto ao delta até Heb, a ilha dos elefantes. Não há ninguém, desde o
escravo das pedreiras que tosse ao arrastar os pedregulhos e que vive aos
milhões, até Faraó, que vive uma única vez e sozinho e adora a si mesmo no
seu templo... digo-te eu, não há ninguém que não o conheça e não o ame e
não deseje ter a sua sepultura, se fosse possível, em Abot, ao pé do túmulo
do Despedaçado. Como, porém, isso não é possível, todos o acompanham
com íntimo fervor, confiando que se tomarão iguais a ele, chegada a sua
hora, e viverão eternamente.
— E serão como Deus?
— Como Deus e igual a ele, isto é, uma coisa só com ele, de modo que
o defunto seja Osíris e também assim se chame.
— Que me dizes? Tem piedade de mim, ó meu amo, enquanto me
instruís, e ajuda a minha pobre inteligência como me ajudaste a sair de
dentro do poço! Não é coisa fácil de entender o que tu me queres ensinar
aqui, esta noite, junto ao mar adormecido, acerca das opiniões dos filhos de
Mizraim. Devo entender estas coisas no sentido de que a morte tem a
faculdade de mudar a constituição do homem e de que o morto seja um
deus, com a barba de um deus?
— Sim. E esta a firme crença de todos os povos desses países, e se a
prezam tão intimamente e tão unanimemente, desde Zoan até Elefantina, é
porque tiveram de conquistá-la em prolongada luta.
— E a vitória lhes foi dura porque a conquistaram resistindo até a
aurora?
— Fizeram-na triunfar. A princípio e na origem era só Faraó, só ele, o
Hor no palácio, que, morrendo, ia ter com Osíris e ficava sendo uma coisa
só com ele, de maneira que era como Deus e vivia eternamente. Mas todos
os tossidores, os arrastadores de estátuas, os tijoleiros, os oleiros, os que
ficam detrás do arado e os que trabalham nas minas não tiveram paz e
lutaram até obterem e fazerem valer o seu direito, de modo que na sua hora
possam todos tomar-se Osíris e depois da morte sejam chamados Osíris
Chnemhotpe, Osíris Rechmere e vivam para sempre.
— Mais uma vez agrada-me o que dizes. Censuraste-me haver eu
emitido a opinião de que todo filho da terra tem em redor de si o seu mundo
particular, do qual ele é o centro. Mas, de um modo ou de outro, parece-me
que os filhos do Egito partilhavam a minha opinião, pois cada um quis ser,
depois da morte, Osíris, como a princípio só o era Faraó, e obtiveram o seu
intento.
— Continuas a dizer tolices. Não é o filho da terra, seja ele Chnemhotpe
ou Rechmere, que é o ponto central, mas sua fé e a convicção em que todos
estão concordes, abaixo e acima das correntes d’água, desde o delta até o
sexto rápido — a fé em Osíris e na sua ressurreição. Deves com efeito ficar
sabendo: este deus muito grande não morreu nem ressurgiu uma vez única;
ele renova sempre este prodígio ante os olhos dos filhos de Keme com o
ritmo da maré alta e da baixa: ele baixa e de novo sobe poderosamente,
pairando qual uma bênção sobre o país, ele, Ápis, o forte touro, o rio divino.
Se contares os dias do inverno, quando o rio diminui e o país fica seco,
verás que são setenta e dois; e são os setenta e dois que conspiraram com
Set, o pérfido asno, e colocaram o rei no caixão. Mas na sua hora ele
ressurge do mundo ínfero, ele, o que cresce, o que incha, o que inunda, o
que se multiplica, o senhor do pão, o que cria todas as boas coisas e faz
tudo viver, com o nome “Alimentador do país”. Imolam-lhe bois e bezerros.
Ora, vê que deus e a vítima do sacrifício são uma e a mesma coisa,
porquanto ele próprio é um bezerro e um touro aos olhos deles sobre a terra
e na sua casa; Ápis, o negro, com a marca da lua na ilharga. Mas quando ele
morre, é conservado com bálsamo, enfaixado e sepultado e é chamado
Osíris Ápis.
— Vê, então! — exclamou José. — Também ele conseguiu, como
Chnemhotpe e Rechmere, tomar-se Osíris na sua morte?
— Muito me engano ou tu motejas — comentou o velho, a modo de
pergunta. — A luz incerta da noite vejo-te pouco; mas, quando te ouço,
parece-me deveras que estás zombando. Eu te digo, não motejes do país
aonde te levo, porque em todo o caso estou indo para lá; e, ouvindo as
opiniões dos filhos daquele país, não te ensoberbeças totalmente, cuidando
que sabes melhor as coisas com o teu Adon, mas procura adaptar-te
piamente aos seus usos, do contrário terás de arrepender-te. Ensinei-te
alguma coisa, iniciei-te, troquei contigo dois dedos de despretensioso
cavaco esta noite, para distrair-me, para matar o tempo. E que estou velho e
às vezes me foge o sono. Não tinha outra razão para discretear contigo.
Podes agora dar-me as boas-noites para que eu trate de dormir. Vê, porém, o
modo como te exprimes.
— As mas ordens serão cumpridas — respondeu José. — Mas como
poderia eu fazer zombaria se o meu senhor me iniciou esta noite com tanta
benevolência, a fim de que eu vença a prova e não me aconteça nenhum
mal na terra do Egito, e ensinou ao castigado coisas que eu, filho da plebe,
nunca teria sonhado, de tão novas que são para mim, coisas que nem todos
podem entender? Se eu soubesse a maneira de agradecer-te, fa-lo-ia. Uma
vez, porém, que não o sei, quero ainda hoje fazer por ti, meu benfeitor,
alguma coisa que antes não quis fazer, e responder a uma pergunta que
ladeei quando ma fizeste. Quero dizer-te o meu nome.
— Queres dizê-lo? — perguntou o velho. — Dize-mo então; ou melhor,
não me digas nada; não insisti contigo porque sou velho e circunspecto e
prefiro não saber qual é a tua condição, pois receio enredar-me em tudo isso
e, com a informação obtida, tomar-me cúmplice da injustiça.
— Nada disso — replicou José. — Não corres tal perigo, mas deves ao
menos estar em condições de dar um nome ao escravo quando o cederes
àquela casa de bênçãos na cidade de Amun.
— Então, como te chamas?
— Osarsif— respondeu José.
O velho calou-se. Conquanto não houvesse entre os dois homens mais
que o espaço imposto pelo respeito, eles se viam apenas como sombras.
— Está bem, Osarsif— disse o velho, passados alguns instantes. —
Disseste-me o teu nome. Agora despede-te, porque, ao nascer do sol,
queremos continuar a nossa jornada.
— Adeus — saudou José no escuro. — Possa a noite embalar-te nos
seus doces braços e a tua cabeça reclinar-se-lhe no peito, suave e
brandamente, como outrora a tua cabecinha de criança se aconchegava ao
regaço materno!
A TENTAÇÃO

Depois que José disse ao ismaelita o seu nome de morto, indicando-lhe


como queria ser chamado na terra do Egito, os mercadores continuaram o
seu caminho durante alguns dias, muitos e vários dias ainda, em absoluta
placidez e inteira indiferença em relação ao tempo. Efetivamente, eles
sabiam que um belo dia, por pouco que fizessem de sua parte, o tempo
havia de vencer o espaço e havia de vencê-lo com muito maior segurança se
não se ocupassem absolutamente dele, mas deixassem à sua conta ir
amontoando progressos, cada um dos quais, de per si, não tinha
importância, bastando que no seu vegetar se ativessem convenientemente à
direção da sua meta.
Essa direção era dada pelo mar, que se estendia eterno à direita da
arenosa estrada dos viandantes, debaixo de um céu que se perdia em mística
distância. O mar ora se mostrava em repouso num cintilante glauco
prateado, ora esbravejava contra a conhecida praia em ondas fortes como
touros, carregadas de espuma. Lá descambava o Sol, o astro errante e
imutável, o olho de Deus, muitas vezes um esbraseado disco solitário que
formava, ao mergulhar, umas como alpondras coruscantes sobre as águas
infinitas até a praia, até os viajores que costeavam o mar, de passagem
adorando o astro; outras vezes também no meio de um esplendor de ouro e
de rosa, que com maravilhosa visão robustecia a alma nas convicções
celestes; ou ainda em tintas e vapores baços e ardentes que anunciavam, de
modo angustioso, um humor melancolicamente ameaçador da divindade.
Em troca, o Sol não despontava num horizonte aberto, mas detrás de altos
montes que, à esquerda, restringiam a vista dos caminhantes. Nas terras
próximas do interior da região se estendiam campos cultivados e, no terreno
ondulado, havia poços construídos, e pomares ricos de frutas adornavam as
encostas cultivadas em socalcos. Era por ah que, longe do mar, cinquenta
braças sobre o seu espelho, eles passavam muitas vezes, atravessando
aldeias que pagavam tributos a cidades feudais, unidas por uma
confederação de princípios, estando à testa da confederação Gaza, ao sul,
Chazati, a poderosa cidadela.
No topo das colinas assentavam, alvas e cercadas de palmeiras, as
cidades-mães, asilo dos habitantes do campo, as cidadelas dos samim. Tal
como faziam no campo à margem das aldeias, os madianitas expunham seus
artigos nas praças diante das portas dos grandes centros populosos, guardas
de templos, oferecendo à gente de Ekron, de Jabne, de Asdod suas
mercadorias trazidas de além do Jordão. José fazia de amanuense. Ficava
sentado e com o pincel ia assentando cada transação que se concluía com os
regaceiros filhos de Dagon, pescadores, barqueiros, artífices, soldados
mercenários dos senhores da cidade, na sua armadura de cobre. Osarsif, o
jovem escravo que sabia escrever, ia fazendo tudo isso para agradar a seu
bom amo. Dia a dia batia mais forte o coração do vendido, e bem se pode
imaginar por quê. Ele não fora talhado para deixar-se conduzir
automaticamente numa caminhada a esmo, sem formar uma ideia exata do
lugar onde se encontrava e da sua situação relativamente a outros lugares.
Sabia que, com muitas paradas, com muitos descansos que se arrastavam
morosamente, estava a ponto de fazer, em outro país, um pouco mais para a
frente e em direção ao ocidente, em sentido oposto à sua terra natal mas
passando-lhe defronte, a mesma caminhada que fizera montado na pobre
Hulda para alcançar os irmãos, e que dentro em breve chegaria ao ponto
onde havia de terminar a caminhada, distando então dos rebanhos paternos
apenas um trecho de estrada lateral, não mais de metade da jornada que
empreendera em busca dos irmãos. Mais ou menos próximo de Asdod, a
casa de Dagon, o deus-peixe que aí se adorava, havia uma laboriosa
colônia, a duas horas do mar, à qual se chegava passando por uma estrada
bulhenta, a regurgitar de gente, de carros puxados por bois e cavalos.
Haviam atingido mais ou menos as cercanias desse lugar. O caminho da
costa descendo em direção a Gaza, como José sabia, desviava-se cada vez
mais para o ocidente, de modo que aumentava cada dia mais a distância do
país montanhoso no interior a oriente; sabia também que em breve, por
volta do meio-dia, iam passar pelo sopé das alturas de Hebron.
Por isso é que o seu coração batia tão cheio de angústia e de tentações,
passando por aquela região e na sua vagarosa viagem para Ascalon, a
fortaleza das fortalezas. O seu espírito dominava a conformação do país:
Sefela, a planície que corria ao longe da costa marítima — este era o lugar
pelo qual viajavam; mas as cadeias de montanhas que defrontavam o
oriente, e às quais se dirigiam aflitos e preocupados os olhos indagadores
herdados de Raquel, formavam o segundo degrau do país dos filisteus; mais
elevado e vincado de vales, e sempre mais íngreme, lá atrás para o oriente,
se erguia o mundo no Ultramar, numa região mais áspera e bravia, com
pradarias até onde a palmeira das planícies não se aventurava, com altos
pastos de ervas balsâmicas povoados de ovelhas, das ovelhas de Jacó...
Como então sucedia tudo aquilo? Lá em cima estava sentado Jacó, em
desespero, desfeito de tanto chorar, na terrível aflição que Deus lhe enviara,
tendo nas mãos o sinal sangrento da morte de José, a prova de que ele fora
dilacerado; cá embaixo, pelo contrário, aos seus pés, José, o raptado, ia de
uma a outra cidade dos filisteus, mudo, sem chamar atenção, na companhia
de forasteiros, e passava defronte da sua tenda, descendo, descendo ao
Cheol, à mansão da morte! Que coisa mais natural do que pensar na fuga?
Sentia um prurido em todos os seus membros, um desejo infrene de fugir
que o arrastava e suscitava nele, fermentando, pensamentos de meias
resoluções já irresistivelmente gizadas na sua imaginação. Isso lhe vinha
sobretudo na hora do sono, depois de ter desejado boa-noite ao velho, ao
seu comprador. Com efeito, cada dia cabia-lhe fazer essa saudação; era essa
uma das suas incumbências: no fim do dia era obrigação sua desejar ao
ismaelita uma noite feliz, devendo, ao fazê-lo, usar de variações rebuscadas,
que haviam de ser sempre novas, porque senão o velho dizia que já as
conhecia. Nas trevas da noite, especialmente quando acampavam nas
imediações de uma aldeia, de uma cidade dos filisteus, e os seus
companheiros de viagem estavam mergulhados no sono, o raptado se sentia
invadido e arrastado já pelas colinas envolvidas na noite, muito longe pelos
cimos dos montes e pelos desfiladeiros cobertos de bosques, a uma
distância de oito milhas (a distância não havia de ser maior do que isso, e
José, trepando, saberia encontrar seu caminho), lá no país montanhoso, nos
braços de Jacó, enxugando as lágrimas do pai, dizendo-lhe “eis-me aqui” e
sendo de novo o seu predileto.
Pensando em tudo isto, terá ele fugido? Não, é sabido que não o fez.
Refletiu bem, conquanto mais de uma vez só no último momento; repeliu a
tentação, renunciou ao seu plano, ficou onde estava. De resto, no momento
era aquele o alvitre mais prudente, porque a fuga, de iniciativa própria,
encerrava em si grandes riscos: poderia desfalecer pelo caminho, cair nas
mãos de bandidos e assassinos, ser devorado pelas feras. Seria, contudo,
amesquinhar-lhe a renúncia se se quisesse atribuí-la unicamente à regra
segundo a qual a natural inércia nas decisões dos homens lhes toma a
inação mais fácil que a ação. Casos houve nos quais recusou uma ação
pessoal que seria muito mais suave do que uma fuga selvagem por montes e
vales. Não, a renúncia, que viera ao cabo de tormentosa tentação — tanto
agora como em outro caso da sua vida que nós, prevendo-o, já temos em
mente —, era o produto de uma reflexão de natureza absolutamente
particular, própria de José — a reflexão que se poderia exprimir com as
palavras”Como poderia eu fazer tamanha loucura e pecar contra Deus?” Em
outras palavras, havia nele a visão de insensato e pecaminoso pensamento
da fuga; a clara e inteligente averiguação de que seria um tremendo dislate
atrapalhar com uma escapada os planos de Deus. Efetivamente, José estava
compenetrado da certeza de que não inutilmente fora arrancado de sua casa
e de que o divino Fazedor de Planos que o arrebatara dos braços do velho e
o conduzira a um ambiente novo tinha a seu respeito projetos para o futuro,
de um modo ou de outro, e opor-se a esses desígnios, subtrair-se a essa
prova seria um pecado e um grande erro, o que aos olhos de José era uma e
a mesma coisa. O conceito de pecado, como sendo um erro, como um
equívoco cometido na vida, como uma falta estúpida contra a sabedoria
divina, era-lhe inato, e a experiência havia extraordinariamente fortalecido
nele tal persuasão. Ele cometera vários erros... no poço percebera isso. Mas,
uma vez que escapara do poço e, evidentemente conforme o plano, fora
levado para longe, os erros cometidos até então podiam perfeitamente estar
no plano e ser considerados oportunos, e, conquanto em completa cegueira,
ser da vontade de Deus. Outros erros da mesma espécie, porém, como a
fuga, seriam de uma insensatez enorme; significariam literalmente querer
ser mais sábio que Deus, e isto, segundo o amadurecido critério de José, era
o cúmulo da estupidez.
O predileto do pai? Ainda uma vez? Não, ainda e sempre, mas num
sentido novo, num sentido há muito almejado e sonhado. Agora, depois do
fosso, tratava-se de viver numa nova e mais elevada predileção e eleição, no
amargo perfume do enfeite do arrebatamento, que era poupado aos
Poupados e reservado aos Reservados. A coroa despedaçada, o ornamento
do holocausto, ele o trazia de novo agora, mas não mais em sonho, porém
em verdade, isto é, em espírito, e porventura iria ele agora renunciar a tanto
em atenção a um estólido instinto da carne? Tão parvo, tão destituído de
sabedoria divina não era José; no derradeiro momento não seria tão idiota
que fosse deitar fora as vantagens da sua condição. Conhecia ele a festa, ou
não a conhecia, em todas as suas horas? Era ele, ou não o era, o centro do
presente e da festa? Com a coroa entretecida nos cabelos devia ele fugir da
festa, para ser de novo um pastor de ovelhas com seus irmãos? A tentação
era forte somente na carne, mas no espírito era muito leve. José venceu-a.
Continuou o caminho em companhia dos seus compradores, passando em
frente de Jacó e saindo da sua proximidade, Osarsif, o nascido entre os
juncos e, para dizê-lo à moda egípcia, Josef-em-Heb, que significa “José na
festa”.

UM ENCONTRO

Dezessete dias? Não, foi uma viagem de sete vezes dezessete, não
contados, mas que devem ser entendidos no sentido de longa duração; e,
por fim, ninguém podia saber quanto da sua duração se devia à marcha
vagarosa dos madianitas e qual a extensão de terra que venceram. Viajavam
por um país populoso, movimentado e fértil, coroado de olivais, coberto de
palmeiras, nogueiras e figueiras com vasto cultivo de cereais, regado com
água de fundas cisternas diante das quais passavam bois e camelos. Aqui e
acolá viam-se em campo aberto fortins dos reis a que davam o nome de
paradas, guarnecidos de torres e muralhas, sobre cujas ameias estavam
archeiros e de cujas poreis saíam guerreiros guiando suas parelhas de
fogosos corcéis; e mesmo com os soldados do rei os ismaelitas não
hesitavam em entabular negócio. Vilarejos, granjas, colônias em redor de
um Migdal, por toda parte eram convidados a deter-se, e eles se detinham
semanas e semanas, não importando o tempo. Antes de alcançarem o lugar
onde a baixa margem litorânea subitamente se erguia num alto paredão de
rochedos, em cujos píncaros estava situada Ascalon, o estio se avizinhava
do seu termo.
Santa e forte era Ascalon. As lajes das muralhas que a cintavam e que
desciam em semicírculo até o mar em redor do forte pareciam ter sido ali
colocadas por gigantes; o seu templo de Dagon era uma construção maciça,
com numerosos pátios, um bosquete muito ameno onde havia um tanque
cheio de peixes; a sua mansão de Astaroth gabava-se de ser mais antiga que
qualquer outro templo de Baalat. Sob as palmeiras crescia na areia, sem
cultivo algum, uma espécie aromática de cebolinhas. Dava-as de presente
Derketo, senhora de Ascalon, e podiam ser vendidas a outras localidades. O
velho mandou recolhê-las em saquinhos, sobre os quais escreveu em
caracteres egípcios”Finíssimas cebolas de Ascalon.”
Dali foram até Gaza, chamada Chazati, no meio de olivais nodosos, a
cuja sombra pastavam muitos rebanhos. E já haviam assim feito um bom
trecho da sua jornada. Já se achavam quase em território egípcio. Quando,
em outros tempos, Faraó irrompia do Sul com seus carros e seus peões,
avançando através das míseras terras de Zahi, Amor e Retenu até o fim do
mundo, para que pudessem, em linhas profundas, representá-lo gigantesco
sobre a estrutura dos muros do templo, enquanto com a mão esquerda
segurava pelos cabelos cinco bárbaros de uma só vez e com a direita
brandia a clava sobre eles, transidos de um terror sagrado — então Gaza
fora sempre a primeira etapa da expedição. Já se viam muitos egípcios pelas
travessas de Gaza, cheias de odores penetrantes. José observava-os
atentamente. Tinham costas largas, trajavam roupas brancas e eram
orgulhosos. Ao longo da costa e no interior da região, pela estrada que ia
dar em Bersabé, obtinha-se um vinho excelente por preço módico. Em troca
de mercadorias, o velho comprou várias talhas e carregou com elas dois
camelos, escrevendo sobre as mesmas”Vinho oito vezes bom de Chazati.”
Mas por longo que fosse o caminho já percorrido até a cidade
fortificada de Gaza, esperava-os ainda a parte pior da viagem, em
comparação com a qual a morosa marcha através do país dos filisteus não
fora mais que um entretenimento e um folguedo de meninos. Logo depois
de Gaza, na direção do meio-dia, onde uma estrada arenosa, correndo ao
longo da costa, ia sempre baixando, à medida que se aproximava do rio do
Egito, o mundo tomava-se extremamente inóspito. Disso bem sabiam os
ismaelitas, que já várias vezes haviam percorrido a mesma estrada. Antes de
alcançar os férteis campos pelos quais o Nilo se espraiava, abria-se um
mundo infernal e profundamente tristonho, uma planície apavorante na qual
se gastavam nove dias de jornada, maldita e perigosa, o apavorante deserto,
onde ninguém devia demorar-se mas que era preciso palmilhar e deixar para
trás o mais depressa possível; e assim foi Gaza o último lugar de descanso,
antes de se chegar a Mizraim. Por isso o velho, o amo de José, não tinha
pressa de partir de Gaza, pois, segundo dizia, a próxima viagem seria de
longa duração. Demorou-se em Gaza muitos dias, mesmo porque tinha de
fazer sérios preparativos para a travessia do deserto, abastecer-se de água,
tomar um guia experiente e um abridor de caminhos. Para ser franco,
deveria também munir-se de armas contra perigosos salteadores
vagabundos, habitantes das areias. Mas de tudo isto desistiu o nosso velho,
em primeiro lugar porque ele, na sua prudência, reputava aquilo uma
providência escusada, visto como, alegava, ou a gente tem a sorte de
escapar daqueles excomungados e então não se tem necessidade de armas,
ou tem-se a infelicidade de ser agarrado por alguns deles, e então, embora
se consiga derrubar alguns, sempre ficarão muitos para saquear-nos. O
mercador, dizia ele, deve contar com a sua sorte, não com dardos e flechas,
que isto não é da sua profissão.
Em segundo lugar, o guia por ele contratado na praça em frente à porta
da cidade, local onde tais indivíduos costumam oferecer seus serviços aos
viandantes, o tranquilizara insistentemente com referência aos vagabundos,
garantindo-lhe que, conduzidos por ele, não havia nenhuma necessidade de
armas, porque ele era um acompanhador perfeito e abria os caminhos mais
seguros através de horrendas plagas, motivo pelo qual seria coisa
verdadeiramente ridícula tomá-lo como guia e além disto armar-se até os
dentes. Como se admirou José, ou antes, como ficou estarrecido e depois
alegre, não podendo crer no que seus olhos viam, quando, no mercenário
que na manhã do dia da partida se juntou à pequena caravana pondo-se à
sua testa, reconheceu o mancebo ao mesmo tempo solícito e importuno que
pouco tempo antes de lhe acontecerem tantas coisas o guiara de Siquém a
Dotan! Era ele sem nenhuma dúvida, se bem que o albornoz que agora
usava lhe desse uma aparência diversa da anterior. Era impossível não
reconhecer aquela cabeça pequena e o pescoço grosso, a boca vermelha e o
queixo redondo como uma fruta, e especialmente a languidez do olhar e a
atitude estranhamente afetada. Muito confuso, julgou José ter percebido um
olhar que o guia, apesar de impassível, lhe lançara, piscando ao de leve um
olho — olhar que era ao mesmo tempo uma alusão ao seu antigo
conhecimento, colocando-o contudo sob condição de ser discreto. Isto
tranquilizou bastante José, porque esse conhecimento o reconduzia muito
atrás, até a sua vida precedente, bem mais atrás de quanto ele desejava que
pudesse penetrar a vista do ismaelita; e aquele piscar de olhos era um
indício de que o guia o entendera.
Não obstante, José desejava vivamente trocar uma palavra com aquele
indivíduo, e quando por entre o canto dos que iam à frente e o tilintar das
campainhas dos camelos a comitiva deixara para trás a região verde,
abrindo-se diante dela a terra árida, o jovem pediu ao ancião que o precedia
licença para interrogar mais uma vez, por via das dúvidas, o guia, e apurar
se ele realmente entendia do oficio.
— Tens medo? — indagou o mercador.
— E por causa de todos — respondeu José. — Eu, porém, entro pela
primeira vez no país maldito e me dá vontade de chorar.
— Vai então ter com ele.
José guiou o seu animal para o camelo número um e disse ao guia:
— Eu sou a boca do patrão. Quer ele saber se conheces mesmo as
estradas.
O mancebo olhou-o à sua velha moda, por cima do ombro e com os
olhos quase fechados.
— Por tua própria experiência poderias tranquilizá-lo.
— Silêncio! — sussurrou José. — Que fazes por estas bandas?
— E tu? — foi a resposta.
— Está bem, não digas uma só palavra aos ismaelitas sobre a minha
jornada à procura dos meus irmãos — murmurou José.
— Não tenhas receio — respondeu o outro também em voz baixa. E,
por enquanto, a conversação ficou nisso.
Entretanto iam penetrando cada vez mais no deserto, à medida que
passavam os dias. O Sol se punha sombriamente por trás de cordilheiras
mortas, e esquadrões de nuvens, cinzentas no centro e nas fímbrias
esbraseadas com a luz vespertina, cobriam o céu sobre uma planície de
areia dum amarelo de cera, sobre a qual a distância se viam uns cômoros
dispersos, cobertos de erva seca. Numa dessas noites José teve ainda
ocasião de falar com aquele homem, sem com isso dar na vista. Alguns dos
viandantes se haviam estirado em redor dos montículos cobertos de erva e,
por causa do frio repentino, haviam acendido uma fogueira com gravetos
ressequidos. No meio deles estava também o guia, que aliás não
frequentava muito a companhia nem de amos nem de servos e evitava
conservas, limitando-se a discutir com o velho cada dia sobre a jornada que
lhes competia levar a termo. José, depois de ter feito a sua obrigação e ter
desejado ao senhor um sono feliz, juntou-se ao grupo, sentou-se ao lado do
guia e esperou que a monossilábica conversação dos viajantes cessasse e
eles passassem por uma modorra. Então acotovelou levemente o vizinho e
disse:
— Escuta. Sinto naquela ocasião não ter podido manter a palavra e ter-
te deixado esperar em vão.
O amigo deu-lhe uma olhada passageira por cima do ombro e de novo
fitou o fogo que ia morrendo.
— Com que então não podias, hem? — retrucou. — Deixa que eu te
diga que nunca na minha vida encontrei um rapaz tão sem palavra como tu.
Lá me deixas montando guarda ao animal, talvez por uns sete jubileus, se
de ti dependesse, e não voltas, como havias prometido. Realmente, muito
me admira que fale ainda contigo; estou deveras admirado de mim mesmo.
— Mas já te pedi desculpas — murmurou José — e creio que estou
desculpado. Tu de nada sabes. As coisas tomaram um rumo diferente do
que eu supunha. Não me foi possível ir de novo ter contigo, como era
anteriormente minha firme resolução.
— Sim, sim, palavrório, desculpas. Sete jubileus do Senhor poderia eu
ficar lá à espera...
— Mas a verdade é que não ficaste lá sete jubileus. Ao perceberes que
eu faltava ao encontro combinado, seguiste com certeza o teu caminho. Não
exageres a seca que, contra a minha vontade, te causei. Dize-me antes que
coisa aconteceu a Hulda depois de minha partida.
— Hulda? Quem é Hulda?
— Perguntar quem é perguntar um pouco demais — disse José. —
Pergunto por Hulda, a minha branca burrinha de viagem, tirada da
cavalariça de meu pai.
— Burrinha, burrinha, branca burrinha de viagem! — arremedava-o o
guia em voz baixa. — Tens um modo tão temo de falar dos teus, que por ele
se pode deduzir o teu egoísmo. Gente dessa é que depois se comporta da
maneira que se sabe, faltando à palavra...
— Não, não — protestou José. — Se falo de Hulda com ternura, não é
por minha causa, mas por causa dela, porque era o animal amável e
circunspeto que meu pai me confiara. Quando penso na crespa crina que lhe
crescia na testa e ia até os olhos, o meu coração se comove. Desde quando
te deixei, nem um só instante se passou sem que eu me interessasse pela
sorte dela, de tomar informações, ainda nos momentos e nas longas horas
que também para mim não foram destituídas de terror. Quero que saibas
que, desde que vim a Siquém, a má sorte não me abandonou e graves
tribulações me foram reservadas.
— Não é possível — comentou o mancebo —, não se pode crer em tal.
Tribulações? Estou um tanto desorientado e firmemente convencido de que
não ouvi bem. Não encontraste teus irmãos? Tu não cessas de trocar
sorrisos com os outros homens, porque és gracioso e belo como uma
imagem esculpida, tendo além disso de que viver. Donde, pois, há de vir a
má sorte e a grave tribulação? Vou fazendo a mim mesmo essas perguntas e
não acho resposta.
— No entanto, assim é — replicou José. — E apesar de tantas
vicissitudes, digo-te eu, não cessei um só instante de preocupar-me com a
sorte da pobre Hulda.
— Está bem, está bem — disse o guia. E José reconheceu o estranho
movimento das pupilas, o rápido rolar dos olhos que já observara antes
naquele indivíduo. — Está bem, jovem escravo Osarsif, tu falas e eu escuto.
A falar verdade, parece escusado que uma pessoa, assoberbada de
dificuldades, se preocupe tanto com a sorte de um bicho. Com efeito, que
serviços nos pode prestar um animal desses, que importância pode ter ele
em comparação com tudo mais? Mas considero possível que se deva
apreciar a tua solicitude e que deve redundar em honra tua essa tua
preocupação por uma pobre criatura, mesmo no meio das tuas angústias.
— Em suma, que é feito dela?
— Da burra? Para um homem como eu não deixa de ser doloroso
primeiro ter de tomar-se guarda de asnos, e isto sem nenhuma utilidade, e
depois ainda ter de prestar contas do que se passou. Realmente seria
interessante saber como se chega a este extremo. Mas podes ficar
sossegado. As minhas últimas impressões sobre o jarrete do animal não
eram afinal tão tétricas como supusemos no primeiro momento de
desalento. Aparentemente havia contusão e não ruptura... isto é,
aparentemente havia ruptura e na realidade só havia contusão. Procura
compreender-me. Aguardando a tua volta, tive tempo de sobra para pensar a
pata do bicho, e quando afinal cansei de esperar, a tua Hulda estava tão
melhor que podia trotar de novo, embora quase que só sobre três patas. Eu
mesmo fui montado nela até Dotan e coloquei-a numa casa à qual já tive
ensejo de prestar várias vezes diversos serviços, com lucro meu e dela, a
primeira casa do lugar, pertencente a um lavrador, onde a burrinha estará
tão bem como na casa do teu pai, o chamado Israel.
— Deveras? — exclamou José em voz baixa e muito satisfeito. —
Quem havia de crer? Então ela se ergueu e pôde trotar e tu providenciaste
de modo que está em bom lugar?
— Em ótimo lugar— confirmou o outro. — Ela pode dar-se por feliz
que eu a tenha colocado na casa do tal lavrador; a sorte lhe foi benigna.
— Agora entendamo-nos — disse José. — Tua vendeste em Dotan. E o
produto da venda?
— Perguntas pelo produto?
— Claro que pergunto.
— Com ele paguei a mim mesmo os serviços que te prestei como guia e
como guarda.
— Ah! Deveras? Bom. Não quero perguntar quanto foi. E a carga de
bons comestíveis que Hulda levava?
— Será possível que no meio de tantas dificuldades ainda penses
naquelas guloseimas e aches que, em confronto com o resto, são
importantes?
— Não muito, mas o fato é que elas lá estavam.
— Pois também com elas me indenizei.
— A verdade é — ponderou José — que já muito tempo antes tinhas
começado a indenizar-te pelas minhas costas; com estas palavras quero
referir-me a uma certa quantidade de cebola e de fruta cristalizada. Mas vá
lá, que talvez a intenção fosse boa e, assim como assim, quero recordar as
boas qualidades que demonstraste. Fico-te verdadeiramente agradecido por
teres curado Hulda e assegurado sua subsistência, e agradeço também à
fortuna que fez que nos tomássemos a encontrar, com o que fiquei sabendo
estas notícias.
— E agora me toca novamente pôr-te no bom caminho, a ti, balão de
vento, para que chegues à tua meta — disse o homem. — Quanto a saber se
este papel é agradável e se convém ao que o desempenha, sucede amiúde
que uma pessoa pergunta isso a si própria mas inutilmente, porque ninguém
mais propõe semelhante questão.
— Estarás tu outra vez de mau humor — replicou José —, exatamente
como naquela noite, na estrada de Dotan, quando espontaneamente me
ajudaste a procurar meus irmãos e de tão má vontade o fizeste? Pois desta
vez não me censuro de ser-te molesto, porque tu te puseste ao serviço dos
ismaelitas para conduzi-los pelo deserto e eu vou com eles por acaso.
— E a mesma coisa que eu guie a ti ou aos ismaelitas.
— Não vás dizer isso aos ismaelitas, porque eles fazem muita questão
da sua dignidade e soberania, e não gostam que lhes venham dizer que de
certo modo eles viajam somente para que eu chegue lá onde Deus me quer.
O guia calou-se e fincou o queixo no manto. Terá revirado os olhos
como era seu costume? E possível, mas a escuridão impedia de vê-lo.
— E quem é que gosta que lhe digam que é apenas um instrumento? —
perguntou o guia. — E mais ainda quando quem lhe diz isso é um
criançola? De tua parte, jovem escravo Osarsif, isto é uma desfaçatez; por
outro lado, porém, é precisamente o que eu digo, e é sempre a mesma coisa,
podendo muito bem ser que sejam os ismaelitas que aqui se achem por
acaso, e a ti é que eu devia abrir o caminho. Para mim é indiferente. E para
não falar mais no burro, digo-te que nesse meio-tempo tive também de
tomar conta de um poço.
— Um poço?
— Tive sempre de contar com uma tal função, em se tratando dum
poço. Era a caverna mais vazia que já vi; tão vazia não era possível haver
outra, chegando mesmo isso a ser deveras ridículo. Avalia agora a
dignidade e valor da minha incumbência. Aliás, quanto ao tal fosso, era
talvez justamente a circunstância de estar tão vazio o que mais importava.
— A pedra fora retirada?
— Naturalmente. Eu estava sentado nela e sentado continuei, apesar dos
desejos do homem que me queria ver pelas costas.
— Que homem?
— O tal que, na sua estultícia, veio às ocultas até o fosso. Um homem
de uma estatura excepcional, de pernas que pareciam colunas de um templo,
mas com uma voz que não condizia com a sua corpulência.
— Rubem! — exclamou José, e quase se lhe ia a circunspeção.
— Chama-o como quiseres, mas era uma estulta torre humana. Voltou
com a sua corda e a sua túnica diante de um fosso totalmente vazio.
— Queria salvar-me! — reconheceu José.
— E possível — concordou o guia e bocejou feminilmente, levando a
mão à boca com gesto afetado e um leve suspiro. — Ele também fazia o seu
papel — acrescentou depois, falando de modo pouco claro porque afundara
queixo e boca no manto e parecia querer dormir. José ainda o ouviu
murmurar palavras desconexas, de despeito, mais ou menos como estas:
— Não se deve tomar a sério... Puro gracejo e alusão... Criançola...
Espera...
Não foi possível arrancar-lhe palavras mais coerentes; e depois, durante
o resto da viagem pelo deserto, José não mais falou com aquele guia e
guarda.
A FORTALEZA DE ZEL

Dia a dia foram seguindo pacientemente, através da melancólica


paisagem, a campainha do camelo-guia, de poço em poço, até que,
decorridos nove dias, puderam os viajantes dar-se por felizes. O guia não se
gabara em vão ao dizer que entendia do assunto. Não perdeu o caminho
nem se extraviou, nem ainda quando passavam por uma intrincada série de
montanhas, que não eram verdadeiras montanhas, mas um amontoado de
cinzentos blocos de arenito, formando às vezes figuras grotescas, e de
massas empilhadas, de um negro cintilante, não como rocha, mas
semelhantes a cobre, de sorte que no seu fosco esplendor pareciam uma
cidade que se erguesse no espaço. E não se perdia nem ainda quando, dias a
fio, não se podia absolutamente falar em estradas e veredas no seu
verdadeiro sentido, senão que o mundo se tomava o fundo de um mar
maldito e encerrava os viajantes num infinito angustiante, cheio de areia de
tom cadavérico até a fímbria de um céu empalidecido pelo calor; nem
quando passavam por rima de cúpulas de dunas, cujas fileiras pareciam
lindamente onduladas e dobradas pelo vento contrário, enquanto ao pé
delas, sobre a planície, o ar ardente e cintilante brincava como se estivesse a
ponto de inflamar-se, de tomar-se um fogo bailador, e a areia erguida no
espaço girava em turbilhões. Ante uma tão insidiosa alegria de morte, os
homens cobriam a cabeça e preferiam não olhar, mas cavalgavam às cegas,
impelidos apenas pela ideia de safar-se daquele horror.
Muitas vezes, de passagem, topavam com brancas ossadas. Eram as
costelas, o fêmur de um camelo, e, às vezes, daquele pó de cera também
emergiam mirrados ossos humanos. Viam aquilo com os olhos quase
fechados, conservando viva a esperança. Durante duas meias jornadas, do
meio-dia à noite, corria à frente deles uma coluna de fogo que parecia guiá-
los. Conheciam a natureza do fenômeno, mas sua atitude em relação a ele
não parava nesse conhecimento. Bem sabiam que se tratava de redemoinhos
de pó em movimento, iluminados pelos raios solares. Apesar disto sentiam-
se muito honrados e diziam uns aos outros”Uma coluna de fogo nos
precede.” Se aquele sinal se esboroasse de improviso diante de seus olhos,
isso seria uma coisa terrível, pois muito provavelmente se lhe seguiria um
Abubu de pó. Mas a coluna não se fragmentou, apenas trocou de forma
como um duende, e aos poucos se perdeu no vento nordeste. Este
permaneceu-lhes fiel durante os nove dias; a sua boa sorte acorrentou o
vento sul, não lhe permitindo que fizesse secar os seus odres e que lhes
consumisse a água vital. E no nono dia já estavam fora de perigo, escapos
aos horrores da desolação, podendo dar-se por felizes porque a região que
se estendia agora diante deles era colonizada e administrada pelo Egito.
Bastiões, parapeitos baixos e torres de observação se estendiam numa certa
distância pelo deserto adentro, com alguns destacamentos de soldados,
archeiros núbios com penas de avestruz nos cabelos e homens da Líbia que
traziam machadinhas, comandados por capitães egípcios, que apostrofaram
desabridamente os viandantes e por razões de oficio os interrogaram sobre
sua procedência e seu destino.
O velho tinha uma forma alegre e astuta de falar com os soldados, de
pôr fora de dúvida a inocência das suas intenções e de ganhar-lhes as boas
graças com presentinhos tirados dentre a sua quinquilharia: facas, lâmpadas,
cebolas de Ascalon. Desta maneira iam, entre formalidades mas com
alegria, de uma sentinela a outra, porque muito melhor era gracejar com os
guardas do que passar pela cidade de ferro e atravessar o pálido fundo do
mar. Mas os viajantes sabiam perfeitamente que aquilo não era mais que o
primeiro passo e que lhes cumpria ainda superar o exame mais meticuloso
da sua inocência e inocuidade para salvaguarda dos costumes. Tinham de
arrostá-lo, esbarrando inevitavelmente naquilo que o velho chamava “a
muralha dos dominadores”, e que fora erigida em tempos remotos, através
do istmo e entre os lagos amargos, contra os selvagens de Chosu e os
habitantes da areia, que quisessem invadir com o seu gado os campos de
Faraó.
De uma elevação de terreno sobre a qual pararam ao pôr-do-sol,
abarcavam com a vista estas ameaçadoras precauções e arrogantes medidas
de defesa. Com o seu jeitoso palavreado já o velho mais de uma vez
conseguira superá-las, tanto na ida como na volta. Por isso não as temia
muito e podia com mãos tranquilas apontá-las aos seus homens: uma série
de muralhas ameadas, interrompidas por torres, estendendo-se por trás de
canais que ligavam entre si uma cadeia de lagos e lagoas. Mais ou menos na
metade da muralha surgia uma ponte; mas exatamente aí, de ambos os lados
da paisagem, a dobra de defesa tomava-se especialmente poderosa;
encerrados em suas muralhas, erguiam-se formidáveis castelos e obras de
fortificação, de dois pavimentos, maciços e altos, cujas paredes e saliências
se levantavam nos parapeitos numa linha artisticamente recurvada, para
tomá-los resistentes contra qualquer ataque, munidos de quadrangulares
torres ameadas, de bastiões, portas para as sortidas, balcões de defesa por
toda parte e janelas com varões de ferro nas pequenas construções
sobrepostas. Era esta a fortaleza de Zel, o baluarte, a defesa a um tempo
timorata e poderosa do ditoso e vulnerável Egito contra o deserto, contra os
salteadores e a miséria oriental. O velho a designou pelo seu nome aos seus
e não a temia; mas falava tanto a respeito daquilo e com tanta insistência
dizia como seria fácil à sua perfeita inocência passar também daquela vez,
como passara de outras, por entre aqueles obstáculos, que se tinha a
impressão de que ele queria infundir coragem a si mesmo.
— Não trago eu — dizia o velho — a carta do correspondente de
Galaad, sita além do Jordão, para o correspondente em Djanet, que se
chama também Zo’an, e que foi edificada sete anos depois de Hebron? Sim,
eu a trago aqui, e vereis como se nos abrirão portas e entradas. O caso é
poder mostrar alguma coisa escrita e providenciar para que os egípcios por
sua vez escrevam alguma coisa destinada a outras paragens, para que lá
também se escreva algo uma terceira vez e volte para os arquivos. É certo
que sem o preto no branco não se passa, mas basta exibir um caco ou um
rolo e um documento e ficam logo radiantes. Bem sei que os do Egito
dizem que para eles o mais alto é Amun ou Osíris, a sede do olho. Mas eu
conheço-os um pouco mais que isso; no fundo, para eles o mais alto é Thot,
o escrivão. Crede-me; se sobre os muros aparecer Hor-vaz, o jovem oficial
escrivão que há muito tempo para mim é como um amigo, e se eu puder
falar com ele, não haverá dificuldades e passaremos. Uma vez lá dentro,
ninguém mais porá em dúvida a nossa inocência, e percorreremos os países
margeando o rio, até onde quisermos. Enquanto isso, vamos levantar aqui as
nossas tendas para passarmos a noite, porque hoje o meu amigo Hor-vaz
não vem mais aos muros. Amanhã, porém, antes de nos apresentarmos a
pedir livre passagem junto à fortaleza de Zel, devemos lavar-nos com água
e sacudir das nossas roupas o pó do deserto, devemos tirá-lo das nossas
orelhas, raspá-lo das nossas unhas, para podermos comparecer diante deles
como homens e não como lebres da areia. E vós, jovens, deveis também
derramar óleo sobre os vossos cabelos, passar arrebique nos olhos e ataviar-
vos um pouco, já que para eles a miséria é objeto de desconfiança e a
incivilidade é uma abominação.
Assim falou o velho e eles seguiram suas recomendações. Pernoitaram
ali e pela manhã se aformosearam tanto quanto possível, após uma viagem
tão longa e acidentada. Mas ao cabo de todos esses preparativos houve um
fato especial, uma surpresa: o guia que o velho contratara em Gaza, e que
os havia conduzido com segurança, em certo ponto desaparecera, sem que
ninguém soubesse dizer com certeza quando se ausentara, se durante a noite
ou se enquanto se adornavam para entrar em Zel. O certo é que, quando o
procuraram, sumira-se, lá ficando o camelo com a campainha, que ele
montara até ah. E não recebera sequer do velho a sua paga.
Não era caso para se entristecerem demasiado, por isso apenas
menearam a cabeça, pois não necessitavam mais do guia, que de resto fora
sempre um companheiro frio e parco de palavras. Por algum tempo se
admiraram, e o contentamento do velho pela economia que fizera ficou um
tanto aguado em virtude da pouca clareza do fato em si e do desassossego
que um negócio mal regulado deixa sempre no espírito. Aliás ele supunha
que o homem, mais cedo ou mais tarde, voltaria para reclamar o que lhe
tocava. José acreditava na possibilidade de ter o guia se apossado
despercebidamente de mais do que lhe tocava, e aconselhou que se
verificassem bem as mercadorias. Mas o resultado do exame não deu razão
à sua suspeita. Mais que a todos cabia-lhe maravilhar-se sobretudo do
caráter incoerente do seu conhecido e da sua indiferença em questões de
lucro, que parecia dificilmente conciliável com a cobiça por ele
demonstrada outras vezes. Por serviços amigáveis, prestados
espontaneamente, fazia-se pagar com excesso, e àquilo que por direito lhe
competia não ligava a mínima importância. Era, pelo menos, o que parecia.
Dessas incongruências, porém, não podia falar com os ismaelitas, e as
coisas de que não se fala depressa são esquecidas. Em vez de se
preocuparem com o guia excêntrico, tinham de pensar em coisas mais
sérias, por isso, depois de limparem as orelhas e pintarem os olhos,
puseram-se a caminho para a água, para a muralha dos dominadores, e por
volta do meio-dia estavam à vista de Zel, a fortaleza que se erguia sobre a
ponte.
Vista de perto, era esta ainda mais terrível do que de longe, dupla e
inexpugnável, com os seus muros recurvos, as suas torres, os seus
parapeitos de defesa, com todas as ameias ocupadas por guerreiros com as
suas couraças e escudos de pele às costas. E lá estavam eles com o queixo
apoiado nos punhos que seguravam a lança, olhando com absoluto desdém
aqueles que se aproximavam. Por trás deles viam-se andar de um lado para
outro oficiais com perucas de comprimento médio, camisas brancas,
peitilhos de couro à laia de avental e na mão um bastãozinho. Estes não se
ocupavam de quem vinha, mas as sentinelas avançadas levantavam os
braços, punham à boca as mãos em concha como porta-voz, deixando cair a
lança sobre o braço, e diziam:
— Para trás! Voltai! Fortaleza de Zel! Não se passa! Vamos atirar!
— Deixá-los gritar — disse o velho. — Calma! As intenções deles não
são tão más como fazem crer. Demos todos os sinais de paz, avançando
lentamente, mas com firmeza. Pois não trago eu a carta do meu
correspondente? Havemos de passar.
Dito isto, avançaram em direção às brechas da muralha para a porta
central, atrás da qual havia o grande portão de ferro que levava à ponte, e
fizeram sinais de paz. Sobre a porta da muralha resplandecia, em linhas
profundas e variamente pintada com cores de fogo, a gigantesca figura de
um abutre de pescoço nu, com as asas abertas, apertando entre as garras o
anel de uma viga. A direita e à esquerda dele e ressaindo da estrutura de
tijolos saltavam duas cobras de pedra sobre pedestais, de quatro pés de
altura, com as cabeças intumescidas, eretas sobre os ventres, de aspecto
hediondo, emblema da defesa.
— Para trás! — bradavam as sentinelas de cima da porta exterior e
sobre a figura do abutre. — Fortaleza de Zel! Para trás, lebres da areia,
voltai para a miséria! Aqui não se passa!
— Estais enganados, guerreiros do Egito — respondeu-lhes do seu
camelo o velho no meio do grupo dos seus. — E justamente aqui a
passagem e em nenhum outro lugar. Onde havia de ser noutro lugar do
istmo? Somos gente prática que não erra a porta e sabe perfeitamente por
onde se passa para entrar no país, pois já atravessamos mais de uma vez
aquela ponte indo e vindo.
— Sim, mas para trás! — gritavam os de cima. — Sempre para trás,
para trás, para o deserto; é esta a nossa palavra para vós. Neste país não se
deixa entrar a gentalha.
— A quem dizeis estas coisas? — retrucou o velho. — A mim que não
só conheço o vosso modo de proceder mas que até o aprovo
expressamente? Eu também tenho à gentalha e às lebres do deserto um ódio
figadal como o vosso e aprovo integralmente que os impeçais de profanar o
vosso país. Mas olhai bem para nós, examinai as nossas caras. Temos
aspectos de bandidos vagabundos e de gentalha do Sinai? Será que a nossa
aparência desperta a suposição de que queremos espiar o país com intuitos
malignos? Ou onde estão os nossos rebanhos com que pretenderíamos
assolar os campos de Faraó? Nada disto, nem por sombras. Somos
madianitas de Ma’on, mercadores ambulantes, merecedores de estima pelo
nosso comportamento, e trazemos do estrangeiro artigos estupendos que
quiséramos submeter à vossa apreciação e também trocá-los por outras
mercadorias entre os filhos de Keme, para que possamos por nossa vez
receber os dons de Jeor, aqui chamado Ápis, para levá-las até o fim do
mundo. Pois esta é a época do tráfico, dos dons de troca, e nós viajantes
somos os seus servos, os seus sacerdotes.
— Belos sacerdotes! Sacerdotes cobertos de pó! Tudo mentira! —
gritavam para baixo os soldados.
Nem por isso o velho perdeu o ânimo, senão que abanou
indulgentemente a cabeça.
— Como se eu não conhecesse o sistema! — disse ele à puridade aos
seus. — Fazem sempre assim por princípio, põem mil dificuldades para que
os outros acabem mudando de itinerário. Eu, porém, nunca voltei atrás e
também desta vez quero passar. — Ouvi, guerreiros de Faraó — gritou de
novo para os de cima —, ouvi, valentes soldados morenos! Para mim é um
prazer especial estar aqui a discutir convosco, porque sois alegres. Mas
aquele com quem eu desejava falar é o jovem comandante de tropas Hor-
vaz, que me deixou entrar da outra vez. Fazei-me, pois, o favor de chamá-lo
aí sobre a muralha. Quero mostrar-lhe a carta que tenho aqui comigo para
Zo’an. Uma carta! — repetiu. — Preto no branco! Thot! Djehuti, o
babuíno!
Gritava-lhes tudo isto a sorrir, como se faz com gente em quem se vê,
não o indivíduo em si, mas os representantes de uma dada nacionalidade
que o mundo conhece e diante dos quais se pronuncia em tom entre
escarninho e lisonjeiro o nome da predileção popular, cuja ideia se liga de
modo proverbial e lendário à imagem daquela nacionalidade. E,
efetivamente, eles também riram, conquanto talvez só da opinião existente
entre os estrangeiros, segundo a qual todo egípcio deveria morrer de amores
pela arte de escrever e pelas coisas escritas; mas ao mesmo tempo ficaram
impressionados com a circunstância de ser familiar ao velho o nome de um
dos seus chefes. Por isso consultaram entre si e gritaram para baixo aos
ismaelitas que o comandante Hor-vaz estava viajando, encontrando-se na
cidade de Sent a serviço, e que não regressaria antes de três dias.
— Que pena! — disse o velho. — Que contratempo, guerreiros do
Egito! Três dias negros, três dias de lua nova sem Hor-vaz, sem o nosso
amigo! Então só temos que esperar. Aguardaremos aqui a sua volta,
prezados homens d’armas. Mas fazei-nos o favor, quando ele tornar de
Sent, chamai-o logo à muralha, dizendo-lhe que os bem conhecidos
madianitas de Ma’on estão aqui e trazem consigo documento escrito.
E de fato armaram as suas tendas na areia em frente à fortaleza de Zel e
ficaram três dias à espera do tenente, mantendo boas relações com os
homens da muralha, que mais de uma vez desceram para ver suas
mercadorias e comerciar com eles. Além disso, veio juntar-se-lhes outro
grupo de viajantes que vinham do sul, provavelmente do Sinai, ao longo
dos Lagos Amargos, e queriam também entrar no Egito. Eram gente pouco
asseada e quase sem verniz de civilização. Esperaram com os ismaelitas.
Chegado o momento, estando já de volta Hor-vaz, todos os que tinham
desejo de entrar no país foram introduzidos pelos soldados, que os fizeram
transpor a porta das muralhas no pátio, diante da porta da ponte. Aí, porém,
tiveram de esperar mais algumas horas, até que o jovem oficial de perna
fina desceu aos pulos a escada e deteve-se nos últimos degraus.
Acompanhavam-no dois homens, um dos quais trazia os utensílios de
escrita, e o outro, um estandarte com cabeça de carneiro. Hor-vaz fez sinal
aos interessados para que se aproximassem.
Trazia a cabeça coberta com um chinó castanho-claro, aparado reto
sobre a testa e que caía liso como um espelho até as orelhas; daí caía em
pequenos anéis sobre os ombros e as costas. Com a sua couraça de escamas
sobre a qual pendia, como um crachá, uma mosca de bronze, não ia muito
bem o mimoso pregueado da alvíssima túnica de pano com mangas curtas,
que aparecia por baixo, e o saiote de finas pregas que lhe caía de través até
a curva da perna.
Todos o saudaram cerimoniosamente; mas, por míseros que pudessem
parecer aos olhos do oficial, este retribuiu a saudação quase com maior
cortesia que a deles e até com uma amabilidade grotesca, arqueando as
costas como um gato, arremessando para trás a cabeça com um sorriso
melífluo, como que beijando o ar com os beiços estendidos e alçando na
direção dos suplicantes um delgado braço moreno, que saía de dentro da
manga pregueada e cujo pulso tinha a adomá-lo um bracelete. Tudo isto,
porém, se verificou com grande rapidez e desembaraço, de sorte que apenas
por um instante se desenvolveu uma mímica difícil, graciosa e
exageradamente expressiva, que também logo cessou. E fácil era perceber
(José o reconheceu imediatamente) que todas aquelas homenagens não
eram dirigidas aos forasteiros, mas executadas em honra da boa educação e
por respeito a si próprio. Hor-vaz tinha uma cara pueril e envelhecida, curta,
de nariz esborrachado, olhos alongados por arrebiques, e aos lados da boca,
sempre um pouco pontuda e sorridente, viam-se sulcos surpreendentemente
profundos.
— Quem sois? — perguntou rapidamente em egípcio. — Homens da
miséria em tão grande número, que querem entrar nos países?
Com a palavra “miséria” não queria propriamente insultar, mas apenas
aludia ao estrangeiro. No “grande número”, porém, compreendia ambos os
grupos de viajantes que ele não diferençava, tanto os madianitas com José
como os sinaítas, que por sinal se haviam prostrado em terra perante ele.
— Sois muitos demais — continuou em tom de censura. — Todo dia
chegam cá pessoas de diversas procedências, da terra de Deus ou das
montanhas de Chu, e querem entrar neste país, e se é muito dizer “todo
dia”, direi “quase todo dia”. Ainda anteontem deixei passar alguns que
vinham do país de Upi e do monte de User, porque estavam munidos de
cartas. Eu sou um escrivão das grandes portas e devo apresentar relatórios
sobre os negócios dos diversos países. A minha responsabilidade é grande.
Donde vindes e que quereis? Tendes boas intenções ou intenções menos
boas ou francamente ruins, de maneira que se tenha de rechaçar-vos ou,
melhor ainda, fazer-vos tomar a cor do cadáver? Vindes de Kedech e
Tubichi ou da cidade de Cher? Tem a palavra o vosso chefe! Se vindes do
porto de Sur, eu conheço bem esse lugar miserável, ao qual se leva água em
barcas. Em geral nós conhecemos exatamente os países estrangeiros porque
os temos subjugado e lhes impomos tributos... E, antes de mais nada, tendes
com que viver? Quero dizer: tendes que comer e podeis responder por vós
de um modo ou de outro, de sorte que não vos tomeis um ônus para o
Estado ou não sejais obrigados a roubar? E, no primeiro caso, onde estão as
vossas garantias escritas provando que tendes com que viver? Trazeis cartas
para algum cidadão destes países? Então, dai-mas. Do contrário, não vos
resta outra alternativa senão tomar atrás.
O velho, prudente e brando, aproximou-se dele. — Tu és aqui como
Faraó — disse — e se eu não me sinto esmagado com a influência que aqui
exerces e não me confundo diante do teu poder deliberativo, é por não ser
esta a primeira vez que me encontro na tua presença, tendo já
experimentado a tua bondade, sábio tenente.
E aqui lhe recordou como ele, o comerciante madiaruta, estivera ali a
última vez em tal e tal época, dois ou talvez quatro anos antes, e como fora
prontamente atendido pelo comandante das tropas Hor-vaz, à vista da
pureza de suas intenções. Hor-vaz pareceu também recordar-se vagamente
da cabeça inclinada daquele velho que falava o egípcio como um homem
pode falar, e por isso o estava escutando com benevolência, enquanto ele
respondia às perguntas que lhe eram feitas. Dizia o velho que ele não
somente não tinha más intenções, como nem sequer intenções menos boas,
mas única e exclusivamente intenções ótimas; que passara o Jordão e se
achava em viagem de negócios, tendo atravessado o país de Pelechet e o
deserto, e tanto ele como os seus sabiam viver excelentemente e bastar-se a
si próprios, sendo disso uma prova a preciosa carga de mercadorias que
trazia sobre o lombo dos seus camelos. Quanto às suas relações no país,
trazia ele uma carta — e desenrolou ante os olhos do oficial o pedaço de
pele de cabra convenientemente preparada, sobre a qual o correspondente
de Galaad tinha escrito em caracteres cananeus algumas frases de
recomendação ao correspondente de Djanet no delta.
Hor-vaz estendeu as mãos de dedos afusados na direção do manuscrito,
com um gesto de delicado acolhimento. Não era grande coisa o que podia
colher dali, mas por um “visto” escrito do próprio punho num canto viu que
aquela pele já lhe fora apresentada anteriormente.
— Velho amigo — disse —, tu me trazes sempre a mesma carta. Assim
não serve. Tu não podes passar eternamente com este documento. Estes
gatafunhos não os quero ver mais, já estão velhos, tens de arranjar alguma
coisa mais nova.
O velho objetou que suas relações não se limitavam ao homem de
Djanet, mas se estendiam, como ele dizia, até Tebas, até Vese, a cidade de
Amun, onde tencionava chegar, apresentando-se diante de uma casa de
honra e distinção, com cujo mordomo, de nome Mont-kav, filho de
Achmose, ele estava há muitos anos em boas relações, tendo podido servi-
lo já outras vezes com mercadorias estrangeiras. A casa pertencia a um que
era o maior entre os grandes, Petepré, o flabelífero à destra do rei. — A
simples alusão a uma relação destas, posto que indireta, com a corte causou
visível impressão no jovem oficial.
— Pela vida do rei! — exclamou ele. — Se é assim como dizes, isto já
significa alguma coisa; e se a tua boca de asiático não mente, o negócio
muda de figura. Não trazes aí nada escrito sobre tuas relações com esse
Mont-kav, filho de Achmose, que preside na casa do flabelífero? Nada
mesmo? E pena, porque isso simplificaria não pouco o teu caso. Seja como
for, sabes mencionar-me esses nomes e a tua cara pacata dá às tuas palavras
um aceitável atestado de credibilidade.
Fez sinal para que lhe dessem os utensílios de escrever, e o seu
assistente se apressou em oferecer-lhe o junco pontiagudo e a tabuleta de
madeira. Sobre esta, com uma lisa superfície de gesso, costumava o oficial
rabiscar suas notas. Hor-vaz embebeu o junco numa tigelinha de tintas da
paleta que o soldado segurava ao seu lado, sacudiu largamente algumas
gotas, em amplo arco levou a mão direita até a superfície e pôs-se a
escrever, fazendo que lhe repetissem as coisas ditas pelo velho. Escreveu
em pé, junto ao estandarte, tendo a tabuleta sobre o braço delicadamente
inclinado para diante, a boca pontuda, piscando os olhos amiúde, afetuoso,
contente consigo mesmo, cheio de visível prazer.
— Podeis passar! — disse depois. Restituiu tabuleta e pena, tornou a
saudar à sua maneira comicamente requintada e de novo subiu a escada pela
qual viera. O barbudo xeque do Sinai, que durante todo aquele tempo se
conservara com o rosto em terra, nem sequer fora interpelado. Hor-vaz
pensou que ele e os seus fizessem parte da comitiva do velho, de maneira
que chegariam aos oficiais de Tebas indicações incompletas em bonito
papel. Mas nem por isso o Egito seria digno de lástima e o país não cairia
na desordem. Em todo o caso, para os ismaelitas o importante foi que, às
mãos dos soldados de Zel, se abriram os batentes de bronze da porta que
dava livre acesso à ponte e eles puderam atravessá-la com os seus animais e
sua bagagem e entrar nos campos de Ápis.
E assim, como o mais humilde daqueles viandantes, sem ser notado de
ninguém, sem ser mencionado com um nome qualquer no protocolo oficial
de Hor-vaz, José, filho de Jacó, entrou no Egito.
2

A ENTRADA NO CHEOL

JOSÉ AVISTA A TERRA DE GOSEM E CHEGA A PER-SOPD

Que viu ele no começo? Nós o sabemos com certeza e as circunstâncias


no-lo indicam. O caminho pelo qual o levaram os ismaelitas era-lhes o
prescrito em mais de um sentido, inclusive o aconselhado pelas condições
geográficas. Não é menos certo ser objeto de poucos comentários que a
primeira região do Egito atravessada por José foi um território que devia a
sua fama, para não dizer a sua glória, não à parte que representou na
história do Egito, mas à que teve na história de José e dos seus: o país de
Gosem.
Chamava-se também Gosem ou Gochen, à vontade, segundo o modo de
pronunciar de cada um, e formava parte do nomo da Arábia, o vigésimo do
país de Uto, a Serpente; por outras palavras, o Baixo Egito. Era situado na
parte oriental do delta e justamente por isso José, com os que o conduziam,
teve de entrar naquele país logo que deixou atrás os lagos Amargos e as
fortalezas da fronteira. Por certo nada havia por ah de realmente notável ou
grandioso e José não viu grande perigo de perder a cabeça diante das
maravilhas de Mizraim, que avançavam com ímpeto, nem de enredar-se em
embaraçosa timidez.
Sob um céu plúmbeo e levemente chuvoso passavam patos selvagens
pela uniforme região pantanosa, cortada de fossos e de diques, sobre a qual
surgia aqui e acolá um abrunheiro ou um sicômoro.
Entre os juncos, nas limosas correntes d’água ao longo das quais se
caminhava sobre passeios adrede construídos, viam-se cegonhas, íbis e
outras aves pernaltas. Em verdoengos tanques cheios de marrecos, se
miravam, sob os leques das palmeiras, aldeolas com os seus armazéns de
teto cônico de barro — em nada diferentes dos outros vilórios do país, e não
constituindo para a vista nenhuma compensação depois de uma viagem de
mais de sete vezes dezessete dias! O que José ia vendo era uma simples
terra lisa, sem qualidades que impressionassem, não sendo nem ainda o
“celeiro” que os viajantes imaginavam fosse Keme; em toda a sua extensão
como na sua largura não era mais que uma terra coberta de erva e de pastos,
embora fosse úmida e gorda, e o filho de pastores a olhava com interesse.
Pastavam ah algumas manadas de gado bovino com malhas brancas e
encarnadas, sem chifres ou com os chifres revirados para o alto em forma
de lira. Havia também rebanhos de ovelhas e os seus pastores, com cães de
orelhas de chacal, estavam acocorados debaixo de esteiras de papiro,
estendidas por cima dos seus cajados, a defenderem-se da chuvinha miúda.
O velho explicou aos seus que a maior parte do gado não era do lugar.
Aquelas manadas vinham de regiões nas quais havia só terrenos de lavra e o
gado grosso teria de pastar em campos de trevo. Assim, na quadra própria
do ano, as manadas eram enviadas para os terrenos palustres da parte
setentrional do Egito inferior, para engordar na pradaria agora fértil, graças
aos canais de água doce, ao longo dos quais a nossa pequena comitiva
estava justamente passando e que conduziam diretamente a Per-Sopd, a
antiga cidade santa da província. Lá o fosso se bifurcava do braço deltaico
do Ápis e unia o rio aos lagos Amargos. Estes, por sua vez (sabia-o bem o
velho), eram unidos por um canal ao mar da terra vermelha, numa palavra
ao mar Vermelho, de sorte que do Nilo se podia chegar lá sem interrupção e
da cidade de Amun podia-se velejar diretamente até Punt, o país do incenso,
como haviam ousado fazê-lo os navios de Hatchepsuts, a mulher que fora
Faraó e usara a barba de Osíris.
O velho ia tagarelando a esse respeito, seguindo a tradição lá à sua
maneira velhaca e agradável. José escutava-o de má vontade, não querendo
saber das façanhas de Hatchepsuts, a mulher a quem a dignidade régia
trocara o sexo, a mulher que havia usado barba. Será um exagero inserir na
sua história que já então os seus pensamentos lançavam uma ponte aérea
entre aqueles alegres prados e os seus entes queridos de casa, o pai e o
pequeno Benjamim? Certamente que não é dizer demais, ainda que os seus
pensamentos não fossem do gênero dos nossos, mas giravam apenas em
redor de alguns motivos de sonhos, que eram como que a substância
musical da sua vida espiritual. Aqui começava a soar um daqueles motivos
que, desde o princípio, estivera intimamente ligado aos do “rapto” e da
“exaltação” — o motivo da “reunião no Egito”. Mas no jogo dos seus
pensamentos de repente se introduziu um outro: o motivo do horror de Jacó
ao país do arrebatamento; e ele os conciliou num acordo, ao dizer a si
mesmo que esse pacífico e primordial país de pastagens era, sim, o Egito,
mas ainda não o verdadeiro Egito em toda a sua indecência, e que poderia
perfeitamente convir a Jacó, o rei dos rebanhos, a quem quase faltava o
sustento no país onde vivia. Ele observava os rebanhos que os proprietários
de terras do Nilo superior mandavam para cá por causa do bom pasto, e
percebia como e sobretudo quanto o motivo do arrebatamento ainda tinha
necessidade de ser completado pelo da exaltação, antes que o gado dos
senhores do Nilo superior cedesse o campo a um outro gado no país de
Gosem, numa palavra, antes que chegasse a vez da “reunião no Egito”.
Ainda uma vez ponderou a hipótese e se manteve firme nela, isto é, que,
uma vez que a marcha era para o ocidente, era preciso ao menos tomar-se o
primeiro no meio daquele povo.
Por enquanto ia ele caminhando com os seus compradores ao longo da
barrenta margem plana do abençoado canal, orlada de esguias palmeiras,
enquanto sobre a lisa superfície do canal deslizava lentamente ao encontro
deles uma flotilha de embarcações com velas altas e mastros flexíveis.
Prosseguindo assim a marcha, o término seria fatalmente Per-Sopd, a cidade
santa, que afinai, segundo verificaram ao chegar iá, não passava de uma
localidade mal construída, de ruas estreitas, muros desproporcionadamente
altos e quase sem vida. Com efeito, a quase totalidade da população era
formada pelo “juiz de campo” local, “conhecedor secreto das ordens do
rei”, que em bom siríaco tinha o título de “Rabisu”, com seus empregados e
o clero rapado de Sopd, o deus regional, cognominado “flagelo dos
habitantes do Sinai”. Entre os demais habitantes predominavam o variegado
trajo asiático e a língua de Amor e de Zahi, a alva roupagem dos egípcios e
o seu falar. Nas acanhadas ruas de Per-Sopd percebia-se um cheiro tão
penetrante de cravo-da-índia e de outros espécimes aromáticos que só no
princípio era agradável, mas que depois se tomava insuportável. Sendo esta
a especiaria preferida na casa de Sopd, juntavam-na a todo sacrifício que se
lhe fazia. Era um deus tão antigo que os seus próprios adoradores e
profetas, que andavam com uma pele de lince jogada às costas e
caminhavam com os olhos cravados no solo, já não sabiam dizer com
segurança se a sua cabeça era de porco ou de hipopótamo.
Era um deus posto de lado e obscuro e, a julgar pelas disposições e
pelos discursos dos seus sacerdotes, um deus algo exasperado, que havia já
algum tempo não mais ferira os habitantes do Sinai. A sua imagem, apenas
da altura de uma mão, estava num afastado recanto do seu antigo templo
maciço, cujos átrios e pátios eram ornamentados de maciças estátuas
sentadas do Faraó dos tempos primitivos, que construíra o edifício. Hastes
douradas, das quais pendiam bandeiras de várias cores nos nichos da sua
fachada de paredes em arcobotante e cobertas de pinturas, procuravam em
vão dar à casa de Sopd uma aparência alegre. Quase sem patrimônio, os
armazéns e o tesouro do pátio principal estavam vazios, não sendo muitos
os que vinham trazer suas ofertas a Sopd. Vinham apenas os egípcios que
residiam na cidade, gente de fora nenhuma, porque nenhuma festa
reconhecida em toda parte atraía as massas, cheias de santo entusiasmo, a
descerem o rio e deterem-se entre os arruinados muros de Per-Sopd.
Por dever de cortesia comercial os ismaelitas tinham levado e deposto
sobre a mesa das ofertas alguns ramalhetes de flores, compradas no
vestíbulo aberto, e um pato lardeado de cravos. Mas os sacerdotes, de
crânio reluzente, de unhas compridas e sempre com as pálpebras baixadas,
descreviam aos ofertantes, com arrastada cadência, a melancólica situação
do seu antigo senhor e da sua cidade. Acusavam os novos tempos de terem
trazido consigo uma grande injustiça, de terem acumulado todos os pesos
do poder, do esplendor e da precedência sobre um único prato da balança
dos países, isto é, desde quando Vese se tomara tão grande, sobre o prato
meridional superior, enquanto na origem aqueles pesos carregavam sobre o
prato setentrional inferior, o país do delta, como era de toda ajustiça. De
fato, nos bons tempos de outrora, quando Mempi era a esplendente cidade
dos reis, o território do delta fora o verdadeiro e real Egito, ao passo que as
regiões superiores, inclusive Tebas, estavam quase no mesmo nível da
mísera Kuch e dos países dos negros. Naquelas épocas o Sul fora pobre de
cultura e de luzes do espírito, bem como de beleza de vida; e daqui, do
vetusto Setentrião, estes bens haviam subido o rio com força fecundadora;
aqui estavam as fontes do saber, da moral, da prosperidade; aqui haviam
nascido os mais antigos e veneráveis deuses do país, especialmente Sopd, o
senhor do Oriente na sua capela, que uma falsa transposição de pesos agora
atirara inteiramente para a penumbra. Com efeito, o tebano Amun, lá bem
próximo ao país dos negros, arvora-se hoje em juiz sobre o que deve e o
que não deve ser considerado egípcio, tão certo anda ele de que o seu nome
equivale ao nome do Egito e este ao seu. Ainda recentemente, narravam os
desconsolados sacerdotes, pessoas do Ocidente que habitavam perto dos
líbios tinham mandado emissários a Amun com a observação de que a eles
se consideravam não egípcios e sim líbios, porque habitavam fora do delta e
andavam em completo desacordo com os filhos do Egito, inclusive quanto
ao culto dos deuses. Mandaram dizer-lhe que gostavam de carne de vaca e
queriam ter liberdade de comê-la como faziam os líbios, a cuja raça
pertenciam. Amun, porém, em resposta os advertiu de que era bom não
falar em carne de vaca, porque por Egito se entendia todo o país fertilizado
pelo Nilo, montes e vales, sendo egípcios todos quantos habitavam aquém
da cidade dos elefantes e se abeberavam no rio.
Esse o veredicto de Amun, e os sacerdotes de Sopd, o senhor,
levantaram as mãos de unhas compridas para tomar compreensível aos
ismaelitas a arrogância daquele deus. Por que, então, do lado de cá de Jeb e
da primeira catarata? — perguntavam zombeteiramente. Por que Tebas está
ainda situada do lado de cá? Veja-se a grandeza de coração desse deus! Se
Sopd, o seu senhor, cá embaixo no Norte, no primeiro e verdadeiro Egito,
declarasse serem egípcios todos quantos bebem do rio, isto, sim, seria
nobreza e largueza de coração. Mas se o diz Amun — um deus que, a falar
de modo reservado, é suspeito de ser de proveniência núbia e de ter sido na
origem um deus da miserável Kuch e que, só por se ter arbitrariamente
equiparado a Atum-Rá, soube ganhar a fama de origem nacional — esta
largueza de coração não tem pleno valor e absolutamente não merece o
nome de nobreza d’alma.
Em suma, era evidente a ciosa mortificação dos profetas de Sopd,
causada pela mudança dos tempos e do mais alto esplendor do Sul. Assim,
os ismaelitas, e o velho mais que todos, procedendo como bons
comerciantes, respeitavam-lhes os melindres. Carregaram mais nas ofertas
com alguns pães e algumas talhas de cerveja e, antes de se porem a caminho
em direção a Per-Bastet, que ficava nas proximidades, dispensaram ainda
toda a sorte de atenções ao menosprezado deus Sopd.
A CIDADE DOS GATOS

Havia aqui um cheiro tão forte de erva-gato que o estrangeiro não


habituado quase se sentia mal. E um cheiro repugnante para qualquer
criatura, mas não para o animal sagrado em Bastet, isto é, para o gato, que,
como é sabido, o prefere a todo outro cheiro. No santuário de Bastet, o
principal e grandioso edifício da cidade, conservavam-se numerosos
exemplares deste animal, pretos, brancos, de várias cores, que com a graça
flexível e silenciosa da sua espécie deslizavam sobre os muros e pátios por
entre os devotos, e estes lhes faziam festas com a repelente planta. Mas
como em todas as casas da cidade o gato era animal de luxo, o cheiro de
valeriana misturava-se a tudo, temperava as comidas, impregnava por muito
tempo as peças de roupa, de forma que os viajantes que vinham dessa
cidade eram reconhecidos ainda em On e Mempi, tanto que o povo lhes
dizia, rindo”Evidentemente, vindes de Per-Bastet!”
Aliás aquele riso não era provocado só pelo cheiro, mas pela própria
cidade dos gatos e pelas ideias alegres a ela associadas. Com efeito, Per-
Bastet, ao contrário de Per-Sopd, que aquela superava muito em tamanho e
população, era uma cidade de alegre fama e consideração, embora estivesse
tão profundamente encravada no antigo delta. Era precisamente uma alegria
antiga, primitiva, um tanto grosseira, e só de pensar nela todo o Egito ria.
Tinha essa cidade o que não tinha a Casa de Sopd, a saber, uma festa
famosa em todo o país, à qual acorriam, como bazofiavam os habitantes,
“milhões” de pessoas. Com isto queriam dizer algumas dezenas de milhares
de pessoas que, por via marítima ou terrestre, desciam até ela com a
corrente, já antecipadamente alegres, máxime as mulheres que, munidas de
cega-regas, se comportavam, ao que se dizia, de maneira bastante gaiata,
pois da coberta das embarcações iam fazendo gestos grosseiros e dirigindo
palavrões às localidades por onde passavam. Os homens também se
mostravam muito satisfeitos, assobiavam, cantavam, tagarelavam; e todos
quantos iam dar à cidade tomavam parte em grandes e concorridas reuniões,
acampando em tendas e entregando-se a pândegas durante três dias, com
sacrifícios, bailes e mascaradas, ao surdo rufar de tambores, contando
historietas, assistindo a habilidades de pelotiqueiros e de encantadores de
serpentes, e bebendo mais vinho do que o que era consumido em Per-Bastet
no resto do ano. Dizem que com isto a multidão ficava num estado de
ânimo verdadeiramente primitivo: de vez em quando se flagelavam, ou
antes, golpeavam-se dolorosamente com paus espinhosos, no meio de um
alarido generalizado, inseparável da antiga festa de Bastet em que ninguém
podia pensar sem rir, porque aqueles sons estrídulos faziam lembrar o
miado da gata quando recebe a visita noturna do gato.
Isto narravam os habitantes aos forasteiros, ufanando-se da afluência de
povo que os enriquecia e de que gozavam uma vez por ano na sua vida tão
monótona e tranquila. O velho lamentava não ter podido, por causa de seus
negócios, chegar a tempo para assistir àquela festa, que caía noutra época
do ano. O seu jovem escravo Osarsif ouvia as descrições em atitude
aparentemente respeitosa, fazia cortesmente sinais com a cabeça e pensava
em Jacó. Pensava nele e no Deus sem templo dos seus pais, quando da parte
elevada da cidade, em cuja parte inferior, e exatamente no centro, dois
braços d’água ensombrados por árvores circundavam a península santa,
olhava lá embaixo a habitação da deusa encerrada num elevado recinto
murado. O edifício principal ficava oculto num bosquezinho de anosos
sicômoros; seus pilones eram cheios de quadros simbólicos, os pátios eram
cobertos de toldos e os capitéis dos seus átrios coloridos imitavam as
umbelas abertas e fechadas das canas de papiro. A ela se tinha acesso, da
parte do oriente, pelo caminho calçado de pedra pelo qual também entrara
na cidade José com os ismaelitas. Continuou a pensar no pai e no Deus de
seus pais quando mais tarde entrou no templo e contemplou nas paredes os
quadros pintados de vermelho carregado e azul celeste. Aí Faraó queimava
incenso à gata; aí, debaixo de nítidas inscrições feitas de aves, olhos,
flechas, escaravelhos e bocas, estavam pintadas algumas divindades cor de
cobre, dotadas de cauda, com um pano em volta dos rins e ornadas de
cintilantes braceletes e gargantilhas. Altos diademas cingiam suas cabeças
de animais e nas mãos tinham o anel simbólico da vida com que tocavam
com benevolência os ombros do seu filho terreno.
José, minúscula figura entre titãs, erguia para o altar seus olhos jovens e
calmos. Comparava sua juventude com aquela grave antiguidade. E tinha
certeza de que essa comparação não só estava de acordo com a medida de
seus anos, mas ainda num sentido mais lato; teve de entesar-se para suportar
o peso daquelas idades; mas quando pensava no antigo alarido noturno de
que o povo enchia os pátios de Bastet durante a festa, encolhia os ombros.
A ERUDITA ON

Sabemos com exatidão o caminho pelo qual foi conduzido o raptado —


para baixo ou para cima, conforme o modo de interpretar e de dizer. Como
muitas coisas aqui propensas a confundi-lo, havia também uma confusão
neste “para cima” e “para baixo”. Quando saiu da terra natal, também ele,
como Abraão, tinha “descido” para o Egito; mas agora, no Egito, “subia”,
visto como acompanhava o rio em sentido inverso da corrente que vinha do
sul, de maneira que, indo-se na direção do meio-dia, já não se “descia”, mas
“subia-se”. Aquilo era semelhante ao que se faz no conhecido jogo, quando
se quer produzir confusão na pessoa que tem os olhos vendados; fazem-na
girar umas duas ou três vezes em torno de si mesma, para que já não saiba
onde tem a cabeça e que direção deva tomar. Também cá embaixo a
confusão lavrara em relação ao tempo, isto é, à estação e ao calendário.
Era o vigésimo oitavo ano de reinado de Faraó e estava-se, consoante a
nossa maneira de dizer, nos meados de dezembro. Diziam os de Keme que
se estava no “primeiro mês da inundação”, chamado Thot, conforme José
soube com prazer, ou então Djehuti, como eles pronunciavam o nome do
macaco amigo da lua. Mas essa asserção não combinava com as naturais
ocorrências do tempo. Naquelas partes o ano andava quase sempre em
contraste com a realidade; ele rodava e só de vez em quando, com grandes
intervalos, o seu começo coincidia de novo com o princípio do ano
propriamente dito, quando Sírio reaparecia no céu para as bandas do oriente
e as águas começavam a intumescer-se. Reinava de ordinário um
desconcerto tremendo entre aquilo que para eles era o ano e as variações
naturais, e assim nem sequer agora era praticamente possível dizer que se
estava no princípio da inundação. O no já baixara tanto que as águas quase
voltaram ao antigo leito; reaparecera a terra, a semeadura estava a acabar, a
vegetação medrava. A viagem dos ismaelitas vinha sendo realizada com
tamanha morosidade que meio ano já se passara desde que José, ao tempo
do solstício do verão, descera ao fosso.
Um tanto confuso, pois, quanto à noção de tempo e espaço, caminhava
ele para a frente acompanhando as estações... E quais eram elas? Nós o
sabemos perfeitamente; as circunstâncias nos ensinam. Os seus amos, os
ismaelitas, que davam tempo ao tempo e, segundo o antigo costume, não se
importavam com a maior ou menor duração da viagem, mas, na sua
lentidão, só tratavam de seguir menos mal a direção certa, caminhavam com
ele marginando o braço do rio, desde Per-Bastet ao sul até o ponto em que
aquele braço se unia com o rio no vértice do triângulo do delta. E assim
chegaram à dourada On, situada perto daquele vértice, cidade
extraordinária, a casa do Sol, o maior lugar que José já vira. A seus olhos
deslumbrados ela parecia construída quase toda de ouro. Partindo dali,
chegariam um dia a Mempi, também chamada Mênfis, outrora a cidade dos
reis, cujos mortos não tinham necessidade de fazer a viagem por água,
porquanto a cidade já estava situada sobre a margem ocidental. Isto era tudo
quanto sabiam de Mempi. O seu projeto, porém, não era prosseguir a
viagem por terra, mas fretar uma embarcação e chegar por via marítima a
No-Amun, a cidade de Faraó. Assim o ideara o velho, de acordo com a
vontade do qual tudo tinha que andar; e conforme essa decisão, fazendo de
quando em quando umas paradas para negócios, foram avançando pela
margem do Jeor, aqui chamado Ápis, cujas águas corriam turvas no seu
leito. Só de onde em onde, até o trecho a que, entre deserto e deserto,
chegava o terreno frutífero, se viam ainda poços dispersos pelos campos,
que começavam a reverdecer.
Onde a margem era escarpada, junto aos paredõezinhos que cercavam
os poços, viam-se alguns homens com um pau, a cuja extremidade estavam
de uma parte bolsas de couro e da outra um bloco de lodo como contrapeso.
Estavam tirando do rio a barrenta água fertilizante que entornavam em
canaizinhos, para que dali escorresse para os regos inferiores e fizesse
medrar o grão, antecipando a vinda dos escrivães de Faraó. Era esta,
efetivamente, a casa egípcia da escravidão, que tinha a decidida
desaprovação de Jacó. Os escrivães do Estado vinham arrecadar os tributos,
vindo também em sua companhia verdugos núbios trazendo látegos de fibra
de palmeira.
Com os lavradores dos arredores os ismaelitas trocavam suas lâmpadas
e resinas por suportes para a cabeça e colares e por aquele pano que as
mulheres dos lavradores fiavam do linho dos campos e sonegavam aos
agentes do fisco. Iam falando com o povo e viam o Egito. José via-o
também e aspirava-lhe o ar vital, enquanto iam traficando. Era bastante
estranho; costumes, crenças e outros modos de ser da região traziam
consigo um sabor acre como o próprio gosto das suas especiarias. Não se
pense, porém, que o que o rapaz assim aspirava com o espírito e os sentidos
corpóreos fosse para ele totalmente exótico e inaudito. Sendo a sua pátria
(se se quiser considerar como uma unidade pátria o território do Jordão e as
suas montanhas e o país montanhoso no qual José se criara) um país
intermédio e de passagem, tinha, a partir do sul, a marca das maneiras e dos
sentimentos do Egito e dos domínios orientais de Babel. Por ali haviam
passado os exércitos de Faraó, deixando guarnições, governadores,
edifícios. José tinha visto egípcios nos seus trajes nacionais; os templos
egípcios não tinham nada de novo para ele; a bem dizer, ele não era
somente o filho das suas montanhas, mas de uma grande unidade de espaço,
do Oriente mediterrâneo, dentro do qual nada lhe podia parecer
inteiramente novo e absurdo. Além disso, José era um filho da sua época,
da época submersa, na qual caminhava e na qual descemos até ele como
Istar desceu ao filho. Tempo e espaço colaboravam para criar uma unidade
e uma comunidade no mundo físico e no espiritual. Antes, a coisa
verdadeiramente nova que José percebeu nas suas viagens foi esta: que ele e
a sua maneira não eram únicos no mundo, não eram de todo sem confronto;
e que muitos dos pensamentos e das aspirações dos pais, grande parte da
sua fervorosa busca de Deus e da sua insistente especulação, não tinham
sido as suas verdadeiras características discriminadoras, mas antes
pertenciam ao tempo e ao espaço, à comunidade — pondo-se de parte,
naturalmente, as importantes diferenças da bênção e da habilidade em fazer
uso dela.
Se Abrãao tinha discutido durante muito tempo e insistentemente com
Melquisedeque a respeito do grau de identidade que talvez existisse entre
Eleljon, o Baal-do-pacto siquemita, e o seu próprio Adon, terá sido essa
uma conversa bem característica do seu mundo e do seu tempo, não só
quanto ao problema que discutiam, mas também quanto à importância e ao
interesse que ligavam a tal discussão. Justamente na época em que José veio
ao Egito, os sacerdotes de On — a cidade de Atum-Rá-Horachte, o senhor
do Sol — tinham fixado dogmaticamente como sendo uma “repetição viva”
a relação do seu touro sagrado Merver com o habitante do horizonte. Era
essa uma fórmula em que as ideias da vizinhança e da unidade adquiriam
igual valor, motivo pelo qual desta fórmula se ocupava vivamente todo o
Egito, tendo ela produzido grande impressão até na corte. Esse era o
comentário predominante entre grandes e pequenos. Não podiam os
ismaelitas trocar cinco deben de láudano por uma quantidade
correspondente de cerveja ou por um bom couro de boi sem que o outro
negociante encaixasse na sua introdução e em todo o seu discurso também a
excelente nova fórmula da relação entre Merver e Atum-Rá, procurando
conhecer a impressão que ela produzia nos estrangeiros. Podiam sempre
contar, se não propriamente com a aprovação destes, ao menos com o seu
interesse, porque os ismaelitas vinham de longe, na verdade, mas do mesmo
espaço, e antes de tudo o tempo comum era o que os induzia a ouvir com
certo alvoroço aquelas novas.
On — a morada do Sol, isto é, a residência daquele que de manhã é
Chepre, ao meio-dia Rá e de noite Atum; daquele que, se abre os olhos,
surge a luz, se fecha os olhos, cai a treva; daquele que tinha dito o seu nome
a Eset, sua filha. On na terra do Egito, há milhares de anos naquele lugar,
estava situada no caminho que conduzia os ismaelitas para o sul. Sobre ela
fulgurava a dourada ponta quadrangular do gigantesco e resplandecente
obelisco de granito que descansava sobre uma base saliente no pináculo do
grande templo do Sol. Ali estava a mesa de alabastro de Rá-Horachte,
coberta de talhas de vinho, coroadas de lótus, repleta de tortas, vasos com
mel, aves e toda sorte de frutas do campo. Ali hierodulos, de saiotes
engomados e com uma pele de leopardo às costas, queimavam incenso ao
próprio Merver, o grande touro, a repetição viva do deus, com uma nuca de
ferro logo atrás dos chifres em forma de lira e com formidáveis testículos
balouçantes. Era esta realmente uma cidade como José nunca tinha visto,
diferente não só das cidades do mundo mas das outras cidades do Egito. O
seu próprio templo, ao lado do qual estava a nau do Sol de alto bordo,
construída com tijolos dourados, era na sua planta e no seu aspecto
inteiramente diverso dos demais templos egípcios. Toda a cidade fulgia e
coruscava de raios dourados, como o Sol, do que resultava andarem os
habitantes com os olhos inflamados e lacrimosos, ao passo que quase todos
os forasteiros, para se defenderem da reverberação, usavam capuzes e
mantos sobre a cabeça. A coberta das muralhas que a circundavam era de
ouro. Raios dourados saíam em chispas e cintilações trêmulas das fálicas
lanças solares que guarneciam os muros e dos dourados símbolos do Sol em
forma de animais, como leões, esfinges e bodes, touros, águias, falcões e
gaviões, tudo em grande quantidade. E não era estranho que ainda a mais
pobre casinha, construída de tijolos feitos da lama do Nilo, ostentasse um
símbolo dourado do Sol — um disco alado, uma roda denteada, um coche,
um olho, um machado ou um escaravelho e tivesse sobre o telhado qualquer
coisa como uma bola ou uma maçã de ouro. A mesma coisa se verificava
em todas as habitações, celeiros ou edifícios das aldeias dentro da
circunscrição de On; cada um deles refletia os raios do astro em algum
emblema semelhante — um escudo de cobre, uma espiral serpentiforme,
um dourado cajado de pastor ou um cálice, pois este era o reino do Sol, o
domínio do deslumbramento.
Pelo seu exterior, a milenária On era uma cidade que deslumbrava os
olhos. Mas o era também pela sua característica íntima e pelo seu espirito.
Era muito difundida aí a doutrina da sabedoria primordial, que o próprio
estrangeiro logo percebia, pois ela Lhe entrava, por assim dizer, pelos
poros. Mas era uma doutrina que dizia respeito à medida e estrutura de
corpos concebidos como num espaço de três dimensões e das superfícies
que os determinavam; como são delimitados em ângulos iguais, coincidem
em agudas arestas, convergem num ponto que já não tem extensão de
espécie alguma e, embora existindo, não ocupa espaço... e outros arcanos
semelhantes. Esse interesse de On por figuras puramente abstratas, essa sua
tendência para arquitetar teorias relativas ao espaço, caracterizava esta
antiquíssima cidade e evidentemente se relacionava com o seu culto local,
prestado ao astro do dia. Isto se evidenciava na própria conformação do
lugar. Com efeito, situada no vértice do território triangular das
embocaduras divergentes do no, a própria cidade, com suas casas e mas,
formava um triângulo equilátero, cujo vértice (na imaginação, mas um
pouco também na realidade) coincidia com a ponta do delta; e nesse vértice
elevava-se sobre uma poderosa base romboidal de granito cor de fogo o
tetraédrico obelisco, que era coberto de couro no ponto em que as suas
arestas se encontravam. Diariamente o obelisco acolhia o primeiro raio de
sol e no seu recinto de pedra formava o ápice de todas as construções do
templo que começavam já no centro do triângulo da cidade.
A porta do templo era toda embandeirada e dava acesso a corredores
pintados com as mais graciosas representações dos acontecimentos e das
dádivas das estações do ano. Em frente à porta abria-se uma larga praça
arborizada. Aí os ismaelitas passavam a maior parte do dia, por ser aquele o
ponto de reunião e de mercado do povo de On, gente de olhos semicerrados,
e bem assim o das pessoas de fora. A essa praça vinham ter também os
servos do deus, com os olhos lacrimosos de tanto fitar o Sol, de crânios
reluzentes, e vestidos apenas com o primitivo saiote e a faixa sacerdotal.
Misturavam-se com o povo e não se esquivavam de manter práticas com
aqueles que queriam informar-se da sua sabedoria. Segundo todas as
aparências, eram escolhidos pelo alto para tal empresa e só esperavam que
os interpelassem para trazer seu testemunho sobre o venerando culto e as
priscas tradições científicas do seu templo. O nosso velho, amo de José,
valeu-se várias vezes da permissão que lhe era dada de maneira tácita mas
clara, entretendo-se na praça com os letrados do Sol, e José ao seu lado
escutava.
O poder de pensar em Deus e o dom de legislar em pontos de fé eram,
segundo eles, hereditários na sua corporação. Possuíam há séculos
extraordinária perspicácia religiosa. Eles, isto é, os seus predecessores no
culto, haviam sido os primeiros a dividir e medir o tempo, a compilar o
calendário, o que, ao lado daquela sua tendência congênita para a figura
pura, se ligava à natureza do deus que, só com abrir os olhos, fazia raiar o
dia. Antes da época a que aludiam, os homens tinham vivido em cega
ausência do tempo, sem medida, desatentos. Aquele, porém, que fez as
horas, das quais nasceram os dias, abrira-lhes os olhos por intermédio dos
seus doutos. Eles, isto é, os seus antecessores, tinham inventado (era
supérfluo dizê-lo) o relógio de sol. Quanto ao instrumento que mede as
horas noturnas, a coisa não era tão certa, mas tomava-se verossímil porque
o deus da água, Sobk de Ombo, em figura de crocodilo ou em qualquer
outra figura digna de adoração, observado exatamente com o olho
lacrimejante, não era outra coisa senão Rá com outro nome e, como
emblema, trazia o disco com a serpente.
Esta visão de conjunto era obra deles, doutrina deles, dos tais de crânio
luzidio. Eles eram, segundo sua própria asseveração, muito fortes em
generalizações dessas e em equiparar toda e qualquer divindade protetora
regional e local a Atum-Rá-Horachte de On, que era, já de si, um conjunto e
uma constelação de numes originariamente independentes. O que mais os
deleitava era fazer, de vários, um só. Conforme eles, no fundo, só havia dois
grandes deuses: um, o deus dos vivos, e este era Ho do monte da Luz,
Atum-Rá; e um dos mortos, Osíris, o olho entronizado; mas o olho era
também Atum-Rá, isto é, o disco solar. Assim, aguçando o espírito, de tudo
isto resultava que Osíris era o senhor da barca noturna, na qual, como toda a
gente sabia, entrava Rá depois do tramontar, para ir do ocidente ao oriente e
alumiar os ínferos. Noutras palavras: tudo bem ponderado, também estes
dois grandes deuses eram um só. Mas, se era admirável a agudeza de uma
tal visão de conjunto, não o era menos a arte que tinham esses sábios de não
mortificar ninguém, porquanto no meio das suas atividades de identificação
sabiam deixar intacta a real multiplicidade de deuses do Egito.
Tudo isto eles conseguiam graças à ciência do triângulo. Os mestres de
On perguntavam aos seus ouvintes se eles também compreendiam a
natureza desse símbolo magnífico. Diziam eles que à sua base
correspondiam as divindades de diferentes nomes e de muitas figuras que o
povo invocava e às quais se dedicavam os sacerdotes nas cidades dos dois
países. Mas sobre isto se erguiam os lados convergentes da bela figura, e o
espaço tão singular que eles compreendiam podia ser chamado o “espaço da
visão de conjunto”, que se distinguia pela sua faculdade de ir-se
constantemente restringindo, enquanto as bases se tomavam cada vez
menores, diminuindo sempre de extensão até desaparecer qualquer
extensão. Os lados se encontravam num ponto e este ponto final, este ponto
de interseção, sob o qual continuavam a subsistir em lados iguais todas as
larguras do símbolo, era o senhor do seu templo, era Atum-Rá.
Esta a teoria do triângulo, a bela figura da visão de conjunto. Os servos
de Atum se jactavam não pouco disso, dizendo terem feito escola. Em toda
parte se havia começado recentemente a adotar essa visão de conjunto e
essa equiparação, mas andavam praticando isso de um modo pretensioso e
insensato e não conforme o espírito, isto é, sem espírito e até, pelo
contrário, com violenta grosseria. Por exemplo, em Tebas, no Egito
superior, Amun, o rico em touros, fez com que seus profetas o equiparassem
a Rá e agora quer que na sua capela lhe deem o título de Amun-Rá. Muito
bem, mas nada disso se passa segundo o espírito do triângulo e da
conciliação, mas no sentido de que Amun venceu Rá, comeu-o e o
incorporou a si como se Rá, por assim dizer, o tivesse de chamar com o
próprio nome, o que é um modo brutal de tratar a doutrina, uma arrogância
mesquinha, absolutamente contrária ao sentido do triângulo. Por sua parte,
Atum-Rá não se chamava em vão o habitante do horizonte; o seu horizonte
era amplo, abarcava muito e muito abarcava o espaço triangular da sua
visão de conjunto. Sim, era amplo como o mundo, amistoso para com o
mundo todo era o sentido deste deus antiquíssimo, já há muito amadurecido
para uma serena brandura. Os sacerdotes de calva luzidia diziam que esse
deus não se reconhece apenas nas mutáveis formas de si mesmo que o povo
adora nos campos e nas cidades de Keme. Não, ele está também
serenamente disposto a entrar em acordo com as divindades solares dos
outros povos, numa contemplação universal do mundo inteiro. Nisso
diverge ele profundamente do jovem Amun de Tebas, que carece de
qualquer disposição especulativa, e cujo horizonte realmente é tão estreito
que ele não só não conhece outra coisa senão o Egito, mas também não sabe
fazer aqui outra coisa senão consumir e incorporar, não enxergando, pode
dizer-se, um palmo adiante do nariz.
Mas, diziam os de olhos lacrimosos, não era intenção sua entrar em
conflito com o jovem Amun de Tebas, porque fazer acordo complacente e
não entrar em contradição e conflito é da índole do seu deus. Ele ama como
a si mesmo tudo aquilo que é estrangeiro; por isso é que também eles, os
servos daquele deus, gostavam tanto de falar com os forasteiros, isto é, com
o velho e os da sua comitiva. Fossem quais fossem os deuses que
adorassem, quaisquer que fossem os nomes que lhes dessem, podiam,
tranquilamente e sem trair os seus deuses, acercar-se da mesa de alabastro
de Horachte e, conforme as suas posses, lá depor algumas pombas, pães,
frutas, flores. Bastava um olhar à face benigna e sorridente do padre
superior. Com um dourado gorro sobre a calva circundada de cãs, esse
padre estava sentado numa cadeira dourada ao pé do grande obelisco, com
um alado disco solar às costas e, cheio de tranquila bondade, presidia às
oblações; cada olhar dirigido ao padre superior lhes diria que juntamente
com Atum-Rá também os seus deuses nacionais se sentiriam homenageados
no sentido do triângulo.
E os servos do Sol abraçaram e beijaram o velho e os seus, inclusive
José, um a um, em nome do padre profeta-mor, e depois se dirigiram a
outros frequentadores do mercado, a fazer mais propaganda de Atum-Rá,
senhor do amplo horizonte. E então os ismaelitas, prazerosamente
comovidos, deram seus adeuses a On sobre o vértice do triângulo, e,
movendo seus pés, entranharam-se ainda mais, para baixo ou para cirna, na
terra do Egito.
JOSÉ JUNTO AS PIRÂMIDES

Entre margens planas e juncosas o Nilo rolava lentamente suas águas,


mas nos restos, reluzentes como espelho, do seu refluxo viam-se ainda
alguns estipes de palmeira. Enquanto na zona bendita entre deserto e
deserto já verdejavam muitos campos cultivados de trigo e cevada, em
outros campos homens morenos de saiotes brancos, munidos de paus, iam
tocando para lá da planície bois e ovelhas que pisavam a semente no terreno
fofo e úmido. Sob um céu banhado de sol, falcões brancos e abutres
voavam espiando e se precipitavam sobre aldeias meio escondidas por
tamareiras com as suas flabeladas palmas. Essas aldeias estavam situadas ao
longo dos canais de irrigação. Os telhados de suas casas eram cobertos de
esterco, as paredes, feitas com tijolos de lama, lembravam arcobotantes
sustentados por pilones. Tudo trazia o cunho característico fundamental, o
espírito das formas e do deus do Egito que tudo penetra, que na sua imagem
determina tudo, homens e coisas. Era esse o espírito que José na sua pátria
percebera em manifestações isoladas, numa ou noutra construção, e que
agora, dominando aqui em caráter permanente, lhe falava desde as maiores
até as menores coisas.
Crianças nuas brincavam entre aves domésticas destinadas à matança,
nos pontos de desembarque das aldeias, onde com estacas e ramada tinham
sido erigidos abrigos umbrosos. Aí desciam das suas embarcações de junco,
de popa alta, arrimadas umas às outras sobre o canal, os homens que
regressavam das suas viagens costumeiras. O rio, salpicado de velas, dividia
a terra em duas partes de norte a sul; mas por todos os lados os fertilizantes
cursos d’água iam de leste para oeste, decompondo-a em ilhas como verdes
oásis que se abriam em leque. As estradas eram representadas por diques,
sobre os quais se passava entre fossos, reservatórios e bosquezinhos. Por aí
iam os ismaelitas continuando o seu caminho para o sul e na sua passagem
observavam os curiosos tipos do país, montados em burros, dirigindo
carroças cheias puxadas por bois e mulas, ou andando a pé, de saiote,
levando às costas pendentes de varas, patos e peixes. Era uma gente magra,
avermelhada, sem barriga, de costas lisas, ingênua, disposta a rir. Tinham
queixo saliente e cara ossuda, uns narizinhos de ponta comprida, umas
bochechas de criança, uma flor de junco na boca ou atrás da orelha ou
espetada no saiote deslavado e posto de través, mais alto atrás que na frente,
cabelos lisos caindo na testa e aparados rente sob o lóbulo da orelha. A José
agradavam aqueles viandantes. Sendo gente do país dos mortos, do Cheol,
valia a pena vê-los. Aos chabiritas, montados em dromedários, dirigiam
rindo seus cumprimentos, que eram antes gracejos, porque para eles era
grotesco tudo que fosse de fora. Secretamente, ia José tentando habituar sua
língua ao idioma deles e exercitava-se em escutá-los para poder em pouco
tempo falar com eles depressa e correntemente, empregando as metáforas
que lhes eram usuais.
Aqui nesse ponto o Egito era estreito e pequena a faixa de terra
cultivável. A esquerda, a oriente, estendia-se, avizinhando-se, a montanha
do deserto arábico em direção ao sul; a ocidente estavam os arenosos
montes líbicos, cuja desolação de morte se iluminava de um clarão
ilusoriamente purpúreo e formoso, mal o Sol tramontava. Mas na orla do
deserto, em frente a essa cordilheira e próxima aos campos virentes, os
viajantes viam erguer-se à sua frente uma outra montanha de gênero
diferente e especial, com o formato de figuras simétricas, com lados de
triângulo, cujas arestas convergiam em gigantesca obliquidade para os
vértices. Mas o que viam não era uma montanha natural, eram obras feitas
pela mão do homem; eram as grandes construções que o mundo conhecia e
de que o velho falara a José — os monumentos sepulcrais de Kufu, de
Quéfren e de outros reis dos tempos pré-históricos, que cem mil homens,
gemendo sob o flagelo, oprimidos em escravidão durante decênios, haviam
construído com milhões de massas de granito que pesavam toneladas e
toneladas e que eles tinham desprendido das pedreiras arábicas, arrastado
até o no, transportado sobre embarcações à outra margem e daí ainda
arrastado, gemendo, até a margem líbica, onde as haviam erguido com
esforços incríveis por meio de guindastes, colocando-as na altura de
rochedos, caindo pelo seu sacrifício sobre-humano e morrendo no incêndio
do deserto com a língua pendente, para que o deus-rei Kufu pudesse
repousar embaixo, bem no fundo, na sua camarazinha, encerrado pelo peso
eterno de sete milhões de toneladas de pedra, com um raminho de mimosa
sobre o coração.
Não era obra de homens essa que os filhos de Keme tinham erigido. E,
no entanto, era a obra daquela mesma gentinha insignificante que andava
pesadamente sobre os diques; era obra das suas mãos sangrentas, dos seus
músculos fracos, dos seus pulmões arquejantes, obra arrancada a seres
humanos, embora sobrepujando as humanas empresas, porque Kufu era o
deus-rei, filho do sol. Mas o sol, Rá-hotep, o sol contente, que feria e
devorava aquele povo construtor, podia estar contente com aquela sobre-
humana obra humana. Com efeito, na sua forma abstrata, ela o
representava, era os símbolos pictográficos do sol; aquelas imensas
montanhas de morte e de ressurreição estavam ali ao mesmo tempo como
monumentos e como túmulos do sol; e suas vastas superfícies triangulares,
cintilando desde a base até o vértice, estavam com piedosa exatidão
voltadas para os quatro pontos cardeais.
José contemplava com olhos bem abertos as estereométricas montanhas
tumulares, penosamente arquitetadas na casa de servidão egípcia que Jacó
tanto desaprovava. Enquanto isso, ia ouvindo as prolixas histórias que o
velho contava do rei Kufu, tais como agora o povo as narrava do sobre-
humano construtor. Eram torvos episódios que bem atestavam a amarga
recordação que por mais de mil anos o povo de Keme conservava do
Terrível, que os obrigara a fazer coisas impossíveis, pois ele fora um deus
malvado que, por egoísmo, fechara todos os templos para que ninguém
consumisse em sacrifícios o tempo que ele queria só para si. Depois, para
construir o seu maravilhoso sepulcro, jungiu o povo todo sem exceção ao
carro da escravidão e durante cerca de trinta anos não concedeu a ninguém
nem um instante sequer para viver a própria vida. Durante dez longos anos
tiveram de arrastar e lavrar a pedra e durante mais vinte anos tiveram de
edificar, empregando nisso todas as suas forças e até mais do que elas
comportavam. Com efeito, ainda que se somassem todas as suas forças, elas
não eram suficientes para construir a pirâmide. O mais que fora necessário
para concluí-la lhes tinha vindo da divindade do rei Kufu, mas nem por isso
ele merecia louvor. Grandes tesouros devorara aquela construção; e como à
majestade desse deus haviam faltado os tesouros, ele expôs a sua própria
filha no palácio, dando-a a todo homem que pagasse, para que, com o preço
da prostituição, completasse o tesouro necessário para a obra.
Isto contava o povo, segundo dizia o velho, e é possível que, em grande
parte, não passasse de lendas e erros que se andavam narrando sobre Kufu,
mil anos depois da sua morte. Mas dessas narrativas resultava o seguinte:
que o povo conservava tremenda gratidão ao defunto só porque ele o havia
sugado além do extremo limite e o obrigara ao impossível.
A proporção que os viajores chegavam mais perto, as montanhas
pontiagudas se separavam uma da outra na areia, e viram que as superfícies
dos triângulos estavam danificadas e que as lajes polidas que as revestiam
começavam a fragmentar-se. Reinava a desolação entre os gigantescos
monumentos que lá estavam, sobre os deslocamentos de areia da planície
deserta, muito isolados e demasiado maciços para que o tempo pudesse
fazer mais do que carcomer-lhes a superfície. Só eles tinham saído
vitoriosos na formidável luta com o tempo, que há muito destruíra e
enterrara os esplendores com que a piedade tinha outrora enchido os
espaços entre as suas formas descomunais. Dos templos dos mortos outrora
apoiados às suas linhas oblíquas e em que estava fundado “para a
eternidade” o culto daqueles que se haviam reunido ao sol; das galerias
cobertas, repletas de imagens, e dos largos portais que da parte oriental, na
fimbria da zona fértil, tinham formado o ingresso para as passagens finais e
para o reino encantado da imortalidade — de tudo isto José não viu mais
nada e nem ao menos suspeitou que se tratava de uma existência abolida e
que para ele “não ver nada” significava “já não ver nada”, uma visão de
aniquilamentos. Em relação a nós ele chegara bem cedo, mas em outro
confronto era um inexperiente retardatário; seu olhar foi esbarrar com a nua
e duradoura matemática dos gigantes, com essas grandes antiqualhas da
morte, como um pé esbarra com o monturo. Ai dele se, na presença das
cúpulas triangulares, ficasse transido de assombro e veneração; mas a
terrível resistência com que aqueles monumentos, abandonados pela sua
época, tinham ficado ali na presença de Deus, conferia-lhes, além do mais,
alguma coisa de horrível e de maldito aos seus olhos, e ele pensou na torre.
Também o enigma da cabeça velada, Hor-em-achet, a grande esfinge,
estava por ali em algum ponto, antiquíssima, já quase enterrada na areia,
embora só o último predecessor de Faraó, Tutmós IV, a tivesse livrado,
salvo, feito exumar em obediência a um sonho premonitório que tivera
durante a sesta meridiana. A areia já havia chegado até o peito da
desmedida criatura que sempre lá estivera, estendida, sobre as quatro patas,
de modo que ninguém podia dizer quando e como tivesse saído da rocha; e
cobria uma de suas patas, enquanto a outra, ainda livre, era, sozinha, do
tamanho de três casas. Sobre aquele peito, semelhante a uma montanha,
tinha dormitado o filho do rei, do tamanho de uma boneca, comparado com
o desmesurado deus-animal, enquanto, a certa distância, os servos
guardavam seu carro de caça. No alto, muito acima do homenzinho, erguia-
se a cabeça enigmática com o rígido pano sobre a nuca, com a fronte eterna,
com o nariz roído que lhe dava um ar travesso, a abóbada rochosa do seu
lábio superior, a larga boca que parecia esboçar um sorriso calmo, primitivo
e sensual. Os olhos claros, bem abertos, inteligentes, embebedados dos
profundos haustos do tempo, fitavam o oriente como sempre haviam feito.
E assim jazia ali agora a quimera dos tempos imemoriais, num presente
cuja distância e diferença do presente de então não representava
absolutamente nada aos seus olhos; e numa imutabilidade feroz e sensual
olhava agora para o oriente por sobre o minúsculo grupo dos compradores:
olhava para José. Ao seu peito estava encostada uma lápide, coberta de
inscrições, mais alta que um homem. Quando os madianitas a leram,
sentiram como que um alívio, um bálsamo para o coração. Esta pedra de
proveniência mais recente apresentava uma época fixa; era como uma
estreita plataforma que oferecia firmeza ao pé sobre o abismo; era a pedra
comemorativa que o Faraó Tutmós aí levantara em memória do seu sonho,
por intermédio do qual o deus se vira livre da areia. O velho leu para os
seus o texto e a mensagem: como o príncipe fora colhido pelo sono à
sombra do monstro, na hora em que o Sol ia mais alto, e como viu em
sonho a majestade desse deus grandioso, Harmachis-Chepere-Atum-Rá, seu
pai, que lhe falou paternalmente e lhe chamou seu caro filho. “Há já muitos
anos”, disse ele, “que o meu olhar está voltado para ti e bem assim o meu
coração. Quero dar a ti, Tutmós, o domínio real; tu deves usar sobre o trono
de Geb as coroas dos dois países; a ti deve pertencer em toda a sua vastidão
a terra e tudo aquilo que é iluminado pelo olho rutilante do senhor do
universo. Os tesouros do Egito e os grandes tributos dos povos a ti devem
ser destinados. Enquanto isso, porém, eu que sou digno de adoração estou
oprimido sob o peso da areia do deserto sobre que assento. Deste peso se
origina o meu justificado desejo. Não duvido que, logo que puderes,
satisfarás esse desejo, porque eu sei que tu és meu filho e meu salvador e
quero estar contigo.” Quando Tutmós acordou — assim rezava a história —
ainda sabia as palavras desse deus e as reteve até a hora de sua ascensão. E
nessa mesma hora mandou imediatamente remover a areia que pesava sobre
Harmachis, a grande esfinge, perto de Mempi, no deserto.
Esta era a mensagem. E José, que ouvia enquanto o velho, seu senhor, a
ha, teve suficiente cautela para não acrescentar nem uma única palavra de
comentário. Ele se lembrava de que o velho o advertira que refreasse a
língua na terra do Egito e queria demonstrar que, sendo necessário, é
possível também abafar pensamentos como os que naquele momento lhe
passavam pela mente. Mas, secretamente, em atenção a Jacó, desgostava-o
esse sonho de promessas e movido desse desgosto achava o tal sonho
chocho e inconsistente. No seu modo de ver, Faraó, com a sua lápide
comemorativa, dava demasiada importância àquilo. Afinal, que lhe fora
prometido? Nada mais que aquilo que já lhe era destinado desde o
nascimento, a saber, que, na hora aprazada, ele se tomaria rei de ambos os
países. Nessa exata opinião o confirmara o deus, para o caso que Faraó
salvasse a sua imagem da areia que a oprimia. E aqui se podia ver a loucura
que é isso de fazer para si uma imagem. A imagem veio a ficar debaixo do
peso da areia, o que obrigou o deus a implorar”Salva-me, meu filho!” e de
sugerir um conchavo, no qual ele, em compensação de um mesquinho
benefício, prometia uma coisa que com toda a probabilidade aconteceria de
qualquer maneira. Uma sensaboria. Bem diferente e bem mais fino fora o
pacto que o Senhor Deus fizera com seus país, também aqui por
necessidade, mas por necessidade de ambas as partes, para que se salvassem
reciprocamente da areia do deserto e um se tomasse santo no outro. De
resto, o filho do rei, chegada a sua hora, tornou-se rei, mas a areia do
deserto cobriu de novo e abundantemente o deus. Para um alívio tão
efêmero não era fora de propósito como compensação uma promessa tão
simples e, sobretudo, tão supérflua, pensou José, pensou-o e disse-o a
Kedma, o filho do velho, que se espantou de tanta sofistiquice.
Contudo, podia José, para honrar a Jacó, criticar e chacotear quanto
quisesse, mas o certo é que a vista da esfinge fizera nele mais impressão do
que tudo quanto vira até então no Egito, causando no seu sangue novo uma
inquietação contra a qual nada valia a chacota e que não o deixava dormir.
Caíra a noite enquanto se detinham diante das grandes coisas do deserto, e
aí ergueram suas tendas para dormir, tendo de seguir viagem na manhã
seguinte para Mempi. Mas José, que já se espichara na tenda perto de
Kedma, seu companheiro de leito, saiu de novo ao ar livre, sob as estrelas,
enquanto ao longe ululavam chacais, e se aproximou do ídolo gigantesco
para observá-lo agora à vontade, a sós, sem testemunhas, em meio à
cintilação noturna, e para interrogar a sua monstruosidade.
Porque monstruoso era verdadeiramente o monstro dos tempos, com o
régio pano rochoso sobre a cabeça, misterioso não só pela sua grandeza
como pela tenebrosidade da sua origem. Quais eram as palavras do enigma?
Não havia absolutamente palavras. O enigma consistia no silêncio, no
silêncio ébrio de calma com que o monstro olhava com seus olhos ferozes
por sobre o interrogante e o interrogado. Seu nariz meio gasto dava-lhe o
aspecto de um homem que põe o barrete de través, sobre uma orelha. Ah! se
fosse um quebra-cabeça como aquele a respeito do trato de terra do vizinho
Dagantakala, problema que o bom do velho propusera a José, ao menos se
teriam os dados, números encobertos e ocultos, e se poderia transportar par
cá e para lá a incógnita e medir as relações, de modo que não só se
encontraria a solução, mas se poderia jogar com ela conversando com
superioridade. Este enigma, porém, era puro silêncio; ele era superior, a
julgar pelo seu nariz; e se tinha uma cabeça humana, nada significava para
um cérebro de homem, por mais perspicaz que fosse.
Por exemplo... De que gênero era? Masculino ou feminino? A gente do
lugar chamava-o “Hor no Monte da Luz” e o considerava uma imagem do
senhor do sol, como recentemente fizera Tutmós. Mas esta era uma
interpretação moderna, que nem sempre fora aceita, e ainda que fosse o
senhor do sol o que se revelava naquela figura agachada — que nos diz
tudo isso acerca do sexo da figura? Tal como estava, não era possível
determiná-lo. Se se levantasse, teria testículos majestosamente balouçantes
como Merver em On? Ou se revelaria de constituição feminil como uma
donzela leonina? Para estas perguntas não havia resposta. E, ainda que
tivesse brotado espontaneamente da rocha, estava feito como os artistas
fabricavam seus simulacros, suas imagens enganosas, mais sugeridas que
executadas, de maneira que o que não se via não existia; e ainda que se
convocassem ali cem pedreiros para que, com martelo e escopro,
interrogassem o monstro a respeito do seu sexo, não viria nenhuma
resposta.
Aquilo era uma esfinge, em outras palavras, um enigma e um mistério, e
certamente um enigma selvagem com patas de leão, sedento de sangue
novo, perigoso para o filho de Deus e uma armadilha para o descendente da
promissão. Ah! Aquela placa comemorativa do filho do rei! Aquele peito de
rocha entre as garras da mulher-dragão não consentia se tivessem sonhos de
promissão, ou, se os consentia, eram sonhos bem chochos. Nada tinha de
promitente o modo por que o monstro, de olhos ferozmente abertos, com o
nariz roído pelo tempo, espichado em medrosa imobilidade, olhava para o
rio; e o seu enigma ameaçador não era dessa natureza. Ele permanecia para
o futuro, mas este futuro era selvagem e morto, porque era apenas uma
duração, apenas uma falsa eternidade, privada de espera.
José achava-se ah e consultava o seu coração diante da majestade
sorridente da duração. Estava-lhe mesmo próximo. Não iria o monstro
soerguer da areia a pata para atrair ao seu regaço o rapaz? José abroquelou o
coração e pensou em Jacó. A simpatia nascida da curiosidade é erva que
facilmente se arranca, um simples triunfo de adolescente louco de
liberdade. Mas, em presença daquilo que é proibido, percebemos o que
somos e fazemos causa comum com o próprio pai.
Muito tempo esteve José ao ar livre, ali sob as estrelas, ante o colossal
enigma, apoiado numa perna, com o cotovelo numa das mãos e o queixo na
outra. Quando de novo se estirou na tenda ao lado de Kedma, sonhou com a
esfinge e esta lhe dizia”Eu te amo. Vem a mim e dize-me o teu nome, seja
qual for o meu sexo!” Ele, porém, respondeu”Como poderia eu cometer tal
crime e pecar contra Deus?"

A CIDADE DO ENFAIXADO

Continuaram seu caminho ao longo da margem ocidental, que era a


direita pelo caminho que seguiam, e direita também porque era essa a
direção que lhes competia seguir. Efetivamente, eles não tinham
necessidade de fazer a travessia por água para chegarem a Mempi, a grande,
situada a ocidente, o mais gigantesco redil de homens que o primogênito de
Raquel já tinha visto, dominado por alturas e rochas em cujo seio a cidade
sepultava os seus mortos.
Mempi era uma cidade pasmosamente velha e por isso venerável, até o
ponto em que estas duas qualidades coincidem. Menes, o primeiro rei,
aquele que estava no princípio de todas as recordações e dinastias, tinha
fortificado a localidade para inspirar respeito à parte inferior do país pela
força ao reino. A poderosa habitação de Ptach, construída de pedra eterna,
era obra de Menes, estando, portanto, ali há muito mais tempo que as
pirâmides, desde tempos imemoriais, para lá dos quais nenhum homem
podia lançar o olhar.
Todavia, no conjunto de Mênfis, os tempos antiquíssimos não se
apresentavam aos sentidos, como nas pirâmides, num silêncio rígido, mas
como vida buliçosa, como um presente desperto, como uma cidade onde
existem mais de cem mil pessoas, construída em proporções enormes de
quarteirões diversamente denominados, com um dédalo de estreitas vielas
cheias do burburinho e do cheiro do poviléu que comerciava e se
movimentava parolando. Essas vielas desciam depois para o centro onde a
água em abundância corria nos regos. Havia risonhos quarteirões de ricos, e
nos deliciosos jardins, discretamente espalhadas, viam-se vilas de belas
portas e florescentes bairros cheios de templos sobre os quais tremulavam
galhardetes e cujos átrios, com pinturas vivas e alegres, se miravam em
tanques sagrados. Havia alamedas de esfinges, de cinquenta braças de
largura, e triunfais ruas arborizadas nas quais corriam fragorosamente os
coches dos grandes, tirados por fogosos cavalos coroados de penachos, e
diante deles esbaforidos batedores bradavam”Abrek!” “Guarda o teu
coração!” “Toma cuidado!”
Sim, “Abrek!” José também podia dizer isso a si mesmo e guardar bem
o seu coração, para não sentir-se embasbacado diante de uma vida tão
estuante. Era esta, pois, a cidade de Mempi ou Mênfis, como os naturais
diziam, abreviando atrevidamente o nome “Men-nefru-Mire”, que
significava “A beleza de Mire permanece”. Mire era um rei da sexta
dinastia que, no seu tempo, ampliara as primeiras cidadelas do templo em
redor do seu quarteirão real e em seguida edificara também a sua pirâmide,
onde devia permanecer a sua beleza. Na realidade, o nome de Men-nefru-
Mire fora dado ao sepulcro e por fim toda a cidade que crescia em torno
tomou o nome do sepulcro: Mênfis, a balança dos países, a régia cidade do
sepulcro.
Que coisa estranha que o nome de Mênfis fosse um nome de sepulcro
atrevidamente abreviado! Tudo isso interessava muito a José. Por certo
aquele poviléu das vielas com regos é que o acomodara a si, de acordo com
o seu gosto. Não o fizera mais ninguém a não ser aquela população, tão
magra que tinha as costelas à mostra, que morava em quarteirões apinhados,
num dos quais estava situado o albergue dos ismaelitas. Era um
caravançarai repleto de estranhos espécimes da raça humana, sírios, líbios,
núbios, emitanos e até cretenses. Seu imundo pátio de tijolos ressoava com
os mugidos e balidos dos animais e com a música bulhenta e lamentosa de
mendigos cegos. Quando José saía desse ambiente, o movimento nas ruas
era como o das cidades da sua pátria, apenas mais intenso e à moda egípcia.
De um lado e de outro da água transbordante dos regos, havia barbeiros que
rapavam os seus fregueses e sapateiros que puxavam com os dentes a
sovela. Com mãos hábeis e terrosas os oleiros afeiçoavam o recipiente
côncavo, fazendo-o rodar com grande rapidez, e durante o trabalho
cantavam hinos a Chnum, o criador, que tinha cabeça de cabra, o senhor do
torno. Fabricantes de ataúdes desbastavam com enxó caixões a que davam
forma humana com barba pontuda. Das rumorosas cervejarias saíam ébrios
cambaleando, alvos das chufas de meninos tão pequenos que ainda traziam
cachos de crianças. Quanta gente! Todos usavam o mesmo saiote de linho,
todos tinham o cabelo cortado do mesmo modo, todos tinham os mesmos
ombros horizontais e os braços delgados, e todos erguiam as sobrancelhas
da mesma forma ingênua e atrevida. Pareciam perfeitamente capazes de
simplificar alegremente para “Mênfis” o complicado nome do sepulcro.
Ouvindo este nome, renovavam-se no peito de José sensações íntimas,
experimentadas por ele em outros tempos, quando da colina da sua terra
natal contemplava a cidade de Hebron e a gruta dupla, sepulcro de família
dos seus antepassados, e a religiosidade de que a morte é fonte se misturava
no seu coração com a simpatia que nele despertava a vista da cidade
populosa. Era aquela uma mistura fina e amável, peculiar a ele e em secreta
correspondência com a dupla bênção de que se sentia filho, mas em
correspondência também com o gracejo que é mensageiro entre isto e
aquilo. Parecia-lhe de fato um gracejo o nome popular da grande cidade do
sepulcro, e o seu coração se inclinava para aqueles que tinham abreviado
esse nome, para aquela gente tão descarnada que se lhe viam as costelas.
Gostava de tagarelar com eles, usando as suas expressões, rindo com eles e
levantando descaradamente as sobrancelhas como eles, o que não lhe era
difícil.
Via também com simpatia que o amor que aquela gente tinha ao gracejo
não provinha só de seu número e não se dirigia inteiramente para o exterior.
O povo de Mênfis ria de si mesmo quando ria do que a sua cidade tinha
sido outrora e não o era mais. Seu gracejo era uma expressão do mesmo
mau humor que José notara em Per-Sopd, ouvindo as amargas
recriminações do povo e dos sacerdotes do templo. Aquilo refletia o estado
de espírito de uma antiguidade superada, que aqui se convertia em troça e
dúvida zombeteira de todo mundo e de si mesma. Porque assim era na
verdade: outrora, na época dos construtores de pirâmides, Mênfis, a balança
dos países, toda cercada de espessos muros, havia pompeado como cidade
do rei. Enquanto Mênfis, durante anos inumeráveis, tivera fama no mundo
todo, Tebas, a cidade do Sul, era, a bem dizer, desconhecida. Mas, após
negregadas épocas de desordem e de domínio estrangeiro, de Tebas viera a
nova era. a libertação e a reunificação por obra da dinastia do sol, ora
reinante.
Agora Veset cingia a dupla coroa e empunhava o cetro, enquanto
Mênfis, embora formigando de gente e grande como antes, era uma ex-
rainha, era o túmulo da sua grandeza, uma cidade mundial com um nome de
morte impertinentemente encurtado.
E isto não se há de entender no sentido que Ptach, o senhor na sua
capela, fosse um deus posto de banda e empobrecido como Sopd no
Oriente. Não. Grande era o seu nome em todas as províncias; opulento em
fundações, terras e gado era o deus em figura de homem. Isto se tomava
evidente, bastando ver as tesourarias, armazéns, estábulos e celeiros
encerrados no complexo da sua casa. Ninguém via Ptach, o senhor,
porquanto, mesmo quando era processionalmente transportado na sua barca
ou visitava outra divindade aqui domiciliada, a sua estatueta ficava velada
por cortinas douradas e somente os sacerdotes oficiantes lhe conheciam o
semblante. Morava na sua casa com sua mulher, chamada Sachmet ou a
Poderosa, que nas paredes do templo era representada com uma cabeça de
leão e que, segundo diziam, amava a guerra, e com Nefertém, o filho do
casal, formoso já conforme o seu nome, mas ainda mais obscuro do que
Ptach, o deus em forma de homem, e Sachmet, a raivosa. Sabia-se que ele
era o filho, mais nada, e José nada conseguia indagar a respeito. O mais que
dele ainda se sabia era que trazia sobre a cabeça uma flor de lótus,
chegando alguns a admitir que, no fundo, ele próprio não fosse outra coisa
senão um nelumbo azul. Entretanto, a circunstância de nada se saber a
respeito dele não impedia que o filho fosse a pessoa mais amada da tríade.
Uma vez que se constatara que o lótus de cor celeste era a sua flor predileta
e mesmo a expressão da sua natureza, os seus aposentos eram
continuamente enfeitados de ramos da bela planta. Os ismaelitas também
não se esqueceram de contribuir com o seu lótus azul e de prestar como
negociantes homenagem à sua popularidade.
Jamais José, o raptado, andara tanto como aqui entre coisas proibidas,
aquelas coisas a que se referia sua tradição quando dizia”Não farás para ti
imagens esculpidas.” Não sem motivo Ptach era o deus que criava obras de
arte, era o patrono dos escultores e dos artífices, do qual se dizia que os
projetos do seu coração seriam realizados e os seus pensamentos
executados. A grande habitação de Ptach era toda uma figura: sua casa
estava cheia de figuras, cheios de pintura os seus pátios. Esculpidos na mais
dura pedra, em pedra calcária e arenosa, em madeira e em cobre, os
pensamentos de Ptach povoavam as suas galerias, cujas colunas cobertas de
cintilantes pinturas e coroadas de capitéis de feixes de juncos se elevavam,
lembrando o porte colossal de um elefante, das bases em forma de mós de
moinho até o vigamento dourado. Havia estátuas por toda parte, eretas,
sentadas, em movimento, abraçadas sobre os tronos com os seus filhinhos;
figuras de reis com diademas e lítuos, saiote pregueado e aberto à altura do
cinto, ou tendo na cabeça um pano de cujas extremidades caindo pelos
ombros se destacavam as orelhas. Estes senhores da terra, de ombros largos
e quadris estreitos, eram de busto delicado, traziam as mãos espalmadas
sobre as coxas e tinham um ar de gravidade. Seus musculosos braços
sentiam o desajeitado contato dos dedinhos de uma deusa tutelar, enquanto
um falcão estendia as asas sobre a sua nuca. O rei Mire, que tomara grande
a cidade, estava representado numa figura de cobre, andando, animado a um
bordão, tendo ao lado o seu filhinho, uma estátua desproporcionadamente
pequena. Este tinha nariz e beiços carnudos, e como as demais imagens
relutava em levantar do chão a sola do pé que ficava atrás. Caminhava
assim sobre suas duas plantas ao mesmo tempo, numa postura estática que
era um movimento e numa marcha que era estacionamento. Moviam-se
sobre pernas robustas, de cabeça erguida, separada das pilastras de pedra
atrás dos seus pedestais, e dos ombros em ângulo reto desciam os braços
que seguravam cones cilíndricos nos punhos fechados. Ou eram
representados como escrivães, quase de cócoras, tendo as mãos atarefadas
no trabalho estendido sobre os joelhos e observando com olhos inteligentes
quem os contemplava. As vezes viam-se um homem e uma mulher,
sentados um ao lado do outro e com os joelhos juntos, tendo a pele, os
cabelos e os trajes pintados nas cores mais naturais, parecendo mortos que
estavam vivos. Muitas vezes os artistas de Ptach tinham feito seus olhos
muito terríveis, não do mesmo material da face, mas cravados
posteriormente nas órbitas: uma pedrinha preta espetada no esmalte
simulava a pupila, havendo nesta uma cavilhazinha de prata que se
iluminava como um pequeno dardo de luz e afogueava horrivelmente os
largos olhos das estátuas, de tal sorte que não era possível evitar aqueles
olhares reverberantes e tinha-se de ocultar o rosto nas mãos.
Eram estes os rígidos pensamentos de Ptach, que moravam na sua casa
com ele, com a mãe leonina e com o filho-lótus. Ele próprio, o deus em
figura de homem, era representado centenas de vezes na sua capela sobre as
paredes inteiramente pintadas: era uma figura de homem, estranhamente
semelhante a um boneco, numa forma quase abstrata, visível apenas de um
lado, com uma perna só, um olho comprido, a cabeça coberta por um capuz
que a ela aderia estreitamente e o queixo com uma barba régia ali
artificialmente encaixada. Toda a sua figura era muito rudimentar e
esboçada de maneira estranha, pintada a largos traços como os seus punhos
que seguravam na sua frente o bastão do poder. Parecia metida num estojo,
num apertado forro deforme; parecia, a falar verdade, enfaixada e
embalsamada... Que eta Ptach, o senhor, e qual a sua posição? Porventura a
grande e antiquíssima cidade merecia o seu nome sepulcral não só graças à
pirâmide de que tinha o nome, não só graças ao seu passado, mas também e
sobretudo como casa de Ptach, o senhor? José não ignorava aonde ia
quando os seus compradores o levavam para o Egito, o país que Jacó
abominava. Também reconhecia cabalmente que, em vista do seu próprio
estado, aqui ele estava no seu lugar e que o proibido não o era para ele, mas
lhe fora engenhosamente acomodado. Pelo caminho e a tempo não havia ele
atribuído a si um nome que devia caracterizá-lo como uma pessoa indígena,
com um nativo? E, no entanto, ele, refletindo os sentimentos paternos,
nunca pudera tolerar as pessoas que o cercavam e continuamente lhe vinha
uma vontade louca de experimentar com perguntas a gente do pais e ver o
que pensavam eles mesmos dos seus deuses e do Egito, para que o
revelassem a ele, que o sabia, e ainda a si próprios, porquanto pareciam não
sabê-lo bem.
Assim aconteceu com o mestre padeiro Bata, de Mênfis, que eles
encontraram no templo de Ptach, durante o sacrifício de Ápis.
Quem habitava lá, além do Informe, da Leoa, do Filho enigmático e do
rígido pensamento, era Ápis, o grande touro, a “repetição viva” do senhor,
gerado por um raio de luz vindo do céu a uma vaca, que depois disso não
mais pariu; seus testículos pendiam tão possantes como os de Merver em
On. Ele morava por trás de portas de bronze no fundo de um peristilo aberto
no alto, e entre as colunas havia lajes magnificamente lavradas, com
artísticas cornijas a meia altura. Uma multidão compacta enchia o lajedo do
átrio quando Ápis, saindo da penumbra da sua capela, dava alguns passos
para fora, conduzido por guardas, para que o povo visse aquela divindade e
lhe trouxesse suas oferendas.
José com os seus amos observava a adoração. Era uma abominação
estranha, mas também alegre, mercê do bom humor da população de
Mênfis, mulheres e homens acompanhados de crianças turbulentas. Essa
turbamulta satisfeita, aguardando o deus, tagarelando e rindo, “beijava”
(termo usual em vez de “comer”) figos de sicômoro e cebolas; dos cantos
da boca lhe escorria a água das talhadas de melão que mordia; e nesse
meio-tempo ia negociando com os mercadores, que aos lados do pátio
vendiam pães sagrados, aves para o sacrifício, cerveja, incenso, flores e
mel.
Perto dos ismaelitas estava um homem pançudo, de sandálias de cortiça,
e, como o aperto era muito, puxaram conversa. Ele usava um saiote de pano
grosseiro que lhe chegava aos joelhos, com a parte anterior de forma
triangular, e em redor do tórax e dos braços trazia uma porção de laçarotes
nos quais dera alguns nós de devoção. Seus cabelos curtos e lisos
circundavam o crânio redondo, e suas vítreas pupilas saltadas ainda ficavam
mais salientes com uma expressão de bonomia quando deixava fluir a fala
da boca bem-feita e barbeada. Antes de entabular conversa, durante muito
tempo medira com a vista o velho e os seus, depois lhes perguntou de onde
vinham e para onde iam, curioso da sua procedência. Segundo ele mesmo
dizia, era padeiro, o que não queria dizer que fizesse o pão com as suas
próprias mãos e que metesse a cabeça no forno. Dava ocupação a uma meia
dúzia de rapazes e entregadores que, em cestas que carregavam na cabeça,
levavam pela cidade ótimos coscorões e rosquinhas. Ai deles se não
prestassem atenção e se descuidassem de proteger com o braço a
mercadoria, a fim de impedir que as aves do céu descessem para roubar do
cesto! O entregador de pão a quem acontecia uma coisa dessa recebia uma
“lição”, como explicava o mestre padeiro Bata — era esse o seu nome.
Possuía também um campinho para o plantio de trigo de que fazia o seu
pão. Isso, porém, não era suficiente, porque o seu comércio era avultado,
sendo ele obrigado a prover-se de mais trigo doutras partes. Hoje saíra para
vir ver o deus, o que era vantajoso, ao passo que não fazê-lo era
desvantajoso. Enquanto isso, sua mulher visitava a Grande Mãe na casa de
Eset e lhe levava flores, sendo particularmente afeiçoada a ela, enquanto
ele, Bata, achava maior prazer no lugar em que estava. E quanto a eles —
inquiriu o padeiro —, viajavam a negócios por aqueles países?
— E verdade — respondeu o velho. E acrescentou que haviam atingido,
por assim dizer, a sua meta, porquanto estavam em Mênfis, a cidade das
grandes portas, poderosa em habitações e construções eternas, e bem
poderiam agora pensar na volta.
Agradeceu-lhes muito o mestre padeiro. Poderiam, sim — acrescentou
—, mas não o fariam, porque, como toda a gente, haviam de considerar
aquele velho ninho apenas como um degrau sobre o qual pousar o pé para
subir até as magnificências de Amun. Seriam eles os primeiros a não fazer
como os demais, os primeiros viajantes cuja meta não era Veset, a nova em
folha, a cidade de Faraó (que ele viva são e salvo!) onde homens e tesouros
jorravam juntamente e onde o nome viúvo de Mênfis era utilizado como
título pelos cortesãos e pelos principais eunucos de Faraó; por exemplo, o
padeiro-chefe do deus, o que superintendia os fomos do paço, era chamado
príncipe de Mênfis, e talvez com alguma justiça. Pelo menos era certo que
em Mênfis já eram servidos bolos finos em forma de vaca ou de caracol
quando o povo de Amun ainda se contentava de engolir trigo torrado.
O velho retrucou que sim, que com muita probabilidade iriam a Veset
depois de uma considerável demora em Mênfis; que lá iriam verificar com
os próprios olhos como aquela cidade teria progredido em várias coisas da
vida e no desenvolvimento da panificação. Ainda falava quando foi
interrompido pelo rufar de tambores. O portão posterior se abriu e o deus
foi trazido para o pátio, estacionando a poucos passos dos batentes. Grande
era a excitação da turba. “Ápis! Ápis!”, gritavam e andavam a pé-coxinho, e
aqueles que achavam jeito de fazê-lo, no meio daquele apertão, se atiravam
por terra e se punham a beijá-la. Viam-se muitos dorsos curvados em arco e
o ar estava cheio do sopro gutural do som com que começava o nome do
deus, arremessado ao alto centenas de vezes. Era ao mesmo tempo o nome
do rio que havia criado o país e o conservava. Era o nome do touro solar, a
expressão de todos os poderes fecundantes de que aquela gente sabia que
dependia, o nome da existência do país e dos homens, o nome da vida. Por
leviano e gárrulo que fosse aquele povo, estavam todos profundamente
comovidos, porque a sua devoção se compunha de todas as esperanças e
ânsias de que a existência exatamente condicionada lhes enchia o peito.
Pensavam na inundação que não devia ser muito alta nem baixar de um
côvado se a terra tinha de sobreviver; pensavam na capacidade das suas
mulheres e na saúde dos seus filhos, no seu próprio corpo e nas funções
deste, sujeitas a vicissitudes que lhes davam conforto e prazer quando tudo
ia bem, mas causavam áspero sofrimento quando fraquejavam, e que era
necessário salvaguardar usando feitiço contra feitiço. Pensavam nos
inimigos do país no Sul, no Oriente e no Ocidente, em Faraó que eles
também chamavam o “forte touro” e que sabiam que estava
cuidadosamente guardado e custodiado no palácio de Tebas como aqui o
estava Ápis, porquanto ele os protegia e na sua pessoa transitória constituía
uma união entre eles e aquele de quem tudo dependia. “Ápis! Ápis!”,
bradavam com ansioso júbilo, oprimidos pelo sentimento da vida
escassamente condicionada, periclitante, e, cheios de esperança, olhavam
fixamente o animal-deus, com a sua fronte quadrangular, seus chavelhos de
ferro, a espessa linha da nuca que coma sem sinuosidade desde o dorso até
o crânio, olhavam os seus órgãos genitais, penhor de fecundidade.
“Segurança!” — eis o que pretendiam dizer com o seu grito. “Proteção e
subsistência!” “Viva o Egito!”
Era extraordinariamente bela a réplica viva de Ptach. E não era para
menos, pois pessoas das mais competentes haviam passado anos e anos à
procura do mais formoso exemplar bovino entre os pântanos do delta e a
ilha dos Elefantes. Era preto, e com o seu negrume harmonizava
magnificamente, para não dizer divinamente, o xabraque escarlate que
trazia sobre o lombo. Dois guardas de cabeça tapada, com saiotes de
fazenda d’ouro pregueada, que na frente deixavam descoberto o umbigo e
atrás chegavam até meia altura das costas, o seguravam de um lado e de
outro com cordas douradas, sendo que o da direita erguia um pouco a
coberta ante os olhos do povo para lhe mostrar sobre um dos ilhais de Ápis
a malha branca na qual se devia reconhecer a imagem do crescente. Um
sacerdote, sobre cujas costas pendia uma pele de leopardo com as garras e o
rabo, inclinava a testa e depois, pondo uma perna na frente da outra,
estendia o turíbulo na direção do touro, enquanto este, com a cabeça baixa,
farejando, intumescia as grossas e úmidas ventas, titiladas pelo fumo do
incenso. O animal espirrava com força, o que fazia redobrar as insistentes
aclamações do povo e os seus pulos de alegria sobre um pé só. O ato do
incensamento era acompanhado por harpistas que, agachados e de cara
voltada para o alto, cantavam hinos, enquanto detrás deles outros cantores
batiam o compasso com as mãos. Depois compareciam também mulheres,
raparigas do templo, com os cabelos soltos, uma delas sempre nua e a outra
coberta apenas por uma faixa sobre os quadris salientes e envolvida num
comprido véu diáfano, aberto na frente e que igualmente permitia ver toda a
sua juventude. Giravam bailando em torno da cena, agitando sistros e
pandeiretas acima das cabeças, ao mesmo tempo que erguiam a uma altura
surpreendente a perna esticada. Um sacerdote leitor, sentado ao pé do touro,
voltado para a multidão, começou, balançando a cabeça, a salmodiar no seu
livro em forma de rolo um texto cujas palavras, que sempre se repetiam,
eram interrompidas pelo povo ”Ápis é Ptach. Ápis é Rá. Ápis é Horus, filho
de Ísis!” Depois do que vinha acompanhado, entre flabelos, calvo e de ar
arrogante, de um sacerdote, evidentemente graduado, com um comprido e
amplo saiote de cambraia seguro nos ombros por laços. Tinha nas mãos um
prato de ouro com ervas e raízes. Como se deslizasse habilmente, com uma
das pernas muito estendida para trás e a outra ajoelhada, erguendo-se sobre
os dedos dos pés, estendia com ambos os braços sua oferenda para o deus.
Ápis não dava atenção a nada disto. Estava habituado a todas essas
cerimônias que lhe eram prestadas e a uma existência de solene enfado que,
graças a uma determinada compleição, se tomara a sua parte melancólica.
Lá estava ele com as pernas muito abertas, e com os seus pequenos olhos
taurinos, injetados de sangue, olhava gravemente, por cima dos ofertantes, o
povo que, dançando e saltando, com uma mão sobre o peito e a outra
estendida para ele, gritava o seu nome santo. Folgavam muito de vê-lo
amarrado com cordas douradas e de saber que estava na segura custódia do
templo, enclausurado entre guardas de serviço. Era ele o seu deus e o seu
prisioneiro. A verdade é que aplaudiam a sua prisão e a segurança que lhes
conferia, daí os seus pulos de júbilo; e talvez por isso é que o animal lhes
lançava uns olhares tão desconfiados e maus, porque compreendia que, não
obstante todas as demonstrações de honra, as intenções deles não eram
afinal tão boas.
Por causa da sua corpulência, o mestre padeiro não dava saltos de
alegria, mas respondia com voz forte ao sacerdote ledor e repetidas vezes
saudava o deus, prostrando-se e erguendo a mão, visivelmente edificado
com o espetáculo.
— Faz bem à gente vê-lo — declarou aos seus vizinhos. — Revigora os
alentos vitais e dá segurança. A minha experiência é que, depois de ver a
Ápis, já não tenho necessidade de comer nada o dia inteiro, porque nos
meus membros sinto um como abundante repasto j de carne de boi. Depois
sinto-me farto, tenho sono, faço uma soneca e desperto como que renascido.
E um deus grandíssimo, a repetição viva de Ptach. Deveis saber que a sua
tumba o aguarda no Ocidente, I porque, segundo a ordem emanada, depois
da morte deve ser salgado e enfaixado da maneira mais custosa, com boas
resmas e linho régio, e sepultado na necrópole conforme os usos na casa
eterna dos deuses-touros. Essa a ordem — repetiu — e assim se faz. Já dois
Usar-Ápis descansam em sarcófagos de pedra na casa eterna do Ocidente.
O velho relanceou um olhar a José e este interpretou-o como um,
incitamento a fazer uma pergunta que tentasse aquele homem.
— Pede-lhe que te explique — disse José — por que motivo diz que
Usar-Ápis é esperado pela sua casa eterna no Ocidente, quando não é no
Ocidente que ela espera, mas Mênfis, a cidade dos vivos, já está situada
sobre a margem ocidental, de modo que nenhum morto atravessa as águas.
— Este jovem — disse o velho, dirigindo-se ao padeiro — pergunta
uma coisa e outra. Queres responder-lhe?
— Falo segundo ouço falar — replicou o egípcio — e nem sequer refleti
nisso, porquanto é uma expressão corrente e não pensamos de outro modo.
Conforme o nosso modo de falar, o Ocidente é o Ocidente, isto é, a cidade
dos mortos. Mas não deixa de ser verdade que os mortos de Mênfis não
fazem, como os de outros lugares, a viagem para lá do rio, porém a cidade
dos vivos também já está situada no Ocidente. Segundo a razão, as
considerações do teu rapaz são justas.
Mas de acordo com o nosso modo de falar, eu também me exprimi
direito.
— Então pergunta-lhe também isto — disse José. — Se Ápis, o belo
touro, é o Ptach vivo para os vivos, que coisa é Ptach na sua capela?
— Ptach é grande — respondeu o padeiro.
— Dize-lhe que não ponho isso em dúvida — retrucou José. — Mas
Ápis se chama Usar-Ápis quando morre, e Ptach, na sua barca, é Usir e se
chama “o que tem figura humana”, porque tem a figura das arcas com a
barba no queixo, nas quais trabalham os marceneiros, e parece envolvido
em faixas. Então que coisa é ele?
— Faze que o teu rapaz compreenda — disse o padeiro ao velho — que
cada dia o sacerdote entra na capela de Ptach, abre-lhe a boca com um
poderoso instrumento feito de propósito, de modo que possa beber e comer,
e renova diariamente para ele a pintura da vida sobre as suas faces. E este o
serviço, este o trato.
— Então pergunta-lhe respeitosamente — replicou José — como se
procede com o morto diante da sua tumba quando por trás dele está Anúbis,
e em que pode consistir o serviço que o sacerdote presta à múmia.
— Nem sequer isto sabe? — respondeu o padeiro. — Bem se vê que é
um habitante da areia e que está há pouco neste país, para ele
completamente desconhecido. Dize-lhe que o serviço consiste, antes de
tudo, na chamada abertura da boca, que nós assim chamamos porque o
sacerdote abre a boca do morto com um pau apropriado para que possa
comer e beber e apreciar os holocaustos de alimento que lhe são oferecidos.
Além disso, como sinal de reanimação à maneira de Usir, o sacerdote dos
mortos dá à múmia uma vigorosa vermelhidão que é um consolo para o
coração dos carpidores.
— Agradeço as explicações — disse José. — Nisto consiste, pois, a
diferença entre o culto dos deuses e o dos mortos. Agora pergunta ao senhor
Bata com que coisa se constrói na terra do Egito.
— O teu rapaz — respondeu o padeiro — é gracioso, porém meio
ignorante. Constrói-se com tijolos do Nilo para os vivos. Agora as
habitações dos mortos, como também os templos, são de pedra eterna.
— Com os meus vivos agradecimentos — disse José — ouvi isto. Mas
se para duas coisas serve a mesma coisa, elas são iguais, e então se podem
trocar impunemente os objetos. As tumbas do Egito são templos, mas os
templos...
— ...são casas de Deus — completou o padeiro.
— Tu o dizes. Os mortos do Egito são deuses, e os vossos deuses que
coisa são?
— Os deuses são grandes — retrucou Bata, o padeiro. — Sinto-o diante
da saciedade e do cansaço que me assaltam quando contemplo Ápis. Mas
agora quero ir para casa e estirar-me para o sono do renascimento. Nesse
meio- tempo também minha mulher já terá voltado do culto da Mãe.
Conservai-vos sadios, ó estrangeiros. Alegrai-vos e viajai em paz.
E foi-se embora. O velho, porém, disse a José:
— Aquele homem estava morto de fadiga, e não devias, servindo-te de
mim, atribulá-lo com perguntas molestas.
— Mas o teu servo — justificou-se José — deve-se informar de tudo
isto, para orientar-se acerca da vida do Egito, onde tu o queres deixar e onde
ele deverá ficar para sempre. Tudo aqui é desconhecido e novo para o teu
rapaz. Os filhos do Egito oram nas tumbas, chamem-lhes eles templos ou
habitações eternas; nós, porém, em casa oramos, segundo o uso dos nossos
pais, debaixo de árvores verdes. Não nos provocam a reflexão e o riso esses
filhos do Egito? Para eles Ápis é a forma viva de Ptach, e dela, conforme
me parece, bem pode Ptach fazer uso, já que, como é sabido, ele está
envolvido em faixas e é um cadáver. Eles, porém, não têm paz enquanto
não envolvem em faixas também a forma viva, enquanto não a convertem
num Usir e numa múmia de Deus. Por minha parte, eu tenho simpatias por
Mênfis, cujos mortos não têm necessidade de fazer a viagem para lá das
águas, porque ela já está situada no Ocidente. Cidade tão grande, tão
transbordante de gente, que contrai comodamente o seu nome sepulcral.
Pena é que a casa da bênção diante da qual me queres conduzir, a casa de
Petepré, o flabelífero, não esteja situada em Mênfis, pois que esta me
agradaria entre as cidades do Egito.
— Es ainda muito pouco maduro — retrucou o velho — para distinguir
que coisa te convenha, mas eu o sei bem e me interesso por ti como um pai,
porque sou teu pai, a admitirmos que tua mãe é o fosso. Amanhã bem cedo
embarcaremos e navegaremos nove dias através do Egito, subindo o rio em
direção ao sul, até pormos os pés sobre as cintilantes plagas de Veset-per-
Amun, a cidade do rei.
3

A CHEGADA

A VIAGEM PELO RIO

Soberbo de Rapidez era o nome do barco em que com seus animais


embarcaram os ismaelitas, depois de terem feito provisão de mantimentos
para nove dias nas barracas erguidas no lugar onde estava amarrado o
barco. O nome do barco estava escrito em ambos os lados da proa, adornada
com uma cabeça de ganso, mas não era mais que um nome característico do
espírito jactancioso do Egito. Com efeito, aquilo era a mais disforme
barcaça que se podia achar atracada no embarcadouro de Mênfis; muito
bojuda, sem capacidade para a carga, com parapeitos de madeira, uma
cabina que consistia apenas numa tenda de esteiras, aberta na frente, e tendo
um único leme muito pesado, seguro perpendicularmente a um pau na popa.
O patrão do barco chamava-se Thot-nofer. Era um homem do Norte,
que usava brincos e tinha cabelos brancos na cabeça e no peito. Conhecera-
o o velho no albergue e com ele tratara a travessia por baixo preço. O barco
de Thot-nofer transportava madeira de construção, uma partida de linho
comum e outra de linho inferior, papiros, couros de boi, cabos de navio,
vinte sacos de lentilha e trinta barricas de peixe seco. Soberbo de Rapidez
trazia também a bordo a estátua de um rico cidadão de Tebas; ia na frente,
na proa, num invólucro de sarrafos e de pano de saco. Destinava-se à “boa
casa”, em outras palavras, ao túmulo do homem que a encomendara, a
ocidente do rio, onde ela, ressaindo numa porta falsa, contemplaria os bens
que o defunto levava para a eternidade e as cenas de sua vida habitual
pintadas nas paredes. Os olhos com que veria tudo isso ainda não haviam
sido colocados nas órbitas; não tinha tampouco as cores da vida nem o
bastão que devia ser apertado por seu punho estendido junto do oblíquo
avental por cima do saiote. Mas o seu original dera importância a que o
duplo queixo e as grossas pernas fossem ao menos executadas em bruto sob
os olhos de Ptach e por mão dos seus artistas; a última demão podia ser
dada depois numa oficina de Tebas, a cidade dos mortos.
Ao meio-dia a tripulação desatracou a embarcação e desdobrou a parda
vela remendada, que logo se enfunou com o vento violento do norte. O
timoneiro, sentado na parte posterior do esporão da nau, começou a
movimentar o leme com a alavanca perpendicular; da cabeça de ganso à
proa um homem sondava com uma vara a água do rio, enquanto Thot-nofer,
para tomar propícios os deuses e para obter uma travessia feliz, queimava
diante da cabina um pouco de resina que os ismaelitas lhe tinham dado em
pagamento. E assim a barcaça que transportava José, lançada de alta proa e
popa, fendendo a água com meia quilha, fez-se ao largo. No entanto o
velho, sentado com os seus sobre o madeirame empilhado por trás da
cabina, expandia-se em considerações sobre a sabedoria da vida, na qual
quase sempre as vantagens e desvantagens se equilibram, de tal modo que
se pode alcançar a perfeição média nem bem nem mal demais. E assim,
dizia ele, se agora se navega contra a corrente, em compensação o vento
sopra do Norte, como faz quase sempre, e empurra a vela ajudando-a, de
sorte que o impulso e o obstáculo se completam num progredir moderado.
Quando, porém, se vai a favor da corrente, a coisa é fácil, porque a gente
pode deixar-se arrastar; apenas nesses casos o movimento pode tomar-se
facilmente irregular, a nau se põe de través e a gente se vê forçada a
empreender um trabalho fatigante de remo e de leme, para que essa
navegação não acabe em completa desordem. Desse modo as vantagens da
vida são sempre contrabalançadas por desvantagens e estas compensadas
por aquelas, sendo que no fim o resultado é zero, é nada. Na realidade,
porém, o resultado é a sabedoria do equilíbrio, da perfeição média, perante
a qual não deve haver nem júbilo nem maldição, mas contentamento
apenas. A perfeição não consiste na acumulação unilateral de vantagens,
porque por outro lado a vida se tornaria impossível por todas as
desvantagens; consiste, sim, no equilíbrio da vantagem e da desvantagem,
culminando no nada que se chama afinal contentamento.
Assim falava o velho, levantando o dedo e tendo a cabeça inclinada para
o lado. Os seus escutavam-no de boca aberta, trocando também uns com os
outros olhares confusos e contrários, como costumam fazer as pessoas
ignorantes diante das quais se toca em assuntos um pouco mais elevados.
Prefeririam não ter que escutar. Por seu lado, José pouca atenção prestava
às abstrações do velho, engolfado como andava na alegria de viajar de
barco, com a frescura daquele vento e o melodioso marulho da água contra
a proa, com o doce balouçar e deslizar da embarcação sobre o largo rio,
cujas maretas refulgentes lhe saltavam ao encontro, como outrora a terra
saltara ao encontro de Eliézer na sua viagem. Nas margens sucediam-se de
contínuo os quadros risonhos, frutíferos e sagrados; eram elas orladas de
colunatas, acompanhando-as às vezes bosquetes de palmeiras, mas mais
frequentemente eram corredores de pedra, construídos por mãos humanas,
pertencentes aos templos das cidades. Diante dos olhos dos navegantes
surgiam aldeias com altos pombais e pomares virentes; daí a pouco
novamente alegres e esplêndidas cidades com agulhas de torres a irradiar
ouro ao sol e com portas embandeiradas. Pares de estátuas descomunais
sentavam-se rígidas e solenes com as mãos nos joelhos e, para lá do rio e da
terra, olhavam da margem o deserto. Tudo isto às vezes ficava perto, outras
vezes muito longe, se estavam navegando no meio do rio, cujas águas de
quando em quando se alargavam como o mar ou corriam em meandros,
surgindo sempre, por trás destas, novos quadros do Egito. Mas a vida no
próprio rio sagrado, a estrada real do Egito, era altamente divertida.
Quantas velas, finas ou grosseiras, se enfunavam ao vento, quantos lemes
batalhavam com as suas ondas! Por cima das águas o ar límpido e sonoro
ecoava de vozes humanas, de saudações e gracejos dos navegantes, de
gritos dos homens que manejando as varas à proa avisavam a aproximação
de bancos e redemoinhos, de advertências que dos tetos das cabinas os
marujos lançavam a cantar a quem dirigia o timão ou governava as velas.
Botes comuns, como o de Thot-nofer havia-os em barda; mas barcas
graciosas também passavam por Soberba de Rapidez e o saudavam ou o
alcançavam. Eram pintadas de azul, tinham mastros baixos e largas velas
brancas como pombas, que se enchiam em aprazível voo, rodas de proa em
forma de lótus e vistosos pavilhões em vez do madeirame tosco da cabina.
Havia barcas dos templos, com velas purpúreas e com grandes quadros na
proa; elegantes iates dos poderosos, com doze remadores de cada lado, e na
coberta quiosques com portas sustentadas por colunas, sobre cujo teto
estava empilhada a bagagem do dono e o seu coche e entre cujas suntuosas
paredes alcatifadas estava sentado o senhor de alta linhagem, com as mãos
sobre o ventre, como que hirto na sua beleza e na sua riqueza, não olhando
para nenhum lado. Encontraram também um comboio fúnebre, rebocando
três embarcações em fila; na última, uma barcaça branca, sem vela nem
remos, jazia entre carpideiras, sobre um esquife com pés de leão, o
sarapintado Osíris, com a cabeça voltada para a proa.
Sim, muito havia que ver no rio e nas margens. Para José, que nunca
provara o encanto de uma travessia por água, os dias agora passavam como
horas. Viagens dessas iam-se-lhe tomar habituais, devendo ficar-lhe familiar
exatamente este trecho entre a casa de Amun e Mênfis, com o seu picaresco
nome de tumba. De um modo muito semelhante ao desses poderosos nas
suas capelas ornadas de tapetes, ele devia um dia estar lá dentro, com a
prescrita e pomposa imobilidade que teria de aprender, porque era isso que
o poviléu comum esperava ver nos deuses e nos grandes. Efetivamente, no
modo de tratar com Deus teria de portar-se com tanta discrição, deveria
mostrar tanta habilidade que se tomaria o primeiro entre os ocidentais,
podendo sentar-se lá sem olhar para nenhum lado. Tudo isto lhe estava
reservado. Por ora olhava ainda à direita e à esquerda tanto quanto podia,
para reter no espírito e na mente o país e a vida do país, cuidando sempre
que a sua curiosidade não degenerasse em confusão e timidez inútil, mas
mantendo-se cheio de reservas e sereno em honra de seu pai.
Assim, manhãs e tardes teciam os dias que se acumulavam. Mênfis
estava então distante deles como o estava o dia em que se haviam feito de
vela, deixando aquela cidade. Quando o Sol se punha e o deserto longínquo
tomava uns tons violáceos e o céu árabe à esquerda espelhava mais
suavemente o exuberante clarão alaranjado do deserto líbico à direta, eles
amarravam seu barco a uma estaca qualquer, onde quer que se achassem, e
dormiam, para prosseguir a viagem no dia seguinte. O vento era-lhes quase
sempre propício, à exceção dos dias em que amainava. Então tinham de
remar, e também o vendível Osarsif e os ismaelitas mais jovens tinham de
ajudar, porque a equipagem da barcaça não era numerosa e haveria um
atraso, o que muito desagradava a Thot-nofer por causa do monumento
sepulcral que devia ser entregue com pontualidade. Entretanto, não era
grande a perda do tempo, porque nos dias subsequentes o vento intumescia
o pano, de maneira que vantagem e desvantagem se compensavam,
produzindo neles contentamento. Na tarde do nono dia viram a distância
alguns cabeços denteados, pompeando no ar translúcido, numa cor rósea e
de mirífica beleza, como um corindon rubro, embora, conforme toda a
gente sabia, fossem terrivelmente áridos e amaldiçoados como eram todos
os montes do Egito. O patrão do barco e o velho reconheceram neles os
montes de Amun, os cabeços de No; e, depois de terem dormudo e
desdobrado as velas e, movidos de impaciência, terem-se posto também a
remar, abriu-se diante deles o espetáculo: diante de seus olhos tudo cintilava
como ouro, fulgiam as cores do arco-íris e eles, antes mesmo de pisar terra
firme, ainda na sua embarcação, entraram na cidade de Faraó, a cidade
extraordinariamente famosa. É que, na verdade, o rio era agora uma estrada
triunfal e corria entre filas de construções monumentais, circundadas do
verdor de amenos jardins, entre templos e palácios à direta e à esquerda,
sobre a margem da vida como sobre a da morte, entre colunatas de papiros e
colunatas de lótus, entre obeliscos com pontas de ouro, estátuas colossais,
portões em forma de torre com avenidas de esfinges desde a margem do rio
até esses portões. As portas e as hastes das bandeiras eram douradas,
despedindo uma reverberação que obrigava a cerrar as pálpebras, de
maneira que as cores das figuras e das inscrições sobre os edifícios, o
vermelho-canela, a cor de ameixa, o verde-esmeralda, o amarelo de ocre e o
azul-celeste se fundiam num confuso mar de tintas.
— Eis ali Epet-Esovet, a grande morada de Amun — disse o velho a
José, indicando-lhe com o dedo. — Ela tem uma sala de cinquenta varas de
largura com cinquenta e duas colunas e pilastras que se assemelham a
estacas de tenda, e essa sala, se isso te agrada, é pavimentada de prata.
— E claro que me agrada — respondeu José. — Eu já sabia bem que
Amun é um deus riquíssimo.
— Aqueles são os estaleiros do deus — continuou o velho, apontando à
esquerda as docas onde numerosos homens de saiote, os carpinteiros do
deus, se ocupavam em verrumar, martelar e calafetar cascos de navios. —
Aquele é o templo dos mortos de Faraó e aquela é a casa da sua vida —
disse o velho, mostrando em diferentes pontos ao ocidente blocos de
edifícios de uma magnificência a um tempo esmagadora e graciosa. —
Aquilo é o harém de Amun — prosseguiu, virando-se para a outra margem
e indicando com o dedo extensas construções de templos ao longo do rio. O
sol batia de chapa nas suas fachadas, as sombras produzidas pelas suas
projeções eram pontudas e negras. Em derredor via-se uma multidão de
homens a agitar-se, visivelmente atarefada em trabalhos de construção.
— Enxergas aquela beleza? Vês a sede do ministério da concepção
régia? Podes divisar como Faraó constrói diante da sala e do pátio ainda um
átrio, cujas colunas são mais altas do que qualquer outra edificação? Meu
amigo, aquela é Novet-Amun, a soberba, aquela que aparece diante de
nossos olhos. Observa o caminho dos carneiros que do harém vai ao sul até
a grande morada. Deves saber que essa estrada tem cinco mil varas de
comprimento à direita e à esquerda e é toda ladeada de carneiros de Amun,
que entre as patas seguram a estátua de Faraó.
— Muito lindo — comentou José.
— Lindo? — disse o velho irritando-se. — Tu extrais do teu
vocabulário palavras ridiculamente erradas, deixa que te diga, e me
satisfazem bem pouco as tuas reações ante o espetáculo de Veset.
— Eu disse muito lindo — retrucou José. — Tão lindo quanto queiras.
Mas onde está a casa do flabelífero à qual me queres levar? Podes mostrar-
ma daqui?
— Não. Daqui não se pode distinguir — respondeu o velho. — Ela está
lá embaixo, do lado do deserto oriental, onde já não são tão compactas as
moradias e onde os jardins e as vilas de luxo são em grande número.
— E hoje mesmo me levarás àquela casa?
— Estás assim tão aflito para que eu te leve e me desfaça de ti? Ainda
não sabes se o mordomo da casa ficará contigo e se me oferecerá o
suficiente para cobrir as minhas despesas e para que eu meta na algibeira
também um lucrozinho legítimo! Várias vezes já a lua mudou desde que eu
te arranquei à cisterna, tua mãe. E são já muitos os dias de jornada em que
me fazes bolos e tiras sempre do teu vocabulário palavras novas para dar-
me as boas-noites. Será possível que o tempo te pareça longo e te sintas mal
conosco e desejes um novo serviço? Todavia pode também dar-se o caso
que em todos esses dias te hajas acostumado a nós e te seja penoso teres de
separar-te do velho madianita de Ma’on, aquele que te tirou do ventre do
poço, mas te contentes em esperar a hora em que ele se vá e te deixe nas
mãos de pessoas estranhas. São estas as duas possibilidades, resultantes dos
numerosos dias de viagem em comum.
— A última — respondeu José —, incontestavelmente a última é a
realidade. E certo que eu não tenho pressa de separar-me de ti, meu
libertador. Só tenho pressa de chegar aonde Deus me quer.
— Tem paciência — disse o velho. — Estamos para abicar e teremos de
nos sujeitar a todas as maçadas que os filhos do Egito impõem aos que
chegam, e elas duram muito tempo. Depois dirigir-nos-emos àquele ponto
da cidade onde há maior aglomerado de casas, pois lá conheço uma
estalagem onde pernoitaremos. E amanhã conduzir-te-ei à casa da bênção e
proporei a tua venda ao mordomo Mont-kav, meu amigo.
Enquanto conversavam, foram chegando ao porto, ou melhor, ao ponto
de atracação, que atingiram atravessando o rio, ao mesmo tempo que Thot-
nofer, o dono da embarcação, em sinal de agradecimento pela viagem que
correra sem novidade, de novo queimou bálsamos diante da cabina. O
desembarque se fez com os aborrecimentos e com a perda do tempo que
sempre e em toda parte se verificam em tais ocasiões. Envolveram-se na
confusão e no barulho do desembarcadouro, onde havia uma acumulação de
navios nacionais e estrangeiros ou já atracados ou procurando um ponto
qualquer para lançar as amarras, mal vagasse um poste de atracação.
Soberbo de Rapidez foi abordado por guardas do porto e por oficiais
aduaneiros que logo se puseram a tomar nota de tudo, tanto das coisas
miúdas como das de maior vulto, toda a carga peça por peça, enquanto em
terra firme os criados do dono da estátua, gritando, estendiam os braços
para ela, que já era esperada há tanto tempo. Havia por ah muitos
vendedores ambulantes de sandálias, gorros e pão de mel; seus gritos se
misturavam com o balido de ovelhas desembarcadas ah perto e com a
música de saltimbancos que sobre o molhe procuravam chamar a atenção
para si. A barafunda era enorme. José e seus companheiros estava sentados,
em silêncio e perplexos, sobre a pilha de madeira na popa da sua
embarcação, à espera do momento em que lhes fosse dado descer de bordo
e dirigir-se à estalagem. Isto, porém, estava ainda muito longe. O velho teve
de apresentar-se às autoridades da alfândega e esperar que registrassem
tanto a ele como aos seus bens e pagar a ancoragem para as suas
mercadorias. Teve artes de tratar os oficiais aduaneiros com bons modos e
criar entre si e eles uma atmosfera de camaradagem e não de burocracia, de
tal maneira que achavam graça e, em troca de presentinhos, não
esmiuçavam tanto a carga daqueles mercadores ambulantes. E assim,
poucas horas depois de lançadas as amarras, os compradores de José
puderam conduzir os seus camelos pela prancha e confundir-se com a turba,
afeita a peles de todas as cores e aos trajes mais diversos, abrindo caminho
por entre o caótico tumulto do quarteirão do porto.

JOSÉ ATRAVESSA A CIDADE DE VESE

A cidade egípcia cujo nome os gregos posteriormente adaptaram por


conveniência ao seu idioma sob a forma “Thebai”, na ocasião em que lá
desembarcou José e lá viveu, ainda não atingira o apogeu da sua fama,
conquanto já fosse célebre, como se deduzia do modo com que a ela se
referia o ismaelita e dos sentimentos que invadiram José quando soube ser
ali o fim da sua jornada. Partindo de origens obscuras e insignificantes,
desenvolvera-se e estava em pleno caminho do esplendor. Mas ainda lhe
faltava alguma coisa para chegar ao ponto em que não pudesse mais crescer,
ao ponto em que lhe fosse impossível subir mais alto e tivesse de parar,
perfeita, completa, representando uma das sete maravilhas do mundo. Tal
era ela em conjunto; mas também e principalmente numa de suas partes, o
pomposo peristilo de proporções enormes, único no mundo, que mais tarde
um faraó de nome Ra-messu ou “o Sol o gerou” acrescentou ao grupo de
edificações que compunha o grande templo de Amun ao norte, com gastos
correspondentes ao renome desse deus. Desta cidade, pois, os olhos de José
não viram nada, assim como não tinham visto nada do passado quando
contemplou as pirâmides, e isso por duas razões opostas: porque ela não
alcançara o presente e porque ninguém tinha a coragem de imaginá-la no
futuro. Para que isso fosse possível, devia ainda ser erigida alguma coisa
que pudesse ser superada pela imaginativa do homem, já afeita àquelas
antigas grandiosidades e cada vez mais incontentável. Havia, por exemplo,
a sala das festas, pavimentada de prata, em Epet-Esomet, que o velho
conhecia e cujas cinquenta e duas colunas semelhavam estacas de tenda,
construída pelo terceiro antecessor do deus atual. Ou havia o átrio que esse
mesmo deus exatamente agora, como José tinha visto, fizera acrescentar ao
harém de Amun, ao belo templo sobre o rio, superando aquilo que já
existia. E esta beleza devia primeiro ser ideada e depois realizada, na
convicção de que ela representava o apogeu, para que a incontentabilidade
do homem pudesse apoiar-se sobre ela e a seu tempo fosse possível idear e
realizar o verdadeiro apogeu, a plena beleza impossível de ser superada, isto
é, a maravilha do mundo, a sala de Ramsés.
Conquanto, pois, nem tudo isso existisse no tempo de José, mas
estivesse como que em seu caminho, Vese, também chamada Novet-
Amun,a capital sobre o rio Nilo,já então maravilhava todo o mundo até os
seus últimos confins. As trombetas da fama exageravam essa maravilha,
convertendo mesmo essa fama numa espécie de ponto de honra e numa
convenção, conforme é muitas vezes do gosto dos homens, ainda que só por
ouvir dizer; de sorte que era olhado com maus olhos todo aquele que
ousasse publicamente pôr em dúvida que No do Egito era grande e bela
mais do que seria possível encarecer, uma síntese de toda a magnificência
arquitetônica, em suma, uma cidade ideal, uma cidade de sonho. A ela
descemos, descemos no sentido do espaço, isto é, subindo o rio com José,
mas descemos igualmente num sentido temporal, a saber, no passado onde
numa moderada profundidade Vese ainda jaz, ainda cintila, ainda ressoa
com o atarefado tumultuar de suas ruas, ainda reflete os seus templos na
superfície imota dos seus lagos sagrados. Em relação a ela acontece-nos
mais ou menos o que nos aconteceu em relação ao próprio José, àquele que
a lenda cercou de uma auréola ideal, quando pela primeira vez o vimos na
sua realidade junto ao poço. Reduzimos então a sua fabulosa beleza à de um
homem normalmente belo da sua época, com o que sempre ficava muito da
sua graça atraente e exagerada sem necessidade pela fama.
Era o que também se dava com No, a cidade celeste. Ela não era
formada de materiais do céu, mas de tijolos misturados com palha, como
outra cidade qualquer; suas ruas, conforme José notou com alívio, eram tão
estreitas, tortuosas, sujas e fétidas como foram e serão sempre debaixo
daquele céu as ruas das grandes e das pequenas aglomerações humanas.
Pelo menos, assim eram as dos extensos quarteirões da população pobre
que, como sucede em toda parte, numericamente sobrepujava muito os
ricos, possuidores de moradias graciosas e menos abarrotadas. Se alhures
pelo mundo, sobre as ilhas do mar e sobre praias ainda mais longínquas, se
cantava em todos os tons que em Vese “as casas eram opulentas em
tesouros”, tudo isso — sem falar nos templos, onde realmente o ouro era
medido aos alqueires — só se aplicava a pouquíssimas casas que Faraó
enriquecera; a grande maioria não tinha quaisquer tesouros e era tão pobre
como a população das ilhas e das praias longínquas, que se assoalhava ao
esplendor lendário das riquezas de Vese.
Quanto ao tamanho de No, passava ele por enorme, e o era, isto é, se se
acrescentar que a palavra “enorme” tem não um significado simples,
inequívoco, mas é um conceito relativo, dependendo de quem dele faz uso e
a respeito de que se faz esse uso. Em relação à nota principal da grandeza
de Vese corria pelo mundo um verdadeiro mal-entendido; a fama das suas
“cem portas”. Em Chipre-Alachia, em Creta e ainda mais longe se dizia que
a cidade do Egito tinha cem portas. Lá lhe chamavam em mítica admiração
“a cidade das cem portas” e acrescentava-se que cada uma daquelas portas
podia dar passagem para o prélio a duzentos homens com seus ginetes e
suas armas. Evidentemente, esses tagarelas ingênuos pensavam numa
muralha de dimensões tais que nela era possível se abrirem não quatro ou
cinco portas, mas cem — conceito pueril, próprio somente de quem nunca
tinha visto Vese e só a conhecia através da lenda ou por ouvir falar. A ideia
de tão grande número de portas de certo modo se relacionava
razoavelmente com a cidade de Amun; ela tinha realmente muitas “portas”,
mas não eram portas na muralha e nem sequer poternas; eram torres
angulares, soberbas, com o resplandecente colorido das suas bastas
inscrições e das suas multicores representações em baixo-relevo, adornadas
dos laços variegados das flâmulas que tremulavam nas hastes douradas dos
pilones de que os portadores da dupla coroa, pouco a pouco, na sequência
dos jubileus e das grandes revoluções astrais, tinham provido e opulentado
os santuários dos deuses. Portas dessas havia-as de fato em grande número,
conquanto muitas tenham sido acrescentadas até o dia em que Vese
alcançou a sua plena e insuperável beleza. Mas em nenhum tempo, nem
antes disto nem depois, foram em número de cem; cem, entretanto, é um
número redondo e ainda para nós muitas vezes não significa outra coisa
senão “muitíssimos”. A grande habitação de Amun ao norte, em Epet-
Esovet, compreendia já então seis ou sete dessas “portas”, e os templos
menores nas suas vizinhanças, as casas de Consu, de Mut, de Mont, de Min
e de Epet com figura de hipopótamo, tinham um certo número delas. O
outro grande templo sobre o rio, chamado o harém meridional de Amun ou
simplesmente o “harém”, tinha outras portas semelhantes; e ainda outras
pertenciam às pequenas habitações de divindades não propriamente
nacionais, mas aí estabelecidas e alimentadas: as casas de Usir e de Eset, de
Ptach de Mênfis, de Thot e de outros ainda.
Essas quadras urbanas que encerravam os templos, com seus jardins,
bosquezinhos e lagos, formavam o verdadeiro âmago da cidade, ou antes,
eram no fundo a própria cidade, e tudo que nela havia de profundo e de
habitações humanas enchia o espaço entre os templos, estendendo-se do
quarteirão do porto ao sul e do harém de Amun até o bloco de templos ao
nordeste. Atravessava-o longitudinalmente a grande estrada triunfal do
deus, a avenida dos carneiros e das esfinges, para a qual o velho já desde o
barco chamara a atenção de José. Era uma área considerável, de cinco mil
varas de comprimento. A nordeste a triunfal avenida desviava-se do Nilo e
a parte habitada da cidade enchia o vasto espaço entre aquela e o rio, ao
passo que do outro lado esta se espraiava na direção do deserto oriental,
onde abundavam os jardins e as luxuosas vilas, ponto em que realmente “as
casas eram opulentas em tesouros”. Assim, a cidade era grande de fato e ate
enorme, se quiserdes. Dizia-se que sua população passava de cem mil
almas. Se o número cem era exagerado em relação às portas, uma espécie
de licença poética, o outro algarismo de cem mil, com referência à densa
população de Vese, era sem dúvida um arredondamento que ficava aquém
da realidade. Pelo nosso cálculo e pelo de José, os habitantes não eram só
mais de cem mil, mas o dobro e o triplo disso, mormente se se incluíam aí
os habitantes da cidade dos mortos da outra banda do rio, no Ocidente,
chamada “defronte do seu senhor"; claro é que não se tratava dos mortos,
mas dos vivos que moravam lá por causa da sua grave profissão, pois se
achavam em uma tal ou qual relação de trabalho manual ou de culto a
serviço dos defuntos, que eram transportados para além das águas. Todos
estes, portanto, com as suas moradias, formavam do outro lado do rio uma
cidade à parte que, incluída no conjunto de Vese, a tomava
extraordinariamente grande. Entre eles se inclui o próprio Faraó; ele não
morava na cidade dos vivos, da outra parte desta, a ocidente; nas orlas do
deserto e debaixo dos rochedos vermelhos lá estava o seu palácio na sua
graciosidade vaporosa, lá estavam os jardins de delícia do seu palácio com
o seu lago e seus jogos de água, coisas de recente criação.
Era, pois, uma cidade muito grande e grande não só pela sua extensão e
pelo número dos habitantes, mas também e especialmente pela animação da
sua vida interna, pela mescla do seu povo, pela alegria das variegadas raças
nos dias de feira; grande como centro e foco do mundo. A cidade mesma se
tinha na conta de umbigo do mundo — suposição arrogante aos olhos de
José e deveras contestável. Afinal, havia ainda Babel sobre o Eufrates, cujas
águas corriam em sentido inverso; em Babel estavam convencidos de que o
rio do Egito é que corria em sentido inverso e não tinham a mínima dúvida
de que em redor de Bab-ilu o resto do mundo se agrupava num círculo de
admiradores, embora também lá as edificações ainda não tivessem
alcançado uma beleza satisfatória. Mas não era sem razão que na pátria de
Jose gostavam de dizer, quando se referiam à cidade de Amun, que
“inumeráveis núbios e egípcios eram a sua força e gente de Punt e líbios
eram seus auxiliares”. Já ao atravessar pela primeira vez a cidade em
companhia dos ismaelitas, desde o cais até a estalagem, sita na parte mais
densa da população urbana, José recebeu centenas de impressões que
confirmavam a lenda. Ninguém se dignava lançar um olhar sobre ele ou
sobre seus companheiros porque o elemento alienígena era aí coisa de todos
os dias e suas feições não eram tão extravagantes que despertassem a
atenção. Por isso com bem maior tranquilidade podia ele ir observando e o
muito que talvez sucedesse era ter de refrear com recato os olhos, evitando
que o ímpeto de um mundo tão grande e tão numeroso viesse confundir seu
orgulho espiritual e fazê-lo cair na timidez.
E que não viu ele no trajeto do porto até o albergue! Que tesouros de
mercadorias abarrotavam os bazares! Como formigavam as ruas e ferviam
de toda casta e raça dos filhos de Adão! A população de Vese parecia estar
toda em movimento, como que impelida de um a outro extremo da cidade e
vice-versa, sendo que com a população indígena se misturavam os tipos e
trajos dos quatro continentes. Logo no ponto de desembarque notava-se um
grande ajuntamento provocado por um grupo de mouros, negros como
ébano, de beiços incrivelmente vultosos e com penas de avestruz espetadas
na cabeça: homens e mulheres de olhos animalescos, com peitos parecendo
odres e cômicos bebês dentro de cestos às costas. Amarradas a correntes,
conduziam panteras que miavam de modo horrendo e babuínos que
caminhavam sobre as quatro patas; entre esses bichos destacava-se uma
girafa, na frente da altura de uma árvore e atrás do tamanho de um cavalo
comum. Havia também lebréus. Os mouros carregavam fardos cobertos de
bordados de ouro, que sem dúvida deviam conter objetos de valor
correspondente ao valioso do envoltório. Seriam provavelmente objetos de
ouro e marfim. Como José veio a saber, aquela era uma das deputações que
traziam tributos da terra de Kuch, sita ao sul de Vese, rio acima. Trata-se de
um tributo insignificante, não compulsório e irregular, enviado pelo
governador das terras meridionais, vice-rei e príncipe de Kuch, como uma
surpresa para Faraó e para alegrar-lhe o coração, a fim de que ele se
mostrasse favorável em relação ao príncipe e não se lembrasse de chamá-lo
e substituí-lo por um dos gentis-homens da câmara régia que em cada
audiência matinal andavam sussurrando aos ouvidos de Sua Majestade que
o detentor do invejável cargo era inteiramente indigno de ocupá-lo. O
curioso era que a população do porto, que de boca aberta olhava a
delegação, os garotos que riam do pescoço da girafa, comprido como uma
palmeira, conheciam muito bem os fins recônditos do espetáculo, a
preocupação do vice-rei, as maledicências de alcova, e na presença de José
e dos ismaelitas comentavam alto e criticavam tudo aquilo. Pior para eles
— pensou José — se este frio conhecimento do aspecto íntimo do assunto
lhes tira a alegria que o espetáculo lhes proporciona, diminuindo sua
frescura e ingenuidade. Mas quem sabe se tal conhecimento não era até um
condimento a aumentar aquele sabor? Por seu lado, o mancebo escutava
com prazer tudo quanto diziam, porque reputava coisa útil iniciar-se por
baixo de mão nos íntimos mistérios e confidências deste mundo, saber que
o príncipe de Kuch receava perder o seu cargo, que os cortesãos teciam
intrigas contra ele e que Faraó gostava de receber surpresas. E que tudo isto
lhe reforçava o amor-próprio e o armava contra a timidez.
Conduzidos e vigiados por funcionários egípcios, os negros foram
transportados para outra banda do rio, para comparecerem perante Faraó.
Tudo isto pôde ver José e, pelo caminho, viu ainda outras pessoas da cor
daqueles. Aliás viu gente de todos os tons, da cor negra da obsidiana,
passando por muitos graus de pardo e amarelo, até o branco cor de queijo.
Viu mesmo cabelos amarelos e olhos azuis, caras e trajes de todo talho; viu
a humanidade. Isto provinha do fato de que os navios dos estrangeiros com
os quais Faraó comerciava as mais das vezes não faziam escala nos portos
do território do delta, mas preferiam ir subindo o rio até ah, para
desembarcar as suas cargas, os seus tributos e as mercadorias de alborque
no próprio lugar para onde tudo convergia, isto é, na casa dos tesouros de
Faraó. E desse modo Faraó enriquecia Amun e os seus amigos, podendo
então Amun aumentar as suas exigências em matéria de edificações e
superar tudo quanto já existia, e, quanto aos amigos, ficavam em condições
de requintar até o último extremo a sua vida, chegando a tal ponto esse
refinamento que mais parecia uma loucura.
Estas coisas ia o velho explicando a José. E foi assim que o rapaz viu,
entre a gente de Vese, mouros de Kuch; beduínos da terra de Deus sobre o
mar Vermelho; líbios de semblante claro vindos dos oásis do deserto
oriental, com coloridos casacos de malha e tranças de cabelos eretas sobre a
cabeça; gente de Amu e asiáticos semelhantes a ele, embrulhados em lã de
cores, com as barbas e os narizes de sua terra; hatitas vindos do outro lado
das montanhas de Amanus, com os cabelos recolhidos em bolsas e com
camisas apertadas; mercadores mitanitas com as vestes de Babel, adornadas
de franjas e de nobres folhos; comerciantes e marinheiros das ilhas e de
Micenas com trajes de lã branca cujas pregas caíam graciosamente, com
argolas de ferro no braço que não conservavam oculto no mato. Tudo isto
viu José, conquanto, por modéstia, o velho conduzisse o seu pequeno
séquito tanto quanto possível pelas ruas mais pobres e populares, evitando
as mas mais nobres, para não ofender-lhes a beleza. Completamente
intactas, entretanto, não lhe foi possível deixá-las. Tiveram de passar, por
exemplo, pela bela rua de Cons. Esta corria paralela à via triunfal do deus e
chamavam-lhe a “rua do Filho”, porque Cons, o aliado da lua, era filho de
Amun e de Mut, a sua Baalat; para Tebas ele era o que para Mênfis era
Nefertém, o lótus azul, e, com seus grandes pais, formava a tríade de Vese.
A rua de Cons era, pois, uma das principais artérias, uma verdadeira
avenida Abrek, onde era sempre recomendável munir-se de coragem. Os
ismaelitas tiveram de percorrê-la num bom trecho, com evidente risco de
serem expulsos daquele reino da beleza. Depois José viu palácios, como o
da administração das casas dos tesouros e dos celeiros e o palácio dos
príncipes estrangeiros, no qual iam sendo criados os filhos de príncipes das
cidades siríacas, prédios amplos e maravilhosos de tijolos e madeiras
preciosas, de cores resplandecentes. Viu passar à desfilada carruagens
inteiramente cobertas de ouro batido, nas quais iam os grandes, fustigando
com chicotes o lombo dos corcéis. Estes, em desabalada carreira e
revirando os olhos, bufavam árdegos, a espuma franjava-lhes a boca, suas
pernas eram como as dos corços e suas cabeças, que um pescoço curto
repuxava para o peito, eram coroadas de penas de avestruz. Viu passar
cadeirinhas conduzidas sobre os ombros, numa velocidade cautelosamente
elástica, por mocetões altos de saiotes de ouro. Eram entalhadas, douradas e
traziam colgaduras. Dentro delas iam homens sentados, escondendo as
mãos, de cabelos envernizados com laca, penteados da testa para a nuca, e
no queixo uma barbicha. Sua grandeza os condenava à imobilidade; traziam
cerradas as pálpebras, e, às suas costas, tinham um grande para-vento de
caniço e de pano pintado. Quem era aquele que um dia iria sentado do
mesmo jeito, carregando diante da sua casa que Faraó enriquecera? Tudo
isto pertence ao futuro. Ainda não é chegada a hora solene de narrá-lo,
embora exista virtualmente e seja conhecida de todos. Por enquanto José
via apenas o que ele haveria de ser um dia, olhava tudo aquilo com os olhos
arregalados e estranhos, como aqueles olhos que no futuro se deteriam
sobre ele ou se esconderiam diante dele, o forasteiro, o grande. Por ora ele
era o jovem escravo Osarsif, o filho do poço, raptado e vendido cá embaixo,
com uma pobre camisa com capuz, de pés imundos, empurrado para o muro
quando, inopinadamente, no meio do clangor das cometas, irromperam pela
“ma do Filho” soldados armados de lanças pontiagudas, em filas regulares,
com escudos, arcos e maças. Acreditou que aqueles homens, rigidamente
uniformes, fossem armígeros de Faraó. O velho, porém, pelos estandartes e
pelas marcas nos escudos reconheceu serem tropas do deus, soldados do
templo, força armada de Amun. Como, pensava José, então Amun tinha
coortes e legiões como Faraó? Nada disso lhe agradava, e não era só porque
aquela : mesnada o encostara ao muro. Tomou as dores por Faraó e a si
mesmo perguntou quem era ah o chefe supremo. Já a vizinhança da soberba
e da glória de Amun o oprimia, ao passo que a existência de um outro chefe
supremo, isto é, Faraó, lhe parecia um benéfico contrapeso. Mas isso de o
ídolo arremedar a Faraó no seu próprio campo e ter uma milícia sua o
exasperava; julgou até adivinhar que a coisa irritaria o mesmo Faraó e
tomou o partido deste último contra o arrogante.
Não tardaram em deixar a “rua do Filho” para não deslustrá-la mais e
por vielas estreitas chegaram à estalagem, chamada “estalagem de Sippar”,
porque o seu proprietário e hospedeiro era um caldeu de Sippar sobre o
Eufrates, tendo como fregueses, na maioria, caldeus, embora a frequentasse
toda espécie de pessoas. Na realidade não era quase outra coisa senão um
pátio com o poço, cheio de imundície, de cheiros e barulho, de balidos de
animais, de altercações de homens e falario de charlatães, como o albergue
dos forasteiros em Mênfis. Naquela mesma tarde o velho abriu um pequeno
comércio de escambo, bem ativo e concorrido. Depois deitaram-se a dormir
debaixo dos seus mantos, devendo cada um por seu turno, à exceção do
velho a quem era permitido dormir toda a noite, ficar de olhos abertos e
montar guarda para não serem roubados nas mercadorias e tesouros por
aquela gente de tão diferentes procedências. No dia seguinte de manhã,
depois de esperarem muito tempo junto ao poço para poder lavar-se,
tomaram também a refeição matinal dos caldeus, servida naquele albergue,
consistente numa comida condimentada com gergelim e chamada
“pappasu”. Por fim disse o velho, sem olhar para José:
— Eia pois, amigos meus, tu, Mibsam, meu genro, Efer, meu neto, e
vós, Kedar e Kedma, meus filhos! Queremos pôr-nos em movimento com
as nossas mercadorias e as nossas ofertas em direção ao oriente e ao
deserto, onde fica a parte aristocrática da cidade. Lá conheço fregueses e
compradores que têm grandes faltas e que espero estejam dispostos a
adquirir isto e mais aquilo dentre os nossos artigos para as suas despesas, e
dispostos também a pagar de tal modo que não somente cubramos as nossas
despesas, mas possamos ainda embolsar um justo lucro e enriquecer-nos,
obedecendo à nossa função de mercadores sobre a terra. Carregai, portanto,
os animais com as mercadorias e selai o meu dromedário para que eu vos
guie.
Assim fizeram, e da estalagem de Sippar encaminharam-se para o
oriente, para os jardins dos ricos. José, na frente de todos, levava pelas
rédeas o dromedário do velho.
JOSÉ CHEGA DIANTE DA CASA DE PETEPRÉ

Encaminharam-se para o deserto, para as ardentes colinas do deserto,


onde de manhã despontava Rá, e, portanto, se entrava no país de Deus,
defronte do mar da Terra Vermelha. Andavam por uma estrada plana,
exatamente como quando entraram no vale de Dotan, com a diferença que
agora o dromedário do velho não era conduzido pelo rapaz de beiço túrgido,
de nome Jupa, mas por José. Chegaram diante de um recinto cujos muros
rodeavam vasto espaço; por cima do cercado pompeavam belas árvores,
sicômoros, acácias espinhosas, tamareiras, figueiras e romãzeiras. Percebia-
se a parte superior das construções de uma brancura luminosa ou pintalgada
de cores vivas. José olhou para aquilo e depois para o amo a fim de
verificar pela mudança dos seus traços se era aquela a casa do flabelífero,
porquanto era evidente que se tratava de uma casa de bênção. Mas o velho,
com a cabeça pendente de um lado, tinha os olhos fitos à sua frente,
enquanto caminhavam junto a esses muros, e não dava a perceber nada, até
o lugar em que a muralha subia para formar um pilone com um pórtico.
Aqui o velho estacou.
A sombra do portal havia um banco de ladrilhos, no qual estava
sentados alguns rapazes, uns quatro ou cinco, e com os dedos faziam uma
brincadeira qualquer.
Do alto do seu dromedário o velho olhou um pouco para aqueles
rapazes, até que eles começaram a ocupar-se com o recém-chegado,
abaixaram as mãos, emudeceram, e todos, erguendo as sobrancelhas, o
observavam com espanto zombeteiro, procurando desconcertá-lo.
— Saúde — disse o velho.
— A alegria seja contigo — responderam, encolhendo os ombros.
— Que brinquedo era aquele que interrompestes em atenção à minha
chegada?
Eles se entreolharam e riram cada qual por sua vez.
— Em atenção à tua chegada? — retrucou um deles. — Nós o
interrompemos de indignação, porque tu ficaste aí com a boca aberta,
senhor vendedor de patranhas.
—Velha lebre do deserto — gritou um outro —, tens de vir exatamente
aqui e a nenhum outro lugar para aperfeiçoar os teus conhecimentos,
interrogando-nos a respeito do nosso brinquedo?
— Vender, eu vendo, e muita coisa — replicou o velho —, mas por
melhor providas que estejam as minhas arcas, patranhas eu não vendo, pois
não conheço semelhante mercadoria; contudo, da vossa indignação concluo
que a tendes em abundância. Entrementes, procurais um passatempo, se não
erro, no alegre jogo chamado “Quantos dedos?”.
— E daí? — indagaram.
— Eu perguntei só por perguntar, apenas para entabular conversa —
continuou o velho. — Com que então, esta é a casa e o jardim do nobre
Petepré, flabelífero à destra?
— Como sabes disto? — perguntaram.
— Dizem-mo as minhas recordações — respondeu o mercador — e a
vossa pergunta mo confirma. Segundo me parece, puseram-vos aqui de
guarda, à porta do santo homem, para correr a anunciar assim que chega
uma visita amiga, não é verdade?
— Visita amiga? Pois sim! — disse um dos rapazes. — Malandros e
bandoleiros, eis o que sois. Muito obrigado.
— Jovem guarda-portão e mensageiro — retrucou o velho —, estás
enganado. A tua experiência do mundo é imatura como os figos verdes. Nós
não somos nem vagabundos nem salteadores e até odiamos tais indivíduos e
na ordem das coisas somos exatamente o oposto deles. Pertencemos à
classe dos mercadores ambulantes que comerciam aqui e ah entre os ricos e
têm ótimas relações, de maneira que somos bem recebidos, como em toda
parte, também aqui, nesta casa que está com grandes faltas. Apenas estamos
sendo repelidos no momento, por causa da tua rudeza. Aconselho-te,
porém, a não te tornares culpado perante o teu chefe Mont-kav,
superintendente desta casa, e que me chama seu amigo e aprecia os meus
tesouros. Portanto, exerce à risca o oficio que te é confiado e corre a
anunciar ao mordomo que os fiéis viajantes comerciais de Ma’on e de
Mosar, em suma, os negociantes madianitas, estão de novo aqui com boas
coisas para as despensas e os celeiros da casa.
Os porteiros tinham trocado entre si um olhar quando o velho
pronunciou o nome do superintendente. E agora aquele a quem o mercador
se dirigira, um rechonchudinho de olhos apertados, disse:
— Como te poderia anunciar? Reflete melhor, velho, e segue teu
caminho. Porventura posso eu correr até ele e anunciar-lhe”Os madianitas
de Mosar estão aí e por isso te venho incomodar, afastando-me do portão
por onde ao meio-dia deve fazer o seu ingresso o nosso amo”? Vai chamar-
me de filho de um cão e puxar-me as orelhas. Está fazendo as contas com o
padeiro e falando com o escrivão do aparador. Tem mais que fazer do que
estar a mercadejar contigo as tuas bugigangas. Vai-te, pois.
— Pior para ti, jovem guarda — disse o velho —, pior para ti se te
intrometes entre mim e o meu velho amigo Mont-kav, interpondo-te como
um rio cheio de crocodilos e como uma montanha escarpada e inacessível.
Não te chamas Chechi?
— Ah! ah! — gritou o guarda-portão. — O meu nome é Teti.
— E o que eu queria dizer — respondeu o velho. — Se falei de maneira
diferente, é que a minha pronúncia não ajuda por me faltarem os dentes.
Então, Tchetchi (ai! não consigo pronunciá-lo melhor) quem sabe se não
existirá um vau por onde se possa atravessar o rio a pé enxuto, ou uma
vereda em ziguezague em volta do morro a pique? Há pouco tu me
chamaste por equívoco salteador — disse, e introduziu a mão no manto —,
mas está aqui uma coisinha, uma coisinha graciosa que é tua, se quiseres
dar um pulo e avisar a Mont-kav da minha presença e trazê-lo aqui. É
apenas uma amostrinha dos meus tesouros. Ei-la, vem tomá-la da minha
mão. Vê, o cabo é de madeira duríssima, bem envernizada, e tem uma
fenda; desta fazes sair a lamina que corta como diamante, e está aí a faca
armada. Se, porém, comprimires a lâmina da direção do cabo, ela salta para
o seu leito antes mesmo que acabes de apertar e descansa segura na bainha,
e assim podes esconder esta coisinha no saiote. Que tal?
O jovem se aproximou e examinou a faca de mola.
— Não é má — disse. — E para mim? — e meteu-a no bolso. — Do
país de Mosar? — perguntou. — E de Ma’on? Mercadores madianitas?
Esperai um instante.
E atravessando o portão entrou no pátio.
O velho seguiu-o com o olhar, abanando a cabeça, sorridente.
— Conquistamos a fortaleza de Zel — disse — e nos saímos bem com
os guardas de Faraó na fronteira e com os escrivães das tropas. Aqui
também passaremos e chegaremos até o meu amigo Mont-kav.
E deu um estalo com a língua, o que serviu de sinal para o seu
dromedário pôr-se em terra a fim de que ele, ajudado por José, se apeasse.
Seus homens fizeram o mesmo e ficaram à espera.
Pouco depois voltou Teti e disse:
— Podeis entrar no pátio. O superintendente virá.
— Bem — tornou o velho —, se ele tem interesse em ver-nos,
esperaremos, de acordo com o seu desejo, embora ainda tenhamos que
prosseguir a nossa viagem.
E, guiados pelo jovem guarda-portão, atravessaram o arco, que
retumbou com os seus passos, e entraram num pátio coberto de argila
calcada. Viram-se diante das portas abertas do quadrilátero interno dos
muros, construído de tijolos e munido de seteiras. Umbrosas palmeiras
ladeavam os batentes das portas; sobre o quadrilátero se erguia a casa do
senhor, com um portal de colunatas coloridas e artísticas cornijas e no teto
havia respiradouros de forma triangular, abertos para o lado do ocidente.
A casa surgia no centro do terreno e estava ao oeste e ao sul rodeada de
um verde jardim. O pátio era espaçoso e entre os edifícios que, sem muro
circundante, haviam sido construídos na parte setentrional do terreno com a
fachada voltada para o sul havia abundância de espaço livre. O mais
importante deles estendia-se à direita de quem entrava, era comprido, claro
e gracioso, e vigiado por guardas; pelas suas portas entravam e saiam
criadas com tabuleiros de frutas e altos cântaros. Outras mulheres, sentadas
sobre o telhado da casa, fiavam e cantavam. Mais por trás, da banda do
ocidente e na direção do muro setentrional, havia ainda uma casa da qual
saía fumaça e à sua frente se viam pessoas atarefadas na moenda do trigo e
junto às caldeiras para fabricação de cerveja. Mais além, da parte do
ocidente, por trás do pomar, havia mais uma casa diante da qual
trabalhavam operários. E no fundo, no ângulo nordeste do muro circular,
estavam os estábulos e os celeiros com escadas encostadas a eles.
Era, sem nenhuma dúvida, uma herdade bendita. José relanceou os
olhos por tudo aquilo, procurando abarcar tudo com penetração. Mas não
teve tempo de fazer uma ideia exata porque lhe cumpria auxiliar o seu amo
no trabalho iniciado logo depois que haviam entrado: descarregar dos
camelos as mercadorias, armar a tenda no pátio, entre o pórtico e a mansão
senhorial, e aí expor os artigos oferecidos à venda, para que o
administrador, ou quem quer que quisesse comprar, ficasse atraído com o
variado sortimento dos ismaelitas.
OS ANÕES

E, de fato, viram-se logo cercados por uma turba curiosa que vira os
asiáticos entrar, e, conquanto o acontecimento não fosse raro, nele
encontrava uma distração para o seu trabalho ou mesmo para o seu ócio. Do
harém vinham guardas da Núbia e ancilas, cujas formas feminis, segundo o
costume da região, apareciam claras e evidentes através da ralíssima
cambraia que usavam; servos da casa principal, vestidos, de acordo com o
grau que ocupavam na hierarquia do famulato, de um simples saiote curto
ou ainda de um outro mais comprido sobreposto ao primeiro e de uma
túnica de mangas curtas; gente da cozinha trazendo nas mãos alguma ave
depenada pela metade; moços de cavalariça, artífices vindos da casa da
servidão e jardineiros. Todos se aproximavam, espiavam, tagarelavam,
agachavam-se para observar os artigos, tomavam nas mãos esta ou aquela
peça, informavam-se do preço de troca expresso em pesos de prata e de
cobre. Vieram também dois homenzinhos insignificantes, dois anões, que
pertenciam à famulagem do flabelífero. Nenhum dos dois excedia três pés
de altura; mas eram de modos muito diferentes, porque um não passava de
um bufão e o outro tinha um porte distinto. Foi este o primeiro a vir da casa
principal. Sobre umas perninhas que, em comparação com a parte superior
do corpo, pareciam ainda mais tortas, chegou ele, esforçando-se por manter
um andar desenvolto, conservando-se bem empertigado, de peito para a
frente, olhando cautelosamente ao redor, remando em ritmo rápido com os
seus bracinhos curtos, voltada sempre para trás a palma da mão. Usava um
saiote engomado que na frente lhe pendia num triângulo oblíquo. A cabeça
era grande demais em relação ao corpo, coberta de cabelos curtos que lhe
cresciam sobre a testa e as têmporas, o nariz grosso, imperturbável e até
resoluta a expressão do rosto.
— Es o chefe da caravana? — perguntou o homúnculo, adiantando-se
na direção do velho, que se pusera de cócoras junto das suas mercadorias,
posição que evidentemente agradava ao pigmeu, que assim podia falar com
ele como que de homem para homem. Sua voz cavernosa empregava
principalmente o registro grave. O anão espetava o queixo no peito e metia
o beiço inferior por cima dos dentes. — Quem vos deixou entrar? O
porteiro? Com ordem do superintendente? Então está bem. Podeis ficar e
esperá-lo, conquanto não se saiba quando achará ele tempo para atender-
vos. Trazeis objetos úteis, coisas belas? Ou serão antes quinquilharias sem
grande valor? Ou talvez não. Talvez haja, entre as vossas bugigangas, coisas
de valor, sérias, decorosas, sólidas. Vejo bálsamos, vejo bastões. De um
bastão justamente é que eu estaria necessitando, contanto que fosse de
madeira duríssima e perfeito no seu acabamento. Antes de tudo, tendes
adornos pessoais, correntes, colares, anéis? Eu sou o zelador das roupas e
joias do patrão; superintendo o guarda-roupa. Meu nome é Dudu. Quisera
também proporcionar uma alegria a Zeset, minha mulher, oferecendo-lhe
uma joia ou enfeite qualquer em agradecimento à sua maternidade. Estais
bem providos de coisas destas? Vejo vidro em pasta, vejo bufarinhas. O que
mais me interessa é ouro, âmbar, boas pedras, lazulita, cornalina, cristal de
rocha...
Enquanto o homenzinho falava desta forma, o outro anão vinha pulando
do lado do harém, onde provavelmente andara fazendo suas truanices diante
das damas. Ao que parecia, a notícia do grande acontecimento chegara
atrasada aos seus ouvidos, e ele, com pueril solicitude, se dava pressa em
comparecer; andava com quanta velocidade lhe permitiam suas anafadas
perninhas; de vez em quando interrompia a corrida sobre as duas pernas
para saltar somente sobre um pé, e, enquanto isso, com voz sutil e aguda
gritava arfando num como espasmo de júbilo:
— Que há? Que há? Que coisa acontece no mundo? Um ajuntamento,
um grande tumulto? Que há para ver? Que há para admirar no nosso pário?
Mercadores... talvez homens selvagens? Homens da areia? O anão tem
medo, mas está morto de curiosidade, hop, hop, ei-lo que vem correndo...
Com uma das mãos segurava com força sobre o ombro uma mona cor
de ferrugem que, esticando o pescoço, espiava do seu posto, com olhos
arregalados, vigilantes e medrosos. As vestes desse gnomo eram ridículas,
consistindo numa espécie de traje de gala que parecia ser a sua roupa
habitual, motivo pelo qual as finas pregas do seu saiote, que chegava à
panturrilha com os folhos guarnecidos de franjas, como também a
transparente camisolinha com as mangas igualmente pregueadas, estavam
amarrotadas e descoloridas. Nos pulsos diminutos usava argolas de ouro em
espiral, e em volta do pequeno pescoço trazia uma amarfanhada grinalda de
flores com a qual se entrelaçavam outras grinaldas em derredor dos ombros.
Sobre o castanho chinó de lã todo ondulado, que lhe cobria a cabecinha,
havia um cone de unguentos, feito não de uma gordura perfumada qualquer,
mas apenas de um cilindro de feltro impregnado de perfume. A contrastar
com o outro que viera antes, a cara deste anão era ao mesmo tempo
envelhecida e pueril, cheia de ruguinhas, fazendo lembrar uma mandrágora.
Enquanto Dudu,o encarregado do guarda-roupa, fora cumprimentado
respeitosamente pelos presentes, a chegada do seu companheiro de destino
e irmão no tamanho diminuto foi acolhida com hilaridade.
— Vizir,Vizir — gritavam-lhe (devia ser essa a sua alcunha). — Bes-
em-heb!
Esse era o nome de um burlesco deus anão, importado de fora, e sempre
pronunciado junto com a designação “em festa”, com que se queria aludir
ao eterno traje de gala do palhacinho.
— Queres comprar, Bes-em-heb? Olhem como mete a perna debaixo do
braço. Corre, Chepses-Bes (o que significava “magnífico Bes”, “esplêndido
Bes”)! Corre e compra, mas primeiro toma fôlego! Compra uma sandália,
Vizir, e põe debaixo dela essas perninhas de vitelo; assim terás um leito
sobre o qual poderás esticar-te, mas antes hás de pôr um degrauzinho para
poderes subir.
Assim lhe gritavam; e ao chegar, ele respondia, asmático, com a sua voz
de grilo, que parecia vir de longe:
— Aí vindes com as vossas chalaças, homens de pernas compridas! E
achais ter dado no alvo? O Vizir, porém, tem de bocejar escutando-vos —
huh, huh — porque o vosso espírito o enjoa como o enjoa o mundo em que
um deus o pôs e no qual tudo é feito para gigantes, mercadorias, chalaças,
tempo. Se o mundo fosse feito sobre a medida do Vizir, se fosse criado para
ele, seria também divertido e não era preciso a gente bocejar. Então haveria
aninhos rápidos, horinhas duplas e ágeis velas noturnas. Tique-taque, tique-
taque, o coração se apressaria e o tempo passaria num relâmpago, de
maneira que as gerações dos homens se sucederiam rapidamente. Mal teria
tempo um homem de fazer sobre a terra uma boa brincadeira e já estava
tudo terminado para ele e um outro apareceria no horizonte. Esta vidinha
havia de ser alegre. Mas assim o pigmeu é posto na vastidão e tem de
bocejar. Não quero comprar as vossas grosseiras mercadorias e, quanto ao
vosso chiste desenxabido, nem de graça o levo. Desejo apenas ver as
novidades que trazem esses gigantes que aqui estão no nosso pátio:
forasteiros, homens da miséria, homens da areia, nômades selvagens, com
umas roupas que ninguém usa... ui! — exclamou,interrompendo de
improviso o seu piado sinistro, e a sua cara de gnomo se contraiu de raiva.
Reparara em Dudu, seu companheiro de nanismo, que estava diante do
velho sentado e pedia coisas de valor, gesticulando com os seus bracinhos.
— Ui! — exclamou o chamado Vizir. — Lá está sua excelência, o
compadre. Diabo que me venha atrapalhar o caminho justamente esse tipo,
enquanto eu quero matar a sede de novidades. Como é desagradável! Ei-
lo,já lá está, o senhor do guarda-roupa; tomou-me a dianteira e faz discursos
vagos muito de ouvir-se. Bom dia, senhor Dudu! — piou o anãozinho,
pondo-se ao lado do outro. — Uma boa manhã à vossa grandeza e todos os
obséquios à vossa vigorosa pessoa! E permitido pedir informações sobre a
saúde da sra. Zeset, que vos toma nos braços, e dos vossos excelsos
rebentos Esesi e Ebebi, tão engraçadinhos...?
Dudu voltou com sumo desdém a cabeça na direção dele por cima do
ombro, aparentemente sem se dignar olhá-lo, e fez seus olhos vaguearem
num ponto qualquer no chão, diante dos pés do outro.
— Rato! — disse, meneando a cabeça por cima do Vizir e repuxando o
beiço inferior de modo que o superior ficou sobre aquele como um teto. —
Que estás aí a remexer, a assobiar? Para mim tu não passas de um
caranguejo ou de uma noz vazia dentro da qual só há uma pouco de pó. É
nessa conta que eu te tenho. Como podes pedir informações acerca da
minha mulher Zeset, ocultando na tua pergunta um secreto desprezo, e
como queres notícias dos meus filhos Esesi e Ebebi, que já aspiram a ser
alguma coisa? Essa pergunta é imprópria, porque isso não é da tua conta
nem te fica bem fazê-la, palhaço, fragmento de...
— Vejam só! — replicou aquele a quem haviam chamado “Chepses-
Bes, e a sua carinha se encarquilhou ainda mais. —Tu queres elevar-te
sabe-se lá quanto acima de mim, e de tanta empáfia fazes sair a tua voz
como de uma pipa, porquanto tu mesmo não chegas a olhar por cima de um
ninho de toupeira e não estás à altura da tua ninhada e muito menos daquela
que te empolga com os seus braços. Tu não passas de um anão, és da raça
dos anões, por importante que queiras ser e ainda que repilas como
imprópria a minha pergunta cortês sobre a saúde da tua família, com dizer
que tal não me fica bem. Ah! mas a ti fica bem e adapta-se à tua figura
desempenhar o papel de marido e de pai no meio dos grandes, e casas com
uma mulher bem espigada, renegando a espécie pequena...
A gente do pátio ria alto da altercação dos dois homúnculos, cuja
aversão recíproca parecia ser para todos eles uma habitual fonte de alegria.
Açulavam-nos dizendo”Dá-lhe, Vizir!” “Paga-lhe na mesma moeda, Dudu,
mando de Zeset!” Mas aquele a quem haviam chamado “Bes-em-heb”
deixou de altercar, alheando-se repentinamente da contenda. Estava em pé
diante do odiado companheiro e este estava diante do velho sentado. Mas ao
lado deste último se achava José, de modo que “Bes" se via em frente do
filho de Raquel. Mal enxergou este, calou-se e encarou-o, enquanto a sua
velha carinha de duende, em que pouco antes se via o despeito, tornou-se
serena, tomando ele um ar de investigação e esquecendo-se de si mesmo. A
boca ficou aberta e no lugar onde deviam estar as sobrancelhas (mas não
estavam) a pele se erguera para a testa. Desse modo olhou de alto a baixo o
jovem hebreu, no que foi imitado, lá da posição em que estava acorrentada,
pela macaquinha encarapitada sobre seu ombro. Também ela, esticando
para a frente o pescoço, de olhos vivos e arregalados, fitou de alto a baixo a
cara do descendente de Abraão.
José se divertia com este exame. Sorridente, correspondeu ao olhar do
pigmeu, ficando assim os dois algum tempo, enquanto o austero Dudu
continuava com os seus pedidos ao velho. Já agora a atenção das demais
pessoas que se achavam no pátio se dirigira também aos estrangeiros e às
suas mercadorias.
Finalmente o aborto, com a sua estranha vozinha que parecia vir de
longe, apontando para si mesmo com o dedinho virado para o peito, disse:
— Se’ench-Ven-nofre-Neteruhotpe-em-per-Amun.
— Que dizes? — perguntou José.
O anão repetiu aquelas palavras, continuando a apontar para si mesmo
com o dedo espetado no peito. — Nome! — explicou. — O nome do
pequeno. NãoVizir. Chepses-Bes, não. Se’ench-Ven-nofre... — e sussurrou
pela terceira vez aquela frase. O seu nome inteiro era tão comprido e
magnífico quanto era insignificante a sua pessoa. O sentido era: O Ente
benigno (isto é, Osíris) conserve em vida na casa de Amun o predileto dos
deuses (ou o amado de Deus — o “Teófilo”); e José o entendeu.
— Um belo nome! — disse.
— Belo, sim, mas não verdadeiro — sussurrou de longe o pequeno.
— Eu nem aceito nem caro aos deuses, um simples sapo. Tu aceito, tu
Neteruhotpe, isso, sim, é belo e verdadeiro.
— Como o sabes? — perguntou José a sorrir.
— Ver! — respondeu uma voz que parecia vir de dentro da terra. — Ver
claramente! — e levou os dedinhos aos olhos. — Inteligente —
acrescentou. — Pequeno e inteligente. Tu não da raça dos miúdos,mas
ainda assim inteligente. Bom, belo e inteligente. Pertences àquele ali? — E
mostrou o velho, que estava negociando com Dudu.
— A ele pertenço — confirmou José.
— Desde a infância?
— Para ele nasci.
— Então é ele o teu pai?
— Para mim ele é um pai.
— Como te chamas?
José não respondeu logo, mas à resposta fez preceder um sorriso.
— Osarsif— disse.
O anão semicerrou os olhos. Refletia sobre o nome.
— Nasceste entre os juncos? — perguntou. — És um Usir entre os
caniços? Achou-te na umidade a mãe errante?
José se calou. O liliputiano continuou a piscar.
— Aí vem Mont-kav! — disse alguém entre a gente do pátio. E
começaram todos a escamugir-se, para que aquele que administrava a casa
não os encontrasse ali a papar moscas, longe do trabalho. Quem olhava
entre o harém e a casa dos homens, a parte do pátio que se abria diante dos
edifícios situados no ângulo nordeste daquela herdade, podia vê-lo. Ele
andava e parava. Era um homem já maduro, vestido de branco,
acompanhado de alguns servos escrivães, com penas de cana atrás das
orelhas, que se inclinavam para ele e iam escrevendo suas palavras sobre
tabuazinhas.
Ele se aproximou. A gente do pátio já se fora. O velho se erguera.
Entretanto, no meio desses movimentos, José percebeu a vozinha que,
parecendo vir por baixo do solo, cochichava:
— Fica conosco, homem da areia!
MONT-KAV

O superintendente chegara diante da porta aberta no muro ameado da


casa principal. Meio voltado para ela, olhou por cima do ombro o grupo dos
forasteiros e o depósito de mercadorias ah exposto.
— Que é isto? — perguntou com bastante desabrimento. — Quem é
essa gente? .
Ao que parece, já ele havia esquecido, no meio dos seus afazeres, o
aviso que lhe fora trazido, de pouco servindo as mesuras em que o velho se
desfazia. Um dos amanuenses lho recordou, indicando-lhe a tabuazinha
sobre a qual evidentemente já assentara o negócio.
— Ah, sim, os mercadores ambulantes de Ma’on ou de Mosar — disse
o mordomo. — Bem, bem; mas a única coisa que me falta é tempo e disso
não tendes aí para vender. — E dirigiu-se ao ancião que, pressuroso, foi ao
seu encontro. — Então, meu velho, como vais depois de todo esse tempo
que passou? — inquiriu Mont-kav. — Com que então te vemos mais uma
vez diante da casa com as tuas coisas, pronto para embrulhar-nos?
Os dois riram. Ambos tinham na boca somente os dentes caninos
inferiores, que apareciam solitários como pequenas estacas. O mordomo era
um homem robusto, atarracado, de cinquenta anos, com uma cabeça
expressiva e o porte resoluto que convinha à sua posição, conquanto
suavizado pela benevolência. Tinha muito acentuadas as bolsas que lhe
empapuçavam os olhos, tomando-lhes quase imperceptível a abertura que
por cima era sombreada por bastas sobrancelhas ainda completamente
negras. Do nariz bem formado, embora muito grande, desciam sulcos
profundos até a boca, aos lados do lábio superior que era arqueado e
reluzentemente escanhoado como as faces, as quais o faziam fortemente
ressaltar. No queixo havia uma barbinha grisalha. Os cabelos já tinham
recuado muito da fronte para o crânio, mas eram abundantes na parte
posterior, tomando uma forma de leque por trás das orelhas ornadas de
argolas de ouro. Na fisionomia de Mont-kav havia algo do campônio
hereditariamente astuto e também do marujo humorístico, contrastando
acentuadamente a sua tez moreno-avermelhada com a alvura impecável da
sua roupa — o inimitável linho egípcio que tão facilmente se deixava
preguear, como era pregueada a parte dianteira do seu saiote, o qual
começava sob o umbigo e, alargando-se, ia baixando mas sem tocar a
fímbria do saiote propriamente dito. Também as amplas mangas de meio
comprimento do jaleco, que se perdia dentro do saiote, eram pregueadas
transversalmente. Através da cambraia transpareciam as musculosas formas
do seu tórax coberto de pelos.
Ao lado dele e do velho se colocara o anão Dudu; com efeito, os dois
homúnculos haviam tomado a liberdade de ficar. Remando com os cotos,
Dudu se avizinhara, tomando ares de grande importância.
— Receio, superintendente — começou ele, falando, apesar da sua
baixa estatura, como de igual para igual —, que percas o teu tempo com
esta gente. Examinei o que aí está exposto e só vejo badulaques, só vejo
futilidades. O que aqui falta é a mercadoria de alto valor, a mercadoria que
se pode apreciar seriamente, aquela que conviria à corte e à casa do muito
augusto senhor. Certamente ele não te ficará grato se comprares alguma
coisa deste mendigo.
O velho estava aflito. Com a sua mímica fez compreender o seu
desagrado, porque a amistosa e promissora hilaridade que as palavras de
saudação do superintendente tinham despertado em todos era agora
destruída pela severidade de Dudu.
— Mas eu tenho também tesouros de valia! — afirmou ele. — Quando
digo “de valia”, não o digo para vós, altos funcionários, e muito menos para
o senhor. Mas quanta gente de serviço há neste pátio, padeiros, cozinheiros,
jardineiros e aguadeiros, recadistas e guardas! São numerosos como as
areias do mar! E, com serem tantos, nunca são suficientes, nunca são
demais para um grande senhor como Petepré, amigo de Faraó, e não tantos
que não se possa aumentar-lhes o número com um ou outro, de belo aspecto
e hábil, seja ele do país ou estrangeiro, contanto que preste para alguma
coisa. Mas para que estou eu divagando e tagarelando em vez de dizer
simplesmente: a ti toca, ó grande mordomo, olhar por todas estas pessoas e
prover às suas necessidades, e auxiliar-te nisso é tarefa do velho madianita,
do mercador ambulante com os seus procuradíssimos tesouros. Vê estas
bem pintadas lâmpadas de barro de Galaad além do Jordão; elas me custam
pouco e eu iria pedir por elas um elevado preço, ó meu protetor? Fica com
algumas delas de presente, porque, se tenho a tua graça, já sou rico. Vê
também aqueles potinhos com arrebique para os olhos, junto àquelas
pinçazinhas e colheres de chifre de vaca; o seu valor é alto, mas não o seu
preço. Estão aqui algumas enxadas, ferramenta indispensável; dou uma por
dois vasos de mel. De maior valor ainda é o conteúdo deste saquinho, pois
dentro dele temos cebolas de Ascalon, raras e de produção muito difícil, e
que dão a todos os alimentos um agradável sabor acre. Que dizer do vinho
que aqui está nestes odres? E o vinho oito vezes bom de Chazati no país dos
fenícios, como aí está escrito. Como vês, eu vou graduando as minhas
ofertas; parto da mercadoria de menor valor para a mercadoria excelente e
desta passo para a escolhida: é este o meu ponderado costume. Estes
bálsamos,este incenso, a goma de adraganto, o pardacento lábdano são o
orgulho do meu comércio, são as especialidades da minha casa. Nós somos
célebres no mundo, somos afamados entre os rios como mais fortes do que
qualquer outro negociante de artigos desodorantes, seja ele um mercador
nômade ou um homem estabelecido num bazar. “Aqueles são os ismaelitas
de Madian”, dizem de nós, “trazem drogas, bálsamo e mirra de Galaad para
o Egito.” Esta fama corre de boca em boca. Além disso trazemos muitas
outras coisas, conforme calha, viva ou morta, a coisa criada como também a
criatura, de modo que somos os homens que não só podem prover de tudo
uma casa, mas podem ainda aumentar-lhe as pessoas. E aqui me calo.
— Como? Calas-te? — perguntou atônito o administrador. —Estás
doente? Quando calas,não te reconheço;somente te reconheço quando o
discurso te jorra fluente por cima da barbicha... Ainda tenho nos ouvidos
tuas palavras da última vez que aqui estiveste, e por isso te reconheço.
— A palavra não é a honra do homem? — replicou o velho. — Quando
um homem sabe combinar bem suas palavras e tem belas expressões,
aplaudem-no os deuses e os outros homens e ele encontra ouvidos dispostos
a escutá-lo. Mas o teu servo, digo-o desenganadamente, é pouco provido de
belas expressões, não é dono do tesouro linguístico, de sorte que o que lhe
falta em beleza de palavras escolhidas tem de compensá-lo com a
persistência do discurso e com o contínuo caudal das palavras. Com efeito,
o negociante deve ser expedito na palavra, a sua língua deve saber insinuar-
se junto ao freguês, porque senão ele não consegue ganhar a vida e vender
suas sete bugigangas...
— Seis — ouviu-se, como se o som viesse de longe, conquanto
estivesse ali próxima, a vozinha do pequeno Teófilo. — Seis coisas
ofereceste, meu velho: lâmpadas, unguento, enxadas, cebolas, mirra e
vinho. Onde está a sétima?
Com a mão esquerda fez o ismaelita uma concha junto à orelha e levou
a direita acima dos olhos para ver donde vinha a interrupção.
— Que quis dizer — perguntou — este senhorzinho de meia estatura,
em vestimenta de gala?
Um dos seus homens lhe explicou a objeção.
— Ah, ah! — replicou — também a sétima se encontra entre todas estas
coisas que trouxemos para o Egito, além das mirras de que todos falam.
Também para essa quero dar livre curso à minha língua, se não com
palavras bonitas, ao menos com perseverança, para poder colocar a
mercadoria nesta casa e a fim de que os ismaelitas de Madian ganhem nome
por tudo que trazem ao Egito.
— Por favor! — disse aqui o superintendente. — Credes que eu posso
ficar ouvindo o vosso palavrório todos os dias de Rá? Já é quase meio-dia.
Tende piedade! De um momento para outro o senhor pode voltar do
ocidente e achar-se aqui de regresso ao seu palácio. Será possível que eu
tenha de deixar as coisas por conta dos escravos sem cuidar que tudo esteja
em ordem na sala de jantar, os patos assados, os doces, as flores, e que o
meu amo não ache o seu almoço, como costuma achá-lo, ao lado da patroa
e dos augustos pais do andar superior? Aviai-vos ou então ide-vos! Tenho
de entrar em casa. Velho, para falar com franqueza, tenho bem pouca
necessidade, ou melhor, nenhuma necessidade das tuas sete bugigangas...
— Realmente são trastes de mendigo — interrompeu Dudu, o anão
casado.
O administrador lançou um olhar fugaz ao severo homenzinho.
— Mas, ao que me parece — disse ao velho —, estás precisando de
mel. Pois bem: eu te dou alguns vasos do nosso mel por duas das tuas
enxadas, só para não te mortificar a ti nem os teus deuses. Dá-me ainda
cinco sacos daquelas cebolas aromáticas, em nome do Invisível, e cinco
medidas do teu vinho fenício em nome da Mãe e do Filho! Quanto pedes?
Mas não me venhas com histórias, pedindo o triplo e obrigando-nos a ficar
aqui para regatear; pede no máximo o dobro, para que possamos nos
entender rapidamente sobre o preço justo e eu possa entrar em casa. Dou-te
em troca papel de escrever e linho da casa. Se quiseres, podes também
receber cerveja e pão. Mas avia-te, para que eu possa ir-me embora!
— Já estás servido — disse o velho, desprendendo da cintura a balança
portátil. — A um aceno teu, eis-te servido imediatamente, sem mais
delonga, pelo teu servo. Se eu não tivesse de viver, estas coisas já seriam
tuas, sem preço nenhum; mas, à vista das necessidades, faço-te um preço tal
que com ele eu possa viver mal mal, ficando em todo o caso sempre ao teu
serviço, pois isto é o que importa. Olá! — disse a José. — Pega na lista das
mercadorias que organizaste: os objetos em tinta preta, o peso e a
quantidade em tinta vermelha. Pega e lê o peso das cebolas de Ascalon e do
vinho, qual o seu preço, mas calcula-o logo, do pé para a mão,
improvisando, segundo a avaliação do país, em deben e em lot, para que
saibamos quanto aquelas mercadorias valem em libras de cobre e o nobre
intendente nos possa dar linho e papel de escrever da casa pelo equivalente
de cobre. Mas, meu protetor, se o ordenas, pesarei mais uma vez aquelas
mercadorias, para que fiques convencido.
José tinha já pronto o rolo e, segurando-o, andou um pouco para a frente
enquanto o desdobrava. Ao pé dele se postou mestre Bes, que não podia, é
claro, ver o registro, mas, erguendo os olhos, fitou atentamente as mãos que
desdobravam o rolo.
— O meu senhor ordena que o seu servo diga o preço duplo ou o preço
exato? — indagou modestamente José.
— O preço exato, sem dúvida. Que pergunta é essa! — ralhou o velho.
— E que o nobre mordomo — retrucou José com a mais graciosa
seriedade — nos ordenou que disséssemos o dobro. Se eu digo o preço
exato, pode ele pensar que se trata do dobro e oferecer-te apenas a metade.
Como queres viver então? Melhor seria que ele considerasse o dobro como
o exato, e ainda que o abaixasse um pouco, tu não viverias com demasiado
aperto.
— Eh, eh! — fez o velho. — Eh, eh! — repetiu e olhou para o
administrador a fim de ver o que este pensava da observação. Os servos
escrivães, com os juncos atrás da orelha, riam. O gnomo Bes batia com as
mãos sobre uma perna que erguera, enquanto saltava sobre a outra. Sua cara
de mandrágora se encarquilhara em mil rugas com o seu júbilo de pigmeu.
Ao contrário, Dudu, seu irmão em tamanho diminuto, espichou ainda mais
solenemente para diante o beiço e sacudiu a cabeça.
Quanto a Mont-kav, que até então, como é natural, não se dignara dar a
mínima atenção ao arguto jovem portador dos registros, cravou o olhar nele
com uma surpresa que bem depressa se tornou assombro, e já daí a nada
mereceria uma designação pouco diversa da palavra surpresa, mas que
possui um significado muito mais profundo — admiração. E possível
(queremos exprimir apenas uma suposição, e não aventurar uma afirmação),
é possível que, neste momento, do qual dependiam tantas coisas, o Deus
dos seus pais, que arquitetava projetos a respeito de José, tenha feito
alguma coisa mais, tenha feito cair sobre ele um raio de luz, capaz de
despeitar no coração dos presentes o senso da oportunidade. Aquele a quem
aludimos deu-nos com mão liberal, para nosso próprio prazer, a vista, o
ouvido e todos os sentidos, com a reserva, todavia, de servir-se deles
também como meios para fazer-nos penetrar as suas intenções e para
conduzir nossos espíritos pelo caminho dos seus projetos mais ou menos
vastos. Daí veio a nossa suposição que nós, sem embargo, estamos prontos
a retirar se ela parecer um elemento sobrenatural demais para se encaixar
nesta nossa história tão natural.
De fato, quanto mais naturais e práticas forem as nossas interpretações,
melhor, uma vez que o próprio Mont-kav era homem desapaixonado e
natural, pertencendo além disso a um mundo já afastado daquele para o qual
fora sempre algo de comum a ideia de se encontrar inesperadamente, em
pleno dia e, por assim dizer, no caminho, algum deus. Verdade é que o seu
mundo, mais do que o nosso, estava próximo de tais possibilidades e
expectativas, ainda que elas se tenham retirado ao claro-escuro e já não
existissem no sentido unívoco próprio e literal. Aconteceu que ele,
observando o filho de Raquel, viu que era belo. Mas a ideia do belo que se
impôs ao seu olhar e tomou posse de sua consciência para ele se associava
logicamente à ideia da lua, que, por sua vez, era o astro de Djehuti de
Chmunu, a aparição celeste de Thot, o mestre da medida e da ordem, o
sábio, o mago, o escriba. E eis que José se achava diante dele tendo na mão
um rolo escrito e dizia palavras que para um escravo, embora escriba, eram
assaz sutis e inteligentes. Isto penetrou de modo inquietante na sua
associação de ideias. Aquele jovem beduíno e asiático não tinha sobre os
ombros uma cabeça de íbis, sendo pois, é claro, um homem e não um deus,
não Thot de Chmunu. Mas o pensamento estabelecia uma relação entre ele
e o deus. Ele parecia ambíguo, no modo em que uma palavra pode ser
ambígua, por exemplo o adjetivo “divino”. Comparado com o augusto
substantivo de que se deriva, significa, é certo, uma como atenuação da
ideia; não é absoluto, mas somente sugestivo, e assim em parte é irreal e
derivado, mas em parte tem também pretensões ao absoluto, considerando-
se que o vocábulo “divino” é uma descrição dos atributos perceptíveis e da
forma do deus.
Outras ambiguidades do mesmo gênero se manifestaram no mordomo
Mont-kav e lhe exigiram a atenção quando pela primeira vez pousou os
olhos em José. O que então aconteceu não se dava pela primeira vez. Já
noutros indivíduos se havia verificado o mesmo ou coisa parecida e ia
verificar-se noutros ainda. E não é de crer que isto excitasse com veemência
a Mont-kav. O que este sentia não era, em essência, mais do que aquilo que
abrangeríamos com um “diacho!”. Ele, porém, não disse tal. Limitou-se a
perguntar:
— Que é isto?
Disse “isto” por desprezo, por prudência, mas assim facilitou ao velho a
resposta.
— Isto — tornou o velho sorrindo —, isto é a sétima coisa.
— Falar por enigmas — acudiu o egípcio — é um costume bárbaro.
— Ao meu protetor não agradam os enigmas? — indagou o velho.
— Que pena! Eu poderia dizer-lhe tantos! Mas este é muito simples.
Disseram-me que as minhas mercadorias e ofertas eram apenas seis e não
sete, como eu me gabara e é mais bonito. Pois bem. Este exemplar de
escravo que aqui segura os meus registros é a sétima oferta.
E um rapazinho cananeu que trouxe comigo ao Egito juntamente com as
minhas afamadas mirras e que estou disposto a vender. Não que ele me seja
indispensável e não que ele não me preste bons serviços. Sabe fazer bolos,
sabe escrever e tem uma mente límpida. Mas para uma casa ilustre, para
uma casa como a tua, numa palavra, para ti, estou disposto a vendê-lo, se
me quiseres dar uma compensação justa, suficiente apenas para que eu
possa viver. Vendo-to porque desejo assegurar-lhe um bom asilo.
— Estamos com a casa cheia — declarou o mordomo, abanando a
cabeça com alguma pressa. Com efeito, ele não gostava de enigmas, tanto
no sentido comum como num sentido mais elevado, mas falava como
homem prático, disposto a defender a esfera de negócios a ele cometidos
contra a invasão daquilo que é contrário à ordem, daquilo que é elevado,
que é, por assim dizer, “divino”.
— Não há vaga entre nós — disse —, a casa está cheia. Não precisamos
nem de padeiros, nem de escrivães, nem de mentes límpidas, porque a
minha cabeça é bastante fresca para manter em boa ordem a casa. Fica com
a ma sétima mercadoria e vai-te e que ela te possa ser de utilidade!
— Pois que não passa de coisa de mendigo, sendo ele próprio um
mendigo — acrescentou gravemente Dudu, o marido de Zeset. Mas à sua
voz profunda respondeu uma vozinha, a vozinha de grilo de Teófilo, o
truãozinho, que cochichou:
— A sétima mercadoria é a melhor. Compra-a, Mont-kav!
O velho retomou a palavra:
— Quanto mais fresca e clara é a cabeça de uma pessoa, tanto mais lhe
desagrada o embotamento das dos outros, porque ela se toma impaciente.
Uma cabeça fresca superior precisa de cabeças frescas subalternas. Este
servo já eu o havia destinado à tua casa quando entre mim e ti havia ainda
um longo intervalo de espaço e de tempo, tendo-o eu conduzido até tua casa
para dele fazer-te uma oferta de preferência e amizade. Este jovem é claro e
eloquente, sendo um prazer ouvi-lo.
Sabe extrair do vocabulário louçanias tais que te acariciarão o ouvido.
Trezentas e sessenta vezes ao ano te dá boa-noite com expressões sempre
novas, sabendo ainda para os outros cinco dias achar alguma coisa
diferente. Se ele te disser duas vezes a mesma coisa, podes restituir-mo, que
te devolvo o preço da compra.
— Escuta, velho! — volveu o mordomo. — Está tudo bem. Mas já que
falamos de impaciência, advirto-te que está quase a esgotar-se a minha
paciência. Por bondade minha, declarei-me pronto a comprar dentre as tuas
bugiarias algemas miudezas de que não tenho necessidade, unicamente para
não melindrar os teus deuses e poder afinal entrar de novo em casa; e eis
que me queres impingir um escravo que sabe dar as boas-noites! Se a gente
vai ouvir-te, parece que ele estava destinado à casa de Petepré desde a
fundação deste pais.
Neste ponto, Dudu, o encarregado do guarda-roupa, fez ouviria das suas
profundezas uma forte risada escarninha, acompanhada de “oh! oh!”, e o
mordomo lançou-lhe um rápido olhar irritado.
— Onde arranjaste este escravo, este prodígio de eloquência? —
continuou ele. Ao mesmo tempo, sem nem sequer olhar, estendeu a mão
para o rolo escrito que José, adiantando-se cortesmente, lhe entregou. Mont-
kav desdobrou o rolo e tendo já a vista muito cansada, o conservou a
respeitável distância dos olhos.
— E exatamente como disse. Pena é que ao meu protetor não agradem
os enigmas. Em resposta à tua pergunta, eu poderia propor-te um outro para
tomar compreensível como recebi este rapaz.
— Um enigma? — repetiu o mordomo, distraído, porque continuava a
olhar o registro.
— Por favor, adivinha-o! — disse o velho. — Que é isto; uma mãe
estéril gerou-mo. Sabes deslindar este enigma?
— Foi ele que escreveu isto? — perguntou Mont-kav, observando
sempre o rolo. — Eh! Tu aí, afasta-te! E executado com devoção, com
prazer, está disposto com verdadeiro senso de ornamentação; não quero
negá-lo, podia servir de enfeite para a parede e seria possível usá-lo como
uma inscrição. Agora, se está certo, não me é dado sabê-lo, porquanto está
escrito na vossa geringonça. Estéril? — perguntou, pois que entreouvira as
palavras do velho. — Uma mãe estéril? Que me estás dizendo? Uma mulher
ou é estéril ou pare. Como conciliar as duas coisas?
— E uma adivinha, senhor — explicou o velho. — Tornei a liberdade
de envolver a minha resposta no manto de um enigma faceto. Se mo
permites, dou-te a solução. Longe daqui dei com um poço seco de onde
vinham vagidos. Então trouxe à luz este jovem que ficara três dias nesse
ventre e lhe dei leite. De modo que o poço tinha sido mãe e era estéril.
— Bem. O teu quebra-cabeça é sofrível. Não faz rir as pedras, mas
permite que se sorria por delicadeza.
— Talvez — retrucou o velho um pouco sentido — o achasses
engraçado se o tivesses solvido tu mesmo.
— Decifra-me tu — replicou-lhe por sua vez o mordomo — um outro
enigma muito mais difícil. Dize-me por que é que eu continuo aqui a falar
contigo? Decifra-o melhor do que o fizeste com o teu, pois não me consta
que existam monstros que gerem nas entranhas dos poços, de maneira que
estes possam parir. Logo, como foi que chegou o menino ao ventre e o
escravo ao poço?
— Duros senhores dos quais o comprei — respondeu o velho — o
haviam atirado dentro do poço por causa de certas faltas relativamente
insignificantes, que não diminuem o seu valor substancial, porquanto se
referiam apenas a questões de sabedoria e a distinções sutis, como a
diferença entre “para que” e “de modo que”... coisas das quais não interessa
falar. Eu, porém, o adquiri porque, com o meu fino olfato, farejei logo que,
sem levar em conta a obscuridade da sua origem, este rapaz devia ser
alguma coisa de sumamente valioso. De resto, ele expiou no poço os seus
erros, e o castigo o purificou de tal forma que para mim ele é um servo de
grande valor, que não só sabe discorrer e escrever, mas também cozinhar
sobre a pedra certos bolos de um sabor especial. Não se há de gabar demais
a própria mercadoria; deve-se deixar que outrem lhe chame extraordinária.
Mas para a inteligência e a habilidade deste jovem, purificado pelo duro
castigo, não existe senão esta palavra no dicionário: são extraordinárias. E
uma vez que já agora o teu olhar caiu sobre ele e eu te sou devedor de uma
expiação pela minha estultícia de te ter atormentado com adivinhações,
aceita-o de presente que faço a Petepré e à sua casa a cuja testa estás! Bem
sei que, em troca, tu tratarás de achar para mim uma dádiva entre as
riquezas de Petepré, para que e de modo que eu viva e também no porvir
possa prover à tua casa e mesmo acrescer-lhe o pessoal. O mordomo olhou
para José.
— E verdade — perguntou com apropriada rudeza — que és eloquente
e sabes dizer coisas agradáveis ao ouvido?
O filho de Jacó rememorou todos os seus conhecimentos egípcios.
— A palavra de um servo não é palavra — respondeu, usando uma frase
popular. — Que o pequeno guarde silêncio quando filam os grandes é o
começo de todos os papiros. Até o meu nome, o nome que eu dou a mim
mesmo, é um nome do silêncio.
— Como assim? Então como te chamas?
José hesitou. Depois ergueu os olhos.
— Osarsif— disse.
— Osarsif? — repetiu Mont-kav. — Este nome eu não o conheço. A
falar verdade, não é um nome estrangeiro e pode-se compreendê-lo, pois
que nele se contém o nome de Abodu, o senhor do perpétuo silêncio. Mas
não é usado neste país, no Egito ninguém se chama assim atualmente, nem
ninguém assim se chamou no tempo dos reis precedentes. Mas ainda tendo
um nome de silêncio, Osarsif, o teu amo disse que sabes exprimir desejos
agradáveis e que, no fim do dia, sabes dar boa-noite de maneiras muito
diferentes. Pois bem: também eu esta noite vou deitar-me e me encolho no
meu leito, na minha alcova particular da confiança. Que me dizes a mim?
— Descansa docemente — modulou José com penetrante acento —
após a canseira do dia! Possam as plantas dos teus pés, pungidas pelo ardor
dos caminhos, passar felizes sobre os musgos da paz, e possa a tua língua
fatigada receber as brandas gotas que destilam as murmuras fontes da noite!
— Sim, é comovente — disse o mordomo, enquanto as lágrimas lhe
vinham aos olhos. Fez ao velho um aceno com a cabeça; este retribuiu-lhe o
mesmo gesto e esfregou as mãos, sorrindo satisfeito.
— Quando a gente tem no mundo tantos aborrecimentos como os que
eu tenho e quando, por causa do excessivo cansaço, não se sente muito
bem, palavras assim comovem. Teremos necessidade — disse depois,
virando-se para os seus escrivães —, em nome de Set, teremos necessidade
de um jovem escravo, por exemplo, de um acendedor de lampiões ou de um
que regue o terreno? Que pensas disto, Cha’ma’t? — disse a um muito
comprido, de ombros recurvados para a frente e com várias penas de junco
atrás de cada orelha. — Precisamos de algum?
Os escrivães gesticulavam indecisos, pondo em dúvida o sim e o não,
esticando os beiços, enterrando a cabeça entre os ombros, agitando as mãos
no ar.
— Que quer dizer “ter necessidade”? — perguntou aquele que acudira
ao nome de Cha’ma’t. — Se “ter necessidade” significa “ter falta de alguma
coisa e não poder passar sem ela”, então não. Mas mesmo o supérfluo pode
tomar-se útil. Depende do custo. Se este selvagem quer vender um servo
escrivão, manda-o embora, porquanto nós amanuenses já somos em número
suficiente e não temos necessidade de mais um, nem saberíamos o que fazer
com ele. Se, porém, te oferece um escravo mais baixo, para os cães ou para
o quarto de banho, dize-lhe que te faça o preço.
— Então, velho — disse o superintendente —, vamos com isso! Quanto
queres pelo teu filho do poço?
— É teu — tornou o ismaelita. — Uma vez que viemos a falar nele e tu
me indagas a seu respeito, ele já é teu. Na verdade não fica bem que eu fixe
o valor da dádiva que tu, segundo parece, tens intenção de me dar em troca.
Mas uma vez que ordenas... o babuíno está sentado perto da balança. Quem
engana na medida e no peso é castigado pelo poder da lua. Duzentos deben
de cobre — portanto se deve calcular o valor do servo, de acordo com os
seus dotes extraordinários. Dou-te as cebolinhas e o vinho de Chazati de
quebra juntamente com o servo, numa prova de amizade.
O preço era salgado, e bem fizera o velho em dar o caráter de acréscimo
às cebolinhas selvagens e ao popular vinho fenício, de sorte que o preço
todo se referia ao jovem escravo Osarsif. Era realmente uma avaliação
atrevida, embora admitindo que, dos sete artigos dos mercadores
ambulantes, sem excetuar as afamadas mirras, somente este valesse a pena
transportar ao Egito. Era um preço exorbitante, ainda que se considerem as
coisas do ponto de vista de que todo o comércio dos ismaelitas não era mais
do que um acréscimo e que o único intuito da sua vida era conduzir ao
Egito o jovem José, para que os projetos pudessem ser levados a efeito. Não
ousamos supor que o mínimo pressentimento deste estado de coisas
houvesse tocado a alma do velho madianita; mas é certo que o
superintendente Mont-kav estava bem distante de uma tal concepção e
pode-se admitir que ele próprio teria protestado contra a excessiva
exigência do velho, se não se tivesse metido no assunto e não se lhe tivesse
antecipado o anão Dudu. O protesto saiu pleno e inteiro de sob a saliência
do lábio superior, enquanto as mãozinhas do pigmeu, na extremidade do
coto do braço, gesticulavam diante do seu peito.
— E ridículo! — disse. — E insuportavelmente ridículo,
superintendente; volta-lhe as costas com indignação. É uma desfaçatez da
parte deste vagabundo falar-te de amizade, como se fosse possível haver
amizade entre ti e ele, entre um egípcio que está à testa dos bens de um
grande e ele, o selvagem da areia. Seu comércio não é mais que uma
armadilha, uma trapaça, pois que ele pretende extorquir de ti nada menos de
duzentos deben de cobre por este lorpazinho — e, ao dizer isto, levantou a
mãozinha chata na direção de José, a cujo lado se postara; — duzentos
deben por este moncoso do deserto e por esta suspeita mercadoria de
mendigo. Para mim este escravo é extremamente suspeito e, embora saiba
cacarejar sobre musgos e murmuras fontes, sabe-se lá por que inextirpáveis
vícios foi tomar conhecimento com o poço do qual o velho tratante diz tê-lo
tirado? Minha palavra é que não deves comprar esse pascácio, meu
conselho é que não o compres para Petepré, porquanto este não to
agradecerá.
Assim falou Dudu, o encarregado do guarda-roupa. Mas, depois que sua
voz cessou, ouviu-se uma vozinha como a de um grilo escondido debaixo
da erva. Era a voz do minúsculo Teófilo em traje de gala, do “Vizir”, que se
colocara do outro lado de José, pois que ambos se tinham posto a cada lado
do mancebo.
— Compra, Mont-kav! — piou ele, erguendo-se sobre os dedos dos pés.
— Compra o jovem da areia! Das sete mercadorias, compra-o a ele só,
porque é a melhor! Fia-te no pequeno que enxerga bem! Osarsif é bom, belo
e inteligente. Ele é bendito e será uma bênção para a casa. Segue o meu
bom conselho!
— Não aceites um conselho sem valor, mas sim um conselho sólido! —
gritou o outro anão. — Como pode dar-te um conselho sólido este
anãozinho apergaminhado, se ele mesmo não tem nenhuma solidez, não
pode ser levado a sério e é uma noz cheia de vento? Ele não tem nenhuma
importância no mundo, nenhuma cidadania, mas boia à superfície como um
pedaço de cortiça, esse salta-pocinhas, esse palhacinho; como quer ele dar
bons conselhos e julgar das coisas deste mundo a respeito de mercadorias e
de homens que são mercadorias?
— Ah! escutai o bolônio tão cheio de si, escutai o tolinho! — gritava
Bes-em-heb, enquanto, com a raiva, a sua cara nanica se encrespava em mil
rugas. — Como queres tu julgar, como queres dar um bom conselho,
anãozinho, apóstata? Tu deitaste a perder a sabedoria dos pequenos,
renegando o teu tamanhozinho, desposando uma mulher alta e pondo no
mundo uns filhos que parecem uns varapaus, chamados Esesi e Ebebi, e
estás aí com toda essa importância. Quanto à estatura, continuas sendo o
que eras — um pitorra que não enxerga para lá da pedra terminal do campo;
a tua estupidez, porém, é enorme e completamente desorientado o teu
critério acerca de mercadorias de homens e de mercadorias humanas.
Não é fácil imaginar como exasperaram a Dudu estas censuras, como o
enfureceu esta definição do seu estado mental. Empalideceu, a saliência do
seu lábio superior tremia e ele explodiu em peçonhentas invectivas que
Teófilo não perdeu tempo em pagar com alusões ainda mais malignas à
perda da atilada inteligência de Dudu, à sua apostasia, às suas pretensões
ridículas. Os dois tomilhos, de mãos sobre os joelhos, estavam um de cada
lado de José, como se este fosse uma árvore a protegê-los, a separá-los, e
litigavam e deblateravam. Enquanto isso, os presentes, egípcios e
ismaelitas, inclusive o mordomo, riam gostosamente das escaramuças lá de
baixo. Mas, de repente, tudo emudeceu.
PUTIFAR

Ouviu-se ao longe na estrada um fragor que recrudescia cada vez mais:


galopes de cavalos, ranger de rodas, bulha de pés humanos correndo e
muitas vozes que bradavam um aviso. Tudo isto se aproximava com grande
rapidez e já estava em frente à porta.
— E agora? — perguntou Mont-kav. — Está ai o senhor. E o arranjo da
sala de jantar? Grande trindade de Tebas, e eu que perdi o meu tempo com
todas essas frioleiras! Fazei silêncio, vós, plebeus, senão, teremos pauladas!
Cha’ma’t, conclui o negócio, que eu devo entrar na casa com o senhor. Fica
com as mercadorias por um preço razoável. Goza saúde, velho! E aparece
diante desta casa daqui a cinco ou sete anos!
E voltou-se a toda pressa. Lá dos seus bancos, os porteiros gritavam
para os do pátio, e de todos os lados surgiam servos a correr, pondo-se em
fila diante do senhor, tocando o chão com as frontes.
E já o coche se aproximava ruidosamente, já o passo bulhento dos
batedores ecoava sob a arcada de pedra. Petepré dava entrada em seu coche.
Precediam-no arautos ofegantes, ladeavam-no e seguiam-no flabelíferos
arquejantes. Dois luzidios cavalos baios, ricamente ajaezados, enfeitados
com penas de avestruz, puxavam o cochezinho de duas rodas, uma espécie
de carro de fantasia, no qual só havia lugar para duas pessoas, ele e o
cocheiro. Este, porém, conservava-se inativo, parecendo achar-se ali
somente para honra da casa, uma vez que o amigo de Faraó guiava sozinho
a carruagem. Pelo rosto e pelos ornamentos, via-se que aquele que segurava
as rédeas e o chicote era o senhor. Era um homem muito alto e bastante
gordo, de boca breve, conforme José pôde vagamente notar; mas a atenção
deste foi atraída principalmente por uma espécie de fogo de artifício
produzido pelas pedras de múltiplas cores, embutidas entre os raios das
rodas e que, ao girar, cintilavam ao sol. José desejava que o pequeno
Benjamim estivesse ali para apreciar a bela girândola colorida. O mesmo
esplendor, embora sem girar daquele modo, repetia-se na pessoa de Petepré.
Usava ele um rico colar, estupendo produto de joalheria, consistente em
inúmeras plaquinhas de esmalte e pedras preciosas multicores, oblongas,
engastadas com perfeito arranjo, as quais, à forte luz branca que o deus no
seu zênite fazia jorrar sobre Vese e sobre aquele lugar, produziam uma
deslumbrante fulguração polícroma.
As costas dos batedores arfavam. A ataviada parelha havia estacado e
agora pateava e bufava, revirando os olhos; um servo que segurava as
rédeas alisava-lhes as úmidas crinas e dizia-lhes palavras bondosas. O
coche estacara justamente entre o grupo dos mercadores e a porta do muro
circular do edifício principal, ao pé das palmeiras. Mont-kav viera colocar-
se em frente à porta para apresentar a sua saudação e agora se adiantava
todo sorridente, de cabeça baixa, com gestos de que irradiava felicidade,
chegando até a abanar a cabeça de maravilhado que estava, para estender a
mão ao amo e ajudá-lo a descer. Petepré entregou as rédeas e o pingalim ao
cocheiro, conservando na mão pequena apenas um bastão curto de junco,
revestido de couro dourado, grosso numa das pontas e parecendo uma clava
de tamanho reduzido. — Lavá-los com vinho, cobri-los bem e dar com eles
um giro! — disse com sua voz fina, erguendo na direção dos cavalos aquele
elegante resíduo de arma selvagem, que se tomara uma espécie de símbolo
do seu comando. Com um gesto afastou a mão que se lhe oferecia e pulou
sozinho da boleia, num movimento ágil para uma pessoa do seu peso,
podendo, aliás, se o quisesse, descer com todo o vagar.
José viu e ouviu com clareza, sobretudo depois que o carro se afastou
lentamente rumo às cavalariças, deixando livre aos ismaelitas a vista do
senhor e do seu mordomo, que com o olhar acompanhavam a parelha. O
dignitário teria uns trinta e cinco ou quarenta anos e era alto como uma
torre, o que fez José pensar em Rubem, diante daquelas pernas que
pareciam colunas e que se desenhavam sob o linho do manto que não lhe
chegava sequer ao tornozelo, deixando entrever também as dobras e os
pendentes laços do saiote. Esse corpo enorme, porém, era de uma espécie
bem diferente da do heroico irmão: muito gordo nas diversas partes,
principalmente na região torácica, que destacava com duplo refego sob a
fina cambraia da roupa de cima e se sacudira não pouco quando, sem
necessidade, o homem pulara do carro. Em proporção com tal altura e
gordura a cabeça era pequena, de forma nobre; os cabelos curtos, o nariz
breve, ligeiramente arqueado, a boca delicada, o queixo com uma saliência
que não ficava mal, e os olhos de longas pestanas tinham uma expressão
veladamente arrogante.
Parado com o administrador à sombra das palmeiras, com visível
satisfação ia seguindo com os olhos os seus corcéis que se afastavam a
passo.
— São extremamente fogosos — ouviram-no dizer. — Vesermin ainda
mais que Vepvavet. Malcriados, queriam tomar o freio nos dentes, mas
subjuguei-os.
— Só tu o consegues — respondeu Mont-kav. — E maravilhoso. O teu
cocheiro Neternacht não se atreveria a medir-se com eles.
Ninguém se atreveria, ninguém da casa, tão indômitos são os sírios.
Corre-lhes nas veias fogo em vez de sangue. Não são cavalos, são
demônios. No entanto, tu os amansas. Eles sentem a mão do dono; então a
sua petulância se quebranta e domados suportam para ti os seus arreios. E
tu, após a vitoriosa luta com a sua braveza, não te mostras cansado, mas
saltas, meu senhor, do teu coche, lampeiro como um rapaz.
Petepré sorriu ligeiramente com os cantos profundos da sua pequena
boca.
— Tenho intenção — disse — de prestar homenagem a Sebek hoje
depois do meio-dia e de ir à caça na água. Dá as ordens necessárias e
acorda-me a tempo se eu estiver dormindo. Coloca na barca zagunchos e
também arpões, porque estou informado de que um hipopótamo de grandes
dimensões se perdeu no braço morto onde vou caçar, e a essa presa dou
especial importância; quero abatê-la.
— A senhora — observou o superintendente, baixando os olhos —
Mut-em-enet tremerá ao ouvir isto. Não leves a mal que eu te peça que ao
menos não ataques sozinho o animal, mas deixes aos servos esse perigo e
canseira. A senhora...
— Tal modo de caçar não me dá prazer — atalhou Petepré. — Eu
mesmo arremessarei o venábulo.
— Mas a senhora vai tremer.
— Que trema! Está tudo em ordem na casa? — perguntou, voltando-se
de repente para o administrador. — Nenhuma desgraça, nenhum incidente?
Nada? Quem é aquela gente? Ah! mercadores ambulantes. A senhora está
de bom humor? Passam bem os meus nobres pais do andar superior?
— A ordem e a saúde estão perfeitas — respondeu Mont-kav. — Já bem
alta a manhã, a graciosa senhora se fez transportar em visita a Renenutet,
mulher do primeiro superintendente dos bois de Aniun, para com ela
exercitar-se no canto dos hinos. Ao voltar, deu ordem a Tepernanch, o
escrivão da casa das reclusas, para ler-lhe fábulas, e entrementes tinha a
bondade de ir beijando os doces que o teu servo lhe mandou levar. Quanto
aos mui venerandos pais do andar superior, dignaram-se fazer-se transportar
para o outro lado do rio a fim de oferecerem sacrifícios no templo dos
mortos de Tutmés, o pai do deus reunido ao Sol. Voltando do ocidente, os
augustos irmãos Huie Tui passaram o tempo sentados pacífica e
santamente, de mãos dadas, no palacete sobre o lago do teu jardim,
esperando a hora da tua volta e do almoço.
— Podes avisá-los — disse o dono da casa — e sussurrar-lhes bem
baixinho que hoje mesmo quero caçar o hipopótamo. Eles podem saber
disso.
— Naturalmente — replicou o administrador — também eles vão ficar
muitíssimo aflitos.
— Pouco importa — tornou Petepré. — Pelo que vejo — acrescentou
— por aqui a vida correu alegre hoje de manhã, enquanto eu na corte me
exasperava e tinha aborrecimentos no palácio de Merimat.
— Tinhas... ? — perguntou Mont-kav consternado. — Como é possível,
quando o bom deus no palácio...
Ou bem um homem é chefe de tropas — ouviu-se ainda o senhor dizer
enquanto se afastava, e, dizendo aquilo, encolhia os ombros maciços — e
verdugo-mor, ou não o é. Mas se é... e se lá está alguém... — Não se pôde
pegar o resto do que ele dizia. Acompanhado do mordomo, que, escutando
e respondendo, se conservava ainda um pouco atrás inclinado para ele, foi o
senhor passando entre os servos que levantavam a mão e transpôs a porta
que o introduzia na sua casa. E assim José vira “Putifar”, como ele
costumava pronunciar-lhe o nome, o grande do Egito, a quem foi vendido.

JOSÉ É VENDIDO PELA SEGUNDA VEZ E PROSTRA-SE POR


TERRA

Foi, realmente, o que aconteceu. Cha’ma’t, o esgrouviado escrivão,


tratou o negócio com o velho em nome do superintendente e na presença
dos anões. José, porém, quase não prestou atenção no andamento das coisas
e no preço que alcançava, tão imerso se achava na meditação e tão
impressionado estava com a pessoa do seu novo senhor que vira pela
primeira vez. O seu colar cintilante e o ouro, dádiva de Faraó, a sua figura
excessivamente nédia e soberba; o seu salto do coche e as adulações de que
o cumulara Mont-kav pela sua força e audácia como domador de cavalos; o
seu propósito de atacar com as próprias mãos o hipopótamo, indiferente se
Mut-em-enet, sua consorte, e Hui e Tui, seus pais, se amedrontavam com o
feito (a própria palavra “indiferente” parece imprópria para caracterizar-lhe
o estado de ânimo); por outro lado, as suas solicitas perguntas sobre a
inalterada ordem da casa e a alegria da senhora; até as fragmentárias
alusões, que lhe caíram dos lábios enquanto se afastava, aos dissabores
experimentados na corte — tudo isto deu muito que pensar ao filho de Jacó,
induzindo-o a examinar, a adivinhar, a trabalhar em silêncio, a fim de
aprofundar, interpretar, completar, como faz uma pessoa que procura
assenhorear-se espiritualmente das condições e das circunstâncias em que
se viu envolvida e com as quais deve contar.
Estaria ele um dia, pensava, ao lado de “Putifar” no carro como seu
cocheiro? Acompanhá-lo-ia à caça no braço morto do Nilo? Na realidade,
acredite-se ou não, naquela hora, quando mal acabava de ser conduzido
diante da casa e depois do primeiro olhar rápido mas atento lançado aos
homens e às coisas, já ele meditava como, mais cedo ou mais tarde, porém
o mais depressa possível, poderia ocupar uma posição ao lado do amo, o
mais altamente colocado naquele círculo, conquanto não é o mais altamente
colocado no Egito. Desta última consideração resulta que as imensas
dificuldades que se apresentavam diante da primeira meta não demasiado
longínqua não o impediam já então de, com o pensamento, alcançar muito
mais longe e de imaginar já a união com personificações ainda mais
definitivas do amo supremo.
Assim era. Nós o conhecemos. Teria ele com pretextos menores podido
atingir, naquele país, aquilo que atingiu? No mundo dos ínferos para o qual
o poço fora o ponto de acesso, ele... já não era José, era Osarsif. E aquela
sua situação de último entre os ínferos não devia durar muito tempo. Rápido
correu o seu olhar sobre aquilo que ele reputava os prós e os contras. Mont-
kav era bom. Tinham-lhe vindo as lágrimas aos olhos ouvindo a sua meiga
saudação, porque muitas vezes não se sentia bem. Também Teófilo, o
bufãozinho, era bom e evidentemente recebera a inspiração e a ordem de
ajudá-lo. Dudu era um inimigo... por ora; talvez houvesse meios e modos de
conquistá-lo. Os escrivães tinham-se mostrado ciosos porque José era um
deles: era necessário interpretar com cuidado esse sentimento de despeito.
Desse modo ia pesando as perspectivas mais imediatas, e erro seria querer
por isso chamá-lo a contas e considerá-lo como um ambicioso vulgar. Não,
José não era tal; julgar assim os seus pensamentos seria julgá-los mal. O seu
espírito estava voltado para um dever superior. Deus pusera um fim à sua
vida, que tinha sido estulta, e o fizera ressurgir para uma vida nova; por
meio dos ismaelitas Ele o conduzira àquele país; sem dúvida, como em
todas as coisas, Deus tinha diante de si altos intuitos. O Senhor nada fazia
que não tivesse grandes efeitos, e, em vez de paralisar com inerte
indiferença as intenções divinas, agora competia a José secundá-lo
fielmente com todas as forças do espírito — uma dádiva do próprio Deus.
Ele lhe enviara sonhos que o sonhador devera conservar para si: o das
medas, o das estrelas; e tais sonhos não eram tanto uma promessa como
uma indicação. De um modo ou de outro, tinham de realizar-se. Como, só o
próprio Deus o sabia, mas o fato de José ter sido raptado e trazido para
aquele país já era o começo. Eles não se realizariam só por si; era preciso
ajudá-los. Viver conforme a tácita suposição ou convicção de que Deus tem
sobre alguém intuitos pouco vulgares não é propriamente ambição. Não
seria este o termo adequado; esta ambição a serviço de Deus mereceria um
nome mais respeitoso.
José, pois, quase não atentara no andamento da sua segunda venda e
quase não se interessou para saber a que preço se tinha chegado, tão
absorvido estava em elaborar as suas impressões e em tomar-se, em
espírito, senhor das circunstâncias. O comprido Cha’ma’t lá estava, com as
canas atrás da orelha, mantendo-as em prodigioso equilíbrio, pois se
achavam firmes como se estivessem grudadas e nenhuma caía, por mais
meneios que fizesse na sua transação. Ele persistia tenazmente na sua
distinção entre “ter necessidade” e “poder ter necessidade” para abaixar o
preço, ao passo que o velho voltava sempre à sua antiga e poderosa razão;
que o valor do objeto devia bastar para dar-lhe de que viver, para que ele
pudesse ainda no futuro servir àquela casa, e sabia apresentar essa
necessidade como uma coisa tão natural que o escrivão, com prejuízo
próprio, nem ao menos pensou em refutá-la. Um era ajudado por Dudu, o
do guarda-roupa, que negava tanto o “ter necessidade” como o “poder ter
necessidade”, estendendo a sua negação a todas as três mercadorias, as
cebolas, o vinho e o escravo. O outro contava com o apoio de Chepses-Bes,
que, com a sua voz de grilo, se jactava da sua argúcia e queria que se
comprasse Osarsif incondicionalmente, sem regateios mesquinhos sobre o
preço pedido. Só mais tarde e de passagem entrou na contenda o próprio
objeto dela, observando que considerava pouco cento e cinquenta deben e
propondo se pusessem de acordo ao menos sobre cento e sessenta. A tal
proposta o impelira a sua ambição por Deus, porém ela foi decididamente
rejeitada por Cha’ma’t, que declarou ser absolutamente inadmissível que o
objeto da venda se metesse na discussão a respeito do próprio preço; e
assim José se calou e deixou que as coisas seguissem o seu curso.
Por fim viu diante de si um tourozinho malhado que Cha’ma’t mandara
buscar no curral. Teve uma sensação estranha ao ver, fora de si e na forma
de um animal, o valor e a avaliação da sua própria pessoa. Estranho era
aquilo, bem que não ofensivo, porquanto naquele país quase todos os
deuses podiam reconhecer-se a si mesmos na forma de um animal, e catava-
se sempre grande respeito à ideia de que achar-se perto de uma coisa e ser
uma coisa eram conceitos intimamente ligados.
Mas não se limitaram ao tourozinho; o seu valor ainda não igualava o de
José, porque o velho se recusava a avaliar o animal em mais de cento e
vinte deben, que era muito menos do que José valia. Assim, para que a
balança vigiada pelo babuíno fosse posta em sagrado equilíbrio, era preciso
colocar ao lado do tourozinho outros objetos ainda: um arnês feito de couro
de vitelo, vários fardos de papel para escrever e de pano comum, um par de
odres de vinho, de pele de pantera, certa quantidade de soda para salgar os
cadáveres, um feixe de anzóis e algumas vassouras de mão. Tudo isto foi
avaliado de comum acordo e a olho mais que com um cálculo puramente
aritmético, porque, depois de muito regateio e longas disputas sobre este ou
aquele objeto particular, desistiu-se de uma solução numérica, ficando
resolvido que ambas as partes se contentassem com a ideia de que não
estavam sendo excessivamente embrulhadas na transação. Um peso em
cobre entre cento e cinquenta e cento e sessenta deben podia ser o preço
razoável do escambo, e por esse preço, mais o vinho e as cebolas, ficou
sendo o filho de Raquel propriedade de Petepré, grande do Egito.
E assim se fez. Os ismaelitas de Madian tinham cumprido sua missão na
terra, havendo feito entrega daquilo que tinham sido escolhidos para
conduzir ao Egito; agora podiam continuar sua viagem e desaparecer do
mundo. Deles não havia mais necessidade. Aliás a consciência que eles
tinham do seu próprio valor não ficou de maneira alguma diminuída com
este novo estado de coisas; continuavam mais cheios de si do que nunca
quando de novo arrumaram a bagagem, não se sentindo absolutamente
supérfluos. O desejo e preocupação paternal que tinha o ancião de proteger
o enjeitado, colocando-o no melhor lugar possível, acaso não teria seu
inteiro valor moral — embora de outro ponto de vista se pudesse considerar
o seu capricho como um meio e um instrumento para fins que o mercador
desconhecia? Era já bastante estranho haver ele revendido José como se isto
tivesse de suceder, com um lucro que, segundo dizia, “lhe desse para viver”
e tranquilizasse sofrivelmente a sua consciência de comerciante. Mas
evidentemente ele não o fez em atenção ao lucro e, se quisermos ver as
coisas com justiça, mui de boa mente conservaria ao pé de si o filho do
poço a fim de que ele lhe desse sempre as boas-noites e lhe confeiçoasse
bolos. Enquanto fazia o possível para salvaguardar o seu interesse
comercial, não agiu com vantagem própria. Mas que é afinal vantagem
própria? Essa vantagem o impeliu a olhar por José, ao mesmo tempo que
provia ao seu próprio interesse na vida, porque, fazendo-o, sentia uma certa
satisfação inexplicável, misteriosa.
De sua parte, José era um rapaz que respeitava a dignidade do livre-
arbítrio que anima humanamente o inevitável; e quando o velho, depois de
concluído o negócio, lhe disse”Vem aqui, Olá, ou Osarsif, como tu te
chamas, já não és meu, tu és desta casa. Aquilo que eu projetava, levei a
bom termo” — José lhe demonstrou todo o reconhecimento que lhe devia,
beijou-lhe repetidas vezes a fímbria do manto e chamou-lhe seu salvador.
— Adeus, meu filho — prosseguiu o velho —, conserva-te digno do
benefício. Sabe ser delicado com todos e refreia a ma língua quando
sentires o prurido de criticar e a tentação de fazer desagradáveis distinções
entre o que merece veneração e o que já passou do tempo. São coisas destas
que levam ao fosso. A tua boca foi concedida doçura, tu sabes dar
graciosamente as boas-noites e dizer outras belas coisas. Pois fica nisto e
alegra os homens, em vez de tomá-los hostis com a tua mania de criticar. E
com isto, adeus. Creio não ser necessário recomendar-te que evites os erros
que foram causa de dares com a ma vida no fosso (confiança culposa e
presunção cega), visto como, sobre este ponto, já estarás suficientemente
escarmentado. Abstive-me de indagar como realmente se passaram as
coisas e não tentei penetrar nos teus assuntos íntimos, porque a mim me
basta saber que vai muito mistério por este mundo rumoroso e a minha
experiência me ensina a ter como possíveis coisas as mais disparatadas. Se
os fatos se passaram como os teus costumes e os teus dotes às vezes me
fazem supor, isto é, que o teu comportamento era exemplar e que tu te
ungias com óleo de alegria antes de entrares no ventre do poço, então sabe
que a ti te foi lançada uma corda para trazer-te à luz, a ti foi proporcionada
uma perspectiva de felicidade, para que tu, havendo-te eu vendido a esta
casa, possas guindar-te a uma esfera mais elevada. Pela terceira vez. adeus!
Já to disse duas vezes e aquilo que se diz três vezes é mais forte. Estou
velho e não sei se te tornarei a ver. O teu Deus Adon. que, segundo me
consta, iguala o sol poente, te conserve e guarde os teus passos a fim de que
não tropeces. Sê abençoado!
José prostrou-se por terra diante daquele pai e osculou mais uma vez a
orla do seu manto, enquanto o velho lhe punha a mão sobre a cabeça.
Depois o vendido se despediu também do genro, Mibsam, agradecendo-lhe
tê-lo tirado do poço: disse em seguida adeus a Efer, o neto, e a Kedar e a
Kedma, os filhos do velho, bem como, embora de maneira mais descurada,
a Ba’almahar, o carregador, e a Jupa, o rapaz de beiços túrgidos, que
conduzia por uma corda o animal representativo do valor de José, isto é, o
touro novo. E então os ismaelitas lá se foram pelo pátio e pela porta
retumbante como haviam entrado, desta vez, porém, sem José, que os foi
seguindo com o olhar e não sem dor e desalento no fundo d’alma por essa
separação e diante da incerteza e da novidade que o aguardavam.
Quando desapareceram e ele olhou em redor, viu que todos os egípcios
tinham ido à sua vida e ele se achava só ou quase só; ao seu lado ficara
apenas Se’ench-Ven-nofre-Neteruhotpe-em-per-Amun, o Amadeu, o
Teófilo, o Vizir da troça, que estava perto dele e de olhos para o alto o
fitava, com o sorriso estampado na cara encarquilhada.
— Que vou fazer agora e para onde dirigirei os meus passos? —
indagou José.
O pigmeu não deu resposta. Limitou-se a voltar um momento o rosto na
direção dele e a sorrir com enlevo. Súbito, porém, virou a cabeça com
espanto e murmurou:
— Prostra-te com a cara em terra!
Ao mesmo tempo executou ele próprio o que ordenava ao outro e
premiu a fronte contra a terra, dando ideia de uma bola com uma mona em
cima; com efeito, esta acompanhara com habilidade o movimento
repentino, apenas passando do ombro para as costas do seu donozinho e
sobre elas se encolheu com a cauda tesa, e com os olhos arregalados pelo
susto fitava o mesmo ponto em que José não deixara de também espetar os
seus olhos. Efetivamente, o mancebo seguira, é certo, o exemplo de Teófilo,
mas, prosternando-se, teve o cuidado de conservar desimpedida a testa entre
as mãos arrimadas sobre o cotovelo, e assim pôde ver a que e diante de
quem manifestava tanta devoção.
Do harém saía um cortejo que, atravessando obliquamente o pátio, se
dirigia à casa reservada aos homens. Na frente marchavam cinco servos de
saiote e de curtas capas de pano; seguiam-se cinco ancilas com os cabelos
soltos, e no meio, por cima delas, suspensa sobre os ombros nus de servos
nubianos, apoiando os pés cruzados sobre os coxins da cadeirinha de
assento dourado, adornada de cabeças de animais com fauces escancaradas,
estava sentada uma dama do Egito. Era de alto trato, tendo nos cachos
atavios refulgentes, ouro no pescoço, dedos repletos de anéis, braços que
pareciam lírios; um deles, de deliciosa alvura, ela deixava cair inerte de
uma banda da cadeirinha. Sob a grinalda de pedrarias que lhe envolvia a
cabeça José divisou o seu perfil pessoal, característico, único e singular, a
despeito da marca da moda; olhos alongados com arrebiques para o lado
das fontes, nariz achatado, covinhas escuras nas faces, boca a um tempo
estreita e meiga, serpeando entre cantos profundos.
Era Mut-em-enet, a dona da casa, que se dirigia ao banquete, a consorte
de Petepré, uma mulher fatal.
4

O ALTÍSSIMO

QUANTO TEMPO JOSÉ FICOU EM CASA DE PUTIFAR

Havia um homem que tinha uma vaca rebelde, a qual não queria saber
de canga quando se tratava de arar o campo e sempre a sacudia fora do
pescoço. O homem a separava do bezerro, levando este para o campo que
devia ser arado. Quando a vaca ouvia o mugido do filho, deixava que a
conduzissem onde estava o bezerro e aceitava a canga.
O bezerro está no campo para onde o levou o homem, mas não muge,
conserva-se num silêncio sepulcral, lançando primeiro uma vista d’olhos ao
campo desconhecido que ele considera um campo de morte. E demasiado
cedo, pensa o bezerro, para soltar a voz, mas tem com certeza uma ideia dos
propósitos do homem e dos seus projetos longamente amadurecidos, esse
bezerro Jeosif ou Osarsif Conhecendo o homem, ele conjetura logo e
percebe, embora como num sonho, que o seu transporte para esse campo,
contra o qual houve tanta oposição em casa, não é um fato isolado ou uma
meia medida, mas parte de um plano no qual uma coisa arrasta após si a
outra. O tema do “arrastar após si” e do “fazer seguir” é um daqueles que se
põem musicalmente um defronte do outro na sua alma inteligente e
sonhadora, na qual, como às vezes sucede, o sol e a lua resplandecem ao
mesmo tempo no céu; e ao motivo condutor da lua que, cintilando, abre
caminho dos deuses astrais, seus irmãos, cabe também a sua parte.
Porventura José, o bezerro, em presença dos reluzentes prados do país de
Gosem, não terá tido também, por sua própria iniciativa, ainda que em
harmonia com as deliberações do homem, os seus próprios pensamentos?
Pensamentos prematuros e há muito antecipados, segundo o seu mesmo
juízo, que por ora devem conservar-se mudos. De fato, muitas coisas se
devem realizar antes que aqueles pensamentos, por sua vez, adquiram
exequibilidade, e o arrebatamento só não basta; deve acontecer ainda
alguma outra coisa, à qual se devota a mais tácita expectativa e a mais
secreta confiança filial, alguma coisa, porém, que se realizará de maneira
imprevisível. Tudo isso só o sabe o homem que levou o bezerro ao campo,
sabe-o Deus.
Não, José não se deslembrara do velho que lá na sua casa se finava de
dor. O seu silêncio — silêncio de tantos anos — nunca deve dar causa a que
murmuremos dele, muito menos neste momento, cujos sucessos relatamos
com emoções exatamente iguais às dele, pois que são as dele. Se nós temos
a sensação de já havermos chegado outra vez a este ponto da nossa história
e de já termos contado tudo isto uma outra vez; se a sensação particular de
reconhecimento, de “já visto”, de “já sonhado” nos toca profundamente e
nos convida a entregar-nos a ela, é precisamente esta a mesma experiência
que então enchia o nosso herói — uma concordância que é plenamente
compreensível. Aquilo que nós na nossa língua somos tentados a chamar a
sua ligação com o pai — ligação tanto mais profunda e tanto mais íntima
quanto, graças a uma ampla equiparação e troca, era a um tempo ligação
com Deus — estava em particular vigor nesse momento, pois, na verdade,
como podia ser de outra maneira se ela subsistia nele, com ele e fora dele?
O que agora estava acontecendo na sua vida era imitação e sucessão; com
ligeiras diferenças, seu pai antes dele experimentara o mesmo. E é coisa
cheia de mistério ver como no fenômeno da sucessão a intenção volitiva se
mistura com a direção vinda do ano, de modo que já não há distinguir quem
é verdadeiramente aquele que imita e visa a repetir coisas já vividas: a
pessoa ou o destino. O interior se espelha no exterior e se materializa,
aparentemente sem o querer, no fato de que já antes de agora esteve sempre
unido na pessoa e foi uma coisa só com ela. Com efeito, nós caminhamos
nas pegadas dos que nos precederam e toda a vida é um presente modelado
em formas místicas.
José jogava com vários gêneros de sucessão e com modificações de si
próprio piamente deslumbrantes, com as quais sabia causar impressão e por
meio das quais sabia ganhar ao menos momentaneamente os homens. O
que, porém, agora o dominava e ocupava inteiramente era a volta do ser
paterno e a sua ressurreição nele: ele era Jacó, o pai, que entrara no reino de
Labão, arrebatado para o mundo dos ínferos, tendo-se tomado impossível
sua permanência em casa, fugindo diante do ódio dos irmãos, diante do
ardor intolerável do Vermelho a quem havia sido roubada a bênção e o
direito de primogenitura. Décupla foi desta vez a mutação de Esaú, tendo
também Labão um outro aspecto neste presente: sobre rodas de que
chispavam fogos de artificio e trajando hábitos régios viera ele, Putifar, o
domador de cavalos, gordo, imenso e tão temerário que receavam pela sua
existência. Mas era ele, Labão, pouco importando que para a mesma coisa a
vida achasse formas sempre novas e variadas. Ainda uma vez, como o
passado já o predissera, o descendente de Abraão era estrangeiro num país
que não lhe pertencia, e José serviria a Labão que, na volta, tinha um nome
egípcio e pomposamente se intitulava “Dom do Sol". Quanto tempo,
portanto, o servirá?
Fizemos essa pergunta para o presente de Jacó e a ela respondemos
segundo a razão. Agora repetimos a pergunta no caso do filho, resolvidos,
também desta vez, a retificar tudo definitivamente e a reforçar no real
aquilo que foi sonhado. Na história de José a questão do tempo e da idade
foi sempre tratada com descuido no campo da realidade. A fantasia
superficialmente sonhadora atribui à sua figura aquela imutabilidade e
aquela integridade temporal que ela adquiria aos olhos de Jacó, visto como
este acreditava que o filho estava morto e dilacerado, quando a morte e só
ela confere essa imutabilidade. Mas o jovenzinho, que, na opinião do pai,
estava morto, vivia ainda, os seus anos cresciam, e agora é preciso que a
gente se convença de que José diante de cujo sólio se acharam um dia e se
inclinaram os irmãos necessitados era um homem de quarenta anos, e de
que não só o cargo, o grau e o traje mas também as mudanças produzidas
pelo tempo na sua pessoa o tomavam irreconhecível aos olhos dos
suplicantes.
Vinte e três anos haviam decorrido desde que os irmãos, aqueles que
nesta nossa figuração representam Esaú, o tinham vendido no Egito, quase
tantos quantos, em conjunto, Jacó passara na terra de onde não há retorno. E
o mesmo nome podia ainda com mais justiça ser dado à terra onde agora o
descendente de Abraão era estrangeiro, porquanto José não ficou lá
quatorze, seis e cinco anos, ou sete, treze e cinco, mas toda a sua vida, e só
na morte tornou à casa. Completamente obscuro é todavia e coisa que
pouco se considera como se distribuem os seus anos passados no mundo
dos ínferos entre as duas épocas da sua vida abençoada, que, no entanto, se
distinguem tão claramente uma da outra, isto é, entre os primeiros anos
decisivos, os da sua estada na casa de Putifar, e os anos do fosso em que foi
de novo atirado.
Juntos, os dois períodos perfazem treze anos, tantos quantos gastou Jacó
a enfileirar os seus doze filhos mesopotâmicos; isto, na suposição de que
José tinha trinta anos quando foi elevado e ele se tornou o primeiro entre os
inferiores. Entenda-se que não se acha escrito em nenhum lugar que ele
ponha então tantos anos, ou pelo menos não se acha escrito no lugar onde,
para constituir um dado seguro, deveria achar-se. No entanto, é um fato
universalmente aceito, um axioma que não necessita demonstração, mas
que fala por si e que quase, como acontece com o sol, se gera a si mesmo
com a própria mãe, com pretensão clara a um simples “assim é realmente”.
Porque é sempre assim. Trinta anos constituem a idade justa para subir o
degrau da vida que José então subiu; aos trinta anos sai-se da obscuridade e
do deserto da época de preparação para entrar na vida ativa; é o momento
em que uma pessoa se torna visível, o instante da realização completa.
Portanto, da entrada do rapaz de dezessete anos na terra do Egito até o dia
em que ele compareceu perante Faraó, decorreram treze anos. Isto é certo.
Mas, desses treze anos, quantos pertencem ao período passado na casa de
Putifar e quantos, por conseguinte, ao período passado no fosso? A tradição
assente deixa em dúvida o ponto. Tudo o que dela se pode colher, para
esclarecer as relações de tempo da nossa história, se reduz a frases que a
bem pouco levam. Em que ficamos então? Qual havemos de concluir que é
a verdadeira divisão do tempo?
A pergunta parece inepta. Conhecemos a nossa história ou não a
conhecemos? É necessário e corresponde à natureza da narração que o
narrador calcule as datas e os fatos de acordo com algumas reflexões e
deduções? Deve o narrador ser alguma coisa mais que uma fonte anônima
da história narrada ou, ainda melhor, que a si própria se narra, na qual tudo
se toma por si mesmo, assim e não diferentemente, indubitável e certo? Dir-
se-á que o narrador deve ser na história uma coisa só com ela e não fora
dela, descobrindo-a com o cálculo e demonstrando-a. Mas então que é do
Deus que Abraão imaginou e reconheceu? Ele está no fogo, mas não é o
fogo. Ele está, portanto, ao mesmo tempo nele e fora dele. A falar verdade,
ser uma coisa e observá-la não é o mesmo. Ou então há planos e esferas em
que uma e outra coisa se realizam a um tempo: o narrador está, sim, na
história, mas não é a história; ele é o espaço dela, mas ela não é o espaço
dele, senão que ele está também fora dela, e com uma mudança da sua
natureza fica em condições de examiná-la. Nunca foi intuito nosso despertar
a ilusão de que nós somos a primeira fonte da história de José. Ela
aconteceu antes que eu pudesse contá-la, brotou do primeiro manancial de
que brota tudo aquilo que aconteceu, e, acontecendo, contou-se a si mesma.
Daí para cá ela corre mundo. Todos a conhecem ou julgam conhecê-la,
porque muitas vezes o conhecimento é irreal, casual e desconexo. Tem sido
contada centenas de vezes, em centenas de meios diferentes. Aqui e hoje ela
passa através de um meio no qual adquire como que um conhecimento de si
mesma e se recorda como certa vez ela era exatamente e realmente, de
modo que ela ao mesmo tempo brota e se explica.
Ela explica, por exemplo, como se distribuíram os treze anos decorridos
entre a venda de José e a sua elevação. No entanto, isto é certo: que também
o José que foi encerrado no cárcere não era, havia muito, o rapaz que os
ismaelitas tinham levado diante da casa de Petepré, e que a mor parte
daqueles treze anos ele a passou naquela casa. Poderíamos definitivamente
assentar que foi assim, mas com prazer consentimos em perguntar como
poderia aquilo passar-se diferentemente. Observado do ponto de vista da
sociedade José era um zero perfeito quando, com dezesseis ou dezoito anos
apenas, penetrou na casa do egípcio, e à carreira que o jovem fez na casa
deste pertence o tempo que ele realmente passou ali. “Putifar” não colocou,
logo no segundo ou no terceiro dia, o escravo chabirita à frente de toda a
sua propriedade, deixando-a nas mãos de José. Foi necessário algum tempo
antes de repararem nele Putifar e outras pessoas, decisivas para o êxito
deste importante episódio da sua vida. Mas, além disso, aquela carreira,
rapidamente ascendente na economia e na administração, devia por força
durar anos e anos para tomar-se a escola preparatória tal como fora
imaginada, isto é, o cargo de mordomo em proporções mais respeitáveis,
que àquela se seguiu.
Numa palavra: José ficou dez anos em casa de Putifar, alcançando os
vinte e sete de sua idade e tomando-se um “homem” hebreu, consoante foi
dito a respeito dele, cabendo-lhe também em certas partes e de quando em
quando a designação de “servo hebreu”, denominação aliás errônea ou
exagerada, porque, na ocasião, ele já há muito deixara de ser um “servo”.
Não é possível distinguir nem fixar com exatidão o ponto em que ele, pela
sua posição e pela consideração de que gozava, cessou de sê-lo. Não é
possível fazê-lo hoje, como não o era antes. No fundo e sob o aspecto
puramente jurídico, José permaneceu sempre um escravo, permaneceu tal,
ainda ocupando o elevado cargo que ocupou, e tal até o fim da vida. Lê-se
mesmo que foi vendido uma e outra vez, mas da sua libertação ou do seu
resgate não há notícia. A sua extraordinária carreira passou silenciosamente
por cima do fato jurídico da sua escravidão, e depois da sua rápida ascensão
ninguém mais se ocupou da sua condição de servo. Mas mesmo na casa de
Petepré ele não permaneceu por muito tempo um servo no baixo sentido da
palavra, e para a sua bendita ascensão ao grau de Eliézer, isto é, ao cargo de
mordomo, não foram necessários todos os anos da sua permanência com
Putifar. Bastaram sete anos — eis aí uma certeza. Outra certeza é que só o
resto do decênio fora dominado e ofuscado pelas complicações oriundas
dos sentimentos de uma mulher infeliz e que conduziram ao termo desse
período. A tradição nos indica, ao menos com uma fixação aproximativa e
geral do tempo, que essas complicações não começaram logo ou pouco
depois da entrada de José na casa, nem coincidiram com a sua ascensão,
senão que tiveram início somente depois que ele atingira a sua alta posição.
Foi dito que tiveram começo “depois desta história”, isto é, depois da
história da conquista da suprema confiança por parte de José, de maneira
que é lícito supor-se que aquela funesta paixão durou só três anos (bastante
para os interessados!) até seu desfecho catastrófico.
O resultado desta prova da história supera mesmo a contraprova. Se,
fiando-nos nesse resultado, contarmos para o episódio de Putifar dez anos
da vida de José, ao período seguinte, o do cárcere, tocam três. Nem mais
nem menos. E, na realidade, raramente a verdade e a verossimilhança
coincidiram de modo mais persuasivo do que neste fato. Que coisa poderia
ser mais plausível e mais justa do que a verificação de que José, assim
como passou três dias na tumba de Dotan, assim também teve de apodrecer
na prisão três longos anos, nem mais nem menos? Pode-se mesmo ir ao
ponto de afirmar que ele próprio, desde o princípio, o havia suposto, ou
antes, sabido, e que, depois de tudo aquilo que considerava conforme à
ordem, cheia de significado e justa, estava convencido de que não era
possível outra coisa... confirmado nisto por um destino que tomava um
rumo absolutamente inevitável.
Três anos: não basta que tenha sido assim; não podia sequer ser de outra
maneira. E, com uma divisão de tempo extraordinariamente rigorosa, a
tradição fixa mais minuciosamente como se repartiram estes três anos. Tem
ela como coisa certa que os célebres incidentes de José com o padeiro-mor
e o copeiro-mor, seus nobres companheiros de cárcere, a quem ele devia
servir, se verificaram no primeiro ano. Acrescenta-se logo que “dois anos
depois” Faraó teve sonhos que José lhe explicou. Dois anos depois de quê?
A questão podia ser controvertida. Com isto talvez se quisesse dizer: dois
anos depois que Faraó exatamente se tomara Faraó, isto é, depois da
ascensão ao trono daquele Faraó que teve os sonhos enigmáticos. Ou pode
também significar dois anos depois que José interpretara os sonhos
daqueles dois indivíduos e que o padeiro-mor, como sabemos, fora
justiçado. Esta discussão, porém, seria inútil, porque tanto num como
noutro caso tudo combina. Sim. Dois anos depois dos incidentes com os
cortesãos acusados, Faraó teve os seus sonhos e teve-os, ao mesmo tempo,
dois anos depois que se tomara Faraó, porque, durante a prisão de José e
precisamente no fim do primeiro ano, aconteceu que Amenhotep III se uniu
ao sol e seu filho, o sonhador, pôs sobre a cabeça a dupla coroa.
Vê-se agora que naquela história nada é falso, que tudo combina com os
dez e três anos, depois dos quais José atingiu os trinta, e que tudo em forma
pura e exata se desenvolve harmonicamente em verdade e justeza.

NA TERRA DOS NETOS

Parte do jogo da vida consiste nas relações mútuas entre os seres


humanos. Imaginemos duas pessoas que pela primeira vez trocam um olhar
entre si. Que pode haver de mais inconsciente, mais tênue, mais remoto e
casual do que esse laço que se estabelece entre elas? E no entanto pode ele
ser fadado a assumir, num certo dia inimaginável, um caráter de ardente
intensidade, de temível e pasmoso imediatismo. Naturalmente que tanto
esse jogo como a inconsciência dos que nele tomam parte podem provocar
no observador prevenido um meneio de cabeça e algumas reflexões.
Lá estava, pois, José de joelhos e com o ventre em terra, ao lado do
anão Teófilo, chamado Chepses-Bes, no chão do pátio, e por pura
curiosidade olhava por entre as mãos aquela preciosa presença
absolutamente desconhecida que, a breve distância, passava diante dele,
levada sobre um dourado assento adornado de leões. Esse produto de alta
civilização dos ínferos não provocava nele outra sensação a não ser a de
uma veneração fortemente misturada com uma repulsa crítica, não suscitava
nele outro pensamento que não fosse mais ou menos este”Olá, aquela deve
ser a senhora, a mulher de Putifar, que, segundo ouço, receia por ele.
Pertence ela à categoria dos bons ou dos maus? O seu aspecto deixa a
questão indecisa. Uma grandíssima dama do Egito! Meu pai não havia de
aprová-la. Eu sou mais brando no meu julgamento, mas nem por isso me
deixo intimidar.” E foi só. Da parte dela foi ainda menos. No seu trajeto
sobre a liteira ela voltou por um instante para o lado dos adoradores a
cabeça adornada de pedrarias. Viu-os e não os viu, tão ligeiro foi o seu
olhar. Talvez reconhecesse o gnomo que já conhecia; pode ser que a sombra
de um sorriso tenha entrado por um segundo nos seus olhos de esmalte
alongados com o pincel e que tenha levemente aprofundado os cantos da
sua boca serpentina. Mesmo isso é duvidoso. O outro vulto ela não o
conhecia e mal reparou nele. Parecia um tanto esquisito com aquela capa
desbotada que os ismaelitas lhe tinham dado e, além disso, o corte do seu
cabelo não era do feitio egípcio. Ela o terá visto? E quase certo. Mas José
mal podia ter feito qualquer impressão naquela consciência arrogante. Se
aquele indivíduo não era dali, os deuses sabiam de onde ele era e tanto
bastava; ela, Mut-em-enet, chamada Em, se reputava demasiado preciosa
para pensar na questão. Terá reparado em como era belo e gracioso? Por
que perguntar isso? O seu ver não era um ver; não lhe passou pela mente,
ficou oculto a ela que havia aqui um motivo para fazer uso dos olhos.
Nenhum dos dois viu passar a seu lado a sombra de uma presunção, de uma
suspeita, não pressentiu o que aconteceria dentro de alguns anos, o que
entre eles sucederia. Que aquele desconhecido montículo humano em
adoração seria um dia para ela o seu tudo, a sua delicia e a sua raiva, teria
aniquilado toda a calma, a dignidade e a ordem da sua vida — nada disso
passou pela cabeça daquela mulher. As lágrimas que ela lhe arrancaria, o
perigo extremo que correria, por causa daquela mulher, a sua condição de
noivo de Deus e a coroa da sua cabeça, e que a loucura dela por um triz não
o colocaria em divergência com o seu Deus — nada disso o sonhador podia
sonhar, conquanto aquele braço liliáceo que escoria indolentemente das
andas bem que lhe pudesse dar que pensar. O observador que conhece a
história tal como aconteceu em todas as suas fases pode ser perdoado se
para um pouco, meneando a cabeça, e toma a ignorância daqueles que estão
na história e não fora dela.
Ele retira logo a indiscrição com que tinha soerguido o véu do futuro e
se restringe à hora dominante da festa. Esta compreende sete anos, os anos
da ascensão, a princípio tão inverossímil, de José na casa de Petepré, desde
o momento em que, depois da passagem da senhora pelo pátio, o
bufãozinho Bes-em-heb lhe sussurrou: — Vamos cortar o teu cabelo e
trocar as tuas roupas de modo que tu sejas igual aos outros — e o conduziu
aos barbeiros na casa dos servos, os quais, gracejando com o pequeno, lhe
apararam o cabelo à maneira egípcia e ele ficou com a aparência de um dos
guardas dos diques. Dali levou-o à rouparia e ao depósito dos saiotes no
mesmo edifício, onde um escrivão lhe entregou trajes egípcios, o uniforme
da casa de Petepré para o trabalho e para os dias de festa, ficando José
inteiramente parecido com um rapaz de Keme; e talvez já então seus irmãos
não o teriam reconhecido à primeira vista.
Estas sete revoluções astrais eram na vida do filho uma imitação e uma
volta dos anos paternos e correspondiam ao tempo durante o qual Jacó, de
mendigo fugitivo que era, se tomara rico proprietário e sócio indispensável
das posses de Labão, florescentes em virtude da bênção. Agora chegara
para José a hora de tomar-se indispensável. Como sucedeu isto e como se
portou ele? Achou água como Jacó? Isto teria sido supérfluo. Na casa de
Petepré havia água em abundância, porque não somente lá estava o lago de
lótus no jardinzinho de delicias, mas também entre a vegetação do bosquete
e da horta havia fossos quadrangulares, que não tinham nenhuma
comunicação com o nutridor e, no entanto, alimentavam os jardins porque
estavam cheios de água subterrânea. De água não havia penúria. Ora, a casa
de Putifar não era, segundo a sua vida interna, uma casa da bênção, antes
pelo contrário logo se viu que, apesar de toda a sua grandeza, era uma casa
onde se faziam muitas loucuras e onde habitavam graves incômodos. Mas
ainda assim estava repleta de prosperidade material, sendo quase impossível
e supérfluo que alguém ainda lhe viesse dar incremento. Seria suficiente
que um dia o seu proprietário ficasse convencido de que todos os seus
haveres estavam bem amparados nas mãos desse jovem estrangeiro e que,
deixando com ele a direção e administração de tudo, não tinha mais
necessidade de ocupar-se de nada, tal como convinha à sua alta posição e tal
como era seu costume. Antes de tudo, portanto, a força da bênção se
manifestava aqui em criar uma ampla confiança, e a natural aversão a
frustrar uma tal confiança num ponto qualquer — especialmente no ponto
mais delicado — devia contribuir poderosamente para que José evitasse a
divergência com Deus.
Sim. A época que agora despontava para José era a época de Labão;
contudo, eram grandes as diferenças materiais e as coisas se passaram
muito diversamente para o filho. A repetição já é em si uma modificação; e
assim como no calidoscópio uma quantidade sempre igual de corpúsculos
coloridos se apresenta em ordem sempre mutável, assim também o jogo da
vida produz sempre, das mesmas coisas iguais, algo sempre novo. Assim,
das mesmas partículas de que se compunha o astro vital do pai, surge a
figura astral do filho. A observação através do calidoscópio é instrutiva.
Com efeito, em que ordens diferentes se apresentarão ao filho os
fragmentozinhos e as pedrinhas de que resultava o panorama da vida de
Jacó, e quanto mais numerosas, quanto mais complicadas e também quanto
piores serão! Este José será posteriormente um “caso” mais escabroso; o
caso de um filho, talvez mais leve, mais atilado que o do pai, mas também
mais difícil, mais doloroso, mais interessante, e os simples modelos da vida
paterna anterior dificilmente se reconhecem na forma com que voltam na
vida de José. Que sucederá, por exemplo, com o pensamento e o modelo de
Raquel, a suave e clássica figura fundamental da vida? Em vez disso, que
arabesco retorcido e perigoso! Vê-se, pois, aquilo que agora se está
preparando, aquilo que já existia antes, porque aconteceu quando a história
se narrava a si mesma, e, se ainda não veio a suceder, é porque nós damos
atenção a leis de tempo e sequência posteriormente introduzidas. Isto exerce
uma fascinação poderosa e estranha; nossa viva curiosidade — de uma
espécie inteiramente à parte, porque ela já sabe de tudo e só se interessa
pela narrativa — está sempre tentando-nos a que antecipemos a hora. Assim
o duplo sentido do “era uma vez” exerce a sua mágica sobre nós; o futuro é
o passado e o que aconteceu há muito deve agora repetir-se num presente
bem nítido.
O que podemos fazer para refrear a nossa impaciência é estender um
pouco a nossa ideia do presente, incluir nele entidades de sequência um
pouco maiores e fazer delas uma espécie de coincidência solta no tempo. E
o período de que vamos tratando se adapta perfeitamente a este processo,
isto é, aquele em que José se tornou servo pessoal de Petepré e depois seu
administrador supremo. Esses anos até reclamam tal tratamento da nossa
parte, porque houve circunstâncias que, em inteira colisão com a
probabilidade, contribuíram para o triunfo de José e exerceram mais tarde
salutar influência; e estas circunstâncias, semelhando uma atmosfera que
tudo invade, desempenham o seu papel mesmo no começo, de modo que
não se podem sequer discutir os primeiros fatos sem tê-las presentes.
Depois de haver fixado o fato da segunda venda de José, a nossa fonte
aduz imediatamente que “ele estava na casa do seu senhor, o egípcio”. E
claro que ele estava lá. Onde devia estar senão ali? Fora vendido àquela
casa e naquela casa se achava. A palavra parece reforçar aquilo que já está
verificado, parece pois repetir-se sem necessidade. Mas aquela palavra deve
ser lida às direitas. A afirmação de que José “estava” na casa de Putifar nos
quer ensinar que ele ficou lá, o que absolutamente não foi confirmado antes,
mas é uma novidade que quiser ser bem acentuada. Depois que foi vendido,
José ficou na casa de Petepré e isso significa: de acordo com a vontade
divina, ele escapou ao risco quase certo de que o mandassem trabalhar nas
terras do egípcio, onde poderia definhar com o calor durante o dia e tiritar
de frio durante a noite, e onde poderia, sob o látego de um feitor pouco
caridoso, terminar os seus dias nas trevas e na penúria, sem que o
reconhecessem, sem fazer nenhum progresso.
Esta espada pendia sobre ele e podemos maravilhar-nos de que sobre ele
não tenha caído. Bastante tempo ficara ela fora da bainha José era um
estrangeiro vendido no Egito, um filho de asiáticos, um jovem de Amu, um
chabirita ou hebreu, e temos de pensar no desprezo a que ele, como tal,
estava por princípio exposto num país como aquele, o mais tenebroso de
todos os países da criação; devemos refletir em tudo isto antes de passarmos
a explicar como aquele desprezo foi mitigado e depois eliminado por
influências opostas. Se o mordomo Mont-kav fora tentado, durante alguns
segundos, a considerar José como quase um deus, isto não significa que no
princípio não o tenha reputado por menos que um homem. Porque foi
precisamente isso que ele fez. O cidadão de Keme, cujos antepassados
tinham bebido das ondas do rio sagrado e de cujo incomparável país, rico
de construções, escrituras e figuras transmitidas desde os tempos mais
antigos, fora outrora rei o senhor do sol em pessoa, estava muito
explicitamente cônscio da sua condição do “homem” para ainda lhe sobrar
muita estima pelos não-egípcios, pelos negros da Etiópia, para a gente da
Líbia que andava de rabicho e para as piolhentas barbas asiáticas. O
conceito de impuro e horrendo não foi uma invenção dos descendentes de
Abraão, não era absolutamente reservado aos filhos de Sem. Em relação a
várias coisas, tanto eles como o povo do Egito tinham em comum o
sentimento do horror, por exemplo, pelo porco. Além disso, os próprios
hebreus eram para os egípcios objeto de horror, a tal ponto que estes
reputavam contrário à dignidade e ao decoro comer pão com tal gente. Tudo
isto estava em conflito com os usos da sua mesa; e cerca de vinte anos
depois da época de que estamos tratando, quando José, com a permissão
divina, se tornara inteiramente egípcio em todos os seus hábitos, em todo o
seu porte, e via certos bárbaros à mesa com ele, tomava sua refeição
sozinho com sua comitiva egípcia e mandava que se servisse separadamente
aos de fora, para salvar as aparências e não contaminar-se diante do seu
pessoal de serviço.
Assim se passavam as coisas no Egito em relação à gente de Amu e de
Charu, assim estavam as coisas para José quando aí chegou. Que tenha
chegado àquela casa e que não tenha sido destinado a mirrar-se nos campos
é um milagre ou ao menos coisa de provocar admiração. Não se pode dizer
que tenha sido um milagre de Deus no sentido pleno da palavra, senão que
para tanto contribuíram sentimentos difusos e humanos, costumes de gosto
e de moda, numa palavra, aquelas influências das quais dissemos se
opuseram ao desprezo fundamental, mitigando-o e até eliminando-o. De
resto, esse desprezo fundamental se fazia sentir, por exemplo, por obra de
Dudu, o marido de Zeset. Ele queria e propôs que José fosse mandado para
os trabalhos de escravo no campo. Dudu não era somente um homem ou um
homenzinho de pleno valor e firmeza, mas também um sequaz e defensor
dos usos sagrados transmitidos de longe e da ortodoxia tradicional. Era um
anão apegado aos princípios e com isto era homem de partido, seguia
severamente uma escola e uma tendência de princípio que, partindo de toda
espécie de opiniões morais, estatais, religiosas, se recolhera numa unidade
natural e militante, e devia defender as suas posições em todo o país contra
outras opiniões menos limitadas e menos apegadas à antiguidade. Nas
possessões de Petepré esta tendência tinha o seu principal ponto de apoio no
harém e precisamente no apartamento privado de Mut-em-enet, a ama, que
era livremente frequentado por um homem cuja rígida pessoa era
considerada o centro e o ponto de recolhimento dessas aspirações: o
primeiro profeta de Amu, Beknechons.
Deste falaremos mais tarde. José ouviu falar nele e o viu só algum
tempo depois, assim como só pouco a pouco fez uma ideia das condições a
que aqui aludimos. Mas teria sido muito desatento e vagaroso em pesar os
elementos favoráveis e os desfavoráveis, se não tivesse advertido em certos
lances e sobretudo no essencial, desde suas primeiras palavras e sua entrada
em contato com o resto do pessoal. Para conseguir tal intento, ele fingia
conhecer antecipadamente tudo aquilo, conhecer minuciosamente, como
nenhum outro, todos os segredos íntimos e todas as confidências do país.
Com a sua fala egípcia que ainda produzia nos ouvidos dos outros uma
impressão um tanto cômica, enquanto era muito cauteloso e atilado em
achar as palavras, causava visível prazer àquela gente, motivo pelo qual não
se apressava muito em falar direito, contava alguma coisa dos “comedores
de goma" — como dizia com ares de entendido, pois era aquela a alcunha
com que se designavam os mouros nubianos — aos quais vira atravessar o
rio para irem à audiência. Acrescentava que as maledicências de alcova da
parte dos senhores invejosos não poderiam obter nada contra o príncipe-
prefeito de Kuch, porque este soubera, com o seu surpreendente tributo,
alegrar o coração de Faraó, preparando a cama aos seus detratores. De tudo
isso riam os servos, como se ele lhes estivesse contando novidades,
porquanto a eles agradavam justamente as coisas repetidas muitas vezes, os
mexericos que todos conheciam; e como riam do seu acento estrangeiro e
até de certo modo o admiravam, comprazendo-se em escutar as palavras
cananeias que ele introduzia na conversa para ajudar-se a si próprio no que
queria exprimir, tudo isto logo lhe abriu os olhos sobre o que naquela casa
havia de vantajoso e de desvantajoso.
Eles próprios seguiam o exemplo de José como melhor podiam.
Procuravam encaixar no seu discurso palavras estrangeiras, acádico-
babilônicas, e também outras da esfera linguística de José. Por sua parte
este percebeu logo, ainda antes de receber a respectiva confirmação, que
aqueles servos procuravam imitar as pessoas influentes da corte e que estas
também não faziam tal loucura por iniciativa própria, mas arremedavam
uma região ainda mais alta, a corte. Como dissemos, José compreendeu
estas interdependências ainda antes de prová-las. Era mesmo assim e ele o
averiguou com um secreto sorriso. Aquele povinho, tão absurdamente
vaidoso porque fora criado com a água do Nilo e nascera na terra dos
“homens”, o único e verdadeiro berço dos deuses, riria zombeteiramente da
mais ligeira dúvida que se ousasse pôr sobre a superioridade da sua
civilização, posta em confronto com a de qualquer outra das regiões
vizinhas. Transbordavam de orgulho com a glória marcial dos seus reis, os
Achmoses, os Tutmés, os Amenhoteps, que haviam conquistado o orbe
terráqueo até o Eufrates, que corre em sentido contrário, e transportado as
suas lindas até o Retenu mais setentrional e até os mais meridionais povos
arqueiros do deserto. E, pois, aquele povinho tão enfatuado e cheio de si
era, ao mesmo tempo, bastante débil e pueril para invejar abertamente José,
porque o cananeu era a sua língua materna, chegando mesmo,
involuntariamente e contra toda a razão, a ver uma superioridade intelectual
no natural desembaraço com que ele falava aquela que era a sua língua
materna.
Por quê? Porque a língua cananeia era fina. E por que era fina? Por ser
estrangeira. Mas tudo que era estrangeiro era também miserável, decadente.
E verdade; mas não deixava de ser fina aquela língua, e, segundo a opinião
deles, essa estima inconsequente se apoiava não em fraqueza ou
puerilidade, mas no seu espírito liberal e tolerante, José o percebia. No
mundo era ele o primeiro que o podia sentir, pois que pela primeira vez esse
fenômeno se manifestou no mundo. Era a liberalidade de pensamento de
povos que, se não haviam eles próprios conquistado e subjugado o
estrangeiro miserável, haviam permitido que seus avós fizessem essas
conquistas e agora o achavam fino. Eram os grandes que davam o exemplo.
A casa de Petepré fez José ver isso claramente, pois que quanto mais
penetrava nela com o olhar, mais se convencia de que os tesouros daquela
casa eram na sua maior parte mercadorias do porto, isto é, produtos
estrangeiros importados, prevalecendo exatamente as mercadorias
provenientes da pátria mais lata e mais restrita de José, da Síria e de Canaã.
Tudo isto era para ele lisonjeiro e ao mesmo tempo lhe parecia pouco nobre.
Com efeito, na sua lenta viagem dos países do delta até a casa de Amun não
lhe tinham faltado ocasiões de observar a bela e característica habilidade
operária dos países de Faraó. Os cavalos de Putifar, seu comprador, eram de
sangue sírio, e da Síria e de Babilônia vinham os melhores exemplares
desses animais, ao passo que a criação egípcia era de some-nos importância.
Também as suas carruagens, especialmente aquela com o fogo de artificio
das pedras preciosas nos raios das rodas, eram importadas de lá. E se ele
mandava vir o seu gado do país dos amoritas, quem quer que visse a
excelente raça bovina indígena de chavelhos liriformes e as vacas de Hathor
de olhos tão meigos e aqueles fortes touros, entre os quais foram escolhidos
Merver e Ápis, não podia deixar de ter aquilo na conta de uma
extravagância em homenagem à moda. O amigo de Faraó caminhava
apoiando-se a uma bengalinha com incrustações, proveniente da Síria, e de
lá vinham a cerveja e o vinho que ele bebia. “Do porto" eram também as
talhas dentro das quais eram oferecidas aquelas bebidas, e as armas e os
instrumentos músicos que enfeitavam os seus aposentos. Das minas da
Núbia provinha sem nenhuma dúvida o ouro dos magníficos vasos, quase
da altura de um homem, que estavam dentro de nichos pintados nos
peristilos setentrional e ocidental da casa e também na sala de jantar a cada
lado da tribuna, enquanto os vasos gigantescos tinham sido fabricados em
Damasco e em Sidon. No salão, de belas portas, destinado a forasteiros para
recepções e banquetes, situado em frente à sala de jantar da família e no
qual se entrava logo depois de atravessar o vestíbulo, via José outras talhas
um tanto excêntricas na forma e na pintura, que não podiam vir de outro
lugar a não ser da terra de Edom, do monte das Cabras, afigurando-se a José
uma como saudação de Esaú, seu tio estrangeiro, que aqui evidentemente
passava por homem fino.
Aqui achavam muito finos também os deuses de Emor e de Canaã, Baal
e Astarte. Logo o percebeu José pelo modo com que os servos de Putifar,
acreditando que fossem os seus deuses, lhe pediam informações e faziam
reverências. Tudo isso produzia a impressão de débil liberdade de
pensamento, porque as relações de poder entre os povos e os países por
meio do pensamento e da imaginação geral se incorporavam nos deuses e
eram somente a expressão da sua vida pessoal. Na verdade, onde estava o
objeto e onde o símbolo? Qual a realidade e qual a sua transcrição? Era
apenas um modo de dizer quando se afirmava que Amun vencera e tomara
seus tributários os deuses da Asia, enquanto na realidade era Faraó quem
tinha subjugado os reis de Canaã? Ou era esta somente a expressão
imprópria e terrena daquela? José bem sabia que não era possível fazer uma
distinção. O objeto e o símbolo, o próprio e o impróprio formavam uma
identidade inseparavelmente entrelaçada. Justamente por esta razão os de
Mizraim abandonavam de certo modo Amun não só quando achavam finos
Baal e Acherat, mas também quando introduziam palavras incorretas dos
filhos de Sem na sua língua dos deuses e em vez de “escrivão” diziam
“seper”, e em vez de “rio” diziam “nehel”, porque em Canaã se dizia
“sofer” e “nahal”. No fundo destes costumes, modas e caprichos, estava
realmente uma liberdade de pensamento e precisamente uma liberdade de
pensamento contra o Amun egípcio. O resultado disto era que o horror
fundamental contra aquilo que era semítico e asiático não chegava a muito,
e no balanço entre favor e desfavor José sempre o registrava da parte do
favor.
Ia tomando nota das flutuantes diversidades de opiniões, correntes e
contracorrentes com as quais, como já dissemos, começou a familiarizar-se
mais quando penetrou na vida do país. Uma vez que Putifar era homem da
corte e um dos amigos de Faraó, surgia a suposição de que a fonte dos
sentimentos xenófilos adversos a Amun, que era possível perceber nos seus
hábitos, tivesse sua sede no Ocidente, da outra banda do “nehel”, na Grande
Casa. Seria possível, pensava José, que tudo isso tivesse relação com as
milícias de Amun, com as forças do templo que traziam lanças pontiagudas
e que na “rua do Filho o haviam feito recuar até o muro? Ou dependeria da
indignação de Faraó porque Amun, o deus já muito poderoso do Estado,
entrara em competição com ele no próprio campo de batalha?
Concatenações estranhamente longínquas! O mau humor de Faraó por
causa da força arrogante de Amun ou do seu templo era talvez a última
causa por que José não foi mandado para o campo a trabalhar, senão que
pôde ficar na casa do seu senhor, havendo-se ocupado com os campos
somente mais tarde, não como escravo lavrador, mas como feitor e
administrador. Esta relação, que o fazia tácito usufrutuário de sentimentos
longínquos e elevados, enchia de alegria o jovem escravo Osarsif e,
atravessando o trâmite do seu alto senhor, o ligava com o senhor supremo
das alturas. Mas ainda mais e em linha mais geral o alegrava aquilo que o
vento lhe trazia do mundo para o qual fora transplantado, e aquilo que ele,
fazendo as suas pesquisas sobre favor e desfavor, lograva farejar com o seu
bonito nariz, bonito, sim, apesar de ter umas aletas muito grossas. Alegrava-
o um elemento familiar à sua natureza, no qual se sentia à vontade como o
peixe na água: o caráter tardio da época, esse sentimento da distância que
separava um mundo de netos das instituições e modelos de uns pais cujas
vitórias os tinham posto na situação de achar fino o vencido. Isto agradava a
José, porque ele próprio, por sua época e sua natureza, era um retardatário e
representava um caso de filho e de neto, ligeiro, espiritual, complicado e
interessante. Por isso ele se sentia aqui como o peixe na água e o seu
espírito estava cheio de doce esperança de que, com a ajuda de Deus e em
honra sua, havia de fazer progressos no longínquo país faraônico.
O CORTESÃO

Dudu, o anão casado, pois, obrava com fidelidade à tradição e, como


partidário dos bons tempos de antanho, obrava precisamente em nome de
Amun quando, com voz profunda e com vivos gestos do seu bracinho,
falando de baixo para o alto a Mont-kav, o aconselhava a mandar trabalhar
nos campos o escravo chabirita recentemente comprado, porque descendia
dos inimigos dos deuses e não ficava bem naquela casa. Mas a princípio o
mordomo não queria sequer lembrar-se do que falava e a que aludia o anão.
Um escravo de Amun? Comprado a madianitas? De nome Osarsif? Ah,
sim! E depois de, com o seu esquecimento, ter dado ao conselheiro uma
amostra da indiferença e da negligência com que se devia considerar aquele
negócio, exprimiu também a sua admiração porque ele, o roupeiro, não só
lhe dedicava pensamentos, mas até palavras. E por decoro, respondeu
Dudu, e acrescentava que o pessoal de serviço experimentava horror de ter
que comer o pão com um tal indivíduo. O superintendente, porém, não
achava que eles fossem tão niquentos e citava o caso de uma criada
babilônia, Istar-ummi, empregada na Casa das Reclusas e com quem as
mulheres andavam de perfeito acordo. — Amun! — disse o superintendente
dos escrínios das joias, proferindo o nome do deus que a tudo sustém e
olhou para cima, para Mont-kav, com olhos penetrantes e um tanto
ameaçadores. — E por causa de Amun — disse. — Amun é grande —
respondeu o administrador, sem esconder um ligeiro encolher de ombros.
— De resto — acrescentou — é possível que eu mande para o campo o
escravo recém-comprado. Talvez o mande e talvez não; mas, se o mandar,
será só quando eu próprio pensar no assunto. Não gosto que tolham meus
pensamentos para conduzi-los como por andadeiras.
Em resumo, deu ordem ao marido de Zeset que se fosse com a sua
advertência, com certeza porque não o podia tolerar por motivos evidentes
ou recônditos. A razão patente da sua aversão era a arrogante convicção do
anão, que o exasperava; mas a razão recôndita era a sua grande afeição de
servo para com Petepré, seu senhor, na qual ele se senda mortificado
precisamente por aquela arrogância. Tudo isto se compreenderá melhor em
seguida. Entretanto, a repugnância contra a enérgica pessoa de Dudu não
era para Mont-kav o único motivo que o levava a fazer ouvidos de
mercador. Com semelhantes maneiras tinha despedido o palhacinho Teófilo
quando este, antecipando-se a Dudu, se dirigira ao mordomo em sentido
oposto, sempre favorável a José; e assim procedia, embora não antipatizasse
com Teófilo, não tanto pelas suas qualidades quanto pelas suas relações
com Dudu. Sussurrara Teófilo que o jovem da areia era belo, bom,
inteligente, um benjamim dos deuses. Ele, Teófilo — o querido de Deus —,
que tinha aquele nome mas não era o que o nome dizia, o havia reconhecido
com infalível argúcia de anão, e o administrador devia providenciar para
que a Osarsif fosse designada, no serviço interno ou no externo, uma
ocupação na qual pudesse provar suas virtudes. Mas também neste caso, a
princípio, o mordomo mostrou não se recordar de quem se tratava; depois,
aborrecendo-se, recusara ocupar-se da questão de como e onde tomar útil à
casa aquela indiferente e supérflua compra de ocasião e de favor. Não havia
pressa, disse, e ele, Mont-kav, tinha muito em que pensar.
Tudo isto se dizia e admitia que, para um homem sobrecarregado de
afazeres e que, além do mais, não passava muito bem, era uma resposta
bastante apropriada, e Teófilo teve de calar-se. Na realidade, o
superintendente não queria ouvir falar de José não só diante dos outros, mas
também diante de si mesmo e fingia tê-lo esquecido porque se
envergonhava das impressões ou dos pensamentos ambíguos que haviam
surgido nele, um homem tão fido, logo que viu pela primeira vez o rapaz à
venda, tanto que o considerou quase um deus, quase o senhor do macaco
branco. Disto se envergonhava e não queria que lho recordassem, e tanto
menos queria aceitar sugestões cuja execução teria, aos seus próprios olhos,
semelhança com uma submissão qualquer àquelas impressões. Recusou não
só mandá-lo para os trabalhos do campo como empregá-lo nos serviços da
casa, porque não queria de maneira alguma ocupar-se dele e desejava
conservá-lo a distância. Não se dava conta o bom do homem, e a si mesmo
o ocultava, de que, justamente com essa recusa, dava importância às
próprias impressões. O fato de não ocupá-lo tinha as suas origens no medo;
cá para nós, essa reserva brotava do sentimento que está no fundo de tudo e
que, portanto, estava também no fundo do ânimo de Mont-kav — o
sentimento da expectativa.
Assim aconteceu que José, vestido e com o cabelo aparado à moda
egípcia, ficou semanas e meses sem fazer nada ou, o que vem dar mais ou
menos na mesma, era ocupado ora aqui ora ali, hoje de uma maneira,
amanhã de outra, onde se fazia mister e esporadicamente, só em trabalhos
muito leves e vis, e andava trocando pernas no pátio de Petepré, sem
contudo dar na vista a ninguém, porque, com a opulência da casa bendita,
era grande o número dos vagabundos e ociosos. José, porém, até certo
ponto achava bom que não se ocupassem com ele, isto é, que não se
ocupassem com ele prematuramente antes que pudessem fazê-lo a sério e de
maneira honrosa. O que lhe importava era que não o fizessem começar mal
e erroneamente a sua carreira, dando-lhe uma ocupação qualquer entre os
trabalhadores da casa, encerrando-se assim para sempre numa atividade
qualquer obscura. Ele bem que o evitara e no momento oportuno sabia
tomar-se invisível. Ficava sentado sobre o banco de ladrilho a tagarelar com
os guarda-portões, misturando palavras asiáticas que os faziam rir, mas
evitava o forno, porque ah se faziam pãezinhos tão deliciosos, que ele, com
os seus bolos gostosos, não faria a figura que tencionava. Sempre que era
possível, não chegava perto nem dos fabricantes de sandálias nem dos
coladores de papel, dos fazedores de esteiras coloridas de casca de
palmeira, dos marceneiros e oleiros. Uma voz interior lhe dizia que, tendo
em mente o futuro, não seria prudente aparecer no meio deles como um que
não aprendeu nenhum oficio, ou um inepto principiante.
Em vez disso, podia de quando em quando escrever, na lavandaria e nos
celeiros, um rol ou uma conta, bastando-lhe para tanto os rápidos
conhecimentos que adquiriu na escrita do lugar. A largos traços punha no
fim a seguinte nota”Escrito pelo jovem escravo Osarsif vindo do
estrangeiro, para Petepré, seu grande senhor (que o Oculto lhe conceda
longa vida!) e para Mont-kav, o superintendente de todas as coisas,
habilíssimo no seu cargo, para o qual se imploram de Ainun dez mil anos de
vida mais do que lhe fixou o destino; no dia tal do terceiro mês da estação
de Achet, isto é, da inundação. Com estas palavras de apóstata, assim
acomodadas ao uso local, exprimia-se diante de Deus nos seus
abençoamentos com a confiança certa e evidentemente justificada de que
Ele não o censuraria, levando em conta a sua situação e a necessidade de
tomar-se aceito. Mont-kav viu algumas vezes aquelas listas e assinaturas,
mas nunca disse palavra a respeito.
José comia o pão com os homens de Putifar na casa da servidão e com
eles bebia cerveja enquanto se tagarelava. Dentro em pouco tempo ombreou
com eles e até os superou na tagarelice, visto como as suas disposições
naturais eram para a linguagem e não para o trabalho manual. Escutando-os,
aprendia-lhes a fala e tomava deles os modos de se exprimir para poder
agora palrar com eles e no futuro comandá-los. Aprendeu a dizer”A fé de
que vive o rei!” e “Por Chmunu, o grande, o senhor de Jeb!” E mais”Eu
estou na maior alegria da terra” ou “Ele está nos quartos por baixo dos
quartos”, isto é, no rés-do-chão. De um capataz iracundo aprendeu a
dizer”Ficou como um leopardo do Egito superior.” Quando contava alguma
coisa, acostumara-se, seguindo o uso do país, a empregar com grande
frequência o adjetivo demonstrativo, exprimindo-se desta maneira”E
quando chegamos diante desta fortaleza inexpugnável, este bom velho disse
a este oficial: olha esta carta! Quando, porém, este jovem comandante via
esta carta disse: por Amun, estes estrangeiros passam.” Assim lhes dava
prazer.
Todos os meses havia vários dias de festa, de acordo com o calendário e
também de acordo com a estação do ano; por exemplo, quando Faraó dava
o primeiro corte nas espigas para inaugurar a colheita, ou no dia da
ascensão ao trono e da unificação dos dois países, ou então no dia em que,
no meio do ressoar dos sistros e dos jogos de máscaras, se erigia o pilar de
Osíris, sem falar nos dias da lua e dos grandes dias da tríade do pai, da mãe
e do filho. Em dias tais havia na casa da servidão ganso assado e perna de
boi. E então Teófilo, o seu anão protetor, trazia para José toda espécie de
coisas boas e doces que ele pusera de parte para si no serralho: uva e figos,
tortas em forma de vacas deitadas, frutas no mel, e lhe cochichava:
—Toma,jovem da areia, isto é melhor que alho com pão. O anãozinho
tirou isto da mesa das reclusas depois que elas haviam acabado de comer.
Elas vão ficando demasiado gordas de tanto debicar e mastigar e não são
mais do que umas barulhentas patas recheadas, diante das quais eu danço.
Eia, fica com isso que te traz o anão. E que te faça bom proveito, porque os
outros não têm dessas guloseimas.
— E Mont-kav ainda não pensa em promover-me? — indagava José,
depois de agradecer ao oferente.
— Não, ainda não — respondia, abanando a cabeça, o pequeno Teófilo.
— Pelo que te diz respeito, é sonolento e surdo, não querendo nem ao
menos ouvir falar nisso. Mas o teu pequeno trabalha e governa o leme de
modo que a tua nau tenha bom vento. Deixa tudo a seu cargo. Está-se
esforçando para que Osarsif compareça na presença de Petepré e isso há de
acontecer.
Convém saber que José lhe tinha pedido insistentemente que fizesse
tudo para que de qualquer modo ele se visse na presença de Putifar. Isso,
porém, era quase irrealizável, e o anão, apesar de pronto a ajudá-lo, tinha de
proceder muito devagar e só por via de tentativas. Os serviços que se
relacionavam ainda que só de longe com a pessoa do senhor, especialmente
os serviços de quarto e da sua pessoa, eram confiados a mãos muito firmes
e zelosas. Não dera resultado a tentativa de admitir José no trato dos
cavalos, como dar-lhes de comer, almofaçar, aparelhar e desaparelhar os
sírios. Isto estava fora de cogitações. Não pôde nem ao menos levar os
animais ao cocheiro Neternacht e muito menos pô-los em frente do senhor.
Isto seria já um degrau para chegar até ele; mas era ainda um caminho
inacessível. Ainda não chegara o momento de falar com o senhor, não lhe
restando outra coisa senão ouvir os seus servos discorrerem a seu respeito,
incitá-los a falar nele e em geral nas coisas da casa à qual fora vendido, e
observá-los atentamente, em sendo possível, nas suas relações de serviço
com o senhor; e, em primeiro lugar, pôr-se a observar o mordomo Mont-kav
como já sucedera no princípio, às doze horas do dia da venda.
E cada dia repetia-se sempre a mesma cena de então. Via-o e ouvia-o.
Mont-kav adulava o senhor, anediava-lhe a barba, se é que fica bem esta
expressão em relação a um egípcio sem barba; falava para animá-lo — essa
devia ser a expressão mais exata —, descrevia a sua vida, exaltava o
esplendor da sua riqueza e a sua excelsa dignidade, recordava-lhe sempre,
confirmando e admirando, a audácia varonil com que se portava como
caçador e como amansador de cavalos, que fazia tremer o mundo inteiro. E
tudo ele fazia (disso José tinha certeza) não por si, não para granjear favor,
por amor ao amo, sem nenhum espírito de baixeza ou servilismo. Mont-kav
parecia um homem decente, não era cruel para com os que estavam por
baixo nem lisonjeiro para com os que estavam nas alturas; se adulava o seu
senhor, isso se devia tomar à boa parte, como expressão de um amor
genuíno, do desejo de, com palavras melífluas, proporcionar conforto ao
espírito do seu amo. Essa era a impressão de José, confirmada aliás pelo
delicado e ao mesmo tempo melancólico e triunfante sorriso com que o
amigo de Faraó, aquele homem alto como uma torre e no entanto tão
diferente de Rubem, acolhia aqueles serviços afetuosos. E quanto mais
José,como andar do tempo, aprendia a conhecer as condições da casa, tanto
mais claro lhe parecia que as relações de Mont-kav com o seu senhor não
eram mais que uma modificação da atitude recíproca de todos os moradores
daquela casa uns com os outros. Eram todos cheios de dignidade,
demonstrando uns aos outros mútuo respeito, ternura e lisonjeiras atenções.
O que havia era, pois, uma complacente delicadeza, um tanto fria e muito
cheia de cuidados. Assim procedia Putifar em relação à sua mulher Mut-
em-enet, e esta em relação a ele; assim os “santos pais do andar superior”
em relação a seu filho Petepré e este em relação a eles; assim eles em
relação à sua nora Mut e esta em relação a eles. Parecia que a dignidade de
todos eles — de resto tão favorecida pelas circunstâncias exteriores e que
dominava o seu procedimento porque tinha raízes muito profundas no
conhecimento que tinham de si e das coisas — parecia, dizíamos, que
aquela dignidade não se firmava em bases muito sólidas e que nela havia
alguma coisa de vazio, só aparente; por isso o esforço contínuo de todos
eles visava a consolidar-se reciprocamente no seu sentimento de dignidade
por meio da mais terna cortesia e amorosa veneração. Se naquela casa de
bênção havia alguma coisa de insensato e de doloroso, isto consistia
exatamente no que deixamos dito, e se estava oculta aí alguma angústia,
nisso se manifestava. Não dizia o seu nome, mas José julgou percebê-lo; a
ele parecia que esse nome era — dignidade vazia.
Petepré possuía muitos títulos e honrarias. Faraó o elevava muito e,
mais de uma vez, da janela da qual se mostrava ao povo, na presença da
família real e de todos os cortesãos, lhe atirara ouro do louvor, provocando
grandes aplausos entre a gente que executava cerimoniosos pulos de alegria.
Todas essas coisas contavam a José na casa dos servos. O senhor chamava-
se flabelífero à destra e amigo do rei. Tinha fundada esperança de ser
chamado um dia “amigo único do rei” (título dado a bem poucos). Era
comandante das tropas do paço, verdugo-mor e comandante das prisões
régias. Assim se chamava ele, mas eram cargos e títulos vazios ou quase
vazios que lhe tinham sido conferidos por mercê real. De fato (assim José
ouviu os servos contarem) comandava a guarda do corpo e era senhor das
execuções um soldado rude e primeiro capitão, um grande oficial de nome
Haremheb ou Hor-em-heb, que teria de prestar contas ao cortesão,
comandante titular, e diretor honorário da casa de correção; mas isto era
mera formalidade. Para o gordo homem-torre que lembrava Rubem, de voz
delicada e sorriso tristonho, era uma sorte não ter ele de dilacerar em pessoa
com quinhentas pauladas as costas das pessoas para “conduzi-las”, como se
dizia, “à casa do martírio e da execução” e “fazê-las tomar a cor de um
cadáver”, porque isto era pouco nobre para ele e certamente não seria do
seu gosto. Contudo, José compreendeu que, por causa dessa sua posição,
muitas vezes o seu senhor se enfurecia e tinha de sofrer mais de uma
humilhação dourada.
Assim era: o grau de oficial e comandante, conferido a Putifar e
simbolicamente expresso pela afinada e débil maça que terminava numa
pinha e que ele segurava na sua pequena mão direita, era uma ficção
honorífica que não só o fiel Mont-kav mas toda a gente e todas as
circunstâncias exteriores o ajudavam a toda hora a conservar bem viva na
consciência. No seu íntimo, porém, e sem ele mesmo o saber, de certo
sentia o que era: uma irrealidade, uma oca aparência. Mas como a adornada
maça era o emblema das suas dignidades vazias, assim (era ao menos o que
se afigurava a José) a semelhança podia avançar mais a fundo, até as raízes,
onde já não se tratava de questões de serviço e de ofício, mas de uma
dignidade natural e humana; o vazio dos cargos podia, por sua vez, ser um
símbolo do vazio de uma dignidade mais arraigada.
José possuía recordações extrapessoais referentes à inutilidade das
equivalências lisonjeiras, instituídas pelos costumes e convenções sociais,
diante da consciência obscura e muda aninhada nas profundidades do ser, e
que não se deixa enganar pelas luminosas ficções do dia. Pensava em sua
mãe. Sim, é estranho, mas enquanto indagava e revolvia na mente a
situação do egípcio Petepré, seu comprador e senhor, seus pensamentos se
voltavam para ela, a amável, para a sua confusão e turbamento, dos quais
ele tinha conhecimento; isso era um capitulo da sua pré-história e tradição.
Mais de uma vez Jacó lhe falara daquela época em que Raquel, mulher de
tão boa vontade, era estéril por decreto divino, tendo de ser substituída por
Bala, para que esta desse à luz, em vez do regaço de Raquel. José imaginou
ver aquele sorriso dúbio estampado na face da rejeitada de Deus, sorriso de
orgulho pela sua dignidade maternal que ela entretanto entendia ser uma
ficção e uma concepção honorífica, de acordo com o sentir humano, mas
sem fundamento quanto à sua própria carne e sangue. Aquilo representava
uma meia felicidade, um meio engano, escassamente amparado pelo uso,
mas no fundo vazio e abominável. Chamou em seu auxílio essas
lembranças ao indagar a situação de seu senhor, ao refletir no conflito entre
a consciência da carne e o expediente que tinha a sanção do uso. E claro
que Putifar tinha compensações muito mais numerosas e mais ricas do que
as que tivera Raquel na sua fingida maternidade. A opulência de Putifar,
todo o esplendor de dignidade da sua vida adornada de pedrarias e de penas
de avestruz, o habitual espetáculo dos escravos que se prostravam por terra,
das salas para estrangeiros, repletas de tesouros, dos celeiros e das tulhas a
transbordar, do seu harém cheio de gárrula palrice e das mentiras das
mulheres que, lambiscando guloseimas, formavam o acessório da vida do
senhor, entre as quais Mut-em-enet, a de braço de lírio, era a primeira e a
autêntica — tudo isto contribuía para conservar viva nele a consciência da
sua dignidade. E todavia lá no fundo, onde Raquel era cônscia da sua
secreta vergonha, Putifar devia saber no seu intimo que na realidade ele não
era comandante das tropas a não ser de nome, visto que Mont-kav achava
necessário adulá-lo.
Ele era um cortesão, um camarista e serviçal do rei, um personagem
altamente colocado, cumulado de honrarias e de bens, mas cortesão e nada
mais do que isto. E esta palavra tinha um recôndito sentido maligno, ou
melhor, ocultava dois conceitos afins que se haviam fundido num só; era
uma palavra que então não era mais — ou não era somente — usada no seu
significado original, mas em sentido metafórico, conservando além disso o
seu verdadeiro significado, de maneira que de um modo honorífico —
maligno e sagrado — tinha um sentido duplo e dava duplamente origem a
adulações, por causa da sua dignidade e da sua indignidade. Certa conversa
que José conseguiu apanhar (não por astúcia mas abertamente e por
questões de serviço) lhe prestou esclarecimentos sobre esse estado de
coisas.
A INCUMBÊNCIA

Noventa ou cem dias depois do ingresso de José na casa da honra e da


distinção, foi-lhe dada, por obra do anão Se’ench-Ven-nofre-Neteru-hotpe-
em-per-Amun, uma incumbência portadora de boa sorte e de execução
simples, bem que um tanto penosa e pesada. Estava ele, como de costume, a
trocar pernas pelo pátio de Putifar, de bom ou mau grado aguardando a sua
hora, quando o nanico no seu surrado traje de festa, trazendo na cabeça o
cone de feltro dos unguentos, veio correndo anunciar-lhe em voz baixa que
tinha alguma coisa para ele, um negócio que lhe trazia sorte, belo e bom de
ouvir-se, um ótimo ensejo para fazer progressos. Obtivera-o de Mont-kav,
que não dissera nem sim nem não, mas simplesmente o tolerara. Não que
José já devesse pôr-se na presença de Petepré, isto ainda não. — Escuta,
Osarsif, o que tens de fazer e a fortuna que te está reservada, graças às
solicitudes do anão que, pensando em ti, conseguiu obtê-la. Hoje, por volta
da quinta hora após o meio-dia, depois de terem repousado do almoço, os
santos pais do andar superior entrarão no templozinho de delícias do belo
jardim e aí ficarão sentados, a coberto do sol e do vento, gozando a fresca
da água e a paz da sua velhice. Eles gostam de ficar lá sentados, de mãos
dadas, cada um na sua cadeira, não ficando ninguém em volta deles nas
horas da sua tranquilidade, com exceção de um servo mudo que se conserva
de joelhos lá a um canto e segura uma tigela com refrescos, com os quais se
refocilam quando se acham exaustos de estar canto tempo pacatamente ali
sentados. Tu vais ser o servo mudo. Mont-kav deu ordem ou pelo menos
não o proibiu e tu segurarás a tigela. Porém não hás de mexer-te quando
estiveres de joelhos a segurar a tigela. Não hás de sequer bater as pálpebras,
senão lhes perturbas a serenidade e noca-se demais a tua presença ali.
Deves ser absolutamente um servo mudo e como uma figura de Ptach. Eles
estão habituados assim. Só quando os augustos irmão e irmã derem um
sinal de extenuação, então e só então deves pôr-te agilmente em movimento
sem te ergueres, e com a maior habilidade que puderes hás de oferecer-lhes
os refrescos, sem te atrapalhares com os teus joelhos nem causar qualquer
desastre com a tua carga. Depois que eles se restaurarem, deves recuar de
joelhos, sempre silencioso e ágil, até o teu canto e conservar o teu corpo de
modo que não respires nem faças notar a tua presença inconveniente, mas
hás de logo voltar à tua posição de servo mudo. Sentes-te disposto a
executar isto?
— Sem dúvida — respondeu José. — Obrigado, meu pequeno Teófilo.
Farei como disseste e quero até que os meus olhos se tomem de vidro.
Quero ficar igualzinho a uma estátua e não ter mais corporeidade a não ser
aquela que o meu corpo ocupa no espaço. Tão deveras hei de fazer o meu
papel. As minhas orelhas, porém, deverão conservar-se tacitamente abertas
sem que os santos irmão e irmã o notem quando discorrerem entre si em
minha presença, para que as condições internas da casa me digam o nome
deles e eu seja senhor deles no meu espírito.
— Muito bem — disse o anão —, mas não penses que seja tão fácil
ficar muito tempo como um servo mudo e andar para cá e para lá sobre os
joelhos, com a tigela na mão. Seria bom que te exercitasses primeiro
sozinho. Irás buscar os refrescos com o escrivão do aparador e não na
cozinha, mas na despensa da casa do senhor, onde tudo está pronto. Entra
pela porta da casa no átrio, vira à esquerda onde está a escada e por onde se
vai até a alcova da confiança, o quarto de dormir de Mont-kav. Atravessa-a
de raspão, abre a porta à direita e estarás numa comprida sala ou corredor,
cheio de mantimentos para a sala de jantar e que concluirás ser a despensa.
Encontras lá o escrivão que te entrega o necessário e tu o levas com
devoção pelo jardim diante da casinha, um pouco antes do tempo, de modo
que tu, por amor do céu, já te aches lá quando entrarem os santos. Ajoelhas-
te no canto e pões-te a escutar. Mal, porém, os vires chegar, não batas a
pálpebra, respira somente em segredo, até que eles demonstrem cansaço.
Sabes agora o que deves fazer?
— Perfeitamente — respondeu José. — Houve uma vez uma mulher
que foi transformada em estátua de sal porque se voltou para trás a olhar a
cidade da perdição. Assim quero ficar eu no meu canto, com a minha tigela.
— Não conheço esta história — disse Neteruhotpe.
— Vou contar-ta na próxima ocasião — disse José.
— Então conta-ma, Osarsif— murmurou o pequeno —, em
agradecimento por te ter eu arranjado o serviço de servo mudo. Conta-me
também algum dia a história da serpente na árvore e como o desagradável
matou o agradável e a outra história da arca do homem previdente. Também
me agradaria ouvir mais uma vez a história do sacrifício do menino que não
pôde realizar-se e bem assim a do homem liso que a mãe tornou áspero com
peles e que no escuro conheceu a noiva falsa.
— Sim — respondeu José —, dá prazer ouvir as nossas histórias. Mas
agora quero exercitar-me na corrida rápida sobre os joelhos para diante e
para trás e olhar a sombra do relógio a fim de ataviar-me a tempo para o
serviço e ir à despensa buscar os refrescos. Farei tudo como me disseste.
E assim fez. E quando cuidou que já sabia bem a corrida artística,
ungiu-se e enfeitou-se, envergou seu traje de festa, o saiote de baixo e o de
cima, mais comprido, que deixava aparecer o outro, meteu dentro dele a
blusa, que era de pano um pouco mais escuro não-corado, não se
esquecendo de ornar de flores a fronte e o peito para o serviço de honra para
o qual fora escolhido. Depois consultou o relógio do sol, que estava no
pátio entre a casa dos senhores e a dos servos, a da cozinha e o harém.
Atravessando o muro circular e a porta da casa, entrou no átrio de Putifar
que tinha sete portas de madeira vermelha encimadas por nobres e largos
ornatos e era sustentado por colunas redondas, também vermelhas, de
madeira reluzente como espelho, com bases de pedra e capitéis verdes. O
pavimento do átrio representava as constelações, com cem figuras: o leão, o
hipopótamo, o escorpião, a serpente, o bode, o touro eram vistos girando
entre toda a casta de figuras de deuses e reis; viam-se ainda o carneiro, o
macaco e o falcão coroado.
José atravessou obliquamente o pavimento e, debaixo da escada que
levava aos “quartos por cima dos quartos”, entrou por uma porta na câmara
da confiança, onde aquele que superintendia a casa, Mont-kav, se agachava
de noite para descansar. José, habituado a dormir com os escravos num
ponto qualquer da casa da servidão sobre a esteira do pavimento,
embrulhado no seu manto, deu uma vista d'olhos àquela alcova. Aí viu,
apoiado sobre pés de animais, o gracioso leito coberto de peles, sobre cuja
cabeceira se viam pintadas imagens de divindades protetoras do sono, o
torto Bes e Epet, o hipopótamo pejado. Viu as arcas, a bacia de pedra, o
braseiro, o candeeiro, e pensava com os seus botões que é preciso subir
muito na confiança para, no Egito, gozar de tais regalias. Por isso procurou
aviar-se depressa para o seu serviço e chegou ao comprido corredor das
provisões de boca, tão estreito que dispensava colunas e pilastras e ia para o
oeste até a parte posterior da casa, confinando não só com as salas dos
hóspedes, de recepção e de jantar, mas também com o terceiro peristilo
ocidental. Com efeito, além desse peristilo e do vestíbulo a leste, havia um
outro ao norte. Tamanha era a riqueza supérflua com que fora construída a
casa de Petepré! No corredor da despensa, como anunciara o anão, havia
uma série de prateleiras repletas de pratos e mantimentos: finita,
pães,bolos,latas de especiarias, tigelas, odres de cerveja, talhas de vinho
com longo gargalo sobre belos pedestais e flores para adorná-los. Aí José
encontrou Cha’ma’t, o comprido escrivão. Este, com as penas atrás das
orelhas, contava e escrevia seus apontamentos.
— Então, novato e janota do deserto — disse ele a José —, como te
enfeitaste! Isto aqui te agrada, hem? No país dos homens e perto dos
deuses! Já sei que tiveste permissão de servir os santos pais. Estás aqui na
minha tabela. Provavelmente foi Chepses-Bes que te arranjou esse encargo.
Porque, a bem dizer, que tens tu que ver com isso? Mas ele quis que te
comprassem logo e fez mesmo que teu preço subisse até o ridículo. Por que
vales realmente um boi, meu bezerro?
— Cuidado com as tuas palavras — pensou José de si para consigo —,
porque um dia serei certamente colocado acima de ti nesta casa.
E disse alto: — Faz favor, aluno da casa dos livros, Cha’ma’t, tu que
sabes ler e escrever e fazer mágicas, dá a este mesquinho suplicante o
refresco para Hui e Tui, os veneráveis anciãos, para que eu, servo mudo, o
tenha sempre pronto para a hora da fadiga deles.
— Sim, vou te dar — respondeu o escrivão —, porque estás na tabela e
aquele maluco o conseguiu. Segundo me é dado prever, derramarás a bebida
sobre os pés dos santos, e então te tirarão de lá e por tua vez receberás tanto
refresco até que te vejas exausto. Tu e aquele que to fornece.
— Graças a Deus eu prevejo as coisas de modo bem diverso — disse
José.
— Ah, sim? — perguntou o comprido Cha’ma’t e fechou os olhos. —
Avia-te, que afinal de contas a coisa é lá contigo. O refresco já está pronto e
tudo está assentado: o vaso de prata, a tigelinha de ouro cheia de suco de
romã, os calicezinhos dourados e cinco conchinhas do mar com uvas, figos,
tâmaras, frutas da palmeira doum e bolinhos de amêndoa. Não quererás
acaso prová-los ou talvez roubar um pouco?
José encarou-o firme.
— Bom. Quer dizer que o não farás — disse Cha’ma’t um tanto
confuso. — Melhor para ti. Fiz a pergunta, conquanto tenha logo pensado
que não hás de ter vontade que te cortem nariz e orelhas. Além disso não
deves ter mau costume. — E como José continuasse calado, prosseguiu: —
Disse-o somente porque é notório que os teus primeiros donos resolveram
brindar-te com o castigo do poço por causa de certas faltas que eu não
conheço. Talvez fossem coisas mínimas, não se tratando de delitos contra a
propriedade, mas apenas de questões de sabedoria; não posso sabê-lo. De
resto, dizem também que a punição te regenerou completamente, e se eu te
fiz aquela pergunta foi apenas por uma precaução de caráter geral...
— Mas que estou eu dizendo — pensou com os seus botões — e por
que deixo a minha língua correr por vias tortas? Admiro-me de mim
mesmo, mas — coisa estranha! — sinto um vivo desejo de continuar a falar
e de dizer tantas outras coisas que não me deveriam parecer urgentes e
todavia parecem.
— O meu cargo me impôs — disse ele — perguntar-te aquilo que te
perguntei. E dever meu averiguar a honestidade de um servo que não
conheço e por minha própria causa não posso deixar de perguntar, porque,
se vem a faltar alguma coisa entre a louça, sou eu quem paga. Eu, porém,
não te conheço, pois que a tua origem é obscura como é obscuro o interior
de um poço. Pode ser que daqui para diante se torne mais clara; mas o nome
que te dão, Osarsif (não é assim que te chamam?), parece significar, com a
sua terceira sílaba, que és um enjeitado, encontrado entre os juncos, e talvez
tenhas sido arrastado daqui para ali num cestinho de caniço até que te
trouxe para a terra alguma pessoa que foi tirar água. Coisas destas sucedem
às vezes neste mundo. Aliás pode o teu nome significar coisa diferente.
Deixo indecisa a questão. Como quer que seja, perguntei o que perguntei
porque era esse o meu dever, pelo menos segundo a convenção e a maneira
usual de falar. E essa a maneira usual, e é este o costume entre os homens:
que se fale a um jovem escravo como falei; e, segundo o tom comum,
chamam-lhe um bezerro. Naturalmente não era intenção minha dizer que
sejas um bezerro. Como podia ser isso? Mas falava simplesmente como
todos falam e segundo o acordo. Tampouco acreditava nem espero que tu
derrames o suco de romã nos pés dos santos; se o disse, foi simplesmente
seguindo a rudeza geral e de certo modo menti. Não é curioso neste mundo
que muitas vezes o homem não diga o que sente, mas diga aquilo que
acredita diriam os outros e fale seguindo a convenção?
— Logo depois de terminado o serviço — disse José —, eu te trago aqui
a louça e os restos do refresco.
— Bem, Osarsif. Podes sair por esta porta no fundo da despensa, sem
teres necessidade de fazer de novo o caminho pela alcova da confiança. Por
aqui logo chegas ao muro circular e te vês em frente à portinha desse
mesmo muro. Passa por aquela portinha, encontras-te entre árvores e flores,
vês o laguinho e logo te sorri o pavilhão do jardim.
José saiu.
— Foi-se — pensou Cha’ma’t, vendo-se só. — Tagarelei bastante, que
Deus se amerceie de mim. Não se pode imaginar que pensará de mim esse
asiático. Ah! Por que não falei somente como se eu fosse outra pessoa e
seguindo a convenção? Mas não. Passa-me de repente pela cabeça que
devia dizer-lhe algo de singularmente verdadeiro e disse tolices sem o
querer. Ainda me doem as bochechas! Cão tinhoso!
Se me aparece outra vez diante dos olhos, vou tratá-lo mal, exatamente
como é de uso!
HUI E TUI

Enquanto isso, José saíra pela portinha do muro circular e entrara no


jardim de Putifar. Viu-se entre formosos sicômoros, tamareiras e palmeiras
doum, entre figueiras, romãzeiras e abacateiros em perfeito alinhamento
sobre renques de verdura. Entre árvore e árvore cruzavam-se caminhos de
areia vermelha. Meio oculto entre arbustos, sobre um cômoro com uma
rampa, estava o gracioso e pintalgado pavilhão de recreio por cima do
laguinho quadrangular rodeado de canas de papiro. Nas suas águas
verdoengas nadavam patos de belas penas e entre flores de lótus singrava
uma leve barquinha.
Com sua bandeja de refrescos nas mãos, José subiu os degraus que
levavam ao quiosque. Conhecia o jardim, que era muito aristocrático e
elegante. De onde ele estava via-se, na outra margem do laguinho, uma
alameda de plátanos que ia dar à porta de duas torres rasgada no muro
externo meridional, e por essa parte podia-se entrar diretamente na
abençoada propriedade de Putifar. O pomar, com seus pequenos poços
cheios de água subterrânea, estendia-se ainda à margem oriental do
laguinho, vindo depois a vinha. Havia também lindos campos de flores aos
lados da alameda de plátanos e em volta do pequeno pavilhão. Devia ter
custado muito suor aos filhos da casa egípcia dos servos o trabalho de
prover de boa terra fertilizante um terreno como aquele, sáfaro na origem.
O pavilhão, com a frente para o lago, ladeado de brancas colunas com
estrias vermelhas, era bem mobiliado e constituía uma estância elegante e
de recolhimento, como que destinada a meditações solitárias, a um gozo
exclusivo e defendido pelo próprio pitoresco do jardim, e ainda a
sociedades íntimas, ou também à reunião de duas pessoas, como parecia
indicar um tabuleiro de jogo existente num canto sobre uma mísula.
Quadros naturais e alegres cobriam o branco fundo das paredes, ora com
ornatos florais, com deliciosas imitações de grinaldas estendidas ou
pendentes, de centáureas,, de flores amarelas de abacateiro, folhas de
videira, papoulas encarnadas, brancas folhas de lótus; ora viam-se
reproduções de cenas, também estas cheias de vida hílare, pois havia
manadas de onagros que pareciam estar soltando o seu zurro; um friso de
gansos de peito alto; escondido entre o juncal, um gato de olhos verdes
muito fitos; grous cor de ferrugem muito emproados; gente que abatia gado
e levava, em cortejos rumo ao sacrifício, pernas de boi e aves domésticas, e
ainda outras cenas que eram verdadeiro pasto para os olhos. Tudo aquilo
fora executado de modo excelente, parecendo brotar de uma relação alegre,
espirituosa e delicadamente irônica entre o artista e o seu objeto, com mão
ousada mas ao mesmo tempo comedida, a tal ponto que o observador se
sentia induzido a exclamar, rindo”Sim, sim. Oh! Que gato esplêndido
aquele! E como se pavoneia aquele grou!” E, no entanto, sentia-se elevado
a uma esfera mais rígida e ao mesmo tempo mais alegre, a uma espécie de
paraíso de bom gosto, fora de tudo quanto é rasteiro e prosaico. José,
contemplando tudo aquilo, se não encontrava palavra própria com que
qualificá-lo, compreendia tudo perfeitamente. Era cultura o que nessas
paredes lhe sorria; e o neto de Abraão, o filho mais jovem de Jacó, um tanto
mundano como era, propenso à curiosidade e aos triunfos juvenis da
liberdade, experimentava prazer pensando secretamente no pai, espiritual
em excesso, que desaprovaria todo aquele trabalho de pintores. “É tão belo
quanto é possível ser”, pensava ele, “vamos tolerar a coisa, velho Israel; não
estejas a censurar aquilo que os filhos de Keme souberam fazer de
mundano, com sorridente esforço, com alto gosto, porque pode dar-se o
caso que tal seja do agrado do próprio Deus! Vê, eu aprecio estas coisas,
acho-as encantadoras, feita a ressalva da tácita consciência em mim
arraigada, de que o mais importante, o essencial não consiste em transportar
a realidade para um plano celeste de gosto requintado, e que a preocupação
de Deus e do porvir constitui uma necessidade mais imperiosa e mais
urgente.”
Assim refletia José de si para consigo. Também o arranjo interior do
pavilhão era do mesmo bom gosto celestial: um elegante divã de ébano e
marfim descansando sobre garras de leão, com almofadas de pena e pele de
pantera e de lince; cômodas poltronas com espaldares de pele dourada, com
lavores artísticos; à sua frente banquinhos macios revestidos de coxins
recamados; caçoilas de bronze, sobre as quais ardia qualquer coisa
deliciosa. Mas o interior não somente era um abrigo, uma mansão de
recolhimento, senão também um lugar de devoção,uma capela. Pequenos
terafins de prata, com coroas de deidades na cabeça, estavam ao lado de
ramos de flores sobre um estrado elevado ou tribuna no fundo da ermida, e
numerosas alfaias de culto mostravam que ali se lhes prestava adoração.
Para que fosse encontrado sempre pronto, José ajoelhou-se no canto
próximo à entrada e, entrementes, poupando os braços, depôs o refresco à
sua frente sobre a esteira. Daí a pouco, porém, agarrou-o de novo
apressadamente e fez-se imóvel porque Hui e Tui vinham do jardim,
arrastando as sandálias de bico, cada qual amparado no braço de uma
criada, duas rapariguitas de braços finos e de boca estupidamente aberta. Só
a estas é que os velhos, o irmão e a irmã, queriam e toleravam para o seu
serviço e a elas se apoiavam para galgar a rampa até a casinha. Hui era o
irmão e Tui a irmã.
— Antes de tudo, inclinemo-nos diante dos senhores — ordenou o
velho Hui com voz rouca.
— Isto mesmo, isto mesmo — confirmou a velha Tui, que tinha uma
cara grande, oval, de tez clara. — Sobretudo, diante dos deuses de prata,
imploremos a sua permissão antes de começarmos o nosso repouso sobre as
cadeiras na paz da tenda de delícias.
Deixaram-se levar pelas raparigas diante dos terafins e aí ergueram as
mãos enrugadas e curvaram as costas que aliás já eram curvas, porque a
coluna vertebral de ambos fora dobrada pela idade, tomando-se gebosa.
Hui, o irmão, não tinha a cabeça muito firme, balançava-se bastante para a
frente e para trás e às vezes também para os lados. Tui, pelo contrário, tinha
ainda sólido o pescoço, mas seus olhos eram estranhamente escondidos
entre as rugas, parecendo não mais que um par de fendas cegas, que não
deixavam distinguir nem cor nem olhar, e um sorriso imóvel dominava
perenemente o seu rosto grande.
Depois que os pais acabaram de orar, as raparigas de braços finos os
acompanharam até as duas poltronas que estavam aparelhadas para eles,
voltadas para a fachada da casinha; ajudaram cautelosamente os dois
suspirantes a sentar-se, pegaram-lhes dos pés e os descansaram sobre as
almofadas orladas de cordões de ouro.
— Bem, bem, bem — disse Hui com um sussurro rouco, uma vez que
não dispunha de outra voz. — Podeis ir-vos, mocinhas, já fizestes por nós o
que era do vosso dever, nossas pernas estão firmes, os membros descansam,
tudo está bom. Ide-vos, ide-vos, que já estou cá sentado. Também tu estás
sentada, Tuí, minha irmã de leito? Então vai tudo bem. Ide-vos, pois, até
que vos tomemos a chamar. Retirai-vos, que queremos ficar sós, gozando a
finda hora do meio-dia e depois a do crepúsculo, estendendo a nossa vista
para lá dos juncos e do lago dos patos, para lá da alameda, até as torres da
porta na muralha protetora. Queremos ficar aqui sentados, sem que
ninguém nos perturbe, sem sermos vistos por ninguém, e trocar entre nós,
sem que ninguém nos ouça, as palavras íntimas da velhice.
José, entretanto, continuava de joelhos segurando a sua bandeja, em
linha oblíqua diante deles, no canto. Bem sabia que não era mais que um
servo mudo, que a sua presença não passava de uma presença de serviço, e
seus olhos vidrados atravessavam de raspão a cabeça dos velhos.
— Ide-vos, pois, meninas, obedecei à ordem suave — disse Tui, que,
em contraste com a rouquidão do seu irmão-marido, tinha uma voz cheia e
branda. — Ide-vos e ficai a uma distância tal que possais ouvir-nos quando
batermos as mãos para chamar-vos. Porque, se nos vier uma fraqueza ou se
a morte se nos apresentar de surpresa, bateremos palmas, sendo este o sinal
para que nos assistais e, se for o caso, façais voar das nossas boquinhas as
nossas almas aladas.
Prostraram-se as raparigas e em seguida se afastaram. Hui e Tui
estavam sentados um ao lado do outro, juntando por cima dos braços
internos das cadeiras suas mãos senis cheias de anéis. Um e outro tinham
cãs idênticas, duma cor de prata mareada, que em ambas as cabeças caíam
em escassas madeixas do ralo vértice sobre as orelhas quase até as costas.
No cabelo de Tui, a irmã, fora feita a tentativa, que não dera grande
resultado, de trançar na ponta duas ou três dessas madeixas para com isso
fazer uma espécie de franja. Quanto a Hui, usava debaixo do queixo uma
barbicha, também cor de prata baça. Usava brincos de ouro que se viam por
entre o cabelo, enquanto a velha cabeça de Tui tinha a rodeá-la uma larga
fita de esmalte preto-e-branco sobre a testa, representando pétalas de flores
— ornamento artístico que assentaria melhor numa cabeça menos
decadente. E que nós somos ciosos das coisas belas, em nome da fresca
juventude, e no nosso íntimo não quiséramos concedê-las a uma cabeça que
já é um crânio.
A mãe de Petepré trajava com discreta distinção. O seu vestido
alvíssimo tinha na parte de cima o corte de uma capa de pastor e em redor
da cintura uma faixa preciosa recamada e de várias cores, cujas
extremidades, em forma de lira, caíam quase até os pés. Adornava-lhe o
peito apergaminhado pela idade uma enorme gargantilha do mesmo preto-e-
branco esmalte que lhe cingia a fronte e a cabeça. Na mão esquerda tinha
um ramo de lótus que aproximava do rosto do irmão.
— Eis aí, velho tesouro meu — dizia. — Cheira com teu nariz o
perfume das flores sagradas, a beleza do pântano. Depois do fatigante
percurso desde o andar superior até este lugar de paz, restaura-te com a sua
fragrância de anis.
— Obrigado, esposa gêmea — disse roucamente o velho Hui, que
estava todo embrulhado num grande manto de fina lã branca. — Basta. Está
bom. Já senti o perfume e estou restaurado. A tua saúde! — disse,
inclinando-se para ela como um velho fidalgo empertigado.
— A tua! — retribuiu Tui. Depois ficaram algum tempo em silêncio,
contemplando com os olhos semicerrados a beleza do jardim, a nítida
perspectiva do lago dos patos, a alameda, os vergéis e as torres da porta. Os
olhos apagados e cansados de Hui tinham uma expressão de maior
ancianidade do que os da irmã, e ele mascava com a maxila inferior
desprovida de dentes, de sorte que a barbicha, na ponta do queixo, se mexia
para cima e para baixo com movimento regular.
Tui não mascava assim. A sua cara grande, inclinada para uma banda,
conservava-se tranquila e as escondidas fendas dos seus olhos pareciam
participar do seu perene sorriso. Tinha o costume de animar o espírito do
marido e de manter nele despertada a consciência do mundo que o cercava.
— Ah sim, meu velho sapinho, cá estamos. Sentados aqui com a
permissão dos serafins, estamos bem. As nossas delgadas rapariguitas nos
ampararam e nos colocaram aqui com todo o cuidado, encostando-nos às
almofadas das belas cadeiras, e se retiraram, e assim cá estamos sozinhos os
dois, como o casal divino no ventre materno. Apenas na nossa caverna não
há escuridão, senão que nos é dado deliciar a vista na sua beleza, nos
graciosos quadros, nos móveis de caprichosas formas. Vê que descansaram
os nossos pés sobre macios coxins guarnecidos, como prêmio, porque há já
tanto tempo vão peregrinando sobre a terra, sempre juntos os dois pares. Se
erguemos os olhos, vemos que sobre a entrada desta caverna abre as suas
sarapintadas asas o belo disco solar, ladeado de serpentes, Homs, o senhor
do lótus, o filho do abraço sombrio. Sobre o suporte à nossa esquerda
puseram uma bela lâmpada de alabastro do escultor Mer-em-opet e no canto
à direita está ajoelhado para nosso serviço o servo mudo, trazendo nas mãos
coisinhas agradáveis, que estão à nossa disposição apenas as queiramos. Já
as queres, meu alcaravão?
Com voz horrivelmente roufenha o irmão respondeu:
— Eu bem que quero, querido arganaz, mas receio que só o desejem o
espírito e o paladar, mas não o estômago, que se oporia tenazmente,
rebelando-se dentro de mim, provocando-me um suor frio e uma angústia
mortal, se eu lhe desse alguma coisa antes do tempo.
Melhor será esperarmos até que estejamos exaustos e sentirmos
verdadeiramente necessidade de restaurar as nossas forças.
— Tens razão, meu ranunculozinho amarelo — disse Tui, e depois da
voz dele, a dela soou branda e cheia. — Modera-te, que assim será melhor.
Tu ainda viverás muito tempo e o servo mudo não fugirá com os seus
refrescos. Olha como ele é formoso e jovem; é delicadamente belo como
todas as coisas que se oferecem aos nossos olhos de velhos santos. E
coroado de flores, como um odre de vinho: são flores das árvores, flores do
juncal, flores dos canteiros. O olhar dos seus lindos olhos negros roça a tua
orelha, não vê o lugar onde estamos sentados, mas estende-se além, indo até
o fundo desta casa, olhando assim o futuro. Percebes o meu jogo de
palavras?
— E fácil compreendê-lo — grasnou Hui, fazendo um esforço. — As
tuas palavras aludem à destinação desta formosa tenda na qual são
guardados por algum tempo os mortos da casa e depositados atrás de nós,
diante dos serafins de prata nos seus escaparates pintados, sobre artísticos
cavaletes, depois de lhes terem os médicos e embalsamadores retirado as
vísceras e de os terem enchido de nardo e faixas. Depois os colocarão sobre
o navio e, tomando a subir o rio, os acompanharão a Abodu onde jaz
sepulto ele próprio, e se lhes fará uma bela sepultura do estilo daquela que
se faz para Ápis e Merver e para Faraó, encerrando-os afinal na casa boa e
eterna, nas suas salas das pilastras, onde a vida lhes sorri daquelas paredes
coloridas.
— Dizes bem, meu castor palustre — respondeu Tui. — Com espírito
claro compreendeste o jogo das minhas palavras e o seu significado, como
eu também compreendo num instante aquilo a que aludes com as tuas, por
mais que as floreies; porquanto estamos muito acostumados um com o
outro como velhos cônjuges irmãos que praticaram juntos todos os jogos da
vida, primeiro na infância, depois na virilidade. Com tais palavras não fala
impudicamente a tua velha toupeira, porque estamos sós aqui na casinha.
— Bem está, bem está — disse o velho Hui, indulgente. — Assim foi a
vida, a vida a dois, do princípio ao fim. Estivemos muito no mundo e entre
a gente do mundo, porque fomos educados nobremente e perto do trono. No
fundo, porém, ficamos sempre sós os dois na casinha: na casinha da nossa
condição de irmãos, como nesta; primeiro no seio materno, depois na
casinha da infância e mais tarde na escura alcova do matrimônio. Agora,
como dois velhinhos, estamos sentados aqui, na bonita estância da nossa
velhice contemplativa, refugio fugaz, uma construção leve para o nosso
refugio durante o dia. Mas um abrigo eterno está reservado ao santo
parzinho na tumba de pilastras do Ocidente, que nos encerrará
definitivamente por incontáveis jubileus e de cujas escuras paredes sorriem
os sonhos da vida.
— De acordo, minha boa espátula! — disse Tui. — Mas não é esquisito
que nós neste momento estejamos aqui sentados nas nossas cadeiras, na
parte dianteira do templozinho, conversando... e dentro em pouco tenhamos
de repousar ah, no fundo, sobre cavaletes com patas de leão, nos nossos
invólucros, com os pés verticais, e por cima das nossas faces haverá outras
com barbas divinas sobre o queixo: o Osíris Hui, o Osíris Tui, e sobre nós
se reclinará Anúbis, o de orelhas fitas?
— E de fato bem singular — regougou Hui. — Eu, porém, não o posso
explicar e evito todo esforço do espírito, porque tenho a cabeça muito
cansada; tu, pelo contrário, tens ainda pensamentos vigorosos e o teu
pescoço é ainda tão sólido. Isto me preocupa bastante, porque é possível
que tu, na tua frescura, não te vás comigo e fiques aí nessa cadeira, ao passo
que eu jazerei estendido, e me deixes andar sozinho pela via estreita.
— Fica sossegado, meu mochozinho! — disse ela. — A tua toupeira
não te deixará ir só; e se acontecer que exales antes dela o último suspiro,
ela introduziria no estômago uma dose de coalho que faz coagulara vida e
de novo estaríamos juntos. E absolutamente imprescindível que eu esteja ao
teu lado depois da morte para te ajudar a aduzir as razões e a achar os
pensamentos para a nossa justificação e explicação, quando chegar o
momento do juízo.
— Haverá juízo? — perguntou Hui, inquietando-se.
— Convém contar com isso — respondeu Tui. — Essa é a doutrina.
Todavia não está bem assente que ela ainda esteja em vigor. Há doutrinas
que são como casas abandonadas; estão de pé, ficam de pé, mas ninguém
nelas habita. A respeito disso já falei com Beknechons, o grande profeta de
Amun, e perguntei-lhe se ainda existe a sala das deusas da justiça, e a
balança que pesa os corações, e se ainda se realiza o interrogatório na
presença do Ocidental, a cujos lados estão sentados os quarenta e dois de
nome terrível. Beknechons não me falou claro. A doutrina subsiste,
respondeu ele à tua toupeira. Tudo dura eternamente na terra do Egito, tanto
o velho como o novo, edificados um ao lado do outro, visto que o país está
cheio de figuras de construções e doutrinas, de mortos e de vivos, e entre
eles se anda com decência. Com efeito, aquilo que é morto é mais sagrado
ainda, é a múmia da verdade, e deve-se conservá-lo eternamente para o
povo, ainda que abandonado pelo espírito da nova doutrina. Assim disse
Beknechons, o sábio. Ele é o fiel servo de Amun e cheio de zelo pelo seu
deus. O rei das regiões inferiores, com o leque e o cajado recurvo, o
interessa menos, e pouco o preocupam as histórias e doutrinas desse grande
deus. O fato, porém, de ele chamar-lhe edifício abandonado e verdade
enfaixada ainda não nos dá a certeza de que não tenhamos de comparecer
em juízo, como crê o povo, de explicar a nossa inocência e deixar pesar os
corações na balança antes que Thot nos livre dos quarenta e dois pecados e
o Filho nos tome pelas mãos e nos conduza diante do Pai. É preciso esperar
por tudo isto. Assim a tua coruja deve imprescindivelmente estar ao teu
lado, assim como esteve na vida, para que tome a palavra diante daquele
que troveja na sala, diante daqueles de nome terrível, e explique os nossos
atos no caso de te veres à míngua de razões e se no momento decisivo não
te ocorrer a justificação. Pois o meu morcego uma vez ou outra fica com a
mente um pouco turva.
— Não digas tal! — gritou Hui, extremamente rouco. — Se eu estou
turvado e cansado, isso provém de que pondero muito tempo as razões e
explicações; mas o turvado das ideias também pode falar daquilo que lhas
turvou. Não fui eu que pus em campo a ideia e que acendi na escuridão
sagrada o pensamento do sacrifício e da reconciliação? Não o podes negar,
porque de nós, irmão e irmã, sou eu o homem, eu o gerador — a falar
verdade, um homem da escuridão, na minha qualidade de teu irmão no
sagrado regaço da nossa câmara nupcial, mas não tão escuro e turvado de
espírito que não tenha espancado a antiga treva com a ideia de fazer um
pagamento a prazo à nova doutrina santa.
— E eu neguei isso? — retrucou Tui. — A tua velha absolutamente não
nega que foi o seu homem da escuridão quem trouxe tudo isto à baila, que
foi ele quem começou a distinguir entre o santo e o magnífico, isto é, o
novo mundo, que talvez esteja na ordem do dia e que provavelmente será a
nossa meta, sendo prudente levar-lhe uma oferenda para reconciliá-lo
conosco. — E movendo para um lado e outro a grande cara de olhos
fechados nas rugas, como fazem os cegos, acrescentou: — Com efeito, a tua
ratinha não via isso. Eu repousava na santidade antiga, incapaz de
compreender o que quer que fosse da nova ordem.
— Não, não — objetou-lhe Hui, grasnando —, tu compreendeste muito
bem quando eu trouxe o caso à baila, pois que apanhas tudo no ar com
suma facilidade, embora não sejas dotada de grande inventiva. Tu
compreendeste bem a intenção do irmão e a sua ansiedade com referência à
nova ordem e à idade. Se assim não fosse, como terias consentido no
sacrifício e no pagamento? E quando digo “consentido”, ainda não digo o
que baste, porque me parece com isso ter-te ensinado apenas a preocupação
com a idade e com a ordem do dia; mas a ideia de consagrar o tenebroso
filho do nosso santo enlace ao esplêndido tempo novo, subtraindo-o ao
antigo, partiu de ti.
— Como podes dizer isto? — perguntou a velha, afetando melindres. —
Para mim tu és um astuto rei das codornizes, porquanto agora parece ter
sido eu a que propôs toda esta questão, querendo tu, no fim das contas,
atirar sobre mim a responsabilidade diante do deus inferior e daqueles que
têm nome terrível. Ah, ladino! No máximo eu entendi aquela ideia e tive-a
de ti, depois que tu, homem, ma sugeriste, assim como tive de ti Horus, o
nosso filhinho das trevas, Petepré, o cortesão, ao qual transformamos em
filho da luz; e consagramo-lo ao magnífico depois de uma inspiração que de
ti veio e que eu guardei, choquei e dei à luz, como Ísis, a mãe. Mas como
agora se trata de justificar-nos, agora que perante o juiz se fará patente
termos procedido às tontas e cometido um erro, agora, meu maroto,
quiseras descartar-te, afirmando ter sido eu que o gerei sozinha e por minha
própria iniciativa!
— Não digas asneiras! — crocitou ele com despeito. — Ainda bem que
estamos sós neste pavilhãozinho e ninguém ouve os disparates que dizes.
Eu próprio quis ser o homem e acendi a ideia na escuridão, mas tu me
imputas e me acusas de ter quase sustentado que procriação e nascimento
podem entrelaçar-se e ser uma coisa só, como sucede nos brejos e no
negrume da vasa fluvial, onde a borbulhante matéria materna abraça a si
mesma e se fecunda no escuro, o que não se verifica no mundo superior,
onde o homem visita decorosamente a mulher.
Ele tossiu e mascou com as maxilas. Sua cabeça oscilava
insistentemente.
— Minha cara rubeta — disse depois —, não te parece ter chegado o
instante de pôr em movimento o servo mudo para que nos traga refrescos?
Pois a mim me parece que o teu sapo já está bastante extenuado com esses
pensamentos e que suas energias se consumiram com o esforço de trazer à
baila os motivos e de pôr bem patente a justificação.
José, que até esse momento os espiava de esguelha, imóvel, impassível,
já se apercebia para a ágil corrida sobre os joelhos; mas ainda não era hora
porque Hui continuou:
— Creio, porém, que não foi um verdadeiro exaurimento, mas a
agitação produzida por essa fadiga, o que me fez pensar no refresco, e acho
que o estômago agitado o expeliria. Não há no mundo coisa que mais
preocupe o espírito do que a ansiedade pela ordem do dia e pela idade; é
esta a preocupação essencial, superada apenas talvez pela da comida.
Primeiro deve o homem comer e saciar-se, é verdade; mas ainda bem não
acabou de fartar-se e se livrou desse cuidado, salteia-o a preocupação por
aquilo que é santo, a dúvida de se ainda é santo ou se já é odiado, porque
despontou uma nova idade e urge apressar-se para estar ao corrente da
ordem do dia recentemente proclamada e reconciliar-se com ela mediante
algum sacrifício, para não perecer. Mas já que nós, irmão e irmã cônjuges,
somos ricos e distintos, tendo naturalmente os mais finos manjares, para nós
não há coisa mais importante e que mais conturbe o espírito do que isto. E
há já algum tempo vacila a cabeça do teu velho batráquio por causa dessa
agitação com a qual se podem facilmente cometer tremendos dislates só
porque a gente quer fazer bem as coisas e reconciliar-se...
— Fica tranquilo, meu pinguim — atalhou Tui —, e não encurtes sem
necessidade a tua vida, agitando-te demasiado. Se houver um juízo e a
doutrina ainda tiver validade, falarei eu, tomarei a palavra por nós dois e
explicarei amplamente o nosso ato expiatório, para que os deuses e os de
nome terrível o compreendam e não o adicionem com as quarenta e duas
más ações e Thot nos absolva.
— Sim — disse Hui —, bom é que fales tu, porquanto tu te lembras
melhor da coisa e não andas tão agitada com ela como eu, porque de mim a
tiveste e a compreendeste, e assim se fala melhor. Eu, o gerador, poderia
facilmente embaraçar-me na minha grande agitação e pôr-me a gaguejar
ante aqueles juízes, arriscando a partida. Tu deves ser a nossa língua para
nós ambos, porque, como sabes, na escorregadia escuridão da caverna a
língua tem uma natureza dupla e está para os dois sexos, como o brejo e a
borbulhante vasa que abraça a si mesma, antes que na ordem superior o
homem visite a mulher.
— Tu, porém, costumavas visitar-me decorosamente, como o homem
visita a mulher — disse ela; e, com os olhos quase escondidos pelas rugas e
graciosamente pudica, movia para um lado e para o outro a grande cara. —
Deves tê-lo feito frequentemente e durante muito tempo até que sobre nós
desceu a bênção e a irmã te fosse conjugalmente fecunda. Com efeito, já
desde o começo da nossa vida os pais nos haviam santamente unido, mas
tiveram de passar muitos anos, talvez uns vinte, até que se tornou fecunda a
nossa condição de irmãos, até que gerássemos. Então te dei Petepré, o
cortesão, o nosso Horus, o belo lótus, o amigo de Faraó, em cujo andar
superior nós, santos velhos, passamos agora os nossos últimos dias.
— Isto mesmo, isto mesmo — confirmou Hui. — Foi exatamente como
disseste, com decoro e até com santidade; mas havia alguma coisa que não
andava bem para a suposição tácita e para a preocupação secreta de quem se
incomoda com a idade e quereria ficar ao corrente da ordem do dia. Nós,
efetivamente, homem e mulher, geramos, sim, com decoro superior, mas o
fizemos no quarto escuro da nossa fraternidade, e o abraço de irmão e de
irmã, dize-me, não é assimilável ao da profundidade que a si mesma se
abraça, e semelhante ao ato gerador da borbulhante célula materna, que não
pode ver a luz nem as potências da nova ordem?
— Sim, já mo lembraste tu, como marido — disse ela —, e isto me
contristou, tendo eu até sentido contra ti um pouco de animosidade por
comparares o nosso belo conúbio com um borbulhar de pântano, sendo ele
devoto e honesto, em harmonia com o costume mais nobre e aceito dos
deuses e dos homens. Há alguma coisa mais religiosa do que a imitação dos
deuses? No entanto, eles geram todos no próprio sangue e se unem
conjugalmente com a mãe e a irmã. Está escrito”Eu sou Amun, que pôs
pejada sua mãe.” Mas assim está escrito porque toda manhã a celeste Nut
pare o Dardejante; ao meio-dia, porém, já feito homem, ele próprio gera
com sua mãe o novo deus. Ísis não é ao mesmo tempo irmã, mãe e mulher
de Osíris? Já por antecipação e antes do nascimento os augustos irmão e
irmã se abraçavam conjugalmente na concha do ventre materno, onde
estava tão escuro e escorregadio como na mansão da língua e como na
profundeza do brejo. Mas sagrada é a escuridão e venerável no juízo dos
homens o matrimônio segundo esse modelo.
— Dizes bem estas coisas e dize-as com razão — respondeu Hui,
roufenho e cansado. — Mas na escuridão se abraçaram também os falsos
irmão e irmã Osíris e Nebthot, o que foi grave erro. Por isso a luz vingou-
se, a luz magnífica, que odeia a escuridão materna.
— Sim, assim falas e falaste tu como marido e senhor — replicou ela —
e estás naturalmente pelo magnífico, enquanto eu como mãe estou pelo
sagrado, pela antiga usança piedosa, e por isso as tuas opiniões me puseram
triste. Nós somos gente nobre, nós velhos, vizinhos do trono. Mas a grande
consorte não era quase sempre irmã de Faraó, segundo o modelo divino, e
precisamente como irmã destinada a ser mulher do deus? Ele, cujo nome é
uma bênção, Men-cheper-Rá-Tutmés, a que deveria abraçar como mãe de
deus, a não ser Hatchepsuts, sua santa irmã? Ela nascera para ser sua
mulher e eles eram de carne divina. Marido e mulher deviam ser uma só
carne; e se o são logo desde o princípio, o conúbio deles é o próprio decoro
e não um mero borbulhar das profundezas. Assim eu nasci para ti na união e
para a união e os nossos nobres pais nos destinaram um para o outro desde
o nosso nascimento, porque eles bem supunham que o casalzinho de deuses
já se tivesse abraçado na caverna.
— Nada disto sei e de nada me posso recordar — respondeu rouco o
velho. — Do mesmo modo poderíamos muito bem ter brigado na caverna e
ter-nos escoicinhado, o que ignoro, porque não se tem nenhuma lembrança
daquela fase da vida. Mesmo fora contendemos algumas vezes, como bem
sabes, embora não tenhamos, como é natural, chegado ao ponto de agredir-
nos um ao outro, porquanto éramos educados nobremente, respeitávamo-
nos, éramos um prazer para os homens e vivíamos felizes, em harmonia
com a mais nobre usança. E tu, minha toupeira, estavas perfeitamente
contente, igual a uma vaca sagrada de cara satisfeita, sobretudo depois de
estares fecundada e de me dares Petepré, o nosso Horus, tu, irmã, mulher e
mãe.
— Tal qual — confirmou Tui, meneando tristemente a cabeça. — Eu
estava santamente satisfeita, eu toupeira e vaca sagrada, na concha da nossa
felicidade.
— Eu, porém — prosseguiu ele —, nos dias vigorosos do meu espírito
era um homem bastante robusto e, conforme o meu sexo, suficientemente
afim do que há de magnífico no mundo, de sorte que não podia satisfazer-
me com as velhas usanças pias. Eu tinha bastante que comer e pensava.
Sim, agora me recordo, as trevas da minha mente se dissipam e neste
momento eu poderia exprimir tudo em palavras diante do juízo dos mortos.
Nós vivíamos de acordo como modelo de deuses e de reis, em completa
harmonia com os piedosos costumes e com inteira satisfação dos homens.
Contudo, em mim, homem, havia um espinho e uma preocupação pela
vingança da luz. Com efeito, a luz é magnífica, isto é, máscula; e odioso é
para ela o borbulhar da escuridão materna, da qual o nosso procriar era
ainda vizinho e ainda pendia do seu cordão umbilical. Vê, urge cortar esse
cordão umbilical, para que o bezerro se separe da vaca-mâe e se tome o
touro da luz. Pouco importa saber que doutrinas ainda são válidas e saber se
depois do nosso derradeiro suspiro ainda vai haver um juízo. Importante é
unicamente a questão da idade e se os pensamentos segundo os quais
vivemos ainda estão na ordem do dia. Só isto importa, depois de se ter
matado a fome. Agora, porém, chegou ao mundo aquilo que eu adivinhava
há muito: que o princípio másculo romperá o cordão umbilical entre ele e a
vaca e quer estabelecer-se no trono do mundo para reinar sobre a substância
materna, de modo que funde a nova ordem da luz.
— Sim, isto me ensinaste — disse Tui. — E como eu estava contente na
sagrada caverna, aceitei com agrado o teu alvitre e por tua causa o acolhi,
porque a mulher ama o homem e por isso ama e acolhe também os seus
pensamentos, ainda que não sejam os dela. A mulher pertence ao sagrado
por amor do homem e senhor, mas ama o magnífico. E assim nos decidimos
pelo holocausto e pela reconciliação.
— Foi o que fizemos — concordou o velho. — Hoje eu poderia explicá-
lo claramente diante do rei do mundo inferior. Ao nosso Horus, que
geramos no antro escuro como o casal fraterno Osíris e Ísis, queríamos
arrancá-lo ao reino obscuro e consagrá-lo ao mais puro. Era esse o nosso
pagamento parcial à nova idade, a respeito do qual nos pusemos de acordo.
Não pedimos o seu parecer, mas dele fizemos o que fizemos. Foi talvez um
erro, mas a intenção era boa.
— Se foi erro — respondeu ela —, somos ambos responsáveis, porque
de comum acordo resolvemos fazer assim com o nosso filho da escuridão;
mas, assim procedendo, tu tinhas as tuas ideias e eu as minhas. Pelo que diz
respeito à minha parte de mãe, eu não pensava tanto na luz e na sua
pacificação como na grandeza do nosso filho e na sua honra sobre a terra.
Com essa preparação eu queria fazer dele um cortesão, um camarista, um
empregado do rei, para que, pela sua própria disposição natural, fosse
predestinado ao posto de coronel honorário e Faraó derramasse presentes de
ouro sobre a cabeça daquele que era consagrado ao seu serviço. Eram estes,
para falar com franqueza, os meus pensamentos, que me reconciliaram com
este ato de conciliação, o qual, confesso, me foi penoso.
— Era mais que justo — disse ele — que acolhesses lá a teu modo o
meu alvitre e que da tua parte fizesses o que estava em ti para que se
realizasse o nosso ato que amorosamente realizamos pelo nosso filho,
quando ele ainda não tinha uma opinião. Quanto a mim, não desprezei as
vantagens que de tal preparação resultaram para o menino consagrado,
segundo as tuas ideias de mulher; mas as minhas eram ideias de homem e
eram endereçadas à luz.
— Ah, velho irmãozinho — disse ela —, as vantagens que daí
resultaram para ele são, segundo o meu modo de ver, bem necessárias, de
maneira que podemos mencioná-las não só nesta prova dos nossos corações
na sala dos ínferos, mas também na presença do nosso filho. Ainda que ele
se comporte tema e devotamente para conosco, pais venerandos, e ainda
que na sua casa ele tenha em bom lugar os nobres pais, parece-me todavia e
às vezes receio ler nos sinais do seu semblante que ele, lá no seu íntimo,
conserva contra nós certa animosidade por termos feito dele um cortesão
sem pedir-lhe o seu parecer e sem que ele de nada soubesse, quando não lhe
era possível qualquer oposição.
— É demais — respondeu o rouco Hui, irritando-se — que ele murmure
contra os sagrados pais do andar superior! A sua missão de filho
consagrado é reconciliá-los com a idade e com a ordem do dia; e uma vez
que disso lhe vêm vantagens as mais lisonjeiras, que lhe trazem todos os
bens, não tem nada que fazer caretas. Nem quero acreditar que ele as faça,
muito menos contra nós, porque é homem por natureza e por espirito e por
conseguinte afim do que há de magnífico, de modo que não duvido que ele
aprove o ato propiciatório de seus procriadores e que se sinta orgulhoso da
sua constituição.
— Está bem, está bem — disse ela, fazendo um aceno com a cabeça. —
No entanto, tu próprio não estás certo, meu velho, se o talho com que
cortamos o cordão umbilical entre ele e a obscuridade da mãe tenha sido um
erro. O nosso filho consagrado acaso se tornou com isso o touro do sol?
Não, pois é apenas um cortesão da luz.
— Não estejas a servir de eco aos meus escrúpulos — advertiu Hui com
voz rouca —, porquanto eles são de ordem secundária. O escrúpulo
supremo é a preocupação pela idade e a ordem do dia e pela concessão
conciliadora. Está na própria natureza da concessão que as coisas não se
verifiquem com absoluta pureza e que tenham um resultado um tanto
grotesco, apesar da bondade das intenções.
— Bem, bem — disse ela de novo —, e está fora de dúvida que o nosso
Horus tem com isso as mais invejáveis consolações; e é indiscutível que na
sua qualidade de camarista do sol e empregado honorário ele tem
compensações extraordinárias de natureza espetacular. Mas há ainda Eni, a
nossa norazinha, Mut-em-enet, a formosa, a primeira da casa, a esposa
legítima de Petepré. Também a respeito dela às vezes tenho preocupações,
eu, mulher e mãe. Porque, embora se mostre amável e pia para conosco,
todavia suspeito que ela também, lá no intimo da sua alma, sinta uma leve
irritação e acalente uma secreta censura contra os pais, por termos feito do
filho um cortesão, não sendo ele um verdadeiro coronel das tropas, mas
tendo apenas esse titulo. Acredita-me, a nossa Eni é muito mulher para, no
seu íntimo, amuar-se conosco, e eu, do meu lado, sou muito mulher para
ler-lhe no rosto o seu despeito quando ela não consegue bem dominar-se.
— Ora, vamos! — respondeu Hui. — Eni seria a ingratidão
personificada se escondesse no peito tal animosidade e rancor. Pois ela tem
tantas consolações e superconsolações como Petepré, e não quero crer que a
roa o verme da inveja de coisas terrenas, porquanto caminha na estrada de
deus e se chama segunda mulher de Amun, adida à casa da mulher do deus
em Tebas. E alguma coisa ou não passa de uma bagatela ser Hathor, esposa
de Rá, e dançar com as outras mulheres da ordem diante de Amun, com o
traje da deusa, tão chegado ao corpo que aparecem suas linhas, e cantar
diante dele com acompanhamento de timbales, tendo sobre a cabeça a coifa
de ouro com os chifres e no meio deles o disco solar? Não se pode dizer que
isto seja alguma coisa ou uma bagatela, senão que é uma superconsolação, e
da espécie mais esplêndida, que lhe toca como esposa honorária do nosso
filho, senhor desta herdade; e os pais dela sabiam bem o que faziam,
quando lha deram por mulher, como primeira e legítima, desde quando
eram ambos ainda crianças e entre eles não podia haver nenhum conúbio
carnal. E assim ficou bem, porque era um matrimônio de honra e como tal
se conservou.
— Sim, sim — replicou Tui —, por necessidade se conservou tal.
Todavia quando eu, como mulher que sou, penso no caso, percebo que é
uma dura situação mostrar-se esplendente de honras à luz do dia, mas uma
tristeza durante a noite. Mut-em-enet se chama a nossa filha, e é um
antiquíssimo nome da mãe. Mas não lhe é possível nem lícito tomar-se mãe,
por causa do cargo do nosso filho na corte, e receio que ela no seu íntimo
nos guarde rancor por isso e por trás das ternuras que aparenta oculte o seu
ódio.
— Que não seja uma pata — ralhou Hui —, nem a ave da terra prenhe
de água! E o que, da minha parte, mando dizer à nossa nora se se nos
mostra amuada. Nem fica bonito que tu, mulher e mãe, lhe tomes as dores
contra o nosso filho. Não gosto de ouvir semelhantes coisas. Desse modo
ofendes muito o nosso Horus e além dele também a natureza feminil que
pensas defender, e a denigres perante o mundo, como se, apesar de toda a
boa vontade, não fosse possível vê-la debaixo de outra forma que não a da
fêmea pejada de um hipopótamo. Verdade é que por natureza tu não és mais
que uma toupeira e que fui eu que, na minha qualidade de homem, te sugeri
a ideia da nova idade e do pagamento parcial. Mas tu não a saberias
conceber e compreender e não te deixarias levar ao ato expiatório sobre o
nosso filho se nenhum caminho conduzisse da natureza da mulher ao
magnífico, ao mais puro, e se a ela não tocasse uma participação nisso. Será
mesmo necessário que sempre e somente a terra negra e prenhe seja a sua
imagem e a sua parte? Nada disso, senão que, qual sacerdotisa, casta como
a lua, a mulher pode aparecer na sua plena dignidade. Eu mando dizer à tua
Eni que não seja uma pata! Por ser a primeira e legítima mulher do nosso
filho, está ela incluída entre as primeiras mulheres de todos os países; à
grandeza dele é que ela deve o título de amiga da rainha, de Teje, a esposa
do deus; a ele também deve o ser chamada esposa divina do harém
meridional de Amun, da ordem de Hathor, a que preside, como superiora e
como primeira mulher do harém, a mulher legítima de Beknechons, o
grande profeta. A consolação espiritual vai tão longe que ela é mesmo uma
deusa com os chifres e com a imagem do sol e, segundo a sua condição
sagrada, uma branca monja da lua. Não condiz, pois, magnificamente com
tudo isto que o seu matrimônio terreno seja uma auréola de honra e que o
seu marido deste mundo seja um filho da expiação e um cortesão da luz?
Segundo o meu modo de ver, condiz insuperavelmente, e o que eu lhe
mando dizer, para o caso de não ter ela suficiente compreensão dessa
conveniência, tu o sabes.
Tui respondeu, abanando a cabeça:
— Não lho posso dizer, meu velho, porque ela não dá aos sogros
nenhum motivo para uma tal advertência e, como se costuma dizer, cairia
das nuvens se eu executasse a tua incumbência e lhe conferisse o título de
pata. A nossa Eni é altiva, tão altiva como Petepré, seu marido e nosso
filho, e nenhum dos dois conhece outra coisa que não seja a sua altivez:
sacerdotisa da lua e camareiro do sol. Não vivem felizes e altamente
considerados na presença da luz, em harmonia com os usos mais senhoris, e
não agradam aos homens? Que outra coisa deveriam conhecer além da sua
altivez? E ainda que soubessem outra coisa, não o admitiriam, não o
confessariam à sua alma, mas dariam sempre toda a honra só à altivez.
Como poderia, incumbida por ti, chamar pata à nossa nora se ela não o é,
mas sabe orgulhosamente que foi posta de reserva para o deus e de toda a
sua pessoa se exala um perfume agreste como das folhas do mirto? Quando
falo de sentimento e de aflição, não penso no dia nem nas honras do dia,
mas na noite silenciosa e na escuridão materna, e aqui é inútil ralhar, usando
nomes como o de pata. Se tu temeste a vingança da luz por causa do nosso
matrimônio obscuro, eu, como mulher, temo algumas vezes a vingança das
trevas maternais.
Neste ponto Hui começou a rir baixo, provocando em José um ligeiro
susto, de maneira que ele se mexeu um pouco com os seus refrescos e
durante um momento perdeu a impassibilidade de servo mudo.
Rapidamente retirou o seu olhar do fundo da cabana e o dirigiu para os
velhos para indagar se eles tinham notado a sua assustada agitação; mas
nada acontecera. Inteiramente absorvidos na conversa a respeito do seu ato
comum, não reparavam nele como não reparavam na lâmpada de alabastro,
obra do escultor Mer-em-opet, a qual estava no canto oposto. Por isso
voltou de novo os olhos para um lado, de sorte que o olhar, de olhos quase
vítreos, passando próximo à orelha de Hui, de novo se dirigiu para o fundo.
Mas ainda se sentia um pouco agitado depois do que ah ouvira; e agora que
o velho Hui começava com a sua risada de decrépito, foi tomado de
penosos sentimentos.
— Ih, ih! — fazia Hui. — Nada de medo. A escuridão é muda e nada
sabe do seu mau humor. O filho e a nora são altivos e nada sabem de amuo
e de rancor contra os paizinhos que então assim procederam, fazendo do
javalizinho um leitão capado, pois que ainda não tinha discernimento, mas
esperneava e não podia defender-se. Ih, ih.
ih, nada de medo; o amuo e o rancor estão confinados no recato da
escuridão, e, ainda que ousassem aparecer um pouquinho à luz, seriam
obrigados pelas regras do decoro a mostrar-se delicados com os seus pais
tão altamente colocados, conquanto um dia lhes tenhamos pregado uma
peça para nossa própria vantagem. Ih, ih, ih, duas vezes ligados, duas vezes
seguros, duplamente selados, nada há que fazer contra os pais tão bem
instalados no andar superior!
A princípio Tui se mostrara atônita e inquieta com o proceder do seu
irmão-marido, mas depois deixou-se influenciar pelas suas palavras e
também ela riu baixinho, fechando os olhos em cegas fendas. Com as mãos
juntas sobre o ventre, os ombros arqueados para a frente, as velhas cabeças
enterradas entre os ombros, lá estava o casal sentado sobre suas esplêndidas
cadeiras, cacarejando suas risadinhas.
— Sim, ih, ih! — cacarejou Tui. — Tens razão. A tua toupeira percebe
o gracejo. Pregamos uma peça a nossos filhos, mas estamos duplamente
garantidos contra a sua raiva. Houve astúcia e cautela. E por feliz me dou
que o meu velho sapo esteja alegre e tenha esquecido o seu medo dos
interrogatórios na sala dos mortos. Mas agora não sentes desejo de te
restaurar? Não estás exausto e não queres que eu chame o servo mudo para
que nos traga os refrescos?
— De nenhum modo — respondeu Hui. — Nem sequer um indício de
esgotamento se faz sentir no meu organismo. Sinto-me fresco e
reconfortado com a nossa conversa. Poupemos o apetite para a hora da ceia,
quando toda a família se reúne na sala de jantar e cada um aproxima
delicadamente do nariz do outro o raminho de lótus para que lhe sinta a
fragrância. Batamos antes as palmas chamando as empregadinhas, para que
nos levem a passeio pelo pomar, porquanto os meus membros reanimados
sentem desejo de movimentar-se.
E bateu as mãos. As rapariguitas acorreram pressurosas, com a
boquinha aberta denotando zelosa estultícia, ofereceram aos velhos os
frágeis bracinhos e os ajudaram a subir a rampa e a retirar-se.
José, soltando um grande suspiro, pôs no chão a sua carga. Seus braços
estavam quase paralisados pela cãibra, como quando os ismaelitas o tiraram
do poço.
— Que gente tola, valha-me o senhor — pensava ele —, esses santos
paizinhos! Mas eu pude lançar uma vista d’olhos nas penosas e recônditas
condições desta casa de bênção, da qual Deus se amerceie. Donde se vê que
viver nos paramos etéreos do gosto requintado não livra uma pessoa de
cometer as mais tremendas loucuras. Como gostaria de contar a meu pai
quão nesciamente estes pagãos desconhecem a Deus! Pobre Putifar!
E estirou-se um pouco ah sobre a esteira para descansar os membros do
fatigante serviço de servo mudo, antes de ir entregar os refrescos a
Cha’ma’t.
JOSÉ PONDERA ESTAS COISAS

O que José pudera ouvir durante o seu serviço tinha-o consternado e


comovido, trazendo muito ocupados os seus pensamentos. Era bem
profunda a repugnância que sentia pelos santos paizinhos, e se tinha a boca
fechada era por prudência e como uma demonstração de respeito, e não
porque estivesse cercado das trevas da ignorância, pois nem a sua aversão
pela irresponsável estupidez dos velhos nem o seu horror pela satisfação
com que eles sabiam estar nobremente garantidos contra quaisquer censuras
podiam de modo algum enfraquecer a clareia com que via as coisas.
Não lhe escapou tampouco a lição que continham para ele, neto de
Abraão, as experiências que acabava de fazer; e ele não seria José se não se
sentisse logo pronto a tirar proveito de tudo aquilo. O que acabara de ouvir
vinha a propósito para dilatar o seu horizonte, para premuni-lo contra o seu
costume de enxergar na sua estreita pátria espiritual, no mundo dos seus
pais e no esforço destes para conhecerem a Deus (aquele mundo de que
José era um rebento e um discípulo) algo de incomparável e de único,
qualquer coisa que só acontece uma vez. Não era só Jacó que se preocupava
com o mundo. Aquilo sucedia em toda parte entre os homens; em toda parte
os homens sentiam a mesma ânsia de averiguar esse problema do Senhor e
dos tempos — embora essa angústia levasse aqui e ali a conclusões
grotescas, e o pensamento hereditário de Jacó a respeito do Senhor lhe
oferecesse os mais sutis e eficazes meios de provas em torno da absorvente
questão da distância que possivelmente viera separar uso e costume da
vontade e do desenvolvimento deste Senhor.
E todavia, como o erro também aqui era palpável! Não era sequer
necessário pensar em Labão, que se detivera na origem e no seu filhinho
encerrado num odre. Então faltara simplesmente uma certa argúcia que
permitisse saber-se até que ponto o uso já se havia convertido em
abominação. Mas precisamente a desenvolvida sensibilidade por tais
mudanças podia arrastar alguém ao erro. As melancólicas preocupações
com referência à festa acaso não haviam induzido Jacó à tentação de
destruí-la e todos os seus usos, por causa das suas raízes que podiam ter-se
nutrido na sujidade ínfera? O filho tivera de suplicar-lhe que poupasse a
festa, a árvore que espalhava sua sombra e lançava ao ar a sua copa e que,
como o Senhor, se erguera da terra, mas que definharia se a desarraigassem.
José era pelo perdão, não pelo extirpamento. Ele via em Deus, que afinal
não fora sempre o que era, um Deus do perdão e da passagem, que nem
ainda no caso do dilúvio levara as coisas ao ponto extremo, até a raiz da
humanidade, senão que despertara num ser inteligente a ideia da arca da
salvação. Inteligência e perdão pareceram a José pensamentos gêmeos, que
podiam andar com as roupas um do outro e tinham também um nome
comum — o nome da bondade. Deus havia tentado Abraão para que lhe
sacrificasse o filho, mas depois não lho tomou, senão que de modo
instrutivo o substituiu pelo carneiro. A tradição daquela gente, conquanto se
guindasse ao celeste reino do gosto, não tinha histórias assim tão sensatas.
Era necessário ser um pouco indulgente com eles, apesar de se tornarem
intoleráveis com aquele seu risinho abafado com que troçavam da peça por
eles pregada aos filhos. Também para eles viera uma advertência do espírito
paterno na forma de uma emoção confusa, que não saíra ainda do reino das
trevas, e segundo a qual o homem deve alçar-se acima do que é
tradicionalmente sagrado, acima do uso, em demanda de uma luz mais viva;
e também eles tinham percebido a exigência do sacrifício. Contudo, a
exemplo de Labão, como se haviam pertinazmente aferrado ao antigo no
mesmo momento em que procuravam fazer uma concessão ao novo neste
mundo! E que a eles, aos abandonados de Deus, não aparecera nenhum
carneiro do qual pudessem fazer o carneiro da luz; a vítima fora mesmo
Putifar, o seu filhinho a debater-se na treva.
Podia-se chamar a isto uma forma de obrar contrária à vontade divina e
caracterizá-la como louca inépcia de uma consagração ao magnífico, ao
novo no mundo. Com efeito, pensava José, a aproximação do espírito
paterno não se verifica mediante o extermínio, sendo profunda a diferença
entre a perfeição da bissexualidade e a ausência de sexo no estado de
cortesão. A androginia, fusão de duas potências sexuais, era divina como a
figura do Nilo com um peito de mulher e um de homem e como a lua que
era mulher para o sol, mas másculo para a terra, para a qual com a sua
semente deitou o gérmen do touro na vaca. A relação de tudo isto com o
estado de cortesão era, no conceito de José, como dois para zero.
Pobre Putifar! Com toda a magnificência de seus carros de rodas de
fogo, com toda a sua grandeza entre os grandes do Egito, ele era um zero. O
jovem escravo Osarsif tinha como senhor um zero, uma torre-Rubem sem
força nem capacidade de pecar, um holocausto errado, não rejeitado nem
aceito, um “nem... nem”, nem humano nem divino, muito arrogante e
solene no dia claro das suas honras, mas cônscio da sua qualidade de zero
na noite da sua existência, e extremamente necessitado do apoio da pompa e
da adulação que as circunstâncias lhe ofereciam, e particularmente a
solicitude do seu fiel Mont-kav.
Á luz dos conhecimentos recentemente adquiridos, José entrou de novo
a considerar aquela aduladora fidelidade de servo e não hesitou em achá-la
digna de imitação. E assim se passaram as coisas: apoiado naquilo que
pudera ver, prestando serviço como servo mudo, resolveu, assim que se lhe
apresentasse a ocasião, prestar “auxílio ao seu senhor egípcio, segundo o
modelo de Mont-kav e, disso ele tinha certeza, com maior fineza e
satisfação do amo. Desse modo, dizia consigo, “ajudaria” mais eficazmente
outro amo, o Altíssimo, a elevar o jovem escravo Osarsif no mundo para o
qual fora transplantado.
A bem da verdade, tendo chegado a este ponto, urge afastar de José a
censura de fria especulação que moralistas demasiado apressados não
deixarão de fazer-lhe. As coisas não eram assim tão simples para um
veredicto moral. Já desde bastante tempo José observava Mont-kav, o servo
mais antigo da casa, e queria-lhe parecer que ele era um homem de bem,
cujo servilismo em relação ao senhor merecia um nome melhor: o nome de
serviço de amor. E daí concluía que Petepré, o chefe nominal das tropas,
merecia esse serviço de amor. Essa inferência era confirmada pelas próprias
impressões que José tinha da pessoa do senhor. Segundo lhe parecia, esse
grande do Egito era pessoa nobre e digna, de espírito delicado e bondoso.
Se gostava de fazer os outros tremerem por sua causa, esse fato era
imputável à sua conformação de vítima da ignorância espiritual. Achava
José que se lhe devia reconhecer um certo direito a um pouquinho de
maldade.
Compreende-se. José já servia Putifar, defendia-o e procurava prestar-
lhe auxílio diante de si mesmo e nos próprios pensamentos, ainda antes de
entrar em relação direta com ele. Antes de tudo, o egípcio era o amo a quem
ele fora vendido, o altíssimo na sua esfera imediata; e por índole e sempre
José associava à ideia de Amo e de Altíssimo um elemento de
complacência deferente, transferível do plano superior ao plano inferior e,
até certo ponto, aplicável ao caso terrestre da sua própria vizinhança.
Convém que sejamos bem compreendidos. O pensamento de Amo e de
Altíssimo já criava uma ordem unitária que permitia estabelecer certa
mutabilidade e uma equivalência entre o plano superior e o inferior. Esta
inclinação de José era favorecida pelo conceito de “ajuda” por sua conjetura
de que a melhor maneira de ajudar o Amo dos sonhos maravilhosos
consistia em “prestar auxílio” a seu amo Petepré, tomando Mont-kav como
exemplo. Além disso, José projetava proceder de tal modo que as suas
relações com o Senhor do céu se refletissem de certo modo sobre as suas
relações com o senhor das rodas chispantes. Ele vira o melancólico, altivo e
secreto sorriso com que Putifar acolhera as lisonjas do mordomo; vira a
solidão irremediável que aquele sorriso traduzia. Poderá ser uma
puerilidade dizê-lo, mas entre a solitária posição fora do mundo que
ocupava o Deus dos pais e a altiva extra-humanidade coberta de dádivas de
ouro, da arruinada torre-Rubem, José achava uma semelhança que desafiava
idênticos sentimentos de simpatia. Sim, também o Senhor Deus era solitário
na sua grandeza e José tinha no sangue e na memória a ideia da
contribuição que a soledade de Deus sem mulher e sem filhos trazia para a
explicação do grande ciúme que Ele tinha do pacto concluído com os
homens.
Lembrava-se do particular beneficio que a fidelidade do servo presta ao
homem solitário e da dor especial que a sua infidelidade lhe causa. Como é
natural, não se esquecia de que Deus nada tinha que ver, conforme a sua
natureza, com a geração e com a morte, unicamente porque Ele era ao
mesmo tempo Baal e Baalat; não perdia de vista, nem por um instante, a
profunda diferença entre dois e zero. Nós, todavia, não faremos mais que
definir a situação tacitamente estabelecida, dizendo que para ele certas
simpatias e indulgências se confundiram quimericamente, e assim decidiu
guardar ao necessitado zero a fidelidade humana com que costumava render
homenagem ao dois, o augusto necessitado.

JOSÉ FALA DIANTE DE PUTIFAR

E com isto chegamos àquele primeiro e decisivo encontro e colóquio de


José com Putifar, no jardim. Desse encontro não há notícia em nenhuma
outra das fontes aceitas; nenhuma das variadas narrações desta história no
Oriente e no Ocidente, em prosa ou em verso, lhe faz a menor alusão. É,
pois, mais um detalhe a ajuntar-se aos inúmeros outros de que pode gabar-
se esta nossa narrativa, que o traz a lume, como aos outros todos,
incorporando-o à tradição corrente.
É certo que José deveu indiretamente a Bes-em-heb, o vizir bufão, o
encontro por que tanto suspirava e que realmente foi decisivo para o seu
porvir, conquanto não tenha sido exatamente o anão que propiciasse tal
encontro, mas tão-somente lhe suscitasse as condições preliminares. Essas
condições consistiam no seguinte: o jovem escravo Osarsif, o qual andava a
ocupar-se ora aqui ora ah em misteres mais ou menos supérfluos, um belo
dia foi posto como jardineiro no jardim de Putifar. Bem entendido, não
como primeiro jardineiro. O primeiro jardineiro era um certo Chun-Anup,
filho de Dedi, também conhecido por Pança Queimada, por causa da sua
barriga, avermelhada pelo sol, que, como o astro no seu declínio, caía sobre
o saiote amarrado por cima do umbigo. Era um homem da mesma idade de
Mont-kav, mas de classe inferior, apesar de competente no ofício que
presidia: conhecia as plantas, sua vida e propriedades, não só enquanto
serviam de ornamento e para o uso da casa, mas ainda no que dizia respeito
à sua força benéfica e maléfica. Assim era ele na casa não só jardineiro,
canteiro e florista, mas também boticário e charlatão, conhecedor de sucos
de plantas, perito em decoctos, extratos, unguentos, eméticos e cataplasmas
de que lançava mão para homens e bichos em caso de enfermidade; para
homens, entretanto, apenas quando se tratava de servos, porque para os
senhores havia um médico hábil e severo do templo do deus, que os ajudava
a viver ou morrer. Vermelha era também a calva de Chun-Anup, porque ele
desprezava o capuz, e atrás da orelha costumava trazer uma flor de lótus,
como um escrivão trazia o junco. Da sua cintura pendiam sempre molhos de
ervas de toda espécie ou amostras de raízes, brotos e mudas que ele, de
passagem, ia arrancando ou cortando com a sua tesoura, a qual, com um
cinzel e um serrotezinho, lhe ia batendo no quadril. Era robusto e tinha uma
cara rubicunda e não antipática; tinha um nariz cheio de caroços e uma boca
que, com singular deformação, se erguia na direção do nariz, não se sabia
bem se com aborrecimento ou com agrado seu; o rosto — coberto de pelos
da barba, que cresciam irregularmente e que jamais haviam sido rapados,
pendendo como fibras de raízes e reforçando o cunho telúrico do semblante
de Pança Queimada — era tão afogueado que lhe fazia piscar os olhos. O
curto dedo terroso, de um vermelho cor de cinábrio, com que ele ameaçava
os seus subordinados quando não queriam trabalhar, lembrava muito um
nabo recém-arrancado do solo.
O pequeno Teófilo dirigira-se, pois, ao jardineiro-chefe a propósito do
estrangeiro comprado, o qual, como lhe sussurrava o anão, desde a infância
era habilíssimo e muito prático em coisas da terra e das suas dádivas, uma
vez que, antes de ser vendido, cuidava, na sua pátria, o mísero Retenu, do
olival de seu pai, e por causa do fruto brigara com os companheiros, que
apanhavam as azeitonas jogando-lhes pedras e depois não as pisavam
direito. O anão contou ainda que José tivera tão boa arte que lhe fizera crer
que herdara um feitiço ou que recebera uma espécie de bênção dupla: das
alturas do céu e das profundezas que ficam debaixo da terra. Ora, nada mais
adequado do que isto a um jardineiro. Chun-Anup devia portanto tomar a
seu serviço aquele rapaz que andava ocioso com grave prejuízo da herdade:
aquele era o conselho que lhe dava a pequena sabedoria, e ninguém jamais
se arrependera de lhe ter seguido as sugestões.
Assim falou o vizir, porque tomara a peito o desejo manifestado por
José de comparecer diante do senhor, e bem sabia que a ocupação no jardim
apresentava as mais favoráveis perspectivas para a satisfação daquele
desejo. Efetivamente, como todos os grandes do Egito, o flabelífero gostava
do seu parque irrigado; na vida que sucederia à sua vida terrena esperava ter
um igual, de que obteria os mesmos gozos. Em diversas horas do dia
descansava e passeava nele e, quando lhe dava na veneta, parava e punha-se
a conversar com os jardineiros, não só com Pança Queimada, o chefe, mas
com os outros, com os cavadores e os que regavam a terra. Baseado nesse
seu hábito foi que o pigmeu estudou o seu plano que deu esplêndido
resultado.
José foi, pois, chamado por Pança Queimada para cultivar o jardim,
tendo-lhe sido designado como ponto de trabalho o vergel ou, mais
propriamente, o palmar que, situado ao sul do principal corpo de edifícios,
confinava ao oriente com o lago dos patos, estendendo-se ainda mais para o
oriente e para a praça até a vinha. O próprio jardim das palmeiras já era
uma vinha, porque entre os altos fustes coroados de palmas pendiam festões
de vide, havendo de espaço a espaço umas aberturas servindo de caminho.
As parreiras estavam carregadas de uvas e as palmeiras folhudas davam
tâmaras, várias centenas de litros cada ano; esta união de plantas frutíferas
era um espetáculo paradisíaco, um deleite para os olhos, não sendo pois de
estranhar que Petepré fosse particularmente afeiçoado ao palmar com os
seus poços de irrigação cavados em diversos pontos; e muitas vezes
mandava afofar ali um leitozinho para escutar o seu leitor ou para ouvir o
relatório dos seus escrivães à sombra das frondes sussurrantes.
Foi este então o posto de trabalho marcado para o filho de Jacó. Era
aquela uma ocupação que trazia à sua mente, de modo reflexivo, doloroso,
um objeto querido da sua vida precedente, perdido em circunstâncias
terríveis — o véu, a túnica de várias cores, o kuttonet passim seu e de sua
mãe. Entre as figuras bordadas sobre aquela túnica havia uma que, quando
pela primeira vez a viu na tenda de Jacó, quando a veste da esposa pendia
fulgurante entre os braços do pai, lhe havia causado uma impressão
estranha; representava uma árvore sagrada a cujos lados estavam, um em
frente do outro, dois anjos barbudos e, para fecundá-la, haviam-lhe tocado
com o cone da flor masculina. José devia fazer agora o trabalho daqueles
dois gênios. A tamareira é uma árvore dioica e a polinização dos seus
exemplares fecundos com o pólen daquelas árvores que não têm flores com
pistilo e estigma, mas apenas flores com estames, fica a cargo do vento. O
homem, porém, desde os tempos antigos tirou do vento essa incumbência,
recorrendo a uma fecundação artificial, de modo que com as próprias mãos
levava as inflorescências de uma árvore estéril e as punha em contato com
as inflorescências de árvores fecundas, tomando-as assim férteis. Era essa
justamente a operação com que se ocupavam os gênios do véu junto à
árvore sagrada e foi essa precisamente a incumbência que cometeram a
José. Pança Queimada, o filho de Dedi, jardineiro-chefe de Putifar, lhe
confiou essa tarefa.
Confiou-lha tendo em vista a sua robustez de moço e a sua agilidade,
porque fazer o que faz o vento é trabalho fatigante, que exige coragem para
trepar e segurança contra vertigens. Com auxílio de uma corda acolchoada
especial que fica ao mesmo tempo amarrada em volta do próprio corpo e do
tronco, o homem, munido de um recipiente de pau ou de um cestinho, deve
trepar até a copa da árvore que tem flores masculinas, pousando os pés
sobre os restos de galhos ou quaisquer outras saliências e pontos de apoio
que se encontrem no fuste escamoso da palmeira; e com os movimentos de
um condutor de carro que deixa livres as rédeas aos cavalos, lança a corda
de ambas as partes lá na altura a que tenha chegado: atingido o topo, deve
cortar as panículas, recolhê-las com precaução no recipiente, em seguida
descer de novo e do mesmo modo trepar no tronco de uma árvore fecunda e
depois em outro ainda e assim por diante e aqui e ali “fazer cavalgar” as
panículas providas de semente, isto é, pô-las nas inflorescências providas de
ovários, para que estas concebam e deem depressa tâmaras dum amarelo
claro que já se podem apanhar e comer, se bem que as legítimas e boas são
as que amadurecem nos meses quentes de Paoli e Hathyr.
Com o seu dedo terroso e vermelho como um rabanete, Chun-Anup
mostrou a José aquelas dentre as palmeiras que tinham flores masculinas,
poucas, mas podendo cada uma fecundar outras trinta. Deu-lhe a corda, o
melhor artigo do país, não uma corda de cânhamo, mas fibra de cana,
perfeitamente amolecida, batida, tomada flexível. Da primeira vez observou
ele próprio a José quando este se atava com a corda, pois que era ele o
responsável e não queria que aquele novato caísse da árvore e deixasse ah
expostas as suas vísceras, fazendo o senhor perder o valor da aquisição.
Mas quando viu que o rapaz era hábil e quase não tinha necessidade de
amarrar-se, senão que com a agilidade com que subira na árvore poderia
envergonhar um esquilo, quando viu também que fazia o seu trabalho com
atenção e inteligência, abandonou-o a si mesmo e lhe prometeu que, se
executasse com sucesso aquela tarefa, de modo que as árvores fecundadas
dessem frutos abundantes, teria outra ocupação no jardim, chegando em
breve a ser um autêntico jardineiro.
Ambicioso como era por amor ao seu Deus, José, além do acicate dessa
promessa, achou grande gosto no audaz e engenhoso trabalho e, para
impressionar o jardineiro-chefe com um trabalho tão rápido quão perfeito
que lhe causasse admiração (efeito que José procurava produzir em todos os
homens), desempenhava a sua tarefa com grande zelo, um dia depois do
outro, até as últimas horas da tarde. Ainda depois do pôr-do-sol, quando no
ocidente, por trás do lago dos lótus, por trás da cidade e do Nilo, se podia
admirar cada dia o esplendor inenarrável do céu de cor carmesim e de tulipa
vermelha, quando já o jardim estava vazio de todos os demais
trabalhadores, José ficava ainda sozinho ao pé das suas árvores ou, para
dizer melhor, dentro delas, aproveitando os últimos instantes da luz, que
rapidamente desaparecia, para “fazer cavalgar”. Estava ele cautelosamente
sentado a trabalhar sobre o topo de uma palmeira fecunda de alto fuste
oscilante, quando percebeu embaixo qualquer coisa que se debatia e
sussurrava, e, olhando para baixo, reconheceu o nanico Teófilo, que,
parecendo daquela altura pequeno como um cogumelo, lhe fazia acenos
com os seus bracinhos e depois, enconchando as mãos diminutas na boca,
lhe sussurrou o mais alto que pôde: — Osarsif, aí vem ele! — E
imediatamente desapareceu.
José apressou-se em deixar o seu delicado trabalho e deslizou pela
árvore abaixo mais depressa do que quando trepara. Uma vez no chão,
averiguou que, realmente, pelo caminho aberto entre as videiras e palmeiras
se aproximava, da banda do lago, Putifar, o senhor, com um reduzido
séquito, solene, branco sob o céu rubro, acompanhado do mordomo Mont-
kav, que andava quase ao seu lado e somente um pouco de esguelha atrás
dele, de Dudu, o superintendente dos escrínios de joias, de dois escrivães da
casa e de Bes-em-heb, o mensageiro, que por vias travessas de novo se
reunira ao séquito. “Ei-lo”, pensou José, dirigindo o olhar ao senhor, “ei-lo
que anda pelos jardins a gozar a fresca da tarde.” E quando já o grupo se
aproximara bastante, prostrou-se ao pé da árvore e escondeu a fronte na
terra, conservando erguidas somente as palmas das mãos para o cortejo que
chegava.
Vendo no chão aquele dorso curvado a um lado do caminho, Petepré
parou, com ele parando os do seu grupo.
— Põe-te de pé — disse lacônica mas brandamente. José, com um único
movimento rápido, obedeceu à ordem. Estava ele junto do fuste da palmeira
em postura modesta, com as mãos cruzadas sobre o peito e de cabeça baixa.
O seu coração estava extraordinariamente disposto e atento. Chegara o
momento. Estava diante de Putifar. Este parara à sua frente. Era preciso não
deixá-lo ir depressa demais. O que agora importava era fazê-lo ficar
maravilhado. Que pergunta faria? Provavelmente alguma que tomasse
possível uma resposta apta a enchê-lo de pasmo. José esperava, sempre de
olhos baixos.
— Pertences à casa? — ouviu a delicada voz perguntar concisamente.
Poucas possibilidades oferecia aquela pergunta. No máximo com a boa
maneira de oferecer a resposta e apenas com a substância desta era possível
dar à mesma um cunho que, se não enchesse de assombro o interrogante, ao
menos o tomasse disposto a escutar bondosamente e, antes de mais nada, o
impedisse de continuar logo o seu caminho. José murmurou:
— O meu grande senhor sabe tudo. Está aqui o último e o mais vil dos
seus escravos. O último e o mais vil dos seus servos pode ser chamado
ditoso.
— Medíocre! — pensou. — Não se irá logo embora? Não. Primeiro
perguntará por que ainda estou aqui. Devo dar-lhe uma resposta de truz.
— Es um dos jardineiros? — ouviu a doce voz indagar, depois de um
breve silêncio. Respondeu:
— Tudo sabe e vê o meu senhor, como Rá, que no-lo concedeu. Sou o
ínfimo dos seus jardineiros.
E a voz soou de novo:
— Mas que é que te retém ainda aqui no jardim numa hora em que
todos se retiram e os teus companheiros já largaram o trabalho e comem o
seu pão?
José deixou a cabeça pender ainda mais sobre as mãos.
— O meu senhor, que estás à testa das milícias de Faraó, tu, grande
entre os grandes dos países! — disse ele, suplicante. — Tu és igual a Rá,
que anda na sua barca através dos céus com todo o seu séquito. Tu és o
timão do Egito, e a barca do reino navega segundo a tua vontade. Es o mais
próximo de Thot, que julga sem distinção. Dique de proteção dos pobres,
desça sobre mim a ma compaixão como a saciedade que faz aplacar a fome.
Como uma roupa que põe fim à nudez, venha sobre mim o teu perdão por
ter eu ficado a trabalhar junto às mas árvores até a hora do teu passeio no
jardim e por ter-te servido de tropeço no teu caminho.
Silêncio. Era possível que Petepré estivesse trocando olhares com os do
seu séquito ao ouvir aquele súplice discurso tão cuidado, que, se traía um
certo acento de aspereza, era hábil, lhano, um pouco formalístico, mas não
destituído de uma nota de real sinceridade. José não via se ele estava
olhando para os seus, mas esperava. Prestando-se bem atenção, podia-se
perceber que o amigo de Faraó sorria levemente quando disse:
— Zelo e aplicação ao trabalho mesmo fora de horas não provocam a
ira do senhor. Toma fôlego. Es, pois, tão zeloso na tua ocupação e amas
tanto o teu trabalho?
Neste ponto José achou oportuno levantar a cabeça e os olhos. Os olhos
de Raquel, negros e profundos, encontraram-se a notável altura com uns
olhos castanhos como os do corço, olhos mansos e um tanto tristonhos, de
longas pestanas; velados com certo orgulho, mas com uma penetração bem-
humorada, esses olhos fitavam os de José. Diante dele estava Putifar,
grande, gordo, vestido com elegância, com a mão apoiada no disco da sua
alta maca, colocado no alto, um pouco abaixo do castão de cristal, e na
outra mão o abana-moscas e uma pinha. A colorida faiança do seu colarinho
imitava flores. Polainas de couro protegiam-lhe as tíbias. Igualmente de
couro, cortiça e bronze eram as suas sandálias, cujos atacadores lhe
passavam entre o dedo maior e o segundo do pé. Sua cabeça bem-feita
estava inclinada enquanto ele escutava e do alto da testa pendia uma flor de
lótus.
— Como poderia eu deixar de amar, meu grande senhor, o ofício de
jardineiro — respondeu José — e não ser zeloso se ele agrada aos deuses e
aos homens, se o trabalho da enxada supera em beleza o do arado e ainda
muitos outros trabalhos, se não a maioria deles? Ele honra quem o exerce e
homens eleitos o exerceram em tempos pré-históricos. Não era Ichulanu
jardineiro de um grande deus e a filha de Sin não o olhava com
complacência por ele lhe levar todos os dias ramalhetes de flores que
alegravam a sua mesa? Sei de um menininho que fora exposto num cesto de
caniço, mas a corrente o levou a Akki, o aguadeiro, que ensinou ao
enjeitado a fina arte da jardinagem, e a Charuk-inu, o jardineiro, Istar deu o
seu amor e o seu reino. Sei ainda de um grande rei, Urra-imitti, de Isin, que
por gracejo trocou de papel com seu jardineiro Ellil-bani e o pôs sobre o
trono. E eis que Ellil-bani aí tomou assento e ficou sendo rei de verdade.
—Está ouvindo? — disse Petepré e olhou sorrindo para o mordomo
Mont-kav, que um tanto perplexo abanava a cabeça. Os escrivães também
abanavam a cabeça como ele, especialmente o anão Dudu. Só o pequeno
Teófilo-Chepses-Bes manifestava vivo aplauso baixando a cabeça. — De
onde sabes todas essas histórias? És de Karduniach? — perguntou o
cortesão em acádico, pois que com aquele nome ele queria dizer Babilônia.
— Lá minha mãe me deu à luz — respondeu José, usando também ele a
língua de Babel. — Mas aquele que te pertence cresceu no país de Zahi,
num dos vales de Canaã, junto aos rebanhos de seu pai.
— Ah! — escapou da boca de Putifar. Divertia-se ele falando babilônio,
e uma certa cadência poética da resposta, uma alusão vaga contida
especialmente na expressão “junto aos rebanhos de seu pai o conquistou... e
ao mesmo tempo o rendeu. Um temor aristocrático de provocar com as suas
perguntas uma excessiva intimidade e de ouvir coisas que não lhe diziam
respeito colidiu dentro dele com uma curiosidade e uma atenção já
despertada, com o desejo de aprender daquela boca várias outras coisas.
— Não falas mal a língua do rei Kadachmancarbe — disse a José, E
tomando a exprimir-se em egípcio: — Quem te ensinou aquelas fábulas?
— Eu as li, meu senhor, com o servo mais antigo do meu pai.
— Como? Sabes ler? — perguntou Petepré, alegre por poder admirar-se
de alguma coisa, visto que nada queria saber do pai nem que este tinha um
servo mais antigo, isto é, vários servos.
José fez uma grande inclinação de cabeça como se se confessasse
culpado.
— E escrever?
A cabeça desceu ainda mais.
— Qual foi o trabalho que te reteve aqui depois do tempo regulamentar?
— perguntou Putifar depois de um momento de hesitação.
— Eu fazia cavalgar inflorescências, meu senhor.
— Ah! E é uma árvore macha ou fêmea essa que está atrás de ti?
— É uma árvore fecunda, senhor, e dará frutos. Mas se se lhe deva
chamar macha ou fêmea, sobre isto não há certeza, pois as opiniões dos
homens divergem. Na terra do Egito chamam-se machas as árvores
fecundas. Mas eu falei com pessoas das ilhas do mar, Alachia e Creta, que
chamavam fêmeas às árvores frutíferas e machas as infecundas, que têm
apenas o pólen e não produzem.
— E então uma árvore frutífera — disse, resumindo, o comandante das
tropas. — E qual a idade da árvore? — indagou, porque um colóquio como
aquele só podia ter em mira examinar os conhecimentos técnicos do
interpelado.
— Floresce há dez anos, senhor — respondeu José sorrindo, com certo
entusiasmo que em parte lhe vinha do coração, pois amava as árvores, mas
também porque lhe pareceu útil. — E faz dezessete anos que deitaram ao
solo o pimpolho. Dentro de dois ou três anos ela estará cheia de frutos,
estará à altura da sua produtividade. Mas mesmo agora te dá todo ano uns
duzentos hin dos melhores frutos, de maravilhosa beleza e tamanho, de cor
semelhante à do âmbar, contanto, naturalmente, que não se confie isso ao
vento, mas mão de homem ministre a polinização. E este um exemplar
magnífico entre os teus — e com calor crescente pôs a mão no esbelto
tronco — ; uma árvore macha na imponência de toda a sua força, de modo
que a gente se sente inclinada a chamá-la assim, como fazem os do Egito, e
fêmea na sua abundância prodigalizadora, conforme o modo de falar dos
insulanos. Em suma, é uma árvore divina, se permites que o teu servo
associe nesta palavra aquilo que está separado na boca dos povos.
— Ora vejam! — disse Petepré com ironia. — Até do divino sabes dar-
me notícia! Com que então, na vossa casa adorais as árvores?
— Não, senhor. Adoro talvez sob as árvores, mas não a elas.
Certamente que temos devoção às árvores porque trazem em si qualquer
coisa de sagrado e dizem até que são mais antigas que a própria terra. O teu
escravo ouviu falar da árvore da vida que teve em si a força de produzir
tudo que existe. Mas há de chamar-se masculina ou feminina a força que
tudo produz? Os artistas de Ptach em Mênfis e os escultores de Faraó aqui
no Egito são fecundos em formas e enchem o fundo de belas figuras. Que
nome, pois, se há de dar à força da qual extraem as suas obras de arte?
Masculina ou feminina, geradora ou parturiente? Nada se pode decidir,
porque essa força é de ambas as espécies e a árvore da vida deve ter sido
uma planta andrógina, como a maior parte das árvores e como é Kepre, o
escaravelho do sol que gera a si mesmo. Vê, o mundo anda dividido quanto
ao sexo, de maneira que falamos de macho e de fêmea e nem sequer
estamos de acordo no distingui-los, uma vez que os povos discutem se se
deve chamar macha a árvore frutífera ou a estéril. Porém a essência do
mundo e a árvore da vida não são nem macho nem fêmea, mas são ambos
em um. E que significa “ambos em um”? Significa nenhum dos dois. São
virgens como a deusa barbuda e são ao mesmo tempo pai e mãe do que
nasceu, pois que estão acima do sexo e a sua virtude prodigalizadora nada
tem que ver com a divisão.
Putifar silenciava, animando sua gigantesca pessoa ao seu belo bastão e
tinha os olhos pregados no chão, à frente dos pés do examinando. Sentia um
calor no rosto, no peito, em todos os membros, uma ligeira agitação que o
pregava àquele lugar e não queria que fosse além, conquanto ele, o homem
do mundo, não soubesse que orientação devia dar ainda àquele colóquio. O
aristocrático temor que tinha da intimidade o fizera evitar o assunto
referente à vida pessoal do jovem escravo; agora lhe parecia que, por um
outro temor, a conversação chegara a uma encruzilhada, por motivo da
direção que lhe imprimira. Desejaria poder continuar o seu caminho e
deixar em paz junto à árvore o jovem forasteiro; mas não podia nem queria.
Hesitou e durante esse intervalo ouviu-se a voz honrada de Dudu, o anão, o
marido de Zeset, que considerou de seu dever adverti-lo:
— Não seria melhor, grande senhor, que prosseguisses no teu caminho e
dirigisses os passos para casa? Os fogos do céu já empalidecem e de um
momento para outro vem do deserto uma onda de frio e podias apanhar um
defluxo, pois estás sem manto.
Com despeito de Dudu, o flabelífero não lhe deu atenção. O calor que
lhe ia na cabeça fechou-lhe os ouvidos às sensatas palavras do anão. E
disse:
— Pareces-me um jardineiro imaginativo, ó jovem de Canaã. — E
voltando à palavra que, pelo som e pela substância, fizera impressão nele,
perguntou: — Eram numerosos... os rebanhos de teu pai?
— Muito numerosos, senhor. A região quase não podia alimentá-los.
— Então teu pai era um homem sem preocupações?
— Além da preocupação com Deus, meu senhor, ele não conhecia
outras.
— Que significa preocupação com Deus?
— Está difundida por todo o mundo, senhor; com maior ou menor
bênção e habilidade é tratada pelos homens, mas aos meus fora imposta de
modo particular já desde muito tempo, de sorte que meu pai, o rei dos
rebanhos, era chamado também um príncipe de Deus.
— Rei e príncipe chama-o tu? Passaste então em tamanho bem-estar os
dias da tua infância?
— O teu servo — respondeu José — bem pode dizer que em todos os
dias da sua infância se ungiu com óleo de alegria e viveu em bela condição,
pois que seu pai o amava mais que aos seus companheiros e o fez rico com
dons do seu amor. Assim foi que lhe fez presente de uma túnica sagrada na
qual estava tecida toda a espécie de luzes e de outros sinais: era um manto
do engano, uma túnica da substituição, deixada como herança pela mãe e
ele a usava em vez dela. Mas foi-lhe arrebatada pelo dente da inveja.
Putifar não tinha a impressão de se achar diante de um embusteiro.
O olho do rapaz que penetrava no passado e o calor do seu discurso
afastavam uma tal suposição. Qualquer vaga hesitação que pudesse haver
no seu modo de exprimir-se podia ser atribuída ao fato de ser ele
estrangeiro, e os detalhes davam um cunho de exatidão ao que dizia.
— Como vieste então a... — indagava o dignitário. Ele, porém, queria
exprimir-se delicadamente e perguntou: — Mas como se verificou uma tal
mudança do teu passado para o teu presente?
— Morto estou para a minha vida antiga — respondeu José — e coube-
me em sorte uma nova vida a serviço teu, meu senhor. Para que ser molesto
ao teu ouvido com os casos da minha história e com as fases da minha vida?
Devo chamar-me homem da dor e da alegria, porque o que havia sido
cumulado de dons foi tocado para o deserto e impelido à miséria, raptado e
vendido. Depois da felicidade ele bebeu à saciedade do cálice da amargura,
sendo a dor o seu sustento.
Seus irmãos o perseguiram com o seu ódio e puseram armadilhas nos
seus passos. Diante de seus pés cavaram uma cova e arremessaram sua vida
no fosso, e assim as trevas tomaram-se sua morada.
— Falas de ti?
— Do último dos teus, meu senhor. Três dias ficou amarrado no fosso,
chegando já a exalar mau cheiro, pois como uma ovelha ele se enxovalhara
com a sua própria imundície. Vieram então viajantes e almas compassivas
que, pela bondade do seu coração, o tiraram para fora, arrancando-o à
voragem. Alimentaram com leite o recém-nascido e deram uma veste à sua
nudez. Depois o trouxeram diante da tua casa, ó Akki, ó grande aguadeiro, e
pela bondade do teu coração tu o tomaste teu jardineiro e auxiliar do vento
junto às tuas árvores, de modo que o seu novo nascimento deve ser
chamado milagroso como o seu primeiro.
— Como o seu primeiro?
— Na confusão o seu servo cometeu um engano, errou. A minha boca
não queria dizer o que disse.
— Tu, porém, disseste que o teu nascimento foi milagroso.
— Aquela palavra me escapou, grande senhor, enquanto falo na tua
presença. O meu nascimento foi virginal.
— Como é isto possível?
— Minha mãe era formosa — disse José. — Sobre ela Hathor
estampara o ósculo da formosura. Mas o seu ventre conservou-se fechado
durante muitos anos, de maneira que ela desesperava da sua maternidade e
ninguém entre os homens esperava ainda um fruto da sua formosura.
Passados, porém, doze anos, ela concebeu e pariu entre dores inenarráveis,
quando no oriente despontava o signo da Virgem.
— A isto chamas um nascimento virginal?
— Não, senhor, se tal não te apraz.
— Não se pode dizer que essa mãe tenha parido virginalmente só
porque isso sucedeu no signo da Virgem.
— Não foi só por isto, senhor. E necessário tomar em consideração as
outras circunstâncias, a marca da formosura, e o fato de ter estado fechado
durante tantos anos o ventre da serva de Deus. Tudo isso, unido ao signo do
zodíaco, forma o nascimento virginal.
— Mas se não há nascimento virginal!
Não, meu senhor, já que tu o dizes.
— Ou há, segundo a tua opinião?
— Muitos milhares de vezes, meu senhor! — disse José alegremente. —
Muitos milhares de vezes há um tal nascimento no mundo que está dividido
quanto ao sexo, e o universo está cheio de procriações e de partos que estão
acima do sexo. Porventura um raio da lua não abençoa o ventre da vaca no
cio e ela não pare Ápis? Não nos ensina uma ciência antiga que a abelha foi
criada pelas folhas das árvores? Aqui tens tu as árvores que formam o
cuidado do teu servo, aqui as tens com o seu mistério; nelas a criação faz o
seu jogo com o sexo e o reúne num só indivíduo e o distribui entre diversos
indivíduos a seu talante, e o resultado é o que se vê, ora este, ora aquele, de
feição que ninguém sabe a ordem e o nome do sexo delas, não sabendo
sequer se há mesmo um sexo; e os povos discutem. Com efeito, muitas
vezes as árvores se reproduzem não por obra do sexo, mas fora dele, não
por polinização e fecundação, mas naturalmente por meio de mergulhões e
de brotos, ou porque são plantadas e o jardineiro, ao invés de espalhar as
sementes da árvore da palmeira, embebe vergônteas no solo para saber se
está criando uma árvore fecunda ou estéril. Mas se se reproduzem em
virtude do sexo, às vezes o pólen e o óvulo se uniram na flor que os gerou,
outras vezes são repartidos entre flores diversas, mas da mesma árvore,
outras ainda entre diversas árvores do jardim, as fecundas e as estéreis,
sendo então missão do vento levar a semente da flor que produz o pólen
àquela que produz o óvulo. Mas, se se pensa bem, é isto verdadeiramente
procriar e conceber em virtude do sexo? E aquilo que o vento faz não é
coisa parecida com a procriação do raio lunar na vaca, não é já uma coisa
intermédia, uma passagem a uma procriação superior e à concepção
virginal?
— Não é o vento que gera — disse Putifar.
— Não digas tal, ó meu senhor, tu que és grande. Muitas vezes tenho
ouvido dizer que o doce sopro do zéfiro fecunda as aves ainda antes que
chegue a época em que é proibido caçar. Com efeito, um sopro é o espírito
de Deus e o vento é espírito, e assim como os artistas de Ptach enchem o
mundo de belas figuras sem que ninguém saiba dizer se a obra deles é
macho ou fêmea, porquanto é uma e outra coisa e nenhuma das duas, isto é,
é virginal e fecunda, assim o mundo está cheio de fecundação e de
procriação sem sexo e por geração do sopro do espírito. Deus é pai e criador
do mundo e de todas as coisas nascidas, não porque elas tenham sido
geradas por meio de semente, mas porque o não-procriado pôs na matéria,
por meio de outra força, uma causa fecundadora que transforma a matéria, e
a muda de maneira muito vária. E que no pensamento de Deus estavam
primeiro as coisas multiformes e o que as gera é a palavra trazida pelo
sopro do espírito.
Era uma cena curiosa, jamais vista na casa e no pátio do egípcio.
Putifar, apoiado no seu bastão, escutava. Nos seus traços delicados a
expressão de tolerante ironia que deles habitualmente ressumbrava estava
em conflito com uma complacência tão viva que mais parecia alegria, ou
antes, felicidade. Era ela realmente tão viva que quase nem era lícito falar
em conflito, uma vez que evidentemente a alegria levava a melhor. A seu
lado estava o mordomo Mont-kav, com a sua barbicha e os seus olhinhos
avermelhados sob os quais sobressaíam as bolsas; desnorteado, incrédulo,
grato e com um reconhecimento que, mais que isso, era admiração, olhava
para o rosto do escravo que comprara recentemente, daquele rapaz que
estava fazendo qualquer coisa que o amor o ensinara a fazer pelo seu nobre
senhor, mas que o outro, José, fazia de modo muito mais elevado, mais fino
e mais eficaz. Atrás dele estava Dudu, marido de Zeset, tomado de nobre
cólera porque o senhor se fizera surdo à sua advertência e com a atenção
que prestava ao jovem escravo o impedira de introduzir uma nova
interrupção e de pôr fim a uma conversa na qual o toleirão se saía muito
bem, com evidente prejuízo do anão casado. Com efeito, ele percebia que o
descarado e inadmissível discurso do escravo, que o senhor bebia como
fonte da vida, prejudicaria a dignidade dele, do anão, concorrendo para
desvalorizar aquilo que havia formado o sólido orgulho da sua vida e a sua
superioridade sobre certos pequenos e até certos grandes personagens.
Quanto aos pequenos, estava também ah presente Teófilo, o pigmeu, com a
cara a boiar em gozo pelo triunfo do seu protegido, todo ancho e satisfeito
por ter este sabido apanhar o momento propício, demonstrando o acertado
da sua escolha. Vinham depois os dois escrivães aos quais nunca sucedera
coisa parecida e que, depois de terem estudado com atenção o semblante do
senhor e do mordomo, tinham perdido a vontade de rir. Encostado à sua
árvore, estava diante desse grupo de ouvintes José, com um sorriso nos
lábios, a perorar com encanto. Já há muito deixara ele a humilde postura
que a princípio o constrangia, acompanhando com gestos eloquentes e
aprazíveis as palavras que lhe fluíam espontâneas da boca, enquanto com
agradável sisudez discreteava sobre uma procriação e uma fecundação mais
alta do sopro de Deus. No crepúsculo que descia, entre as colunatas daquele
templo agreste, lá estava ele, qual um. menino por cuja boca Deus fala para
sua própria glória, desatando-lhe a língua para que anuncie e ensine com
assombro dos mestres.
— Só há um Deus — prosseguiu ele alegremente —, mas no mundo há
muita coisa divina e muita virtude generosa que não é nem macho nem
fêmea, estando acima do sexo e nada tendo que ver com a divisão. Permite,
ó senhor, que enquanto estou diante de ti eu cante com língua ágil esta
virtude. Os meus olhos se abriram em sonho e eu vi num país longínquo
uma casa abençoada, abundando em habitações, celeiros, campos e oficinas,
homens e gado em número incontável. Lá reinavam a laboriosidade e o
triunfo, semeava-se e colhia-se, não cessavam os lagares de azeite, das
prensas escorria o vinho para as tinas, das tetas, o leite gordo e dos favos, o
mel doirado. Por obra de quem tudo isto se movia, medrava e prosperava
com tanta ordem? Por obra do senhor que estava à testa de tudo que era seu.
Tudo pendia de um sinal de seus olhos e, segundo ele aspirava ou respirava,
tudo acontecia. Quando dizia a um”Vai!” ele ia; se dizia a outro”Faze isto!”
ele o fazia. Sem ele nada teria vivido, tudo estaria seco e morto. Da sua
abundância se nutria toda a gente e glorificava o seu nome. Ele era ao
mesmo tempo pai e mãe para a casa e para a sua propriedade, porque o seu
olho era como o raio lunar que emprenha a vaca e pare o deus; o sopro da
sua palavra era como o vento que leva o pólen de uma árvore a outra, e do
regaço da sua presença manava todo o princípio e prosperidade, como do
favo o ouro do mel. Assim sonhei longe daqui com aquela virtude generosa,
de sorte que percebi que há uma fecundação e uma procriação que não é
terrena quanto ao sexo, nem é da carne, senão do espírito e de Deus. Vê, os
povos discutem se se deve chamar macha a árvore frutífera ou a que dá o
pólen, e não logram pôr-se de acordo. Qual a razão dessa discordância? E
que a palavra é espírito e no espírito as coisas se tomam discutíveis. Senhor,
eu vi um homem, horrível na magnificência do seu corpo, terrível pela força
da carne, um gigante, filho de Enac, cuja alma era dura como couro. Ele foi
acometer o leão, derribou o touro selvagem, o crocodilo, o rinoceronte,
matou-os a todos. Quando lhe perguntavam”Não tens medo?”,
respondia”Que coisa é medo?” De fato, medo era coisa que ele não
conhecia. Mas vi no mundo outro filho do homem, delicado de alma e de
carne e medroso. E eis que empunha escudo e lança e diz”Mostra-te, ó meu
medo!” E derribou o leão, o touro selvagem, o crocodilo, o rinoceronte. Se
agora, senhor, quisesses pôr à prova o teu servo e te ocorresse o pensamento
de lhe perguntar a qual daqueles dois pertence o nome de homem... talvez
Deus me pusesse na boca a resposta.
Putifar estava apoiado na sua alta bengala de passeio, um pouco
inclinado para a frente, sentido um calor agradável na cabeça e nos
membros. Contava-se que houve pessoas que sentiram uma euforia
semelhante quando, disfarçado na figura de viandante, de mendigo ou de
algum parente ou conhecido, lhes aparecera um deus para conversar com
elas. Dizia-se que essas pessoas o haviam reconhecido ou que, pelo menos,
haviam haurido uma agradável ideia exatamente daquela sensação de bem-
estar. A singular sensação de bem-estar que invadira aquelas pessoas tinha
sido um sinal de que aquele que com elas falava era um viandante ou um
mendigo ou um parente ou conhecido e que deviam razoavelmente levar em
consideração aquela realidade e portar-se de conformidade com ela; mas —
e justamente em consideração àquele surpreendente senso eufórico — não
deviam perder de vista as possibilidades que iam além daquela realidade. A
coexistência é a natureza e o modo de ser de todas as coisas, as realidades
surgem disfarçadas uma na outra, e o mendigo não deixa de ser mendigo só
porque é possível que nele se oculte um deus. O rio não é um deus em
figura de touro ou também de uma coroada virago com um peito de duas
espécies? Não criou ele o país e não é ele que o nutre? Isso não impede uma
atitude objetiva em relação à sua água, atitude desapaixonada como esta:
bebe-se essa água, navega-se nela, nela se lavam as roupas; e só a sensação
de bem-estar que se experimenta bebendo-a e banhando-se pode sugerir um
mais alto ponto de vista. Entre o terrestre e o celeste a fronteira é móvel e
não é necessário mais que pousar o olhar sobre uma aparição para que ele
se refranja num aspecto duplo. Há também primeiros graus e graus médios
do divino, alusões, meios-termos, passagens. Naquilo que o jovem
encostado à árvore dizia sobre a sua vida anterior havia qualquer coisa que
lhe era familiar, qualquer coisa em que era possível vislumbrar-se uma
graciosa recordação e exortação, algo que se podia considerar como uma
reminiscência literária, mas de que era difícil dizer até que ponto se baseava
numa ordem e assimilação espontânea — traços que caracterizavam a vida
de presenças benéficas, seres délficos por natureza, consoladores,
salvadores e redentores. O jovem jardineiro conhecia estes traços;
assenhoreara-se deles espiritualmente, soubera harmonizar com eles os
dados pessoais da sua vida. Isto podia ser obra da sua sabedoria, rica de
citações; mas que também as próprias coisas tivessem por si mesmas vindo
em seu auxílio, disto era prova a surpreendente sensação de euforia de
Putifar. Eis o que este disse:
— Meu amigo, acabo de examinar-te e não te saíste mal no exame. E
claro que não há para que falemos em nascimento virginal — acrescentou
em tom amistoso e instrutivo —, só porque o nascimento está no signo da
Virgem. Não te esqueças disto. — Isto disse ele com a compreensão voltada
para o lado da realidade que se lhe apresentava praticamente e como para
não dar a entender ao deus que ele o reconhecia. — E agora vai descansar
com os teus companheiros e,ao despontar do novo sol, recomeça o serviço
nas minhas árvores.
Isto dito, virou-se, com o rosto avermelhado e sorridente, para se retirar.
Dados dois passos, porém, fez mais uma vez parar os que o acompanhavam,
parando também ele; e para não ter que desandar, fez sinal a José para se
aproximar.
— Como te chamas? — perguntou. Esquecera-se de fazê-lo antes.
Só após uma pausa que não podia ter sido feita para uma reflexão, José
respondeu, levantando os olhos com gravidade:
— Osarsif.
— Bem — disse o flabelífero, rápido e conciso; e deu-se pressa em pôr-
se de novo a caminho. Rápidas eram também as suas palavras quando ele (o
anãozinho Teófilo o ouviu e logo contou a José) pelo caminho disse a
Mont-kav:
— Aquele servo que acabo de examinar é de uma inteligência
excepcional. Creio que o serviço das árvores está em boas mãos, estando
com ele. Porém me parece que não se poderá conservá-lo muito tempo
naquela ocupação.
— Tu o disseste — respondeu Mont-kav; e compreendeu o que lhe
cumpria fazer.
JOSÉ FAZ UM PACTO

Não foi sem motivo que referimos aqui, palavra por palavra, tal como se
desenrolou, em todas as suas voltas e rodeios, esse diálogo de que não há
notícia em nenhum outro livro. É que foi ele o ponto de partida da famosa
carreira de José na casa de Putifar. Foi esse encontro que sugeriu ao egípcio
fazer dele o seu servo particular e em seguida colocá-lo à testa de todas as
suas propriedades, deixando-as nas mãos dele. Como um animal veloz, a
narração desse colóquio nos transportou bem ao meio dos sete anos que
conduziram o filho de Jacó a uma nova elevação da vida, antes de se
despenhar num novo precipício mortal. No exame a que foi submetido, José
demonstrou compreender que coisa lhe cumpria fazer na penosa casa de
bênção à qual fora vendido: a necessidade de uma mútua tolerância, muito
jeito e serviço prestado com muita lisonja a fim de manter a oca dignidade
da casa. E não somente compreendeu tudo isto, mas demonstrou também
estar em condições de executar o que fosse preciso, melhor e com mais
perícia do que qualquer outra pessoa.
Tal tinha sido especialmente a experiência de Mont-kav, o qual se sentiu
visivelmente suplantado, pela incrível habilidade de José, nos seus leais
desvelos pela saúde da alma do seu nobre amo. Queremos expressamente
acrescentar, em homenagem ao bom coração do administrador e para
mostrar a diferença entre amor e lisonja, que ele não sentia com isso
nenhum travo de inveja, mas somente júbilo. Na verdade, não era
absolutamente necessária uma ordem do senhor para induzir o
superintendente, depois da cena do bosquete, a tirar imediatamente o jovem
escravo da obscuridade do mais baixo grau da escravidão para lhe abrir
melhores possibilidades de dar boa cópia de si. Já sabemos há muito que o
que até então o detinha não era outra coisa senão uma timorata vergonha
dos pensamentos que lhe povoaram o espírito ao ver pela primeira vez o
portador de rolos — pensamentos parecidos com os que tivera Putifar no
seu colóquio com o jovem jardineiro.
Por esse motivo, mal despontara o sol do dia seguinte, e logo depois de
ter José, após a parca refeição da manhã, empreendido o seu serviço às
ordens de Chun-Anup como ajudante do vento, Mont-kav mandou chamar o
hebreu e lhe anunciou radicais mudanças no seu emprego. Achou que devia
acrescentar que essas mudanças já vinham tarde e de certo modo culpou
José do atraso. Como são os homens e como acham que se devam torcer as
coisas! Mostrou-se áspero com ele, comunicando a boa sorte do seu
subordinado sob a forma estranha de uma censura, como se José fosse, com
os seus atos, responsável por uma situação já insustentável.
Recebeu-o na parte do pátio entre a casa dos servos, a cozinha e o
harém, próximo à cavalariça.
— Até que afinal — disse ao jovem que o saudava. — Ainda bem que
apareces ao menos quando te chamam. Achas que é possível continuar
sempre assim, e que podes vaguear entre as árvores até o fim dos dias?
Andas errado, deixa que to diga. Agora tangeremos outras cordas do alaúde
e vai terminar a indolência. Sem mais aquela, vais passar para o serviço
interno. Tens de servir os senhores na sala de jantar, apresentas os pratos e
ficas atrás da cadeira do amigo de Faraó. Ninguém te vai perguntar se isso é
do teu agrado. Tens perdido bastante tempo fazendo asneiras e subtraindo-te
a mais altos deveres. Em que estado estás? Pele e roupa cobertas de cascas
de árvores e de pó do jardim! Vai limpar-te. Lá em cima pede o saiote de
prata dos criados de mesa e depois com os jardineiros arranjarás uma bela
coroa para os cabelos. Ou achas que poderias apresentar-te de outra maneira
ficando atrás da cadeira de Petepré?
— Nunca me passou pela mente ocupar tal posto — respondeu José,
calmo.
— As coisas não andam de acordo com o teu pensamento. Prepara-te
mais para o seguinte: finda a refeição, vais ler alguma coisa para o senhor
antes que ele adormeça. E na sala hipóstila do norte, onde sempre corre uma
aragem. Será uma prova. Serás capaz de fazer isso de modo tolerável?
— Thot há de ajudar-me — ousou responder José, fiado na indulgência
daquele que o arrebatara e depois o trouxera para o Egito e seguindo o
ditado “cada terra com seu uso”. — Mas quem até agora foi admitido a ler
diante do senhor? — acrescentou.
— Quem foi? Foi Amenemuje, o aluno da casa dos livros. Por que
perguntas?
— Por amor do Oculto eu não quereria sobrepujar ninguém — disse
José —, não quereria violar as fronteiras de ninguém, roubando-lhe o cargo
que é a sua honra.
Mont-kav ficou agradavelmente impressionado com esse inesperado
escrúpulo. Desde o dia anterior — e talvez antes — viera-lhe a ideia de que
a capacidade e vocação daquele jovem para desbancar os outros das suas
ocupações na casa iam mais longe do que talvez ele próprio suspeitasse,
mais longe ainda que o cargo e a pessoa de Amenemuje, o leitor. Assim,
gostou da delicadeza de José, tanto mais que pertencia à classe de homens
de índole parecida com a de Rubem, que encontram a sua felicidade e a
dignidade da sua alma em ser retos e justos; em outras palavras, daqueles
homens que, ainda quando se trata da própria abdicação, unem alegremente
os seus projetos aos de potências superiores. A essa alegria, a essa
dignidade aspirava Mont-kav por natureza, talvez porque não gozava muita
saúde e frequentemente passava mal dos rins. Apesar disto, repetimo-lo, a
preocupação de José foi-lhe agradável. Eis o que disse:
— Estás cheio de escrúpulos nas tuas relações com os homens. Deixa a
Amenemuje e a mim o cuidado de zelar pelo seu emprego. Além de que
esses escrúpulos são da mesma categoria que a indiscrição. Ouviste a
ordem.
— E ordem do augustíssimo senhor?
— O que o superintendente ordena, ordenado está, e que coisa te
mandei fazer neste momento?
— Que eu fosse proceder ao asseio da minha pessoa.
— Então vai-te!
José se inclinou e retirou-se aos recuos.
— Osarsif! — chamou o mordomo com voz mais branda, e José se
aproximou de novo.
Mont-kav pôs a mão sobre seu ombro.
— Amas o senhor? — perguntou-lhe, e os seus olhinhos de volumosas
bolsas se fixaram na cara do jovem com expressão penetrante e
melancólica, como a sondá-lo.
Pergunta estranhamente comovedora, cheia de recordações, familiar a
José desde a sua primeira infância! Isso mesmo lhe perguntara Jacó quando
atraía a si o predileto e o colocava entre os seus joelhos e tom a mesma
melancólica indagação os seus olhos castanhos com as glândulas levemente
intumescidas se cravavam no rostinho do menino. Instintivamente o
vendido respondeu com a fórmula adequada a tais casos e que, nem por ser
convencional, perdia sua íntima significação:
— Com toda a minha alma, com todo o meu coração, com toda a minha
mente.
O mordomo baixou a cabeça, satisfeito, como outrora fizera Jacó.
— Assim está bem — disse. — Ele é bom e grande. Ontem no jardim
das tâmaras falaste diante dele com muita graça, como nem toda gente o
faria. Vi perfeitamente que sabes dizer muito mais que “boa noite”.
Escaparam-te alguns erros, como o de chamar virginal um nascimento só
porque se deu sob o signo da Virgem; mas isto se pode desculpar à tua
pouca idade. Os deuses te deram pensamentos finos e te desembaraçaram a
língua para exprimi-los, de modo que eles se adaptam e se dobram como
numa dança de roda. O senhor gostou e tu deves ficar atrás da sua cadeira.
Mas vais ficar também comigo, como meu aprendiz e discípulo nos meus
giros pela casa, para te familiarizares com as suas dependências no pátio e
nos campos e para que conheças toda a propriedade e faças uma ideia geral
do que nela há, de maneira que com o tempo possas tomar-te meu auxiliar,
porque eu tenho muitos dissabores no mundo e amiúde não me sinto bem.
Estás contente?
— Se realmente não afasto ninguém do seu lugar atrás da cadeira do
senhor e da tua companhia — disse José —, decerto que estou contente e
cheio de gratidão, conquanto não deixe de titubear um pouco. Porque, para
confessá-lo aqui em segredo, quem sou eu e que coisa sei? Meu pai, o rei
dos rebanhos, me ensinou, é verdade, a escrever e a falar; a não ser isso,
porém, eu não sabia fazer outra coisa senão ungir-me com óleo de alegria,
não conheço nenhum oficio, nem o de sapateiro, nem o de colador de
papéis, nem o de oleiro. Como animar-me, pois, a andar no meio daqueles
que estão sentados exercendo o seu ofício, quem fazendo uma coisa, quem
outra? Como me atreverei a assumir a responsabilidade de ver e fiscalizar?
— Acreditas que eu saiba o ofício de sapateiro e de colador de papéis?
— respondeu Mont-kav. — Não sei fazer nem vasos, nem cadeiras, nem
ataúdes. Não é necessário que eu saiba, ninguém exige isso de mim, muito
menos aqueles que sabem fazer essas coisas. Porque a minha origem é
diferente da deles e outro o meu jaez; eu possuo um espírito universal e por
isso fui feito superintendente. Os operários nas suas oficinas não te vão
perguntar o que sabes, senão quem és, porque a isto está unida uma outra
força bem diversa, destinada exatamente à vigilância e fiscalização. Aquele
que, como tu, sabe falar diante do senhor, tendo arte de, com belas palavras,
exprimir pensamentos delicados, não deve ficar sentado e com a cabeça
curvada sobre um objeto único, mas deve caminhar ao meu lado entre os
trabalhadores. Pois na palavra e não na mão está o comando e o descortino.
Tens alguma objeção, alguma crítica que apresentar contra esse meu modo
de ver?
— Não, não, ó grande mordomo, estou de acordo contigo e cheio de
gratidão.
— E esta, Osarsif, a palavra que convém! E tal palavra deve existir
entre mim e ti, entre o velho e o moço, a saber — que queremos estar de
acordo no serviço e no amor ao patrão, a Petepré, o nobre, o comandante
das tropas de Faraó. Por amor do seu serviço vamos fazer um com o outro
um pacto que havemos de observar, cada qual até o seu fim, de sorte que
nem ainda a morte do mais velho há de desfazer esse pacto e o sobrevivente
deverá conservá-lo vivo para lá do túmulo, tal qual o filho e sucessor que
protege e justifica seu pai, protegendo e justificando o nobre senhor em
aliança com p morto. Compreendes o alcance disto e será que isto te
agrada? Ou te parecerá fantástico e extravagante?
— Nada disso, meu pai e superintendente — respondeu José. — As tuas
palavras correspondem plenamente aos meus sentimentos e ao meu espírito,
porquanto há muito tempo eu entendo esse pacto que se faz com o senhor e
também entre os seus empregados para o serviço de amor para com ele; e
não sei que coisa me poderia ser mais fácil e menos extravagante diante de
meus olhos. Pela cabeça de meu pai e pela vida de Faraó, eu sou teu.
Aquele que o tinha comprado conservava ainda uma mão sobre o seu
ombro e com a outra tomou a mão de José.
— Bem, Osarsif, bem — disse. — Agora vai pôr-te asseado para o
serviço particular e para a leitura diante do senhor. E quando ele dispensar
os teus préstimos, vem ter comigo para que eu te introduza na economia
doméstica e te ensine a abarcar tudo com a vista.
5

O ABENÇOADO

JOSÉ CRIADO PARTICULAR E LEITOR

É conhecido o sorriso e o baixar d’olhos de pessoas humildes quando,


com aparente injustiça, sem que elas o entendam, alguém dentre elas, e de
quem menos caso se fazia, é elevado às alturas e chamado a ocupar uma
posição de relevo. Quase todos os dias, naquela época, José percebia aquele
sorriso, aqueles olhares significativos que se trocavam, aquele baixar
d’olhos, enleado, maligno, invejoso e, sem embargo, também indulgente e
quase conivente com o capricho da fortuna e dos superiores. Percebeu-o
logo então, no jardim, quando foi dito que Mont-kav o estava chamando —
logo a ele entre todos, ao jovem trepador que andava polinizando as
árvores. Percebeu-o então e depois sempre e em todas as ocasiões. Pois
aquilo era o princípio e ele foi exalçado de várias maneiras. Se se tornou
primeiro servo de Putifar e se em seguida este pôs pouco a pouco, como
narra a história, toda a sua casa nas mãos do hebreu, tudo isto estava já
preparado e em germe nas palavras de Mont-kav e no pacto que fez com
José; já estava tudo pronto como o está no embrião a árvore que cresce
lentamente ano por ano, de modo que o desenvolvimento completo e
integral não é mais do que questão de tempo.
José recebeu, pois, o saiote prateado e a coroa de flores que constituíam
o uniforme dos criados da mesa na sala de jantar e com o qual ele, quase
não seria necessário dizê-lo, fazia uma figura belíssima. Desse modo
deviam apresentar-se aqueles que tinham o privilégio de servir à mesa
Petepré e os seus. Esse filho da formosa Raquel sobressaía entre os outros
com um fulgor mais vivo, que não era somente corpóreo, mas no qual se
uniam e reciprocamente se realçavam o espiritual e o corpóreo.
Fora-lhe designado o posto atrás do assento de Petepré, sobre o estrado,
ou melhor, sobre a plataforma de pedra, do lado oposto, onde também a
parede era revestida de lajes e onde estavam colocados os cálices de bronze
e uma jarra. Quando os da augusta família entravam para o repasto, quer
viessem do átrio setentrional quer do ocidental, ao chegarem àquele estrado
ao qual dava acesso um degrau, era preciso derramar água sobre suas mãos,
estando a cargo de José vertê-la sobre as mãos breves e brancas de Putifar,
ornadas de anéis com o selo e o escaravelho, e apresentar-lhe o perfumado
pano para se enxugar. E enquanto o senhor se enxugava, o jovem devia com
passo silencioso correr pelo chão, forrado de esteiras com as suas
passadeiras de vistosos bordados, e ir até a elevação do lado oposto onde
ficavam os assentos dos senhores, os sagrados pais do andar superior, e
também o de seu filho e de Mut-em-enet, a senhora. Tinha de postar-se atrás
da cadeira de Putifar, esperar aí o senhor e servi-lo daquilo que lhe iam
trazendo os outros criados de saiote de prata. A José não era necessário
andar de um lado para outro à cata dos objetos, senão que outros lhos
traziam e ele os apresentava ao amigo de Faraó, de maneira que este tomava
das suas mãos tudo que escolhia para comer.
A sala de jantar era alta e clara, posto que a claridade não viesse
diretamente, mas só dos aposentos contíguos, sobretudo do átrio ex-temo
ocidental através das suas sete portas e das janelas que ficavam por cima
dessas portas, que eram lajes artisticamente crivadas. A claridade era
reforçada pelas paredes muito brancas, orladas em toda a extensão de frisos
pintados sob a abóbada também branca, atravessada por vigamentos de cor
azul celeste onde iam dar os polícromos capitéis das colunas de madeira,
igualmente pintadas de azul, erguidas sobre brancas bases redondas. As
colunas de madeira de cor azul eram um belo adorno e tudo naquela sala de
refeições de todo dia era belo e gracioso, cheio de ornamentos e de coisas
supérfluas: as cadeiras dos senhores eram de ébano e de marfim, ornadas de
cabeças de leões, cobertas de bordadas almofadas de pena; ao longo das
paredes, preciosos suportes para lâmpadas, trípodes sobre as quais se
queimavam perfumes, umas para os unguentos, e sobre seus pedestais
talhas para o vinho, enfeitadas de flores e com grande asa; enfim
esplendiam naquele átrio todos os objetos necessários e acessórios de um
serviço principesco. No centro estava um vasto aparador repleto de iguarias,
como o altar dos holocaustos de Amun, e dali os criados, que eram como
um traço de união, retiravam os pratos para entregá-los aos que serviam
diretamente à mesa. As iguarias eram variadas e em grande quantidade,
destinadas a deliciar o paladar das quatro augustas pessoas sentadas sobre o
estrado: ganso e pato assado, quartos de vitela, verduras, tortas e pães
diversos, pepino, melão e frutas sírias em grande profusão. Por entre os
pratos erguia-se um valioso centro de mesa, presente de ano-bom de Faraó a
Petepré, representando um templo de ouro entre plantas exóticas em cujos
ramos trepavam macacos.
Quando Petepré e os seus tomavam assento à mesa, todos os rumores
cessavam na sala. Não se ouviam as plantas descalças dos pés dos servos e
entre os senhores a conversação se desenrolava sóbria e silenciosa, cheios
como todos eram de mútuo respeito. Faziam um ao outro inclinações de
cabeça; entre prato e prato um levava ao nariz do outro a flor de lótus para
que a cheirasse ou à boca do outro um bocado mais fino para que o
provasse. As cadeiras estavam dispostas duas a duas, separadas por curto
espaço. Petepré sentava-se ao lado daquela que dera à luz e Mut, a senhora,
junto do velho Hui. Nem sempre a senhora se apresentava como apareceu a
primeira vez a José no pátio quando por lá passou na cadeirinha, com
cachos polvilhados de ouro, feitos com os próprios cabelos. Frequentemente
ela usava uma artística peruca que lhe caía sobre os ombros, azul, loura ou
castanha, disposta em aneizinhos minúsculos, ornada na parte inferior com
franjas retorcidas e coroada por um diadema de pedras preciosas que a
mantinha segura. A peruca, parecida ao pano que cobre a cabeça da esfinge,
era dobrada em forma de coração sobre a branca fronte, e algumas
madeixas ou caracóis, com um dos quais a mulher às vezes brincava,
ficavam pendentes de um lado e de outro sobre as faces, emoldurando de
um modo especial o estranho rosto, no qual os olhos contrastavam com a
boca: aqueles eram severos, sombrios, movendo-se morosos; esta era
sinuosa e estranhamente cavada nas comissuras. Os alvos braços nus que se
diriam lavrados e esculpidos por artistas de Ptach e que podiam ser
classificados de divinos, os quais a senhora movia ao comer, não eram
menos notáveis agora que quando vistos de longe.
O amigo de Faraó, com a sua graciosa boca, comia muito de tudo
quanto lhe era oferecido porque tinha de sustentar aquela montanha de
carne. Várias vezes em cada refeição tinham de encher-lhe o copo com o
líquido que escorria da jarra de comprido gargalo, porquanto o vinho
aquecia o sentimento que ele tinha de si mesmo e lhe fazia crer que, a
despeito de Hor-em-heb, ele era um verdadeiro comandante das tropas. Pelo
contrário, a senhora — em torno da qual adejava uma formosa e até muito
adereçada escrava, envolvida numa teia de aranha tão transparente (ai, se
Jacó a visse!) que era como se estivesse nua — a senhora, Mut-em-enet,
dizíamos, mostrava pouca vontade de comer, parecendo ter vindo ah porque
assim o exigiam o uso e a cerimônia: servia-se de pato assado, mordia-o na
superfície, no peito, sem abrir muito a boca, e o atirava na vasilha a isso
destinada. Os sagrados pais, que eram servidos pelas duas estupidazinhas
(já que não toleravam criados adultos), resmungavam e criticavam tudo,
estando também eles à mesa por mera cortesia, pois que lhes bastavam duas
ou três garfadas de alguma erva ou um doce, principalmente o velho Hui,
que receava sempre que o seu estômago se rebelasse contra qualquer outro
alimento, fazendo-o suar frio. Uma vez ou outra sentava-se sobre o
degrauzinho do estrado aos pés dos senhores, Bes-em-heb, Teófilo, o anão
solteiro, e tasquinhava qualquer coisa, se bem que já tivesse comido numa
espécie de segunda mesa, à qual se sentavam também o próprio Mont-kav,
Dudu, o guarda-joias, o jardineiro-chefe Pança Queimada e uns dois
escrivães, numa palavra, a famulagem mais graduada da casa, e depois
também José, conhecido por Osarsif, o escravo hebreu. As vezes o vizir
bufão, no seu traje muito gasto pelo uso, executava danças cômicas em
redor do grande aparador. Muitas vezes, num canto afastado, estava
acocorado um velho tocador de harpa, que com seus secos dedos recurvos
ia dedilhando o instrumento e murmurava canções incompreensíveis. Era
cego, como convinha a um cantor ambulante, e sabia também um pouco
predizer o futuro, embora a balbuciar e com pouca exatidão.
Assim corriam todos os dias as refeições na casa de Petepré.
Frequentemente o camarista real ficava no paço de Menmat, do outro lado
do rio, com Faraó, ou acompanhava o deus sobre a barca régia subindo ou
descendo o Nilo, em visita às pedreiras, minas e obras em terra firme ou
sobre a água. Nesses dias não havia serviço à mesa, ficando vazia a sala
azul. Quando, porém, o senhor estava presente e no meio de várias
demonstrações de ternura recíproca se punha fim ao repasto, os sagrados
pais novamente se apoiavam nas duas criadinhas para a subida ao andar
superior, enquanto a nora deles, irmã da lua, se dirigia à sua alcova
particular, sita na ala principal e dividida do aposento privado do seu
marido pelo grande átrio setentrional, ou então, precedida e seguida de
criadas sobre um palanquim adornado de leões, tomava à casa das reclusas.
Então José tinha de acompanhar Putifar a um dos átrios contíguos,
ambientes arejados, com nichos pintados nas três paredes, e aberto na frente
entre leves pilastras — o átrio setentrional que dava acesso às salas de
jantar e de recepção, ou o ocidental, ainda mais belo, porque abria para o
jardim com as suas árvores e para o pavilhão, situado sobre o cômoro; o
outro átrio oferecia ao senhor a vantagem de poder ele abranger com a vista
toda a sua propriedade, os celeiros, os estábulos. E era também mais fresco.
Tanto aqui como lá havia magníficos objetos que José observava com
aquele misto de admiração e de duvidosa mofa com que encarava a
civilização egípcia. Eram presentes feitos pela munificência de Faraó ao seu
camarista e capitão titular (como, por exemplo, o maravilhoso templozinho
de ouro existente na sala de jantar) e estavam distribuídos sobre arcas e
mísulas e pendurados nas paredes: estatuetas de ouro, prata, ébano ou
marfim, representando todas o régio doador, Neb-ma-ré-Amenhotpe,
homem baixo e gordo, nos mais diversos ornamentos, coroas e diademas;
esfinges de bronze que tinham também a cabeça do deus; toda sorte de
obras de arte em figuras de animais, como uma manada de elefantes
correndo, babuínos agachados ou uma gazela com flores na boca; vasos
preciosos, espelhos, leques e chicotes. Mas mais que tudo havia armas de
guerra, de grande variedade e em grande quantidade: machados, punhais,
couraças de escamas, escudos cobertos de peles, arcos, cimitarras de
bronze. E era de admirar como Faraó, que, apesar de sucessor de guerreiros,
não era pessoalmente um homem belicoso mas sim construtor eternamente
às voltas com plantas e projetos e um príncipe pacífico, podia de tal modo
encher de instrumentos guerreiros o seu áulico, aquele homenzarrão, cuja
índole tampouco parecia apta a fazer carnificina entre os comedores de
goma e os habitantes da areia.
Entre os móveis dos átrios havia também estantes de belos livros
adornados de ilustrações. Petepré estendia a sua massa de carne sobre um
leitozinho de madeira valiosa que, já em si delicado, dava, debaixo dele,
impressão de fragilidade ainda maior. José se aproximava então das estantes
e lia para o amo os títulos das obras para saber se devia tomar as aventuras
do náufrago sobre a ilha dos monstros, ou a história do rei Kufu e daquele
Dedi que, depois de decapitado, tomava a colocar a cabeça sobre o tronco,
ou a história verdadeira e exata da conquista da cidade de Joppe por meio
do estratagema de Thuti, grande oficial de S. M. Men-cheper-Rá-Tutmés
III, que introduziu dentro dela quinhentos guerreiros metidos em sacos e
cestos, ou a fábula do filho de reis a respeito do qual as Hathors haviam
predito que seria morto por um crocodilo, uma serpente ou um cão; e outras
histórias ainda. A escolha era vasta. Petepré possuía uma biblioteca tica e
bonita, repartida pelos armários de ambos os átrios, a qual em parte
constava de histórias divertidas e de fábulas engraçadas, como “A luta dos
gatos e dos gansos”, em parte de escritos de dialética interessante, como a
polêmica entre os escrivães Hori e Amenemone, textos religiosos e
mágicos, tratados de sabedoria numa língua obscura e artificial, listas de
reis da época dos deuses até os exóticos reis pastores, com dados sobre a
duração do governo de cada filho do sol, com anais de fatos históricos, de
extraordinárias imposições de taxas e de importantes jubileus. Havia lá
também o “Livro da respiração”, o da “Passagem à eternidade”, o livro
“Floresça o nome” e uma outra douta geografia de além-túmulo.
Putifar conhecia todos esses livros. Quando escutava, para ouvir de
novo coisas já sabidas, fazia-o como quem escuta mais uma vez um trecho
de música. Essa sua atitude a respeito daquilo que lhe era oferecido era
tanto mais natural quanto, em relação à maioria daquelas obras, não lhe
importava o conteúdo essencial ou fabuloso, mas sim a fascinação do estilo
e a elegância da forma. José, de cócoras ou de pé e apoiado numa espécie
de cátedra litúrgica, tinha uma dicção esplêndida: corrente, exata,
aparentemente despretensiosa, com uma moderada dramaticidade, com um
domínio tão natural da palavra que as coisas mais difíceis, mais literárias,
ganhavam sobre os seus lábios a marca de uma facilidade improvisadora e
de uma agradável palestra. Com a sua leitura ele ia-se insinuando no
coração do ouvinte. E para melhor compreender a ascensão de José,
conhecida até agora somente pelos fatos, essas suas leituras não devem
absolutamente ser desprezadas.
Mais de uma vez, Putifar adormecia escutando, embalado por aquela
nobre voz aprazível, que lhe falava de modo tão chão e inteligível. Muitas
vezes, porém, tomava parte ativa na leitura, emendava a pronúncia de José,
chamava a atenção do leitor para o valor artístico de alguma flor de retórica
ou suscitava uma crítica literária ao autor que acabara de ouvir, discutindo-
lhe a opinião quando era obscura, e mesmo com José, extraordinariamente
encantado com a agudeza e a capacidade exegética do mancebo. Com o
tempo havia-se manifestado em Putifar uma inclinação pessoal e
sentimental por certos produtos das belas-artes, por exemplo, a predileção
pela “Canção do entediado da vida em louvor da morte”. A medida que se
multiplicavam os dias de leitura de José, ele mandava ler repetidas vezes
aquela canção, na qual a morte era comparada, em tom nostálgico e
uniforme, a muitas coisas boas e delicadas: à cura depois de uma doença
grave, ao perfume da mirra e das flores de lótus, à posição de segurança de
quem se senta à sombra de uma vela em dia de vento, a uma fresca bebida
sobre a praia, a um “caminho na chuva”, à volta de um marinheiro no navio
da guerra, ao júbilo de rever a pátria e o lar depois de muitos anos de
desterro, e a outras coisas igualmente apetecíveis. A morte, dizia o poeta
anônimo, era para ele como todas essas coisas. E Putifar escutava-lhe as
palavras — que ganhavam novo encanto nos lábios de José — como quem
escuta uma música que conhece a fundo.
Outra obra literária que o fascinava e que tinha de ser lida
frequentemente na sua presença era a lúgubre e horrenda profecia de uma
desordem que se propagaria em ambos os países, de uma anarquia selvagem
com as suas consequências finais, de uma espantosa subversão das coisas,
tanto que os ricos ficariam pobres e os pobres ficariam ricos, seguindo-se a
essas calamidades a desolação dos templos e o completo abandono de todo
serviço divino. Não se sabe por que razão Petepré gostava de ouvir essas
histórias, talvez unicamente pelo arrepio que lhe causavam e que podia ser-
lhe agradável no momento, porque por ora os ricos continuavam ricos e os
pobres pobres e tais se haveriam de conservar, contanto que se evitasse a
desordem e se alimentassem os holocaustos aos deuses. Sobre este ponto
ele não se pronunciava, como jamais fazia qualquer observação sobre a
“Canção do entediado da vida”, e igualmente guardava silêncio a respeito
das chamadas “Canções alegres”, refertas de palavras dulcífluas e de ais de
amor. Essas romanças exprimiam as dores e os júbilos de uma pequena
passarinheira enamorada que se fina de amor por um jovem e deseja
ardentemente ser sua dona de casa, para que o braço dele descanse sempre
sobre o dela. Se o rapaz não vem ter com ela à noite — assim se lamentava
a apaixonada com palavras doces como mel —, ela será como uma mulher
que jaz dentro de uma tumba, porque ele é a saúde e a vida. Mas tudo não
passava de um equívoco, pois que também o outro se deitava no seu quarto
particular, zombando da arte dos médicos com a sua enfermidade que era o
amor. Mas depois ela ia encontrá-lo no leito dele e então não mais
mortificavam o coração um do outro, senão que se tomavam as primeiras
criaturas do mundo e com as faces afogueadas, segurando as mãos um do
outro, caminhavam pelo florido vergel da sua ventura. De quando em
quando Petepré mandava ler o descabelado arrulho. E, ouvindo essa leitura,
seu rosto conservava-se imóvel, seus olhos, vagando lentamente pelo
espaço, demostravam ora fineza, ora atenção, e ele nunca deixava
transparecer se naquele madrigal achava gosto ou enfado.
Mas uma vez, quando já os dias de leitura se tinham sucedido em
grande número, indagou de José se lhe agradavam as “Canções alegres”. E
aquela foi a primeira vez que amo e servo roçaram de novo ao de leve o
campo do colóquio examinador já realizado no jardim das palmeiras.
— Muito bem — disse Putifar —, tu recitas a canção quase com a boca
da passarinheira e do seu rapaz. Evidentemente ela te agrada mais que as
outras.
— Meu senhor — respondeu José —, o meu desejo de te agradar é igual
em todos os assuntos.
— Pode ser, mas eu penso que do espírito e do coração do leitor vem
para esse desejo uma ajuda mais ou menos eficaz. Os argumentos estão ou
mais próximos ou mais afastados de nós. Isto não deve impedir que tu o
leias de preferência a outros.
— Diante de ti — tornou José —, diante de ti, meu senhor, leio de boa
mente tanto uma coisa como outra.
— Sim, está bem. Mas eu gostaria de ouvir o teu parecer. Achas belas as
canções?
Aqui José fez uma cara impassível e altivamente perscrutadora.
— Bastante belas — disse, torcendo os beiços. — Belas, em todo o
caso, e embebidas no mel, se se presta fé a todas as suas palavras. Talvez
um pouco simples demais, um pouco demais.
— Simples? Mas a obra escrita que exprime perfeitamente o que é
simples e representa exemplarmente o que é exemplar, como sempre sucede
entre os filhos do homem, continua a viver por incontáveis jubileus. Os teus
anos te dão o direito de julgar se estes discursos reproduzem
exemplarmente aquilo que é exemplar.
— Tenho a impressão — respondeu José depois de uma pausa — que as
palavras dessa passarinheira e do seu mancebo deitado no leito pintam com
exatidão a simplicidade do assunto e o tomam convincente.
— Mas é só impressão? — insistiu o flabelífero. — Eu contava com a
tua experiência. És jovem e de bela aparência. No entanto, falas como se
nunca tivesses passeado com uma passarinheira num jardim florido.
— A juventude e a beleza — acudiu José — podem também formar um
ornamento mais severo do que aquele com que o jardim coroa os filhos do
homem. Senhor, o teu escravo conhece uma sempre-viva que é o símbolo
da juventude e da beleza e ao mesmo tempo também um ornamento digno
de figurar num holocausto. Quem a traz é poupado, e quem com ela se
enfeita é preservado.
— Falas do mirto?
— Dele, exatamente. Eu e os meus lhe chamamos a ervinha não-me-
toque.
— Trazes contigo essa erva?
— Nós todos a trazemos conosco, minha semente e minha estirpe. O
nosso Deus se consagrou a nós e é para nós como um noivo de sangue,
cheio de ciúme, porque é solitário e almeja ardentemente a fidelidade. E nós
somos como uma esposa da sua fidelidade, consagrados e poupados.
— Como? Todos vós?
— Por princípio, todos, meu senhor. Mas entre os chefes e entre os
amigos de Deus na nossa linhagem Ele costuma escolher um que Lhe seja
particularmente consagrado no esplendor da juventude dedicada. Do pai
exige-se que ofereça o filho em holocausto. Se o pai pode, o faz. Se não o
pode, outros o fazem por ele.
— Não me sofre o ânimo ouvir dizer — tornou Putifar, revolvendo-se
no leito, de um lado para outro — que se faça a alguém alguma coisa que
ele não quer nem pode fazer. Fala de outra coisa, Osarsif!
— Posso logo suavizar o que disse — retrucou José —, porquanto no
holocausto há sempre uma certa indulgência e benignidade. Enquanto isto é
ordenado, é também proibido e tido como um pecado, de maneira que o
sangue de um animal toma o lugar do sangue do filho.
— Que palavra é essa que usaste? Tido como... ?
— Tido como um pecado, meu grande senhor, tido como um pecado.
— Que é isto... o pecado?
— Justamente isto, meu senhor: o que é exigido mas vedado, ordenado
mas maldito. Nós somos quase os únicos no mundo que sabemos que coisa
é o pecado.
— Penoso saber deve ser esse, Osarsif, e me parece que é uma
contradição cheia de dor.
— Deus também sofre com o nosso pecado e nós sofremos com Ele.
— Então — alvitrou Putifar — seria como eu a princípio supus;
segundo o vosso pensamento, seria um pecado aquele passeio da
passarinheira pelo jardim?
— Muito se aproxima disto, meu senhor. E se tu me interrogas... digo,
decididamente, sim. Não posso dizer que nós o amemos de modo particular,
apesar de que também nós, em caso de precisão, somos capazes de produzir
canções como as “Alegres”. O tal jardim... não que ele seja para nós
propriamente o país do Cheol. Não quero ir tão longe. Não é ele para nós
um objeto de horror, mas de medo: terreno diabólico, campo de
mandamento maldito, cheio do ciúme de Deus. Diante da sua porta estão
dois animais: um chama-se “vergonha”, o outro “culpa”. E lã dos ramos nos
olha ainda um terceiro, cujo nome é “riso zombeteiro”.
— Depois de tudo isto — comentou Petepré — começo a entender por
que motivo tu chamas simples as “Canções alegres”. Contudo, não posso
deixar de pensar que é bem extravagante e terrivelmente perigosa a
condição de uma raça para a qual o que é simples e exemplar é um pecado,
um objeto de troça.
— Tudo isto tem sua história entre nós, meu senhor, e ocupa o seu lugar
no tempo e nas histórias. Primeiro vem o que é exemplar, depois continua-
se de várias maneiras. Um homem havia, amigo de Deus, fortemente
afeiçoado a uma doce mulher, como fortemente afeiçoado era a Deus, e esta
história de antepassados era uma simplicidade exemplar. Deus, porém,
enchendo-se de zelos, tirou-lha e a mergulhou na morte, da qual ela foi
arrancada e reconduzida ao pai em outra forma, isto é, na forma de um filho
no qual ele agora amava a doce mulher. Portanto, da mulher amada a morte
havia feito o filho no qual ela vivia e que só era um jovem por virtude da
morte. Mas o amor do pai para com ele era um amor passado pelo banho da
morte, um amor não mais na figura da vida mas da morte. Vê agora o meu
senhor que na história as coisas aconteceram de diferentes maneiras e
menos de acordo com o exemplo.
— Esse jovem filho — disse Putifar, sorrindo — terá sido o mesmo do
qual tu difusamente disseste que o nascimento era virginal só porque se dera
sob o signo da Virgem?
— Talvez — respondeu José —, talvez que, na tua bondade, senhor,
estejas disposto, depois do que eu disse, a suavizar a reprovação ou até a
retirá-la graciosamente... quem sabe? Com efeito, já que o filho é um jovem
somente por obra da morte, a mãe na figura da morte e, como está escrito, é
de noite uma mulher mas de manhã um homem, se bem se reflete, não se
poderia com toda a razão falar aqui de virgindade? Deus escolheu a sua
estirpe e todos trazem o ornamento de holocausto dos noivos. Mas há um
que o traz ainda uma vez e este é destinado ao zelo.
— Vamos deixar isto, meu amigo — disse o camareiro. — Nossa
conversa nos levou longe demais, indo nós do simples ao complexo.
Se o desejas e mo pedes, quero abrandar a censura e até retirá-la,
reduzindo-a a quase nada. Agora lê para mim alguma outra coisa. Lé a
viagem noturna do sol através das doze casas do mundo ínfero. Há muito
não a ouço, embora, pelo que me lembro, esteja entretecida de máximas
formosas e palavras escolhidas.
EJosé leu a viagem do sol ao inundo inferior com tão bom gosto que
Putifar se distraiu alegremente. Distraiu-se alegremente com a voz do ledor
e com o excelente conteúdo que aquela voz exprimia. O senso de bem-estar
que o colóquio precedente comunicara ao ouvinte se mantinha vivo como
viva se mantém a chama da pedra do holocausto alimentando-a por baixo e
espalhando coisas boas por cima dela. Era uma sensação de euforia que o
escravo hebreu sabia despertar sempre no amigo de Faraó e que para este
significava confiança quer na sua própria pessoa, quer na pessoa do servo.
O que importa é a confiança que Putifar começou a ter em duplo sentido
com relação a José e do aumento dessa confiança; e por isso é que quisemos
reproduzir aqui fielmente também este colóquio, de que não se faz menção
nas antigas histórias, como aliás não se faz menção do exame no jardim das
palmeiras.
Não nos é possível reproduzir aqui todas as conversas durante as quais
foi alimentado o senso de bem-estar desta confiança, fazendo-a subir ao
grau de incondicional predileção que fez a fortuna de José. Basta que
caracterizemos, com alguns exemplos frisantes, o método que usava
“adulando” o seu senhor e “prestando-lhe auxílio” quando o servia
conforme o ajuste que, por amor de Putifar, fizera com Mont-kav. Sim, sem
receio de esfriarmos a simpatia do leitor, podemos empregar aqui a palavra
“método”, porquanto sabemos que na arte com que José tratava o seu amo o
cálculo e a cordialidade se fundiam um na outra de modo perfeitamente
afim, como nas suas relações com outro Ser isolado de uma esfera muito
superior. Perguntamos mais: pode a cordialidade bastar sem cálculo e sem
uma técnica atilada quando se trata da sua realização, por exemplo, quando
se trata de produzir um confiante senso eufórico? Raramente há confiança
entre os homens; mas para amos que têm a conformação física de Putifar,
para maridos titulares, com uma mulher titular ao lado, a desconfiança geral
e vagamente apaixonada em relação a todos aqueles que não passam por
aquilo que acontece a eles forma a base de toda a sua vida. Assim nada é
tão adequado a enchê-los do insólito e por isso mesmo mais aprazível
sentimento da confiança como a descoberta de que um membro do invejado
mundo exterior usa nos cabelos uma severa coroa verde que, de modo
reconfortante, despoja a sua pessoa do usual caráter inquietador. Se José
propiciou a Putifar esta descoberta, foi cálculo seu, foi método. Quem,
porém, julga dever melindrar-se com isso, prevaleça-se da vantagem que
tem de já conhecer a história que estamos narrando e lembre-se com justa
previsão de que José não desmentiu a confiança que ele próprio a seu modo
inspirava mas mesmo na tempestade da tentação se conservou fiel, de
acordo com o pacto que fizera com Mont-kav, jurando pela cabeça de Jacó e
também pela vida de Faraó.
JOSÉ CRESCE COMO JUNTO DE UMA FONTE

Quando, pois, ficava dispensado do serviço pessoal de Putifar,José


percorria toda a propriedade, no meio do sorriso e do baixar d’olhos
daquela gente, ao lado do administrador que ele já chamava “pai”, como
seu aprendiz e discípulo, e se iniciava na vigilância geral. Quase sempre
faziam parte do séquito do mordomo outros empregados da casa, como
Cha’ma’t, o escrivão do aparador, e um certo Meng-pa-Rá, escrevente das
cavalariças e das torres fortificadas. Eram todos pessoas de posição média,
contentes em poderem satisfazer moderadas exigências no limitado círculo
e na esfera particular dos seus encargos, alegres quando conseguiam manter
dentro da ordem, com satisfação do mordomo, homens, animais, utensílios
e contas escrituradas; pessoas que absolutamente não miravam a nada mais
vasto e mais alto, para o que se exigiria um cérebro de aptidões universais,
nem davam tratos à bola para se alcandorarem nessas eminências; almas
fracas que preferiam escrever com a cana somente aquilo que outrem lhes
ditava nem nunca lhes passara pela mente que teriam nascido para o mando
e a vigilância, e a verdade é que para isso não tinham mesmo nascido. Basta
apenas refletir que Deus tem projetos especiais para uma pessoa e que é
preciso ajudá-lo; então a alma se esforça, a razão cobra alento e resolve
submeter a si as coisas e arvorar-se em senhora delas, ainda que sejam
múltiplas, como o governo da abençoada casa de Petepré em Vese, no Alto
Egito.
Múltiplo era ele com efeito; e dos dois encargos, a saber, que José se
tornara para Putifar o criado indispensável e que Putifar lhe havia depois
confiado todo o cuidado da sua casa, o segundo era incomparavelmente o
mais difícil. Mont-kav, em cujas mãos José encontrou a casa com toda a sua
administração, tinha muita razão quando dizia serem múltiplas as suas
atribulações neste mundo. Apesar de ter muito boa cabeça para tudo, a sua
lida era de fato muito grande para um homem que sofria dos rins. E agora
bem se percebe por que Mont-kav aproveitou a ocasião de atrair para si uma
força jovem, da qual pudesse lançar mão para nela ter um substituto
adequado, e com toda a certeza já há muito olhava silenciosamente em
redor de si procurando-a.
Petepré, o amigo de Faraó, o comandante das tropas palacianas e chefe
dos carrascos (ao menos de nome), era homem muito rico e rico em estilo
muito mais grandioso do que Jacó em Hebron, e tornava-se a olhos vistos
cada vez mais rico, porque não só era bem pago como cortesão, recebendo
como tal muitos presentes do soberano, mas muito lhe rendia também a sua
herdade, que aliás só parcialmente era herança sua, sendo na maior parte,
sobretudo no que se referia à posse de terras, uma graciosa dádiva do deus,
afluindo ainda a ela aquelas rendas que mais a acrescentavam. Quanto a ele,
limitava-se a olhar tudo aquilo com indiferença, dedicando-se
exclusivamente a manter viva a sua massa corpórea com a comida, a manter
viva a sua consciência de homem com a caça nos pauis e o seu espírito com
os livros. O resto ele o deixava ao administrador, e quando este lhe
apresentava as contas e, como era seu dever, insistia com ele para que as
examinasse, Petepré não fazia mais que dar-lhes um olhar de indiferença,
dizendo: — Bem, bem, Mont-kav, meu bom velho, vai tudo bem. Tu me
amas, eu o sei, e fazes as tuas coisas como melhor sabes, o que quer dizer
muito, porque sabes bem o que fazes. Que diz isto aqui a respeito do trigo e
da espelta? Oh! Naturalmente está tudo bem, não há dúvida. Estou
convencido de que és fiel como o ouro e me és devotado de alma e corpo. E
poderia ser de outra maneira? Não, não poderia, dada a tua índole e visto
como seria coisa abominável causares-me prejuízo. Por amor de mim fazes
teus os meus negócios, assim eu os deixo a ti por amor teu, uma vez que
não te prejudicarás a ti mesmo por negligência ou por coisa ainda pior.
Além disso o Oculto veria tudo e mais tarde sofrerias as consequências. As
contas que me apresentaste conferem; podes levá-las. Agradeço-te
sinceramente. Não tens mulher nem filhos; por que havias de querer causar-
me prejuízo? Para ti? Tu não gozas de muito boa saúde; és forte, é verdade,
e o teu corpo é peludo, mas lá dentro é um pouco roído de vermes, pois a
miúdo apresentas uma cara amarelada, debaixo de teus olhos as bolsas se
avolumam e é bem provável que não chegues à idade provecta. Que
interesse, portanto, te levaria a dominar o teu amor por mim e prejudicar-
me? De resto almejo de coração que envelheças no meu serviço, porque eu
não saberia mesmo em quem confiar como confio em ti. O charlatão Chun-
Anup está contente com a tua saúde? Tem-te dado ervas e raízes boas e
eficazes? Disso não entendo eu, porque sou são, não obstante não ser tão
peludo. Se, porém, ele não sabe dar-te nada de realmente valioso e a tua
enfermidade se agrava, mandaremos ao templo chamar um médico. Apesar
de pertenceres à classe dos servos, sendo, em caso de moléstia, competente
para tratar de ti Pança Queimada, és para mim bastante caro para que eu,
quando o teu corpo tiver necessidade, chame da casa dos livros um médico
douto. Não precisas agradecer-me, meu amigo. Faço isto por amor de ti e
porque evidentemente as tuas contas andam bem. Ei-las, podes levá-las
contigo e continuar a fazer como até agora.
Era assim que, em tais ocasiões, Putifar falava ao seu superintendente.
Efetivamente, ele de nada se ocupava, assim procedendo por um peculiar
modo fidalgo de sentir e pela vagueza da sua pessoa, que o fazia aborrecer
as realidades práticas da vida e pela confiança no amor e no interesse dos
outros por ele, por aquela sagrada torre de carne. Certamente ele tinha boas
razões para confiar em Mont-kav, porque o mordomo realmente o amava e
lhe prestava leal serviço, tomando-o cada vez mais rico com o mais
desinteressado esforço e previsão. Mas suponhamos que as coisas se
passassem diferentemente e que o administrador prepotente o roubasse a
ponto de reduzi-lo à miséria, a ele e a todos os seus. Então deveria avocar a
si toda a responsabilidade, não lhe sendo possível escapar da pecha de
cegamente confiado e inerte. Demasiado confiava e contava Putifar com a
tema e profunda dedicação que todos deviam ter à sua escabrosa e sagrada
situação de cortesão do sol. Tendo chegado a este ponto da nossa história,
não podemos deixar de fazer essa observação.
Assim ele não tratava de nada, a não ser de comer e beber; isto tanto
mais aumentava as tubulações de Mont-kav quanto os seus próprios
negócios andavam sempre envolvidos com os do amo. Como paga dos seus
serviços ele recebia cereais, pães, cerveja, gansos, panos, couro, mas em
quantidade muito maior do que era capaz de consumir ou usar. Cumpria-lhe
levar todas estas coisas ao mercado e trocá-las por valores duradouros que
aumentassem a sua propriedade estável. O mesmo se diga em geral da
propriedade do seu patrão, tanto da produzida nas suas terras como da que
lhe vinha de fora.
O flabelífero estava entre aqueles que Faraó mais liberalmente
cumulava de dons; em grande abundância afluíam-lhe as compensações e
consolações pela sua existência impropriamente adornada de títulos. O bom
deus lhe pagava cada ano uma quantia considerável em ouro, prata, cobre,
roupas, fio, incenso, cera, mel, azeite, vinho, verdura, linho, aves apanhadas
pelos passarinheiros, bois e gansos e até poltronas, canastras, espelhos,
carros e naus de madeira. De tudo isto só uma parte era usada para as
necessidades da casa; e não diversamente se passavam as coisas em relação
àquilo que era produzido em economia própria, trabalhos dos artífices e
frutos dos campos e jardins. Em grande parte se fazia comércio disso, sendo
todos esses produtos levados aos mercadores rio acima e no abaixo e
cedidos a eles em troca de outras mercadorias e de valores metálicos
lavrados e não-lavrados, que iam encher as câmaras do tesouro de Putifar. E
estas operações, combinadas com a economia da propriedade ao mesmo
tempo produtora e consumidora, exigiam muitos cálculos, contabilidade
perfeita e uma fiscalização arguta.
Era preciso preparar a comida para os trabalhadores e para os servos e
fixar as respectivas rações: o pão, a cerveja, as papas de cevada e de
lentilhas para todos os dias, os gansos para os dias de festa. Vinha depois a
particular economia doméstica do harém que dia por dia tinha as suas
exigências, tanto para o fornecimento como para as contas. Era preciso
verificar a matéria-prima distribuída aos que faziam trabalhos manuais, aos
padeiros, aos fabricantes de sandálias,aos coladores de papiro, aos
cervejeiros, aos tecedores de esteiras, carpinteiros e oleiros, às tecedeiras e
fiandeiras; era necessário subdividir-lhes os produtos já para as precisões
cotidianas, já para enviá-los aos armazéns ou para levá-los para fora,
juntamente com os produtos do material de construção e das plantações das
hortas. Era necessário cuidar do efetivo de animais de Putifar e completá-lo:
os cavalos que puxavam o seu carro, os cães e gatos com que ia à caça, cães
grandes e selvagens para a caça no deserto e gatos igualmente enormes,
semelhantes a jaguares, que o acompanhavam na caça das aves nos
pântanos. Havia alguns bois ah na propriedade de Putifar, mas a maior parte
do seu gado estava fora, no campo, isto é, numa ilha no meio do rio, situada
um pouco mais rio acima no rumo de Dendera e da casa de Hathor, que
Faraó lhe dera de presente como prova de afeto. Essa ilha abrangia
quinhentas varas de campo, cada uma das quais lhe dava vinte sacos de
trigo e cevada e quarenta cestos de cebolas, alho, melões, alcachofras e
cabaças. Calcule-se a quanto montava tudo isto num terreno de quinhentas
varas e quanta preocupação deviam causar esses rendimentos. Havia, é
verdade, outro administrador para isso, homem hábil no seu cargo, escrivão
da colheita e superintendente da cevada, que fazia transbordar o alqueire e
media o trigo para o seu senhor. Assim, todo ancho de si, costumava
exprimir-se, neste estilo de epitáfio, o tal administrador. Em última análise,
porém, não era dele a responsabilidade, mas de Mont-kav. Pelas mãos deste
afinal passavam todas as contas sobre a semeadura e a colheita, sobre os
lagares de azeite como sobre as prensas de vinho, sobre o gado grosso e o
miúdo, numa palavra, sobre tudo quanto uma semelhante casa abençoada
produz e consome, exporta e importa, e enfim a ele competia providenciar
para que tudo corresse bem ainda no campo, porque aquele a quem tudo
pertencia, o áulico Putifar, na sua delicada inabilidade, não costumava
ocupar-se da mínima coisa.
Assim tudo se dispôs de modo que José foi mandado aos campos, mercê
de Deus, no momento oportuno e em circunstâncias apropriadas. Ele foi lá
não na qualidade de servo, como se daria se houvesse prevalecido o
conceito conservador que do mundo tinha Dudu, o anão casado, que queria
se mandasse logo para os campos o rapaz da areia, antes de lhe ser dado
falar perante Putifar. Foi, mas na companhia e como discípulo do mordomo,
empunhando a tabuleta e as penas de cana, aprendendo a ver e fiscalizar
tudo. Numa barca de vela com remadores lá foi ele no séquito de Mont-kav
à fértil ilha de Putifar. Na travessia o mordomo ia solenemente sentado e
imóvel entre as paredes colgadas de tapetes do seu pequeno nicho, tal como
viajavam os grandes que José vira passar na sua primeira viagem pelo rio.
Quanto ao mancebo, ia sentado com os outros escrivães atrás de Mont-kav.
Era bem conhecida a embarcação e, quando ela passava, dizia o povo:
— Ah vai Mont-kav, o mordomo de Petepré, naturalmente a alguma
inspeção. Mas quem é aquele que, entre todos quantos o acompanham, se
distingue por tamanha formosura juvenil?
Depois desciam da barca e andavam pela ilha fértil, inspecionavam a
semeadura ou a colheita, mandavam desfilar à sua frente o gado e
observavam com olhos argutos o terror daquele que “fazia transbordar o
alqueire”. Este espantava-se ao ver o jovem a quem o mordomo mostrava
tudo, apresentando-o a tudo, por assim dizer, e inclinando-se cheio de
condescendência diante dele. E José, refletindo que, se tivesse vindo para o
campo mais cedo, Mont-kav poderia facilmente tomar-se o seu capataz e
estalar-lhe o látego diante da cara, dizia ao outro à sorrelfa:
— Trata de não fazer o alqueire transbordar para o teu bolso. Nós o
notaríamos logo e tu acabarias na cinza.
Isso de “acabar na cinza” era um modo de dizer lá da sua terra,
desusado no Egito. E por isso mesmo mais medo meteu no escrivão da
colheita.
Quando José, acompanhando Mont-kav, passava pelo pátio entre as
mesas dos artífices e lhes examinava o trabalho e ouvia atentamente tanto
as informações que os operários chefes e escrivães transmitiam ao
mordomo, como as explicações que este lhe dava, alegrava-se consigo
mesmo por ter conseguido manter a sua reputação entre os trabalhadores,
deixando bem patente diante de seus olhos que ele não aprendera nenhum
oficio, porque de outro modo seria difícil para eles enxergarem nele um
espírito universal, talhado para a fiscalização e a vigilância. Entretanto,
como é difícil fazer de nós mesmos aquilo para que fomos criados e subir à
altura dos desígnios que Deus tem a nosso respeito, ainda que estes sejam
apenas de natureza medíocre! Mas os desígnios de Deus com relação a José
eram muito grandes e ele tinha de adaptar-se a eles. Naquela época o jovem
ficava muito tempo sentado a elaborar contas do governo da casa e da
propriedade, tendo diante dos olhos algarismos e prospectos e dirigindo os
olhos do espírito à realidade da qual aqueles prospectos tinham sido tirados.
Também com Mont-kav, seu pai, trabalhava na câmara da confiança e o
mordomo se assombrava com a presteza e penetração da sua inteligência,
com o seu dom de apanhar os fatos e suas relações e até de fazer livremente
propostas para melhorar certas situações. Assim, por exemplo, como
grandes quantidades de figos de sicômoros, produto do jardim, eram
mandados para a cidade a vender e principalmente para a cidade dos mortos
no Ocidente, onde enorme era a procura daquela fruta para os altares dos
templos dos mortos e como presente e viático para os próprios mortos, José
teve a ideia de mandar que os oleiros da casa executassem em barro
imitações e modelos da fruta, que eram pintados em cores naturais e nas
tumbas faziam o mesmo efeito dos frutos naturais. Antes, como esse efeito
era mágico, aqueles figos artificiais, na sua qualidade de sinais mágicos,
alcançavam esse efeito ainda melhor, de maneira que da cidade dos mortos
vieram logo grandes encomendas de figos mágicos, os quais custavam
pouco aos produtores que podiam fabricar quantos queriam. E assim esse
ramo da indústria caseira de Putifar floresceu rapidamente, dando trabalho a
numerosos operários e contribuindo para enriquecer o senhor, a falar
verdade, bem pouco em proporção com os proventos gerais, mas sempre em
medida não-despicienda.
O mordomo Mont-kav agradecia ao seu auxiliar ter-se conservado tão
fiel na observância do pacto que um dia tinham feito por amor do nobre
amo. Não raro, quando observava o inteligente empenho do jovem e o
talento com que submetia ao seu espírito as múltiplas ocupações, revivia
nele a onda de estranhos sentimentos que o tinham comovido tão
ambiguamente quando pela primeira vez José apareceu diante dele com as
listas em rolo na mão.
Não tardou que, para aliviar-se da própria carga, Mont-kav mandasse o
seu jovem aluno fazer viagens comerciais, enviando-o aos mercados com
mercancias, descendo o rio em direção a Abodu, último repouso do
Despedaçado, e mesmo até Mênfis, e também subindo de novo o rio para o
sul até a ilha dos Elefantes. José tornou-se dono da barca, ou antes, de
várias barcas que levavam mercadorias de Petepré: cerveja, vinho, verdura,
peles, panos, louça de barro e óleo de mamona de duas qualidades, o mais
grosseiro para lâmpadas e o mais fino para lubrificação interna. Pouco
depois os que o viam diziam:
—Ali vai a embarcação do ajudante de Mont-kav, da casa de Petepré. É
um jovem asiático, de belo aspecto e muito sagaz; leva mercadorias ao
mercado porque o mordomo confia nele, e com razão, porque ele tem
fascinação nos olhos e fala a língua dos homens melhor do que eu e tu;e
desse modo, cativando os ânimos para si, sabe cativá-los também para as
mercadorias e obtém preços que alegram o coração do amigo de Faraó.
Mais ou menos assim diziam os barqueiros do Nehel, passando por ele.
E era verdade; a bênção adejava sobre o comércio de José; ele sabia tratar
de maneira cativante os compradores dos mercados dos casais e das cidades
e o seu modo de exprimir-se era uma delícia para todos, de sorte que acorria
gente em torno dele e dos seus produtos e o jovem levava para casa lucros
mais notáveis do que os que poderia trazer o próprio mordomo ou qualquer
outro administrador. Mas não era muito frequentemente que Mont-kav
podia mandar José fora e, quando o mandava, o jovem devia estar de volta
o mais depressa possível, porque Petepré ficava descontente se faltava à
mesa esse servo, se não estava ele ah para entornar-lhe água sobre as mãos,
para lhe apresentar as comidas e o cálice e se, finda a refeição, não vinha
fazer-lhe sua leitura da hora da sesta. Só quando compreendermos que o seu
serviço prestado a Putifar não o dispensava da tarefa de aprender a dirigir a
casa é que podemos medir quanto se exigia então da mente de José e da sua
tensão nervosa. Mas ele era moço e não lhe faltava vontade e resolução de
subir à altura dos desígnios divinos. Já não era ele o último daqueles que
prestavam serviço na casa; já havia quem se inclinasse diante dele. Isto,
porém, ainda não bastava; José estava convencido de que, por disposição
celeste, não somente alguns deveriam mais tarde inclinar-se diante dele,
mas todos, à exceção de um, isto é, do Altíssimo, ao qual lhe competia
prestar os seus serviços. Já agora era essa a firme e inconcussa convicção
do neto de Abraão, destinada a determinar a finalidade da sua vida. De que
maneira isso iria suceder, de que modo se chegaria a esse ponto, não o
sabia, não podia imaginá-lo; agora tratava-se de percorrer, cheio de vontade
e de coragem, o caminho que Deus abrira sob seus pés, de olhar à sua frente
o mais longe que fosse possível à vista humana e não desanimar se o
caminho era íngreme, pois que exatamente isto anunciava uma alta meta.
Assim ele continuava impávido a dominar sempre mais com a sua
mente a propriedade e os negócios, procurando tomar-se dia a dia mais
indispensável a Mont-kav; além disso, procurava cumprir com fidelidade o
pacto feito com ele e referente à pessoa de Putifar, o bom senhor, o supremo
no seu círculo imediato, e a ele se consagrava como servo do corpo e da
alma para conquistar sempre mais a sua confiança, como fizera durante a
conversa no bosquete e no colóquio acerca do jardim da passarinheira. Era
mister muito espírito e muita arte para proceder assim e para ser prestativo
ao amo com o seu íntimo, aquecendo dentro dele o sentimento de si mesmo
melhor do que o vinho que bebia à mesa. E se fosse só isso! Mas, se
quisermos fazer uma ideia de tudo aquilo a que devia acudir o filho de Jacó
para ser, ao mesmo tempo, auxiliar do mordomo e serviçal do amo, é
necessário acrescentar ainda que diariamente ele tinha de dar as boas-noites
a Mont-kav e sempre com palavras novas, extraídas do seu inesgotável
patrimônio verbal. Tinha sido esta, com efeito, a razão pela qual de início
ele fora comprado e, quando pela primeira vez foi feita a prova dessa
habilidade do jovem, Mont-kav ficara muito agradavelmente comovido para
depois resignar-se a perder tamanho gosto. Além disso sofria de insônia, do
que eram provas os seus olhos pequeninos e empapuçados. Sua cabeça,
cheia de tantas ideias, dificilmente achava passagem do dia laborioso ao
descanso noturno; também os rins, que nunca funcionavam bem, o
impediam de achar o bom caminho do sono; assim, no fim do dia, precisava
de bons augúrios e sugestões benéficas. Por esse motivo, ao cair da noite,
José nunca devia descuidar-se de comparecer diante dele e instilar-lhe no
ouvido alguma coisa que o acalmasse; e isso também devia, entre todas as
demais ocupações e sobrepondo-se a elas, ser pensado e preparado de dia,
porque para tanto era evidentemente necessária uma bela e variada forma de
expressão.
— Salve, pai meu, nesta noite! — dizia com as mãos erguidas. — Vê, o
dia cessou de existir, fechou os olhos, cansado de si mesmo, e sobre o
mundo todo se estende o silêncio. Ouve como é maravilhoso. Ainda vem da
cavalariça um patear de alimárias e um cão se faz ouvir, mas depois o
silêncio toma-se tanto mais profundo; ele penetra no ânimo do homem,
apaziguando-o; vem-lhe o sono e sobre os campos e sobre a cidade, sobre o
terreno fértil e sobre os descampados se acendem as vigilantes lâmpadas de
Deus. Alegram-se os mortais que a tarde tenha caído no tempo exato,
porque estão cansados e esperam jubilosos que amanhã o dia tome a abrir
os olhos depois que eles tenham restaurado as forças. Na verdade as
disposições de Deus são tais que devemos render-lhe graças! Detenha-se o
homem um pouco a imaginar que não exista noite e que a estrada das
canseiras se estenda diante dele indivisa, infinita, em irritante uniformidade.
Não seria o caso de nos apavorarmos, desalentados? Mas Deus criou os dias
e a cada um marcou uma meta que todos seguramente alcançam na sua
hora. O bosquete da noite nos convida ao sagrado repouso; com os braços
abertos, com a cabeça inclinada para trás e os lábios descerrados, com os
olhos a fecharem-se beatificamente, nós entramos na sua sombra deliciosa.
Não penses, meu caro senhor, sobre a tua cama, que deves repousar. Pensa
antes que podes repousar. Aceita tudo isto como uma grande graça e então
acharás paz. Deita-te, pois, ó meu pai, e baixe a ti e sobre ti o doce sono,
enchendo a tua alma de suave descanso, para que, forro de tormentos e
tribulações, possas respirar sobre o peito divino.
— Obrigado, Osarsif— disse o mordomo, e seus olhos se encheram de
lágrimas como já acontecera daquela primeira vez à luz do dia. — Bom
descanso também a ti! Ontem falaste talvez um pouquinho mais
harmoniosamente, mas hoje também a tua palavra foi confortador] como a
semente da papoula, e assim creio que me ajudará a conciliar o sono.
Agradou-me especialmente aquela tua distinção, isto é, que não devo
dormir, mas que posso dormir; proponho meditar nela, pois me será de
préstimo. Mas como fazes tu para que sobre os teus lábios as palavras se
tornem mágicas e digas, por exemplo, uma coisa como esta: "a ti e sobre ti,
enchendo a tua alma... ?” Tu mesmo decerto não és capaz de explicá-lo. E
com isto, boa noite, meu filho!
AMUN OLHA DE TRAVÉS A JOSÉ

Tais eram os múltiplos e variados encargos cometidos então a José; não


bastava que ele os desempenhasse, mas devia também haver-se de modo
que a sua fortuna lhe fosse perdoada, visto como o sorriso e o baixar
d’olhos com que os homens acompanham uma ascensão como a sua
escondem em si muita malícia que é preciso amansar com argúcia, com
indulgência, com uma arte delicada dirigida ora à direita, ora à esquerda —
o que certamente não era exigir pouco da clarividência e vigilância de José.
E coisa impossível que uma pessoa que, como ele, cresce junto a uma fonte
deixe de entrar no campo ora deste, ora daquele, nem viole o domínio de
outras pessoas. Não pode impedi-lo, porque a sua própria vida requer
irresistivelmente o dano de outros e uma grande parte da sua inteligência
deve sem cessar esforçar-se por conciliar com essa sua vida aqueles a quem
faz sombra, e que eclipsa. O José dos tempos anteriores ao fosso não
compreendera, não sentira tais verdades; tomara-o insensível a opinião de
que todos o amavam mais que a si mesmos. Mas, depois de morrer e de se
tomar Osarsif, ficara mais inteligente ou, se se quiser, mais ladino, uma vez
que a inteligência, como o prova a primeira fase da vida de José, não livra
de loucuras; e o delicado escrúpulo que mostrara no colóquio com Mont-
kav com referência a Amenemuje, que o precedera no cargo de ledor, era
dirigido, em primeira linha, a Mont-kav, na certeza de que produziria nele
uma impressão favorável, supondo-se ainda que o mordomo era homem
propenso a uma espontânea abdicação. Mesmo com relação a Amenemuje,
José fez o que pôde; procurou-o e lhe falou com tanta cortesia e modéstia
que aquele escrivão acabou ficando cativo, aceitando sinceramente e de
bom grado a sua destituição do cargo de leitor, lisonjeado com a
circunstância de ter o seu sucessor sido tão afável com ele. Com efeito José,
com as mãos sobre o peito, expôs com palavras tocantes como tinham sido
penosos para o seu ânimo a decisão e o sagrado capricho do senhor e como
ele de caso pensado nada fizera para induzi-lo a isso; e a melhor prova era a
sua convicção de que Amenemuje, o aluno da casa dos livros, lia muito
melhor do que ele, pela simples razão de ser um filho da terra negra, ao
passo que ele, Osarsif, era um asiático que estropeava a língua do país. Mas
acontece que um dia no jardim teve de falar perante o senhor e no seu
enleio lhe contou, a propósito de árvores, abelhas e pássaros, várias coisas
que por acaso sabia. Era quase incompreensível por que tudo aquilo
agradou ao senhor de modo tão desproporcionado que ele, com o rápido
impulso dos grandes e poderosos, tomou aquela deliberação, aliás sem
grande vantagem para ele, José — agora era-lhe mister convir nisso.
Efetivamente, muitas vezes o senhor lhe apresenta a ele, José, o exemplo do
próprio Amenemuje, dizendo: "Assim e assim lia e acentuava Amenemuje,
o meu leitor precedente; assim deves ler também tu, se quiseres achar graça
diante de mim, porquanto ele se tornou exigente.” Ele, José, procura fazer o
mesmo, tanto que, por assim dizer, a vida e o fôlego ele os tem só através
do seu antecessor. Mas nem por isso o senhor revoga a sua ordem, porque
os grandes querem, não devem nunca confessar que deram uma ordem com
demasiada precipitação e com prejuízo de si mesmos. Por esse motivo ele
José, procura confortá-lo no seu íntimo arrependimento, dizendo-lhe cada
dia”Tu deves, senhor, dar de presente a Amenemuje dois trajes de festa;
deves mais outorgar-lhe o bom lugar de escrivão dos doces e dos
divertimentos na casa das reclusas e assim, pelo que a ele diz respeito, te
sentirás mais aliviado e eu também.”
Como é natural, tudo isto era um bálsamo para Amenemuje. Não sabia
o ex-leitor que ha tão bem, pois as mais das vezes bastava ele abrir a boca
para logo o senhor pegar no sono; e dizendo a si mesmo que para vir a saber
de tão bonitas coisas só mesmo sendo dispensado, tinha por força de estar
contente com a dispensa. Também os remorsos de consciência do seu
sucessor e o inconfessado arrependimento do senhor faziam bem à sua
alma. E como realmente recebeu os dois trajes de festa e foi nomeado
superintendente dos divertimentos do harém de Petepré, sendo aquele um
ótimo lugar (prova de que José de fato tinha falado com o senhor a favor
seu) não guardava nenhum rancor ao cananeu, mas estava em boas
disposições para com ele, achando até que José procedera de modo muito
amável.
De resto, a José não importava absolutamente arranjar boas colocações
para os outros uma vez que ele mesmo, com a ajuda divina, mirava ao todo
e, embora ainda muito de longe, andava-se preparando para exercer a
vigilância geral, ao lado de Mont-kav. Do mesmo modo procedeu também
em relação a um certo Merab, o servo que sempre havia acompanhado
Petepré à caça das aves e à pesca com arpão. Também a estes divertimentos
viris Putifar levava Osarsif, o seu favorito, em sua companhia, e não mais
Merab. A bem dizer, isso devia ser um espinho e espinho venenoso na carne
de Merab. José, porém, tirou ao espinho o veneno e a ponta, falando a
Merab como falara a Amenemuje, arranjando-lhe igualmente um presente
honorífico e outro bom lugar, o de diretor da cervejaria, de sorte que, em
vez de ter nele um inimigo, tornou-o seu amigo e Merab dizia dele em
presença de todos: — Sim, é verdade, vem do miserável Retenu e dos povos
nômades do deserto, mas deixem estar que é um rapaz elegante, e de
maneiras muito afáveis. Pela santa tríade! Ainda comete erros quando fala a
língua dos homens; e todavia é assim e não de outra maneira que a gente, ao
abandonar um cargo e deixar o lugar para ele, ainda fica satisfeito de fazê-lo
e, quando se afasta, o faz com os olhos brilhantes de satisfação. E ninguém
tente dar-me a razão disto, pois não há explicação que valha e tudo o que se
disser não passa de toleima, e o fato é que os olhos da gente brilham de
satisfação.
Assim falava aquele Merab, homem vulgar e pobre filho do Egito; e foi
mais uma vez Se’ench-Ven-nofre etc. , o anãozinho Teófilo, que,
sussurrando ao ouvido de José, o pôs ao corrente daquilo que o despedido
andava dizendo entre os companheiros. — Quer dizer que podemos ficar
contentes — respondeu José. Mas ele sabia muito bem que nem todos
falavam assim. Já agora ele não se embalava na pueril imaginação de que
todos o amassem mais que a si mesmos. Percebia exatamente que a sua
ascensão na casa de Putifar, já por si desagradável a mais de um, se tomava
particularmente escandalosa por ser ele um forasteiro, um “habitante da
areia”, da raça dos Ibrim. Sabia ser aquela uma situação que devia ser
tratada com a máxima diplomacia. De novo nos achamos aqui diante
daqueles contrastes, daquelas facções que dominavam a terra dos netos e
entre as quais se desenrolava a carreira de José. Encontramo-nos diante de
certos princípios religiosos e patrióticos que se opunham a tal carreira e que
quase tinham conseguido mandá-lo intempestivamente para os campos; e
diante de certos outros princípios de gênero oposto, que poderiam ser
chamados tolerantes e despidos de preconceitos ou mesmo modernos e
fracos, que favoreciam sua ascensão. O mordomo Mont-kav professava
estes últimos princípios, pela simples razão de que eram também os
princípios de Petepré, seu senhor, o grande cortesão. E por que eram
também os deste? Naturalmente porque predominavam na corte, porquanto
havia ah uma revolta surda contra o grave peso e o poder religioso de
Amun, personificação de uma patriótica severidade de costumes nessa era
do país, e porque, precisamente por esse motivo, os grandes da corte se
inclinavam para o culto de outro deus e o apoiavam — qual seria este, bem
se pode calcular. Era o culto de Atum-Rá de On no vértice do triângulo,
esse deus manso e antiquíssimo, ao qual Amun se havia equiparado, não de
modo brando mas violento, chamando-se mesmo Amun-Rá, o deus do
império e do sol. Rá e Amun eram ambos o sol na sua barca, mas em que
sentido diverso o eram e de que maneira diversa! No colóquio com os
sacerdotes de Horachte, de olhos lacrimosos, tivera José no próprio lugar as
provas do móvel, alegre e instrutivo sentido solar desse deus. Conhecia o
seu desejo de expandir-se, a sua propensão a pôr-se em relação e em
entendimento universal com todos os imagináveis deuses solares dos povos,
com os filhos do sol da Ásia que como um esposo saíam da sua alcova,
como um ledo herói percorriam o seu caminho e no seu tramontar se
erguiam lamentações feminis. Segundo parecia, Rá não queria que houvesse
grande diferença entre ele e os demais, exatamente como no seu tempo não
quis Abraão que a houvesse entre o El-Elion de Melquisedeque e o seu
Deus. Ele se chamava Atum na hora que se punha, ocasião em que era
muito belo e digno de lamentações; mas recentemente, em consequência de
uma especulação havida por obra dos seus instrutivos profetas, dera a si
mesmo um outro nome de assonância semelhante, não só para o tramontar,
mas para a manhã, o meio-dia, a tarde, para toda a sua geral essência solar:
chamou-se Aton — com uma singular assonância que a ninguém escapou.
Pois assim aproximava o seu nome do do jovem que foi despedaçado pelo
javali e por causa do qual as flautas desferiam lamentos nos bosques e
grutas da Ásia.
Tal era a significação solar de Rá-Horachte, matizada de exotismo e de
uma universal benevolência. A corte apreciava muito este deus. Os letrados
de Faraó não sabiam fazer coisa melhor que tentar penetrá-lo com o
pensamento. Amum-Rá, ao contrário, o de Kamak, o pai de Faraó, no seu
palácio imponente e opulento de tesouros, era em tudo o oposto de Atum-
Rá. Era rígido e severo, inimigo acérrimo de toda especulação que
divagasse pelo universal, hostil ao estrangeiro, respeitador tenaz do costume
dos povos, da sagrada tradição em que não se deve sequer tocar, e tudo isto
sendo ele muito mais jovem do que o deus de On, de modo que este, o deus
mais antigo, se mostrava móvel e cheio de alegria do mundo, enquanto o
outro se revelava inflexivelmente conservador — situação verdadeiramente
confusa.
Como, porém, o Amun de Kamak olhava de través a influência que na
corte desfrutava Atum-Rá-Horachte, assim José percebia muito bem que
também ele, o estrangeiro, camareiro particular e leitor do cortesão, era
olhado de través. Pondo na balança favor e desfavor, bem depressa deduzira
que o sentido solar de Rá lhe era favorável, ao passo que o de Amun lhe era
desfavorável, e este desfavor exigia cuidados especiais.
Seu mais direto contato com Amun era o anão Dudu, guarda-joias do
cortesão. Desde o começo ficara bem evidente que este não o amava mais
que a si mesmo, mas muito menos. Não é possível dizer o trabalho que
tomou a si o filho de Jacó, procurando durante anos granjear as boas graças
da pomposa criatura. De todos os modos possíveis, com a mais refinada
amabilidade, tentou cativar o anão, estendendo suas finezas também àquela
que lhe cingia o pescoço com o braço, sua mulher Zeset, a qual ocupava
uma alta posição no serralho, e a Esesi e Ebebi, filhos deles, compridos e
feios, e evitando escrupulosamente violar o menos possível as suas lindas.
Certamente lhe seria coisa fácil, dadas as suas relações cordiais com
Petepré, pôr Dudu fora do campo e tomar-lhe o lugar. O amo não queria
coisa melhor do que atraí-lo cada vez mais para o serviço da sua pessoa, e é
quase certo que espontaneamente lhe ofereceu o posto ocupado por Dudu,
tanto mais que não podia suportar o arrogante pigmeu casado, o que José
bem notara, inferindo isso da visível aversão do mordomo pelo nanico.
José, porém, rejeitou delicada mas firmemente tal oferta, em primeiro lugar
porque, ocupado como andava a aprender a fiscalizar tudo, não lhe
convinha tomar a si novos serviços de alcova e de corpo, e depois, como ele
salientava, porque não podia e não queria superar a própria repugnância em
invadir as atribuições da pomposa migalha de gente.
Mas pensais que o anão se mostrou grato a José por tudo isto? Nada
disso. Neste ponto José se entregara a esperanças vis. A hostilidade
demonstrada por Dudu desde o primeiro dia, ou melhor, desde a primeira
hora fazendo tudo para que não se efetuasse a compra de José, não podia ser
superada e nem ao menos mitigada por nenhuma consideração nem
cortesia; e se se quiser penetrar com o olhar nos fundamentos e nos móveis
de toda esta história, não basta, para explicar uma tão tenaz aversão, deter-
se a gente na repugnância do egípcio pelo favorecimento de um forasteiro e
sua ascensão na casa. Para uma tal explicação, cumpre antes não perder de
vista os singulares poderes talismânicos em virtude dos quais José sabia que
prestava “auxílio” ao senhor e lhe conciliava as boas graças; o próprio
senhor Dudu havia experimentado esses maravilhosos poderes que, por
sinal, lhe tinham sido extremamente desagradáveis, porque com eles se
sentiu prejudicado no seu pleno valor e nos predicados que formavam
precisamente a altivez e a consciência de seriedade da sua vida de anão.
José percebia tudo isto. Sabia que com a sua eloquência no palmar havia
ferido a um nas mesmas íntimas profundezas da alma nas quais lograra
agradar ao outro e que, sem querer, de certo modo invadira o campo alheio.
Justamente por essa razão é que mostrara tanta delicadeza para com a
mulher de Dudu e sua prole. Mas foi tudo inútil. Sempre que pôde, Dudu
lhe mostrou sua invencível antipatia, o que conseguia especialmente
fazendo salientar, com majestática austeridade de moral antiga, a impureza
de José na sua qualidade de estrangeiro hebreu. A mesa, quando os mais
graduados empregados da casa, entre eles José, comiam o pão com o
mordomo Mont-kav, Dudu, formando com o beiço superior uma imponente
saliência sobre o inferior, fazia questão fechada de que os egípcios fossem
servidos à parte e à parte também o hebreu. E se o mordomo e os outros se
recusavam a tomar tão ao pé da letra o significado solar de Atum-Rá, ele,
ortodoxo sequaz de Amun, com severo espalhafato se apartava de tamanha
abominação, cuspia para os quatro pontos cardeais e executava em redor de
si toda a casta de exorcismos para expiar aquela imundície, sendo em tudo
isto mais que evidente o seu propósito de ofender José.
E se fosse só isso! José veio logo a saber que o nobre Dudu trabalhava
ativamente contra ele e procurava expulsá-lo da casa. Mais de unia vez o
seu amiguinho Bes-em-heb lhe contou tudo tintim por tintim. Graças à sua
minúscula estatura, o pequeno Teófilo tinha extraordinária habilidade em
espiar e ouvir. Parecia talhado para se achar presente onde havia alguma
coisa que apanhar. Era ele senhor de esconderijos de cuja existência ou
importância nenhum crescido suspeitava, Dudu, que pertencia à mesma raça
e lhe era igual nas medidas do mundo pequeno, devia mostrar-se menos
grosseiro e inerme. Mas as coisas se passavam talvez como pensava o
pequeno Teofilo, isto é, que por causa do seu matrimônio no mundo dos
crescidos Dudu perdera algumas finezas da vida minúscula e, também por
causa da solidez que o tomara apto a um tal enlace, possuía só
imperfeitamente a fineza do anão. O certo é que, sem ele o perceber, ia
sendo surpreendido e espiado pelo desprezado irmãozinho, podendo este
em pouco tempo descobrir os caminhos trilhados por Dudu no sentido de
impedir a ascensão de José. Esses caminhos conduziam à casa da reclusa,
levavam a Mut-em-enet, a mulher honorária de Putifar, e o que o anão lhe
andava dizendo ela depois o repetia, quer na sua presença, quer a sós, com
um potentado que tinha livre acesso no harém de Petepré e até nos
aposentos particulares de Mut-em-enet: Beknechons, o primeiro profeta de
Amun.
Pela conversa dos maldosos paizinhos de Putifar já é sabida a estreita
relação existente entre a ama de José e o templo do grave deus do império,
a casa de Amun-Rá. Como tantas outras mulheres da sua classe social,
como, por exemplo, a sua amiga Renenutet, esposa do superintendente-
chefe dos bois de Amun, Mut pertencia à nobre ordem de Hathor, colocada
sob o patrocínio da consorte de Faraó, e que tinha como atual dirigente a
mulher do sumo sacerdote do deus de Kamak, em outras palavras, a mulher
do piedoso Beknechons. O centro e casa espiritual da ordem era o belo
templo sobre o rio, chamado “o gineceu meridional de Amun” ou “o
harém”, que a maravilhosa avenida dos carneiros ligava à grande habitação
de Kamak e que exatamente no momento estava sendo ampliado por Faraó
com uma imensa galeria hipóstila, superando em altura os demais edifícios.
“Mulheres do harém de Amun” eram também solenemente chamadas as
inscritas na ordem e, de acordo com isso, a sua superiora, a esposa do sumo
sacerdote, tinha o título de “primeira entre as mulheres do harém”. Mas por
que seria que estas damas se chamavam sacerdotisas de Hathor, enquanto a
eminente consorte de Amun-Rá se chamava Mut ou “Mãe” e Hathor, a dos
olhos de vaca, de bela aparência, era a senhora de Rá-Atuni, o senhor de
On? Estas eram sutilezas e equiparações politicamente sábias do Egito...
Com efeito, assim como Amua se comprazia politicamente em ombrear
com Atum-Rá, também Mut, a mãe do filho, ombreava com a avassaladora
Hathor, e as mulheres terrenas do harém de Amun, as damas da alta
sociedade de Tebas, faziam o mesmo. Quando sob a máscara da mulher do
sol, na sua vestimenta esplendente, com os chifres de vaca sobre a coifa de
ouro e entre eles o disco solar, tocavam música nas grandes festas de Amun,
dançavam e cantavam tão bem quanto sabem cantar as damas da sociedade,
cada uma delas era Hathor, a senhora do amor, em pessoa. Elas eram eleitas
não pelo critério da harmonia das suas vozes, mas pelo da sua riqueza e
nobreza. Contudo, Mut-em-enet, mulher de Putifar, cantava muito bem e
ensinava canto a outras mulheres, como à consorte do superintendente dos
bois, Renenutet, e desfrutava de muito prestígio no harém do deus, sendo o
seu posto na ordem quase igual ao da dirigente, e o marido desta,
Beknechons, o grande profeta de Amun, tinha livre acesso à casa de Mut,
na qualidade de amigo e pio confidente.

BEKNECHONS

Já há muito José conhecia de vista este severo personagem; repetidas


vezes o vira entrar no pátio e diante do harém para visitar a senhora, e,
identificando-se com a alma de Faraó, se irritara com a pompa e o estadão
de Beknechons. Soldados do deus, com lanças e clavas, corriam na frente
da sua cadeirinha pendente de longos varais sobre os ombros de quatro
vezes quatro servos do templo, de cabeça rapada; outra fila acompanhava a
charola, a cujos lados eram levados flabelos de pena de avestruz, como se
Amun em pessoa viesse transportado na sua barca triunfal. Diante da
primeira fila corriam também maceiros que, apregoando a chegada,
enchiam o pátio com os seus gritos exaltados e pretensiosos, para que todos
acudissem, e para acolher o grande hóspede no limiar se achasse aquele que
estava à testa da casa, se não o próprio Petepré em pessoa. Nessas ocasiões
Putifar costumava mandar dizer que não estava em casa, mas Mont-kav
achava-se impreterivelmente presente e por trás dele foi visto mais de uma
vez José, que observava com atenção o importante personagem, porque nele
descobrira a mais alta e mais remota personificação daquele hostil
significado do sol, de que Dudu era a personificação mais próxima e menor.
Beknechons era de estatura alta, sua figura se erguia altiva e aprumada,
os ombros se encurvavam para trás, tinha o queixo arrebitado. Sua cabeça
oval, sempre descoberta, com o reluzente crânio rapado, recebia particular
expressão de um sinal fundamente vincado e sempre visível entre os olhos e
que nada perdia da sua severidade quando o homem sorria, o que se dava
como indício de condescendência e como prêmio de um ato de especial
humildade. A cara do sumo sacerdote, escrupulosamente escanhoada, quase
simetricamente esculpida, imóvel, com os zigomas salientes, era
atravessada em volta das narículas e da boca por sulcos tão profundos como
o sinal entre os olhos. Tinha um modo de olhar por cima dos homens e das
coisas que era algo mais que arrogante, porque era uma como repulsa a tudo
aquilo que pertencia ao mundo presente, uma negação e condenação do
desenvolvimento inteiro da vida de séculos e mesmo de milênios até seu
tempo. Também o seu traje, conquanto precioso e fino, era antiquado, no
estilo dos sacerdotes e de séculos atrás. Via-se claramente que, sob a veste
que descia das axilas até os pés, Beknechons usava um saiote simples,
apertado, curto, como o que era tradicional entre as primeiras dinastias do
antigo império. A tempos ainda mais remotos e, talvez por isso mesmo, de
mais religiosidade devia remontar a sacerdotal pele de leopardo atirada
sobre os ombros, de modo tal que a cabeça e as patas dianteiras do felino
lhe caíam pelas costas e as patas traseiras se cruzavam no peito, sobre o
qual se viam ainda outros distintivos da sua dignidade: uma faixa azul e um
complicado colar de ouro ornamentado com cabeças de carneiro.
Aquela pele de leopardo era sem dúvida um sinal de arrogância, pois
fazia parte dos paramentos do primeiro profeta de Atum-Rá de On, não
ficando bem aos servos de Amun. Beknechons, porém, era homem capaz de
determinar por si mesmo aquilo que lhe convinha, e ninguém, nem ainda
José, ignorava por que motivo ele usava a roupa primordial dos homens, a
sagrada pele de animal. Queria com ela atestar que Atum-Rá passara para
Amun, que ele era apenas uma forma do grande de Tebas, a ele de certo
modo sujeito e ainda mais que isso. Amun, isto é, Beknechons, conseguira
que o profeta-chefe de Rá, em On, aceitasse a título honorífico o cargo de
segundo sacerdote de Amun de Tebas, de sorte que a supremacia do sumo
sacerdote sobre ele e o seu direito a usar o respectivo distintivo eram
perfeitamente justificados. Fizera valer essa precedência também em On,
sede de Rá. Com efeito, não só Beknechons se chamava “chefe dos
sacerdotes de todos os deuses de Tebas”, mas assumira também o título de
“chefe dos sacerdotes de todos os deuses do Alto e Baixo Egito”, sendo
destarte o primeiro de todos também na casa de Atum-Rá. Como, pois, não
lhe havia de ser lícito usar a pele de leopardo? Não sem terror se podia
observar aquele homem e pensar na soma de poderes que enfeixava nas
mãos. E José estava já suficientemente identificado com a vida e as
atividades do Egito para que o seu coração não fosse tomado de viva
apreensão vendo como Faraó cevava cada vez mais aquele potentado e cada
vez mais o ensoberbecia com intermináveis dádivas de bens e tesouros, na
ingênua persuasão de que, presenteando-o assim, presenteava seu pai Amun
e portanto a si mesmo. Para José (embora não o desse a entender a
ninguém) Amun-Rá não passava de um ídolo como tantos outros: ora um
carneiro no seu nicho, ora a imagem de um bonifrate na sua capela, imagem
essa que se levava num giro pelo Jeor sobre uma pomposa barca, porque
não se sabia de outra coisa melhor para fazer. Aqui José distinguia com
maior liberdade e agudeza que Faraó; achava ele que não ficava bem nem
era prudente que o deus cevasse sempre mais o seu suposto pai; por isso
causava-lhe viva preocupação ver o grande de Amun sumir-se no harém e
na sua sabedoria política essa preocupação era ainda superior à que ele
tinha com o seu próprio bem-estar, embora soubesse que lá dentro se falava
desse seu bem-estar de um modo suspeito.
Pelo pequeno Teófilo, seu primeiro protetor na casa de Putifar, José
soubera que mais de uma vez Dudu tinha falado dele diante de Mut, a
senhora, fazendo queixas. O anãozinho, encafuado em esconderijos
incríveis, pudera assistir a conversas dessas, transmitindo-as depois num
sussurro e literalmente a José, de modo que este pôde ver com os próprios
olhos como o encarregado do guarda-roupa se punha diante da ama e
estendendo com toda a imponência a saliência do beiço superior sobre o
inferior, gesticulando indignado com os seus bracinhos e fazendo a voz
mais grossa possível, lhe falava emproadamente da indecência e do
escândalo que era José ali. Sim — dizia-lhe —, o tal escravo Osarsif, como
ele a si próprio se chama, aliás de modo pouco claro e provavelmente
arbitrário, o tolo hebreu, mísero escumalha do deserto. A sua ascensão na
casa era verdadeiramente uma vergonha e a graça que ali desfrutava um
cancro roedor. Sem dúvida alguma o Oculto via tudo aquilo com maus
olhos. Já desde o princípio fora comprado por uma exorbitância, quando,
contra o ajuizado parecer dele, anão, pagaram pelo tal cento e sessenta
deben a miseráveis negociantes do deserto que o tinham roubado de um
poço, de um buraco onde fora posto por castigo, e depois o colocaram na
casa de Petepré por solicitação da noz oca, o bufão solteiro Chepes-Bes. E
em vez de se mandar logo o palerma estrangeiro para os trabalhos do
campo, como gente honesta aconselhara ao mordomo, este o deixara andar
ocioso pelo pátio, permitindo em seguida que ele falasse no palmar a
Petepré; e o celerado aproveitara imediatamente o ensejo de tal modo que,
chamando-se-lhe descarado, ainda se falava pouco e com brandura. Ele,
com efeito, serrazinava de contínuo o amo com capciosos rodeios que eram
um ultraje a Amun e uma blasfêmia contra a força suprema do sol. E assim
tirou ao santo senhor todo o discernimento, enfeitiçou-o criminosamente, de
feição que este o elevou ao cargo de seu camareiro particular e leitor,
enquanto por seu lado Mont-kav o tem na conta de filho seu, ou, melhor
ainda, na conta de filho da casa, de cuja economia interna se vai inteirando,
como se aquilo fosse um legado seu, e se ensaia para fazer o papel de vice-
mordomo. A tanto se atreve um ronhoso asiático numa casa egípcia! Muito
humildemente ele, Dudu, toma a liberdade de chamar a atenção da senhora
para esse horror, pois que o Oculto poderia facilmente irar-se e vingar-se do
corruto espírito de tolerância naqueles que o perpetraram e suportaram.
— Que foi que a senhora respondeu? — perguntou José, ouvindo essas
coisas. — Dize-me com toda a exatidão, meu pequeno Teófilo, e, tanto
quanto possível, repete-me suas próprias palavras.
— Suas palavras — respondeu o anão — foram estas”Enquanto falavas,
ó superintendente dos escrínios das joias, eu ia pensando na pessoa a quem
te referias e que escravo estrangeiro tinhas em mente ao apresentares tuas
queixas, já que não me recordava dele e em vão procurava esse indivíduo
nos escaninhos da minha memória. Não vais exigir que eu tenha presente
toda a criadagem da casa e que, quando aludes a um, eu logo perceba quem
é. Mas, como me deixaste tempo para refletir, veio-me a suposição de que
pretendes falar dum servo, ainda de verdes anos, que há algum tempo vem
enchendo o cálice de meu marido Petepré ao almoço. Fazendo um esforço
de memória, vem-me uma obscura lembrança desse avental prateado.”
— Obscura? — comentou José, meio decepcionado. — Como posso ser
assim tão obscuro à nossa patroa, se estou todos os dias em tamanha
proximidade diante dela e do meu senhor à mesa, sendo que nem a ela pode
ter escapado a graça que alcancei dele e de Mont-kav? Muito me admira
que ela tivesse de indagar tanto tempo e esforçar-se tanto antes de saber a
quem se referia o maligno Dudu. Que mais disse ela?
— Ela disse... — continuou o pigmeu — ela disse”Por que me fazes
isto, ó guarda-joias? Por que me contas todas estas coisas? Tu atrais sobre
mim a cólera de Aniun. Tu mesmo dizes que ele se enfurecerá contra
aqueles que toleram o escândalo. Se, porém, eu nada sei, nada tolero. O que
devias, pois, fazer era calar-te com o respeito a mim devido, em vez de me
contar tudo isto, expondo-me assim ao perigo.”
Destas palavras José riu alegremente, aplaudindo com ardor. — Que
esplêndida resposta, que boa sarabanda! Conta-me mais alguma coisa da
senhora, meu pequeno Bes. Repete-me tudo exatamente, pois espero que
tenhas prestado toda a atenção.
— O malvado Dudu — disse Teófilo — ainda acrescentou outra coisa.
Ele se justificou dizendo”Eu falei à nossa ama sobre esse horror, não porque
ela o tolere, mas para que lhe ponha termo; e por amor lhe ofereci a
oportunidade de prestar um serviço a Amun, falando com o amo no sentido
de ser o servo impuro afastado da casa. Ejá que ele foi comprado, que seja
enviado aos trabalhos servis do campo, como lhe convém, em vez de lhe
consentirem que se tome mordomo aqui e que despudoradamente se
sobreponha aos filhos desta terra.”
— Feio — disse José —, muito feio. Discurso odioso, malévolo! E que
respondeu a isto a senhora?
— Respondeu o seguinte”Ah, austero anão, mui raro acontece que à
senhora seja dado falar confidencialmente com o senhor. Lembra-te das
formalidades da casa e não penses que entre mim e ele as coisas se passam
como entre ti e aquela que te enlaça com o braço, a senhora Zeset, que te
coube por esposa. Ela vem ter contigo com toda a simplicidade e animosa
fala contigo, seu marido, de tudo que diz respeito a ela e a ti, e às vezes
talvez te induz a fazeres isto e mais aquilo. E que ela é de fato mãe, tendo-te
dado dois filhos respeitáveis, Esesi e Ebebi, e tu por isso és grato à tua
mulher e tens razão de prestar ouvidos à fecunda benemérita e de atender os
seus desejos e advertências. Mas eu que sou para o senhor? Que razão tem
ele de me prestar ouvidos? Grande é, como sabes, a sua teimosia, soberbo e
surdo o seu capricho, e assim eu sou impotente diante dele com as minhas
exortações.”
José conservava-se calado e, imerso em pensamentos, olhava do alto o
seu pequeno amigo, que, apreensivo, cismava apoiando na mãozinha a cara
rugosa.
— E que disse então o encarregado do guarda-roupa? — inquiriu,
depois de uma pausa, o filho de Jacó. — Deu alguma resposta e se estendeu
ainda em torno do argumento?
O anãozinho respondeu negativamente. Disse que diante de tal resposta
Dudu se fechara nobremente em copas. A senhora, ao contrário,
acrescentou que queria, antes de tudo, falar com o sumo sacerdote a
respeito do caso. Uma vez que Petepré promovera o escravo estrangeiro
depois que este havia falado com ele de coisas referentes ao sol, era
evidente que a questão ah era de política religiosa, o que dizia respeito a
Beknechons, o grande de Amun, amigo e confidente dela própria. Era
preciso que este o soubesse e, por descargo de consciência, ela desejava
contar-lhe tudo quanto Dudu lhe dissera com relação àquele escândalo.
Foi o que informou o anão. Mais tarde, porém, José se lembrou que
Bes-em-heb continuara muito tempo sentado perto dele, no seu traje
grotesco, com o cone de unguentos em cima do chinó, o queixo apoiado na
mãozinha, piscando e com o semblante sombrio.
— Que estás aí a piscar, Teófilo, na casa de Amun? — perguntara José.
— Que estás ainda matutando acerca destas coisas?
Eis a resposta do anão, na sua vozinha de grilo:
— Ah, Osarsif, o anãozinho está refletindo em como não é nada bom
que o malvado compadre fale a teu respeito a Mut, a ama; não, não é nada
bom.
— Naturalmente — concordou José. — Que estás aí a dizer? Que isso
não é nada bom, sei eu muito bem, e sei que é até perigoso. Mas, vê tu, eu
vou tomando tudo à boa parte porque confio em Deus. Apropria senhora
não confessou que não tem grande influência junto de Petepré? Uma
palavrinha dela, um aceno não bastam para me mandar trabalhar no campo,
podes ficar sossegado.
— Como posso ficar sossegado — replicara Bes —, se há sempre o
perigo que de outro modo e por outras vias o compadre avise a ama e aclare
a sua escuridão a teu respeito?
— Perceba quem puder! — tinha exclamado então José. — Porque eu
não percebo, e obscuro me parece o teu vanilóquio. Perigoso ainda de outro
modo e por outras vias? Que coisas obscuras estás aí a murmurar?
— Eu murmuro, eu murmuro o meu receio e o meu pressentimento —
foi o que disse novamente o pequeno Teófilo —, e te sussurro uma
sabedoriazinha cheia de preocupações que ainda não consegue chegar a ti,
homem crescido. O compadre quer fazer mal, mas poderia dar-se o caso
que, contra a sua mesma vontade, faça bem, muito bem, o que seria de novo
mal, muito pior ainda do que aquilo que ele pensava fazer.
Não mo leves a mal, meu homenzinho, mas coisas sem sentido um
homem não as pode compreender. Mal, bem, muito bem, ainda muito pior?
Isto é geringonça de anão, bestialógico miúdo, que, apesar de toda a minha
boa vontade, não logro entender.
— Mas por que ficaste com a cara vermelha, Osarsif, e estás de mau
humor como há pouco quando eu te disse que a senhora tinha de ti uma
ideia obscura? A pequena sabedoria quisera que tu continuasses sempre
obscuro para ela, porquanto é perigoso, duas vezes perigoso, mais perigoso
do que o perigo, que o compadre a faça ver as coisas através da sua própria
maldade. — Assim dissera o anão e, encolhendo-se nos seus bracinhos,
prosseguiu: — O anão tem grande medo, tem pavor do inimigo, do touro,
cujo hálito de fogo destrói o campo.
— Que campo? — perguntara José com crescente incompreensão. — E
que touro de fogo? Hoje não estás com a cabeça no lugar e não podes
regular direito. Vai pedir a Pança Queimada algum suco de erva, um
calmante qualquer que te refresque as ideias. Eu vou à minha vida. Posso
impedir que Dudu me acuse junto da senhora, por mais perigoso que isso
seja? Tu, porém, vês a minha confiança em Deus e não precisas alarmar-te
tanto. Continua a prestar toda a atenção; se te for possível, não deixes
escapar palavra do que disser Dudu à ama e especialmente do que ela lhe
responder, de modo que depois me dês conta de tudo, de fio a pavio. O que
importa é que eu esteja ao corrente de tudo.
Assim, pois, se desenrolara a conversa (mais tarde José pensou nisso)
que tinha incutido tanto medo em Teófilo. Mas realmente sena apenas a
confiança em Deus e nada mais o que fez que José acolhesse com relativa
serenidade a notícia dos manejos de Dudu?
Até então José fora para a ama, se não exatamente como o ar que não se
vê, ao menos uma figura sem importância, um objeto no espaço, tal como
fora um servo mudo para Hui e Tui. Dudu, porém, acreditando levar as
coisas para o lado mau, havia em todo o caso operado uma mudança na
atitude da senhora. Se agora à mesa, na sala, enquanto José apresentava os
pratos ao senhor e lhe enchia o cálice, o olhar dela caía sobre o mancebo,
não era isso por puro acaso, não era como um olhar que cai sobre um objeto
qualquer, senão que ela o olhava pessoalmente, como se olha uma aparição,
que com o seu fundo, com as coisas a ela relativas, dá que pensar, tanto em
sentido favorável como em sentido desfavorável. Numa palavra, aquela
grande dama do Egito, a sua ama, o observava desde algum tempo. Como é
natural, ela o fazia de maneira muito fraca e fugaz, e seria dizer demais
afirmar que seus olhos pousavam sobre ele. Mas de vez em quando caíam
sobre ele, indagadores, durante o tempo que se costuma chamar um
instante... talvez pensando e recordando-se que ela queria falar a seu
respeito com Beknechons. Desses instantes José tomava nota por trás das
suas pestanas. Apesar de toda a atenção que tinha de consagrar ao serviço
de Petepré, não lhe escapava um, conquanto tenha acontecido só uma ou
duas vezes que o instante fosse bilateral e que o olhar da senhora e o do
servo se encontrassem quase abertos: fraco, soberbo, mantido com
severidade o olhar daquela; respeitosamente aterrado o deste, um olhar que,
num bater de pálpebras, acabava rapidamente em humildade.
Essas coisas aconteciam desde o dia em que Dudu havia falado com a
senhora. Antes, isso jamais se verificara, e — seja dito cá à puridade — a
coisa não desagradava inteiramente a José. De certo modo ele vislumbrava
aí um progresso para si e tinha ímpetos de ser grato a Dudu, seu adversário,
por ter mencionado o seu nome diante da ama. Quando mais tarde tornou a
ver Beknechons entrar no harém, não lhe desagradou a ideia de que
provavelmente teriam falado nele e na ascensão; a essa ideia andava unida
uma certa satisfação, ou antes, uma certa alegria, embora não fosse também
pequena a apreensão e a preocupação que o assunto trazia no bojo.
O que tinham dito José o soube também desta vez por intermédio do
vizir truão, que achara meios e modos de acompanhar secretamente o
colóquio, metendo-se nalguma dobra ou fenda. Antes de tudo, sacerdote e
dama haviam trocado ideias sobre coisas do serviço divino e negócios
pessoais da sua sociedade, haviam “feito língua” para usar a expressão dos
filhos de Keme, que era antes uma locução babilônica; em outras palavras,
tinham feito um pouco de mexerico da metrópole. Quando a palestra caiu
sobre Petepré e sua casa, a senhora referiu ao sacerdote amigo as queixas de
Dudu, informando-o da inconveniência doméstica que se andava
perpetrando com o escravo hebreu a quem o cortesão e o seu primeiro
administrador tinham conferido grandes e estupendos favores e promoções.
Beknechons escutou o relatório, fazendo sinais afirmativos de cabeça, como
se as palavras da senhora confirmassem as suas sombrias expectativas
gerais e se adaptassem muito bem no quadro moral de uma época que
perdera o temor de Deus, se comparada com aquelas épocas nas quais o
saiote era apertado e curto como ele, Beknechons, usava. Sem dúvida um
indício muito grave — assim se exprimiu. Um sinal dos tempos de
relaxamento e de desprezo da antiga piedade. O espírito de religiosidade, a
princípio fino e sereno, andou necessariamente perdendo-se na dissolução e
agora quebranta os vínculos mais santos e debilita os países, de modo que
ao longo da costa já não existe medo do seu cetro e está o império em
decadência. Depois disso, no dizer do pequeno Teófilo, o primeiro
sacerdote de Amun se desviou subitamente do tema, passando a coisas de
maior vulto e ventilando questões políticas de domínio e conservação do
poder. Começando de longe e acenando com as mãos a várias regiões da
terra, falou do rei de Mitani, Tuchrata, que devia ser barrado na sua
expansão por Chubbilulima, grande rei do império de Chatti no Norte, o
qual por sua vez não havia de ir-lhe à mão com demasiado sucesso. De
feito, se o belicoso povo de Chatti subjugasse completamente Mitanni e se
arremessasse para o sul, podia tomar-se perigoso para as possessões sírias
de Faraó, para os territórios anexados por Men-cheper-Rá-Tutmés, o
Conquistador, visto que, se um dia os seus selvagens deuses a tanto o
impelissem, poderia, evitando Mitanni, inundar o país de Amki sobre o mar,
entre as montanhas de Amanus e dos Cedros. Verdade é que contra este
estaria sobre o tabuleiro do mundo a figura de Abd-achirtu, o amorita, que,
sendo vassalo de Faraó, domina o país entre Amki e Chanigalbat e está ali
justamente para opor um dique à expansão de Chubbilulima para o sul. Mas
o amorita só se oporia a isso enquanto o terror de Faraó fosse maior no seu
coração que o medo de Chatti; do contrário, não há dúvida de que faria
causa comum com este e trairia Amun. Com efeito, são todos uns traidores
esses reis tributários da conquista síria; todos trairão logo que afrouxe o
terror de que tudo depende, incluídos entre os temerosos os beduínos e os
povos nômades da estepe, os quais, sem aquele terror, irromperiam no país
fértil e devastariam as cidades de Faraó. Numa palavra, são muitos os
aborrecimentos que advertem a terra do Egito a manter-se enérgica e viril,
se deseja conservar o terror ao seu cetro e o império para as coroas. Por isso
deve o povo egípcio ser pio e austeramente moral como nos tempos
vetustos.
— Um homem poderoso — disse José depois de ter escutado esse
discurso. — Para um sacerdote de Deus e um crânio espelhante que deveria
ser um bom pai para os seus e estender a mão àqueles que põem o pé em
falso, preocupa-se muito com as coisas terrestres e as exigências de uma
sábia política. Tudo isso é digno de admiração. Mas, cá entre nós, meu
pequeno Teófilo, ele devia deixar todas essas preocupações a respeito do
império e do terror dos povos a Faraó no palácio, o qual para esse fim foi
nomeado e colocado naquela altura. E certo que assim foi estabelecido entre
o templo e o palácio nos dias que Beknechons louva, com detrimento dos
tempos atuais. Mas depois das suas palavras a ama não disse mais nada?
— Eis o que ela respondeu”Ah, meu pai, não é verdade que, quando o
Egito era devoto e pudico nos seus costumes, era pequeno e pobre, e nem
para o sul, para lá das cataratas que dão para o país dos negros, nem para o
oriente, até os rios que correm em sentido inverso, as suas lindas atingiram
tão longe os povos tributários? Mas da pobreza veio a riqueza, da pequenez
o império. Agora os países e Vese, a Grande, pululam de forasteiros, os
tesouros afluem em grande quantidade e tudo está renovado. Não te alegras
com o novo que proveio do antigo e é o seu prêmio? Com os tributos dos
povos Faraó traz ricos holocaustos a seu pai Amun, de maneira que o deus
pode edificar a seu bel-prazer e se intumesce como o rio na primavera
quando já esta alto no hidrômetro. Não há de, pois, o meu pai saudar o
progresso das coisas depois dos longínquos tempos devotos?”
— E a pura verdade — respondera Beknechons, no dizer de Teófilo. —
A minha filha fala com grande sabedoria sobre a questão dos países, tal
como a considera. Pois eis como a considera: o antigo, o bom antigo
continha em si o novo, isto é, o império e a riqueza, como seu prêmio; mas
é precisamente o prêmio, isto é, o império e a riqueza, que traz consigo o
relaxamento bem como o enfraquecimento e a perda. Que se deve fazer
para que o prêmio não se tome maldição e o bem não acabe por ser
premiado com o mal? E este o modo de apresentar a questão. E o senhor de
Kamak, Amun, o deus do império, responde assim: o antigo deve tomar-se
senhor do novo, a energia e a pudicícia do povo devem ser postas acima do
império de modo que sirvam de freio ao relaxamento e não percam o
prêmio que é seu. De feito, não aos filhos do novo mas aos do antigo toca o
império, tocam as coroas, a branca, a vermelha, a azul e, além dessas, a
coroa dos deuses.
— Palavras vigorosas! — exclamou José, ouvindo isso. — Graças ao
teu tamanhozinho, pequeno Teófilo, ouviste um discurso vibrante,
inequívoco. Com isso estou alarmado, conquanto não surpreso, pois desde
que vi pela primeira vez as suas milícias na “rua do Filho” tive o
pressentimento de que assim pensa Amun no seu íntimo. Com que então a
nossa senhora só havia dito poucas palavras a meu respeito e já Beknechons
passava aos grandes problemas, de sorte que se esqueceu completamente de
mim. Mas, pelo que ouviste, depois voltaram a ocupar-se da minha pessoa,
não é exato?
Chepses-Bes referiu que só no fim falaram ainda qualquer coisa e que,
ao despedir-se, o primeiro sacerdote de Amun prometeu interrogar
severamente e o mais breve possível a Petepré, mostrando-lhe como é
perigoso para os bons e velhos costumes do povo andar favorecendo um
escravo estrangeiro.
— Nesse caso, parece-me que devo tremer — comentou José —, devo
recear que Amun ponha fim à minha ascensão, porque, se ele está contra
mim, como posso viver? As coisas vão mal, meu pequeno Teófilo, porque,
se agora me mandam para os trabalhos de escravo no campo, depois que o
escrivão da colheita se inclinou diante de mim, será pior do que se eu
tivesse sido mandado logo para lá, e eu poderia minar de calor durante o dia
e tiritar de frio à noite. Acreditas, porém, que será concedido a Amun
proceder dessa maneira comigo?
— Tão estúpido não sou — disse o pequeno Teófilo. — Eu não sou o
anão casado que atirou aos ventos a pequena sabedoria. Verdade é que
cresci (se assim me é lícito exprimir-me) no temor de Amun. Mas faz muito
tempo que sei, Osarsif, que contigo está um deus mais forte do que Amun,
mais sagaz do que ele, e não creio que esse teu deus te vá entregar a ele e
que permita àquele que está na capela pôr à tua ascensão um termo
diferente do que ele próprio estabeleceu.
— Fica, pois, alegre — disse José, batendo com todo o cuidado no
ombro do pequeno para não o magoar —, fica de ânimo firme, Bes-em-heb,
pelo que me diz respeito. Afinal de contas, também é possível que o amo
me dê ouvidos quando a sós e eu lhe possa fazer ver quanto tudo isto é
perigoso, talvez perigoso até para Faraó, seu senhor. Desse modo ele nos
ouvirá a ambos, a mim e a Beknechons. Este lhe falará de um escravo e o
escravo lhe falará de um deus. Veremos a quem dará ouvidos com maior
solicitude. Entende-me bem, não quero dizer a quem, mas a que argumento.
Tu, porém, sê vigilante, meu amigo, sê sabiamente presente para mim em
frinchas e dobras quando Dudu se lamentar de novo diante da ama, para que
eu ouça as palavras dele e as dela.
E assim foi. Pois é claro que o guarda-joias não se contentou só com
uma queixa na presença de Mut-em-enet. Não desanimou, senão que de vez
em quando voltava à carga, lamuriando-se diante da senhora do indigno
favoritismo concedido ao estrangeiro arrancado ao buraco do castigo.
Teófilo estava sempre no seu posto, referindo a José e inteirando-o
fielmente dos passos de Dudu. Mas ainda mesmo que Bes tivesse sido
menos vigilante, toda vez que o anão casado se queixava de José, este o
viria logo a saber. E que vinham então, dirigidos a ele, os olhares da
senhora na sala de jantar. E se se passavam vários dias sem que houvesse
aqueles olhares, entristecendo-se com isso José, o fato de voltar a mulher a
lançar sobre ele olhares severamente indagadores, não como sobre uma
coisa qualquer mas como sobre uma pessoa, fazia José ciente de que Dudu
renovara suas queixas, e dizia então consigo o mancebo”Fê-la lembrar da
minha pessoa. Que perigo!” Mas pensava também”Que bom!”, e de certo
modo agradecia a Dudu tê-la feito lembrar-se dele.
JOSÉ TORNA-SE VISIVELMENTE EGÍPCIO

Não mais visível aos olhos paternos, mas intensamente vivo no seu
lugar e em si mesmo, José olhava e movia-se no mundo egípcio, vendo-se
posto muito rapidamente diante de grandes tarefas; e enquanto, na primeira
fase da sua vida, não conhecera deveres nem esforços mas procedera como
lhe dava na cabeça, estava agora ativamente atarefado em alçar-se à altura
dos planos divinos, com a cabeça cheia de números, coisas, valores e
negócios. Além disso, via-se envolvido numa rede de problemas de
delicadas relações humanas que era necessário atender com incessante
cuidado. Os fios dessa rede se estendiam a Putifar, ao bom Mont-kav, aos
anões da casa, a Deus sabe que outras pessoas mais, dentro da casa e fora
dela, todos seres vivos dos quais não se tinha ideia na sua antiga morada,
onde estavam seu pai e seus irmãos.
Essa morada estava muito distante, a uma distância muito maior do que
a que se percorre em dezessete dias, mais distante do que estivera Jacó de
Isaac e Rebeca quando aquele vivia e se movia na luz mesopotâmica. Então
nem mesmo eles podiam fazer qualquer ideia dos seres vivos e dos
problemas de relações entre os quais vivia o filho e este se fizera estranho à
sua vida cotidiana. O mundo de um homem é onde ele vive: um apertado
círculo de vida, trabalho e ação. O resto é uma coisa vaga, uma névoa. Tem
sido constante aspiração dos mortais deslocar o centro da sua vida, fazer
descer até a névoa o centro usual e olhar as coisas numa luz diferente. Entre
eles era forte também o instinto que tinha Neftali de entrar na névoa e
contar as coisas de cá aos moradores de lá, os quais sabiam somente das
suas próprias coisas, e em compensação trazer para casa, com a nova luz,
algo digno de saber-se. Numa palavra, havia o tráfico, a troca. Tudo isto
existia já há muito tempo, existiu sempre, ainda entre as remotas moradas
de Jacó de uma parte e as de Putifar de outra. O próprio primeiro emigrante
já estava habituado a trocar o seu horizonte, estivera no país da lama,
embora não tão longe como José agora, e a sua irmã-esposa, a bisavó de
José, tinha até pertencido durante algum tempo ao serralho de Faraó, que
então ainda não brilhava em Vese, mas muito acima, próximo à esfera de
Jacó, no seu horizonte. Entre essa esfera e a que agora cercava José tinha
havido sempre relações. Com efeito, não havia o moreno e o belo Ismael
tomado para mulher uma filha da lama? Não deviam sua existência a esse
conúbio misto os ismaelitas que eram meio egípcios e tinham sido
chamados e escolhidos para conduzir José aonde ele agora estava? Como
eles, muito outros comerciavam de um lado e de outro entre os rios,
emissários giravam pelo mundo já desde milênios levando nas dobras de
suas vestes umas mensagens gravadas em ladrilhos. Mas se este costume à
Neftali existia já então, como se tornou usual e espalhado e como se
desenvolvera agora nos tempos de José, nos quais o pais da sua segunda
vida e do seu arrebatamento era já declaradamente um país dos netos! Já
não era pudicamente ensimesmado, já não eta devoto como o queria Amun,
mas afeito ao mundo, alegremente mundano e já de costumes tão relaxados
que, para um rapaz asiático apanhado na estrada, era necessária uma certa
astúcia no dar a boa-noite e na arte de fazer dois de zero, para chegar a ser o
servo particular de um grande egípcio e muitas outras coisas mais!
Entre o lugar onde estava Jacó e o em que estava o seu predileto, não
faltavam possibilidades de comunicações. Delas competia a José servir-se,
pois que ele sabia perfeitamente onde seu pai estava. Também lhe seria fácil
pôr-se em contato com o ancião, porque, na sua qualidade de braço direito
do mordomo e versado como estava na supervigilância universal, abarcava
com o olhar também as ocasiões favoráveis para mandar notícias. Mas ele
não o fez, não o fez durante muitos anos, por motivos que há muito já nos
são conhecidos e dos quais não resta quase nenhum quando se resumem
todos numa só palavra: a espera. O bezerro não mugiu, guardou silêncio de
morte, não deu a saber à vaca para que campo o homem o tinha levado;
indubitavelmente com o consentimento do homem, o bezerro supunha
também existente nela a espera, por gravosa que esta lhe devia ser,
porquanto por necessidade a vaca considerava como morto e despedaçado o
seu bezerro.
É estranho e de certo modo embaraçoso pensar que o velho Jacó, lá
detrás de sua névoa, durante todo aquele tempo tivesse o filho como morto.
Embaraçoso, porque por um lado a gente quase se sente alegre vendo-o
embalado por essa ilusão e por outro lado a gente se aflige por causa dessa
mesma ilusão. A morte da pessoa amada tem também, como é notório, suas
vantagens para aquele que ama, ainda que estas sejam de natureza vazia e
desolada; e assim, se bem se consideram as coisas, podemos sentir uma
dupla compaixão pelo velho: primeiro porque considerava José morto,
segundo porque este não o estava! Com imensa aflição mas também para
consolo seu, o coração paterno se embalava na certeza de que José estava
morto. Imaginava-o guardado e defendido na morte, imutável, invulnerável,
não mais precisado de auxílio, eternamente o rapaz de dezessete primaveras
que partira montado na branca Hulda. Era isso um erro absoluto, não só
quanto à aflição como especialmente pelo que diz respeito à certeza de
consolo que pouco a pouco ia levando a melhor. É que nesse meio-tempo
José estava vivo e exposto a todas as vicissitudes da vida. Raptado, ele não
tinha sido entretanto privado do tempo e não ficou sempre o rapaz de
dezessete anos, mas cresceu e amadureceu no seu posto, chegando aos
dezenove, aos vinte e aos vinte e um anos; era sempre José, porém já o pai
não o reconheceria bem à primeira vista. A matéria da sua vida mudava
enquanto ele conservava a bela marca da sua forma; José amadureceu, ficou
um pouco maior e mais sólido, cada vez menos rapaz, cada vez mais
homem. Quando decorrerem mais alguns anos e da matéria daquele José
que, na despedida, Jacó abraçou pensando abraçar Rebeca, não ficará mais
nada ou só muito pouco, como se a morte houvesse desmanchado a sua
carne. Apenas, não tendo sido a morte que o mudara, mas a vida, a forma de
José ficou de certo modo conservada. Ficou conservada menos fielmente,
menos exatamente do que o teria conservado em espírito a morte que tudo
guarda, menos do que o que ela realmente fez por ilusão no espírito de Jacó.
Dá, porém, bastante que pensar o fato de que, com relação à matéria e à
forma, a questão de se saber se é a morte que apaga uma imagem de nossos
olhos ou se é a vida, não tenha uma diferença tão marcada como o homem
quisera imaginar.
Quanto à matéria com que José recebeu a sua forma no mudar e entre as
mudanças do amadurecer, é necessário acrescentar que sua vida extraiu essa
matéria de uma esfera bem diferente daquela da qual o mancebo a teria
extraído sob os olhos de Jacó, sendo com isso atingida também a marca da
forma. Ele se alimentava com o ar e com os sucos do Egito, contia as
comidas de Keme; a água do país saturava e ingurgitava as células do seu
corpo, que era também banhado pelos raios do sol egípcio; vestia-se com o
pano feito do linho do país,caminhava sobre o seu solo que nele
manifestava as suas forças antigas, que lhe inspirava os seus tácitos sentidos
da forma; dia a dia ele bebia com os olhos as conformações, obras da mão
do homem, das realizações e expressões desse sentimento fundamental
tacitamente resoluto que tudo abrangia; e falava o idioma do país, que dava
à sua língua, aos seus lábios, às suas maxilas outra posição, diversa da que
até então tivera, de sorte que, dentro em pouco, Jacó lhe teria dito”Damu,
meu pimpolho, que aconteceu com a tua boca? Eu não a reconheço mais.”
Em breve José se tornava a olhos vistos egípcio na fisionomia e nos
gestos, e isto acontecia rápida, fácil e inadvertidamente, pois que ele era de
um espírito e de uma matéria dúctil e mundana e era ainda muito jovem e
tenro quando chegou ao Egito. A adaptação da sua pessoa ao estilo do país
se executou com tanto maior vontade e com tanto maior comodidade
quanto, em primeiro lugar, sob o aspecto físico, o seu exterior, sabe Deus
como, tinha sempre mostrado uma certa aproximação do exterior egípcio,
com os membros flexíveis, os ombros horizontais; e em segundo lugar,
considerado do lado espiritual, porque a sua posição como estrangeiro que
se insinuava entre “os filhos do país” vivendo com eles não lhe era nova
mas sim familiar desde ps tempo antigos e correspondente à sua tradição.
Também no seu país ele e os seus, a gente de Abraão, tinham sempre
morado como “gerim” e hóspedes entre os filhos do país, aí se haviam
adaptado, unido e estabelecido há muito tempo, mas sempre com uma
intima reserva, olhando sempre objetivamente e de través os abomináveis e
cômodos costumes caros a Baal, vigentes entre os verdadeiros filhos de
Canaã. Tal era também a situação de José no Egito; e a reservada sua
mundanidade e a sua adaptação andavam comodamente e a passo igual,
pois que aquele Eloim que agora lhe facilitava essa adaptação e lhe tirava o
espinho da infidelidade para com Ele era o mesmo que o havia levado para
aquele país, podendo José contar com a sua dispensa e a sua
condescendência se se portava inteiramente à moda egípcia e se
externamente se tomara filho de Ápis e súdito de Faraó, sempre feita de
antemão, bem entendido, a tácita reserva. A sua mundanidade era portanto
uma coisa completamente à parte; sem dúvida era graças a ela que José,
adaptando-se prazerosamente, se mesclava com a gente do Egito e podia
mostrar-se afeiçoado à sua bela civilização; mas tacitamente e de outro
modo eram eles, os egípcios, os mundanos que ele olhava de lado e com
benévola indulgência, na ironia espiritual do seu sangue contra os graciosos
horrores dos seus costumes populares.
O ano egípcio o agarrava e o conduzia consigo numa excursão com os
altos e baixos da sua natureza e com o ciclo corrente das suas festas, cujo
início podia ser considerado este ou aquele dia; a festa do ano novo no
princípio da inundação, dia incrivelmente rico de alvoroços e esperanças —
fatalmente importante, de resto, também para José, como em seguida se
verá —, ou a data da ascensão de Faraó ao trono, na qual se renovavam
cada ano todas as fagueiras esperanças do povo, acalentadas já no primeiro
dia que fora realmente o princípio do novo reinado e da nova era: a
esperança de que o direito expulsaria a injustiça e de que todos viveriam
risonhos e admirados; ou era alguma outra solenidade comemorativa, algum
outro dia de festa, porquanto o rido se renovava sempre.
José entrara em contato com a natureza do Egito na época em que
baixavam as águas do rio, quando a terra reaparecia e se havia feito a
semeadura. Fora vendido nessa época e daí por diante a sua vida se
desenrolou no ano e com o ano. Veio o tempo da colheita que, conforme o
nome, durava até o ardente estio e até as semanas que colocamos debaixo
do vocábulo junho, quando o rio minguado começava, com devoto júbilo de
todo o povo, a subir e lentamente ia transbordando, observado e medido
com toda a exatidão pelos empregados de Faraó, porque era de suma
importância que o rio chegasse no momento exato; não demasiado indômito
nem frouxo demais, pois disso dependia se os filhos de Keme iam ter que
comer e se seria um bom ano de impostos, de modo que Faraó pudesse
construir. Seis semanas subia o rio, nutridor, silencioso, subia polegada a
polegada, de dia e também de noite, quando os homens dormiam e
dormindo acreditavam nele. Depois, avizinhando-se a época em que o sol
mais dardejava, quando para nós seria a segunda metade de julho e os filhos
do Egito falavam na lua Paoli, a segunda lua do seu ano e da sua primeira
estação que chamavam Achet, então primeiro se intumescia
veementemente, depois transbordava numa e noutra margem sobre os
campos e cobria o país — aquele país estranho, de condições únicas, que
não tinha rival em todo o mundo e que agora, provocando a princípio o
assombro e o riso de José, se convertera num lago sagrado, do qual, todavia,
graças à sua situação altaneira, emergiam como ilhas as cidades e aldeias,
unidas entre si por diques praticáveis. Assim ficava o deus e durante quatro
semanas fazia cair sobre os campos sua gordura e sua lama nutridora até
chegar a estação Peret, a segunda, a estação invernal. Aí começava a
desaparecer e a se retirar; “as águas se escoavam”, como dizia José,
profundamente relembrado, para caracterizar esse fato, de maneira que sob
a lua do nosso janeiro voltavam ao seu antigo leito onde continuavam
sempre a baixar e diminuir até o estio. E eram ao todo setenta e dois, os dias
dos setenta e dois conspiradores, os dias da seca invernal, durante os quais o
deus desaparecia e morria, até o dia em que as sentinelas fluviais de Faraó
anunciavam que o rio de novo principiava a crescer e começava um novo
ano de bênção, moderado ou abundante, mas em todo o caso sem carestia
(Amun nos livre disso!), sem desastrosas diminuições dos impostos para
Faraó que o impedissem de construir.
O ciclo ficava logo concluído — dizia José consigo — de um novo ano
a outro, ou desde o dia da sua chegada ao Egito até voltai esse mesmo dia
—, logo concluído, fosse qual fosse sua maneira de calcular ou onde quer
que colocasse o começo, através das três estações — inundações,
semeadura, safra — cada uma com seu cortejo de festas nas quais tomava
parte, mundanamente, confiado na suprema indulgência e fazendo algumas
restrições mentais. Na verdade, o jovem era forçado a participar delas e a
mostrar-lhes boa cara pela razão muito simples de que as festas dos ídolos
estavam entrelaçadas com a vida econômica e José, achando-se a serviço de
Putifar e sendo substituto de Mont-kav nos negócios, não podia ficar
afastado das feiras e mercados que durante as solenidades religiosas sempre
se realizam, porque em toda parte o comércio desabrocha no terreno onde
os homens acodem em maior número. Nos vestíbulos dos templos de Tebas
havia sempre mercados, mercê do tráfico comum para os holocaustos; além
disso, eram numerosos os lugares de peregrinação, tio acima e rio abaixo,
aonde acorria de toda parte o povo em densos bandos, sempre que havia
aqui ou ah um deus em festa que ornava a sua casa e se mostrava pronto a
distribuir oráculos e, ao lado do pábulo espiritual, prometia concorridos
divertimentos às massas e orgias e patuscadas próprias de feiras. Não era só
Bastet, a gata do delta inferior, que tinha a sua festa, a respeito da qual logo
haviam contado a José coisas licenciosas. Também para ver o bode de
Mendes ou Djedet, como diziam os filhos de Keme, não longe dali, afluía
cada ano de perto e de longe uma multidão imensa, ainda mais alvoroçada
do que a que ia a Per Bastet, porque Bindini, o bode, robusto e lascivo
como era, achava mais ressonância na alma popular do que a gata e, por
ocasião da sua festa, se unia publicamente com uma virgem do país.
Podemos contudo afirmar peremptoriamente que José, indo a negócios
também a esta festa do bode, não se dignava dirigir um olhar a esse ato,
mas, como homem de confiança do seu mordomo, tratava exclusivamente
de vender entre o povo o seu papel, as suas vasilhas e a sua verdura.
No país e nos costumes do país, principalmente nos costumes da festa
(já que a festa é o momento mais característico do costume, o momento em
que ele se manifesta mais vivo e a si mesmo se glorifica), havia muitas
coisas às quais José, a despeito de todo o seu cosmopolitismo, pensando em
Jacó, nem sequer dava atenção ou a que apenas lançava com muita frieza
um olhar de esguelha. Não lhe agradava, por exemplo, a paixão da bebida,
muito espalhada entre os filhos daquela terra. A simples lembrança de Noé
o impedia de ter simpatia por essa usança, e sua aversão era ainda
aumentada pelo sóbrio e ponderado exemplo paterno que guardava na alma,
bem como pela sua própria natureza que, apesar de serena e alegre, não
tolerava o cambaleio do ébrio. Ao invés disso, para os filhos de Keme não
havia nada melhor do que embriagar-se copiosamente com cerveja ou vinho
em qualquer ocasião, tanto os homens como as mulheres. Em toda festa
recebiam vinho em grande quantidade, de modo que com suas mulheres e
filhos tinham bebida para uns quatro dias, durante os quais, é claro, ficavam
inutilizados. Mas havia ainda dias especiais de orgias, como a grande festa
da cerveja, comemorativa da velha lenda segundo a qual a poderosa Hathor,
a Sachmet de cabeça leonina, investiu furiosa contra os homens para
destruí-los, sendo impedida de extirpar a nossa raça em virtude do
estratagema de Rá, que a embebedou com cerveja tinta de sangue. Por isso
naquele dia os filhos do Egito bebiam cerveja em quantidade absurda, certa
cerveja escura e muito forte, chamada “ches”, cerveja com mel, cerveja de
fora e cerveja do país, esta na maior parte fabricada na cidade de Dendera,
residência de Hathor, aonde se ia em romaria exatamente para tal fim, de
sorte que, como casa da senhora da embriaguez, era chamada “sede da
embriaguez”.
José não dava grande atenção a essas coisas, e, por mera polidez, fazia
menção de beber um pouco de cerveja, apenas o exigido pelos negócios e a
sociabilidade. Com o pensamento em Jacó, ele olhava só com o canto do
olho certos costumes populares, em voga na grande festa de Osíris, o senhor
dos mortos, na época do dia mais curto, quando o sol morria, conquanto
acompanhasse essa festa e seus jogos e representações com uma atenção
cheia de simpatia. Renovavam-se aí os dias de paixão do deus dilacerado e
sepultado, que depois ressuscitava; em imponentes mascaradas eram
evocados pelos sacerdotes e pelo povo aqueles momentos de terror e
igualmente os momentos de júbilo de ressurreição, quando todo o povo em
sinal de alegria pulava sobre um pé só. A esses espetáculos andavam unidas
certas loucuras próprias do lugar, costumes antigos que já ninguém sabia
explicar; por exemplo, ásperas brigas entre diversos grupos de pessoas,
sendo dada a alguns desses grupos a designação de “gente da cidade de Pe”
e a outros a de “gente da cidade de Dep”, sem que ninguém soubesse que
cidades eram essas; ou era tangida através da cidade uma récua de burros no
meio de um infernal berreiro de chufas e de violentíssimas pauladas. Até
certo ponto era uma contradição tratar com tal escárnio e com cacetadas a
criatura que era símbolo de fálicos fornicoques porque, por outro lado, a
festa do deus morto e sepultado era também a santificação da rígida
prontidão viril que rebentou as faixas da múmia de Osíris, de modo que Ísis,
na sua qualidade de abutre fêmea, concebeu dele o filho vingador. Por essa
época do ano, as mulheres das aldeias levavam processionalmente o
símbolo viril, do comprimento de uma vara, glorificando-o e movendo-o
com cordas. Assim o culto contradizia os maus-tratos, sendo óbvio o
motivo dessa contradição, porque por um lado a rígida procriação era coisa
da vida amada e da fecunda continuidade, enquanto por outro era
especialmente coisa da morte. De feito, Osíris estava morto quando o abutre
fêmea concebeu dele. Todos os deuses, ao morrerem, ficam rígidos para a
procriação, e, para dizê-lo baixinho cá entre nós, estava aqui a razão por
que José, apesar de toda a sua simpatia pessoal pela festa de Osíris, o
Despedaçado, não queria ver certos usos em voga nessa festa e no seu
íntimo se conservava alheio a ela. Qual a razão disso? Ora, é difícil falar de
assunto tão delicado quando um interlocutor sabe e o outro ainda não... o
que, de resto, é tanto mais desculpável quanto o próprio José mal via de que
se tratava e percebia apenas vagamente a metade ou três quartos do
problema. Agitava-o um medo surdo e quase inconsciente, causado por
remorsos de consciência e precisamente remorsos por infidelidade —
infidelidade para com o “Senhor” —, interpretada esta palavra do lado que
se queira. Não se deve esquecer que José se considerava morto e
pertencente ao reino dos mortos, no qual crescia; lembre-se ainda o nome
que ele, com engenhosa arrogância, tomara. Afinal, não era tão grande
assim a arrogância: os filhos de Mizraim já há muito haviam conseguido
que cada um deles, ainda o mais humilde, na sua morte se tomasse Usire
juntasse o seu nome ao do Dilacerado, como o touro Ápis se tornou Serápis
na morte. Aquela união queria dizer”morrer para tomar-se deus” ou “ser
como deus”. Mas justamente esse “ser deus” e “morto" fazia pensar na
rigidez viril que rebenta as faixas; e o medo semi-inconsciente produzido
em José pelos seus escrúpulos dependia do íntimo reconhecimento de que
certos olhares provocados por Dudu — olhares que então começavam a
produzir na sua vida uma impressão ao mesmo tempo de medo e de alegria
— estavam já de longe em perigosa conexão com a divina rigidez da morte
e portanto com a infidelidade.
Acabamos de exprimir em palavras e com o maior respeito possível por
que não interessava muito a José contemplar os costumes populares da festa
de Osíris, as procissões das aldeias, os asnos espancados. Mas lançava uma
boa olhada a muita outra coisa, na cidade e no campo, durante as festas que
marcavam e adornavam o ano egípcio. No curso dos anos viu uma ou duas
vezes a Faraó, pois às vezes sucedia que o deus se mostrava: não somente à
janela da audiência quando, na presença de alguns eleitos, atirava ouro de
louvor como prêmio a certos felizardos, mas subia também com grande
esplendor no horizonte do seu palácio e com imensa pompa irradiava luz
sobre todo o povo, que em sinal de alegria saltava sobre um pé só, como
estava prescrito e como o coração ditava aos filhos daquela terra. José
observou que Faraó era gordo e baixote e que a cor da sua cara não era das
melhores; pelo menos não o era quando o filho de Raquel o viu pela
segunda ou terceira vez, ocasião em que a expressão do seu rosto fazia
lembrar a de Mont-kav quando a este lhe doíam os rins.
Na verdade, nos anos que José passou na casa de Putifar e aí cresceu,
Amenhotep III, Neb-ma-ré, começava a decair e, segundo o parecer dos
sacerdotes do templo, dos peritos em medicina e dos magos da casa dos
livros, na sua condição física mostrava uma crescente tendência a reunir-se
com o sol. Escusado é dizer que os profetas da saúde não estavam em
condições de pôr um paradeiro a esta tendência, porque ela era mais que
natural. Quando José percorreu pela segunda vez o ciclo anual do egípcio, o
divino filho de Tutmés IV e da mitânia Mutenveje celebrava o jubileu do
seu reinado, chamado Hebsed, isto é, eram passados trinta anos desde que,
no meio de inúmeras cerimônias que depois se repetiam exatamente na data
do grande fato, ele pusera sobre a cabeça a dúplice coroa.
Fora uma esplêndida vida de soberano, quase sem guerras, envolta em
pompa hierática e cuidados públicos como num manto dourado, animada
pelos prazeres da caça, para cuja comemoração ele emitira gemas de
escaravelhos; era repleta de júbilos por ter satisfeito a sua ânsia de
construções; agora, porém, a sua natureza deperecia tanto quanto a de José
se revigorava. Tempo houve, é verdade, em que a majestade desse deus
tinha sofrido de cárie dos dentes, sofrimento que ele estimulara com o seu
hábito de lambiscar guloseimas, e não raro nas audiências e nas recepções
oficiais na sala do trono aparecia com a bochecha inchada. Depois do
Hebsed (ocasião em que José o viu) as dores físicas eram produzidas por
órgãos mais ocultos; às vezes o coração de Faraó vacilava ou batia contra o
peito em pulsações excessivamente numerosas, vindo-lhe então a faltar o
fôlego; as suas secreções expeliam matérias que o corpo deveria reter, mas
não podia, porque trabalhava na sua própria desintegração; e mais tarde não
era só a bochecha que inchava, mas também o ventre e as pernas.
Aconteceu então que o longínquo confrade e correspondente do deus, que
na sua esfera igualmente passava por divino, o rei Tuchrata de Mitanni,
filho de Chutama, pai da Mutenveje, por sua vez mãe de Amenhotep — em
suma, seu cunhado do Eufrates, visto que recebera de Chutama como
segunda mulher no seu harém a princesa Giluchipa —, lhe havia mandado
da sua longínqua capital, por segura escolta, uma imagem milagrosa de
Istar. E que Tuchrata ouvira falar na enfermidade de Faraó e em casos
simples fizera ele próprio boas experiências com a imagem bendita. A
capital toda ou antes todo o Alto e Baixo Egito, desde as fronteiras dos
negros ate o mar, comentou a chegada dessa expedição ao palácio Merimat.
Também na casa de Putifar durante vários dias não se falava de outra coisa.
Verificou-se, porém, que Istar relutou ou foi incapaz de produzir um alívio
pouco mais que passageiro à asma e às inchações de Faraó, com grande
satisfação dos magos indígenas, cujos salutares tóxicos nem sequer um
alívio desses produziram, simplesmente porque a tendência a reunir-se com
o sol era mais forte do que tudo e prosseguia, lenta mas irresistivelmente,
no seu caminho.
José viu Faraó por ocasião do Hebsed, quando toda Vese estava de pé
para apreciar a saída do deus, que era uma parte das solenidades e
cerimônias do dia de júbilo. Todas essas investiduras, ascensões ao trono,
coroações, banhos purificatórios executados pelos sacerdotes com máscaras
representando deuses, todas essas incensadelas e antigos ritos simbólicos
eram realizados quase sempre no interior do palácio, diante dos olhos
apenas dos grandes da corte e do país, enquanto lá fora o povo, bebendo e
dançando, se entregava à ilusão de que com esse dia se daria uma reforma
radical e ia começar uma era de bênçãos, de justiça, de paz, de riso e de
fraternidade universal. Esta leda convicção já havia animado a todos
fervidamente uma geração antes, no dia da mudança de soberano sobre o
trono e cada ano, na mesma data, se renovava em forma um pouco mais
frouxa e fugaz. Mas por ocasião do Hebsed ela tomara a brotar com toda a
frescura nos corações — triunfo da fé sobre toda experiência, culto de uma
esperança que nenhuma experiência pode arrancar da alma humana, porque
foi aí plantada por mão superior. Mas a saída de Faraó ao meio-dia, quando
se dirigia à casa de Amun para o sacrifício, era um espetáculo público. Uma
grande multidão, de que também José fazia parte, o aguardava no ocidente,
diante da porta do paço, enquanto outra turbamulta se comprimia por todo o
trajeto que o cortejo real devia percorrer através da cidade na outra margem
do rio, e especialmente na grande avenida das esfinges com cabeça de
carneiro, o caminho triunfal de Amun.
O paço real, a grande casa de Faraó, de onde exatamente derivava o seu
nome Faraó, pois esta palavra quer dizer“casa grande”, conquanto na boca
dos egípcios soasse um pouco diversamente e diferisse de “Faraó”, quase
tanto como “Petepré” difere de “Putifar” — o paço real, pois, estava situado
à orla do deserto, ao pé das alturas rochosas de Tebas, resplendente de
várias cores, no centro de uma vasta muralha circular, com portas
guardadas. No seu interior ficavam os amenos jardins do deus, bem como o
lago que sorria entre flores e plantas exóticas e que uma palavra de
Amenhotep fizera um dia resplandecer, a leste do jardim, para deliciar Teje,
sua excelsa esposa.
O povo de fora, por mais que alongasse o pescoço, não via muita coisa
da luminosa magnificência de Merimat. Via diante da porta os guardas do
palácio com folhas cuneiformes de couro sobre o saiote e cocares sobre as
celadas; via a folhagem, iluminada pelo sol, cintilar entre os ventos que
sopravam incessantemente; via tetos penseis sobre coloridas colunas
torneadas, via compridas flâmulas de variegadas cores tremular em hastes
douradas, sentia os perfumes siríacos que se evolavam dos canteiros do
oculto jardim e se casavam lindamente com a ideia da divindade de Faraó,
porquanto um perfume suave acompanha quase sempre aquilo que é divino.
Mas ia agora ser satisfeita a expectativa da alegre, ansiosa e palreira
multidão de beijoqueiros e comedores de pó postados em frente à porta.
Quando a barca de Rá havia chegado exatamente ao ponto culminante,
ecoava um grito, as sentinelas em frente à porta erguiam as alabardas, os
batentes de bronze entre as hastes embandeiradas se abriam, deixando livre
a vista para a alameda das esfinges que, polvilhada de poeira azul,
atravessava o jardim; e pela porta principal saía o cortejo dos coches de
Faraó, penetrando por entre a turba que se desviava, se espalhava, bradava
por gracejo ou de medo. Efetivamente, sobre ela se arremessavam os
maceiros para abrir caminho aos coches e aos cavalos, soltando gritos
estridentes”Faraó! Faraó! Animo! Voltem a cabeça! Aí vem ele! Caminho!
Abram alas para a sua saída!” E a turba, a cambalear, dividida, andava a pé-
coxinho, ondulava, encapelava-se como o mar em procela, estendia os
braços delgados para o sol do Egito, atirava beijos entusiásticos; as
mulheres faziam espernear nos ares os seus pimpolhos a choramingar ou,
jogando para trás a cabeça, ofereciam com as mãos ambos os peitos,
enquanto o espaço se enchia do júbilo de todos e dos seus apaixonados
gritos”Faraó! Faraó! Touro robusto de tua mãe! De alta plumagem! Vive
milhões de anos! Vive para sempre! Ama-nos! Dá-nos a tua bênção! Nós te
amamos e bendizemos com veemência! Falcão de ouro! Horus! Horus! És
Rá em todos os teus membros! Chepre na sua autêntica figura! Hebsed!
Flebsed! Mudança dos tempos! Fim dos trabalhos! Começo da ventura!”
E muito comovente esse júbilo popular, toca o coração mesmo de quem
nele não toma parte e no seu íntimo se lhe mostra alheio. José despediu um
ou outro grito de alegria junto com os demais, saltitou um pouco à moda
dos filhos do país, mas sobretudo quedou-se a ver, silenciosamente
comovido. O que mais o emocionava e o induzia a olhar com mais
intensidade era que ele via o supremo, Faraó, sair do seu palácio como a lua
no meio das estrelas e que, conforme uma antiga herança degenerada nele
um tanto mundanamente, o seu cotação batia pelo amo supremo a quem
somente deve o homem servir. Muito tempo antes de lhe ser permitido ficar
diante do inferior imediato a este, Putifar, suas reflexões eram dirigidas,
como temos observado, a mais definitivas, mais incondicionais
personificações desta ideia. Veremos agora que a sua pretensão não se
deteve nesse ponto.
Era maravilhoso ver Faraó. O seu coche era de ouro puro, de ouro as
rodas do coche, de ouro as paredes e o toiço, tudo coberto de imagens
cinzeladas mas que não se conseguia distinguir o que representavam,
porque com o revérbero do sol do meio-dia a carruagem coruscava e
cintilava de tal modo que doía nos olhos; e, como as rodas e os cascos dos
cavalos levantavam num turbilhão densas nuvens de poeira, parecia que
Faraó se aproximava envolvido num nimbo de fumo e chamas, terrível e
estupendo de ver-se. Só faltava que também os cavalos à frente do coche, “a
primeira grande parelha” de Faraó, como diziam, expelissem fogo pelo
nariz, tal o feroz recacho com que avançavam, na pompa do seu arnês, com
peitorais de ouro, tendo a encimá-los áureas cabeças de leão das quais se
erguiam, a tremular, penachos de variegadas cores. Era o próprio Faraó
quem guiava. Estava só no coche envolvido em nuvens de fogo e com a
mão esquerda segurava as rédeas, enquanto com a direita empunhava o
chicote e o curvo bastão do império, branco e preto, de través diante do
peito, numa espécie de posição ritual, imediatamente debaixo do precioso
afogador. Faraó era já bem idoso; via-se isso pela boca caída, pelo olhar
mortiço e pelas costas que pareciam um pouco curvadas sob a sua veste
alva como o lótus. Os magros zigomas ressaltavam e dir-se-ia que o
soberano havia passado neles um pouco de carmim. De sob o traje desciam
pelos quadris, como a proteger as pernas, vários enfeites entrecruzados,
muitos laços variamente entretecidos, muitos emblemas rígidos. Sua cabeça
era coberta até atrás das orelhas e até o pescoço pela tiara azul,
profusamente adornada de estrelas amarelas. Sobre a testa, por cima do
nariz de Faraó, erguia-se, cintilante de esmaltes coloridos, a áspide
venenosa, o mágico talismã de Rá.
Assim passou diante dos olhos de José o rei do Alto e do Baixo Egito,
sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Por sobre a sua cabeça
oscilavam altos flabelos de penas de avestruz; aos lados das rodas corriam,
sob os estandartes, guerreiros da sua guarda pessoal, escudeiros e
alabardeiros, egípcios, asiáticos e negros; vinham em seguida oficiais em
carruagens cobertas de couro cor de púrpura. Depois recomeçavam as
aclamações populares, porque em seguimento àquelas vinha um outro
coche isolado, cujas rodas de ouro giravam entre nuvens de pó, e nele
estava sentado um menino de oito ou nove anos, também ele cercado de
flabelos de penas de avestruz, guiando ele próprio com os braços franzinos
adornados de braceletes. Tinha cara comprida e pálida, com beiços
polpudos que naquela palidez eram de um vermelho de framboesa e sorriam
tímidos e amáveis para a turba ruidosa, e trazia olhos semicerrados,
podendo isso denotar orgulho ou tristeza. Era Amenhotep, o divino rebento
e sucessor, que devia herdar os tronos e as coroas quando aquele que o
precedia resolvesse reunir-se com o sol — filho único de Faraó, filho da sua
velhice, o seu José. Sobre o magro busto infantil daquele menino aclamado
pela multidão nada havia, a não ser os braceletes e o alvo colar de pedrarias.
Mas sua veste, de um pano de ouro com dobras, lhe subia alta sobre as
costas e descia até a panturrilha, enquanto na frente, no ponto onde pendia o
cordão de franjas douradas, se dobrava muito, deixando exposto um ventre
bojudo como o de um menino negro. Tinha a cabeça envolvida num pano
de tecido dourado, liso, aderente à testa, sobre a qual, como sobre a do pai,
estava a víbora, sendo amarrado à nuca de modo que formava uma espécie
de bolsa para os cabelos. Sobre uma orelha estava dependurado, em forma
de larga fita de franjas, o cacho infantil dos filhos dos reis.
O povo ovacionava em altos brados o menino, o sol já criado mas ainda
não despontado, o sol ainda sob o horizonte do oriente, o sol de amanhã.
“Paz de Amun! Viva muitos anos o filho do deus! Quão belo surge no
oriente do céu! Jovem Horus com o cacho infantil! Falcão encantador!
Protetor do pai, protege-nos!” O povo ainda tinha muito que gritar, porque
depois dos carros que acompanhavam o sol do amanhã vinha de novo um
alto coche de fogo, no qual, por trás do cocheiro inclinado para a frente,
estava sentada Teje, a mulher do deus, a excelsa consorte de Faraó, a
senhora dos países. Era pequena e de rosto trigueiro. Seus olhos alongados
pela pintura fulguravam, o gracioso e enérgico narizinho de deusa fazia uma
curva bem pronunciada e sua boca de lábios revirados sorria satisfeita. Não
havia no mundo nada mais belo que o seu toucado, pois a coifa
representando o abutre, a ave toda, era toda de ouro, e o ventre da ave que
ressaía à frente da cabeça cobria-lhe a risca, enquanto as asas pendiam,
esplendidamente lavradas, sobre as faces e os ombros. Sobre as costas da
ave fora forjado um círculo de onde saíam algumas penas altas e rígidas,
fazendo da coifa um diadema de deidade; e na frente, sobre a testa, além do
crânio nu do abutre com o bico recurvo, estava o “uraeus", túmido de
veneno. Grandes sinais divinos havia que fartasse e o povo só tinha de
extasiar-se e bradar fora de si”Ísis! Ísis! Mut, celeste vaca mãe! Geradora
do deus! Ó doce Hathor, tu, que enches o palácio de amor, tem piedade de
nós!” Aclamavam também as filhas do rei, as quais, com os braços travados
uns nos outros, estavam no carro por trás do cocheiro profundamente
inclinado para a frente. Gritavam à passagem das damas da corte que
vinham de carro, duas a duas, trazendo no braço o flabelo de honra, bem
como à passagem dos grandes da intimidade e privança do rei, os
verdadeiros e únicos amigos de Faraó, os camaristas privados que vinham
depois. Assim, da casa de Merimat, atravessou o cortejo do Hebsed a
multidão até o rio onde estavam as barcas coloridas, a barca celeste de
Faraó, chamada “Estrela dos dois países”, para que o deus, a geradora do
deus, o rebento e toda a corte pudessem passar para o outro lado das águas
e, chegando à margem oriental, atravessassem com outros coches a cidade
dos vivos onde, pelas mas e sobre os telhados, todos ainda gritavam até a
casa de Amun e a grande fumigação.
E assim José tinha visto Faraó, tal como outrora o escravo comprado
vira pela primeira vez, no pátio da casa de bênção, a Putifar, o amo supremo
de sua mais íntima companhia, e tinha meditado como poderia estar o mais
cedo possível a seu lado. Já o seguira graças à sua inteligente loquacidade;
mas a história julga saber que já em tal momento José se propunha entrar
em contato com encarnações mais longínquas e perfeitas do amo supremo,
e até ela levou sua audácia a ponto de fazê-lo aspirar a mais alto ainda.
Como? Haverá alguma coisa acima do mais alto? Sim, quando se tem no
sangue o sentido do futuro, isto é, do que está acima do amanhã. Entre o
júbilo da turba que ele partilhara com certa reserva havia José observado
com bastante cuidado a Faraó no seu coche de fogo. Contudo a sua mais
íntima e última curiosidade e participação não se detivera muito no velho
deus, mas no que vinha depois dele, no menino de cacho, com o sorriso
mórbido nos lábios, no José de Faraó, no sucessor único. O filho de Jacó o
seguiu com os olhos, os seus ombros estreitos, os seus cabelos dourados,
observou como ele guiava o carro com os braços franzinos ornados de
pulseiras; a ele e não a Faraó via José em espírito quando já tudo passara e a
multidão se aglomerava às margens do Nilo; seus pensamentos se dirigiam
ao pequeno, ao que vinha, e bem pode ser que nisto ele estivesse de acordo
com os filhos do Egito, os quais também, vendo o jovem Horus,
ovacionavam com mais fervor que quando passava Faraó. E que o futuro é
esperança e por bondade foi dado tempo ao homem para viver na
expectativa. Não devia José firmar-se vigorosamente no seu posto antes que
a sua ideia de achar-se diante do amo supremo e talvez ao seu lado tivesse a
mínima, a mais vaga perspectiva de realização? Assim, com razão era que,
durante a festa do Hebsed, o seu olhar ia além do supremo atual, alcançando
o futuro, na direção do sol ainda não despontado.
NARRAÇÃO DO SINGELO PASSAMENTO DE MONT-KAV

Sete vezes havia o ano egípcio conduzido consigo José no seu giro;
oitenta e quatro vezes o astro que ele amava e com o qual era aparentado
percorrera todas as suas fases, e daquela substância que revestira o filho de
Jacó, quando este o despedira, com preocupações e bênçãos,já agora nada
restava nas vicissitudes da vida. Ele trazia, por assim dizer, uma túnica
inteiramente nova de que Deus havia coberto a sua vida e na qual não
ficava nem uma fibra mais da túnica antiga que ele vestira aos dezessete
anos. Aquela era tecida com material egípcio e nela com bastante
dificuldade Jacó teria reconhecido o filho quando este lhe dissesse; eu sou
José. Sete anos haviam passado para ele, dormindo ou acordado, pensando,
sentindo, agindo, tal como passam os dias, isto é, nem depressa nem
devagar, mas simplesmente passado, e agora, chegando aos vinte e quatro
anos, José estava um mocetão de bonita cara e figura, filho de uma mulher
amável, filho do amor. No hábito dos negócios o seu modo de proceder se
tornara mais importante e mais seguro, e a sua voz de rapaz, que já fora
dura, havia-se tornado mais harmoniosa quando, ao passar entre os
trabalhadores e a criadagem da casa no seu trabalho de fiscalização, lhes
dava suas instruções ou transmitia as de Mont-kav, na sua qualidade de
substituto do mordomo e de sua “primeira boca”. Isto era ele, com efeito, já
há bastante tempo, e se poderia também chamá-lo o seu olho, a sua orelha
ou o seu braço direito. O pessoal da casa, porém, chamava-lhe
simplesmente a “boca” por ser esta a expressão com que os egípcios
designavam um homem por intermédio do qual se transmitem ordens. No
caso de José a palavra era duplamente apropriada, porque o jovem falava
como um deus, dom sumamente desejável, uma delícia para os filhos do
Egito, os quais bem sabiam que José abrira o seu caminho com o seu belo e
prudente discretear, coisa de que eles jamais seriam capazes, ou pelo menos
preparara para si aquele caminho junto do senhor e do mordomo Mont-kav.
Por essa época Mont-kav já lhe confiava tudo — administração, contas,
fiscalização, negócios. Quando a tradição diz que Putifar tinha posto toda a
sua casa nas mãos de José e não cuidara de outra coisa senão de comer e
beber, isto não era, em última análise, mais que uma cessão: do senhor ao
mordomo e deste ao rapaz comprado, com o qual fizera um pacto para
servir com amor o amo. E este e a casa podiam dar-se por felizes de que tal
cessão viesse afinal parar nas mãos de José e em nenhuma outra e que ele
na realidade já cuidava da propriedade, porque dela realmente cuidava com
suma fidelidade por amor do amo e dos seus próprios remotos projetos, e
dia e noite pensava no bem da casa, de maneira que, exatamente conforme
as palavras do velho ismaelita e de acordo com o nome que escolhera, ele
não só provia mas aumentava.
Da razão pela qual Mont-kav, no fim desse período de sete anos, havia
cada vez mais, e depois inteiramente, cometido a José a fiscalização da
casa, retirando-se completamente dos negócios para a câmara da confiança,
se falará em breve. Antes, porém, convém dizer que o maligno Dudu, a
despeito de todos os seus esforços, não logrou fechar a José o caminho que
este tomara e que, ainda antes de terem terminado os sete anos, o levara
bem longe, sobrepondo-o não só a todo o pessoal de serviço da casa, mas
também ao grau e à estima do pequeno guarda das pedrarias de Putifar. O
cargo de Dudu era sem dúvida muito honorífico e lhe coubera em sorte
mercê da sua honradez e seriedade e do seu pleno valor de anão. Esse cargo
o conservava na vizinhança pessoal do senhor, de sorte que, dada a sua
natureza, lhe teria oferecido ocasião para granjear uma influência familiar,
perigosa para José. Mas Putifar não podia tolerar o anão casado; a
dignidade e os ares de importância deste lhe repugnavam vivamente e, sem
se considerar autorizado a privá-lo do seu cargo, mantinha-o o mais
possível longe de si, pondo como intermediárias entre si e o encarregado do
guarda-roupa, para o serviço da manhã e do próprio guarda-roupa, pessoas
de menor valor. Confiara-lhe apenas a suprema superintendência das joias,
alfaias, amuletos, distintivos honoríficos, sem admiti-lo à sua presença mais
vezes e durante mais tempo do que o estritamente necessário, de maneira
que verdadeiramente Dudu nunca podia tomar a palavra perante ele para
fazer aquelas representações que gostaria de fazer contra o estrangeiro e
contra o escândalo da sua ascensão na casa.
Ainda, porém, que as circunstâncias o tivessem favorecido, não se
atreveria a falar, pelo menos na presença direta do senhor. Efetivamente o
anão sabia da repugnância que Petepré sentia por ele, Dudu, e isto por causa
daquela secreta presunção que o homenzinho não ousava negar sequer a si
mesmo, bem como por ser ele, anão, partidário da suprema força solar de
Amun, receando assim fundadamente que a sua palavra carecesse de efeito
na presença do amo. Teria ele, Dudu, necessidade de expor-se a um tal
papel? Não. Preferiu caminhos indiretos: o caminho que passava pela
senhora, diante da qual várias vezes se queixou e junto de quem achou pelo
menos atenção e estima; o caminho que passava por Beknechons, o homem
forte de Amun, que ele podia açular, por ocasião das suas visitas à senhora,
contra o favoritismo do hebreu, tão contrário às antigas tradições. Instigou
também Zeset, sua desenvolvida mulher, a qual igualmente prestava
serviços a Mut-em-enet, a influir sobre a ama de maneira hostil a José.
Mas o homem de mérito também pode fracassar: suponhamos que Zeset
não tivesse dado a seu marido frutos de sua união e teremos ilustrado o
nosso pensamento. Assim Dudu não obteve êxito no seu esforço. Nada
conseguiu. É certo que Beknechons, achando-se um dia na corte, na
antessala de Faraó, submeteu Petepré a uma espécie de severo
interrogatório diplomático a propósito do escândalo a que os homens pios
da sua casa eram obrigados a assistir com a ascensão de um impuro; a esse
respeito fez-lhe advertências paternalmente delicadas. Mas o flabelífero não
compreendia, quase não se recordava, cerrava os olhos, parecia distraído; e
Beknechons, com a sua disposição natural, não foi capaz de deter-se mais
de um instante sobre o particular, sobre miudezas caseiras. Daí a pouco
estava falando em grandes temas, começou a indicar os quatro pontos
cardeais, a falar de altas questões políticas referentes à conservação do
poder, a lembrar os reis estrangeiros Tuchrata, Chubbilulima, Abd-achirtu, e
assim a conversa se perdeu nesses assuntos transcendentais. Quanto a Mut,
a senhora, ainda não se animara a falar sobre o assunto ao mando. Ela lhe
conhecia a surda casmurrice e não tinha costume de tratar com ele de coisas
importantes, limitando-se as relações de ambos a uma mera troca de
cumprimentos exageradamente respeitosos; a ela não ocorreria a ideia de
lhe pedir o que quer que fosse. Estas razões eram mais que suficientes para
explicar sua inação. Aos nossos olhos, porém, é isto um indício de que
ainda por essa época, a saber, ainda pelo fim dos sete anos, a presença de
José deixava indiferente aquela mulher, pouco se lhe dando que o
afastassem da casa. Para a mulher do egípcio devia ainda chegar o momento
em que ela desejaria vê-lo transferido para longe de sua vista. A chegada
desse momento devia coincidir com o medo de si mesma, que por enquanto
o seu orgulho não conhecia. E ainda outra simultaneidade se devia
estranhamente verificar: no mesmo tempo em que a senhora reconheceu
que para ela seria melhor não ver mais a José e realmente instou com
Petepré para que o afastasse, pareceu que Dudu tinha tomado partido a
favor do hebreu. Pois começou a adulá-lo, a fingir-se sempre pronto a
prestar-lhe serviços, de tal modo que parecia ter-se operado uma troca de
papéis entre o anão e a senhora, tendo esta ficado com a parte odiosa,
enquanto aquele não se cansava de elogiar o mancebo em presença dela.
Tanto uma ciosa como a outra eram apenas aparentes. Quando a ama se
lembrou de exigir a partida de José, na verdade não se sentia capaz de
semelhante coisa, e fingindo desejá-la a si própria mentia. Mas Dudu, que
farejara o negócio, procedia insidiosamente e só esperava poder prejudicar
melhor o filho de Jacó, fingindo-se seu amigo.
De tudo isto havemos de falar um pouco mais tarde. O fato que
provocou essas mudanças ou depois do qual elas se operaram foi a funesta
enfermidade mortal de Mont-kav, o aliado de José no serviço leal do amo
— funesta para ele, funesta para José, que lhe era cordialmente afeiçoado e
que do seu sofrimento e da sua morte sentia quase remorso; e funesta para
quantos simpatizavam com aquele homem simples, mas cheio de
pressentimentos — ainda que esses simpatizantes pudessem ter
conhecimento da necessidade da sua partida deste mundo em obediência ao
destino. Porque somos obrigados a vera mão do destino na circunstância de
José ter sido trazido para uma casa cujo mordomo estava condenado à
morte; e assim, em certo sentido, o seu passamento foi um sacrifício. Ainda
bem que, na sua alma, Mont-kav era propenso a aposentar-se, propensão
essa que alhures quisemos atribuir à sua velha nefrite. Mas é também
plausível que esta fosse uma expressão física de uma tendência psíquica de
natureza análoga, distinguindo—se dela somente na forma em que a palavra
se diferencia do pensamento e do sinal ideográfico da palavra, de tal modo
que no livro da vida do mordomo um rim poderia figurar como o hieróglifo
da “aposentadoria”.
Mas para que preocupar-nos com Mont-kav? Por que falar dele com
uma certa emoção, sem ter muito que relatar senão que era conhecido como
homem simples, isto é, modesto e reto, isto é, prático e de bons
sentimentos? Era um homem que então andava pela terra e no país de
Keme, tarde ou cedo, como se quiser, na época em que a vida que gera
coisas múltiplas o produziu justamente a ele, mas, por tarde que fosse, tão
cedo que já de muito a sua múmia pulverizada se dispersou aos ventos nas
suas mais insignificantes partículas. Era um desapaixonado filho da terra,
que não presumia ser melhor do que a vida e que no fundo não queria saber
nem de ousadias nem de coisas muito altas, não por baixeza mas por
modéstia; e, conquanto no seu intimo fosse perfeitamente acessível a
sugestões superiores — o que o pôs em condições de representar na vida de
José um papel não de todo insignificante, comportando-se, no fundo, como
se comportara um dia o grande Rubem —, para exprimir por uma metáfora
a coisa, também Mont-kav deu três passos para trás, inclinando-se diante de
José, e depois se afastou. Este papel que o destino lhe designou já o toma
credor da nossa simpatia. Mas, mesmo prescindindo de tudo mais, vemos e
reconhecemos a figura deste homem, simples porém dotada de sentimentos
finos, cercada de uma melancolia sem pretensões — essa figura que nós
aqui reconstruímos da sua milenária volatilização, graças a uma simpatia
espiritual a que ele teria dado o nome de magia.
Mont-kav era filho de um funcionário médio da tesouraria do templo de
Montu, em Kamak. Bem cedo, contando apenas cinco anos, seu pai, de
nome Achmose, o consagrou a Thot e o mandou para a casa de instrução
anexa à administração do templo, a casa em que os empregados de Montu,
o deus da guerra representado com a cabeça de falcão, eram educados com
severa disciplina, escassa alimentação e abundantes pancadas. (Vigorava ah
a máxima de que o aluno tem as orelhas por cima das costas e ouve quando
lhe batem. ) Não era, porém, só este o fim da escola que, frequentada por
meninos de diversas condições, nobres e humildes, ensinava em geral os
elementos fundamentais da cultura literária, a palavra divina, isto é, a
escrita, a arte de manejar a cana e um agradável estilo, bem como os
rudimentos exigidos para a carreira burocrática e de letrado.
O filho de Achmose não queria tornar-se letrado, não porque fosse
estúpido, mas por modéstia, porque desde o princípio tinha aspirações mais
simples, não querendo de nenhum modo sobressair. Se não passou, como o
pai, os dias de sua vida copiando documentos nos escritórios de Montu e foi
ser mordomo de um grande, tudo isto aconteceu sem concurso da sua
vontade. Foram, com efeito, os seus mestres e superiores que o
recomendaram e lhe arranjaram aquela boa colocação, sem que ele nada
tivesse feito para isso, movidos apenas da estima que lhe haviam criado
pelos seus dotes e pela sua reserva. Quanto a pancadas, ele recebeu na casa
de instrução apenas as que eram inevitáveis, a parte que cabia até ao melhor
dos alunos para que ouvisse. Evidenciou sempre a sua mente universal pela
rapidez com que assimilou o sublime presente do macaco, a escrita, o
cuidado e asseio com que transportava para as compridas linhas dos seus
rolos escolares tudo quanto lhe era ensinado, as regras da civilidade e os
modelos de cartas que formavam o estilo, os ensinamentos que provinham
de séculos remotos, poesias didáticas, orações exortatórias, elogios da
classe dos escrivães. Ao mesmo tempo enchia as costas do rolo com contas
de sacos de cereais recebidos e remetidos ao armazém, com apontamentos
para cartas comerciais, porquanto já desde o princípio fosse também
encarregado de trabalhos práticos na administração, mais de acordo com a
sua vontade do que de acordo com a vontade do pai, que queria fazer do
filho alguma coisa superior a si mesmo, um profeta, um mago ou astrólogo,
enquanto Mont-kav desde menino, com modéstia e persistência, se
preparava para os aspectos mais práticos da vida.
Existe um quê de singular nessa espécie de inata resignação,
manifestada numa honesta habilidade e também numa tranquila tolerância
com as iniquidades da vida, que em outros provocariam ásperas
exprobrações contra os deuses. Ainda jovem desposou Mont-kav a filha de
um colega de seu pai, da qual se enamorara. Mas a mulher morreu no
primeiro parto e com ela a criança. Mont-kav chorou-a amargamente,
porém não estranhou demasiado o golpe nem levantou muito os punhos
para o ar diante dos deuses por terem as coisas tomado aquela feição. Nem
tentou mais a felicidade de um lar, preferindo ficar viúvo e solitário. Uma
irmã sua casara com o proprietário de um bazar de Tebas; de vez em quando
ia visitá-la nos dias de folga, que aliás não eram muitos. Terminados os
estudos, trabalhou a principio na administração do templo de Montu, depois
foi mordomo do primeiro profeta daquele deus, cabendo-lhe finalmente a
direção da bela casa de Petepré, o cortesão, onde com jovial mas firme
autoridade exercia o seu cargo havia já dez anos, quando os ismaelitas lhe
trouxeram um ajudante para o amoroso serviço do delicado amo, ajudante
superior a ele e que devia ser seu sucessor.
Que José estava predestinado a ser seu sucessor, Mont-kav o pressentiu
bem depressa, porquanto, apesar da sua simplicidade intencional, eta um
homem cheio de pressentimentos e pode-se dizer que essa mesma
simplicidade, essa tendência à renúncia e a restringir suas aspirações, era
um produto do pressentimento, isto é, do pressentimento da doença
incubada no seu corpo vigoroso. A própria ação da enfermidade,
quebrantando-lhe a coragem da vida, mas requintando-lhe o espírito, foi o
que o tornou sensível às delicadas impressões recebidas quando viu José
pela primeira vez. Naquela época o mordomo já conhecia o seu ponto fraco,
porque, em virtude de certa pressão surda que sentia nas costas e no lado
esquerdo e de certas dores vagas na região cardíaca, das frequentes
sensações de vertigem, da má digestão, da falta de sangue e da exagerada
vontade de urinar, em virtude de todos estes sintomas Pança Queimada, o
charlatão, lhe dissera sem refolhos que ele sofria dos rins.
Esta moléstia, muitas vezes oculta, é, por sua natureza, insidiosa; às
vezes deita raízes já na meninice e deixa passar intervalos de boa saúde
aparente, durante os quais permite crer que se tenha chegado a uma pausa e
mesmo à cura, para depois dar de novo sinais do seu progresso. Mont-kav
se lembrava de que, aos doze anos, certa vez tinha vertido urina
sanguinolenta; como, porém, isso só se dera uma vez, sem repetição durante
vários anos, o fato sintomático e amedrontador caíra no esquecimento. Só
quando Mont-kav chegou aos vinte anos foi que o mal se repetiu
juntamente com os distúrbios há pouco mencionados, entre os quais as
vertigens e a dor de cabeça, seguindo-se-lhes vômitos de bílis. Isto também
passou; mas daí por diante, calmo e valente como era, a vida lhe correu na
luta com aquele mal intermitente, que muitas vezes o deixava em paz
durante meses e até anos,mas depois se apoderava novamente do seu
organismo com maior ou menor violência. A modéstia produzida pelo mal
degenerava amiúde numa profunda prostração e indiferença, num
abatimento do coração e do espirito; habituou-se, apesar de tudo isto, a
executar com silencioso heroísmo o seu trabalho cotidiano, enquanto os
profissionais da medicina e os que queriam passar por tais lutavam contra
esses males coma aplicação de sangrias. E como o seu apetite era
satisfatório, a sua língua limpa, boas as excreções da pele e o pulso de uma
frequência bastante regular, os que dele tratavam não o reputavam ainda
gravemente enfermo. Um dia, porém, os seus tornozelos apresentaram
inchações, das quais, depois de uma punção, saiu um líquido aquoso. E
como esses escoamentos produziam um evidente alívio do sistema vascular
e do coração, chegou-se a reconhecer naquilo um fenômeno favorável,
porque por ele a doença se manifestava exteriormente e provocava a
expulsão do humores.
Convém dizer que, graças ao auxílio de Pança Queimada e dos
remédios do seu jardim, Mont-kav passou sofrivelmente os dez anos até a
entrada de José na casa. Se, porém, só raramente foi forçado a interromper a
sua capacidade de trabalho como chefe da herdade, isto se deve à sua
modesta força de vontade, com que combatia o mal que lentamente
progredia, mais que à ciência empírica do jardineiro. O primeiro ataque
verdadeiramente grave, com tal inflamação das mãos e pernas que foi
necessário enfaixá-las, com terríveis dores de cabeça, violentíssimas
perturbações gástricas e até escurecimento da vista, verificou-se quase logo
depois da aquisição de José; ou melhor, a explosão do mal já principiara
durante as negociações com o velho ismaelita e durante o exame da
mercadoria oferecida. Esta é pelo menos a nossa conjetura; parece-nos
efetivamente que os seus sensíveis pressentimentos à vista de José e a
particular comoção que lhe causou o primeiro cumprimento de boas-noites
feito como prova pelo escravo eram já um prenuncio do ataque e sintomas
de unia predisposição morbidamente agravada. Mas é também possível a
outra interpretação médica de que, ao contrário, aquela saudação de paz
excessivamente suave tenha produzido um certo enternecimento na sua
natureza e na sua força de resistência; e em verdade estamos quase a recear
que os votos de boa-noite que José infalivelmente lhe apresentava, ainda
que tenham feito bem ao mordomo, longe estavam de ser de especial
préstimo ao seu instinto de conservação em luta com a moléstia.
Também o fato de que a princípio Mont-kav não se ocupava quase nada
de José deve ser atribuído em grande parte ao ataque de então, que lhe
paralisava a iniciativa. Aquele ataque, como algum outro mais ligeiro ou
mesmo tão forte nos anos seguintes, passou graças às sangrias de Chun-
Anup, às sanguessugas, às fantásticas criaturas de produtos vegetais e
animais e às compressas abdominais feitas de fragmentos de velhos escritos
macerados em azeite quente. Conseguiu-se então uma cura ou aparência de
cura que durou longos intervalos de tempo na vida do mordomo, também já
quando José se encontrava na casa e crescia, até se tomar o seu primeiro
auxiliar e sua boca. Mas no sétimo ano da presença de José ah, tendo Mont-
kav ido assistir ao funeral de um parente (o seu cunhado, dono do bazar,
que passara desta para melhor), apanhou um resfriado que abriu portas e
janelas à ruína, prostrando-o de vez.
Isso de “apanhar” a morte e ser por ela “levado” por estar a gente numa
fria capela de cemitério, exposta a correntes de ar, prestando a um morto as
derradeiras homenagens, era um fenômeno frequente então como o é agora.
Era no verão. Fazia muito calor, mas, como amiúde acontece no Egito,
havia bastante vento — associação perigosa, porque o vento que sopra
acelera a evaporação da pele e produz um esfriamento repentino.
Sobrecarregado de afazeres, o mordomo se demorara muito, arriscando-se a
chegar atrasado à cerimônia. Teve de apressar-se, suou ejá na travessia do
rio para o ocidente em seguimento à barca fúnebre, não estando bastante
coberto, foi tomado de calafrios. Depois teve de ficar parado em frente ao
sepulcrozinho rasgado na rocha que o dono do bazar, agora unido com
Osíris, adquirira com as suas economias. Diante do seu modesto portal um
sacerdote que usava máscara canina de Anúbis segurava a múmia, enquanto
outro com o místico pé de bezerro celebrava a cerimônia da abertura da
boca, e o grupo das pessoas enlutadas, com as mãos na cabeça coberta de
cinza, assistia ao ato. As paredes da abóbada ressumbravam uma umidade
que não podia fazer bem a Mont-kav e este voltou para casa com uma
coriza e com catarro na bexiga. No dia seguinte já se queixava para José de
que lhe era estranhamente penoso mover os braços e as pernas; um como
torpor o obrigou a desistir de qualquer atividade doméstica e a meter-se na
cama; e quando o jardineiro-chefe lhe aplicou sanguessugas nas fontes
contra as insuportáveis dores de cabeça, acompanhadas de vômitos e de
uma meia cegueira, Mont-kav teve um ataque apoplético.
Reconhecendo as disposições divinas, José tremeu. De si para consigo
concluiu que tomar medidas contra elas não significava pecaminosa
tentativa de estorvar os propósitos do alto, mas simplesmente submetê-los a
uma prova necessária. Por isso persuadiu Putifar a mandar buscar um
médico de verdade na casa de Amun. Chegando ele, Pança Queimada teve
de se retirar, sentindo-se mortificado, é claro, mas também livre de uma
responsabilidade cuja gravidade ele era bastante sensato para reconhecer.
O perito da medicina, vindo da casa dos livros, repudiou a maior parte
das tisanas e cuidados prescritos por Pança Queimada, conquanto aos olhos
de todos, inclusive aos seus, a diferença entre as suas prescrições e as do
jardineiro era não tanto de índole médica quanto social: as do empírico
eram para o povo, ao qual podiam fazer bem, as do homem da ciência eram
para as esferas superiores, que eram medicadas com mais elegância. O
sábio do templo rejeitou, por exemplo, os escritos antigos embebidos em
azeite com que o seu predecessor cobrira o ventre e os quadris do enfermo e
mandou se fizessem cataplasmas de linhaça em panos limpos e decentes.
Também torceu o nariz diante das panaceias populares do curandeiro, que
se dizia terem sido inventadas pelos próprios deuses para Rá quando este
ficou velho e doente, e que se compunham de catorze ou mesmo trinta e
sete coisas repugnantes, como: sangue de lagarto, dentes de porco
pulverizados, umidade extraída das orelhas deste animal, leite de
parturiente, toda casta de excremento, mesmo o dos antílopes, ouriços e
moscas, urina humana e coisas semelhantes. Mas continham também coisas
que o mesmo cientista ministrou ao mordomo, porém sem aquelas
porcarias, por exemplo, mel e cera, meimendro, pequenas doses de ópio,
quássia, uva ursina, natro e ipecacuanha. O médico aprovou ainda o uso do
remédio preferido do jardineiro, que era mastigar bagas de rícino com
cerveja, aprovando também uma raiz rica de resina de efeito fortemente
laxativo. Pelo contrário, declarou fora de propósito as drásticas sangrias que
Pança Queimada aplicava quase diariamente, a pretexto de que só com elas
se conseguia pôr cobro às terríveis dores de cabeça e à turvação da vista. No
máximo consentiu o esculápio que fossem feitas com muita moderação,
porque, como ele ensinava, dado o aspecto lívido do doente, a passageira
melhora que se obtinha era paga muito caro com a perda de elementos
nutritivos e vivificantes contidos no sangue.
Estava-se diante de um dilema insolúvel. Evidentemente era o sangue,
indispensável mas depauperado e infecto, que veiculava pelo organismo
inflamações insidiosas, provocando nele manifestações mórbidas de vária
índole, que apareciam ou juntas ou alternativamente, tendo todas elas, como
o sabiam ambos os médicos, sua origem nos rins, que há muito
funcionavam mal. Assim, salvo os nomes com que os entendidos
designavam estes malignos fenômenos e o conceito que deles formavam,
Mont-kav sofria, ao mesmo tempo ou sucessivamente, de uma inflamação
da pleura e do peritônio, do pericárdio e dos pulmões; a isto vinham juntar-
se graves sintomas cerebrais, como vômitos, cegueira, congestão, cãibras.
Em suma, a morte o assaltou de todos os lados, com todas as armas,
parecendo verdadeiramente um milagre que ele, desde o momento em que
foi para a cama, pudesse resistir ainda semanas e semanas e em parte
superar alguns dos incômodos. Mont-kav era um doente robusto, mas por
mais que resistisse fortemente, por mais que defendesse a vida, estava
inexoravelmente condenado à morte.
Foi o que José reconheceu imediatamente, enquanto Chun-Anup e o
douto de Amun tinham esperanças de salvar o mordomo. Sentiu-o muito o
mancebo, não só porque era afeiçoado àquele homem probo que lhe
mostrara tanta bondade e cujo destino duplo lhe agradava por ver no
mordomo um desses homens tristes e alegres, do tipo de Gilgamesh, ao
mesmo tempo favorecidos e desfavorecidos, mas sendo-o também e
especialmente porque tinha remorso das dores e da morte do intendente.
Pois era manifesto que tudo fora predisposto para favorecer a ele e à sua
ascensão, tendo sido o pobre Mont-kav vitima escolhida para que pudessem
vingar os planos divinos; o mordomo era arredado do caminho, isto era
claro e patente e a José vinha vontade de dizer ao Deus dos planos”O que
fazeis, Senhor, é obra exclusiva da vossa vontade e não da minha. Declaro
explicitamente que nada tenho com isto e, se isto sucede por minha causa,
espero não se diga ser minha a culpa. Com a mais rendida humildade desejo
insistir em que isto não aconteça.” Eram, porém, improfícuos tais protestos.
Ele sentia remorso pelo sacrifício da vida do amigo e via muito bem que, se
aqui se podia falar de culpa, esta caía sobre ele, o usufrutuário, não sendo
lícito falar de culpa em se tratando de Deus. “Eis aí como se passam as
coisas”, pensava ele consigo. “Deus faz tudo, mas nos deu uma consciência
e nós somos os culpados diante d’Ele, porque para Ele somos os culpados.
O homem leva a culpa de Deus e mais justo seria se Deus resolvesse um dia
carregar a nossa culpa. Como Ele, o santo e impecável, possa fazer isso, é
difícil dizê-lo. A meu ver, Ele devia para tal fim fazer-se homem.”
José não se apartou do leito de dores da vítima, durante as quatro ou
cinco semanas nas quais ela ainda se defendeu contra a morte que a atacava
com tantas armas. Tão culpado se sentia o jovem! Com inteira dedicação
assistiu dia e noite o atribulado, sacrificando-se, como se costuma dizer e
como aqui se poderia dizer com razão, porque realmente se tratava de uma
troca de sacrifício, levado por José até a renúncia ao próprio sono e ao
emagrecimento do próprio corpo. Pôs a sua cama junto à do enfermo na
alcova da confiança e de hora em hora fazia o que podia: aplicava
compressas quentes, dava-lhe remédios, fazia-lhe fomentações com certas
misturas; segundo a prescrição do médico do deus, fazia-o aspirar o vapor
de plantas trituradas que aquecia sobre a pedra; sustinha-lhe os membros
quando o salteavam as cãibras, pois nos últimos dias o coitado sofria tantas
dores que, sob o brutal assalto da morte, soltava altos gritos; mas a morte
parecia não poder esperar que ele se rendesse e entranhava rudemente a
garra no seu corpo. Principalmente quando Mont-kav queria dormir, ela
intervinha e, provocando-lhe espasmos, fazia pular sobre a cama o corpo
fatigado, como a dizer-lhe”O quê? Queres dormir? Levanta-te, levanta-te e
morre!” Vinham então mais que nunca a propósito os refrigerantes votos de
boa-noite de José e ele os renovava com fina arte, sussurrando ao mordomo
que agora certamente encontraria o caminho do país da consolação por que
tanto almejara e que poderia dirigir-se para lá imperturbável, sem que o
braço e a pema do seu lado esquerdo, solidamente amarrados por José com
tiras de pano, o arremessassem para trás com dores terríveis, fazendo-o
voltar aos seus sofrimentos.
Tudo isto ia bem e até certo ponto era de utilidade. Mas o próprio José
começou a ser invadido pelo desânimo quando viu que as suas invocações
de paz e repouso ajudavam demais e o mordomo, que durante tantos anos
jamais tivera bom sono, agora propendia para o letargo, quase parecia
engolfar-se em torpor como sob a ação de um tóxico, de modo que o bom
caminho se tomava um mau caminho, sendo de recear que o caminhante se
esquecesse da volta. Por isso José teve de recorrer a um outro meio e, em
vez de compor canções que ninassem o amigo, devia procurar prendê-lo,
conservando nele os espíritos vitais com histórias e historietas tiradas do
arsenal de fábulas e anedotas dos tempos passados, de que dispunha graças
aos ensinamentos ministrados por Jacó e Eliézer quando era pequeno. O
mordomo tinha ouvido sempre de boa mente as histórias da primeira vida
do rapaz comprado, da sua infância no país de Canaã, da mãe amável morta
na estrada, e da ternura do pai, toda dedicada a ela e depois ao filho, de
modo que eram os dois uma só coisa na roupagem festiva desse amor.
Também da feroz inveja dos irmãos já ouvira falar e da culpa de frívola
confiança e cega presunção de José, causadoras daquela inveja, do
dilaceramento e do poço. Tanto o mordomo como Putifar e toda a casa deste
sempre haviam considerado a região onde José passara a adolescência como
uma terra longínqua, poeirenta e miserável, que naturalmente ficava
esquecida quando o destino transplantava alguém para a terra dos homens e
dos deuses. Nem ele nem ninguém mais se surpreendia de que José não se
desse ao trabalho de entrar de novo em contato com o mundo bárbaro da
sua meninice. Mas sempre gostara das histórias daquele mundo e, durante a
sua última enfermidade, sua distração preferida e que mais o acalmava era
escutar, no leito e com as mãos juntas, o seu jovem enfermeiro evocar com
graça alegre e solene as recordações da sua parentela, falando-lhe do peludo
e do liso que brigaram no ventre materno, da festa da bênção colhida
fraudulentamente e da viagem do liso ao mundo ínfero, do tio malvado e
das suas filhas trocadas por este na noite das núpcias, narrando-lhe ainda a
astúcia do liso que com tretas e tricas de atilada simpatia natural arrebatara
ao tio várias das suas ovelhas. Cá e lá troca, troca do direito de
primogenitura e da bênção, das esposas e das propriedades. Troca do filho
pelo animal sobre a mesa dos sacrifícios, troca do animal pelo filho
semelhante, pois que morre balindo. Tanta troca e mistificação encantavam
o ouvinte numa conversa atraente que o prendiam. Com efeito, que há de
mais atraente que a mistificação? Havia ademais de parte a parte um reflexo
entre a coisa narrada e o narrador: das histórias que José narrava caia sobre
ele um pouco da luz e do encanto daquela mistificação, e ele mesmo por sua
vez dava àquelas histórias alguma coisa da sua própria pessoa, que usara o
véu do amor em lugar da mãe e que aos olhos de Mont-kav tinha sempre
possuído uma fascinação agradavelmente graciosa desde o primeiro
momento em que o rapaz apareceu diante dele com o rolo escrito e,
sorridente, o havia induzido a trocar por ele o deus de cabeça de íbis.
Mont-kav quase já não enxergava mais, não podia dizer quantos dedos
lhe passavam diante dos olhos. Mas ainda podia escutar as exóticas e
estranhas histórias murmuradas de maneira tão inteligente ali ao pé do leito
e que afastavam o letargo comatoso a que o queria atrair o seu sangue
intoxicado. Escutava a história de Eliézer, que com o seu amo desbaratara
os reis do Oriente e a cujo encontro saltara a terra quando ele andava à
procura da esposa para a vítima rejeitada. E ainda muitas histórias. A
donzela junto ao poço, que saltara do camelo e se velara na presença
daquele a quem havia sido prometida como esposa. O belo irmão selvagem
do deserto que tinha querido induzir o enganado pelo ruivo a matar o pai e
comê-lo. O primeiro emigrante, o pai de todos, e o que certa vez lhe
aconteceu aqui na terra no Egito com sua irmã-esposa. Seu irmão Lot e os
anjos diante da sua porta e bem assim a extrema impudicícia dos sodomitas.
A chuva de enxofre e a estátua de sal e a história do que fizeram as filhas de
Lot, preocupadas com a conservação do gênero humano. A história de
Nemrod em Sineare da torre da temeridade. Noé, o segundo dos grandes
antepassados, o arquissábio, e a sua arca. O primeiro homem propriamente
dito, feito de terra no jardim do Oriente, a história da primeira mulher tirada
de uma sua costela e a história da serpente. Deste legado das mais estranhas
histórias, sentado ao pé da cama do enfermo, José, eloquente e atilado,
tirava narrativas para acalmar a sua própria consciência e para prender
ainda um pouco mais ao mundo o seu ouvinte. No fim Mont-kav, bafejado
pelo sopro épico, começou também a falar, fez que o recostassem nas
almofadas e com o rosto iluminado pela morte que se avizinhava pôs a mão
sobre José, apalpando-o, como se fosse Isaac na tenda quando apalpava os
filhos.
— Deixa-me ver com as mãos videntes — disse, com a face voltada
para o teto — se tu és o meu filho Osarsif, que eu, solidamente fortificado
para a bênção com as histórias de que fartamente me nutriste, quero
abençoar antes que chegue o meu fim. Sim, és tu, vejo-te e te reconheço à
maneira dos cegos, nem é possível que se insinue aqui a dúvida ou a
mistificação, pois que eu só tenho um filho a quem posso abençoar e esse
filho és tu, Osarsif, a quem me afeiçoei no decurso dos anos em lugar do
pequerrucho que a mãe, chegada a sua hora, levou consigo — pois a criança
sufocou-se, sendo a mãe de constituição muito estreita. Na estrada? Não.
Ela morreu em casa e no seu quarto, dando à luz o filho. Não me atrevo a
dizer que eram sobre-humanos os seus padecimentos, mas eram certamente
terríveis, tanto que me prostrei com a face em terra e roguei aos deuses que
lhe mandassem a morte. Fui atendido. Também a morte do pequeno eles me
concederam, conquanto não lha tivesse exorado. Mas, sem a mãe, que iria
eu fazer da criança? “Oliveira” chamava-se a filha de Kegboi, o funcionário
da tesouraria. Denominavam-na Beket. Não ousei amá-la como o
abençoado tinha ousado amar a sua, aquela amável mulher de Naarim, tua
mãe. A tanto não me atrevi eu. Mas a minha também era amável,
inesquecivelmente amável no ornamento dos seus cílios sedosos que ela
baixava sobre os olhos quando eu lhe dizia palavras do coração, palavras
maviosas que eu nunca presumira poder articular, Naqueles dias, naqueles
dias inesquecíveis as minhas palavras tinham-se tomado musicais. Sim. Nós
nos amávamos, não obstante a sua conformação acanhada; e quando ela
morreu com a criança, chorei-a muitas noites até que o tempo e o trabalho
me enxugaram os olhos; enxugaram-nos e de noite não mais chorei, mas as
bolsas que os acentuam provém, creio eu, daquelas noites de pranto. Não o
sei com certeza, pode ser assim e pode não o ser, e já que eu morro e os
olhos que choraram Beket se extinguem, será indiferente neste mundo
saber-se como então se passaram as coisas. Mas o meu coração estava vazio
e desolado depois que os meus olhos ficaram enxutos; ele também se fizera
pequeno e estreito como os meus olhos, e desalentado porque tanto amara
em vão, de maneira que dentro dele parece que só havia lugar para a
renúncia. Mas, além da renúncia, deve o coração guardar ainda alguma
coisa; e se se quer ter uma preocupação, deve ser algo de mais delicado que
a vantagem e o proveito do trabalho. Eu era o mordomo de Petepré, o seu
servo mais velho, e não conhecia outra coisa que não fosse a prosperidade
da sua casa. De feito, quem renunciou está apto para servir. Vê, esta era
uma coisa digna de guardar-se no meu coração que se estreitara: servidão,
delicada prontidão de auxílio para Petepré, meu senhor. Pois quem mais
necessitado de serviço amoroso do que ele? De nada se ocupa porque se
conserva alheio a tudo e não foi criado para se meter em negócios. Ele, o
funcionário titular, é alheio, delicado e soberbo e não pode defrontar com
nenhum negócio, de sorte que é mister haver compaixão dele porque é bom.
Não veio ele visitar-me na minha doença? Deu-se ao incômodo de vir até
cá, até a minha cabeceira, enquanto acudias aos negócios, para, na bondade
do seu coração, indagar da minha saúde, embora se percebesse que era
estranho àquilo e se mostrava medroso diante da doença, pois nunca fica
doente — ainda que se hesite em chamá-lo são ou em crer que ele morrerá
—, eu por mim quase não o acredito, porque é preciso estar são para
adoecer e viver para morrer. Mas pode tudo isto diminuir a preocupação por
ele e a necessidade de prestar auxílio à sua delicada dignidade? E antes o
contrário. O meu coração nutria esse cuidado acima da vantagem e do
proveito do trabalho, preocupando-se com esse serviço de amor, e eu
prestava auxílio a Petepré no seu cargo e lhe falava segundo o seu orgulho
como melhor sabia e podia. Tu, porém, Osarsif, sabes fazer tudo isto de um
modo incomparavelmente melhor, porque os deuses favoreceram o teu
espírito com argúcia e graça, que faltam ao meu, ou por ser demasiado
obtuso ou por não pretender subir tão alto, não se julgando capaz de tal.
Assim e por amor desse serviço, fiz contigo um pacto que deves observar
quando eu estiver morto. E se te devo abençoar, se devo deixar-te em
herança o meu cargo de mordomo da casa, tu me hás de jurar sobre o meu
leito de morte que não só guardarás a casa e tratarás dos negócios do nosso
amo com a tua melhor inteligência e conhecimento dos negócios, mas
observarás também fielmente o nosso delicado ajuste, não regateando teus
afetuosos serviços à alma de Petepré, protegendo e justificando sua
dignidade com toda a tua arte, sem ser preciso acrescentar que não deverás
jamais ofender essa dignidade suscetível e jamais cederás à tentação de
injuriá-la com palavra ou com atos. Prometes-me isto solenemente, meu
filho Osarsif?
— Solenemente e de boa vontade — respondeu José a este discurso
fúnebre. — Fica descansado, meu pai, que te prometo prestar auxílio à sua
alma com respeitosa fidelidade de servo segundo o nosso pacto e conservar
fidelidade de homem às suas necessidades, recordando-me de ti se um dia
me viesse a tentação de causar-lhe aquela dor especial que a infidelidade
causa ao solitário. Confia em mim.
— Isto me tranquiliza bastante — disse Mont-kav —, embora o
sentimento da morte me agite vivamente, quando assim não devia ser.
Efetivamente, nada é mais comum que a morte, sobretudo a minha, que é a
morte de um homem tão simples que evitou sempre e deliberadamente as
alturas. Pois não tenho uma morte grandiosa nem dela quero fazer muito
caso, como não fiz do meu amor à minha “oliveirazinha”, nem ousei
chamar sobre-humanas as suas dores. Mas eu quero-te abençoar, Osarsif,
em lugar do filho, não sem solenidade, porque solene é a bênção, não eu;
por isso inclina-te sob a mão do cego. Tudo quanto possuo a ti o deixo, meu
verdadeiro filho e sucessor no cargo de mordomo de Petepré, grande
cortesão e meu amo, e abdico em teu favor, o que é um grande prazer para a
minha alma; sim, esta alegria a morte me traz, que eu posso abdicar, e vejo-
me agitado alegremente pela morte, pois o que eu sinto é alegria e nada
mais. Se deixo tudo para ti, isto acontece pela vontade do amo que entre
todos os seus servos te aponta com o dedo e te designa paia o meu lugar
como seu superintendente após a minha morte. Quando ele recentemente,
na bondade do seu coração, veio ver-me e perplexo me observava, assentei
com ele e lhe roguei como favor que, quando eu for divinizado, volte o seu
dedo para ti só e te chame pelo nome, para que eu, por quanto toca à casa e
a todos os negócios, possa ir-me tranquilo. “Sim”, disse ele, “está bem,
Mont-kav, meu velho amigo, está bem. Para ele voltarei o meu dedo se tu
realmente tivesses de partir, o que aliás muito me penalizaria; para ele sem
nenhuma hesitação e para nenhum outro, estamos entendidos; e se alguém
por acaso tentasse pôr-se de permeio, encontraria em mim uma vontade de
bronze, igual ao granito negro das pedreiras de Rehenu. Ele mesmo disse
que é essa a natureza da minha vontade e tive de dar-lhe razão. Ele desperta
em mim o aprazível sentimento da confiança, ainda mais do que o fizeste tu
na tua vida; e muitas vezes acreditei averiguar que com ele está um deus ou
estão muitos deuses que fazem prosperar na sua mão tudo quanto
empreende. Ele me enganará ainda menos que tu na tua honestidade, porque
aprendeu na casa de onde é oriundo que coisa é o pecado e traz nos cabelos
uma coisa parecida com um adorno de sacrifício que o imuniza contra o
pecado. Em resumo, estamos entendidos; depois de ti, Osarsif assumirá a
direção da casa, ocupando-se de todas as coisas de que é impossível que eu
me ocupe. O meu dedo o indicará a ele.” Foram estas as palavras do amo;
estão perfeitamente gravadas na minha memória. Assim eu te abençoo,
depois que ele já te abençoou, pois não é assim que se faz? Abençoa-se
sempre o abençoado e felicita-se o feliz. Também aquele velho na tenda
abençoou o liso, porque este, e não o peludo, estava abençoado. Sê, pois,
abençoado, como já o és! Tens um ânimo alegre e audazmente presumes
muito de ti, e ousas chamar sobre-humanas as dores de tua mãe e virginal o
teu nascimento, com razões que são sempre discutíveis: são estes os sinais
da bênção que eu não tinha e que por isso não posso dar; mas, uma vez que
morro, posso abençoar-te e desejar-te felicidade e alegria. Baixa um pouco
mais a tua cabeça sob a minha mão, meu filho — a cabeça daquele que
aspira às alturas debaixo da mão do homem modesto. A ti deixo como
legado a casa e os campos em nome de Petepré, para o qual eu os
administrava; a ti dou a sua gordura e a sua abundância, para que
superintendas as oficinas, as provisões nos depósitos, os frutos do pomar, o
gado grosso e o miúdo e bem assim a cultura dos campos da ilha, as contas
e todo o comércio. Ponho-te na direção da semeadura e da safra, da cozinha
e da despensa, da mesa do senhor, das necessidades do harém, dos lagares
de azeite, das adegas e de toda a famulagem. Espero não ter esquecido
nada. Tu, porém, Osarsif, não te esqueças de mim quando eu for divinizado
como Osíris. Sê o meu Horus, que protege e justifica o pai. Não deixes que
o meu epitáfio se tome ilegível e conserva a minha vida. Dize-me, queres
providenciar para que o chefe dos embalsamadores, Min-neb-mat, e seus
assistentes façam do meu corpo uma bela múmia, não preta mas de um
bonito amarelo, pois já pus de parte todos os ingredientes necessários; que
eles não os consumara, mas me salguem bem com natro e para a minha
perpetuação empreguem bálsamos finos, estoraque, madeira de zimbro,
resina de cedro do pote, mastique de pistácia doce e finas faixas em volta do
corpo? Queres providenciar, meu filho, para que o meu eterno invólucro
seja bem pintado e coberto por dentro de escritos protetores, sem lacunas
nem taliscas? Prometes-me cuidar a fim de que Imhotep, sacerdote dos
mortos no Ocidente, não distribua entre seus filhos a quantia que lhe deixei
para o pão, a cerveja, o azeite e o incenso destinados a alimentar os meus
sacrifícios, mas que fique tudo com uma só pessoa, de sorte que nos dias
festivos o teu pai esteja eternamente provido de comida e de bebida?
Agrada-me e faz-me bem ouvir que me prometes tudo isto com devoto
acento, pois que a morte é uma coisa comum, mas é acompanhada de
grandes preocupações e o homem deve garantir-se por muitos lados. Instala
também uma pequena cozinha no meu quarto, para que a criadagem possa
lá assar coxas de touro. Acrescenta a isso um ganso assado de alabastro,
uma talha de vinho feita de madeira, e põe lá também uma boa quantidade
daqueles teus figos de sicômoro. Dá-me prazer ouvir que me concedes tudo
isto com devotas palavras tranquilizadoras. Por via das dúvidas, põe ao lado
do meu esquife um botezinho com remadores e deixa lá dentro, ao meu
lado, também alguns servos para que se apresentem quando o Ocidental me
chamar para arar o seu campo fértil, porque o meu cérebro tinha o dom da
organização e da vigilância, mas eu não sei guiar o arado nem manejar a
foice. Oh, em quantas coisas a morte exige que se pense! Não esqueci nada?
Promete-me pensar também naquilo que eu tiver esquecido, por exemplo,
cuida de que em cima de meu peito ponham aquele bonito escaravelho de
jaspe que Petepré, na bondade da sua alma, me deu de presente e sobre o
qual está escrito que o meu coração, posto sobre a balança, não se levante
como testemunha contra mim. Achá-lo-ás na arca, logo à direita, no
cofrezinho de teixo, junto com os meus dois colarinhos que te deixo em
herança. E agora basta. Ponho fim aos meus discursos fúnebres. Não se
pode pensar em tudo e sempre fica muita inquietação que a própria morte
traz consigo e só aparentemente traz a necessidade de prover antes. A
própria questão de se saber como viveremos depois da nossa partida é, mais
que outra coisa, um pretexto da inquietação da morte; é a forma que ela
toma nos nossos pensamentos. Contudo, os meus pensamentos não deixam
de ser pensamentos de inquietação. Estarei sobre as árvores como um
pássaro entre pássaros? Poderei ser isto ou aquilo a meu talante, uma garça
real no charco, um escaravelho que vai rolando a sua bola, um cálice de
lótus sobre a água? Viverei no meu quarto e gozarei das oferendas
adquiridas com os meus fundos? Ou estarei lá onde Rá brilha de noite e
onde tudo será exatamente como aqui, céu e terra, no, campo e casa, e eu
serei de novo o veterano dos servos de Petepré, como estou habituado a ser?
Tenho ouvido falar de uma maneira e de outra e ainda de outros modos, e
tudo de uma vez e tudo por causa da nossa inquietação, a qual entretanto
acaba na sonolência que agora me invade. Reclina-me novamente na cama,
meu filho, porque estou exausto e dirigi o meu derradeiro pensamento à
bênção e às preocupações. Quero entregar-me ao sono que me embriaga;
mas antes que me entregue todo a ele, quisera ainda saber depressa se
tornarei a achar no Nilo ocidental a minha “oliveirazinha” que morreu. E
antes de tudo eu deveria agora preocupar-me com que no último momento,
quando estou para adormecer, a cãibra me não arranque ao sono. Dá-me a
boa-noite, meu filho, como sabeis fazê-lo. Segura-me os braços e as pernas
e com palavras doces esconjura a cãibra. Faze ainda uma vez o teu delicado
oficio... pela última vez. Não, pela última, não, porque se junto ao Nilo dos
transfigurados tudo é como aqui, também tu, Osarsif, estarás de novo ao
meu lado como meu discípulo e me darás de novo a bênção noturna
segundo os teus dotes, graciosamente modificada todas as noites, porque és
abençoado e podes dar a bênção, ao passo que eu posso apenas formular
votos... Não posso mais falar, meu amigo, estão terminadas as minhas
conversações fúnebres. Não penses, porém, que eu não te possa ainda ouvir.
A mão direita de José estava sobre as brancas mãos do moribundo e a
esquerda segurava-lhe firmemente a coxa.
— A paz seja contigo! — disse. — Repousa feliz, meu pai, durante a
noite! Vê, eu velo e cuido dos teus membros, enquanto tu, completamente
livre de todo aborrecimento, podes tomar o caminho da consolação e não
tens necessidade de preocupar-te com coisa alguma; pensa em como tudo
isto é belo e alegra-te; nada mais te dê cuidado! Não te preocupes com os
teus membros, nem com os negócios da casa, nem contigo mesmo, nem
com o que será de ti, nem como que será a vida que fica do outro lado desta.
Agora é mesmo assim: nada disto é negócio teu nem te deve dar cuidado e
nenhuma inquietação mais deve atormentar-te; deixa tudo como está, pois
que de algum modo deve ser, uma vez que existe; da melhor maneira
possível se providenciou para que as coisas se passem desse jeito e não de
outro; quanto a ti não te toca mais providenciar sobre nada e podes
simplesmente descansar sobre aquilo de que cuidaste. Tudo isto não é
estupendamente cômodo e tranquilizador? Quanto a dever e a poder, acaso
hoje não é como quando a minha bênção vespertina te recomendava que
não pensasses que devias repousar, mas que apenas podias fazê-lo? Vê,
agora te é permitido! Estão acabados todos os aborrecimentos, todas as
tribulações e todo incômodo. Acabaram-se os sofrimentos físicos,
acabaram-se os terrores dos espasmos. Nada de remédios repugnantes, de
cataplasmas quentes, de chupadores anélidos no pescoço. Abre-se o cárcere
da tua moléstia. Saias dele, livre e incólume vais pelos caminhos da
consolação que em cada passo conduzem sempre mais profundamente às
mansões da paz. No começo andas ainda por campos que já conheces,
aqueles que cada noite te acolhiam com a intervenção da minha bênção.
Sem que o saibas, desse teu corpo que eu aqui seguro com as minhas mãos
vem-te ainda um pouco de peso, de dificuldade em respirar. Logo, porém (e
nem sequer percebes o passo que para lá te conduz), te acolhem prados de
completa bonança onde nem de longe, nem do modo mais inconsciente te
tocará qualquer cuidado daqui e imediatamente ficas livre de toda moléstia,
de toda dúvida a respeito de como é lá e de que será de ti e te espantas de te
teres algum dia atormentado com tais escrúpulos, porque tudo é como é e
acontece do modo mais natural, mais justo, melhor, na mais feliz harmonia
consigo mesmo e contigo que és Mont-kav por toda a eternidade. Pois o que
é, é, e o que era, será. Duvidas, com o peso que te acabrunha, se vais
encontrar a tua oliveira nos campos do além? Rirás do teu desânimo, pois
que ela está ao pé de ti; e como não havia de estar, sendo tua? E ao teu lado
estarei também eu, Osarsif, o defunto José, como eu me chamo para ti; os
ismaelitas me levarão a ti. Continuarás a vir sempre ao pátio, com a tua
barbicha, os teus brincos e debaixo dos olhos as bolsas salientes que
presumivelmente te ficaram das noites das quais secretamente choravas
Beket, a Oliveira, e perguntarás”Que é isto? Quem são estes homens?” E
dirás”Por favor! Achais que eu posso ouvir-vos tagarelar todos os dias de
Rá?” Com efeito, sendo tu Mont-kav, não podes abandonar o teu papel;
diante da gente não hás de querer fingir que verdadeiramente acreditas que
eu não sou outra coisa a não ser Osarsif, o escravo estrangeiro vendido,
porquanto no teu intimo saberás já, pelo que houve da outra vez, num
modesto pressentimento, quem sou eu e que arco descrevo para preparar o
caminho dos deuses, dos meus irmãos. Adeus, pois, meu pai e
superintendente! Na luz e na bonança nos tomaremos a ver.
Aqui José se calou, cessando de dar as boas-noites, pois viu que as
costelas e o ventre do mordomo estavam imóveis e que ele
imperceptivelmente já passara dos campos do mundo para os prados da
eternidade. Tomou uma pena que já outras vezes lhe agitara diante dos
olhos para verificar se ainda enxergava e colocou-a sobre os seus lábios. Eh,
porém, não se moveu. Não foi preciso fechar-lhe os olhos porque ele
próprio já os havia pacificamente cerrado no seu sono.
Vieram os entendidos e durante quarenta dias salgaram e embalsamaram
o corpo de Mont-kav. Foi depois envolvido em faixas, posto num caixão
exatamente do seu tamanho e, convertido agora num Osíris todo pintado,
pôde ficar ainda alguns dias no fundo do pavilhão do jardim defronte dos
deuses de prata. Depois ainda teve de fazer uma viagem rio abaixo até o
sagrado túmulo de Abodu, em visita ao Senhor do Ocidente, antes de poder
dar entrada, com pompa medíocre, na câmara da rocha que adquirira, nas
montanhas de Tebas.
E José não pôde nunca pensar naquele homem sem que seus olhos se
umedecessem. Então aqueles olhos se pareciam surpreendentemente com os
de Raquel quando estavam rasos de lágrimas impacientes, nos anos durante
os quais ela e Jacó esperavam um pelo outro.
6

A MULHER FERIDA PELO AMOR

A PALAVRA INCOMPREENDIDA

E depois destas coisas sucedeu que a mulher do seu senhor, pondo os


olhos em José, disse...
Todo mundo sabe que coisa se narra tenha dito Mut-em-enet, esposa
titular de Petepré, quando “pôs” os olhos em José, o jovem mordomo do seu
marido; e não queremos nem podemos contestar que um dia, no auge da
confusão, na febre altíssima do desespero, ela tenha acabado por falar
realmente assim, que ela se tenha realmente servido da fórmula
terrivelmente direta e aberta que a tradição lhe põe na boca; e precisamente
tão de improviso, como se se tratasse de uma proposta de licencioso
imediatismo, muito evidente aos olhos daquela mulher e que não lhe
custava nada, e não de um grito tardio que lhe vinha da necessidade
extrema da alma e da carne. Para falar com franqueza, estamos
descoroçoados diante da escassez de palavras de uma narrativa que
absolutamente não satisfaz as exigências da amarga minuciosidade da vida,
tal como faz a relação que nos serve de base. Raramente sentimos tão ao
vivo como agora a injustiça que praticam tratando com tanta concisão e
laconismo a verdade. E nem se pense que estamos surdos à censura que,
expressa ou não, e em todo caso tácita só por cortesia, é lançada contra esta
nossa exposição que procura não se afastar da verdade. Essa censura
consiste em se afirmar que é insuperável a concisão com que a história é
narrada no seu lugar de origem e que a nossa empresa, fazendo render tanto
o assunto, é trabalho perdido. Seja-nos, porém, lícito perguntar desde
quanto tempo um comentário entra em competição com o seu texto. E
depois, acaso não está ligada tanta dignidade e importância à discussão do
“como” quanta à transmissão do “quê”? Antes, porventura a própria vida
não se preenche apenas no “como”? Convém recordar (ejá antes falamos no
caso) que, antes de ser contada pela primeira vez, a história já se contou a si
mesma e isso com uma exatidão de que somente a vida é capaz e que o
narrador não tem esperança nem probabilidade de atingir. O mais que ele
pode fazer é aproximar-se dessa perfeição, servindo o “como” da vida com
maior fidelidade do que o fez o espírito lapidar do “quê”. Se, porém, algum
dia foi justificável a fidelidade no comentar, este é o caso da história da
mulher de Putifar e daquilo que, de acordo com a tradição, ela teria dito.
O quadro que inevitavelmente se faz ou que se é irresistivelmente
tentado a fazer da ama de José, o quadro em que, como receamos, muita
gente retrata a consorte de Putifar é tão falso que, corrigindo-o e chegando-
o mais à fidelidade, se presta um verdadeiro serviço ao texto original —
quer se entenda sob o nome de texto original aquilo que foi escrito pela
primeira vez, quer se entenda (o que é ainda melhor) a vida narrando a si
mesma. A enganadora imagem de uma lascívia desenfreada e de uma mania
de sedução, despida de todo pudor, não condiz bem com o que nós,
juntamente com José, ouvimos no pavilhão do jardim da boca da velha Tui,
veneranda apesar de tudo, ouvimos — digo — a respeito da nora. Foi lá que
começamos a saber de certas particularidades da vida da casa. A mãe de
Petepré chamou-a “soberba”, depois de declarar que era impossível acusá-la
de ser uma pata. Disse mais que ela era orgulhosa, chamou-lhe irmã da lua,
poupada, sendo que a sua natureza recendia a folhas de mirto. Pode-se pôr
na boca de uma mulher assim as palavras que na sua boca põe a tradição?
E, no entanto, ela disse aquelas palavras, exatamente aquelas, e repetiu-as,
quando o seu orgulho foi inteiramente quebrado pela paixão. Nós já o
confirmamos. Mas a tradição se esquece de acrescentar quanto tempo se
passou durante o qual ela preferia morder a língua a falar daquele jeito;
esquece-se de dizer que, na sua solidão, ela realmente, literalmente,
materialmente mordeu a língua, antes que, gaguejando de dor, pronunciasse
a palavra que a ferreteou para sempre com a marca de sedutora. Sedutora?
Uma mulher nas suas condições toma-se naturalmente uma sedutora. O que
seduz é o lado exterior, a manifestação fisionômica da sua tribulação; é a
natureza que faz os olhos brilharem com mais doçura do que conseguem
fazê-lo os artifícios do toucador; é a natureza que toma o vermelho dos seus
lábios mais atraente que o carmim e que sobre os lábios deposita um sorriso
cheio de alma e de expressão; a natureza que a induz a vestir-se e enfeitar-
se com cálculo ao mesmo tempo inocente e estudado, que com um dado
intuito lhe aformoseia os movimentos, que imprime a todo o seu corpo, até
onde lhe permite sua conformação e às vezes até um pouco além dela, a
marca de uma promessa de delícias. E tudo isto fundamentalmente não
significa outra coisa senão o que a senhora de José afinal disse a ele. Mas
pode-se responsabilizá-la por isto, se tudo tem origem nas suas fibras
íntimas? Ela o terá feito em virtude de um espírito diabólico? Não foi a
tanto compelida unicamente pelo seu martirizante sofrimento que se
manifesta exteriormente de modo encantador? Enfim, pelo fato de seduzir,
será ela uma sedutora?
Antes de tudo, a maneira e a forma da sedução ficam um tanto
modificadas pelo nascimento e educação da mulher. Já o ambiente da sua
infância, que devemos imaginar tenha sido muito nobre, desautoriza a
suposição de que Mut-em-enet, familiarmente chamada Eni e também Enti,
na fase derradeira da sua paixão, tenha procedido como uma rameira. O que
tivemos de conceder ao leal Mont-kav não seria justo tirá-lo desta mulher
que exerceu no destino de José um influência bem diversa da que foi
exercida pelo mordomo. Cumpre-nos, pois, dizer ao menos as coisas mais
necessárias sobre a sua origem.
Ninguém se surpreenderá se lhe dissermos que a mulher do flabelífero
não era filha de nenhum cervejeiro ou britador de pedra. Ela descendia nada
menos que de antigo sangue de príncipes dos nomos, conquanto tivesse
passado já muito tempo desde que os seus antepassados residiam numa
província do Egito central como régulos patriarcais e proprietários de
grandes terrenos. A dupla coroa de Rá adornava então a cabeça de
soberanos estrangeiros, descendentes de pastores asiáticos, habitando o
Norte do país, e os príncipes de Vese, ao Sul, tinham sido, através dos
séculos, submetidos aos invasores. Mas entre eles haviam surgido
poderosos, Sekenjenré e seu filho Kemose, que se sublevaram contra os reis
pastores e os combateram encarniçadamente, luta na qual a origem
estrangeira daqueles reis pastores fora para a própria ambição deles um
meio eficaz de atiçar a guerra. Achmose, o intrépido irmão de Kemose,
havia assaltado e conquistado Auaris, a fortificada sede régia dos
estrangeiros, expulsando-os do país e estabelecendo-se no lugar deles. Nem
todos os príncipes da província quiseram logo reconhecer no herói
Achmose o libertador do país e tampouco equiparar o seu domínio à
liberdade, como ele dizia. Algum deles (e lá deviam ter as suas razões)
tinham tomado o partido dos estrangeiros, porque teriam preferido
continuar como seus vassalos a ser libertados por um dos seus. E ainda
depois da completa expulsão dos seus senhores supremos, debaixo de cujo
domínio tinham estado durante tantos anos, alguns daqueles reis de
província, infensos àquela liberdade, se amotinaram contra o libertador e,
conforme se lê nos documentos, “reuniram contra ele os rebeldes”, de sorte
que Achmose ainda teve de vencê-los em aberta batalha campal antes de
dar como instaurada a liberdade. Era natural que os rebeldes perdessem aí
todas as suas terras. Foi em geral hábito constante dos libertadores tebanos
do país conservar para si o que tinham tomado dos estrangeiros, de maneira
que teve então início um processo que, na época da nossa história, havia
progredido muito, mas que ainda não alcançara a sua realização completa.
Queremos falar da desapropriação de toda a propriedade latifundiária da
nobreza, estabelecida já de há muito na província, e o confisco de todos os
seus bens a favor da coroa tebana. Esta tornou-se a pouco e pouco a única
proprietária de todas as terras e as arrendava contra pagamento ou as dava
aos templos e aos favoritos, como Faraó dera de presente a Petepré aquela
ilha fértil. Mas as antigas famílias principescas da província se
transformaram em nobreza da burocracia e da espada que acompanhou
Faraó, ocupando cargos de comando no exército e na administração.
Foi assim a família da nobre estirpe de Mut. A ama de José descendia,
em linha reta, daquele príncipe dos nomos chamado Teti’an, que no seu
tempo havia “reunido os rebeldes”, tendo de ser vencido em combate antes
de se reconhecer libertado. Faraó, porém, não guardou por isso rancor aos
netos e bisnetos de Teti’an. A linhagem, tomando-se grande e distinta, deu
ao Estado capitães, presidentes de gabinete e tesoureiros, à corte deu
senescais, cocheiros-mores, superintendentes das termas reais, sendo que
alguns deles chegaram mesmo a conservar o antigo título principesco,
subindo ao posto de governadores de grandes cidades, como Mênfis ou
Tine. Assim Mai-Sachme, pai de Eni, tinha ocupado o alto cargo de
príncipe da cidade de Vese, isto é, fora um dos dois príncipes, pois que
havia um para a cidade dos vivos e outro a ocidente para a dos mortos,
sendo Mai-Sachme príncipe desta última. Como tal, viveu, para usar a
expressão de José, numa bela posição e podia ungir-se com óleo de alegria;
ele e os seus podiam fazer isto, inclusive Enti, sua filha de bem
proporcionados membros, conquanto já não fosse uma princesa dos nomos,
uma proprietária de terras, mas filha de um funcionário dos novos tempos.
Daquilo que seus pais, príncipes da cidade, tinham resolvido a seu respeito
podem-se perfeitamente inferir as mudanças que desde a época dos
antepassados se vinham operando na mentalidade da estirpe. Com efeito,
quando estes, em atenção às grandes vantagens da corte, deram a sua dileta
menina, ainda em tenra idade, como mulher a Petepré, filho de Hui e Tui,
de quem estes haviam feito um funcionário titular, demonstraram
claramente que o sentimento da fecundidade dos seus avós, presos ao solo e
ligados à terra, já sofrerá nos novos tempos um sensível enfraquecimento.
Mut era uma menina quando seus pais dispuseram dela da mesma forma
que os pais de Putifar, especulando com ele, dispuseram do seu filhinho
ainda pouco firme e o destinaram a ser cortesão da luz. As exigências do
seu sexo, por cima das quais se passou sem mais nem menos, essas
exigências de que são imagens a terra enegrecida pela água e o ovo lunar,
origem de toda a matéria animada, dormitavam mudas e germinativas nela,
incônscia de si mesma, que não fez o mínimo protesto contra a disposição
dos pais, contrária à vida cheia de amor. Ela era alegre, serena, livre. Era
como uma flor aquática que boiando à tona sorri aos beijos do sol, sem
saber que a sua comprida haste se arraiga no escuro lodo da profundeza.
Naqueles dias ainda não existia o contraste entre seus olhos e sua boca; até
reinava entre eles uma harmonia puerilmente insignificante, porque o seu
atrevido olhar de menina ainda não conhecera nada da severidade que
obscurece, ao passo que a especial forma serpentina da boca, com os seus
cantos profundos, era muito menos acentuada. A oposição só se verificou
gradualmente durante o curso da sua vida de monja da lua e mulher
honorária do camarista do sol, sinal de que a boca como órgão e
instrumento é mais ligada e mais afim das potências ínferas que os olhos.
Pelo que diz respeito ao seu corpo, toda a gente lhe conhecia a figura e
as belezas, porque “o ar tecido”, os luxuosos fios de seda, delicados como o
hálito, que ela usava, patenteavam, segundo o costume do país, aquele
corpo aos olhos de todos, em todas as suas linhas. Pode-se dizer que ele
estava mais em harmonia com a boca do que com os olhos; a sua condição
honorífica não entravara o seu florescer nem coibira o seu desenvolvimento.
Com os seus seios pequenos e firmes, com as Unhas finas do pescoço e das
costas, com os delicados ombros e os braços esculturais, com as nobres
pernas de graciosa estrutura, cujas Unhas superiores se arredondavam em
curvas femininas na opulência das ancas e das nádegas, era, no dizer de
todos, o mais belo corpo de mulher que se podia ver. Vese não conhecia
outro mais digno de elogio; e tal como era a natureza dos homens, ao vê-lo,
acudiam-lhes à mente visões antigas e graciosas, quadros da época
primordial e de épocas ainda anteriores, quadros que tinham ligação com o
ovo lunar da origem: o quadro de uma esplêndida virgem que no fundo —
para bem dizer no fundo úmido — era a mesma pata do amor em figura de
virgem, em cujo regaço, com os remígios bem abertos, se aninhava um
magnífico exemplar de cisne, um deus de nívea plumagem e delicadamente
violento, que, batendo as asas, executava sobre a pata agradavelmente
surpresa a obra do amor, para que eh gerasse o ovo...
Na verdade, com o espetáculo da luminosa figura de Mut-em-enet,
semelhantes quadros primordiais se iluminavam no íntimo da gente de
Vese, onde até então tinham ficado no escuro, conquanto se soubesse da
honorífica condição de castidade lunar em que a mulher vivia e que se
podia ler na expressão severa dos seus olhos. Sabiam que aqueles olhos
davam uma medida mais exata da sua essência e atividades do que a boca,
que dizia coisas bem diversas e que poderia, consentindo, sorrir da
atividade régia do cisne. Sabiam que aquele corpo chegava a ter seus
momentos supremos, seus gozos e o cumprimento dos seus desejos, não ao
receber tais visitas régias, mas somente quando, em dias solenes, sacudindo
os guizos, pulava durante a dança religiosa diante de Amun-Rá. Não
falavam dela; entre eles não havia maledicência nem piscadelas furtivas que
ferissem aquela mulher, concordando com o que dizia a sua boca, mas
desmentiam os seus olhos. Havia línguas viperinas que arrasavam outras
mulheres, na realidade mais casadas do que a neta de Teti’an, mas cuja
moral muito deixava a desejar, damas ainda dentre as pertencentes à ordem
e até mulheres do serralho do deus, por exemplo, Renenutet, consorte do
superintendente dos bois, sobre cujo procedimento se diziam coisas e loisas
que, ou não chegavam ao conhecimento do encarregado dos bois de Amun,
ou das quais ele não queria saber. Muito se sabia a respeito dela e se
caçoava com delícia por trás da sua liteira e do seu carro como se fazia a
propósito de outras e outras. Mas da primeira e, por assim dizer, verdadeira
mulher de Petepré nada se sabia em Tebas, estando todos convencidos de
que também nada havia que saber. Consideravam-na uma santa, uma
reservada, uma poupada, na casa e na corte de Petepré como fora dela, e
isto não era dizer pouco, se se leva em conta a grande e arraigada tendência
a fazer chufas e mexericos.
Pensem o que quiserem os ledores, não reputamos dever nosso indagar
dos costumes de Mizraim e particularmente dos hábitos do mundo feminino
de No-Amun — costumes e hábitos de que há muito ouvimos o velho Jacó
falar com solenidade e dureza. Seu conhecimento do mundo tinha certos
laivos de emoção e de mito que convém não perder de vista para não se cair
em exageros. Mas tinham algum fundamento suas ponderadas palavras de
condenação. Entre gente que não possui nem a noção nem a compreensão
do pecado e que anda em público em trajes de “ar tecido”, entre gente cujo
culto do animal e da morte favorece uma certa carnalidade do sentimento,
entre gente assim, antes mesmo de qualquer demonstração ou experiência, é
de toda procedência pensar-se em falta de escrúpulo nos costumes, que Jacó
descrevera com palavras poeticamente campanudas. Com efeito, à
verossimilhança correspondia a experiência — queremos constatá-lo com
mais satisfação lógica que com espírito de maldade. Mas não seria digno,
para confirmar tal presunção, andarmos metendo o nariz na vida cotidiana
das senhoras casadas de Vese. Aqui muita coisa se pode perdoar e pouca
coisa discutir. Para aludir a certas condições que justificariam amplamente
as imaginosas definições de Jacó, bastaria lançar distraidamente um olhar
para Renenutet, a mulher do superintendente dos bois, e um certo airoso
vice-comandante da guarda de corpo do rei, ou para aquela mesma dama de
alta posição e um jovem sacerdote de cabeça reluzente, adido ao templo de
Chonsu. Não nos compete o papel de moralistas e não queremos condenar
Vese, a grande cidade, na qual viviam mais de cem mil almas. Não podendo
sustentar uma posição, preferimos abandoná-la. Por uma mulher, entretanto,
pomos a mão no fogo e estamos prontos a arriscar a nossa reputação de
historiador em prol da irrepreensibilidade do seu comportamento, até um
determinado instante em que esse comportamento descambou, por obra dos
deuses, numa desenvoltura de mênade: essa mulher é Mut-em-enet, filha do
príncipe dos nomos, Mai-Sachme, e esposa de Putifar. Que a sua índole
fosse a de uma meretriz, que, por assim dizer, ela tivesse sempre nos lábios
a proposta indecorosa que se lhe atribui e da qual depois levianamente,
descaradamente se libertou, é uma afirmação que falseia a história de tal
modo que, a bem da verdade, temos todo o interesse em refutá-la. Quando
por fim mordeu a língua e tartamudeou aquela palavra, então ela já não se
conhecia a si mesma; estava fora de si, exausta pelo sofrimento, vítima da
atormentadora sede de vingança das potências ínferas às quais estava
entregue pela sua boca, enquanto seus olhos haviam acreditado poder tratá-
las com frio desprezo.
OS OLHOS QUE SE ABREM

E sabido que Mut, com pleno consentimento de pais bem-intencionados,


já em tenra idade fora dada como esposa ao filho de Hui e Tuí, o que vale a
pena de ser novamente lembrado em razão de suas consequências íntimas.
Sempre, pois, esteve habituada a considerar sua missão como uma pura
formalidade, e o instante que poderia revelar a sua carne que estava
frustrada achava-se sumido nas trevas. Assim, nominalmente, perdera ela a
sua virgindade numa idade tenra, mas haviam parado aí as coisas. Apenas
feita mulher, ou antes, ainda adolescente, já era a mimada superiora de um
harém senhoril, dama de grande fausto, carregada na palma das mãos pela
selvagem submissão de nuas raparigas mouras e de eunucos servis; era a
primeira e a verdadeira entre quinze outras belezas nacionais de diversa
procedência, que vegetavam no luxo e que formavam todas juntas um mero
e vazio luxo, um acessório de honra e de pompa na casa da bênção, a corte
amorosa de um cortesão impossibilitado de apreciá-las. Dessas fêmeas
palreiras de olhos sonhadores era Mut a rainha; pendiam-lhe dos lábios,
caíam em profunda melancolia quando ela se mostrava triste, e se
entregavam a transportes de ruidoso júbilo quando ela estava alegre.
Mostravam-se, porém, desatinadamente rixosas pela mais insignificante
atenção de Petepré, quando este, enquanto se distribuíam confeitos e licor
da cor do âmbar, se achava no meio delas e jogava uma partida de damas
com Mut-em-enet. Estrela do harém, ela era ao mesmo tempo a primeira
figura da casa, esposa de Putifar num sentido mais íntimo e elevado que
aquelas concubinas. Era, portanto, a senhora que, não fossem certas
circunstâncias, teria sido a mãe dos seus filhos, aquela que no edifício
principal da herdade dispunha de um aposento privado, situado a leste da
sala hipostila do norte onde José costumava desempenhar suas funções de
leitor e que separava os quartos dos cônjuges. E quando Putifar, o amigo de
Faraó, dava à alta sociedade de Tebas banquetes acompanhados de danças e
música, ela era a dona da casa e, com seu marido, frequentava igualmente
festas semelhantes noutras casas nobres e sobretudo na corte.
Sua vida era intensa e cheia de compromissos elegantes — supérfluos
quanto se quiser, mas nem por isso menos consumidores de energias. Todas
as civilizações nos ensinam como as exigências da vida social, da mera
cultura e das suas exuberantes particularidades, cerceiam as energias vitais
de senhoras distintas, de maneira que, através de todas as exigências
convencionais, nunca se pode chegar ao que é real, à vida da alma e dos
sentidos, e uma fria vacuidade do coração, inconsciente de suas privações,
ao menos tanto quanto se pode perceber, converte-se num hábito da
existência que não é licito nem sequer chamar de triste. Em todos os tempos
e regiões têm existido na alta sociedade estas mulheres mundanas que não
possuem nenhum temperamento. Pode-se ir ao ponto de dizer que importa
pouco que o marido de uma delas seja um capitão de tropas num sentido
real ou simplesmente honorário. O ritual da toalete é igualmente
importante, quer o seu fim seja conservar vivo o desejo no peito do marido,
quer seja executado como um fim em si mesmo e como um dever social.
Mut, como qualquer outra mulher da sua classe, lhe consagrava cada dia
horas a fio e o rito era complicado. Havia o trato meticuloso das unhas dos
dedos das mãos e dos pés até brilharem como esmalte; os banhos
perfumados, os depilatórios, as massagens a que ela submetia seu belo
corpo. Vinham depois os cuidados extremos com os olhos, consistindo em
pinturas e instilações — uns olhos já de si lindos, de um azul metálico na
íris, adestrados em piscadelas e olhares mágicos e, mercê da paleta dos
arrebiques, do pincelzinho pontudo, dos engenhosos meios de dulcificar-
lhes a expressão, transformados em verdadeiras gemas, em legítimas joias.
Havia a arrumação dos cabelos; os dela eram um conjunto de anéis não
muito compridos, dum negro rebrilhante, que Mut se comprazia em
polvilhar de azul ou de ouro, e também o cuidado das diversas cabeleiras,
de várias cores, com tranças, rabichos e franjas emperladas. Havia o arranjo
com dedos mimosos dos vestidos enfeitados com laços e faixas apertadas
nas ancas, bordadas e distendidas em forma de lira e com as capinhas
minuciosamente pregueadas, caindo dos ombros; a escolha dos colares para
o colo, os braços e a cabeça, apresentados por escravas de joelhos. E,
enquanto durava todo este ritual, não era permitido um sorriso sequer: as
nuas raparigas mouras, as camareiras encarregadas do vestiário, os eunucos
peritos em penteados deviam manter-se sérios, e a própria Mut não podia
dar um ar de sua graça, porque o mais leve descuido ou negligência em
coisas tão elevadas podia provocar a reprovação da alta sociedade e suscitar
um escândalo na corte.
Depois eram as visitas às amigas, que levavam vida igual à sua, e à casa
das quais ela se fazia transportar, ou que recebia na sua própria casa. Era o
serviço no palácio Merimat, junto a Teje, a consorte do deus, de quem Mut
era dama de honor. Como Petepré, seu esposo, também ela levava o flabelo
e tinha de tomar parte nas festas noturnas sobre a água, oferecidas pela mãe
de Amun sobre o lago artificial do jardim real, o mesmo lago que a palavra
de Faraó fizera brotar e cuja beleza se engolfava nas cintilantes tintas de
coloridos fachos de invenção recente. Em seguida (disso nos lembramos
pela menção que fizemos da mãe do deus) vinham os famosos deveres
religiosos honorários, funções que combinavam o social com o sacerdotal, e
originavam mais do que qualquer outra coisa a severa e arrogante expressão
dos olhos de Mut. Estes deveres eram oriundos da sua qualidade de membro
da ordem de Hathor e de fazer ela parte do harém de Amun; incumbiam-lhe
esses deveres como portadora dos chavelhos de vaca com o disco solar
entre eles, em suma, na sua qualidade de deusa provisória. E difícil dizer
quanto este aspecto e esta função da vida de Eni contribuíam para aumentar
a sua frieza mundana de grande dama e para conservar seu coração vazio de
sonhos mais meigos. Tudo isto Mut fazia em conexão com o seu
matrimônio titular, com o qual aliás ela não tinha uma verdadeira conexão.
O harém de Amun não era absolutamente uma casa das imaculadas. A
abstinência da carne estava longe do caráter divino na grande mãe que
festivamente se personificava em Mut e nas suas companheiras. A rainha,
companheira de leito do deus e mãe do sol sucessor, era a patrona da ordem.
Superiora da ordem era, como já deixamos dito, uma mulher casada, a
esposa do grão-profeta de Amun, e a ordem se compunha
preponderantemente de mulheres casadas, como Renenutet, consorte do
superintendente dos bois (sem prejuízo de suas outras relações). Na verdade
o cargo de Mut no templo estava em conexão com o seu matrimônio só até
o ponto em que ela devia socialmente o cargo ao matrimônio. No seu
íntimo, porém, e de própria iniciativa, ela fazia aquilo que o rouco Hui
fizera no colóquio com a sua velha irmã de leite; estabelecia uma relação
entre seu ofício de sacerdotisa e a singularidade de sua união e, sem
propriamente a formular com palavras, encontrava meios e modos para
exprimir que julgava lógico e sumamente admissível, para uma concubina
do deus, ter um cônjuge terrestre com a conformação de Petepré. Ela sabia
sugerir e comunicar esse seu modo de ver à sociedade de modo tal que esta,
do seu lado, a ajudava a sustentar essa ideia e via a sua posição no círculo
da ordem de Hathor à luz da castidade exigida pelo deus e da sua qualidade
de poupada; e disto, muito mais que da bela voz e da perícia coreográfica de
Mut, resultava tacitamente a excelência da sua posição, quase ao lado da
superiora.
Tudo isto era obra da sua força de vontade, que tomava forma no mundo
e lhe proporcionava as supercompensações que ela anelava das insondáveis
profundezas da sua alma.
Ninfa? Mulher dissoluta? A ideia é absurda. Mut-em-enet era uma santa
elegante, uma casta irmã da lua, de alta posição social, cujas forças vitais
eram em parte consumidas por uma civilização cheia de exigências e em
parte eram, por assim dizer, bens do templo e se transmudavam em orgulho
espiritual. Assim ela vivera como primeira e verdadeira mulher de Putifar,
altamente tratada, levada na palma das mãos, contente consigo mesma,
confortada pela veneração que lhe era rendida de joelhos, não tocada nem
ainda em sonho pelos desejos daquela esfera que se manifestava na sua
boca sinuosa ou, para dizer a coisa com palavra breve e decisiva, pelos
desejos de pata. Erro é considerar o sonho com um campo selvagem e livre
onde pode surgir à vontade e espolinhar-se desenvoltamente aquilo que de
dia é proibido. O que é absolutamente desconhecido ao homem quando
acordado ele não o conhece tampouco no sonho. O limite entre estes dois
campos é resvaladiço e permeável; há de permeio apenas um espaço pelo
qual a alma se move hesitante; e que este espaço é indivisível para a
consciência e para o orgulho, demonstrou-o a confusão, demonstraram-no a
vergonha e o pânico que invadiram Mut não logo ao acordar, mas quando
pela primeira vez ela sonhou com José.
Quando aconteceu isto? Naqueles países os anos da vida se contam com
negligência; e, deixando-nos contagiar pelos hábitos do mundo em que se
passa a nossa história, também nós nos contentaremos com cálculos
aproximativos. Eni tinha certamente bem menos idade que seu marido, o
qual, no momento da compra de José, era, como vimos, homem de seus
quarenta anos, tendo assim, por essa época, uns quarenta e sete anos. Ela
não havia, portanto, de ser, como ele, bem entrada na casa dos quarenta,
estando ainda longe disso; mas era, em todo caso, mulher já madura,
inegavelmente vários anos mais velha que José. Quantos anos mais?
Relutamos em calculá-lo e nossa relutância é justificável por brotar, como
brota, de um profundo respeito pelo culto feminino do toucador, que pode ir
ao ponto de aniquilar os anos e em seus resultados sobre os sentidos possui
uma veracidade mais alta que a do simples cálculo feito a lápis. Desde o dia
em que pela primeira vez José viu sua senhora, quando esta passou por ele
carregada na sua cadeirinha dourada, o jovem crescera em encantos para os
olhos femininos. Os de Mut, porém, não cresceram, ao menos para alguém
que a via sempre. Mal iria às escravas dos unguentos e aos eunucos
massagistas se os anos tivessem podido alterar o seu perfil! Mas o rosto da
senhora, com aquele nariz em sela e as estranhas covinhas sombreadas das
faces, conquanto nunca tivesse sido realmente bonito, contudo conservava
seu misto de convenção e capricho, de expressão da moda e encanto
irregular que sempre tivera. A perturbadora contradição entre os olhos e a
boca sinuosa tinha-se provavelmente acentuado. Para os propensos a deixar-
se atrair pelo que é perturbador (pois há gente assim), Mut nesse meio-
tempo se fizera mais bela.
Por outro lado a beleza de José, nessa época, saíra do período de graça
juvenil que precede a virilidade e durante o qual soubemos apreciá-la
devidamente. Aos vinte e quatro anos continuava formoso de causar
assombro; mas a sua formosura havia amadurecido para além da dupla
fascinação dos seus primeiros anos; continuava, é certo, i exercer sua
fascinação, mas concentrara o seu atrativo sentimental mais definidamente
numa direção, isto é, na direção do sentido feminino. Nesse ínterim a sua
beleza, fazendo-se mais viril, até se tomara mais nobre. O seu semblante já
não tinha a expressão graciosamente insidiosa do rapaz beduíno de outrora;
conservava traços disso, principalmente quando, embora sem ser míope,
cerrava os olhos como fazia Raquel, de um certo modo velado; mas fizera-
se mais cheio, mais sério e mesmo mais moreno sob o sol do Alto Egito, e
nos contornos mais regular, mais fidalgo. Já de caminho falamos nas
mudanças verificadas na sua figura, no som da sua voz e — como produto
não só dos anos, mas também do desempenho da sua nova tarefa — nos
seus movimentos. Acrescente-se ainda, como produto da civilização local,
um aprimoramento do seu exterior que convém não perder de vista se se
quiser fazer uma ideia exata da sua figura de então. E preciso imaginá-lo no
branco traje de linho de um egípcio das classes superiores, tão transparente
que se viam as vestes de baixo, com mangas curtas, deixando descoberto o
antebraço ornado de braceletes de esmalte. A cabeça, que ordinariamente
mostrava os próprios cabelos Usos, era coberta, em ocasiões solenes, por
uma ligeira cabeleira artística, feita da melhor lã de ovelha, que, num meio-
termo entre um lenço de cabeça e um cacho de cabelos, aderia à parte
superior da cabeça em finíssimas madeixas, semelhando seda estriada, que
iam simetricamente até a nuca; mas, de uma determinada linha que corria
oblíqua, mudava de aspecto e caía sobre os ombros em caracóis que se
encaixavam uns nos outros como as telhas de um telhado. Em volta do
pescoço tinha, além do colar em cores, uma cadeia chata, de junco e ouro,
da qual pendia um escaravelho protetor. A expressão do semblante se
tomara estranha e um pouco hierática por causa de certos artifícios que ele,
na ânsia de adaptar-se, tinha acolhido na sua toalete matinal, pois tomara
mais bastas as sobrancelhas e prolongara para as têmporas as linhas da parte
superior das pálpebras. Assim transitava pela herdade, com um comprido
bastão na mão estendida, na sua qualidade de primeira boca do
superintendente; assim ia ao mercado, assim se conservava diante da mesa,
fazendo sinais aos servos, por trás da cadeira de Petepré. Assim o via a
senhora na sala ou quando comparecia ao harém e se apresentava a ela
mesma para lhe falar, em atitude submissa e com linguagem modesta, sobre
alguma nova disposição. E foi só assim que ela o viu nas suas novas
funções, pois que antes, quando era o insignificante escravo comprado e
ainda nos dias em que já tivera artes de aquecer o coração de Putifar, ela
nunca o vira, e até quando já ele crescia na casa como junto a uma fonte,
foram necessárias as queixas de Dudu para abrir-lhe os olhos em relação à
pessoa de José.
No entanto, este abrir de olhos, realizado pela língua de Dudu, que
desempenhava o ofício do pé de bezerro ritual que abre as mandíbulas dos
mortos, era ainda muito incompleto. Quando ela procurava com os olhos o
escravo, de cuja escandalosa ascensão na casa ouvira falar, o que a instigava
a fazê-lo era uma severa curiosidade. Perigoso (que é como há de exprimir-
se quem se interessa pela altivez e tranquilidade dela), perigoso era somente
o fato de que os seus olhos iam pousar justamente em José, cujos olhos
encontravam os dela por alguns instantes. Foi exatamente esta circunstância
realmente grave que logo incutiu no pequeno Bes, mercê da sua sabedoria
de anão,o medo e o pressentimento de que o maligno Dudu estivesse
fazendo alguma coisa que ia além da sua maldade e de que a abertura de
olhos podia ter um aperfeiçoamento fatal. Um medo inato das potências que
ele via no quadro do touro de bafo de fogo o tornara acessível a tais
pressentimentos. José, porém, por culposa leviandade (não temos nenhum
desejo de poupá-lo neste ponto) não o quis compreender,procedeu como se
o vizir estivesse dizendo tolices, embora no seu íntimo talvez fosse da
mesma opinião. Pois também ele, mais que ao significado dos olhares que
se cruzavam na sala, dava importância ao próprio fato de lhe serem
dirigidos aqueles olhares, e no seu cotação estolidamente se gabava de já
não ser para a senhora um simples objeto que se movia no espaço, mas de
merecer dela pessoalmente um olhar, ainda que olhar irritado.
E a nossa Eni? A falar verdade, ela não se mostrava mais prudente. Ela
também não tinha querido compreender o anão. O fato de Em olhar com ira
e severidade para José parecia-lhe suficiente justificação dos seus olhares. E
isto foi desde o princípio um erro, perdoável antes que ela soubesse quem
via quando olhava, mas em seguida um erro cada vez mais voluntário e
merecedor de punição. A desventurada não queria compreender que, da
“severa curiosidade” com que procurava com os olhos o criado particular
do seu marido, pouco a pouco desaparecia a severidade, ficando só a
curiosidade, que passava então a merecer um epíteto menos ortodoxo.
Supunha estar tomando parte na indignação de Dudu; sentia-se autorizada e
obrigada a essa participação em virtude da sua posição religiosa ou, o que
vinha a dar no mesmo, da sua posição política, da sua filiação ao partido, da
sua união com Amun, que devia sentir como uma ofensa o prestígio de um
escravo hebreu na casa e ver nisso como que uma capitulação diante das
tendências asiáticas de Atum-Rá. A gravidade do escândalo devia servir
para justificar o prazer que lhe causava ocupar-se de tal assunto, dando ela a
isso o nome de empenho e zelo. E surpreendente a capacidade do homem
para enganar a si mesmo. Quando durante unia hora — uma breve hora no
verão ou uma mais longa no inverno — não a prendiam seus deveres
sociais, Mut costumava deitar-se no seu leito à beira do tanque
quadrangular, cheio de peixinhos coloridos e de flutuantes cálices de lótus,
tanque imenso aberto no pavimento da galeria do serralho. Ali estirada,
entregava-se aos seus pensamentos, enquanto na parede posterior da galeria
estava de cócoras uma pequena núbia de cachos profusamente
engordurados, para acompanhar com o mavioso som de uma harpa os
devaneios da senhora. Então estava ela compenetrada da sua intenção de
discutir de si para consigo o assunto, como se pudesse, apesar da teimosia
do marido e da divagadora grandiosidade de Beknechons, pôr cobro ao
desaforo de um escravo do país de Zahi, um dos Ibrim, subir a tal altura na
casa; e, dada a importância do caso, não se admirava de que ela mesma se
alegrasse com as suas reflexões. E contudo, ela quase já sabia que essa
alegria não provinha de outra coisa senão do seu propósito de pensar em
José. Se não fosse o dó que temos dela, era o caso de nos irritarmos com
tanta cegueira. Mut nem sequer percebeu que começava a ansiar pela hora
da refeição, quando lhe seria dado ver na sala o mancebo. Imaginava que o
prazer que sentia provinha do seu intuito de lançar-lhe lá olhares raivosos. E
doloroso, mas ela não notava que a sua boca sinuosa sorria vagamente
quando se punha a imaginar como o olhar de José, encontrando a
severidade do seu, se perdia, com um bater de pálpebras, em humildade
espavorida. Pensava ser suficiente que as suas sobrancelhas se franzissem
de indignação pelo escândalo que ia pela casa. Se a pequena sabedoria a
tivesse ansiosamente posto de sobreaviso contra o touro de hálito de fogo,
se quisesse chamar sua atenção para a ruína que ameaçava o edifício da sua
vida, artificial como era, talvez que o rosto de Mut se turbasse e se fizesse
vermelho; se, porém, depois lho fizessem notar, declararia que aquilo era a
expressão da raiva diante de uma tão desorientada parolagem e não se
cansaria de demonstrar uma serena, hipócrita e excessiva falta de
compreensão por essas apreensões destituídas de fundamento. Quem se
deixaria enganar por essas desaprovações exageradas? Certamente não
havia de ser aquele que procurava dissuadi-la. Porque elas devem servir
para dissimular o caminho da aventura que a boa da mulher deseja a todo
custo trilhar. Dar-lhe a entender isso mesmo, antes que seja tarde demais —
eis o que importa. Ser acordado, avisado, chamado a melhores sentimentos
antes que seja tarde demais — eis aí o perigo que deve ser evitado a todo
custo. Cuide o observador compassivo de que uma compaixão mal
empregada não o ponha em maus lençóis. Sua suposição, feita de boa-fé, de
que ao homem importa no seu íntimo ter sossego e paz e preservar de
abalos ou mesmo da ruína o edifício da sua vida, construído e muitas vezes
solidificado com tanta arte e cuidado, uma tal suposição não tem — para
dizer a coisa com brandura — nenhum fundamento. Experiências que não
se podem chamar isoladas mostram, ao contrário, que ele antes quer, sem
considerações outras, a sua bem-aventurança e a sua mina e absolutamente
não agradece quem lhe quer ir à mão. Neste caso... sua alma, sua palma.
Quanto a Eni, o observador compassivo deve, não sem certa amargura,
averiguar que ela conseguiu, sem dificuldade, ultrapassar o momento em
que ainda não era tarde demais, quando ela ainda não estava perdida. Um
pressentimento ao mesmo tempo delicioso e terrífico de se ver perdida teve-
o ela com o sonho a que já de passagem aludimos, e a verdade é que então
estremeceu de pavor. Foi quando se lembrou de que era um ser dotado de
razão e procedeu em conformidade com esse pensamento, isto é, imitou,
por assim dizer, um ser dotado de razão e procedeu maquinalmente como
um tal ser. Deu passos aos quais na realidade já não podia desejar sucesso,
uma confusa e indigna espécie de passos, diante dos quais o observador
compassivo preferiria tapar a cara, não fora o medo de malbaratar sua
compaixão.
Exprimir sonhos em palavras e contá-los é quase impossível, porque o
que importa não é tanto a substância narrável do sonho quanto o seu aroma,
o seu fluido, o inenarrável senso e espírito de horror ou felicidade — ou
ambas as coisas juntas — de que o sonho está embebido e de que
frequentemente enche ainda por muito tempo a alma do sonhador. Os
sonhos representam uma parte decisiva na nossa história; o seu herói
sonhou coisas grandiosas e pueris, e nela outras pessoas ainda sonharão.
Mas em que embaraço se meteram todas quando tentaram comunicar a
outrem, ainda que só aproximadamente, o que com elas se dera! E quão mal
a elas mesmas lhes saiu a tentativa! Basta pensar no sonho do sol, da lua e
das estrelas que José teve, e recordar-se da descosida narrativa que dele fez
o sonhador. Estaríamos, portanto, desculpados, se, contando o sonho de
Mut-em-enet, não lográssemos tomar perfeitamente compreensível a
impressão que a própria sonhadora teve dele. Seja como for, já nos
referimos muitas vezes a esse sonho e não podemos mais diferir sua
narrativa.
Ela sonhou, pois, que estava sentada à mesa na sala das colunas azuis
sobre o estrado, na cadeira que ficava ao lado da do velho Hui, eia fazendo
a refeição no mais respeitoso silêncio que ali já reinara. Dessa vez, porém, o
silêncio era particularmente respeitoso e profundo, visto que os quatro
comensais não só se abstinham de dizer qualquer palavra, mas se
esforçavam por fazer sem nenhum rumor os movimentos próprios daquela
ação, de sorte que no silêncio reinante se percebia claramente a respiração
do pessoal de serviço quando uns passavam pelos outros; e percebia-se tão
claramente que pareciam não tanto estar respirando mas arfando, e o tal
ruído seria, ao que parece, ouvido ainda mesmo que o silêncio não fosse tão
profundo. Aqueles sons rápidos e macios inquietavam e, ou fosse porque
Mut lhes prestasse demasiada atenção ou fosse por outra causa qualquer, o
tato é que ela não cuidou suficientemente do que suas mãos faziam e feriu-
se. Ia partir uma romã com uma faquinha de bronze muito afiada. Por
descuido a lâmina resvalou e lhe cortou a mão, entrando na carne com
bastante profundidade entre o polegar e os outros dedos, fazendo-os
sangrar. Era uma abundante perda de sangue, dum vermelho de rubi, como
o suco da romã, e com vergonha e dor ela o via correr. Sim. Ela se
envergonhava muito do seu sangue, apesar de belo no seu vermelho de rubi,
primeiro que tudo porque manchou logo e inevitavelmente o seu vestido
branco; mas, ainda prescindindo das nódoas, envergonhava-se
excessivamente também por outras razões e procurava a todo custo
esconder daqueles que estavam na sala o sangue que saía. E o conseguiu,
como parecia ou devia parecer, porque todos procuravam, de uma maneira
mais ou menos natural e crível, fazer de conta que não tinham visto o
infortúnio de Mut, e ninguém se ocupava da sua dor, o que ainda mais a
contristava. Ela não queria dar a perceber que se ferira, de envergonhada
que estava; mas que ninguém o quisesse ver, que ninguém movesse um
dedo em seu auxílio, que todos, como se fosse por um acordo tácito, a
deixassem entregue a si mesma, eis o que a indignava no mais íntimo do
seu coração. Sua escrava, a afetada rapariga vestida de teia de aranha,
inclinou-se zelosamente sobre a mesinha ao pé de uma coluna que ficava ao
lado de Mut, como se estivesse a fazer ali alguma arrumação urgente. Por
sua parte, o desdentado Hui, abanando a cabeça, ia roendo com a gengiva
um rolo de coscorão embebido em vinho, circundando um dourado osso de
coxa, e fingia-se muito atarefado com aquela ocupação. Petepré segurava o
seu copo atrás de si por cima do ombro para que o seu copeiro siríaco lho
enchesse. E sua mãe, a velha Tui, com as fendas dos olhos sobre a grande
cara branca, piscava para a desolada mulher, animando-a; com o qual ato
não se sabia bem qual fosse a sua intenção e se ela se estava preocupando
ou não com a angústia de Eni. Esta, porém, no seu sonho continuava a
sangrar envergonhada e a manchar o vestido, silenciosamente exasperada
com a geral indiferença e ainda por cima com uma dor que nada tinha que
ver com tal indiferença, mas sim com o sangue que manava. Efetivamente,
este, que não parava de correr, a afligia indescritivelmente. Que pena, que
pena aquilo! E uma dor inefável lhe oprimia a alma, não por si mesma, não
pelo seu infortúnio, mas por aquele sangue que continuava a correr tão
abundante; e com a dor soluçava sem lágrimas. Veio-lhe então ao
pensamento que, em razão do que acontecera, ela esquecia o seu dever de
lançar olhares repreensivos, por amor de Amun, ao escândalo da casa, ao
escravo cananeu que ai progredia contra todo o direito; e carregou o
sobrolho e olhou severamente para a frente, para o indivíduo que estava
atrás da cadeira de Petepré, o jovem Osarsif. Este, porém, como se se
sentisse chamado pelo seu severo olhar, deixou o seu posto, veio e chegou-
se a ela. Mut sentiu-o bem ao pé de si. Osarsif se aproximara dela para
estancar o sangue; tomou a mão ferida e levou-a à boca, de modo que os
quatro dedos pousavam sobre uma face, o polegar sobre a outra e a ferida
sobre seus lábios. No êxtase, Mut percebeu que o sangue cessava de correr.
Enquanto, porém, lhe chegava essa salvação, correu pela sala um frêmito de
oposição e angústia. Os servos corriam todos como desorientados, a passos
silenciosos, mas ofegando confusamente e em coro; Petepré cobrira a
cabeça, e sobre a cabeça baixa e velada pôs as mãos abertas sua mãe,
erguendo e meneando desesperadamente em diversos sentidos o seu
semblante de cega. Ao velho Hui viu-o Eni em pé diante dela, ameaçando-a
com o dourado osso de coxa, já agora completamente esbrugado e despido
do coscorão, enquanto a sua boca por cima da torva barbicha se abria e
fechava em afônicas invectivas. Os deuses sabiam que palavras terríveis
formava aquela boca sem dentes com a língua a trabalhar lá dentro, e elas
com certeza terão tido o mesmo significado das que proferiam ofegando os
servos na sua corrida confusa. Daquele coro de respirações partiam tons
cochichados, como “ao fogo, ao rio, aos cães, ao crocodilo”; era este o
estribilho que se repetia sempre. Eni sentia ainda claro nos ouvidos o
terrível coro murmurante, quando se libertou do sonho, gélida de horror e
ao mesmo tempo ardente com a delicia da salvação, sentindo que a vida a
havia tocado com a sua varinha.
OS CÔNJUGES

Agora que seus olhos estavam abertos, Mut resolveu proceder como um
ser humano razoável e dar um passo que não fizesse ruim figura diante do
trono da razão. Seu intuito claro e inequívoco era afastar José da sua
presença. Perante Petepré, seu marido, proporia, com todas as energias de
que dispunha, a saída do servo.
Eni passara na solidão o dia seguinte à noite do sonho, apartada de suas
irmãs e sem receber nenhuma visita. Ficara sentada ao pé do tanque da sua
galeria, olhando para além dos irrequietos peixinhos, olhando com o olhar
parado, como se diz quando o olhar se perde no espaço, sem se fixar em
nenhum objeto determinado. De repente, porém, no meio dessa fixidez do
olhar os seus olhos, embora ainda cravados no nada, haviam-se dilatado
com espanto, arregalando-se o mais que podiam, como se estivessem
tomados de horror, enquanto a boca se lhe escancarava, sorvendo
rapidamente o ar. Depois, de novo seus olhos se tinham comprimido, as
comissuras da boca se aprofundaram e os lábios se afrouxaram num sorriso
inconsciente sob o olhar sonhador. Durante todo um minuto ela própria não
sabia que estava a sorrir; estremecendo de repente, levou a mão aos lábios
ociosos, colocando o polegar sobre uma das faces e os outros quatro dedos
sobre a outra. “O deuses!”, murmurou. Depois tudo começou de novo: o
olhar sonhador, o sorver o ar, o sorriso inconsciente, o estremecimento —
até que afinal veio a conclusão: Eni tinha que pôr cobro àquilo.
Pela tardinha, havendo-se certificado de que Petepré estava em casa,
dera ordem às escravas para que a vestissem, a fim de poder visitá-lo.
O cortesão achava-se na sala oriental da sua casa, cuja vista dava para o
pomar e para um dos lados do quiosque de recreio. A luz crepuscular,
coando-se pelas esbeltas pilastras coloridas da parte externa, alagava a sala,
dando um tom mais intenso às cores demasiadas das pinturas que uma mão
negligente de artista traçara sobre o estuque do pavimento, das paredes e do
teto, representando pássaros voando sobre o pântano, bezerros a pular,
tanques com patos e uma manada de bois guiada por pastores através do
vau de um rio, observada por um crocodilo que espiava fora da água. Os
afrescos da parede posterior, entre as portas que Ligavam aquela sala com a
sala de jantar, representavam o próprio cortesão em carne e osso,
reproduzindo-o de volta a casa e atendido por zelosos servos. Vítreos
quadrinhos de porcelana emolduravam as portas, as quais sobre um fundo
cor de camelo eram cobertas de hieróglifos em vermelho, azul e verde, com
máximas de bons autores antigos e palavras tiradas de hinos sacros. Entre
uma porta e outra, ao longo da parede, havia uma espécie de saliência com
encosto ou borda levantada, tudo de barro coberto de estuque branco e de
hieróglifos coloridos sobre as partes anteriores. Essa saliência ou banco
servia para suster obras de arte, presentes de que andavam cheias as salas de
Petepré, mas podia-se também ficar lá sentado; e justamente no meio desse
banco estava sentado agora o homem carregado de honrarias, recostado
numa almofada, com os pés descansando sobre um escabelo, e aos seus
lados achavam-se alinhados diversos objetos, como animais, imagens de
deuses, esfinges de reis lavradas em ouro, malaquite e marfim; e atrás dele
os falcões, os patos, as corujas, as denteadas linhas de flutuação e outros
sinais ideográficos das inscrições. Pusera-se à vontade, tirando a roupa e
conservando apenas o saiote de forte pano branco que lhe chegava aos
joelhos, com uma larga faixa engomada. O traje de cima e seu bastão com
as sandálias amarradas nele estavam sobre uma cadeira com pés de leão,
perto de uma das portas. Petepré, porém, não consentia o mínimo
afrouxamento à sua postura; sentava-se perfeitamente empertigado, com as
mãos breves estendidas sobre o joelho. Comparadas com o tamanho do
corpo, as mãos pareciam minúsculas. Trazia também erguida a cabeça,
graciosamente proporcionada, nariz nobremente recurvo, a boca de talhe
fino, fazendo pensar num belo quadro natural que estivesse ali pousado,
majestosamente recolhido consigo, os braços como os de uma mulher
gorda, o peito largo e saliente. Com os meigos olhos castanhos de
compridas pestanas olhava à sua frente, através da sala, para a tarde
purpurina. Apesar de toda a sua gordura, não tinha barriga, sendo mesmo
delgado de ancas. Contudo, o umbigo chamava atenção pelo seu volume
excepcional; alargado horizontalmente, fazia o efeito de uma boca.
Estava ali sentado imóvel havia muito tempo, num ócio que o natural
porte majestoso do homem enobrecia. No sepulcro que o aguardava,
imitação em tamanho natural da sua pessoa, talvez em pé disfarçado dentro
de uma porta, na obscuridade e com a mesma calma imóvel na qual aqui se
exercitava, ficaria a olhar com olhos castanhos de vidro para a sua casa
eterna, para aquilo que estava realmente nela e aquilo que era, como
talismã, pintado nas paredes para todo o sempre. A estátua seria uma só
coisa com ele; o cortesão já lhe antecipava a identidade, ali sentado e
tomando-o eterno. Por trás dele, junto ao escabelo, falavam as inscrições
ideográficas vermelhas, azuis e verdes; aos seus lados estavam alinhados os
brindes de Faraó; perfeitamente correspondentes ao senso da forma do
Egito estavam as pilastras pintadas da sua sala, por entre as quais ele olhava
a tarde que caía. O estar rodeado dos bens que se possuem conduz à
imobilidade; ficam eles na sua inércia e formosura, e o dono mesmo, inerte
também, permanece entre eles imobilizado. A mobilidade convém antes aos
procriadores abertos ao mundo, que semeiam e produzem e, morrendo,
passam para a sua descendência, e nada tem que ver com um indivíduo
como Petepré, enclausurado na sua existência. Harmonioso, simétrico,
imóvel, lá estava ele sentado, sem acesso ao mundo, inacessível à morte da
procriação, eterno, um deus na sua capela.
Uma sombra negra deslizou por entre as pilastras, movendo-se de lado
na direção dos olhos do dignitário, não mais que um contorno, uma silhueta
contra o rubro fulgor. Entrou toda encolhida e assim ficou, silenciosa, com a
fronte entre as mãos postas em terra. Petepré voltou lentamente para aquela
sombra os bugalhos dos olhos. Era uma das nuas escravas mouras de Mut,
com qualquer coisa do aspecto de um animalzinho. Ele refletiu, cerrando os
olhos. Depois ergueu ao de leve, somente até o pulso, uma das mãos
apoiadas ao joelho e ordenou:
— Fala.
A escrava despegou a fronte do chão, moveu os olhos em torno e com
voz rouca e selvagem disse:
— A senhora está perto e desejava aproximar-se do senhor.
Petepré pensou mais uma vez e depois respondeu:
— Concedido.
O animalzinho desapareceu aos recuos, para lá do limiar. Petepré
continuava sentado, com as sobrancelhas erguidas. Instantes depois, Mut
estava no mesmo ponto onde se aninhara a escrava. Com os cotovelos
fincados nos lados, estendeu para ele as palmas numa atitude de oferta.
Putifar viu que ela estava densamente vestida. Sobre a apertada veste
inferior que lhe chegava aos tornozelos, Mut usava uma segunda veste de
baixo mais ampla, em forma de manto e toda pregueada. Suas faces
sombrias estavam emolduradas dentro de um pano azul escuro em forma de
chinó, que lhe caía sobre os ombros e a nuca, e amarrado por uma fita
bordada. No alto da cabeça havia um cone de unguentos, com um furo
através do qual passava a haste de um lótus que descia recurvo
paralelamente à linha da cabeça, de modo que a flor lhe pendia sobre a
testa. As pedras da gargantilha e dos braceletes despendiam chispas escuras.
Petepré também levantou para ela em saudação as mãozinhas e levou
uma das dela aos lábios para osculá-la.
— Flor dos países! — disse ele em tom de surpresa. — Ó tu, formosa de
rosto, tu que tens um lugar na casa de Amun! Única na formosura, com
mãos puras quando tanges o sistro e de bela voz quando cantas! —
Conservou o tom de alegre surpresa enquanto dizia rapidamente essas
fórmulas. — Tu que enches a casa de beleza, mulher graciosa a quem todos
prestam homenagem, confidente da rainha, tu sabes ler no meu coração,
pois satisfazes os meus desejos antes que eu os manifeste e os executas
ainda antes de os conheceres. Eis aqui uma almofada — disse depois em
tom comum, tomando-a detrás das suas costas e acomodando-a sobre a
saliência inferior ao lado dos próprios pés. — Queiram os deuses —
acrescentou, reatando o tom delicado — que tenhas vindo a mim com um
desejo que eu possa satisfazer com tanto maior alegria quanto maior for ele!
Tinha razão de estar curioso. Aquela visita era qualquer coisa fora do
comum e o agitava, pois aquilo se afastava da usual ordem respeitosa que
dominava na casa. Adivinhou alguma razão especial para aquela quebra de
hábitos, algum pedido quiçá, e veio-lhe uma certa alegria ansiosa. Mut, no
momento, limitou-se a dizer bonitas palavras.
— Que desejo poderia eu ainda ter, sendo tua irmã, meu senhor e
amigo? — disse ela com sua meiga e harmoniosa voz de contralto, na qual
se percebia o exercício do canto. — Só respiro por teu intermédio e graças à
tua grandeza todo desejo meu é satisfeito. Se tenho um lugar no templo, é
porque sobressais entre os ornamentos do país; se me chamam amiga da
rainha, é somente porque és amigo de Faraó e a tua pessoa é aureolada pela
graça do sol. Sem ti eu seria escura. Sendo tua, tenho luz em abundância.
— Inútil seria contradizer-te, pois que é esse o teu modo de ver— disse
ele sorrindo. — Vamos ao menos cuidar que não seja logo desmentido
aquilo que dizes da abundância de luz. — Bateu palmas. — Traze luz! —
ordenou ao servo que veio da sala de jantar. Eni protestou pedindo:
— Ainda não, meu marido. Ainda não está de todo escuro. Estavas aqui
sentado a gozar a linda hora do crepúsculo; não me quero arrepender de te
ter perturbado.
— Não, eu insisto — respondeu ele. — Toma isto conto uma
confirmação do que se anda dizendo de mim em tom de reproche — que a
minha vontade é como o negro granito do vale de Rehenu. Não posso
mudá-la e estou velho demais para melhorar. Fazê-lo seria mostrar-me
ingrato a quem tenho de mais caro e melhor, que adivinhou o mais secreto
desejo do meu coração com esse desejo. Poderia eu recebê-la no escuro e na
sombra? Não é para mim uma festa o teres vindo? E deixa-se sem luz uma
festa? Todas as quatro luzes — disse aos dois servos que traziam fogo e se
apressaram a acender os candelabros de cinco lâmpadas, postos sobre
pedestais nos cantos da sala. — Fazei subir alto as chamas!
— O que tu queres, sucede — disse ela, como se estivesse cheia de
admiração, encolhendo submissamente os ombros. — Na verdade eu
conheço a firmeza das tuas decisões e quero deixar a censura aos homens
que com ela se escandalizam. E difícil que as mulheres deixem de apreciar
a inflexibilidade no homem. Devo dizer por quê?
— Eu gostaria de ouvi-lo.
— Porque só isto pode dar valor à submissão e tomá-la alguma coisa de
que nos possamos orgulhar quando a recebemos.
— Verdadeiramente encantador — disse ele e fechou os olhos por causa
da claridade que agora reinava na sala, pois os pavios das vinte lâmpadas
estavam embebidos numa cera gordurosa que os fazia emitir grandes
chamas dum clarão deslumbrante, inundando o aposento de uma luz
crepuscular branca e rubra, como de leite e sangue; e fechou os olhos
também porque as palavras de Mut lhe davam que pensar.
“Evidentemente”, pensava consigo, “ela tem um pedido a fazer-me, e não
pequeno, porque do contrário não faria tais exórdios. Não é esse o seu jeito,
pois sabe muito bem das minhas nobres peculiaridades e quanto me agrada
que me deixem em paz e que não me deem ocupação nenhuma. Por seu
lado, ela é em geral muito arrogante para me pedir seja o que for, e assim a
sua arrogância e a minha comodidade se juntam em harmonia conjugal.
Entretanto, me faria bem à alma prestar-lhe um serviço, mostrando-me
poderoso. Estou ansioso por saber o que quer. Melhor seria que isso lhe
parecesse uma coisa grandiosa, mas que para mim não o fosse, de modo que
eu pudesse alegrá-la sem grande incômodo meu. Noto que há um conflito
no meu íntimo entre o meu desejo de mostrar-me amável e poderoso
perante essa mulher e o meu justificado egoísmo que provém da minha
posição especial e da santidade do meu estado, de maneira que acho
extraordinariamente enfadonho que alguém me importune ou perturbe a
minha paz. Ela está bonita nesse vestido de pano espesso com que se
apresenta diante de mim, razão por que mandei que fizessem luz nesta sala;
bonita com as duas gemas dos seus olhos e com as sombras das suas faces.
Quero-lhe bem tanto quanto me permite o meu justificado egoísmo; mas
está aqui justamente a contradição, pois que também a odeio, odeio-a
sempre por causa do direito que de mim não reclama, mas que é
naturalíssimo no casamento. Entretanto, não a odeio por gosto e quisera
poder amá-la sem ódio. Se se me oferecesse uma boa ocasião de me mostrar
amável e poderoso perante ela, o ódio sena eliminado do meu amor e eu
seria feliz. Por isso estou muito curioso de saber o que quer, conquanto eu
esteja também ansioso por causa da minha comodidade.”
Assim pensava Petepré com os olhos fechados, enquanto os escravos
com o fogo faziam chamejar as lâmpadas e depois se retiraram em silêncio,
segurando os tições entre os braços cruzados.
— Permites então que eu me sente aqui perto de ti? — perguntou-lhe
Em, sorrindo. Saindo sobressaltado da sua própria meditação, Petepré se
inclinou mais uma vez, no meio de demonstrações de júbilo, para a
almofada, a fim de lha acomodar. Mut sentou-se aos pés no banquinho
coberto de inscrições.
— Realmente — disse ela —, raro acontece estarmos juntos assim
durante uma hora, gozando a presença um do outro sem outro intuito que
não seja conversar sobre qualquer assunto; porquanto conversar tendo um
objeto em vista é uma necessidade, mas conversar sem nenhum intuito em
vista é uma deliciosa superfluidade. Não te parece?
Petepré conservava estendidos sobre o espaldar da saliência os seus
grandes braços femininos e fez um aceno afirmativo com a cabeça. E ia
pensando”Raro acontece? Nunca acontece, porque nós, membros desta
nobre e sagrada família, pais e filhos, vivemos isolados nos nossos
aposentos e, excetuando o tempo das refeições, nos evitamos
reciprocamente, por delicadas considerações. E se hoje isso acontece, deve
haver um objeto e uma necessidade que espero com uma curiosidade
inquieta. Será possível que eu não tenha razão? Que essa mulher só tenha
vindo aqui para nos vermos? Que um desejo do coração a tenha feito
suspirar por esta hora? Não sei que coisa desejar, porque na verdade seria
desejo meu que ela viesse fazer-me algum pedido que não perturbe muito a
minha comodidade; mas quase que desejaria ainda mais vivamente que
tivesse vindo só por causa da minha presença.” E, enquanto pensava, disse:
— Sou inteiramente da mesma opinião. E próprio de pobres e humildes
servirem-se da conversa para explicar suas necessidades. O que ao contrário
nos toca a nós ricos e nobres é a bela superfluidade em todas as coisas e
também no discurso da nossa boca, porquanto beleza e superfluidade são a
mesma coisa. E esquisito o que acontece com as palavras e a dignidade
delas, esquisito, porque elas podem erguer-se da sua fraqueza às alturas do
seu significado. A palavra “supérfluo”, por exemplo, muitas vezes traz
consigo um sentido desprezível; contudo ela pode levantar-se a uma
verdadeira grandeza além do alcance do desprezo e em si mesma significar
realmente o nome e a índole da beleza. Amiúde eu penso no mistério das
palavras quando estou só e entretenho o meu espírito com essa encantadora
e ociosa ocupação.
— Sou grata ao meu senhor por me conceder a mercê de tomar parte em
tudo isso — disse ela. — O teu espírito é claro como as lâmpadas que
fizeste acender para o nosso encontro. Se não fosse o camarista de Faraó,
poderias facilmente ser um desses pensadores que andam pelos átrios do
templo e meditam nas palavras da sabedoria.
— Muito possível — disse ele. — O homem podia ser muito mais que
aquilo de que o encarregam de ser ou de representar. Cabe-lhe muitas vezes
maravilhar-se do absurdo papel que representa; sente-se sufocar com a
máscara que a vida pôs nele, como às vezes os sacerdotes podem sentir-se
sufocados com a máscara do deus. Concordas comigo?
— Concordo.
— Provavelmente não de todo — disse ele numa insinuação. — E
possível que as mulheres sintam menos isso. Pois a Grande Mãe lhes
concedeu um sentido mais geral quanto a serem mais mulheres e imagens
da Mãe e menos esta ou aquela mulher individual, como se, por exemplo, tu
fosses menos obrigada a ser Mut-em-enet do que eu sou obrigado a ser
Petepré pelo severo espírito paterno. Concordas?
— Está tão claro nesta sala — disse ela com a cabeça baixa — por
causa das chamas que se levantam em virtude da tua máscula vontade. A
mim me parece que seria melhor acompanhar esses pensamentos numa luz
mais branda. Na luz crepuscular seria mais fácil para mim considerar essa
questão de ser mais uma mulher e imagem da Mãe do que simplesmente
Mut-em-enet.
— Perdoa-me — apressou-se ele de responder. — Da minha parte foi
uma falta de senso não adaptar a nossa conversa deliciosamente ociosa à luz
que mais quadra a esta hora aprazível. Vou imediatamente dar à nossa
conversa um rumo mais condizente com a iluminação que julguei adaptar-
se melhor aqui. Nada mais fácil. Passo agora das coisas do espírito e de
natureza íntima às do mundo palpável que está mais à flor da nossa
compreensão. Já sei como vou mudar de rumo. Deixa somente que eu me
alegre de passagem com este belo segredo: que o mundo das coisas
palpáveis é também o das coisas compreensíveis. Com efeito, aquilo que se
pode tocar com a mão pode ser comodamente compreendido ainda pelo
espírito das mulheres, das crianças, do povo, ao passo que o impalpável só é
compreensível ao mais severo espírito paterno. Compreender é o nome
metafórico e espiritual que se usa para tocar; mas também este se toma, por
sua vez, uma metáfora e de um objeto espiritual facilmente compreensível
gostamos de dizer que se pode tocar com a mão.
— São muito engraçadas as tuas observações, os teus vãos pensamentos
— ponderou ela — e não posso descrever-te como com isto alegras
conjugalmente o meu espírito. Não penses que eu tenha grande pressa de
passar das coisas impalpáveis às compreensíveis. Pelo contrário, eu queria
ainda deter-me contigo sobre este ponto e ficar escutando a tua
superfluidade, fazendo-te oposição na medida da minha inteligência de
mulher e de criança. Queria somente dizer que, tratando-se de coisas de
natureza íntima, se pode falar mais profundamente com uma luz menos
flamejante.
Meio agastado, Petepré não respondeu imediatamente. Depois,
sacudindo a cabeça em sinal de desaprovação, disse:
— A senhora desta casa volta sempre ao mesmo argumento e ao ponto
em que as coisas não andaram inteiramente segundo a sua vontade, mas
segundo uma vontade mais forte. Isto não é muito bonito e menos ainda por
ser essa a maneira que têm as mulheres de insistir num mesmo assunto.
Concede-me advertir-te que, ao menos a esse respeito, a nossa Eni deveria
tentar ser mais Mut, a mulher particular, do que a mulher em geral.
— Escuto e me arrependo — disse ela.
— Se nós — prosseguiu Petepré, dando expressão ainda maior ao seu
mau humor —, se nós quiséssemos fazer-nos censuras pelas nossas mútuas
medidas e decisões, como me seria fácil observar com acrimônia que tu,
minha amiga, nesta hora de visita te apresentaste num manto cheio de
dobras espessas, quando o desejo e o júbilo do amigo é poder acompanhar,
através do amável tecido, as linhas do teu corpo de cisne.
— Na verdade, ai de mim! — disse ela e baixou a cabeça, corando. —
Para mim melhor seria morrer do que saber que me escapou um erro ao
vestir-me para a visita ao meu senhor. Juro-te que com este vestido eu
acreditava que faria resplandecer mais que nunca diante de ti a minha
beleza. Ele é mais precioso e foi feito com maior trabalho que a maior parte
dos meus outros vestidos. Minha escrava costureira Cheti trabalhou nele
com esforço indefesso e entre nós duas dividimos a preocupação para que
eu encontrasse agrado aos teus olhos; mas preocupação dividida não é
preocupação diminuída.
— Não importa, querida — disse ele. — Deixa isso de lado. Não quis
dizer com isso que queria queixar-me, mas que, dado o caso, o poderia fazer
também eu se tu o quisesses fazer. Não posso todavia supor que tenhas essa
intenção. Prossigamos, pois, com a nossa vã conversa como se a questão da
censura jamais tivesse penetrado aqui, como uma nota desafinada. Passo
agora às coisas do mundo palpável, exprimindo o contentamento que sinto
pelo fato de a missão da minha vida levar a marca de uma superfluidade
sem objetivo e não a da necessidade. Chamei régia a superfluidade e
realmente ela está no seu lugar próprio na corte e no palácio Merimat, tal
qual o ornamento, a forma por amor à forma, a frase elegantemente boleada
com que se saúda o deus. Tudo isso são negócios do cortesão; e sob este
aspecto pode-se dizer que a máscara da vida abafa o cortesão menos que ao
que o não é, pois este se vê oprimido pelo fato objetivo e pode-se dizer que
ele é mais chegado às mulheres, porque lhe é concedido ser menos
individual. Verdade é que eu não estou entre os conselheiros aos quais
Faraó pede o parecer sobre a abertura de um poço na estrada através do
deserto até o mar, ou sobre a ereção de um monumento, ou sobre quantos
homens são precisos para assegurar um carregamento de ouro em pó
proveniente das minas da miserável Kuch; e é possível que isto prejudique
o contentamento que tenho de mim mesmo e que eu me tenha zangado com
aquele tal Hor-em-heb que comanda as tropas da casa e exerce o principal
cargo entre os algozes, quase sem haver pedido a minha opinião, a mim que
também tenho o título desses cargos. Sempre, porém, tenho superado
rapidamente esses acessos de aborrecimento. Com efeito, tanta diferença há
entre mim e Hor-em-heb como a há entre o titular do flabelo de honra e o
homem necessário mas insignificante que realmente segura o flabelo por
cima de Faraó, quando este sai na sua cadeirinha. Gente desse estofo está
abaixo de mim. A mim incumbe ficar diante de Faraó na sua audiência
matinal com os demais titulares e dignitários da corte e com voz agradável
repetir o hino de saudação à majestade desse deus”Tu és igual a Rá”; a mim
toca desmanchar-me em incríveis floreios verbais, como”A tua língua é
uma balança, ó Neb-ma-ré, os teus lábios são mais exatos do que o fiel da
balança de Thot”, ou em extravagantes afirmações, como”Quando dizes ao
oceano: — Ergue-te até a montanha! — eis que as águas saem do seu leito,
mal acabaste de falar.” Desta maneira bela e sem objeto, alheia às
necessidades da vida ordinária, é que eu falo. Pois a pura forma, o adorno
sem escopo, é a minha honra e a minha tarefa, tal como é tarefa da realeza
ser régia. É o que eu devia dizer para honra do contentamento que de mim
mesmo tenho.
— Está muito bem — retrucou ela — se, como não pode haver dúvida,
as tuas palavras são profundas ao mesmo tempo para honra do
contentamento que de ti mesmo tens e para honra da verdade, meu marido.
Parece-me, entretanto, que as cerimônias da corte e os ornamentos oratórios
na audiência matinal servem para revestir de honra e de terror as
preocupações materiais do deus, como seriam pela sua própria importância
nacional os poços, as construções e o transporte do ouro, e que a
preocupação com essas coisas é que constitui a verdadeira realeza no poder
régio.
Mais uma vez Petepré se absteve durante algum tempo de dar qualquer
resposta, brincando com a faixa bordada do seu saiote. Finalmente disse
com um leve suspiro:
— Eu faltaria à verdade se quisesse afirmar que neste nosso colóquio tu,
minha querida, te hajas com insuperável habilidade. Não sem arte mudei o
rumo à conversa passando a discorrer sobre coisas do mundo palpável,
falando de Faraó e sua corte. Mas em vez de apanhar a bola e de perguntar-
me, por exemplo, a quem Faraó puxou a orelha hoje de manhã, como sinal
de graça, quando saía da sala depois da recepção matinal, divagas e fazes
considerações sobre poços do deserto e minas, assuntos de que, minha
amiga, hás de com certeza entender menos que eu.
— Tens razão — respondeu ela e abanou a cabeça como a reprovar o
seu erro. — Perdoa-me. Era muito grande a minha curiosidade de saber a
quem Faraó hoje puxou a orelha. Por isso a disfarcei divagando.
Compreende-me bem: eu tencionava diferir essa minha informação, porque
o adiamento me parece uma bela e necessária parte integrante do discurso
florido. Quem será tão bronco que dê logo a saber o que lhe importa? Mas,
uma vez que me facultas a pergunta, dize-me, meu marido, foste acaso tu
que deus tocou ao sair?
— Não — disse Petepré —, não fui eu. Mais de uma vez já fui tocado,
mas hoje não. Mas o que acabas de dizer saiu da tua boca...
não sei como. Saiu da sua boca como se estivesses propensa a crer que
Hor-em-heb, o comandante ativo das tropas, seja maior do que eu na corte e
nos países...
— Por amor do Oculto, meu esposo! — disse ela consternada e pôs a
mão sobre o joelho de Petepré, onde este ficou olhando-a como se naquele
lugar tivesse pousado um pássaro. — Eu teria de estar doente do espírito e
deveria ter perdido o bem do intelecto sem esperança de melhora se, ainda
que fosse por um instante...
— Mas assim te exprimiste — insistiu ele, encolhendo acabrunhado os
ombros, embora, provavelmente, sem ser de propósito. Seria pouco mais ou
menos como se dissesses... que exemplo devo citar? Como se dissesses que
um padeiro da corte de Faraó que, com a cabeça metida no forno, coze o
pão para o deus e para a sua casa, é maior que o grande superintendente da
panificação régia, o padeiro-mor de Faraó, cujo título é “príncipe de
Mênfis”. Ou como se dissesses que eu, que, como é natural, de nada me
ocupo, sou nesta casa menos do que Mont-kav ou, pior ainda, menos que a
sua jovem “boca”, o sírio Osarsif, que está à testa da propriedade. Estes são
confrontos contundentes...
Mut estremeceu.
— Sim. Na verdade são tão contundentes que tremo com eles — disse
ela. — Tu o vês e na tua generosidade ser-te-á suficiente ter-me dado este
castigo. Agora reconheço que atrapalhei a nossa conversa com a minha
tendência ao retardamento. Tu, porém, veda a minha curiosidade que queria
esconder-se; veda-a, como se faz com o sangue e conta-me quem foi que
recebeu hoje a carícia real na sala do trono.
— Foi Nofer-rohu, chefe dos unguentos da tesouraria do rei —
respondeu Petepré.
— Ah! Foi esse príncipe? — disse ela. — Rodearam-no os outros'
— Consoante o uso da corte, rodearam-no para o felicitar — respondeu
Petepré. — Momentaneamente ele está em primeira linha na atenção do
deus, e para nós seria importante que fosse visto no banquete que queremos
dar no próximo quarto de lua. Seria de importância decisiva para o brilho
do banquete e para o esplendor da minha casa.
— Sem dúvida — confirmou Mut. — Deves convidá-lo com uma
bonita carta, de modo que ele a leia com agrado por causa dos títulos que
lhe deves dar, por exemplo, “Dileto do seu senhor!”, “Premiado e mimado
pelo seu senhor”, e deves mandar essa carta à sua casa acompanhada de um
presente, por intermédio de servos escolhidos. Assim será improvável que
Nofer-rohu te dê uma negativa.
— E o que eu também acredito firmemente — disse Petepré. — O
presente também deve ser uma coisa especial. Quero que me tragam um
grande sortimento de objetos, vou escolher e esta mesma noite escreverei a
carta com títulos que ele lê com sumo agrado. Deves saber, minha filha —
prosseguiu ele —, que quero que essa festa seja verdadeiramente de
arromba, de modo que se comente na cidade e que a fama corra até outras
cidades mais longínquas, com uns setenta convidados e abundância de
perfumes, flores, músicos, iguarias e vinho. Adquiri uma belíssima múmia
que será mostrada a cada comensal, excelente artigo de uma vara e meia de
comprimento; se a quiseres ver antes, mostro-ta. A caixa é de ouro, o corpo,
de ébano, e sobre a sua testa está escrito”Celebra o dia festivo.” Ouviste
falar nas dançarinas babilônias?
— Que dançarinas, meu esposo?
— Está aqui na cidade uma companhia ambulante dessas forasteiras.
Mandei-lhes presentes para que compareçam no meu banquete. Pelo que me
contaram, devem ser de uma formosura rara e acompanham suas danças
com guizos e timbales de barro. Dizem que sabem gestos novos e solenes e
ao dançar põem uma espécie de raiva nos olhos bem como na mímica
amorosa. A mim mesmo prometo uma verdadeira sensação e um sucesso
perante a nossa sociedade para as dançarinas e para a minha festa.
Eni parecia pensativa; tinha os olhos baixos.
— Pretendes — perguntou ela após um instante de silêncio — -convidar
para a tua festa a Beknechons, primeiro sacerdote de Amun?
— Sem a menor dúvida — respondeu ele. — Beknechons? É claro. Que
pergunta a tua!
— Achas importante a sua presença?
— E por que não? Beknechons é grande.
— Mais importante do que a presença das jovens de Babel?
— Que comparações são estas, querida? Que escolhas são essas que me
vais enumerando?
— E que, meu marido, uma coisa não se pode conciliar com a outra.
Advirto-te que terás de escolher. Se na tua festa fazes dançaras jovens de
Babel diante do primeiro sacerdote de Amun, poderia dar-se que a estranha
raiva dos olhos das dançarinas seja igual à raiva estuante no coração de
Beknechons e que ele se levante, chame os seus servos e deixe a sala.
— Impossível!
— Até bastante possível, meu amigo. Ele não tolerará vero Oculto
ofendido ante seus próprios olhos.
— Por uma dança de bailarinas?
— De bailarinas estrangeiras, quando no Egito há tanta graça que se
chega a mandar desse artigo para países estrangeiros.
— Com maior razão pode então o Egito, do seu lado, gozar um pouco o
encanto do novo e do raro.
— Não é essa a opinião do austero Beknechons. A sua repugnância pelo
estrangeiro é invencível.
— Espero que seja essa a tua opinião.
— A minha opinião é a do meu senhor e amigo — disse Mut —, pois
que nunca será possível que ela seja contra a honra dos nossos deuses.
— A honra dos deuses, a honra dos deuses! — repetiu ele, encolhendo
os ombros. — Devo confessar que nessa tua conversa o meu estado de
ânimo começa desgraçadamente a perturbar-se, conquanto não possa ser
esse o sentido e o intuito de uma palestra decorativa.
— Eu ficaria acabrunhada — respondeu Mut — se fosse esse o
resultado do zelo que eu própria tenho pela tua alma. Porque em que
condições ficaria tua alma se Beknechons, na sua ira, chamasse os seus
servos e abandonasse a tua festa, de modo que os dois países comentassem
essa afronta?
— Não será tão mesquinho que se exaspere com uma distração
elegante, nem tão atrevido que faça uma tal afronta ao amigo de Faraó.
— Ele é tão grande que mesmo por um pequeno pretexto os seus
pensamentos se voltam para coisas grandiosas, e fará uma afronta ao amigo
de Faraó de preferência a fazê-la ao próprio Faraó, e isto justamente para
pô-lo de sobreaviso. Amun odeia o relaxamento que entra por obra do
estrangeiro, quebrando os laços; odeia o desprezo do velho costume
piedoso, porque esse desprezo enfraquece os países e priva do cetro o
império. É esse o ódio de Amun, ambos o sabemos; o seu desejo é que os
severos costumes dominem em Keme como em tempos remotos e que os
seus filhos trilhem o caminho do patriotismo. Mas tu sabes tão bem como
eu que lá — (e Mut-em-enet apontou o oeste, o lado do Nilo e para lá deste
o palácio) — domina outro sentido do sol, dissolutamente amado entre os
sábios de Faraó, o sentido de On no vértice do triângulo, o volúvel sentido
de Atum-Rá, propenso à expansão e ao acordo — chamam-lhe Aton, não
sei com que assonância maliciosa. Porventura não há de Beknechons
indignar-se por Amun de que o seu filho carnal favoreça o relaxamento e
permita que os seus sábios enfraqueçam com frívolo estrangeirismo a
medula do povo do império? O primeiro sacerdote não pode ralhar com
Faraó, mas ralhará com ele em ti e fará uma manifestação em favor de
Amun. Indignando-se como um leopardo do Alto Egito ao ver as raparigas
de Babel, pôr-se-á de pé e chamará os seus servos.
— Minha querida — objetou ele —, ouço-te discorrer com língua
desembaraçada como um papagaio de Punt, que muitas vezes repete o que
ouviu e que não é da sua própria colheita. Medula do povo, costume dos
povos, estrangeirismo que relaxa os costumes. É a desagradável lista de
vocábulos de Beknechons, que tu me vais recitando com evidente
perturbação do meu espírito, porque a tua vinda me abrira a perspectiva de
um cordial cavaco contigo e não com ele.
— Recordo-te, meu esposo — respondeu ela —, as suas ideias que
conheces, para salvar de graves dissabores a tua alma. Não digo que as
ideias de Beknechons sejam as minhas ideias.
— São — replicou ele. — Quando falas, é a ele que ouço. Não é
verdade que tu me expendas as suas ideias como algo de estranho em que
não tomes parte, senão que as fazes tuas, estando tu contra mime de acordo
com ele, com aquela cabeça calva. É esta uma atitude que não te fica bem.
Acaso não sei que ele anda à vontade na tua casa, que te visita cada quarto
de lua e até mais vezes? Isto sucede, mas com tácito despeito meu, porque
ele não é meu amigo e eu não o posso tolerar com aqueles seus termos e
expressões de caturra. A minha natureza e a minha disposição de espírito
exigem um sentido do sol brando, fino, indulgente; por isso, no meu
coração, eu sou de Atum-Rá, o deus complacente, mas antes de tudo sou
dele porque sou de Faraó e cortesão seu, pois que ele deixa que, pensando,
os seus pensadores experimentem o universal e brando sentido solar desse
deus magnífico. E, nesta circunstância, como te comportas tu, minha
mulher e minha irmã, diante dos deuses e dos homens? Em vez de ficares
do meu lado, isto é, do lado de Faraó e de quinhoar os sentimentos da corte,
ficas do lado de Amun, o imóvel, o cara de bronze; pões-te da tua parte
contra mim e te entregas à suprema cabeça calva do deus desgracioso, sem
refletir como é feio melindrar-me e tomar outro partido que não o meu.
— Empregas comparações, meu senhor — disse ela com voz apertada,
abafada pela ira —, a que falta bom gosto, o que, com a leitura que tens, é
de admirar. Pois é de péssimo gosto dizer que eu me entrego ao profeta,
cometendo com isso uma deslealdade contigo. É um símile claudicante e
retorcido. Devo lembrar-te que, segundo a doutrina dos pais e a antiga
crença do povo, Faraó é filho de Arnun; assim sendo, não violarias de
nenhum modo o teu dever de cortesão se levasses na devida conta o sagrado
sentido solar de Amun, ainda que o aches extravagante e fizesses por ele o
fútil sacrifício da curiosidade que tu e os teus convidados tendes de ver uma
dança vil. Isto pelo que te diz respeito. Pelo que a mim me toca, eu sou toda
de Amun com toda a minha honra, com toda a minha religiosidade, porque
sou a esposa do seu templo, pertenço ao seu harém, sou Hathor e danço
diante dele nos trajes da deusa: é esta toda a minha honra, todo o meu
prazer; outro não tenho. Essa posição honorífica é a razão da minha vida;
entanto, tu altercas comigo porque me conservo fiel ao senhor meu deus e
meu mando sobrenatural, e empregas contra mim comparações tortuosas
que clamam ao céu. — E, tomando uma parte da fimbria do seu manto
pregueado e inclinando-se, cobriu o rosto.
O comandante das tropas sentiu-se penosamente comovido. Estremeceu
e chegou mesmo a sentir um arrepio por todo o corpo; pois lhe pareceu que
negócios íntimos, cuidadosamente ocultados até então, ameaçavam vir à
tona de um modo terrível e arrasador. Com os braços estirados sobre o
espaldar da saliência, se recostou ainda mais, afastando-se de Mut, aturdido
e consternado, e confuso com a sua culpa, olhava a mulher que chorava.
“Que é isso?”, pensava. “Uma coisa extravagante e inaudita. Minha
tranquilidade corre grave perigo. Fui longe demais. Trouxe a campo o meu
justificado egoísmo; ela, porém, baniu-mo dele com o seu egoísmo. E não é
somente a nossa conversa; meu coração ficou ferido com as suas palavras,
de sorte que a piedade e a dor se misturam com o terror das suas lágrimas.
Sim, anto-a; suas lágrimas, para mim terríveis, fazem-mo sentir, e eu
quisera fazê-lo sentir também a ela com aquilo que digo.” E despegando os
braços do espaldar da saliência e inclinando-se para Mut, sem todavia tocar-
lhe, disse não sem amargura:
— Bem vês, minha flor, as tuas próprias palavras põem de manifesto
que não falaste apenas para me avisar da obstinada disposição de espírito de
Beknechons, mas sim porque participas da mesma disposição, porquanto as
ideias dele são as tuas e o teu coração está do lado dele e contra mim.
Disseste-o sem rodeios na minha cara”Eu sou toda de Arnun.” Terá sido,
pois, tão falso o símile e terei eu culpa de que o seu gosto seja amargo para
mim, teu marido?
Ela destapou a cara e olhou para Petepré.
— Tens ciúme do Invisível? — indagou Mut, entortando a boca. As
duas gemas dos seus olhos em que se misturavam motejo e lágrima?
estavam cravadas nos dele e coruscavam, metendo-lhe medo e fazendo-o
rapidamente afastar-se da sua posição curva. “Tenho de baterem retirada”,
pensou o cortesão. “Fui longe demais e devo recuar um pouco por amor da
minha tranquilidade e da paz da casa que inesperadamente se encontram em
medonho risco. Como foi possível que eu tenha de ver essa paz tão
imprevistamente ameaçada e que de repente os olhos da mulher se tenham
tomado tão terríveis? Tudo parecia correr bem e estar seguro.” E lembrava-
se de alguma volta sua a casa, quando chegava da corte ou de uma viagem e
a sua primeira pergunta ao mordomo que o saudava era sempre”Vai tudo
bem? A senhora está de bom humor?” E que no seu íntimo havia sempre
uma secreta apreensão quanto à tranquilidade, à dignidade e à segurança da
casa, uma vaga consciência de que elas se firmavam sobre bases bem pouco
sólidas. Agora, fitando os olhos chorosos de Eni, notou que fora sempre
assim e que os seus tácitos receios ameaçavam terrivelmente confirmar-se
de certa maneira.
— Não — respondeu ele —, longe de mim. Repudio e rejeito essa tua
ideia de que eu possa ter ciúme de Amun, o deus. Sei perfeitamente
estabelecer a diferença entre aquilo que deves ao Invisível e aquilo que
deves ao marido. E se, conforme penso, te desagradou a expressão que usei
para caracterizar a tua familiaridade com Beknechons, eu estou sempre
pronto e sempre procuro ensejo de te dar prazer, e isso farei retirando a
comparação da coberta. Será como se eu não tivesse dito aquilo, de sorte
que seja cancelada da relação das minhas palavras. Estás contente?
Mut deixou que as lágrimas secassem de per si nos seus olhos, como se
não soubesse que elas ainda lá estavam. O marido havia esperado
reconhecimento pela sua renúncia, mas Mut não lho mostrou.
— E o menos que eu podia esperar — disse ela sacudindo a cabeça.
“Ela vê que eu me encolho, tomado de medo pelo sossego da casa”,
pensou Petepré, “e explora a situação o mais possível, como fazem as
mulheres. Ela é uma mulher em geral, mais que uma mulher em especial e
minha mulher. Isto não me deve surpreender, embora seja sempre um tanto
penoso ver o eterno feminino exibindo os seus ardis na própria esposa da
gente. Faria uma pessoa sorrir tristemente e tem na realidade um efeito
irritante sobre mim perceber que uma pessoa pensa proceder de acordo com
o seu espírito individual, quando o que ela realmente faz é reproduzir o
padrão comum. E na verdade mortificante. Mas de que valem esses
pensamentos? Posso apenas pensá-los, não dizê-los. O que eu devo dizer é
isto.” E prosseguiu:
— Não era o menos em geral, mas o menos que eu queria dizer. Com
efeito, eu não tencionava deter-me nesse ponto, mas queria também
aumentar o teu prazer declarando-te que, no decurso da nossa conversa,
desisti da ideia de fazer as bailarinas de Babel tomarem parte na minha
festa. Não é desejo meu ofender um homem altamente colocado e teu amigo
com conceitos que se podem considerar preconceitos, sem com isso
eliminá-los do mundo. A minha festa será esplêndida sem as estrangeiras.
— Ainda isto é o menos, Petepré — disse ela, chamando-lhe pelo nome,
o que lhe causou nova apreensão.
— Que dizes? — perguntou ele. — Ainda o menos?
— Sim, menos do que é para desejar, menos do que se deve exigir —
respondeu Mut, depois de soltar um profundo suspiro. — Nesta casa, meu
esposo, devia haver certas mudanças, para que ela não se tome uma casa de
escândalo para os piedosos, mas sim uma casa edificante. Es o senhor de
todas as suas repartições, e quem não se curvaria diante de ti? Quem não
desejaria à tua alma as doçuras e finezas de um complacente sentido do sol
segundo o qual tu vives e pelo qual são satisfeitos os teus hábitos? Eu bem
compreendo que não se pode querer ao mesmo tempo o império e a
vigorosa antiguidade porque, com o tempo, desta nasce aquele e a vida
agora na riqueza do reino deve ser diferente do que era na simplicidade dos
velhos tempos. Não deves dizer que eu não compreendo os tempos e a
mudança da vida. Mas tudo deve ter seus limites, e um resto daqueles
sagrados costumes dos pais que criou o império e a riqueza deve continuar a
viver neles e ser sempre venerado, para que império e riqueza não pereçam
ignominiosamente e o cetro não venha a ser arrebatado do país. Negas esta
verdade, ou negam-na os sábios de Faraó que se ocupam do volúvel senso
solar de Atum-Rá?
— Não se nega a verdade — respondeu o flabelífero — e pode mesmo
suceder que a alguém ela seja mais cara do que o próprio cetro. Falas no
destino. Nós somos filhos do nosso tempo e acho mais fácil viver conforme
a sua verdade, da qual saímos, do que tentar viver segundo uma verdade de
tempos imemoriais e fazer o papel de vigorosos fanáticos da antiguidade,
renegando a nossa alma. Faraó tem muitos mercenários — asiáticos, líbios,
núbios e até nacionais. Eles hão de guardar o reino enquanto o destino o
permitir. Mas nós devemos viver com sinceridade.
— A sinceridade — disse Mut — é cômoda e portanto não é nobre. Que
seria do homem se cada qual quisesse viver na sinceridade dos seus desejos,
sem ter absolutamente nenhuma vontade de emendar-se e dominar-se?
Também o ladrão é sincero e o ébrio que se espoja na valeta e o adúltero. E
havemos de desculpar-lhes o procedimento em razão da sua sinceridade? Tu
desejas viver autenticamente, meu esposo, como filho da tua época e não de
acordo com a antiguidade. Mas onde cada um vive segundo a verdade do
seu impulso há antiguidade bárbara; uma época mais avançada requer a
limitação do indivíduo em atenção a considerações mais elevadas.
— Em que coisa pretendes que eu me emende? — perguntou Petepré
ansioso.
Em nada, meu marido. Tu és imutável e longe de mim abalar a sagrada
calma imota do teu ser. Longe de mim também a vontade de te censurar o
não te ocupares de nada na casa e de nenhuma coisa no mundo, a não ser de
comer e beber; porquanto, mesmo que isso não fosse segundo a tua
natureza, em todo caso seria conforme com a tua posição. As mãos dos teus
servos fazem para ti as tuas coisas, como o farão na tumba. A tua única
tarefa é dar ordens aos servos ou talvez nem isso, porque somente dás
ordens àquele que as dá aos servos, isto é, o teu substituto, para que ele
governe a casa segundo a tua intenção, a casa de um grande do Egito. Só
esta e mais nenhuma outra é a tua tarefa — coisa imensamente fácil, mas da
máxima importância, a saber, que não erres na indicação do homem que te é
necessário.
— Há anos, tantos que já nem os posso contar — disse ele —, é
mordomo da minha casa Mont-kav, homem bom, que me ama como se deve
e que sente no seu íntimo como seria feio amargurar-me. Pelo que se pode
ver das suas contas, creio que nunca me tenha enganado em coisa de
importância e governou a casa nobremente, como a mim agradava. Teve ele
a desgraça de incorrer no teu desfavor?
Mut sorriu com desprezo dessa tentativa de fugir da questão.
— Tu sabes — respondeu ela — como eu sei, como o sabe toda Vese,
que Mont-kav está deperecendo por causa do seu rim arruinado e que, já de
algum tempo para cá, trata tanto das coisas como tu. Faz-lhe as vezes um
outro a quem chamam “a sua boca” e cuja ascensão a esse posto ninguém
jamais acreditaria ser possível. E ainda não basta, pois é voz corrente que,
depois do previsto passamento de Mont-kav, a tal “boca” vai
definitivamente investir-se nas suas funções, ficando nas suas mãos todos
os negócios da casa. Tu exaltas a afeição leal que tem o teu mordomo à tua
dignidade; permite-me confessar que em vão procuro esse sentimento nas
suas ações.
— Pensas em Osarsif?
Ela baixou a cabeça.
— E um modo estranho de exprimir-se — respondeu ela — dizer que eu
penso nele. Fosse vontade do Oculto que ele não existisse, de sorte que não
se tivesse de pensar em tal criatura, quando o que agora se dá é que, por
culpa do teu superintendente, somos vergonhosamente obrigados a pensar
nela. O doente dos rins comprou aquele de quem falas quando ele era rapaz,
comprou-o, digo, de uns mercadores nômades; depois, em vez de conservá-
lo na posição correspondente à sua vileza e ao seu sangue miserável,
exalçou-o, deixando-o encher-se de influência na casa, colocou debaixo
dele todo o pessoal de serviço, tanto o teu como o meu, e levou as coisas a
tal ponto que tu, meu senhor, falas nesse escravo com uma desenvoltura que
me afeta ignominiosamente e contra a qual o meu espírito se revolta. Se,
pensando nele, tivesses dito”Vejo que te referes ao sírio, o do mísero
Retenu, o escravo hebreu” — seria o natural e adequado. Mas a que ponto
chegamos diz-mo tua expressão, que soa assim como se o tal fosse teu
primo: chamá-lo confidencialmente pelo nome e me perguntas”Pensas em
Osarsif?”
E com isso também ela pronunciou-lhe o nome, com um esforço que no
seu íntimo a fazia feliz. Proferiu as místicas sílabas, com seu eco de morte e
divindade, sílabas que para ela encerravam toda a doçura do destino, e
proferiu-as com um soluço no qual procurava pôr indignação, e mais uma
vez cobriu os olhos com o seu manto.
Putifar ficou de novo sinceramente aterrado. — Que há? Que há, minha
boa mulher? — disse, estendendo as mãos sobre ela. — De novo lágrimas?
Explica-me por quê. Chamei o servo pelo seu nome, que é como o chamam
todos. O nome não é a maneira mais breve de nos referirmos a uma
determinada pessoa? Vejo que a minha suposição era justa. Tu pensas no
jovem cananeu que me serve como copeiro e leitor e, não o nego, com
minha inteira satisfação. Não devia isso ser um motivo para pensares
favoravelmente em relação a ele? Não tive nenhuma parte na sua aquisição.
Mont-kav, que tem plenos poderes para contratar e despedir servos,
comprou-o, faz alguns anos, a comerciantes honestos. Depois aconteceu
que o examinei em conversa enquanto ele trabalhava no meu jardim e
achei-o surpreendentemente agradável, agraciado pelos deuses de notáveis
dotes de corpo e de espírito, combinados de um modo extraordinário.
Efetivamente, a sua beleza aparece como a demonstração natural da graça
do seu espírito, e por sua vez seus predicados mentais estão em invisível
correspondência com a graça exterior, de maneira que tu permitirás,
segundo espero, que eu o chame extraordinário, porque é o termo adequado.
Quanto à sua origem, ela não é das piores, pois que o seu nascimento pode
até ser chamado virginal, e, seja como for, é certo que o seu pai era uma
espécie de rei de rebanhos, um príncipe de Deus, e que o rapaz vivia numa
bela situação, como um ente repleto de dons, crescendo perto dos rebanhos
paternos. Verdade é que dores de toda casta foram o seu alimento e houve
pessoas que com êxito armaram ciladas aos seus passos. Não é menos
notável a história da sua paixão; ela tem espírito e engenho ou, como se
costuma dizer, pés e cabeça. Há nela um entrelaçamento de circunstâncias
semelhante ao que faz parecer como uma só coisa o seu exterior aprazível e
o seu interior. Pois essa história tem por si a própria realidade; além disso,
parece ter relação com uma predisposição mais alta e estar de acordo com
ela, de sorte que tu dificilmente distingues uma da outra, pois uma se
espelha na outra e o conjunto forma em redor do jovem um atrativo de
duplo sentido. Como se verificou que ele não se saíra mal no exame a que o
submeti, puseram-no como meu copeiro e leitor, sem que eu desse um passo
para isso, mas, bem entendido, por amor a mim; e confesso que nesses
misteres se me tornou indispensável. E depois, ainda sem qualquer
intervenção minha, cresceu até adquirir o tino sobre todos os negócios da
casa, e também nisto se viu literalmente o Oculto fazer prosperar por seu
intermédio tudo que faz; não me posso exprimir de outra maneira. E agora
que ele se tornou indispensável a mim e à casa, que queres que eu faça
dele?
Realmente, que coisa se podia ainda querer e fazer depois que o
cortesão se havia pronunciado? Satisfeito, olhou em redor e sorriu depois
do que acabava de dizer. Putifar se firmara solidamente, tinha organizado
fortes defesas e preventivamente amolgado o iminente pedido como uma
enormidade, como uma falta de amor para com ele, uma falta incrível. Mal
imaginava o flabelífero que a mulher quase não dera atenção à importância
das suas palavras como trincheira e baluarte, senão que as havia
secretamente sorvido como hidromel e que sempre curvada no seu manto,
na sua profunda tensão ansiosa, não tinha deixado escapar nada daquilo que
ele dissera em louvor de José. Isto mitigou muito o efeito admoestador que
Petepré esperava daquelas palavras e não impediu, o que não deixa de ser
estranho, que Mut se mantivesse com toda a lealdade fiel ao propósito
moral e razoável com que viera. Ela se endireitou e disse:
— Meu marido, suponho que tenhas dito em favor do servo tudo quanto
com certo direito se pode dizer dele. Pois bem, isto não basta nem tem valor
diante dos deuses do Egito, e aquilo que tiveste a bondade de me comunicar
a respeito daquele entrelaçamento de circunstâncias na pessoa do teu servo
e com referência aos atraentes sentidos duplos, isso não se pode sustentar
contra o que é desejável, contra a exigência que Amun deve
inequivocamente apresentar pela rainha boca. Porque também eu sou uma
boca e não somente aquele que dizes ser indispensável a ti e à casa... com
evidente irreflexão. De efeito, como poderia um estrangeiro, recolhido na
estrada, ser indispensável no país dos homens e na casa de Petepré, que era
uma casa de bênção antes que esse servo comprado começasse a crescer
nela? Nunca devia acontecer que ele crescesse nesta casa. Uma vez que o
rapaz foi comprado, o seu lugar era nos campos, no trabalho dos escravos,
em vez de conservá-lo aqui no pátio e confiar-lhe até o teu cálice bem como
o teu ouvido na sala dos livros, graças aos seus dotes apreciáveis. Os dotes
não são o homem; cumpre distinguir este daqueles. Tanto pior se um
homem de baixa origem possui dotes que acabam fazendo com que se
esqueça a sua baixeza natural. Onde estão os dotes que justificam a
exaltação de quem é de baixa origem? E o que devia ter perguntado a si
mesmo Mont-kav, o teu mordomo, que, como há pouco ouvi, sem nenhum
concurso teu, o fez subir e descer depressa demais na tua casa, com angústia
de todas as pessoas pias. Permitirás que ele desafie os deuses até na morte e
aponte como seu sucessor o jovem hebreu, profanando a tua casa perante
todo o mundo e submetendo ao poder de que vem de baixo a criadagem
indígena, fazendo-a ranger os dentes?
— Minha boa mulher — disse o camarista —, como te enganas! A
julgar pelas tuas palavras, não estás bem informada, pois não é o caso de se
falar em ranger de dentes. O pessoal da minha casa ama Osarsif, do
primeiro ao último, do escrivão do aparador ao guarda dos cães, à última
das tuas escravas e ninguém absolutamente se envergonha de obedecer-lhe.
Não sei donde te possa ter vindo a notícia de que nesta casa há um ranger
de dentes por causa da sua grandeza, porquanto essa afirmação é
inteiramente falsa. Ao contrário, todos procuram os seus olhos e porfiam
por fazer debaixo deles o seu dever quando Osarsif passa entre eles e
pendem serenamente dos seus lábios quando o jovem lhes dá instruções. E
até aqueles mesmos que por sua causa tiveram de deixar os seus cargos para
lhe abrir a vaga, mesmo esses não o olham de soslaio, mas de frente e em
cheio, porque os seus dotes são irresistíveis. E por quê? Porque de nenhum
modo as coisas são como tu dizes, e principalmente neste ponto te mostras
mal informada. Não é como dizes, que os seus dotes formam um incômodo
apêndice da sua pessoa e devem ser separados dela. Pelo contrário, eles
formam uma só coisa com a sua pessoa e são os dotes de um abençoado,
tanto que se teria a tentação de dizer que ele os merece, se por sua vez isso
não significasse uma inadmissível separação entre pessoa e dotes, e se, em
se tratando de dotes naturais, se pudesse falar de mérito. Daí acontecer que,
quer andando por terra quer por água, as pessoas o reconhecem de longe, se
acotovelam e dizem alegremente”Aí vem Osarsif, o servo particular de
Petepré, a ‘boca’ de Mont-kav, jovem excelente que viaja para seu senhor,
encarregado de negócios que despachará favoravelmente, à sua maneira.”
Acontece mais que, se os homens o olham de frente e em cheio, as
mulheres o olham de esguelha e pelo canto do olho, o que, segundo sei, é
para elas um bom sinal como o outro o é para os homens. E quando ele
aparece na cidade e passa pelas ruas, sucede as mais das vezes, segundo
ouço dizer, que as moças sobem nos muros e nos telhados e lhe atiram anéis
de ouro dos seus dedos para captar os seus olhares. Mas não os captam.
Eni ouvia com êxtase indescritível. Não é possível dizer como a
inebriasse a exaltação de José, a descrição da sua popularidade. A alegria
corria-lhe pelas veias e cada frase, como uma torrente de fogo, soerguia-lhe
o peito, fazia-a arfar e respirar penosamente como num soluço, aquecia-lhe
as orelhas e só com muito custo ela podia impedir que os seus lábios
sorrissem beatificamente ao ouvir aquelas coisas. O observador compassivo
não pode deixar de sacudir a cabeça diante de um tal contrassenso. O elogio
de José devia confirmar a mulher, se é lícito exprimir-nos assim, no seu
fraco pelo escravo estrangeiro, devia justificar essa fraqueza perante a sua
altivez, precipitá-la cada vez mais no fundo, incapacitá-la ainda mais de
realizar o propósito com que viera ah, qual o de salvar a sua própria vida.
Era essa uma razão de alegria? De alegria, não, mas de delícia — uma
diferença à qual o observador compassivo deve adaptar-se sacudindo a
cabeça. De resto, ela sofria também não pouco. A notícia de que as
mulheres olhavam de esguelha José e lhe arrojavam anéis causava-lhe vivos
ciúmes, confirmava-a de novo no seu fraco e lhe inspirava ao mesmo tempo
uma raiva desesperada contra aquelas que o quinhoavam. Que aquelas
mulheres não tivessem podido atrair para si mesmas os olhares daquele a
quem jogavam os anéis confortava-a um pouco e ajudou-a a portar-se ainda
à maneira de um ser dotado de razão. Disse ela:
— Deixa, meu amigo, que eu passe por alto o fato de não ter sido
grande delicadeza da tua parte inteirar-me do mau comportamento das
mulheres de Vese, supondo que haja algum fundo de verdade nesses
mexericos, os quais talvez sejam divulgados pela própria vaidade do seu
herói ou pela adulação daqueles que ele atraiu para o seu lado mediante
promessas.
Falar daquele que ela já amava sem esperança de salvação custou-lhe
menor fadiga do que se poderia acreditar. Ela o fez maquinalmente, como
se fizesse falar uma pessoa que não era ela própria, tomando então a sua
voz musical um som vazio que correspondia à dureza dos seus traços, a
vacuidade do seu olhar. Todo aquele conjunto formava uma imagem
enganosa.
A coisa principal é — continuou ela desse modo — que a tua censura de
que eu esteja mal informada sobre os negócios da casa resvala por mim e
vai ricochetear sobre ti, de sorte que melhor seria que não a houvesses feito.
O teu hábito de não te ocupares de nada, mas de olhar para tudo com olhos
estranhos e vagos, devia levar-te a ter alguma dúvida sobre o conhecimento
que tens daquilo que se passa em volta de ri. A verdade é que isso de o teu
escravo ter todo esse prestígio na casa dá azo a que os teus se irritem e
fiquem de mau humor. Mais de uma vez, e até muitas vezes, Dudu, o
superintendente dos teus cofres de joias, me falou nesse caso e apresentou
sentidas queixas por causa da mortificação que os homens pios estão
sofrendo com o domínio do impuro...
— Ah, bela flor — disse Petepré, rindo —, não mo leves a mal, belo
companheiro arranjaste, e companheiro de respeito! Esse Dudu é um
pigmeu, um nanico, um megalômano, a quarta parte de um homem, digno
de riso e nada mais. Como havia a sua palavra de ter peso nisto como em
qualquer outro assunto?
— Não é do tamanho da pessoa que se trata — tornou Mut. — Se a sua
palavra é tão desprezível e tão destituído de peso o seu juízo, como o
nomeaste teu guarda-joias?
— Isto não passou de uma brincadeira — disse Petepré — e só para rir
se dá um belo cargo a anões de corte. Ao seu maninho, o outro palhaço,
chamam até de vizir, mas quem levará isso a sério?
— Não tenho sequer necessidade — respondeu ela — de apontar-te a
diferença. Tu o conheces muito bem, conquanto neste momento não o
queiras reconhecer. Mas é bem triste que eu tenha de proteger contra a tua
ingratidão os teus servos mais fiéis e mais dignos. A parte a sua minguada
estatura, o senhor Dudu é um homem digno, sério e leal, que de nenhum
modo merece o epíteto de palhaço e cuja palavra e juízo têm muito peso nos
negócios da casa e da sua honra.
— Dá-me por aqui — observou o comandante das tropas, marcando sua
tíbia com o dorso da mão.
Mut silenciou por um instante.
— Deves ver, meu marido — disse depois, dominando-se —, que és
muito alto, cresceste como uma torre, de maneira que a figura de Dudu bem
te pode parecer mais insignificante que a outros, como por exemplo a Zeset,
sua mulher, minha escrava, e a seus filhos que são também de tamanho
comum e que com amorosa veneração levantam os olhos para aquele que os
gerou.
— Ah! ah! Levantam os olhos!
— E um modo de dizer. Falo em sentido mais elevado, poético.
— Então — acudiu Petepré, escarninho — também te exprimes
poeticamente acerca do teu Dudu. Parece-me que te queixaste de que eu te
entretive pouco agradavelmente. Lembro-te agora que já há algum tempo
estás falando nesse bufão inchado de vaidade.
— Podemos perfeitamente deixar este assunto, se ele te é penoso —
disse Mut com docilidade. — Não preciso que o homem de que falamos se
junte a mim no pedido três vezes justificado em si mesmo que te devo
dirigir; nem tu tens necessidade do seu honrado testemunho para
compreenderes que deves atender-me.
— Vais-me fazer um pedido? — perguntou Petepré. “Então é mesmo
verdade”, pensou não sem amargura. “E mesmo verdade que da está aqui
para fazer-me um pedido mais ou menos incômodo. A esperança de que
tivesse vindo simplesmente para gozar da minha presença não tinha
fundamento e agora desaparece. E depois do que houve não estou muito
disposto a ouvi-la.”
— Qual é o pedido? — perguntou Petepré.
— É este, meu esposo: que afastes o escravo estrangeiro, cujo nome não
repito, da casa e de toda a tua herdade, na qual, por uma benevolência
errônea e uma negligência culposa, lhe foi permitido crescer muito
depressa, tomando-a uma casa, não do exemplo, mas do escândalo.
— Osarsif? Da casa e da minha herdade? Que ideia é essa?
— Meu marido, eu penso no que é bom e no que é justo. Penso honra da
tua casa, nos deuses do Egito e no que a eles deves, e não só a eles, mas a ti
mesmo e a mim, tua irmã-esposa, que agita o sistro diante de Amun, no
ornamento da mãe, consagrada e reservada. Nessas coisas penso e estou,
acima de qualquer dúvida, certa de que basta que eu te recorde tudo isto
para que os teus pensamentos se unam completamente aos meus e tu
atendas imediatamente o meu pedido.
— Mandando embora Osarsif... Isto não é possível, minha amiga, afasta
essa ideia, trata-se de um pedido insensato e inteiramente caprichoso; eu
não posso nem ao menos acolher esse pensamento entre os meus
pensamentos, porque é estranho a eles e contra essa ideia se rebelam com a
maior indignação.
“Chegamos então ao ponto”, pensou ele, enfurecido e ao mesmo tempo
consternado. “É este, pois, o pedido que aqui a trouxe nesta hora,
aparentemente para dar comigo dois dedos de prosa. De longe percebi que o
pedido vinha, mas até o último momento não era capaz de supor que se
tratava de coisa semelhante, de tal modo ela está em conflito com o meu
justificado egoísmo. Desejando mostrar-me grande perante ela, eu lhe
concederia alguma coisa menor, porém isso que ela pensa que é pequeno e
simples de conceder é para mim extremamente incômodo. Não foi debalde
que eu logo senti uma certa apreensão pela minha comodidade. Pena é que
ela não me dê uma possibilidade de lhe causar alegria, porque não é com
prazer que a odeio.”
— O preconceito, minha flor — disse Petepré —, que tens contra a
pessoa desse jovem e que te induz a dirigir-me esse pedido é realmente
deplorável. E evidente que a respeito dele só sabes as maldições e
maledicências que te referiram pessoas mal informadas e mal espigadas,
mas não por teu próprio conhecimento da sua maneira privilegiada que, a
meu ver, jovem como ele é, poderia habilitá-lo a cargos bem mais altos que
o de administrador dos meus bens. Chama-lhe um bárbaro, um escravo,
que, se formos tomar a coisa ao pé da letra, tens direito a isso; mas será
bastante o direito se não há um direito no espírito? Será uso da nossa terra,
quando se trata de apreciar um homem, ver se ele é, ou não, livre, se é
indígena ou estrangeiro? Ou não será antes apreciá-lo segundo se o seu
espírito é tenebroso e indisciplinado ou iluminado pela palavra e enobrecido
pela magia da eloquência? Qual é, sob este aspecto, a prática, qual o uso
dos nossos pais neste país? Pois bem, esse mancebo tem a palavra pura,
serena, escolhida, e exprime-se em tom fascinante; tem uma mão que
escreve artisticamente e lê os livros como se, movido pelo seu próprio
espírito, falasse ele mesmo do seu íntimo, de sorte que toda a argúcia e
sabedoria dos livros parecem vir dele, pertencer a ele, deixando-nos
maravilhado, O meu desejo seria que viesses a conhecer as suas qualidades,
que graciosamente falasses com ele e lhe ganhasses a amizade que te seria
de muito mais préstimo que a daquele arrogante cretino...
— Não quero conhecê-lo nem importunar-me com ele — disse Eni
hirta. — Vejo que estava em erro quando acreditava que tivesses chegado
ao fim da exaltação do escravo. Tinhas ainda alguma coisa que acrescentar.
Agora, porém, espero a palavra que me anuncie teres atendido o meu
pedido, santamente justificado.
— Essa palavra — tornou ele — não está à minha disposição, em razão
do caráter errôneo do teu pedido. Debaixo de mais de um aspecto ele é vão
e inatendível. A questão é somente poder eu explicar-te tudo isso; mas
ainda que o não consiga, nem por isso o teu pedido se tomará mais
atendível. Já te disse que Osarsif não é um escravo qualquer. Ele enriquece
a casa e é para ela um servo precioso; quem tomaria sobre si a
responsabilidade de substituí-lo? Seria o mesmo que roubar a casa e fazer a
ele uma grave injustiça, porquanto Osarsif é um homem sem defeito, um
jovem de maneiras finas, de sorte que expulsá-lo daqui sem mais nem
menos seria tarefa sumamente ingrata à qual ninguém se prestaria com
facilidade.
— Temes o escravo?
— Temo os deuses que estão com ele, fazendo prosperar tudo que tem
em mãos e tomando-o simpático a todo o mundo. Escapa à minha
percepção quais sejam esses deuses, porém isto é certo — que eles se
revelam poderosamente nele. Se não recusasses conhecê-lo melhor,
desapareceriam depressa certas ideias tuas, como a de que se deveria atirá-
lo no fosso do trabalho servil dos campos ou vendê-lo vilmente. Estou certo
de que te interessarias logo por ele e o teu coração se abrandaria em relação
ao jovem, pois que entre a sua vida e a tua existe mais de um ponto de
contato, e se me apraz tê-lo perto de mim, isto acontece, deixa que eu te
diga à puridade, porque muitas vezes ele me faz pensar em ti...
— Petepré!
— Digo o que digo e penso coisas que absolutamente não são
insensatas. Não és consagrada e reservada ao deus, diante do qual danças
como sua segunda mulher sagrada, e não usas com orgulho diante dos
homens o ornamento da tua consagração? Pois olha, também esse mancebo
(disse-me ele próprio) traz um ornamento desses, invisível como o teu.
Parece tratar-se de uma espécie de sempre-viva, que é um distintivo de
juventude consagrada e preservada, como está expresso no seu nome
realmente enigmático, pois que lhe chamam a ervinha não-me-toque. Foi o
que dele mesmo ouvi não sem espanto, porque eram coisas novas para mim.
Eu conhecia muito bem os deuses da Ásia, Attis e Achrat, e os Baal do
crescimento. Ele e os seus, porém, submetem-se a um deus que eu não
conhecia e cujo ciúme me surpreendeu. Pois esse deus único é solitário,
exige fidelidade e se comprometeu com eles como um noivo, o que é
bastante estranho. Por princípio trazem todos aquela ervinha e são
preservados para o seu deus como uma noiva. Mas entre eles o deus escolhe
ainda particularmente um para servir de holocausto, para que use
expressamente o ornamento da juventude consagrada e seja reservado para
o deus zeloso. E Osarsif é um destes. Conhecem, disse-me ele, qualquer
coisa a que dão o nome de pecado e jardim do pecado, tendo ainda
imaginado animais que ficam olhando por entre os ramos do jardim e de
cuja fealdade não podemos capacitar-nos devidamente: são três, de nome
“vergonha”, “culpa” e “riso zombeteiro”. E agora te pergunto duas coisas:
pode-se desejar um servo e mordomo melhor do que um que nasceu para a
fidelidade e de nascença teme o pecado, como é o caso de Osarsif? Além
disso, terei falado demais citando pontos de contato entre ti e o jovem?
Ah, como Mut-em-enet ficou aterrorizada com estas palavras! Se
experimentara uma dor pungente ouvindo falar das donzelas que
arremessavam anéis a José, nada disso tinha importância e era até um prazer
em confronto com a espada que a traspassou ao escutar as razões pelas
quais as moças da cidade não logravam atrair para si os olhares dele.
Salteou-a uma angústia terrível, igual ao pressentimento daquilo que ela
teria de sofrer por causa de José, e seu rosto, voltado para cima, se coloriu
de uma pálida aflição. Ponha-se alguém no seu lugar, pois a todos os seus
dissabores vinha juntar-se também o sentimento do ridículo. Por que lutava
ela e combatia a teima de Putifar, se este dizia a verdade? E se fosse mentira
o sonho salvador que lhe tinha aberto os olhos e a trouxera àquele lugar? Se
aquele contra o qual ela se esforçava por salvar a própria vida e a vida do
seu senhor, enfeitado com o título de comandante, fosse um predestinado do
holocausto, reservado e vigiado ciosamente? Em que aberração ela temera
perder-se? Faltava-lhe força para cobrir com as mãos os olhos que,
contemplando fixamente o vácuo, acreditavam ver os três animais do
jardim, a vergonha, a culpa, o riso zombeteiro, sendo que este último uivava
como uma hiena. Tudo isto era insuportável. “Fora, fora”, pensou ela
açodadamente; “agora mais que nunca deve ser mandado embora aquele
sobre o qual tive sonhos mentirosos de salvação, vergonhosos e mais que
vergonhosos, porque — ah! — debalde, completamente debalde, eu atiraria
sobre ele o anel do meu dedo. Sim, eu luto com razão e devo continuar a
lutar, agora mais que nunca, se as coisas são assim. Mas antes não espero no
meu íntimo, com triunfante confiança, que a minha ânsia de salvação se
mostre mais forte do que o seu noivado e o vença, e ele siga o meu olhar
para estancar o meu sangue? Não o espero e não o temo com uma força que
no fundo tenho como irresistível? Sim, é evidente ainda uma vez e mais que
nunca que ele tem de afastar-se dos meus olhos e da casa para que se salve a
manha vida. Está ali o meu marido com os seus grossos braços, um
verdadeiro colosso; Dudu, o anão que é pai, lhe chega somente à canela.
Dele, da sua condescendência, deve esperar salvação, só dele!” E como se
se quisesse refugiar junto de seu marido inerte, que era o mais próximo,
para experimentar nele a força da própria ânsia de salvação, retomou a
palavra e com voz harmoniosa lhe respondeu:
— Concede, meu amigo, que eu não me detenha sobre o teu discurso e
não te responda argumentando para refutá-lo. Seria ocioso. O que me dizes
não se presta à discussão; bastava que, em vez de tantas palavras, dissesses
logo”Não quero.” Todo o teu discurso não é mais que um manto a encobrir
tua vontade inflexível; é a firmeza férrea da tua decisão, a determinação
granítica que reveste tudo quanto dizes. Iria eu opor-me a tal firmeza
altercando vãmente, se eu mesma a amo e admiro com ternura toda feminil?
Agora, porém, espero de ti outra coisa; espero uma resolução que sem
aquela firmeza seria pouco ou nada, porque recebe desta magnífico valor:
espero que atendas o meu pedido. Nesta hora que não é como as outras,
nesta hora passada aqui, um defronte do outro, nesta hora cheia de
expectativa na qual vim aqui fazer-te um pedido, se dobrará sobre mim a
tua vontade de homem para satisfazer o meu desejo, dizendo”Seja afastado
da casa esse escândalo, Osarsif seja deposto, expulso, vendido a outros.”
Ouvirei isto, meu senhor e marido?
— Já ouviste, minha querida, que não te é possível ouvires essas
palavras, ainda que eu tenha toda a vontade de te causar alegria. Não posso
expulsar nem vender Osarsif, não posso querer, não tenho à minha
disposição a vontade de fazê-lo.
— Não podes querê-lo? A tua vontade então seria dona de ti e não tu
dono da tua vontade?
— Minha filha, isso são sofismas. E possível haver alguma diferença
entre mim e a minha vontade, de modo que um seja senhor e o outro servo?
Experimenta tu dominar a tua vontade e querer aquilo que te é de todo
repugnante, aquilo que te é de todo detestável.
— Estou pronta a fazê-lo — tornou Mut, atirando para trás a cabeça —
se se trata de coisas mais altas, tais como a honra, o orgulho, o reino.
— Nada disso está comprometido aqui — retrucou ele —, o de que aqui
se trata é da honra de uma sã razão, do orgulho da sabedoria e do império
da justiça.
— Não penses em tal, Petepré — rogou ela com voz estrídula. — Pensa
na hora, na hora única e na sua expectativa, quando vim ter contigo, fora da
ordem, contrariamente à tua comodidade. Vê, eu cinjo com os meus braços
o teu joelho e te imploro: satisfaze o meu desejo com o teu poder, meu
esposo, só esta vez, e permite que eu saia daqui confortada!
— Por mais agradável que me seja — respondeu Petepré — sentir em
torno dos meus joelhos os teus formosos braços, é-me impossível atender-
te, e aos teus braços deves agradecer a brandura do reparo que me cumpre
dirigir-te a propósito da pouca consideração que mostras com a minha
saúde. Mas, embora não me perguntes, quero dar-te aqui entre nós dois,
nesta hora única, algumas informações. Sabe, pois — disse ele com certo ar
de mistério —, que eu devo reter Osarsif não só pelo bem da casa que ele
me aumenta, ou porque esse jovem me lê os livros dos doutos com grande
agrado meu e como não o soube fazer nenhum outro antes dele, mas por
uma outra razão ele é sumamente importante ao meu bem-estar. Se te digo
que Osarsif desperta em mim o agradável sentimento da confiança, não
digo tudo: quero dizer alguma coisa de indispensável. O seu espírito é fértil
em invenções benéficas de toda espécie; mas a principal destas é que cada
dia e cada hora ele sabe falar-me a respeito de mim mesmo, colocando
diante de mim a minha pessoa numa luz favorável, luz divina, fortalecendo
o meu coração de maneira que adquiro consciência de mime...
— Deixa-me lutar com ele — atalhou Eni, agarrando com mais força os
joelhos do marido —, deixa-me derrotar aquele que só sabe palavras que
fortalecem o teu coração e a tua confiança em ti mesmo. Eu sei fazê-lo
melhor. Eu te ofereço o ensejo de fortificares realmente o teu coração por ti
mesmo, com o teu poder, satisfazendo a expectativa desta hora e
devolvendo o escravo ao deserto. Pois, meu marido, como te sentirás
quando satisfizeres o meu desejo, saindo eu confortada da tua presença!
— Pensas assim? — perguntou ele, cerrando os olhos. — Pois bem,
escuta. Quero dar ordens para que, quando venha a faltar o meu mordomo
Mont-kav, que está à morte, não lhe suceda na direção da casa Osarsif, mas
algum outro, talvez Chamat, o escrivão da despensa. Porém Osarsif deve
continuar na casa.
Ela sacudiu a cabeça.
— Isto a mim não aproveita, meu amigo, e portanto nem ao teu
fortalecimento nem ao sentimento de confiança que deves ter em ti próprio.
Porque desse modo só pela metade ou talvez menos que isso seria satisfeito
o meu desejo. Osarsif tem de sair da casa.
— Então — acudiu ele —, se isto não te basta, retiro a minha oferta,
será posto à testa da casa o mancebo.
Ela soltou os braços.
— É a tua última palavra?
— Infelizmente, outra palavra não está à minha disposição.
— Então me retiro — suspirou ela e levantou-se.
— É o melhor — disse Putifar. — Afinal, não deixou de ser uma hora
agradável. Para te alegrar, vou-te mandar de presente um vaso de perfumes
de marfim lavrado, representando peixes, ratos e olhos.
Ela voltou-lhe as costas e se encaminhou na direção das arcadas da sala.
Aí parou um instante, tendo algumas dobras do manto na mão que apoiava
a uma das frágeis colunas, com a fronte inclinada sobre a mão e o
semblante oculto entre as dobras. Ninguém pôde olhar o que ia por trás
daquelas dobras no rosto velado de Mut.
Depois ela bateu as palmas e saiu.
TRÍPLICE COLÓQUIO

Depois de havermos referido esse comprido diálogo, penetramos tão


dentro da nossa história que agora podemos ligá-la a uma observação que
fizemos há pouco e só de passagem. Aludimos então ao estranho asterisco
para o qual confluem, no jogo das contingências da vida, as vicissitudes da
nossa história. Na época — escrevíamos então — em que a senhora
aparentemente fez sérios esforços para afastar José da casa de Putifar, o que
até então havia sido atribuição de Dudu, o anão casado, este começou a
dizer a José palavras doces, a fingir-se seu amigo dedicado não só diante do
jovem mas também diante da senhora, elogiando-o o mais possível. Foi o
que se verificou, sem nenhum exagero da nossa parte. Isso, entretanto,
sucedeu porque a Dudu não escapou o estado de espírito de Mut-em-enet,
percebendo o astuto guarda-joias a razão dos esforços desta para afastar dos
próprios olhos o jovem Osarsif. Dudu descobriu isto mercê daquela
capacidade solar com que fora agraciada a sua nanosomia e que ele honrava
com tanto empenho e cultivava estranhamente da maneira que mais
convinha à sua pequenez. Realmente, era ele um perito nesse campo, com
excelente faro e sentidos agudíssimos acerca de todos os elementos desta
esfera, embora a outros respeitos sua sabedoria de pigmeu houvesse
minguado sensivelmente.
Dudu não levou muito tempo a compreender a importância do que havia
feito ou fomentado junto à ama com as suas patrióticas queixas acerca da
ascensão de José; compreendeu-o maravilhosamente e muito antes dela. A
princípio veio em seu auxílio a soberba ignorância de Mut, que ainda não
pensava em medidas de precaução; depois, quando a ela também se lhe
abriram os olhos, veio em seu auxílio a geral incapacidade em que a mulher
comovida e enleada se vê de esconder dos demais o seu próprio estado de
espírito. E assim Dudu percebeu que a senhora estava a pique de apaixonar-
se irresistivelmente, miseravelmente, e com toda a seriedade da sua alma,
pelo estrangeiro, criado e leitor particular do seu marido. Viu-o e esfregou
as mãos de contente. Ele não esperara por isso nem o previra, mas achava
que esse fato podia tomar-se para o jovem intruso um fosso mais profundo
do que qualquer outro que lhe fosse possível cavar para o seu desafeto.
Dudu decidiu então mudar de cara de um dia para outro, desempenhando
um papel que depois dele muita gente desempenhou e que não terá sido ele
o primeiro a desempenhar. Apesar de não sabermos muita coisa sobre os
seus predecessores neste ponto, não duvidamos de que, fazendo aquele
papel, seguiu as pegadas de outros. O anão começou a andar para cá e para
lá, entre José e Mut-em-enet, instigando o mal como intermediário.
Na presença dela Dudu mudou destramente o tom de suas palavras, à
medida que lhe ia penetrando no íntimo, primeiro procedendo por indução,
depois por certeza. Mandara-o chamar a senhora para falar com ele a
respeito do assunto sobre o qual o próprio anão já doutras vezes com ela
trocara ideias. Mut queria queixar-se e começou a falar do escândalo, dando
no começo ao pigmeu a impressão de a ter conquistado ao seu ódio e de a
ter tomado zelosa em fomentar esse mesmo ódio. Mas pouco depois,
farejando, compreendeu-a melhor, visto que o modo de ela falar Lhe parecia
bem estranho.
— Superintendente — disse ela (com grande alegria de Dudu sempre
lhe chamava assim, conquanto o anão fosse apenas um empregado
subalterno, encarregado de velar pela roupa e pelo escrínio das joias) —,
superintendente, mandei-te chamar por um dos porteiros do harém e por
uma nubiana porque em vão tenho esperado que viesses espontaneamente
continuar as nossas conversas sobre aquele assunto que também a ti
interessa e para o qual chamaste a minha atenção. Apesar de toda a minha
consideração pelos teus méritos de um lado e pelo teu nanismo de outro,
cumpre-me censurar-te ao de leve o não teres vindo de moto próprio,
fazendo-me esperar angustiosamente; o esperar já é em geral um tormento,
mas para uma mulher da minha posição é, além disso, pouco nobre e assim
mais angustiante. Meu coração está em brasa com essa desgraça, com esse
jovem forasteiro de cujo nome fui obrigada a tomar nota, uma vez que me
chegou aos ouvidos ter sido ele nomeado mordomo no lugar do Osíris
Mont-kav, e agora, todo ancho, perambula pela herdade, fiscalizando tudo,
com regozijo de todos vós ou, pelo menos, da maioria. Essa vergonha,
repito, me queima o coração; e isto, anão, deve regozijar o teu, porque foste
tu o primeiro a chamar a minha atenção para o caso com as tuas queixas. Se
não fossem elas, eu podia descansar em sossego, ao passo que agora a coisa
não me sai do sentido nem de dia nem de noite. Despertando o meu
interesse como fizeste, deixas agora de vir espontaneamente falar-me como
cumpre e largas-me sozinha na minha aflição, de sorte que por fim tive de
chamar-te à minha presença para discutirmos o triste negócio, porquanto
nada mais penoso do que ficar desamparada numa tal conjuntura. Isso
devias saber por ti mesmo; com efeito, que podes fazer só e sem mim, como
tua aliada, contra o objeto do teu ódio, se esse objeto é tão poderoso que,
comparado com ele, o teu ódio, por mais justificado que seja, é impotente?
A sua posição no favor do amo, que não te tolera, não pode sofrer abalo,
porque o estrangeiro soube ganhar-lhe o ânimo com inteligência e feitiços e
porque os seus deuses fazem prosperar tudo nas suas mãos. Mas como é
que eles conseguem isso? Especialmente aqui, nos países em que são
estranhos, em que não são adorados, eu não considero os seus deuses tão
fortes que ele faça o que conseguiu fazer desde que aqui entrou. Nele
mesmo é que devem estar esses dotes que tanto êxito lhe granjeiam, porque
sem eles não se pode crescer e subir da posição de ínfimo escravo
comprado ao grau de administrador de todas as coisas; e é claro que tu, ó
anão, pelo que diz respeito à prudência bem como ao exterior gracioso, não
lhe chegas à sola das sandálias, visto que a sua instrução e as suas maneiras
parecem ser extraordinariamente evidentes a todo mundo, muito embora tu
e eu não cheguemos a compreendê-las. Todos gostam dele e buscamos seus
olhos, não somente as pessoas de serviço na casa, mas toda a gente nos
caminhos por terra e por água, bem como na cidade; assim, contaram-me
que, quando ele surge, mulheres de todas as classes sobem em cima dos
telhados para vê-lo e até lhe atiram, em sinal de lascívia, os anéis dos seus
dedos. E isto o cúmulo do horror, e por esse motivo é que eu estava
impaciente para falar contigo, superintendente, e ouvir o teu conselho bem
como dar-te a conhecer a minha opinião a respeito do modo de pôr termo a
uma tal desfaçatez. Esta noite, estando sem sono, pensava de mim para
comigo se não era o caso de, quando ele vai a cidade, fazê-lo acompanhar
de archeiros que atirassem flechas na cara das mulheres que se comportam
de tal modo; sim, senhor, justamente na cara delas. Cheguei à conclusão de
que era essa providência que se devia tomar e proceder assim. E agora que
afinal vieste, incumbo-te de dar logo as instruções respectivas, sob minha
responsabilidade, sem todavia citar o meu nome, pois deves fazer como se o
conselho e a ideia tivessem brotado da tua cabeça, e deves até gabar-te
disso. No máximo dirás a Osarsif que fui eu que mandei atirar flechas nas
mulheres e deves prestar atenção ao que ele diz em resposta, como se
externa com referência a essa minha providência. Depois vens cá contar-me
o que ele disse, e isso de tua própria iniciativa, sem que eu te deva mandar
recados, tendo em conta que já sofri o tormento da espera e a dor de ver-me
só numa conjuntura tão grave. Pois parece que o encarregado do guarda-
roupa se descuidou da sua missão, enquanto eu trabalho por Amun. De
acordo com o alvitre do reverendo Beknechons e do teu, eu cingi os joelhos
do meu marido e com ele lutei metade da noite para pôr cobro a esse
escândalo, tomando-me importuna à sua comodidade até com humilhação
minha; mas o meu trabalho frustrou-se de encontro à sua vontade granítica,
retirando-me eu sem conforto e abandonada. Depois tive de mandar recados
sobre recados ao anão a fim de que ele viesse assistir-me, informando-me
do que há a respeito do infame mancebo, da erva má desta casa e do seu
procedimento; se ele anda aí a pavonear-se no novo cargo que abicou com a
sua esperteza e quais as palavras com que se refere à gente desta casa e dos
senhores, a meu respeito, por exemplo, que sou a dona da casa, e mais ou
menos o que diz de mim nas suas conversas. Se tenho de defrontá-lo e
combater sua ascensão, devo conhecê-lo, devo saber o que pensa de mim.
Mas a tua negligência me deixa sem informações, quando o que te cumpria
era seres ativo e engenhoso e talvez induzi-lo a aproximar-se de mim, fazer-
me visitas de homenagem, procurar o meu favor, para que eu possa
examiná-lo mais atentamente e procurar descobrir a magia com que ele
enlaça as pessoas e as atrai a si, pois que tudo isso permanece um segredo e
a razão das suas vitórias é um mistério. Ou então poderias ver e dizer que é
que o povo encontra nele. Foi especialmente para falar disso contigo,
homem esperto, que te mandei chamar; já te teria feito essa pergunta se
tivesses vindo antes. Será acaso extraordinário o seu crescimento e a sua
estatura? Absolutamente não é. Ele é, como muitos outros, feito pela
medida dos demais homens, naturalmente não tão pequeno como tu e
tampouco do gigantesco tamanho de Petepré, meu marido. Poder-se-ia dizer
que o seu talhe é justo e, dizendo isto, diz-se porventura algo de espantoso?
Ou será tão forte que carregue do celeiro cinco alqueires de trigo ou mais
ainda, de modo que os homens fiquem impressionados e as mulheres
extasiadas? Absolutamente. As suas forças físicas são inteiramente comuns,
não são mais que justas, e quando ele dobra o braço, o sinal viril do
músculo não sobressai brutal e jactancioso, mas faz-se notar de uma
maneira moderada e estética, que se poderia chamar humana, mas também
divina. Ah, amigo, assim é. Mas tudo isso se encontra mil vezes no nosso
mundo; portanto não há nada que justifique as suas vitórias. A falar
verdade, o que dá sentido e valia à figura é de modo especial a cabeça e o
rosto; e em nome da justiça convenhamos que os seus olhos são belos no
seu negrume sob a arcada das sobrancelhas; belos no seu jeito claro e franco
de fitar ou quando lhe apraz cerrá-los de uma certa maneira de ti certamente
conhecida e que se poderia chamar veladamente ladina e sonhadora. Mas
que há de extraordinário na sua boca e como se pode explicar que ele
encanta a todos de sorte que, ao que ouço, lhe chamam abertamente a boca,
a suprema boca da casa? E o que de fato não se pode compreender, um
enigma que desafia a argúcia, porquanto os seus lábios são assaz grossos e o
sorriso com que sabem enfeitar-se de modo a fazer brilhar entre eles os
dentes só explica em parte, e parte mínima, o geral deslumbramento, ainda
levando-se em conta as engenhosas palavras que eles proferem. Propendo a
crer que o arcano da sua magia seja em primeiro lugar o da sua boca e a
essa porta deveria uma pessoa pôr-se à escuta para com mais certeza
apanhar na própria rede aquele temerário. Se os meus servos não me
atraiçoam e não me deixam angustiosamente esperar pelo seu auxílio, eu
me encarrego de descobrir suas artes e fazê-lo cair. E se ele me opuser
resistência, sabe, ó anão, que darei ordem aos archeiros para voltarem as
armas e desfecharem suas flechas na sua cara, no negror dos seus olhos e na
fatal delícia da sua boca!
Palavras tão estranhas escutava nobremente Dudu da boca da sua ama,
com a saliência do beiço superior arqueada sobre o inferior, a côncava
mãozinha atrás da concha da orelha, como a denotar sua atenção que não
era simulada. E sua experiência no campo da procriação o habilitava a
interpretá-las. Quando notou o verdadeiro estado das coisas, mudou de tom,
não de afogadilho, mas pouco a pouco, passando de uma posição a outra,
falando de José hoje diferentemente de ontem, mas referindo-se àquilo que
dissera ontem como se suas palavras tivessem sido favoráveis, ao passo que
elas já tinham sido de sentido um pouco mais brando, mas ainda assim um
tanto ou quanto ásperas e injuriosas. E, em geral, esforçava-se por mudar o
fel em mel e exatamente no oposto tudo o que antes dissera. Uma
falsificação tão grosseira causaria engulhos a qualquer pessoa
desapaixonada, provocar-lhe-ia indignação, dado o desprezo da razão
humana que nela descaradamente se manifestava. Mas o espírito da
procriação ensinava a Dudu o que é possível exigir de pessoas que se
encontram no estado de espírito de Mut-em-enet, e sem temor aventurou-se
a instar com Mut, que já estava demasiado aturdida com o que dentro dela
estuava para poder escandalizar-se com tamanha desfaçatez; antes, era até
grata ao anão pela sua amabilidade.
— Nobilíssima senhora — disse ele —, se não vim aqui ontem, aqui
estive antes de ontem, como hás de te lembrar se eu o evoco à tua mente, e
só o sagrado zelo com que tu também te envolves neste assunto dilata aos
teus olhos a duração da minha ausência. Se o teu dedicadíssimo servo não
compareceu ontem à tua presença para discutir o que se está passando, foi
unicamente porque os afazeres do meu cargo me absorveram de todo em
todo, sem todavia afastar, ainda que por um instante, os meus pensamentos
do negócio que tomas tanto a peito — e, portanto, também eu — referente a
Osarsif, o novo mordomo. As atribuições do meu ofício me são caras e
preciosas, pelo que naturalmente não me repreenderás; tomei amor a elas,
como sucede com deveres e ônus que a princípio são somente tais, e depois,
com o andar do tempo, se tornam cada vez mais objeto do nosso apego. É o
que acontece também com o negócio e sua respectiva grave solução, que o
teu servo mais submisso tem tido amiúde o privilégio de discutir contigo. E
como seria possível deixar de tomar a peito uma preocupação em relação à
qual, ó senhora, me é dado, chamado ou não, trocar ideias contigo todo dia
ou quase todo dia? E como se poderia também deixar de transferir para o
objeto da preocupação o reconhecimento por este superior prazer e deixar
de ganhar afeto também a ele, se mais não fosse, por lhe ter sido dado
tornar-se objeto dos teus cuidados? Não pode ser de outra forma, e por
felicidade o teu servo pode recordar-se de que ele jamais pensou naquele
objeto, isto é, na pessoa em questão, a não ser como se pensa numa pessoa
digna de ocupar o teu pensamento. Contrista-se Dudu e faz-se-lhe injustiça
se se acredita que o belo serviço do guarda-roupa o tenha, ainda que por
uma hora, impedido de refletir com solicitude no negócio pelo qual sua
senhora lhe concedeu a honra de interessar-se. É que é preciso fazer uma
coisa e não esquecer a outra: esta foi sempre a minha norma, tanto a
respeito das coisas terrenas como das divinas. Grande deus é Amun, e
maior não podia ser, mas acaso por isso se devem negar honra e alimento
aos outros deuses do país, especialmente àqueles que lhe são afins até a
identidade e lhe deram o seu nome como Atum-Rá-Horachte de On no
Baixo Egito? Já da última vez que me foi outorgada a mercê de falar diante
da ilustre senhora tentei exprimir, ainda que com risível insucesso, como é
grande, sábio e manso esse deus, que se distinguiu com invenções como a
do relógio e da divisão do tempo por meio do ano, sem o que seriamos
como animais. Desde a minha mocidade tenho intimamente perguntado a
mim mesmo e agora pergunto em voz alta como poderia Amun na sua
capela levar a mal se no nosso íntimo tivéssemos em grande conta os
pensamentos suaves e grandiosos desse ente majestoso, ao nome do qual ele
uniu o seu. O reverendíssimo Beknechons não é primeiro profeta tanto dum
como do outro? Quando na bela festa a minha ama, na sua qualidade de
segunda mulher, agita diante de Amun os sonoros guizos, ela já não se
chama Mut, como todos os dias, mas Hathor, que é a santa irmã-esposa de
Atum-Rá e não de Amun, com o disco solar entre os chifres. Tendo isto em
consideração, o teu fidelíssimo criado nunca cessou de tomar a peito aquele
negócio para ti tão importante e de chegar-se ao formoso jovem, rebento da
Ásia, que se alçou entre nós ao posto de mordomo e a objeto do teu
cuidado, a fim de sondá-lo bem, de modo que desta vez eu pudesse falar-te
dele melhor e com maior conhecimento de causa do que me foi dado fazê-lo
da última vez, apesar de todas as minhas fadigas. De um modo geral, achei-
o fascinante — nos limites que a ordem natural põe aos aplausos de um
homem como eu. Bem diversamente se passam as coisas em relação
àquelas mulheres que se encarrapitam nos telhados e nos muros. Achei,
porém, que o nosso mancebo teria pouco ou nada que objetar contra as
flechadas, e a este respeito me parece não haver nenhuma razão para voltar
as armas na direção oposta. Eu o ouvi dizer mais ou menos que só uma
mulher tem o direito de pôr os olhos nele; e, dizendo isto, ele me fitava
tenebrosamente de sob as arcadas dos seus olhos, com uma mirada,
primeiro grande e resplendente, depois velada e astuta à sua interessante
maneira. Embora naquela observação exista já uma alusão ao modo como
ele pensa em ti, ainda não tive isto como suficiente; e como sou avesso a
avaliar e julgar os homens pelo seu procedimento para contigo, tive artes de
levar a conversa para a graça das mulheres, e de homem para homem lhe
propus a pergunta sobre qual é para ele a mais formosa mulher entre as que
vê. “Mut-em-enet”, respondeu ele,“a nossa ama é a mais formosa aqui e no
círculo mais vasto que nos rodeia. Porquanto, ainda que se transpusessem
os sete montes.
não se encontraria outra mais atraente.” E dizendo isto o seu semblante
se tingiu de um rubor à Atum, que posso comparar somente ao que agora
matiza de alegria o teu semblante, como eu me desvaneço de crer, por causa
do engenho do teu dedicadíssimo servidor neste negócio que tomas tanto a
peito. Não bastou isto, senão que, antecipando-me ao teu desejo, disse ao
novo mordomo que venha amiúde render-te homenagem, submeter-se a um
exame teu, para que possas descobrir a sua magia e sondar o mistério da sua
boca, tendo-me feito a natureza, em tal assunto, de todo em todo
incompetente. Recomendei-lhe isto com insistência, procurei vencer-lhe a
relutância, exortando-o a aproximar-se de ti, ó senhora, quanto mais
assiduamente melhor, e diante de ti beijar com a sua boca a terra que o
tolera. A tais exortações minhas emudeceu. Mas o rubor à Atum, que
momentaneamente desaparecera do seu rosto, voltou bem depressa,
interpretando-o eu como indício do seu medo de trair-se e de revelar-te o
seu segredo. Não obstante isto, estou convencido de que seguirá minhas
instruções. A dizer verdade, ele me suplantou (não discuto por que artes e
meios) nesta casa, da qual agora se encontra à frente, mas eu sou o mais
velho na idade, o mais antigo na residência neste país, e com esse jovem
falo livre e franco, como homem sincero que sou, recomendando-me, como
tal, à graça da minha ama.
Com isto Dudu se curvou com todo o decoro, fazendo cair direito dos
ombros os bracinhos, virou-se, e a passos curtos foi ter com José, a quem
saudou com as palavras:
— Os meus respeitos, ó boca da casa!
— O Dudu — tornou José —, tu vens a mim e me apresentas os teus
estimados respeitos? Como é isto? Ainda recentemente não querias comer
comigo e com palavras e com atos deixavas transparecer que não me tinhas
tanta simpatia.
— Simpatia? — indagou o marido de Zeset, atirando a cabeça pata trás
e erguendo os olhos para ele. — Pela tua pessoa tive sempre mais simpatia
do que alguém que se mostrou particularmente simpático nestes sete anos,
mas não o dei a entender! Sou um homem reservado, comedido, que não
arremessa aos pés de toda a gente o seu favor e a sua dedicação só pelos
belos olhos de cada um, mas mantém-se reservado e examina e deixa
amadurecer durante bons sete anos a sua confiança. Mas uma vez que ela
amadurece, pode-se contar com a minha fidelidade até o extremo. Quem a
tem experimentado é que pode melhor tirar a prova do que digo.
— Muito bem — disse José. — Folgo de haver granjeado a tua
benevolência sem para isso ter-me sujeitado a maiores esforços.
— Com esforços ou sem eles — acudiu o pequerrucho com mal contida
sanha —, o fato é que de agora em diante podes confiar no meu zelo
prestativo, dedicado em primeira linha aos deuses, que visivelmente estão
contigo. Sou um homem religioso que atento na posição tomada pelos
deuses e aprecio a virtude de um homem segundo os seus êxitos. O favor
dos deuses é convincente. Quem seria tão obstinado que opusesse
indefinidamente sua opinião a ele? Nem tão estúpido e cabeçudo é Dudu, e
por isso me fiz teu de alma e corpo.
— Folgo de ouvir estas coisas — disse José — e contigo me alegro pela
tua prudência em relação aos deuses. E depois disto podemos perfeitamente
separar-nos, pois que nossas tarefas nos chamam.
— Minha impressão — insistiu Dudu — é que o senhor mordomo não
sabe apreciar devidamente o valor e a importância da minha declaração, que
equivale a uma oferta. Se assim não fosse, não havias de querer ir tão
depressa à tua vida, antes de indagar o sentido e o alcance da minha
proposta e antes de te informares das vantagens que ela te oferece. Podes
confiar em mim e valer-te da minha fidelidade e do meu engenho em
qualquer ocasião, tanto em coisas da administração da casa como a respeito
da tua pessoa e felicidade. Podes contar com a enorme experiência de
Dudu, homem do mundo, traquejado em caminhos indiretos como em todas
as espécies da espionagem, na escuta furtiva, no oficio de recadeiro, na
delação e noutras alcovitices, sem falar numa discrição que não tem igual
no mundo em finura e inviolabilidade. Espero que os teus olhos comecem a
abrir-se acerca da importância da minha oferta.
— Eles jamais foram cegos para coisas semelhantes — assegurou José.
— Muito mal me entendes se crês que eu desconheço o peso da sua
amizade.
— Dou-me por satisfeito das tuas palavras — disse o pigmeu —, mas
não do tom com que as proferes. Se meus ouvidos não me enganam, há
nelas uma tal ou qual rispidez, uma reserva que diante de meus olhos
pertence já ao passado e que não devia mais ter cabida entre ti e mim,
porque, pela minha parte, já o repudiei completamente. Do teu lado, porém,
isso me doeria muito, como uma mortificante injustiça, pois que tens tido
tempo suficiente para deixar amadurecer a tua confiança em num, tal como
foi concedido o aumento da minha confiança em ti, isto é, sete anos.
Confiança por confiança. Vejo bem que ainda me resta muito que trabalhar
e que devo fazer-te penetrar bem fundo na minha confiança, para que me
acolhas na tua sem esquiva reserva. Sabe, pois, Osarsif — disse ele,
baixando a voz—, que a minha deliberação de amar-te e de dedicar-me com
toda a minha pessoa ao teu serviço não nasceu somente do meu temor aos
deuses. Para tanto influiu também, vou confessar-te, e de modo decisivo, o
desejo e a ordem de uma pessoa terrena, se bem que muito chegada aos
deuses... — E piscou os olhos.
— De que pessoa? — não pôde José abster-se de perguntar.
— Tu perguntas? — retrucou Dudu. — Pois bem, com a minha resposta
te introduzo na minha mais íntima confiança, a fim de que me retribuas de
igual modo. — Pôs-se na ponta dos pés, levou a mãozinha à boca e
sussurrou: — Foi a senhora.
— A senhora?! — disse baixinho José, mas depressa demais. E curvou-
se para o outro. Infelizmente foi assim. O pigmeu tivera artes de encontrar a
palavra que prendeu imediatamente ao colóquio o seu interlocutor com uma
precipitada curiosidade. O coração de José, que Jacó lá na sua casa há muito
acreditava estar seguro na morte, mas que aqui, no Egito, havia continuado
o seu caminho, exposto aos perigos da vida, como que parou de bater. No
esquecimento de si mesmo esteve parado um instante, para depois, segundo
o seu velho hábito, recobrar com pancadas tanto mais velozes o que
perdera.
José tornou a pôr-se em posição ereta e ordenou:
— Tira a mão da boca! Podes falar em voz baixa sem ter a mão aí.
Disse isso para que ninguém percebesse que ele tinha segredos com o
anão casado: sempre pronto a trocar com ele confidências, mas cheio de
repugnância a gestos que as denunciassem.
Dudu obedeceu.
— Foi Mut, a nossa ama — confirmou —, a primeira e a verdadeira.
Por tua causa ela me chamou e me disse”Senhor superintendente.” (Perdoa!
O superintendente aqui és tu, depois da deificação de Mont-kav; tu te
instalaste na alcova da confiança, visto que eu, agora como antes, só o sou
num sentido nobremente limitado. Mas é maneira e graciosa lisonja da
senhora falar comigo desse modo. ) “Senhor superintendente”, disse-
me,“voltando a falar no jovem Osarsif, o novel mordomo da casa, sobre o
qual já temos mais de uma vez trocado ideias, parece-me chegado o
momento de pordes de lado finalmente aquela varonil esquivança e
perscrutadora reserva que lhe tendes mostrado há vários anos, talvez uns
sete anos, e de vos dedicardes resolutamente ao seu serviço, como no fundo
do vosso coração já há muito desejais fazer. Tenho examinado atentamente
os escrúpulos que julgastes conveniente manifestar-me de quando em
quando contra a sua irresistível ascensão, mas já agora os desterrei
definitivamente em consideração à sua patente virtude; e isto com tanto
mais agrado e com tanto maior facilidade quanto, com o volver do tempo,
vós mesmo vindes expondo as vossas objeções sempre com maior hesitação
e fraqueza, dificilmente podendo e querendo ainda esconder que, há muito,
começara a brotar no vosso peito o amor a ele. Já não deveis continuar a
constranger-vos — assim o quero —, senão que deveis servi-lo com
coração terno e fiel; é este um negócio do peito, até para mim que sou a
senhora. É que a mim interessa como poucas outras coisas que os melhores
servos da casa sejam verdadeiramente amigos uns dos outros e façam um
pacto em prol da prosperidade desta casa. Este pacto deveis fazê-lo, Dudu,
com o jovem mordomo e, como homem experimentado que sois, deveis ser
para a sua juventude uma ajuda, um conselheiro, um mensageiro, um guia.
Levo isto a peito. Pois prudente ele é e os deuses fazem medrar tudo aquilo
em que põe a mão. Em alguns casos, porém, a sua mesma mocidade ainda é
para ele um obstáculo e um perigo. Falando primeiro do perigo, a sua
juventude vai junta com uma notável formosura, que se mostra na sua
perfeita figura como nos seus olhos velados e na boca primorosamente
modelada, de sorte que se poderiam transpor os sete montes sem se
encontrar um jovem de tão belo aspecto. O que eu vos recomendo é que o
cubrais com a vossa pessoa contra a insuportável curiosidade e, em caso de
precisão, o façais escoltar, quando for à cidade, de um troço de archeiros
que a indiscretos projéteis atirados contra ele dos telhados e muros
respondam, para livrá-lo do perigo, com uma chuva de flechas. E falando
agora do obstáculo, parece que em certos casos a sua juventude o faz ainda
demasiado medroso e hesitante, de modo que eu quero ainda ampliar o
encargo que vos dei, no sentido de o ajudardes a superar essa
pusilanimidade. Por exemplo, muito raramente ou quase nunca ele se anima
a vir ter comigo, sua senhora, para discutirmos os negócios em curso. Isto
me desagrada, porque eu não sou como Petepré, meu marido, que, por
princípio, de nada cuida, mas de muito bom grado ocupar-me-ia, como dona
da casa, dos negócios da herdade, e sempre deplorei que Mont-kav, o
mordomo deificado, quer por falso respeito, quer por cobiço de mando,
sempre me conservou alheia a eles. Sob este aspecto, a mim mesma
prometera certa vantagem com a mudança do titular no cargo superior; mas
até o momento vejo frustrada essa minha esperança e ordeno-vos, meu
amigo, que sejais delicado mediador entre mim e o jovem mordomo e que o
induzais a vencer a sua relutância juvenil e a aproximar-se amiúde de mim
para falar-me ora de uma coisa, ora de outra. Deveis considerar isto como a
meta principal do pacto que ides fazer com ele, assim como eu, Mut-em-
enet, faço um convosco. Pelo que, pois, lhe diz respeito, faço-vos jurar
fidelidade, podendo-se chamar a isso um pacto entre três, entre mim, ti e
ele.” — São estas as palavras — concluiu Dudu — que a senhora me disse,
e transmitindo-tas, ó jovem mordomo, atraí-te à minha delicada confiança,
para que tu ma retribuas. Com efeito, agora melhor entenderás que coisa
significa a minha oferta, de acordo com a qual quero pôr-me cegamente ao
teu serviço, prontificando-me, por amor do tríplice pacto, a andar de um
lado para outro como intermediário secreto para quanto for necessário.
— Está bem, está bem — disse José com voz abafada e com forçada
tranquilidade. — Tenho estado a ouvir-te, superintendente do cofre das
joias, por reverência à senhora que, pelo menos como me compete crer,
falava pela tua boca, e também por respeito a ti, traquejado homem do
mundo, porquanto não me conviria ficar atrás de ti no que se refere a
cálculo frio e puro. Olha, eu não acredito que tu queiras ser temo e
afeiçoado para comigo. Não mo tomes a mal, mas, a falar com franqueza,
acho que tudo isto não passa de arte política, de astuta mentira. Também eu,
amigo, não morro de amores por ti, e é bem limitado o meu entusiasmo pela
tua pessoa; posso mesmo dizer que ela até me repugna. Mas é firme
vontade minha demonstrar-te que não sou menos mundanamente que tu
dono dos meus sentimentos e capaz, por fria prudência, de não ter
consideração a eles. Um homem como eu não pode andar sempre por vias
retas; conforme seja o caso, pode também ter de recorrer a vias torcidas. E
um homem assim pode ter como amigos não somente homens leais, mas
deve também saber servir-se, com mundana frieza, de polidos espiões e
delatores. Por isso trato de não rejeitar a tua proposta, mestre Dudu, e de
boa mente te tomo ao meu serviço. De pactos não falemos: é palavra essa
que não me agrada entre ti e mim, ainda pondo-se de permeio a ama. Mas
podes ir-me contando o que souberes a respeito da casa e da cidade, que eu
tratarei de aproveitar-me de tudo.
— Contanto que tenhas confiança na minha fidelidade — retorquiu o
enfezado —, é-me de todo em todo indiferente que a consideres cordial ou
ditada por política. Não tenho necessidade de amor do mundo: já o tenho
em casa, por parte de minha mulher Zeset e dos meus filhos bem-feitos
Esesi e Ebebi. Mas a magnífica senhora me fez tomar muito a peito o pacto
contigo; ela quer que eu seja uma ajuda, um conselheiro, um mensageiro e
um guia para a tua juventude, e eu, pelo meu lado, timbro em ser ajuda,
conselheiro, mensageiro e guia para a tua juventude, e dou-me por contente
se contares comigo, quer o faças de coração, quer por política. Não te
esqueças daquilo que te disse acerca do desejo manifestado pela senhora de
ser iniciada por ti nos negócios da casa com maior confiança do que a
demonstrada por Mont-kav, e de ver-te frequentemente comparecer diante
dela para uma troca de ideias. Tens aí alguma mensagem para que eu a
transmita em reposta?
— Que eu saiba, não — respondeu José. — A ti te baste teres-te
desincumbido da que te deram, e deixa que eu tome na devida consideração
a que me mandaram.
— Seja como queres. Quanto a mim — disse ainda o anão — posso
completar o meu fiel recado. A senhora deu a entender que hoje à tardinha
quer passear um pouco no jardim para serenar a sua bela alma e que subirá
a colinazinha em direção à tranquila casinha do jardim, para ter aí uma
entrevista com os seus pensamentos. Se te interessa uma palestra com ela,
se queres expor-lhe algum pedido ou dar-lhe notícias, podes valer-te dessa
mercê não comum e ir também tu àquele ameno local para uma audiência.
O senhor Dudu simplesmente mentia pela gorja. A senhora não dissera
nada disto, mas, se José caísse na armadilha, ele queria, continuando com a
sua mentira, atraí-lo à casinha e assim tramar alguma coisa secreta. E não
desistiu do seu propósito, conquanto aquele a quem oferecia a tentação não
lhe houvesse dado ensejo para tanto.
Com efeito, sem apanhar a deixa e sem dar absolutamente a entender se
ia, ou não, aproveitar-se da insinuação, voltou as costas ao intendente das
joias. O seu coração, porém, batia, se não com a velocidade de antes (pois
se recobrara logo), todavia com pancadas fortíssimas, e a história não quer
ou não pode esconder ou negar que ele estava extasiado com o que ouvira
dizer da senhora e também por estar livre de fazer o que entendesse à hora
do pôr-do-sol. Fácil é imaginar como era insistente no seu íntimo a voz que,
num murmúrio, o aconselhava a não comparecer àquele lugar no prazo
marcado; e ninguém se surpreenderá ao saber que esse murmúrio se fez
ouvir também fora e ao lado dele na vozinha familiar de grilo. De feito,
quando ele, afastando-se depois da conversa de Dudu, entrou em casa para
refletir na câmara da confiança, foi exatamente Se’ench-Ven-no£re etc. etc.
, exatamente o pequeno Teófilo-Chepses-Bes, a mandragorazinha em traje
surrado, quem sorrateiramente se meteu com ele dentro da casa e lhe
sussurrou de baixo para cima:
— Osarsif, não faças nada do que te aconselhou o maligno compadre,
não o faças nunca, em nenhum tempo!
— Como? Estás aqui, meu amiguinho? — perguntou José um pouco
surpreso. E depois perguntou em que dobra ou fisga se metera de novo,
visto como parecia saber o que Dudu lhe sugerira.
— Em nenhuma — respondeu o homúnculo. — Mas de longe, coma
minha vista aguda de anão, vi como proibias ao outro de ficar com a mão
em concha diante da boca, mas isso depois de te teres pressurosamente
inclinado para escutar suas secretas confidências. Então a pequena
sabedoria compreendeu que nome ele proferiu.
— Es na verdade um diabinho dum homem! — exclamou José. — E
agora também te introduziste clandestinamente em casa para me dares os
parabéns por uma tão bela mudança das coisas e porque a própria senhora
me mandou o inimigo que durante tanto tempo me acusou diante dela, com
a inequívoca notícia de que finalmente entrei nas suas graças e ela deseja
muito discutir comigo os negócios da casa? Hás de convir em que é uma
esplêndida reviravolta. Alegra-te comigo, porquanto da minha livre vontade
depende o dirigir-me hoje de tarde à audiência no pavilhão do jardim. Isto
me dá enorme gosto.
Não quero com isso dizer que tenha a mínima intenção de ir lá. Falta
ainda muito para que eu me decida a tanto. Mas que isso dependa da minha
vontade e que me seja dada a escolha entre fazê-lo e deixar de fazê-lo — eis
o que me enche de júbilo e deves me dar por isso os parabéns, homenzinho.
— Ah, Osarsif! — suspirou o pequeno — se tivesses intenção de não ir,
seria menor a tua alegria; ela é para a minha pequena sabedoria um sinal de
que estás com vontade de ir.
— Pequena sabedoria é, de fato, como tu dizes — ralhou José; — e
neste caso de nada me serve o teu chiadozinho. Não queres conceder ao
filho do homem o direito de alegrar-se com o seu livre-arbítrio,
especialmente numa coisa com a qual jamais teria pensado que se alegraria?
Recorda comigo o passado, transporta-te ao dia e à hora em que o senhor
me havia comprado, por intermédio do Deificado e este por intermédio do
escrivão Cha’ma’t, ao meu pai do poço, o velho de Madian, ficando só nós
no pátio — eu, tu e a mona. Lembras-te? De repente gritaste para o confuso
rapazinho”Prostra-te por terra!” e sobre os ombros dos mascadores de goma
passou, alta e sublime, diante da casa que me havia comprado, a senhora; e
deixava pender das andas o seu braço de lírio, como vi por entre os meus
dedos, Cega de desprezo, ela cravou o olhar em mim como num objeto, e o
rapazinho, cego de veneração, olhou para ela como para uma deusa. Mas
depois Deus quis e dispôs que eu crescesse durante sete anos nesta casa
como junto a uma fonte, e subi, a despeito de toda a criadagem, até suceder
ao doente dos rins, e fui posto à frente da casa. Assim se engrandeceu em
mim o Senhor, o meu Deus. Só havia uma nuvem escura no disco de minha
felicidade e a um único respeito estava coberto de escórias o seu bronze: a
ama estava contra mim e com ela estavam o reverendo Beknechons, o
homem de Amun, e Dudu, o gnomo casado, e eu já por feliz me dava se ela
me lançava olhares de esguelha, sempre melhores do que nenhum olhar. E
vê tu agora: não é a própria plenitude da minha felicidade, não está ela
completamente livre de escórias agora que os seus olhos se abriram em
relação a mim e ela me faz anunciar a sua graça juvenil e o seu desejo de
falar comigo acerca de negócios em audiência particular? Quando
segredaste ao rapaz “prostra-te em terra”, quem teria pensado que um dia
aquele rapaz disporia de livre escolha entre comparecer ou deixar de
comparecer à audiência? Perdoa-me, amigo, se com isso me alegro!
— Ah, Osarsif, alegra-te depois que tiveres decidido evitar o encontro, e
não antes!
— Carinha murcha, tu começas todas as tuas frases com “ah!”, em vez
de começá-las com “oh!” e com transportes de júbilo. Por que hás de estar
sempre com cismas, por que te entregas à melancolia e vais procurando
novos cuidados? Eu já te disse que estou propendendo mais a não ir ao
pavilhão. Somente, a coisa é um pouco difícil. Enfim, foi a senhora que me
mandou avisar... poder-se-ia até dizer que em primeiro lugar foi ela, tão
importante é esta circunstância. Um homem como eu deve ter prática do
mundo e deve calcular friamente. Tem de pensar no seu proveito e não ser
tão mesquinho que hesite em agarrar pelo cabelo a ocasião que se lhe
apresenta de aumentar aquele proveito. Pensa como valeria para a minha
posição na casa e que precioso apoio seria para mim um pacto com a
senhora e frequentes relações com ela! E depois, dize-me, quem sou eu para
andar julgando com sim ou não o desejo e as instruções da senhora e
sobrepor a elas o meu parecer? Verdade é que fui posto à testa da casa, mas
pertenço à casa, sou um escravo comprado. Ela, pelo contrário, é a primeira
e a verdadeira, é a patroa, e eu devo-lhe obediência. Não há entre vivos e
mortos quem me censurasse o fato de eu executar cegamente e com
fidelidade de servo as suas ordens; mas atrairia sobre mim a censura dos
mortos e dos vivos se me comportasse diferentemente. E claro que eu teria
subido cedo demais ao posto de comando se não houvesse nem sequer
aprendido a obedecer. Por isso começo a perguntar a mim mesmo, meu
pequeno Bes, se tu não tinhas razão quando criticavas a minha alegria pela
livre escolha. Com efeito, talvez nem ao menos me é deixada uma tal
escolha e devo obrigatoriamente achar-me presente à entrevista.
— Osarsif — soou a vozinha —, como não hei de dizer ah, ah e ai de
mim quando ouço sandices da tua boca? Tu eras bom, belo e prudente
quando para cá vieste como sétima mercadoria, e eu bati-me pela tua
compra contra o parecer do maligno compadre, porque a pequena
sabedoria, a pura, reconheceu ao primeiro relance o teu valor e a bênção.
Belo és ainda e no fundo também bom; porém da terceira qualidade é
melhor não falar. Não é uma lástima ouvir-te para quem pensa no passado?
Até hoje eras prudente, eras de uma prudência cândida, infalível, os teus
pensamentos corriam livremente, andavas alegre, de cabeça erguida, sendo
servo somente do teu espírito. Mal, porém, roçou o teu semblante o bafo do
touro que cospe fogo e ao qual o anãozinho tem horror como a nenhuma
outra coisa no mundo, eis que te fazes bronco (Deus se amerceie de ti!),
estúpido como um jumento que se leva pela cidade toda, moendo-o a
pauladas, e os teus pensamentos caminham de gatinhas e deixam a língua
dependurada, sendo servos não mais do teu espírito, mas da maligna
inclinação. Ah! Ah! Que vergonha! Frioleiras, subterfúgios, falsa lógica —
apenas isto têm em mira aqueles indivíduos abjetos, contanto que enganem
o teu espírito com o cativeiro da inclinação. E agora queres enganar até o
anãozinho, adulando-o com deplorável astúcia dizendo-lhe que tivera razão
de censurar a tua alegria pela livre escolha, porque no fim das contas tu não
tens essa livre escolha... Como se não principiasse justamente aí a tua
alegria! Ah, ah, como tudo isso é vergonhoso e miserável além de todo
encarecimento! — E o pequeno Teófilo começou a chorar amargamente,
levando as mãozinhas à cara enrugada.
— Ora, ora, homenzinho — disse José, surpreendido —, consola-te e
não chores mais! Fica-se com pena de ver-te tão desanimado, e isto só por
causa de uma certa lógica falsa que escapou à gente na conversa! Para ti
pode ser fácil seguir sempre um caminho lógico e pensar puramente
segundo o espírito; mas também deves ser bom e não envergonhar-te dessa
maneira lastimável de quem pode facilmente errar e perder uma vez o fio
das ideias. Aí está de novo a tua bondade — disse o pequeno, soluçando
ainda e enxugando os olhos com a desfiada cambraia do seu traje de festa
—, a tua bondade que tem pena das minhas lágrimas de anão. Ah, meu
caro, se tivesses compaixão de ti mesmo e se, com todas as tuas forças,
agarrasses pela fímbria da túnica a prudência, para que te não fugisse no
momento em que mais precisão tens dela! Repara que desde o princípio eu
via estas coisas virem, apesar de não me quereres compreender e de te
admirares do meu receoso cochicho. Desde então previ que das queixas do
maligno compadre diante de Mut, a senhora, podia vir um mal muito pior
do que o mal e qualquer coisa bem mais perigosa do que o perigo. A
intenção dele era fazer mal, porém fez pior do que pensava e abriu
perniciosamente os olhos da pobre mulher em relação a ti, meu amigo bom
e formoso! E tu queres ainda agora fechar os olhos ante o fosso que é mais
profundo que o primeiro em que te lançaram os invejosos irmãos depois de
te terem arrancado, como tantas vezes me contaste, a coroa e o véu?
Nenhum ismaelita de Madian te tirará desse fosso que cavou para ti o
nojento compadre casado, abrindo os olhos da ama em relação a ti. Agora
ela, a santa, requebra os olhos para ti e tu volves os teus para ela, e no
terrível jogo dos olhos está o touro ignívomo que devasta os campos; e no
fim não haverá mais que cinzas e trevas!
— Tu és medroso por natureza, meu homenzinho — retorquiu José —,
e atormentas a ma alminha com visões de pigmeu. Dize-me cá: que
fraquezas estás aí a imaginar com relação à senhora, só porque ela reparou
em mim? Quando eu era rapazinho, presumia que quem quer que me visse
começaria logo a amar-me mais do que a si mesmo. Tão pretensiosozinho
era eu! Foi o que me levou ao fosso, mas agora venci o fosso e a estultícia.
Parece contudo que esta, por minha causa, passou para ti que sonhas com
fraquezas. Até agora a senhora só me tem dirigido olhos de severidade, e eu
só lhe tenho dirigido olhos de veneração. Se ela pretende que eu lhe dê
conta dos negócios da casa e me quer examinar, devo eu interpretar o seu
desejo segundo a presunção que tens por minha causa? Olha que esta
presunção não me lisonjeia, porque tu imaginas que bastaria eu estender o
dedo mínimo à senhora para me ver imediatamente perdido. Mas eu não
ando com tanto medo em relação às minhas coisas e não acho que vou ser,
tão depressa assim, um filho do fosso. Se desejasse entrar em luta com o teu
touro de fogo, julgas que eu seria tão desprovido de armas que não pudesse
enfrentá-lo e agarrá-lo pelas pontas? Na verdade, tu me estás atribuindo
grandes fraquezas. Vai dançar e fazer chocarrices diante das mulheres e fica
tranquilo. Provavelmente não irei ao pavilhão para a audiência. Mas agora
devo refletir a sós, como homem normal, sobre esses assuntos, e pensar
numa acomodação. Tenho de pensar num modo de conciliar prudência com
prudência, de sorte que não ofenda a ama e não cometa ruinosa infidelidade
nem contra os vivos nem contra os mortos nem... Mas tu, anãozinho, não
percebes estas coisas, porque para os filhos deste país a terceira proposição
está contida na segunda. Os vossos mortos são deuses e os vossos deuses
são mortos e vós não sabeis que coisa é o Deus vivo.
Desse modo arrogante falou José ao enrugado anão. Mas não sabia que
ele mesmo, Osarsif, o defunto José, estava morto e deificado? A falar
verdade, ele queria ficar só e sossegado para refletir nisso. Nisso e na
sagrada ideia que dali mana, a ideia da rigidez divina, pronta para receber a
esposa-abutre.

NAS ROSCAS DA SERPENTE

Como é mesquinho, em confronto com a vastidão dos tempos, o lance


d’olhos sobre o nosso próprio passado! E, no entanto, a nossa imaginação,
dirigida para a vida pessoal e íntima, perde-se, em devaneios, nos seus
albores e nas suas distâncias, assim como os olhos da alma, dirigidos com
mais largueza, se perdem nos albores e nas distâncias da vida da
humanidade, comovidos com a averiguação de uma unidade que nela se
repete. Como o próprio homem, nós não podemos remontar ao começo dos
nossos dias, ao nosso nascimento ou ainda antes; o nosso nascimento está
imerso nas trevas antes do primeiro alvor da consciência e da lembrança,
quer se trate de um lance de olhos particular ou de um geral. Mas desde o
começo da atividade do nosso espírito, apenas entrados na vida cultural,
como fizera a humanidade em outros tempos, levando nossa tímida
contribuição, descobrimos um interesse e uma predileção que nos
permitem, com jubilosa surpresa, reconhecer esta unidade e também
comprovar que ela é sempre idêntica a si mesma: é a ideia da prova, a
irrupção de potências desenfreadas, destrutivas e devastadoras, numa
existência disciplinada e dedicada à disciplina, com a fé numa dignidade e
numa felicidade condicionada. O hino da paz conquistada, aparentemente
segura, e da vida que, rindo, varre este edifício artificial e bem-
intencionado, o hino da dominação e da sujeição, da vinda do deus
estrangeiro, foi no princípio e no meio. E numa época posterior da vida, que
simpaticamente se volta para a adolescência da humanidade, nos sentimos
solicitados pelo mesmo interesse antigo, em testemunho dessa unidade.
Também Mut-em-enet, a esposa de Putifar, que possuía uma bela voz
quando cantava, essa figura remota e longínqua que o espírito da narrativa
gentilmente nos concede ver tão de perto, era uma provada, uma vencida,
uma báquica vítima da divindade alienígena, e o artificioso edifício da sua
vida foi violentamente demolido por potências ínferas, das quais ela
pensara, não as conhecendo, poder zombar, porquanto foram exatamente
elas que zombaram das consolações e das ultraconsolações. O velho Hui
podia, quando quisesse, exigir dela que não fosse uma pata nem a ave da
terra negra empapada de água, que, depois de coberta e fecundada pela
força do cisne, grasna na úmida profundidade, mas que fosse uma
sacerdotisa de castidade lunar, o que também não deixa de ser mulheril. O
próprio Hui vivera na pantanosa obscuridade de irmão e irmã e, por um
risível escrúpulo de consciência diante da novidade que pressentira no
mundo, havia mutilado o filho para fazer dele um cortesão da luz. Sem
interrogá-lo, tinha-o esvaziado até reduzi-lo a um zero humano e assim o
dera por severo marido à mulher com o nome da primeira mãe. Lá se
aviessem eles depois quanto ao modo de conservar com delicadas atenções
a dignidade recíproca. É inútil negar que a dignidade humana se realiza em
ambas as modificações sexuais da masculinidade e da feminilidade, de sorte
que, quando não se representa nenhuma das duas, já não há motivo para
procurar aí o que é humano; e então donde deve vir a dignidade humana?
As tentativas que se fazem para sustentar esta dignidade são sumamente
dignas de apreço, porque nelas se trata de alguma coisa de espiritual e por
conseguinte (devemos lealmente admiti-lo) de alguma coisa de
eminentemente humano. A verdade, porém, por amarga que seja, exige a
confissão de que tudo aquilo que é espírito e pensamento, não pode suster-
se a não ser mal, com grande fadiga e só durante algum tempo breve, contra
aquilo que é eterno e natural. Quanto são impotentes os conceitos de honra
dos costumes contra a profunda, obscura e silenciosa consciência da carne,
com quanta dificuldade esta se deixa enganar pelo espírito e pelo
pensamento — já vimos nos albores desta história, a propósito da confusão
de Raquel. Mut, porém, a sua principesca irmã cá do Egito, em
consequência da sua união com o camarista do sol, estava tão distante do
aspecto feminino da vida humana como Petepré o estava do masculino. Ela
levava dentro do seu sexo a mesma existência vazia e carnalmente
desonrada que Petepré levava dentro do seu. E a honra divina com que ela
pensava compensar, e mais ainda que compensar, a obscura noção que tinha
de tudo aquilo era uma coisa tão espiritual e frágil como as satisfações e
ultrassatisfações que o seu anafado marido a si próprio proporcionava com
a sua vigorosa atitude de domador de cavalos e de caçador de hipopótamos
e com um valor que José soubera, com atilada lisonja, decantar-lhe como
constituindo a verdadeira virilidade. Mas, afinal, aquele valor era
ostentação, e no fundo, quando Petepré se achava no deserto ou no paul,
sentia constantemente saudade da sua biblioteca — portanto, saudade do
espiritual na sua pureza e não na sua aplicação.
Mas aqui não se trata de Putifar, mas de sua Eni, a sacerdotisa de Amun,
e do dilema — honra do espírito e honra da carne — diante do qual ela,
temerosa, se via colocada. Dois olhos negros, vindos de longe, os olhos de
uma suave mulher excessivamente amada, haviam-na enfeitiçado; e a
comoção produzida nela por aqueles olhos não era substancialmente outra
coisa senão a ânsia, brotada no último ou no penúltimo momento, de salvar,
ou melhor, de recuperar a sua honra carnal, a sua humanidade feminina, o
que, porém, significava o sacrifício da sua honra espiritual e religiosa, de
todos os elevados pensamentos sobre os quais estava fundada há tanto
tempo a sua existência.
Detenhamo-nos aqui um instante e reflitamos bem. Reflitamos com ela,
que dia e noite pensava no assunto com crescente tormento e agrado. Houve
dilema e a vítima foi desonrada, despojada de sua santidade? E esta a
questão. Consagração é a mesma coisa que castidade? Sim e não.
Efetivamente, no noivado certos contrastes se eliminam, e o véu, esse sinal
da deusa do amor, é ao mesmo tempo o sinal da castidade e do seu
sacrifício, o sinal da monja e também da meretriz. Aquela época e seu
espírito sacerdotal conheciam a consagrada e imaculada, a “Kedecha”, que
era uma “sedutora”, isto é, uma rameira da estrada. Seu era o véu,
“imaculadas” eram estas “Kadichtu” como o é o animal que, justamente
pela sua alvura, é destinado a ser sacrificado à divindade na festa.
Consagrada? A quem e para que fim? E esta a questão. Quando se é
consagrada a Istar, a castidade é apenas uma fase do sacrifício e um véu
destinado a ser rasgado.
Temos refletido aqui com os pensamentos dos apaixonados em luta, e se
o anãozinho Teófilo, estranho e ansiosamente avesso ao sexo como era,
estivesse à escuta, teria certamente chorado com a miserável astúcia destes
pensamentos úteis à inclinação e não ao espírito. Ele podia chorar com
facilidade, porque não passava de um truão dançarino e nada sabia da
dignidade humana. Mas para Mut, a senhora, tratava-se da honra da sua
carne, e por isso ela procurava na mente pensamentos nos quais a honra da
carne se conciliasse o mais possível com a do espírito. Ela merecia, pois,
indulgência e simpatia, embora seus pensamentos fossem um tanto
interesseiros; é que é raro não se misturar aos nossos pensamentos alguma
ponta de interesse. Além disso, ela era extraordinariamente atormentada
pelas suas reflexões; efetivamente, o seu despertar para a feminilidade,
depois de imersa no sono sacerdotal dos sentidos, próprio das damas do
tempo, não se assemelhava àquele antigo despertar alegórico da filha do rei,
cuja paz infantil foi despertada para o tormento e a delícia de um amor
provocado pela vista de uma majestade celeste. Ela não teve a fortuna, a
bem dizer, fatal, de enamorar-se muito acima da sua condição (que condena
uma pessoa no fim a aceitar as indizíveis angústias do ciúme e até a
transformação em vaca); coube-lhe a desdita (segundo as suas ideias) de
enamorar-se muito abaixo da sua condição e de sentir que quem nela ateava
o amor era um escravo, um filho de ninguém, um objeto humano, um servo
asiático. Isto exasperava a sua altivez muito mais amargamente do que a
história até agora nos soube contar, e durante muito tempo a impediu de
confessar a si mesma os seus sentimentos. Quando depois progrediu tanto
que pôde fazê-lo, à ventura que o amor sempre proporciona se misturou um
elemento de humilhação que, com fundamento na mais baixa crueldade,
pode estimular tão terrivelmente o desejo. Os argumentos especiosos com
que procurava justificar sua humilhação giravam em torno da ideia de que a
“kedecha” e prostituta do templo não tinha direito de escolher seu amante:
seu corpo pertencia ao primeiro que lhe arrojasse ao regaço a paga. Mas
como era fraca essa justificação e quanta violência fazia ela a si mesma
atribuindo à sua pessoa um papel tão passivo! Realmente, ela era a parte
que escolhia, que procurava o homem, conquanto sua eleição amorosa não
fosse de todo espontânea, mas provocada pelas queixas de Dudu. Ela era a
parte empreendedora tanto por ser mais avançada em anos como pela sua
posição de ama, a qual, nesta qualidade, se achava naturalmente na
condição de poder provocar o assalto e o desafio do amor. Não era possível
que o desejo e a primeira vontade tivessem partido do escravo, e que ele por
sua própria iniciativa tivesse levantado os olhos para ela, de maneira que
houvesse sido ela a que o seguia e lhe obedecia e o sentimento dela fosse a
humilde resposta ao dele. Isso nunca. Sua altivez queria para si neste
negócio a parte, por assim dizer, masculina, o que, entretanto, não
conseguiu integralmente. Por mais que ela tivesse querido acomodar as
coisas à sua feição nem por isso o jovem criado, conscientemente ou não,
com a sua pessoa e a sua presença, deixara de arrancar sua feminilidade do
sono em que se achava cativa; assim, talvez sem suspeitá-lo nem querê-lo,
tomara-se ele o amo de sua ama, a tal ponto que, no pensamento, ela era a
serva, com todas as suas esperanças suspensas dos olhos do mancebo,
ansiosa que ele notasse seu desejo de pertencer-lhe e trêmula, não obstante,
de que por fim correspondesse a seus inconfessáveis anelos. Mistura terrível
de humilhação e doçura! Ela, porém, procurava atenuar essa humilhação.
Por outro lado, o estímulo de amor que na verdade não é determinado nem
por valor nem por dignidade arde no desejo de possuir a justificação do
mérito e, para encarecer a dignidade do seu objeto, vale-se de todos os
recursos. Por isso ela procurava erguer da servidão o criado para o qual
queria ser a ama no amor, encarecendo para si mesma o seu porte elegante,
a sua prudência, a sua posição na casa, opondo esses predicados à vileza da
sua origem. E até, esporeada por Dudu, procurava valer-se da religião, e,
para coonestar sua inclinação à “servidão do desejo”, como diria o vizir da
troça, foi contra o severo Amun, até então seu senhor, invocando Atum-Rá
de On, a divindade benigna, favorável à expansão e propícia aos países
estrangeiros. Destarte ela pospunha ao seu amor a corte e o próprio poder
real, o que tinha ainda para a sua consciência caviladora a vantagem de
aproximá-la espiritualmente de seu marido, o amigo de Faraó, o cortesão, e
de, em certo sentido, fazer participante de seus apetites justamente aquele
que ela cada vez mais ardentemente desejava enganar.
Assim lutava Mut-em-enet, presa nos laços do próprio desejo como nas
roscas de uma serpente enviada por um deus, a qual a aferrava,
comprimindo-lhe a respiração e fazendo-a sair como um arquejo. Agora
convém lembrar que ela tinha de lutar sozinha e sem ajuda e que, com
exceção de Dudu, com o qual tudo se limitava a meias-palavras não-
confessáveis, não podia desabafar com ninguém, pelo menos nos primeiros
tempos, porque mais tarde passou por cima de todos os obstáculos e fez
todas as pessoas que a cercavam participantes do seu frenesi. Convém
lembrar ainda que ela, com o ardor do seu sangue, foi topar com um jovem
que era objeto de zelos e se devotava a altos propósitos, trazendo nos
cabelos uma erva da fidelidade e do orgulho, numa palavra, da eleição, e
portanto não queria nem podia sucumbir aos seus atrativos. Convém
lembrar por fim que esse tormento durou três anos, do sétimo ao décimo
ano da estada de José em casa de Putifar, e que ainda então não foi aliviado
mas apenas morto; e se há de admitir que “a mulher de Putifar”, aquela que
a voz do vulgo aponta como a sedutora impudente, o engodo do mal, teve
um destino bem triste, e se lhe dedicará alguma simpatia considerando-se
que os instrumentos da prova trazem consigo a própria punição e são mais
feridos do que deveriam ser, dada a necessidade de sua existência.
O PRIMEIRO ANO

Três anos: no primeiro, ela procurou dissimular-lhe o seu amor; no


segundo, deu-lho a conhecer; no terceiro, ofereceu-lho.
Três anos durante os quais devia ou podia vê-lo todos os dias, porque
viviam um ao lado do outro debaixo do mesmo teto, o que significava
cotidiano alimento para a loucura e para ela ocasião muito propícia e ao
mesmo tempo grande tormento. No amor, efetivamente, a questão de dever
e de poder não é tão simples como no sono, nem ainda como no último
sono, no qual José, para contentar Mont-kav, tinha posto nos seus discursos
tranquilizadores o “poder” no lugar do “dever”. E antes um tremendo
conflito, cheio de angústia e confusão, que divide a alma de uma maneira
desejada e maldita, de sorte que o amante maldiz a obrigação de ver com a
mesma sinceridade com que bendiz a venturosa permissão de ver. E quanto
mais violenta é a sua angústia pela última vez que viu, com tanto mais afa
deseja a próxima oportunidade de agravar sua enfermidade. E isto mais
ainda quando o paciente tinha motivo para se alegrar de que a dor se ia
tomando menor. Porque pode mesmo suceder que um encontro mareie um
tanto o brilho do objeto desejado e ocasione um certo desencantamento,
uma tal ou qual frieza. Isto devia ser uma circunstância apetecível para o
amante, porque com o minguar da sua própria paixão, arrefecendo o desejo,
tem ele um crescente poder de triunfar de si mesmo e de transmitir a outrem
o que ele próprio sofre. Devia ser este o resultado se uma pessoa fosse
senhora de sua paixão e não vítima desta, pois suas probabilidades de
vencer a outrem sobem muito de ponto com o esfriar de seus próprios
sentimentos. Mas o amante não quer ouvir falar em nada disto; as vantagens
da volta da sensatez, da frieza e da ousadia (porque são vantagens para a
consecução de uma meta, a mais alta que se conhece), ele as reputa por
nada comparadas com a perda que imagina irá sofrer com a diminuição do
seu sentimento. Esta diminuição o atira num estado de desolação e
vacuidade comparável ao que pode causar a subtração da droga ao que
procura entorpecer-se, e com todas as forças trata de restabelecer, com
novas e inflamadas impressões, o estado anterior.
Assim acontece com “dever” e “poder”, em se tratando da loucura do
amor, que entre todas as loucuras é a maior, de modo que por aí se pode
melhor avaliar a natureza da loucura e a relação da sua vítima com ela. Com
efeito, quem com ela anda às voltas, por mais que gema debaixo do
domínio da sua paixão, não só é incapaz de desejar libertar-se dela, senão
que é incapaz até de querer desejá-lo. Ele sabe muito bem que, se estivesse
muito tempo sem vê-la, dentro de um prazo que talvez fosse até
vergonhosamente breve, se libertaria da sua paixão; mas justamente isto,
exatamente o esquecimento é o que a ele aborrece mais que tudo, como de
resto toda dor, causada por uma despedida, se funda sobre a secreta
previsão do inevitável esquecimento, pelo qual, uma vez que sucedeu, já
não se pode sentir dor, e por isso é ele deplorado por antecipação. Ninguém
viu o semblante de Mut-em-enet quando ela, após a luta infrutífera com
Putifar no sentido de que fosse expulso José, apoiada à coluna, escondia a
face entre as dobras do seu manto. Mas tudo faz crer que, enquanto ela a
ocultava, estava radiante de alegria, porque também no futuro lhe seria dado
ver aquele que despertara o seu amor, e assim não lhe seria dado ter de
esquecê-lo.
Para ela era este o nó da questão. Com violência especial detestou a
separação e o esquecimento que fatalmente se seguiria, a morte do seu
amor. As mulheres chegadas a seu grau de madureza, cujo sangue
tardiamente despertado teria ficado talvez para sempre adormecido sem um
concurso de circunstâncias extraordinárias, se abandonam com ardor pouco
comum a seu sentimento, o primeiro, o último, e prefeririam morrer a trocá-
lo pelo antigo sossego, que agora chamam desolação. Tanto mais digno de
elogio é o fato de que a sisuda Mut havia feito o possível para obter do
inerte marido o afastamento do objeto da sua paixão. Teria feito ao esposo o
sacrifício do seu sentimento, se a prova de afeto que lhe solicitava pudesse
ser arrancada a uma natureza corno a dele. Mas era impossível comover
esse homem e sacudir sua inércia, porque da cabeça aos pés ele era
comandante nominal das tropas. E, para dizer a derradeira palavra sobre a
verdade, no seu íntimo Eni sabia de tudo isso de antemão, com isso
contava, de modo que no fundo a sua luta leal com o esposo era somente
um preparativo para poder, com a recusa deste, propiciar liberdade à sua
própria paixão e ao seu inevitável destino.
Realmente, depois do encontro conjugal na sala de recepção sombreada
pelo crepúsculo, Mut podia-se considerar livre; e se, ainda muito tempo
depois, ela punha um freio à sua vontade, isto sucedia antes por altivez que
por senso do dever. A atitude em que se manteve quando, no dia dos três
colóquios, à hora do pôr-do-sol, foi ao encontro de José no jardim, aos pés
do templozinho do repouso, era de perfeita majestade, e só olhos muito
penetrantes poderiam, por um momento, divisar neles fraqueza e ternura.
Dudu executara com grande atilamento e solércia o seu planinho
secreto. Deixando José, fora outra vez ter com a senhora e lhe anunciara
que o novo mordomo, jubilosamente desejoso de lhe dar conta dos negócios
domésticos, ligava muita importância a que o seu encontro se desse em
caráter particular, sem que fossem perturbados, no lugar e na hora que a ela
aprouvesse. Além disso, José tinha manifestado a intenção de, ao
entardecer, ir à casinha do templo no jardim para inspecionar o mobiliário e
os afrescos e ver se tudo estava em bom estado de conservação. Dudu dera
essa segunda notícia independentemente da primeira, depois de ter dito,
entre uma e outra, coisas bem diversas, e com a sua costumada maneira
hábil deixara à senhora o cuidado de ligar uma com outra. Mas o seu bem
engenhado plano não impedira que por aquela vez a trama não desse
resultado completo, porque as duas partes se contentaram com meios
passos. José, com efeito, descobrira e adotara, entre as alternativas que se
ofereciam à sua livre escolha, um meio-termo, e, sem visitar o templozinho,
apenas dava um giro pelo montículo, pelo jardim, para verificar, como em
qualquer caso poderia, ou melhor, deveria fazer, se tudo estava em ordem
nas árvores e nos canteiros floridos. Mut, a senhora, do seu lado, não sentia
vontade de subir à colinazinha, mas tampouco, depois das notícias que de
passagem o anão lhe sussurrara ao ouvido, via motivo para desistir da
intenção — que, como seguramente ela se recordava, já tivera desde o
começo — de ir naquela tarde por um breve espaço de tempo, à hora do
pôr-do-sol, ao jardim de Petepré, para ver as cores purpúreas do céu
espelharem-se no tanque dos patos, e, naturalmente, segundo o seu
costume, em companhia de duas donzelas que a seguiam de perto.
Desse modo o jovem mordomo e a senhora se encontraram sobre a areia
vermelha da alameda. Seu encontro deu-se da seguinte maneira: José, ao
ver as mulheres, mostrou um terror sagrado, formou com a boca um
respeitoso “Oh!” e com as mãos erguidas, com zumbaias e com os joelhos
ligeiramente dobrados começou a recuar. Mut, por seu lado, com a boca
sinuosa, por cima da qual os olhos continuavam severos, se não sombrios,
deixou escapar um fugitivo “Ah!”, sorrindo um pouco, com uma expressão
de vaga surpresa. Prosseguiu o seu caminho, deixando que ele desse para a
retaguarda dois ou três dos seus passos cerimoniosos, depois, com um leve
movimento da mão voltada para a terra, lhe fez sinal que parasse. Ela
também parou e atrás dela pararam as donzelas trigueiras, cujos olhos,
alongados com o pincel, estavam radiantes de alegria, como acontecia a
qualquer dos servos da casa que visse José. Dos seus cabelos pretos e
lanosos, arrumados em franjas, sobressaiam os grandes discos de esmalte
dos brincos.
Não era aquele um encontro que pudesse causar desilusão a qualquer
dos dois que se defrontavam. A luz caía oblíqua, banhando o local de
colorido e beleza; mergulhava em tons de intensa variedade aquele cenário
— o jardim com o quiosque e o tanque rodeado de juncos—, iluminava,
esbraseando-o, o vermelho do caminho, tauxiava de rubro as flores, punha
cintilações na folhagem buliçosa e dava aos olhos das criaturas humanas
uma luz de espelhos, como a da superfície do tanque sobre o qual os patos
do país e exóticos pareciam patos celestes, não-naturais, como que pintados,
envernizados. Os seres humanos também pareciam pintados e celestiais a
essa luz, como que purificados de qualquer sombra de necessidade ou de
imperfeição; não só no fulgor dos seus olhos mas em toda a sua figura
semelhavam deuses e estátuas tumulares, aformoseados com o favor
daquele brilho, e podiam gozar um com a vista do outro quando, com olhos
que reverberavam uns nos outros, fitavam reciprocamente as faces
harmoniosamente sombreadas.
Mut sentia-se ditosa de contemplar plenamente aquele que ela sabia que
amava. O enamorado, sempre ávido de justificação, é sempre de pasmosa
sensibilidade em relação a qualquer desvantagem sofrida pela imagem da
pessoa amada, e, por outro lado, sente-se agradavelmente radiante com tudo
que favoreça a ilusão. E se a beleza de José, sobre a qual ela vela por amor
à sua própria honra, lhe causa também uma grande dor porque pertence a
todos, é visível a todos e faz continuamente temer a rivalidade de todos,
essa dor não deixa de lhe ser cara sobre qualquer outra coisa, e ela aperta
com força ao peito a espada que a fere, receosa somente de que se lhe
embote o gume com algum escurecimento e dano dessa imagem. Ademais,
Eni podia jubilosamente concluir diante da formosura de José que ela
também estava aformoseada e podia esperar que o amado, por sua vez, a
achasse bela, conquanto a luz plena do dia pudesse revelar que ela já não
era como na sua primeira juventude. Não saberia ela acaso que o comprido
manto de lã branca que usava (estava próximo o inverno) atirado aos
ombros, fechado apenas com um broche por cima do vasto afogador que lhe
adornava o pescoço, tomava mais majestosa a sua pessoa, e que os seus
seios forçavam com rijeza juvenil a cambraia do vestido justo, orlado de
avelórios vermelhos à altura dos tornozelos? Olha-o, Osarsif! Esta capa
estava segura sobre os ombros por cintas munidas de fivelas, e Mut bem
sabia que não só deixava livres os braços torneados como se fossem obra do
buril, mas permitia ainda distinguir perfeitamente a linda forma das suas
maravilhosas pernas. Não era esta uma razão bastante para o seu amor
trazer bem ereta a cabeça? Era o que ela fazia. Fazia-o por arrogância, como
se lhe fosse penoso erguer as pálpebras e como se tivesse de atirar a cabeça
para trás para poder olhar por baixo delas. Sabia — e ainda mal que o sabia
— que o seu rosto, emoldurado por um lenço cor de ouro fosco, com um
largo diadema de pedrarias coloridas que não cingia a cabeça toda, já não
era um rosto juvenil e que, com suas faces sombreadas, seu nariz em sela,
sua boca de comissuras marcadas, era excepcional e despótico. Só a ideia
de que sua palidez ebúrnea devia avultar esplendidamente as duas joias dos
seus olhos pintados lhe infundia a segura esperança de que não seria
prejudicado o efeito dos braços, das pernas, dos seios.
Pensando com altivez e ansiedade na sua própria beleza, ela
contemplava a beleza do filho de Raquel, trajando à moda egípcia, a qual,
apesar de toda a sua nobreza, se adaptava comodamente aos trabalhos do
jardim. A cabeça de José patenteava bastante trato, estava envolvida num
lenço preto de seda achamalotada, lembrando uma cabeleira a terminar em
anéis; debaixo do lenço, ao lado da orelha, aparecia, dando impressão de
especial esmero, uma pontinha do capuz de pano branco que trazia por
amor ao asseio. Além da cabeleira, do rolar, do bracelete esmaltado e da lisa
corrente de cana e ouro com o escaravelho que lhe caía sobre o peito, usava
em roda dos quadris esbeltos apenas um duplo saiote que lhe descia até os
joelhos e era de talho muito elegante e cuja alvura nitente fazia sobressair
agradavelmente a cor do seu torso adornado, que a luz oblíqua sombreava
de um tom brônzeo. Aquele corpo jovem, de proporções tão perfeitas, ao
mesmo tempo delicado e vigoroso, refrescado pela aragem e iluminado com
as cores do poente, parecia pertencer não ao mundo da carne, mas ao
mundo mais puro dos pensamentos de Ptach. O rosto, com os olhos
inteligentes, conferia-lhe o acento da espiritualidade, e a união da cabeça
com o corpo tomava agradável a fusão da beleza e da sabedoria, tanto para
ele como para os que o viam.
Do fundo da altiva e ansiosa consciência que possuía de sua pessoa, a
mulher de Putifar contemplava esses traços escuros e grandes em
comparação com os seus, a noite amiga dos olhos de Raquel, cuja
intensidade subia de ponto no filho com uma expressão de viril inteligência;
viu ao mesmo tempo o tom dourado e brônzeo de seus ombros, o braço
delgado com a mão que sustentava o bastão de passeio e cuja flexão
mostrava a musculatura de um modo moderado e humano. Uma ternura
maternal, admirativa, uma profunda emoção que sua angústia de mulher
provocava até convertê-la num entusiasmo desesperado arrancaram-lhe um
soluço de suas mais íntimas profundezas, tão aflitivo e violento que seus
seios estremeceram visivelmente sob o fino tecido que os modelava. Não
lhe restava senão confiar na majestade do seu porte; havia de tomar o
soluço tão inverossímil a ponto de induzir José a não acreditar na sua
realidade, apesar de toda a evidência. Eis aí as condições em que teve de
filar-lhe. Dominou-se por meio do triunfo da vontade, que a encheu de
vergonha por causa do heroísmo que se lhe fazia necessário.
— Umas desocupadas escolheram muito fora de propósito o instante de
tomar este caminho, reconheço-o — disse ela com voz clara —, já que
perturbam no exercício de suas funções aquele que está à testa da casa.
— Por cima da casa — respondeu José prontamente — não existe senão
tu, senhora, e estás por sobre ela como a estrela matinal e vespertina a que
no país de minha mãe chamam Istar. Ela também é ociosa, como tudo que é
divino, e para seu aprazível resplendor nós outros, os extenuados do
trabalho, erguemos os olhos para nos sentirmos reanimados.
Com um gesto da mão e um sorriso de indulgente aprovação ela lhe
agradeceu, ao mesmo tempo encantada e ofendida por sua maneira de
menino mimado de fazer seu cumprimento mencionando logo sua mãe,
totalmente desconhecida no lugar; além disso, ralada de ciúmes ao pensar
nessa mãe que o havia dado à luz, havia cuidado dele, havia-o chamado
pelo nome, guiara seus primeiros passos, lhe alisara os cabelos afastando-
lhos da testa e o beijara na pureza de um amor puro.
— Vamos retirar-nos — disse —, eu e as ancilas que me acompanham,
hoje como sempre, para não reter o superintendente, sem dúvida desejoso
de certificar-se, antes de cair a escuridão, de que o jardim de Petepré está
em bom estado, e que talvez queira também inspecionar o pavilhãozinho
sobre a colina.
— O jardim e seu templozinho — volveu José — pouco me importam
desde o momento em que me encontro diante de minha ama.
— Parece-me que sempre deviam importar-te e ser objeto dos teus
cuidados, acima de qualquer outra coisa — retrucou-lhe (espantosa doçura,
cheia de perigos, a de falar-lhe, dizer-lhe “a mim”, “a ti”, “tu”, “eu”, lançar
através dos dois passos de distância que os separavam o sopro da palavra
que cria o vínculo e a conjunção) —, pois de sobra se sabe que eles são
origem da tua fortuna. Ouvi dizer que a princípio foste designado para o
pavilhão na qualidade de servo mudo, e que o olho de Petepré pousou sobre
ti pela primeira vez quando fazias “cavalgar” as flores no jardim.
— Assim foi. — Ele riu e a despreocupação desse riso traspassou o
coração de Mut. — Foi exatamente como dizes, nobre dama. Eu fazia as
vezes do vento junto às palmeiras de Petepré, de acordo com as instruções
do charlatão que chamam... já não sei como, ou melhor, não me atrevo a
repetir seu nome diante de ti, pois é um nome vulgar, ridículo, não feito
para o teu ouvido de dama...
Mut olhou, sem sorrir, para o gracejador. Evidentemente, este não
suspeitara quão pouco ânimo tinha ela para gracejar, nem por que suas
disposições a alheavam disto, era coisa conveniente e necessária, mas ao
mesmo tempo penosa; talvez José considerasse a sisudez com que a ama
vedava o gracejo como um resto da hostilidade que ela lhe mostrara noutros
tempos, mas o importante é que a notara.
— Segundo as instruções do jardineiro — prosseguiu —, eu, neste
jardim, ajudava o vento quando o amigo de Faraó apareceu e me ordenou
que falasse; e como a sorte me bafejou então, aquela hora foi o ponto de
partida de muitas coisas.
— Os homens — acrescentou ela — viveram e morreram muito a
propósito para ti.
— O Invisível tudo pode — respondeu-lhe o mancebo, valendo-se de
uma designação do Altíssimo que não podia ofender melindres. —
Glorificado seja o seu nome! Mas com frequência pergunto a mim mesmo
se não me favoreceu além dos meus méritos, pois minha juventude me dá
um pouco de medo, secretamente, por causa das funções que me foram
cometidas e porque exerço as funções de intendente e decano dos servidores
da casa, embora não conte muito mais de vinte anos. Expresso-me sem
rodeios diante de ti, ilustre dama, conquanto não sejas a única pessoa que
me escuta, tendo vindo ao jardim acompanhada de duas damas de honor,
como tua posição exige. Elas também me escutam e sabem agora para bem
ou para mal que o intendente deplora sua juventude e duvida se está
bastante maduro para exercer seu cargo. Não importa. Sou obrigado a
aceitar sua presença, e esta não há de diminuir minha confiança em ti, dona
de minha cabeça e de meu coração, de minhas mãos e de meus pés.
Há certa vantagem em estar uma pessoa enamorada de um homem
obscuro que à amada se acha sujeito, porquanto seu estado o obriga a
empregar uma linguagem que a encanta, por pouco que essa linguagem seja
a expressão de seu verdadeiro pensamento.
— E claro que não passeio sem companhia, coisa impossível —
retorquiu ela, em atitude ainda mais imperiosa. — Não obstante, podes falar
sem temor de comprometer-te diante de Hezes e Me’et, minhas seguidoras.
Seus ouvidos são meus ouvidos. Que querias dizer?
Apenas isto, senhora: minhas atribuições são mais numerosas do que os
meus anos, e o teu servo não teve de estranhar (e até, com toda a equidade,
teve de achá-lo justo) que sua rápida ascensão à mordomia não fosse bem
acolhida unanimemente e suscitasse algum descontento na casa. Tive um
pai, o Osíris Mont-kav, que na bondade de seu coração me alçou. Quisesse
o Invisível que Mont-kav ainda vivesse, pois minha juventude se
encontrava bem melhor e podia dar-se por feliz quando era eu a sua boca e
o seu braço direito, o que não se dá agora que ele transpôs as portas
misteriosas para chegar às paragens miríficas em que residem os senhores
da eternidade. E eis-me aqui só, com mais deveres e preocupações do que
os anos que conto, não tendo ninguém no mundo com quem possa tomar
um conselho que supra minha inexperiência, para ajudar-me a levar o fardo
que me verga para o solo. Longa vida e saúde para Petepré, nosso ilustre
senhor; porém todos sabemos que de nada se ocupa a não ser de comer e
beber, e de domar audazmente o hipopótamo do Nilo; e quando dele me
aproximo com minhas contas e registros, me diz”Bom, bom, Osarsif, meu
amigo, está muito bem. Tuas notas me parecem exatas, pelo que vejo, e
suponho que não tens intenção de lesar-me, pois sabes o que é o pecado e
sentes quão vil seria iludir-me. Não me aborreças, pois!” Assim fala o
senhor na sua grandeza. Bendito seja ele!
Depois deste desabafo, pairou a sombra de um sorriso no semblante de
Mut. Era uma traiçãozinha que ele cometia, conquanto afetuosamente
respeitosa, uma débil tentativa para criar um acordo com ela, passando por
cima do amo. Acreditava poder obrar assim sem prejuízo do seu pacto.
Largo tempo ainda julgou poder impunemente aventurar-se até tal e tal
ponto. Todavia o sorriso de conivência esmoreceu, o que ao mesmo tempo
lhe foi agradável e o feriu um pouquinho Continuou:
Mas eu sou jovem e estou só, com uma infinidade de problemas e de
encargos que se me apresentam, relacionados com o rendimento e o
comércio, o mantimento e as utilidades. Aqui onde me vês, ilustre dama
minha cabeça está repleta das preocupações que acarreta a quadra da
sementeira. As águas se retiram e a bela festa do luto se avizinha, durante a
qual lavramos a terra e envolvemos o deus nas trevas, escondendo no sulco
a cevada e o trigo. Uma pergunta passa e torna a passar pela cabeça de teu
servo: não deveríamos inovar, plantando nos campos de Petepré, isto é, na
ilha do rio, em vez de cevada, muito mais trigo que até agora? Falo do
sorgo, o trigo mouro, o branco, pois já temos plantado muito trigo preto
para obter forragem; sacia os cavalos e faz bem aos bois, mas o interesse da
novidade está em saber se não deveríamos cultivar o branco em maior
escala e em plantá-lo em grandes superfícies para a alimentação dos
homens, a fim de que todas as pessoas da herdade se alimentem com bom
pão em vez de fazê-lo com uma papa de cevada e lentilhas, e assim possam
nutrir-se convenientemente. A polpa de suas películas é muito farinhenta e a
substância da terra se encontra em seu fruto, de sorte que o trabalhador não
terá necessidade de consumir uma quantidade tão grande como no caso da
cevada e das lentilhas, e se fartará mais rapidamente e melhor. Não saberia
dizer até que ponto estas coisas me andam pela cabeça, e, quando vi que
vinhas, senhora, esta tarde, pelo jardim, com tua companhia, pensei e disse
comigo como se com outro falasse”Como sabes, estás só na tua
inexperiência diante das preocupações da casa e não tens ninguém a quem
possas comunicá-las,já que o senhor de nada se ocupa. Mas ali está a
senhora, que se adianta com toda a sua beleza, seguida de duas camareiras,
como sua posição exige. Tem confiança nela e fala-lhe desta inovação;
saberás seu parecer e com seus bons conselhos socorrerá tua juventude.”
Eni enrubesceu, ao mesmo tempo prazerosa e aflita. Não entendia nada
em matéria de trigo mourisco e nenhum conselho podia dar quanto à
oportunidade de se intensificar seu cultivo. Disse, um tanto turbada:
— Este problema merece um exame, é evidente. Quero pensar nele. O
solo da ilha é propício a tal inovação?
Com que competência minha nobre senhora se informa — replicou José
* e como entra logo no âmago da questão! Ao solo não faltam virtudes,
porém de antemão e mister precaver o espírito contra os fracassos do
começo. Os lavradores ainda não sabem cultivar bem o trigo mourisco para
tomá-lo comestível e só conhecem a cevada para a forragem. Imagina a
ilustre dama quantos esforços são necessários para orientar a gente e fazê-la
trabalhar com a enxada, segundo o requer o cultivo do trigo mourisco, e
para que compreendam que o branco não tolera o joio como o preto? Por
pouco que descuidem de tirar os brotos das raízes, obtém-se forragem, mas
não alimento.
— Deve, sem dúvida, ser difícil com gente bronca — disse ela, e
empalideceu, enchendo-se de inquietação.
Nada sabia dessas coisas e sua perturbação era grande, vendo-se
obrigada a dar uma resposta prática, depois de ter pedido que ele a
informasse acerca do domínio. Sua consciência enchia-se de vexame diante
do servo; sentia-se extremamente humilhada por ele lhe falar de coisas
confessáveis e honestas, tais como a produção de alimentos próprios para o
consumo dos homens, quando ela não sabia e não queria nada, senão que
estava enamorada dele e o desejava.
— Difícil, sem dúvida — repetiu com dissimulado tremor. — Mas é voz
comum que és exímio em obter das pessoas serviços leais e i exata
observância de seu dever. E provável que também consigas ensinar-lhes
esta novidade.
O olhar de José deu-lhe a entender que ele não tinha escutado suas
palavras, e com isso se regozijou, ao mesmo tempo que se sentiu
terrivelmente fenda. Estava ele engolfado numa verdadeira meditação sobre
os problemas econômicos.
— As partículas desse trigo — prosseguiu José — são mui firmes e
flexíveis. Com elas se farão excelentes escovas e vassouras. De modo que,
mesmo que a colheita venha a ser ruim, sempre se terão objetos quer
utilizáveis em casa, quer vendíveis.
Mut calou-se, penalizada e mortificada, notando que o jovem não
pensava nela, visto como seu espírito estava voltado para as vassouras.
assunto mais honesto que seu amor. Reparou José naquele silêncio e,
receoso, disse, com aquele sorriso que lhe ganhava os corações:
— Perdoa, senhora, esta insignificante conversa com que corro o risco
de aborrecer-te. A culpa disto é o meu isolamento, a minha inexperiência
ante as responsabilidades, e por isso foi que me senti tão fortemente tentado
a falar contigo a respeito.
— Nada há que perdoar — respondeu ela —, a coisa é importante e a
possibilidade de fabricar vassouras diminui os riscos. Nisto pensei, mal me
falaste na inovação, e continuarei a pensar no assunto.
Como suas pernas se recusavam a sustê-la tranquilamente, sentiu a
necessidade de partir, de afastar-se de José, que, apesar disso, lhe era mais
caro que tudo. E a velha contradição dos apaixonados: ao mesmo tempo
procurar e evitar a presença amada. Igualmente antigas são as conversas
mentirosas sobre temas honestos, com olhos que não o são, que se buscam e
se devoram, e uma boca crispada. O pavor de que ele adivinhasse que, ao
falar de trigos e vassouras, ela não tinha senão a ideia de como poderia
pousar-lhe a mão na testa e beijá-lo com ânsia maternal; e ao mesmo tempo
o espantoso desejo de que, uma vez que a descobrisse, não a desprezasse e
partilhasse seu anelo; isto unido à sua grande ignorância a respeito de
forragens e comestíveis, assunto da palra, a qual não era em si senão um
diálogo de amor e de fingimento (e o meio de fingir, quando não se domina
o tema aparente que serve de pretexto ao diálogo, leva a irremediável
malogro), tudo isto a humilhava e enervava em extremo, dava-lhe calafrios
e a impelia a uma fuga espavorida. Seus pés trêmulos queriam partir,
enquanto seu coração a cravava ali, segundo a eterna incoerência dos
namorados. Cingiu mais a capa sobre os ombros e disse com voz abafada:
— Reataremos este colóquio outro dia, superintendente, em outra
ocasião. A tarde vai caindo e me parece que o frio me faz tiritar.
Efetivamente, um violento tremor a sacudia e, já sem esperança de
dissimulá-lo completamente, tratava de justificá-lo com uma razão exterior.
— Tens minha promessa de que refletirei nessa novidade e te autorizo a
tornares a falar-me no assunto, se, em tua juventude, te sentes demasiado só
para resolvê-lo.
Não devia dizer estas últimas palavras; estrangularam-se-lhe na
garganta, pois se referiam unicamente a ele e a nada mais; eram o
equivalente mais acentuado desse “tu” que havia corrido através do diálogo
mentiroso, formando seu verdadeiro fundamento, a palavra da magia dele, a
palavra do maternal desejo dela, tão prenhe de ternura e de dor que a
transtornou e expirou num murmúrio:
— Que continues bem — disse num suspiro e, seguida de suas
donzelas, se afastou, com os joelhos trêmulos, passando diante de José, que
a saudava com respeito.
Nunca o assombro é bastante diante da fraqueza amorosa, nem
suficiente o conhecimento de sua singularidade, se for considerada com
olhos novos, não como uma banalidade insípida, mas como a novidade,
primeira e única, que não cessa de existir cada vez que se reproduz. Uma
tão conspícua dama, distinta, superior, altiva, uma consumada mulher do
mundo, friamente emurada até então no egocentrismo do seu orgulho
divino, de pronto caía no tuteio, um tuteio desonroso do seu particular
ponto de vista, descendo a tal grau de fraqueza, a uma tal abdicação de sua
majestade de dama, que lhe custava infinitamente levar até o fim seu papel
de dona do amor e de provocadora. E sabendo já que era a escrava do
escravo tuteado, de quem fugia, com as faces flácidas, cega, trêmula, com
as ideias em desordem, murmurava palavras desconexas, sem se preocupar
com as suas seguidoras, levadas, no entanto, intencionalmente e por
orgulho, à entrevista.
— Perdida, perdida, traída, traída, estou perdida, traí-me, ele notou
tudo, a mentira dos meus olhos, meus pés vacilantes, o meu tremor, viu
tudo, despreza-me, está tudo terminado, devo morrer. É preciso plantar mais
trigo, cortar os brotos das raízes, as panículas podem servir para fazer
vassouras. E eu, que respondi? Um balbucio revelador, riu-se de mim, é
absurdo, devo matar-me. Ao menos estava formosa?
Se estava formosa debaixo desta luz, talvez não tivesse havido tanto mal
e eu não esteja obrigada a matar-me. O bronze dourado de seus ombros...
Oh, Amun na tua capela! “Dona de minha cabeça e de meu coração, de
minhas mãos e de meus pés...” Oh, Osarsif! Não me fales assim, dos lábios
para fora, enquanto em teu coração zombas do meu balbucio e do tremor
dos meus joelhos. Espero, espero... conquanto esteja tudo perdido e eu deva
morrer depois deste infortúnio, espero ainda e não desespero, pois nem tudo
é desfavorável, há também muita coisa favorável, muitíssima, uma vez que
sou tua senhora, meu filho, e tu te vês obrigado a dizer-me tão
deliciosamente, como o fizeste”Dona de minha cabeça e de meu coração”,
ainda que isto não seja mais que uma simples forma e cortesia oca. Mas as
palavras são poderosas, não se proferem impunemente, deixam um vestígio
no espírito; apesar de pronunciadas com insensibilidade, falam à
sensibilidade sua linguagem própria; se te servem para mentir, sua magia te
transforma algum tanto no seu sentido, de modo que deixam de ser
mentirosas uma vez pronunciadas. Eis aqui alguma coisa bastante favorável
e cheia de promessas; o cultivo do teu espírito, meu criado, por causa das
palavras que estás obrigado a dizer-me, a mim, tua senhora, fertiliza o
terreno e aí faz germinar minha beleza, se já tive a sorte de parecer-te bela
na luz; e o sentimento de deferência que mas palavras de servo exprimem,
unido a esta beleza, me proporcionará a salvação e o êxtase, porquanto daí
resultará uma adoração que apenas necessitará de um pouco de estímulo
para transformar-se em desejo. Assim é, mancebo, a adoração estimulada se
converte em desejo... Oh, mulher corrompida!... Que vergonha a de meus
pensamentos de serpente! Vergonha de minha cabeça e de meu coração!
Osarsif, perdoa-me, meu jovem dono e salvador, estrela matutina e vesperal
da minha vida... Como foi que se realizou tão mal a nossa entrevista, por
causa de meus pés trêmulos, que parece estar tudo perdido? Contudo, não
me matarei, não mandarei ainda buscar uma áspide venenosa para metê-la
no seio, porque há ainda muitas esperanças e possibilidades. Amanhã,
amanhã e todo dia! Fica conosco, continua a dirigir a casa.
Petepré me recusou mandar vendê-lo, vê-lo-ei sem cessar, cada dia
estará cheio de esperanças. “Continuaremos em outra ocasião esta palestra,
intendente. Pensarei no assunto e autorizo-te a trazer-me proximamente um
novo informe.” Isto está bem, é proceder com previsão, pensando na
próxima entrevista. Sim, foste bastante ladina. F. ni, apesar da tua
demência, para pensar em manter o vínculo. É necessário que volte, e se
tardar, por timidez, lhe mandarei Dudu, o anão, para que lho recorde. Como
repararei então o fracasso de hoje! Vê-lo-ei com uma calma
condescendente, com os pés em completo repouso, e não lhe demonstrarei,
em troca de sua adoração, nem um pouquinho de benevolência animadora, a
não ser que o queira. Talvez me pareça menos formoso desta vez tão
próxima, e, esfriado o coração, poderei sorrir e troçar com absoluta
liberdade de espírito, e inflamá-lo sem que eu sofra... Não, ah! não, Osarsif,
não poderá ser assim, que estes são pensamentos de serpente. Prazenteira
sofrerei por d, meu amo e salvador, pois teu brilho iguala ao do primogênito
de um touro...
Este incoerente monólogo, do qual suas seguidoras, Hezes e Me’et,
recolheram estupefatas alguns fragmentos, não foi senão um entre cem
outros parecidos que escaparam a Mut, a senhora, durante o ano, enquanto
ainda forcejava por dissimular seu amor a José. O diálogo a respeito do
trigo, que precedeu esse solilóquio, é um exemplo de todos os que,
numerosos e idênticos, se verificaram em diversas horas do dia e em lugares
diferentes, ora no jardim, como este, ora na fonte do harém, ora no
pavilhão. Eni nunca vinha sem escolta, e José fazia-se acompanhar de um
ou dois escrivães, com rolos de papel, orçamentos, documentos e projetos.
Entre eles só se tratava de coisas como a exploração da herdade, pensos,
culturas, negócios e olheiros. Acerca de tudo isto o intendente dava conta à
senhora, informava-se e manifestava desejo de receber sua opinião. Era este
o tema fictício de suas conversações, e é mister reconhecer, ainda que com
um sorriso um tanto céptico, que José tomava isto muito a peito. Aplicado
em transformar o pretexto em realidade, trazia seriamente a mulher ao
corrente de todas estas matérias e lograva prender-lhe o interesse, embora
tal se desse por causa da inclinação que por ele sentia.
Era isto uma espécie de método terapêutico. O jovem José se comprazia
no seu papel de educador. Seu intuito, pelo menos assim o cria, era desviar
os pensamentos de sua patroa do plano subjetivo para o objetivo, de seus
olhos para suas preocupações, e assim esfriá-la, desembriagá-la, curá-la,
para então obter honra, proveito e encanto de sua privança e de seu favor,
sem correr perigo de cair no fosso com que sempre o ameaçava o aflito
Teófilo. Não se pode deixar de achar algo pretensioso este plano de
salvação pedagógico do jovem intendente, graças ao qual se jactava de
refrear a alma da senhora, de uma mulher como Mut-em-enet. Para prevenir
eficazmente o perigo do fosso, o meio mais seguro seria sem dúvida evitar a
dama, subtrair-se à sua vista, em vez de ter com ela entrevistas educativas.
O fato de o filho de Jacó lhes dar preferência induz a crer que o seu método
curativo era um embuste, e seu empenho de transformar o pretexto em tema
honesto e essencial um artificio de seus pensamentos, não do puro espírito,
mas da inclinação.
Em todo caso, Teófilo, o gnomo, teve disto uma suspeita, ou antes,
comprovou-o em sua aguda sagacidade e disto não fez mistério a José.
Quase todos os dias, retorcendo as mãos, suplicava-lhe que não se deixasse
arrastar a enganos e subterfúgios e que se mostrasse tão inteligente como
era bom e formoso, fugindo do bafo devastador do touro ígneo. Debalde.
Seu amigo de alta estatura, o jovem intendente, sabia essas coisas melhor
que ele. Para quem, com todo o direito, está habituado a submeter-se à
própria razão, a confiança em si converte-se em grave perigo no dia em que
a razão vacila.
Enquanto isto, Dudu, o anão enérgico, desempenhava seu papel segundo
as regras, o papel de abelhudo pérfido, de alcaiote que conta com a
perdição, que faz de recadeiro entre dois a quem o pecado atrai, piscando
aqui um olho, ali baixando a vista, insinuante, achegador, com a beiçorra
torcida, e fazendo de sua boca um saco do qual extrai irritantes mensagens
súplices. Desempenhou esse papel sem conhecer a interpretação de seus
antecessores nem de seus sucessores, como se fosse o primeiro e o único,
como a cada um sucede em todos os papéis da vida, julgando que os inventa
do princípio ao fim e por sua própria iniciativa — e, não obstante, com essa
dignidade, com essa confiança que o ator famoso, trejeiteando no palco,
extrai não do seu caráter suposto de único e de primeiro, mas, ao contrário,
de sua consciência profunda de que representa um tipo preestabelecido e
legítimo e, por repugnante que seja seu personagem, de que o mostra
exemplarmente no seu gênero.
Nesta época ainda não caminhava pela vereda oblíqua — também
inscrita no seu programa — que, bifurcando do caminho incessantemente
percorrido para ir de um para a outra, conduzia a Putifar, o delicado senhor,
a fim de adverti-lo em segredo e instilar-lhe no ouvido coisas que se
prestassem a suspeitas, relacionadas com certas entrefalas do seu
conhecimento. Tinha isto em reserva e por ora o caso não lhe parecia ter
ainda chegado a um grau de madureza tal que o aconselhasse a tomar outro
caminho. Causava-lhe desgosto ver que, apesar de todas as ocasiões que se
afanava em provocar e de todas as mentiras que arrancava de sua boca em
forma de saco, o jovem administrador e a senhora raramente estavam sós e,
se falavam, o faziam quase sempre em presença de uma escolta de honra.
Também o desgostavam as palavras de José; o plano educador e terapêutico
do mordomo não era do seu agrado, irritava-o, embora, assim para ele como
para seu colega em pequenez, tudo aquilo não passasse de um logro a
serviço da inclinação amorosa. A troca de pontos de vista sobre assuntos
econômicos retardava o desenvolvimento dos sucessos. Além disso, Dudu
receava que o método de José conseguisse deputar as ideias da senhora e
lhes desse uma orientação prática que as afastasse do essencial. Pois agora
também com ele, com o virtuoso Dudu, a senhora discorria acerca dos
negócios do domínio, falava de produção e de venda, de azeite e de cera, de
rações e enceleiramentos. Ao espírito solar do pigmeu não escapava que
este era um modo velado de falar usado por José, informando-a. Com isto
se exacerbava e no seu incessante ir e vir ministrava a um e outro lado
estimulantes mensagens que levavam a um fim único: o jovem intendente
— dizia — a miúdo estava de humor sombrio, porque, contando com o
favor de se encontrar com a senhora após as canseiras do dia, ou no
intervalo delas, e podendo impregnar de tanta beleza a sua alma, tinha de
falar-lhe dos fastidiosos assuntos caseiros, em vez de abordar temais mais
pessoais e recreativos. E, no outro extremo, a senhora se queixava e havia
ordenado a ele, Dudu, que manifestasse ao jovem intendente sua tristeza por
ele aproveitar tão mal as audiências, falando-lhe eternamente de economia
doméstica, sem baixar nunca a si mesmo, sem satisfazer uma curiosidade
ávida de informações acerca de sua pessoa, de sua vida passada, de sua
miserável pátria, de sua mãe, impaciente como estava ela de saber como se
havia efetuado a partenogênese, a descida aos infernos e a ressurreição.
Coisas destas — dizia — eram mais interessantes para os ouvidos de uma
dama como Mut-em-enet do que alguns informes sobre fabricação de papel
e provisão de tecidos. Se o superintendente queria fazer progressos que lhe
possibilitassem alcançar o supremo fim — mais alto e maravilhoso que
quantos atingira na casa —, tinha de decidir-se a empregar uma linguagem
menos prosaica.
— Deixa que eu me encarregue das minhas coisas, tanto dos fins como
dos meios — respondeu-lhe José com rudeza. — Poderias de resto falar
com mais singeleza, sem estar arrancando as palavras como de um bolso;
isto me repugna. O que me agradaria é que daqui por diante tu te ativesses
aos fatos, marido de Zeset. Não te deslembres de que as relações entre ti e
mim são de ordem mundana e não amistosa. Contudo, podes sempre dizer-
me o que escutares pela casa e na cidade. Quanto a conselhos de amigo,
deixa-te deles.
— Pela cabeça de meus filhos! — jurou Dudu. — Não fiz mais que
repetir-te, conforme nosso pacto, os amargos suspiros que surpreendi em
nossa ama em razão da aridez das tuas informações. Não é Dudu que te
aconselha, senão ela, que se fina sonhando com palestras mais amáveis.
Mentia mais da metade, porque quando sugerira a ela que, se queria
surpreender o segredo mágico do jovem intendente e fazê-lo cair em
confidências, devia dar ao colóquio uma orientação mais pessoal, em vez de
permitir-lhe que se refugiasse por trás de suas funções e negócios, ela havia
respondido a seu conselheiro:
— Faz-me bem e me conforta um pouco a alma ouvi-lo falar do que faz
quando não o vejo.
Esta resposta é muito significativa e até pode dizer-se comovedora:
revela o desejo que inspira à apaixonada tudo o que enche a vida do
homem, os ciúmes da criatura sensível diante do trabalho prático que
absorve a vida do amado e lhe faz perceber a ociosidade dolorosa de seus
próprios dias, inteiramente entregues ao sentimento. Destes zelos deriva o
habitual esforço da mulher por interessar-se pelas atividades do homem,
ainda que não pertençam à esfera prática e econômica, mas à intelectual.
Mut, a senhora, sentia-se, pois, “confortada” quando deixava José
iniciá-la nas questões materiais, amparada pela aparência e a ficção de que
ele desejava deliberar com ela sobre tais coisas por causa da sua mocidade.
Más, pouco importa o assunto de que tratem as palavras do amado, visto
como é sua voz que constitui a substância delas; seus lábios as formam, seu
formoso olhar as acompanha, dando-lhes um sentido, e sua presença as
queima e embebe, por frias e áridas que sejam, como o sol e a água
aquecem e empapam o reino terrestre. Assim, cada entrevista se transforma
em diálogo de amor, além de que o diálogo amoroso verdadeiro não poderia
existir em estado puro, porque nesse caso só se comporia de sílabas —
“eu”, “tu” — e naufragaria no excesso de monotonia; daqui a necessidade
de falar também de outra coisa. Mas, como se deduz de sua ingênua
resposta, Eni valorizava bem o assunto das entrevistas, porque sua alma se
abeberava nele nos dias vazios, sem esperança e tristemente lânguidos, em
que José viajava num ou noutro sentido do rio, dias nos quais não tinha o
seu olhar, não podia esperar sua visita ao harém ou o encontro em outro
lugar, e ficava cheia de uma ansiedade prenhe de anelos. Então se
alimentava com essa substância, se consolava pensando em que sabia por
que o amado estava ausente, tendo partido para tal ou tal cidade e seus
arredores, tendo ido a tal feira, a tal mercado distante, e que podia ao
menos, na sua miséria de mulher e na sua sensibilidade ociosa, designar
pelo seu nome as ocupações que enchiam os dias viris de José. E não tinha
mão em si que não se vangloriasse deste conhecimento diante das
concubinas tagarelas, das suas criadas e de Dudu, quando vinha apresentar-
lhe seus respeitos.
— O jovem mordomo — dizia ela — desceu por via fluvial até Necheb,
a cidade em que Nechbet está em festa, com duas barcas de reboque
carregadas de frutos das palmeiras e balanitas, de figos e cebolas, alhos,
melões, pepinos de Aggur e sementes de rícino, que quer trocar, sob as asas
da deusa, por madeira e couro para sandálias, que Petepré necessita para
suas oficinas. De acordo comigo, o superintendente escolheu para a viagem
o momento em que as hortaliças custam muito caro em razão da procura, e
o couro e a madeira muito menos.
Sua voz vibrava, ressoando singularmente quando pronunciava estas
palavras, e Dudu, aconcheando a mão atrás da orelha para recebê-las em
eco, perguntava a si mesmo se ainda tardaria muito a tomar a senda que
conduzia a Putifar, para adverti-lo secretamente.
Para que insistir mais sobre este ano em que Mut, por orgulho e pudor,
ainda tratou de esconder o seu amor a José, ocultando-o também do mundo
exterior, ou julgou escondê-lo? O conflito como seu sentimento em relação
ao escravo, e, por conseguinte, o conflito consigo mesma, travado com
violência durante algum tempo, havia terminado e se desenvolvia em
beneficio do sentimento, entre delicias e sofrimentos. No momento ela
ainda lutava somente para conservar secreta a sua emoção diante dos
homens e diante do amado, porém sua alma se entregava ao maravilhoso
romance com tanto maior ímpeto e encantamento — quase se diria
ingenuidade —, quanto até então ele lhe fora alheio, a ela, a santa, a
elegante, a fria mundana, a sacerdotisa da lua, e que por largo tempo
ignorara sua ferida, seu despertar. De conformidade com isto, sentia maior
afastamento do período precedente, ainda não santificado pela paixão, da
aridez e do estado de petrificação que seu pensamento, com grande
angústia, de quando em quando revivia; e o terror de ver-se outra vez
atirada à antiga situação enchia de espanto sua feminilidade, arrancada por
fim do letargo. A surpreendente exaltação que a plenitude amorosa confere
a uma vida como a sua é tão conhecida como indescritível. A gratidão
nascida desta felicidade geradora de alegria e tormento busca um objeto e
não o encontra a não ser naquele de que tudo emana ou parece emanar. Que
muito, pois, que esta plenitude, fortalecida pelo reconhecimento, se
aproxime da adoração? Já muitas vezes temos observado que, em certos
breves momentos de vacilação, outros também se haviam inclinado mais ou
menos (e até mais que menos) a tomar a José por um deus. Mas poder-se-ia
dar o nome de adoração a tais veleidades? Que energia, que ativo
entusiasmo residem nesta palavra, no sentido que lhe atribui a lógica
amorosa! Lógica bastante audaz e singular. Quem pôde transformar assim a
minha vida — disse ela consigo — quem deu a uma existência antes morta
estes ardores e estremecimentos, estes transportes e lágrimas, não pode ser
senão um deus.
O homem aqui não é nada, já que tudo deriva da enamorada mulher; ela,
porém, não o admite e no seu entusiasmo, com suas ações de graças,
compõe a divindade do amado. “Oh, dias celestes do amor! Enriquecestes
minha vida e ei-la agora a florescer!” Esta a ação de graças de Mut-em-enet
a José (ao menos um fragmento dela), balbuciada de joelhos ao pé de seu
leito, com prantos de êxtase, quando ninguém a via. Mas então, se sua
existência estava tão enriquecida e florida, por que esteve mais de uma vez
quase a enviar sua criada núbia em busca da áspide peçonhenta para pousá-
la no seio? Por que é que um dia chegou a dar a ordem, e depois que a
víbora lhe foi trazida numa cesta, renunciou ao seu intento unicamente no
derradeiro momento? Porque a última entrevista deitara tudo a perder,
cuidava ela; não só deveu parecer feia, senão que, em vez de acolher o
amado com unia sossegada condescendência, lhe tinha revelado o seu amor
— o amor de uma velha, de uma feia — com seu olhar e sua tremura.
Depois disto só lhe restava morrer, para castigo seu e dele, que havia de
decifrar seu segredo na morte a que ela própria se votara por tê-lo guardado
tão mal. Desconcertante e florida lógica do amor. Estes transportes são
demasiado conhecidos para que se esteja a insistir neles, tão velho é tudo
isto que, na época em que vivia a mulher de Putifar, já existia desde a noite
dos tempos, e só pode parecer novidade a quem, como ela, o experimenta
pela primeira vez e se julga a primeira e a única. Murmurava”Oh! Escuta, a
música... Um estremecimento cheio de sons e delícias fere meus
ouvidos.”Também é conhecido este fenômeno. As alucinações auditivas, os
arroubos visitam os namorados tanto como aqueles que se acham
engolfados no encantamento de Deus. Caracterizam muito bem o estreito
parentesco e a indissolubilidade de seus respectivos estados, em que
intervém, aqui, elementos divinos, lá, humanos elementos. Também se
conhecem (o que nos dispensa de falar prolixamente) aquelas noites de
febre amorosa, aquela sucessão de sonhos breves em que o outro ser,
sempre presente, frio, incrédulo, se volta com desdém — cadeias de
imagens funestas e opressivas, em que a alma adormecida colide
infatigavelmente com a mesma presença, interrompida sem cessar por um
acordar sobressaltado, uma sufocação, um erguer do busto, um jorro de
luz”O deuses, deuses! Como é possível? E possível sofrer tanto?” E, sem
embargo, maldiz quem assim lhe requeima as noites? Nada menos. Quando
a manhã a tira do seu cavalete de tortura, extenuada, à beira de sua cama, do
lugar em que se encontra, lança este brado para ele”Agradeço-te, salvador
meu, minha ventura, minha estrela...”
O observador compassivo sacode a cabeça ouvindo uma resposta destas
a um sofrimento tão terrível; sente que emprega mal sua compaixão e que a
toma um tanto cômica. Mas, se o tormento tem uma causa divina e não
humana, uma reação desta índole é possível e natural, porque sua origem é
de uma natureza especial, ao mesmo tempo comum ao Eu e ao Tu, ligado a
este, é verdade, mas procedendo daquele: compõe-se da fusão e do
acrescentamento de um fenômeno externo e de outro interno, uma imagem
e uma alma, união da qual efetivamente já têm brotado deuses, e cujas
manifestações não é absurdo sejam qualificadas como divinas. É preciso
que aquele que abençoamos pela tortura que nos inflige seja um deus, não
um homem, pois do contrario não o bendiríamos. Lógica defensável. O ente
de que dependem a felicidade e a pena de nossos dias, como sucede no
amor, passa evidentemente à categoria dos deuses, tendo sido e
permanecendo sempre o sentimento da dependência a fonte do sentimento
do divino. Alguém maldisse alguma vez o seu deus? Talvez o tenha tentado,
mas então a maldição se traduziu e expressou na forma que acima
indicamos. Seja isto dito para esclarecer o observador compassivo, se não
para satisfazê-lo. De resto, não tinha nossa Em um motivo especial para do
amado fazer um deus? Certamente, porque, divinizando-o, desterrava o
sentimento de queda que, sem isto, teria sido inseparável de sua fraqueza
pelo escravo estrangeiro e contra o qual lutara tanto tempo. Um deus
baixado à terra, um deus sob as vestes de um criado, reconhecível
unicamente na sua beleza impossível de dissimular e no bronze dourado de
seus ombros. Ela encontrou isto em algum recanto do mundo de seus
pensamentos, encontrou-o por sorte, e nisto viu a explicação e a justificação
do seu sentir. Quanto à esperança de que se realizasse o sonho salvador que
lhe abrira os olhos, e no qual o amado lhe estancara o sangue — nutria-se
esta esperança de uma imagem ainda mais longínqua, uma notícia ainda
mais antiga que encontrava em si, surgida não sabia de onde: a imagem e a
notícia de um deus que projetava sua sombra sobre uma pessoa mortal. Não
é impossível que a excentricidade desta representação e a circunstância de
que Eni a ela recorresse refletissem parte da inquietude suscitada pela
confidência que seu marido lhe fizera acerca da consagração de José, da sua
preservação e do ornamento que trazia em sua cabeça.
O SEGUNDO ANO

Quando, porém, chegou o segundo ano, qualquer coisa afrouxou e


cedeu na alma de Mut-em-enet, que começou a dar a perceber seu amor a
José. Não podia proceder de outra maneira; queria-lhe demais. Ao mesmo
tempo e como consequência deste desfalecimento, deliberou confiar sua
perturbação a algumas pessoas de sua roda íntima, não precisamente a
Dudu, porque a perspicácia solar do gnomo já estava há muito prevenida, e
no fundo Mut desconfiava disso, além de que seu orgulho a teria impedido,
apesar de tudo, de abrir-se com o anão casado. A ficção estabelecida entre
eles manteve-se: urgia surpreender o feitiço do escandaloso escravo
estrangeiro e levá-lo à sua “queda”, expressão de que continuava se
servindo e que cada dia ia perdendo em ambiguidade na boca de ambos.
Apesar de que ainda não tivera confidentes, escolheu duas entre as
mulheres do seu círculo mais chegado, cada uma delas separadamente, e as
escolhidas não se sentiram pouco ufanas disso. Eram a concubina Meh-en-
Vesecht, mulherzinha alegre, de cabelos soltos e camisa transparente, e uma
velha mascadora de goma, a escrava destinada ao serviço do escrínio de
adereços, uma tal Tabubu, de cabeça branca, pele negra, seios semelhantes a
odres. A ambas abriu Eni seu coração, com cochichos, e depois instigando-
as, com sua atitude, a que a espremessem com perguntas. Teve suspiros e
sorrisos tão prolongados, fez tal exibição de gestos sonhadores com
negativas para explicar-se, que aquelas mulheres, uma na fonte do pátio,
outra ao seu toucador, lhe rogaram que lhes revelasse o mal que roía o seu
espírito; depois do que, com muitos dengues e meneios, acabou por
murmurar com língua embevecida, toda trêmula, a suas ouvintes, também
trêmulas, a confissão da sua ferida.
Embora antes, mercê de certos indícios, já suspeitassem a quantas
andavam, exprimiram grande espanto e cobriram o rosto, beijaram as mãos
e os pés de Mut, lançando murmúrios, exclamações afogadas, em que se
unia um alvoroço festivo à ternura e à carinhosa solicitude, como se Mut
lhes tivesse anunciado que se achava em estado interessante. Assim
acolheram este sensacional problema feminino, a grande nova de que Mut,
a senhora, estava enamorada. Agitadas, gárrulas, consoladoras, felicitaram a
bendita, afagaram-lhe o ventre como se acaricia um vaso de conteúdo
precioso, e manifestaram-lhe de mil modos seu temeroso júbilo por essa
mudança e essa grande variedade, porque ia nascer uma era de regozijo
feminino, cheia de mistérios, de doces enganos e intrigas, quebrando a
monotonia cotidiana. A negra Tabubu, exímia em toda a sorte de ritos
maléficos, usados em países de pretos, e na conjuração de divindades
proibidas, as que não se nomeiam, quis imediatamente praticar um feitiço
para envolver o jovem por meio de seus artifícios e precipitá-lo, deliciosa
presa, aos pés da senhora. Porém a filha de Mai-Sachme, o régulo de
província, rechaçou a sugestão com um horror em que não só se revelava
um grau de civilização superior ao da kuchita, mas toda a nobreza do seu
sentimento. Em compensação, a concubina Meh não pensou ser necessário
recorrer a bruxarias; não acreditava que elas fossem imprescindíveis e, feita
abstração do perigo, achava a coisa muito simples.
— Ditosa! — exclamou. — Acaso tens motivo para suspirar?
O formoso mancebo porventura não é uma aquisição, um escravo da
casa, apesar do seu alto cargo, e propriedade tua desde o começo? Se ele te
agrada, não tens mais que fazer-lhe um sinal com a sobrancelha e ele
considerará como a maior honra aproximar seus pés dos teus e sua cabeça
da tua, para tua satisfação.
—Em nome do Invisível, Meh! — murmurou ela, velando a face.
— Não fales desse modo, porque não sabes o que dizes e me
estrangulas a alma.
Todavia, não pensou que devia encolerizar-se com a néscia criatura;
com uma espécie de inveja sabia que a simplória estava livre e pura de todo
amor e culpável desejo, e lhe reconhecia o direito que uma boa consciência
dá de falar alegremente em cabeça e em pés, se bem que com isso se
aumentasse horrivelmente a turbação de Mut. Prosseguiu:
— Bem se vê, minha filha, que nunca te viste numa situação
semelhante; nunca te tomou este sentimento, sempre te contentaste em
debicar guloseimas e tagarelar com tuas irmãs do serralho de Petepré. Se
não, não dirias que só me basta piscar para ele, e saberias que, visto como
meu coração está ferido por ele, sua condição de escravo e a minha de ama
se acham abolidas, se não invertidas; antes, sou eu que estou presa nas suas
sobrancelhas maravilhosamente traçadas, para ver se o espaço
compreendido entre elas e liso e acolhedor ou se se franzem, suspeitosas
por minha causa, desconfiadas de mim que tremo. Olha, não vales mais que
Tabubu, a qual, na sua vileza, me propõe praticar com ela magias negras
para que o jovem se me entregue e ceda ao sortilégio sem saber como.
Vergonha caia sobre vós, ignorantes, que com vossos conselhos me cravais
um punhal no coração e o revolveis na chaga. Falais e discorreis como se,
num mesmo ser, não houvesse senão um corpo e não também uma alma e
um espírito. Em tais condições, uma ordem dada com um piscar de olhos
não valeria mais que uma feitiçaria para seduzi-lo, uma vez que tanto uma
coisa como a outra exerceriam seu poder sobre o corpo somente e só me
entregariam esse corpo, cálido cadáver. Se alguma vez sua obediência se
dobrou ante mim e às ordens do meu olhar, meu amor o libertou disso,
louca Meh, e com alegria me fez perder meu poderio; livro-o de seu jugo e
tanto na alegria como na dor dependo da liberdade da sua alma viva. E esta
a verdade, e eu já sofro bastante que ela não tenha vindo a lume e que ele
não seja senão um servo submetido às minhas ordens. Quando me chama a
dona de sua cabeça de seu coração, de suas mãos e pés, ignoro se fala como
servo, segundo a fórmula, ou como uma alma viva. Espero que esta segunda
conjetura seja a boa, mas logo depois me desespero. Escuta-me com
atenção. Se existisse apenas a sua boca, seria admissível pensar no que me
dizes acerca da ordem de que ele se aproxime, e acerca da magia, porquanto
a boca pertence ao corpo. Mas é que existem os seus olhos, na beleza da sua
noite, cheios de alma e de liberdade, e — ai! — temo particularmente a
liberdade que revelam, pois significa a libertação da paixão, essa paixão que
me colhe em suas sombrias redes, mulher perdida que sou,e se diverte e
zomba não exatamente de mim, mas do desejo, me humilha e me esgota,
porque a admiração que essa liberdade me inspira só serve para estimular
meu desejo e apertar cada vez mais os laços. Compreendes isto, Meh? E
ainda não é tudo, uma vez que devo recear também a cólera de seus olhos e
sua reprovação, porque o que por ele sinto e um engano e uma traição a
Petepré, o cortesão, seu e meu senhor, em quem ele suscita o bem-estar da
confiança, ao passo que eu o incitaria a envilecer o senhor comigo, em meu
coração... Todas estas ameaças leio-as em seus olhos, de modo que bem vês
que não se trata somente de sua boca e que não é apenas um corpo. Pois um
simples corpo não está sujeito às condições e encadeamentos de que
depende e de que também dependem as nossas relações com ele, que as
complicam e as enchem de escrúpulos e de consequências, as erigem em
princípio de honra e em dogmas morais e cortam as asas ao nosso desejo, de
maneira que se fica amarrada ao solo. Como tenho refletido nessas coisas
dia e noite, Meh! O corpo é livre e só, livre de toda relação, e conveniente
seria que em amor não houvesse senão corpos, livres de se estreitarem sem
escrúpulos, sem consequências, boca contra boca, de olhos fechados. E, no
entanto, estes deleites eu os repilo. Pois posso desejar que o meu amado não
seja mais que um corpo sem caráter, um cadáver, não uma pessoa? Não
posso, porque não amo só sua boca, amo também seus olhos, e até direi que
acima de tudo, e por isso os vossos conselhos me horrorizam, tanto os de
Tabubu como os teus. e os rejeito, impaciente.
— Não compreendo — disse a concubina Meh — que as coisas te
pareçam tão complicadas. O que eu quis dizer é que, uma vez que o
desejavas, trata-se simplesmente de que vossos pés e vossas cabeças se
unam, para o teu prazer...
E não era este, no fim das contas, o objeto a que aspirava Mut-em-enet,
a formosa Mutemone? A ideia de que seus pés, trêmulos quando ela se
achava em presença de José, pudessem entrelaçar-se com os dele, no
descanso, era uma imagem que a transportava e comovia até suas fibras
mais íntimas. Que Meh-en-Vesecht a houvesse representado com palavras
emas, sem dar-lhes a importância que tinham para Mut, eis aqui uma coisa
que acelerava sua desagregação interna, da qual suas confidências com as
duas mulheres foram um sinal precursor. Com seus atos e palavras
começou, pois, a manifestar ao jovem intendente sua fraqueza e sua queda.
Seus atos tiveram um caráter simbólico, pueril e, no fundo, comovente;
eram atenções de patroa para com o servidor, cujo transparente significado
tomava difícil a atitude de José. Um dia, e frequentemente depois, à hora da
audiência, o recebeu em vestidura asiática, uma rica veste cujo pano
mandara comprar na cidade dos vivos, no bazar de um sírio barbudo, e que
a escrava costureira Cheti lhe confeccionara à pressa. A vivacidade das
cores superava a das vestes egípcias; era como duas peças de lã bordada,
uma azul e outra vermelha, tecidas juntas; além dos bordados, orlava-a, nas
costuras, uma franja multicolor, exótica e suntuosa. Enfeites do mesmo
estilo cobriam seus ombros, e sobre o turbante, também bizarro, a que no
lugar de origem desta moda chamavam sanip, Eni lançara o véu de rigor
que se estendia além dos quadris. Assim ataviada, olhou para José com uns
olhos em que ao brilho metálico vinha juntar-se a malícia de uma espera
timorata.
— Quão estranha e esplêndida me pareces, augusta senhora! — disse
ele, com um sorriso acanhado, pois adivinhara suas intenções.
— Estranha? — indagou ela, também sorridente, tema e confusa. —
Mas devo parecer-te familiar, conforme imagino, e trajando à moda das
filhas do teu país com este vestido que hoje uso, apenas para variar, se é a
isto que te referes.
— Por certo — respondeu o mancebo, com os olhos baixos — o vestido
me é familiar, bem como o seu corte, mas não deixa de ser um pouco
estranho em ti.
— Não achas que me assenta e favorece? — perguntou, timidamente
provocadora.
— Ainda não se teceu o pano — respondeu-lhe ele com reserva —, nem
foi confeccionado o vestido, seja embora um saco de crina, que não servisse
à tua beleza, senhora.
— Ai! Se tudo que trago é indiferente — foi a resposta —, terei perdido
o meu esforço em vestir-me. Fi-lo, porém, em honra da tua visita e para
fazer o que fazes, pois tu te vestes entre nós à egípcia, tendo em conta
nossos trajes. Não quis ficar atrás em fidalguia e por isso te recebo vestida a
maneira de tua mãe, para retribuir teu gesto Assim, mudamos nossas vestes,
como numa festa. Em tais trocas sempre houve um ressaibo de cerimônia
divina, quando as mulheres se vestem como homens e estes como mulheres,
ficando assim abolidas as diferenças.
— Permite-me observar — replicou José — que um uso e um culto
desta índole não me recordam particularmente a minha pátria.
Há nele um quê de desordem, um relaxamento da nossa compreensão de
Deus, que a nossos pais não agradaria.
Mut sentia-se profundamente vexada: o mancebo não parecia
compreender (e contudo tinha compreendido) o preço do sacrifício que ela
lhe fazia, rendendo com sua veste uma homenagem ao exotismo — ela, a
filha de Amun, a concubina do poderoso, a participante da sua austeridade,
simplesmente porque o amado era estrangeiro. O sacrifício havia-lhe sido
suave, ela sentira uma verdadeira embriaguez em despojar-se, por amor
dele, do seu caráter nacional, e sentia-se desgraçada por tomar o intendente
a coisa tão sem entusiasmo. Melhor êxito teve noutra ocasião, embora o ato
simbólico fosse uma negação ainda mais acentuada de sua personalidade
antiga.
Seu aposento privado, seu refúgio preferido na habitação das mulheres
era uma pequena galeria voltada para o deserto e que se poderia chamar
átrio, porque as suas portas de umbrais de madeira permaneciam abertas,
ficando cortado o campo visual pelos pilares quadrados decapiteis singelos
e redondos que sem soco pousavam no umbral.
O olhar estendia-se por um pátio ocupado à direita por alvas
construções, baixas, que sob os lisos tetos abrigavam as moradias das
concubinas, contíguas a outro edifício mais alto, espécie de pilone provido
de colunas. Um muro de barro, quase da altura de um homem, corria
obliquamente por trás, ocultando o solo pelo lado de fora e deixando ver
apenas o céu. A saleta era elegante e singela, não muito alta. A negra
sombra dos pilares se alargava pelo chão; teto e paredes estavam estucados
de um amarelo cor de limão, orlado todo o teto de um friso decorativo de
tons suaves. No quarto havia apenas um leito, ao fundo, alastrado de coxins,
com peles de animais diante dele. Mut amiúde esperava José ah.
Do pátio, sobraçando o seu rolo de contas, alçava as palmas das mãos
para a sala e para a mulher que ah descansava. Então ela o autorizava a
entrar e falar em sua presença. Um dia reparou que havia qualquer mudança
no aposento. Revelaram-lhe os olhares de Mut. Os olhos dela pousavam
nele cheios dessa tímida alegria de antes, quando ela envergara o traje sírio;
contudo, José fingiu que nada via, saudou-a com palavras escolhidas e já
começava a falar de negócios quando ela o advertiu:
— Olha em volta de ti, Osarsif. Que vês de novo aqui?
Ela podia justamente chamar “novo” ao que ali se via. Eta uma coisa
quase incrível: num altar coberto de tecidos, contra a parede do fundo da
sala, numa caixa aberta, uma estatueta dourada de Atum-Rá!
Impossível equivocar-se. O senhor do horizonte assemelhava-se ao seu
próprio sinal gráfico, sentado numa pequena mísula quadrada, de joelhos
levantados, e sobre seus ombros a cabeça de falcão encimada pelo disco
solar oblongo, de onde saía, de frente, o uraeus sibilante com sua cauda de
anéis que se prolongava um pouco para trás. Numa trípole junto ao altar
havia caçoilas com cabo, um aparelho para acender fogo e numa taça
bolinhas aromáticas.
Assombroso e quase inverossímil! Muito tocante e também de uma
audácia infantil, como meio e modo expressivo do desejo do seu coração.
Ela, Mut, a senhora, dama do harém daquele que era rico em bois, cantora
do deus do império com testa de carneiro e sua dançarina sagrada,
confidente do sábio homem de Estado, ela, a partidária do seu espírito solar
de piedade conservadora, havia erigido na sua sala mais íntima um altar ao
senhor do vasto horizonte, cuja essência os pensadores de Faraó porfiavam
em definir, a ele, o irmão amável e xenófilo dos deuses solares asiáticos,
Rá-Horachte-Aton de On no vértice do triângulo. Assim exprimia seu amor,
com essa linguagem procurava uma evasão, com a linguagem do espaço e
do tempo que eram comuns a ambos, a egípcia e o jovem hebreu. Como não
havia ele de entendê-la? Havia entendido tudo desde muito tempo e a
emoção que sentiu naquele momento deve ser-lhe revelada. Seu júbilo
cheio de temor e preocupações fê-lo baixar a cabeça.
— Vejo tua piedade, senhora — disse em voz baixa. — Assusta-me um
pouco. E se o grande Beknechons te visita e vê o que eu vejo?
— Não temo Beknechons — disse ela, estremecendo em seu triunfo. —
Faraó é maior!
— Dilatada vida para ele — murmurou José maquinalmente —, seja
radioso e próspero... Porém tu — prosseguiu em voz baixa —, tu pertences
ao senhor de Epet-Esovet.
— Faraó é seu filho ramal — respondeu Mut tão impetuosamente que
era claro que tinha a resposta preparada. — O deus a quem ama, e cuja
essência pediu a seus letrados que aprofundem, pode ser servido também
por mim. Seria possível encontrar algum mais antigo e maior nos países?
Ele é como Amun e Amun é como ele. Amun lhe tomou seu nome e
disse”Quem me serve, serve a Rá.” Destarte, rendo culto a Amun, servindo-
o.
— Como quiseres — disse ele com brandura.
— Vamos incensá-lo — disse ela —, antes de pensar nos assuntos da
casa.
E pegando-lhe na mão o levou ante a efígie, para a trípode que continha
os instrumentos do sacrifício.
— Põe incenso — ordenou (dizia senter neter, na língua do Egito”o
perfume divino”). — Tem a bondade de queimá-lo.
Ele, porém, vacilava.
— Não me fica bem, senhora — disse —, incensar uma imagem. É
coisa proibida aos meus.
Então Mut o olhou, muda, com uma dor tão pouco dissimulada que ele
se sentiu de novo cheio de receios, porquanto nos olhos dela leu Negas-te a
incensar comigo aquele que permite que eu te ame.
Mas lembrou-se de On, das lições dos bons mestres lá de longe e do
grande profeta seu pai cujo sorriso significava que sacrificando a Horachte
se honrava também ao seu próprio deus segundo o espírito do triângulo Por
isso disse, em resposta ao seu olhar:
— Quero ajudar-te, disporei os aromas, queimá-los-ei e serei servidor
durante o sacrifício.
Pôs na caçoila umas bolinhas de goma de terebinto, acendeu o fogo, fê-
lo arder e lhe entregou o incensório. E, enquanto o fumo subia sob o nariz
de Atum, ergueu as mãos e, com restrições mentais, confiado numa
clemência indulgente, prestou homenagem ao Tolerante. E, realizado este
ato simbólico, o peito de Eni continuou palpitante, enquanto durou a
informação administrativa que se seguiu.
Eis aqui os meios de que ela se valia para confessar-lhe seu desejo; mas
a pobre mulher já nem sequer evitava as palavras. Seu anelo de manifestar
ao amado precisamente aquilo que durante tanto tempo tinha procurado
ocultar-lhe triunfava agora em razão de sua derrocada moral. Além disso,
Dudu não cessava de ir e vir entre eles; excitava-a, estimulava-a a fazer a
conversação passar de outros assuntos para o terreno pessoal, a fim de
desmascarar os artifícios do malvado e impeli-lo para a “sua queda”. Com
suas mãos febris se afanava, pois, em destruir a ficção, em despir o
colóquio de sua folha de parra, para conduzi-lo à nudez e à verdade do Tu e
do Eu, sem pressentir as tremendas associações de ideias que no espírito de
José se vinculavam com a noção do “desnudamento”; associações de ideias
cananeias, atentas contra o que é defeso, contra a ebriedade lúbrica, que
remontavam a todos os começos, lá onde se encontraram e se interpretaram
a nudez e o conhecimento, daí brotando uma distinção entre o bem e o mal.
Conquanto acessível aos sentimentos da honra e da vergonha, Mut era
alheia a tradições dessa índole; ignorava a ideia de pecado, cuja expressão
nem sequer figurava no seu vocabulário; ademais, pouco habituada a
associá-la à ideia de desnudamento, não podia saber que espantos de Baal
anteriores a José, mas transmitidos pelo sangue, despertava no jovem a
nudez que ela desejava para a conversação. Cada vez que José envolvia esse
colóquio no manto das coisas práticas, ela o arrancava, obrigando-o a deixar
os assuntos da herdade e a falar a respeito de si mesmo, de sua existência,
de sua vida passada. Interrogava-o acerca de sua mãe, a qual ele evocara
antes em presença de Mut, ouvia-o gabar seu proverbial encanto, e dar não
havia mais que um passo para o comentário de sua parte pessoal de
gentileza e formosura, primeiro com palavras sorridentes, depois com uma
profundidade e uma paixão que ela já não reprimia.
— E raro — dizia, afundada numa ampla cadeira colocada em cima do
rabo de uma pele de leão, cuja cabeça e patas se estendiam diante de José
—, é raro — repetia, em resposta a suas narrativas, enquanto obrigava seus
pés a conservarem-se em repouso sobre o supedâneo acolchoado —, é
raríssimo ouvir-se descrever uma pessoa no momento mesmo em que a
imagem explicativa da descrição a concretiza diante de nossos olhos. É
singular, maravilhoso, ver pousados sobre mim, enquanto ouço falar deles,
os olhos da amável, da ovelha materna, em sua noite amiga, esses olhos sob
os quais o homem do Ocidente, teu pai, beijava as lágrimas da impaciência
durante a espera prolongada. Não em vão disseste que te pareces com a
desejada a tal ponto que depois de sua morte ela reviveu em ti e que teu pai
os confundia em seu amor, a mãe e o filho. Tu me olhas com seus olhos,
Osarsif, ao me descreveres sua extraordinária beleza. Ignorei muito tempo
de quem tinhas herdado esses olhos que, ao que me dizem, rendem os
corações pelos caminhos da terra e os da água; pareciam-me eles até agora,
se assim me posso exprimir, uma aparição isolada; mas é agradável, para
não dizer reconfortante, familiarizar-se a gente com a origem e a história de
uma aparição que nos fala à alma.
Não há que estranhar o tom opressivo que se nota nestas palavras.
O amor é uma enfermidade do gênero da gestação e das dores do parto,
e, portanto, uma enfermidade sã, mas, como a outra, não isenta de perigos.
O espírito da mulher estava obscurecido, e ainda que, como egípcia
instruída, se expressara com clareza, isto é, literariamente e, à sua maneira,
sensatamente, sua faculdade de distinguir entre o que é tolerável e o que o
não é achava-se bem reduzida. Seu despotismo de dama acostumada a dizer
aquilo que lhe passava pela cabeça agravava o caso, ou antes, era-lhe uma
circunstância atenuante. Sempre havia acreditado que o que lhe saía da boca
nunca pecava contra a nobreza ou o gosto: em seus dias sãos podia, com
efeito, confiar nessa certeza. Agora, porém, não levava em conta sua nova
situação e deixava sua língua mover-se como antes, e o resultado não podia
ser dos mais fagueiros. Sem dúvida José achava tudo isto inconveniente e
até ofensivo, não só porque Mut se comprometia, mas porque pessoalmente
se sentia melindrado. Além disso (e era este o menor dos seus
aborrecimentos), cada dia via ir por água abaixo seu plano educativo
simbolizado nos montões de algarismos que levava debaixo do braço. O
mais irritante para ele era justamente a altiva intemperança que, com suas
francas palavras de ama, ela introduzia em suas novas relações, dirigindo-
lhe elogios aos seus olhos, como um namorado à sua dulcineia. E de
considerar que na palavra “ama”, feminina, o elemento masculino primitivo
não perde sua preponderância. A ama é, carnalmente, o amo numa forma
feminina e, moralmente, a mulher que tem as prerrogativas do amo; uma
espécie de dualismo — em que prima a ideia do masculino — é sempre
inseparável do nome de ama. Por outra parte, a beleza é uma qualidade
passiva puramente feminina, já que numa pessoa desperta a emoção e põe
no peito de quem a contempla os motivos viris, ativos, da admiração, da
cobiça, do desejo, até o ponto de também ela e por caminho inverso poder
criar um dualismo em que terá de predominar o elemento feminino. E certo
que no terreno dos dualismos José se movia à vontade: tinha a firme
convicção de que na pessoa de Istar se achavam reunidos um adolescente e
uma virgem, e que o mesmo fenômeno se reproduziu naquele que trocou o
véu com ela, o pastor Tamuz, irmão, filho e esposo. No fundo, esses dois
formavam quatro seres. Mas se essas reminiscências se prendiam a
recordações longínquas e alheias e não eram mais que um jogo do
pensamento, os fatos que se desenrolavam na própria espera de José e na
sua realidade lhe ensinavam a mesma coisa. Israel, o nome espiritual de seu
pai, tomado em seu sentido mais lato, era igualmente virginal numa dupla
acepção: prometido ao Senhor seu Deus como noivo e como noiva, ao
mesmo tempo homem e mulher.
E ele próprio, o Solitário, o Zeloso? Não era ele ao mesmo tempo o Pai
e a Mãe do universo? Não tinha dois semblantes, um masculino, voltado
para a claridade do dia, o outro feminino, que mirava as trevas? Acaso não
era este dualismo da natureza divina o primeiro fator que havia determinado
a ambiguidade sexual de suas relações com Israel, e em particular as
relações pessoais de José, que tinham um acentuado caráter de noivo
altamente feminino?
É verdade. Todavia, o leitor atento o terá notado, o sentimento que José
tinha de si havia-se modificado em certos aspectos. Sentia mal-estar vendo-
se objeto de admiração, de desejo e solicitações de uma mulher que lhe
dirigia cumprimentos, como um homem a uma mocinha Isto não podia ser
do seu agrado. A virilização natural, que era o resultado dos seus vinte e
cinco anos tanto como do exercício de suas funções e dos seus êxitos de
superintendente e guarda de uma bela propriedade rural do Egito, explica
facilmente por que é que a coisa não podia ser do seu agrado. Porém uma
explicação demasiado fácil não é, necessariamente, uma explicação
completa. Outro motivo também determinava seu desagrado: era a
virilização do menino José; evocava o despertar do morto Osíris por obra
do abutre fêmea que revoluteava por sobre ele e dele concebia Horus. Será
necessário acentuar até que ponto esta imagem correspondia fortemente às
circunstâncias atuais, a começar, por exemplo, que Mut, concubina do deus,
dançava diante de Amun, coberta com a coifa do abutre? Nenhuma dúvida
possível: ela, a mulher tocada pelo amor, havia despertado uma
masculinidade que esperava reservar para si a iniciativa do desejo e da
solicitação e que achava aborrecido receber os cumprimentos de uma dama.
Assim, pois, em tais ocasiões, José se limitava a olhar em silêncio para
a mulher, com seus olhos velados, depois os voltava para os rolos que trazia
debaixo do braço e atrevia-se a perguntar se após essa digressão pessoal se
poderia falar de negócios. Mut, porem, fortalecida por Dudu, o instigador,
na sua repugnância acerca de tal assunto, fingia não ter ouvido e se
entregava por inteiro ao prazer de revelar-lhe sua paixão. Não se trata de
uma cena isolada, mas de episódios numerosos que, no decurso do segundo
ano de amor, se assemelharam muito entre si. Possessa, desenfreada, falava-
lhe com enlevo não só de seus olhos, mas de seu corpo, de sua voz, de seus
cabelos. Tomava como ponto de partida sua mãe, a amável, e estendia-se
em divagações acerca das variantes da herança, graças às quais as
vantagens que naquela se expressavam femininamente, no filho tomavam
forma e acento viris. Ele, que podia fazer? Reconheçamos que se mostrava
bondoso e amável e lhe prodigalizava palavras afetuosas, e, para
desembebedá-la, refugiava-se por trás de algumas judiciosas advertências
acerca da mísera essência do objeto de sua admiração.
— Basta, senhora — dizia —, não fales assim! Esta aparência que
honras com um olhar, um pensamento, que é no fim das contas?
Lamentável, no fundo! Conviria recordar, a quem se inclinasse a sorrir-lhe,
aquilo que todos sabemos, mas que, por fraqueza, esquecemos — a
medíocre matéria de que tudo isto está formado e como o seu destino é a
decomposição... Deus tenha piedade de semelhante coisa! Pensa que dentro
em pouco estes cabelos cairão lamentavelmente, como os dentes, hoje
alvos. Estes olhos — sangue e água — cairão como tudo mais que há de
murchar e perecer vilmente. Julgo acertado não guardar avaramente para
mim estas certezas, mas transmitir-tas também para o caso de te serem
proveitosas.
Ela, porém, não o acreditava e seu estado a incapacitava para uma
reeducação. E não lhe guardava rancor por admoestá-la, feliz como se
achava de que já não se falasse do trigo e de outros temas difíceis e
honestos do mesmo jaez e de que a conversação se desenvolvesse num
terreno em que sua competência feminina se sentia dominadora, não tendo
mais seus pés o menor desejo de fugir.
— Que ideias extravagantes, Osarsif! — replicava ela, e seus lábios
demoravam-se neste nome, acariciando-o. — Tuas palavras são cruéis e
falsas — e falsas precisamente pela sua crueldade. Supondo que fossem
verdadeiras e indiscutíveis do ponto de vista da razão, são insustentáveis
perante o coração e a sensibilidade, para os quais não passam de um
chocalhar de cascavel. Em vez de a fragilidade da substancia diminuir as
razões para admirá-la, cria, pelo contrário, mais uma, porque então nossa
admiração se enche de ternura, o que não acontece com a homenagem que
tributamos à beleza de pedra ou de bronze, à matéria incorruptível. Nosso
gosto nos leva à forma palpitante com um ardor infinitamente maior do que
à perdurável beleza das estátuas saídas das oficinas de Ptach. Como poderás
fazer o coração crer que o tecido da vida é de uma trama mais medíocre,
mais vil do que a substância imperecível de que suas cópias se compõem?
Nunca, em nenhum tempo o coração admitirá semelhante coisa. A
perenidade é coisa morta, e só o que morreu conhece a duração. Debalde os
diligentes alunos de Ptach põem faiscações nos olhos de suas estátuas para
que pareçam dotadas de vista; elas não te veem, só tu as vês; não te
respondem com a existência própria de um Tu que é ao mesmo tempo um
Eu, igual a ti. Nós somos sensíveis apenas à beleza que com a nossa se
parece. Quem se sentiria tentado a pousar a mão na fronte da efigie
inalterável saída da oficina, ou de beijar-lhe a boca? Estás vendo quanto é
mais viva e tocante a inclinação que nos leva para as formas vivas,
efêmeras na verdade... O efêmero! Para que, com que fim me falas nisso,
Osarsif, e me atemorizas com essa palavra? Passeia-se acaso com uma
múmia em volta da sala para advertir que a festa está a terminar e que tudo
passa? Não, pelo contrário, porquanto na sua testa está escrito”Festeja este
dia.”
A resposta era boa e até excelente (no seu gênero, entende-se), inspirada
por um desvario para o qual os restos de inteligência que subsistiam do
período de saúde formavam sedutora veste. José restringiu-se a suspirar e
não quis insistir sobre a fealdade da carne debaixo tia sua casca, convencido
de que o desvario não se cura com isto e que o coração e a sensibilidade”
não tomam conhecimento de tal coisa. Tinha mais que fazer do que estar
explicando àquela mulher que a vida já era o engano nas estátuas das
oficinas e que a beleza era esse engano nos putrescíveis filhos dos homens,
e que a verdade que une a vida e a beleza forma um bloco sólido e sem
engano, pertencendo a uma ordem diversa, a única digna de prender a
atenção. Por exemplo, teve de fazer os maiores esforços para rejeitar os
obséquios de que, desde pouco tempo, ela começava a cumulá-lo, de acordo
com um antigo impulso sempre vivo entre os namorados, nascido de um
sentimento de dependência em relação com o ente de quem se fez um deus,
e de um instinto que move a fazer-lhe sacrifícios, a engrandecê-lo, a mimá-
lo para o seduzir. E ainda não é tudo. O obséquio amoroso serve também
para uma pessoa assenhorear-se do amado; serve para marcá-lo com um
selo distintivo perante os olhos do mundo, para pôr-lhe a libré da
indisponibilidade. Se ficas com o meu presente, meu és. Em amor, a dádiva
por excelência é o anel: quem o oferece sabe o que quer e quem o aceita
deveria saber também a que se compromete e ver nele o fuzil de uma cadeia
invisível. E assim Eni, coibida, ofereceu a José, para agradecer-lhe seus
serviços e por tê-la iniciado nos negócios, um anel valiosíssimo com um
escaravelho gravado. Depois, numa ou noutra ocasião, outras joias como
braceletes de ouro, colares de pedras multicores e até trajes de gala de linda
confecção, ou melhor, quis, com palavras ingênuas, que ele os aceitasse.
José, porém, tendo respeitosamente aceitado um ou dois objetos, recusou os
demais, primeiro com palavras delicadas e implorantes, depois com mais
frieza. Estes presentes desvelaram-lhe a verdadeira situação e lhe
permitiram reconhecê-la.
Com efeito, quando lhe disse concisamente, recusando um traje de
cerimônia que ela lhe queria dar”Minha capa e minha camisa me bastam”,
reconheceu a cena que se representava. Sem percebê-lo, respondera como
Gilgamesh a Istar, quando esta o assediava por causa da sua beleza e lhe
dizia”Vamos, Gilgamesh, tens de casar comigo e dar-me teu finito!” —
fazendo reduzir o esplendor de numerosos presentes caso aceitasse sua
súplica. “A situação é a mesma!” — - disse consigo o homem e, diante
dessa circunstância, à sombra do mito, reparou no seu caráter fundamental
e, mais que real, autêntico, e sentiu-se tranquilizado. Mas sentiu-se também
estremecer vendo-se dentro de um espetáculo, de uma festa, uma
mascarada, na atualização de uma história de deuses, a desenvolver-se de
certa maneira, e julgou sonhar. “Ora, vamos!”, pensava José, olhando para a
pobre Mut. “És a filha lasciva de Anu e o ignoras no fundo de ti mesma.
Vou exprobrar-te os numerosos amantes que feriste com o teu amor,
metamorfoseando um em morcego, outro em pássaro multicor, um terceiro
em cão feroz, de maneira que seus próprios pegureiros o expulsaram a ele, o
guarda do gado, e os outros cães morderam sua pele. ‘Sofrerei a mesma
sorte que eles’ — eis o que eu devia dizer para permanecer dentro do
espirito do meu papel. Por que foi que Gilgamesh falou assim e te insultou
tanto que, no teu furor, correste a ter com Anu e o decidiste a enviar contra
o rebelde o touro celeste de hálito de fogo? Agora o sei, porque mo
explicou por intermédio dele e eu o explico através de mim Falou assim por
o desgostarem teus cumprimentos de ama, e ele foi diante de ri como uma
jovem donzela, abroquelou-se na tua castidade contra teus desejos e tuas
dádivas, Istar barbada!”
DA CASTIDADE DE JOSÉ

Agora que vemos os pensamentos de José, o ledor de pedras,


coincidirem tão bem com os do seu predecessor, ele mesmo nos sugere a
palavra que nos provoca uma análise ao mesmo tempo cabal e sumária, que
introduziremos aqui com o sentimento que nos incumbe de render com ela
uma homenagem às belas-letras — a palavra “castidade”. Por uma
associação de ideias, através dos milênios, esta palavra está
indissoluvelmente unida à pessoa de José e forma o complemento clássico
de seu nome — “o casto José” —, ou então, transposta ao plano alegórico e
típico, “um casto José”. Esta fórmula agradável e afetada perpetua sua
recordação numa humanidade que um profundo abismo separa da época em
que ele viveu; e não julgaríamos ter trazido pata a sua história uma
contribuição exata e completa se não expuséssemos neste lugar, por
variados e confusos que sejam, os motivos desta castidade tantas vezes
descrita e os elementos de que se compunha — isto em beneficio do
observador, o qual, por uma compreensível piedade dos sofrimentos de
Mut-em-enet, se sentisse irritado com a obstinação de José.
A palavra castidade, é ocioso dizê-lo, não poderia ser empregada
quando é deficiente a faculdade de agir, como no caso dos comandantes
honoríficos de tropas e mutilados camareiros do sol. Que José fosse um ser
intacto e cheio de seiva, é conjetura cuja evidência se impõe. Sabemos,
além disso, que na idade madura contraiu, sob a égide real, um matrimônio
egípcio, do qual nasceram dois filhos, Efraim e Manassés (mais tarde os
conheceremos). Portanto, não permaneceu casto toda a sua vida de homem,
mas somente durante a juventude, sendo para ele a ideia de juventude
inseparável da castidade. Claro está que não velou pela sua virgindade
(visto que esta palavra se emprega também a propósito de um rapaz) senão
o tempo que permaneceu sob o sinal distintivo do vedado, da tentação e da
queda. Depois, quando essa auréola de virtude, por assim dizer, se lhe
tornou alheia, renunciou a ela despreocupadamente. Assim, o epíteto
clássico não poderia ser-lhe aplicado durante toda a sua existência, mas só
dentro de determinado período.
Resta também explicar o equívoco segundo o qual sua castidade juvenil
se devia a uma ingenuidade bronca, a ser ele como um homem de pau a
respeito de coisas do amor, ou que para elas fosse desajeitado e bronco —
conceito que, para os temperamentos fogosos, facilmente se associa ao de
“castidade”. Que o filho querido da dor de Jacó se mostrasse, em situações
ardentes, um pascácio, um infeliz, presunção é que não se harmoniza com a
imagem dele que já conhecemos e que contemplamos através dos olhos de
seu pai — o adolescente de dezessete anos, à beira do poço, em palestra
galante com a lua e embelezando-se para ela. Longe de derivar de uma
deficiência física, sua famosa castidade repousava, ao invés, numa
penetração geral do mundo e de suas cambiantes relações com ele num
espírito amoroso, um amor universal que merecia este nome coletivo
porque não se detinha nos confins do terrestre, senão que estava presente
em todas as suas relações — perfume, matiz delicado, significação
inquietante, razão subjacente e secreta —, em todos os aspectos, ainda os
mais terríficos e sagrados. Daqui justamente se origina sua castidade.
Detivemo-nos anteriormente no fenômeno dos zelos vivos de Deus, a
propósito das provas de caráter não-equívoco que o antigo demônio do
deserto infligiu (apesar da santificação recíproca muito desenvolvida e do
pacto feito com o espírito humano) àqueles que eram objeto de sentimentos
desenfreados e da latria. E Raquel teve disto alguma notícia.
Oportunamente dissemos que José compreendia melhor esta suscetibilidade
e a levava em consideração com espírito mais maleável que o de Jacó, seu
sentimental genitor. Sua castidade era antes de tudo a expressão deste
discernimento e destas reflexões. Ele tinha compreendido naturalmente que
suas dores e sua morte — por mais vastos que fossem os desígnios que
implicavam — eram o castigo da orgulhosa paixão de Jacó (esta réplica,
julgada intolerável, de uma predileção majestosa), um ato dos Supremos
Ciúmes dirigido contra o inditoso velho. Sob este aspecto as provas de José
se endereçavam a seu pai, sendo continuação das de Raquel, a quem Jacó
não tinha deixado de amar estremecidamente no filho. O ciúme tem um
sentido duplo e pode traduzir-se de dois modos: há o ciúme do objeto que
outro ser cujo amor total se exige ama também em excesso, ou então tem-se
ciúme do objeto porque a própria pessoa o deseja a todo transe e dele exige
um amor total. Pode suceder também que as duas proposições, ambas
igualmente verdadeiras, se conjuguem para formar o ciúme perfeito, e José
não se equivocava de todo quando a princípio deu ao seu caso um caráter de
perfeição. Ele pensava que não tinha sofrido e sido vendido única e
principalmente para castigo de Jacó, mas que havia servido de instrumento
sobretudo porque ele próprio era objeto de uma predileção augusta, de um
favoritismo soberano e de uma preservação ciumenta; e isto encerrava um
sentido a respeito do qual Jacó não deixava talvez de fazer algumas
angustiadas conjeturas, mas demasiado alheias a seu espírito paternal
ponderado, que ainda não chegara a tal grau de sutileza. Concebemos que
também uma sensibilidade moderna pode ser profundamente transtornada
por semelhantes hipóteses, por uma semelhante insistência sobre as relações
entre a criatura e o criador, que nos parecem tão inoportunas como à
ponderada razão do pai. Não obstante, têm seu lugar marcado no tempo e na
evolução e, do ponto de vista psicológico, não padece dúvida que mais uma
entrevista fecunda, transmitida pela tradição e que se desenrola sob a
proteção de uma nuvem entre Aquele (fosse qual fosse o seu nome) e seu
discípulo e favorito, se revestiu de um caráter de 'extrema vivacidade que a
princípio justificava as concepções de José e só fazia depender sua
plausibilidade do seu merecimento pessoal, sobre o qual nos abstemos de
nos pronunciar.
“Conservo-me puro”, tais eram as palavras que em outro tempo o
pequeno Benjamim ouvira dos lábios do irmão que admirava. Elas se
aplicavam tanto à pureza de seu rosto desprovido de pelos, coisa possível na
especial formosura dos seus dezessete anos, como às suas relações com o
mundo exterior, que eram de uma austeridade bastante afastada da
bronquidão. Esta austeridade não era outra coisa senão sua previsão, sua
prudência diante de Deus, suas considerações sagradas; e sua assombrosa
aventura, a dilaceração da coroa e do véu, outra coisa não fizera senão
fortificar essa reserva. O orgulho que a isto se unia tirava-lhe sem dúvida
todo caráter de monótona privação. Não se trata da torturante maceração
carnal, imagem fosca sob a qual um espírito moderno inevitavelmente
representa para si próprio a castidade. Este espírito deverá reconhecer por
fim que existe uma castidade alegre e até arrogante; e se certa
espiritualidade clara e audaz inclinava José a esta castidade, por outro lado
a prazerosa presunção de piedosos esponsais contribuía para tomar-lhe fácil
aquilo que para outros equivaleria a terrível miséria. Durante sua conversa
com Meh-en-Vesecht, a concubina de gala, uma alusão havia saído da boca
de Mut acerca do escárnio que julgava ler nos olhos do jovem intendente,
escárnio para os estragos da paixão, humilhante para sua vítima. A
observação era justa, porque, na verdade, dos três animais que, segundo
José, velavam no jardim da passarinheira, “vergonha”, “culpa” e “riso
zombeteiro”, este último lhe era mais familiar, mas não de um modo
passivo, como vitima do animal, segundo correntemente se entendia; não,
era ele que ria com riso escarninho, e as mulheres que o espiavam dos
telhados e dos muros não achavam outra coisa em seus olhos. Semelhante
atitude diante da voluptuosidade amorosa existe, é sem dúvida possível; a
consciência de vínculos mais altos e de um amor de eleição pode
determiná-la. Se alguém vê nela soberba para com o que é humano e julga
reprovável que se apresente a paixão debaixo do aspecto do ridículo, saiba
que a nossa narrativa se encaminha para as horas nas quais José perdeu toda
a vontade de rir, e que a segunda catástrofe da sua vida, seu novo
aniquilamento, foi provocado por essa potência à qual, no seu orgulho
juvenil, acreditara poder negar seu tributo.
Eis aqui, pois, o primeiro dos motivos pelos quais José se afastou do
desejo da mulher de Putifar; comprometido com Deus, usava sábias
atenções, unha em conta o sofrimento particular que a felonia inflige ao
solitário. O segundo motivo, em conexão estreita com o primeiro, era seu
reflexo e por assim dizer sua réplica terrestre e burguesa: a fidelidade selada
no pacto com Mont-kav, partido para o ocidente, a fidelidade a Putifar, o
senhor suscetível, o mais alto no seu contorno imediato.
Esta equivalência e esta mudança que se operavam no espírito do neto
de Abraão entre o verdadeiro Altíssimo e aquele que não o era senão
relativamente e em círculo restrito parecerão absurdas e grosseiras ao
espírito dos tempos modernos. No entanto, tem-se de aceitá-las e admiti-las
se se quiser saber o que passou por essa cabeça dos tempos primitivos
(ainda que tardios), cujos pensamentos tinham a dignidade racional, a
serenidade e a naturalidade dos nossos. E certo que a pessoa obesa, mas
nobre, do camarista do sol, o marido titular de Mut, no seu melancólico
egocentrismo parecia ser, para essa cabeça quimérica, a réplica inferior, a
repetição carnal do Deus de seus pais, sem esposa e sem posteridade,
solitário e exclusivo, a quem firmemente resolvera guardar sua fidelidade
humana por paralelismo atrevido com desígnios secretos e utilitários. Se se
ajunta sua solene promessa ao moribundo Mont-kav de proteger com todas
as suas forças a vulnerável dignidade do amo e não deixar que lha
deslustrassem, ainda melhor se compreenderá que o desejo agora mal
dissimulado da pobre Mut tinha de produzir em José o efeito da tentação,
estendendo paia ele sua língua sibilante, para induzi-lo a adquirir a noção
do bem e do mal e renovar a loucura de Adão. E é este o segundo motivo.
Quanto ao terceiro, bastará dizer que sua virilidade despertada não
admitia ser levada a uma categoria de passividade feminina, pelo desejo de
uma dama; queria ser a flecha, não o alvo, e nisto nos entendemos bem.
Talvez seja este o lugar de mencionarmos o quarto motivo, já que também
se origina no orgulho, ainda que desta vez no orgulho espiritual.
José detestava tudo o que Mut, mulher egípcia, representava para ele e
que um altivo preceito de pureza hereditária lhe proibia misturar no seu
sangue; a antiguidade do país em que fora vendido, o símbolo da duração,
sem promessa, encravado numa imutabilidade selvagem, olhos fitos num
futuro árido, morto, privado da espera, e que, contudo, fazia menção de
estender sua garra e querer atrair ao seu regaço o perplexo filho da
promessa, para que ele lhe dissesse o seu nome, fosse qual fosse o seu sexo.
Era uma caducidade despida de promessa, a lubricidade ávida de sangue
jovem, em particular daquele que eia jovem não apenas na idade, mas
porque estava escolhido para o futuro. No fundo, José nunca esquecera esta
superioridade desde que, miserável escravo, não sendo nada, não sendo
ninguém, chegara ao país; e, apesar do cosmopolitismo complacente, inato
nele, graças ao qual se assimilara aos filhos da lama entre os quais se
propunha prosperar, sempre tinha conservado suas distâncias e sua reserva
íntima, sabendo bem que não devia comprometer-se com a abominação,
sentindo bem, nas situações extremas, de que espírito havia brotado e de
que pai era filho.
O pai! Era este o quinto motivo, se não era o primeiro, o essencial.
Não sabia o acabrunhado ancião, que por triste hábito acreditava que
seu filho estava seguro, à sombra da morte, não sabia, dizemos, onde este
filho, já trajado completamente à moda estrangeira, vivia e agia.
Se o soubesse, sem nenhuma dúvida cairia de costas, petrificado pela
dor. Quando José pensava no terceiro dos três temas que lhe povoavam o
cérebro — arrebatamento, elevação, reunião no Egito —, não escondia a si
próprio a resistência que Jacó lhe oporia. Não lhe eram desconhecidos os
patéticos preconceitos do Venerável contra Mizraim, seu horror ao mesmo
tempo paternal e filial à pátria de Agar, o simiesco país do Egito. Por uma
errônea interpretação do nome de Keme, que se aplicava à negra terra fértil,
o bom do homem o fazia derivar de Cam, o ofensor de seu pai, o
desavergonhado. Sua imaginação lhe pintava a horrível vesânia dos filhos
desse país, tudo o que se referia à disciplina e aos costumes, debaixo de
imagens tétricas que José havia sempre considerado como indício de pontos
de vista acanhados, de que sorria como de fábulas, desde que por esses
sítios transitava. Em última análise, a luxúria dos filhos do país não era pior
que a dos de outras terras. De resto, como poderiam ter a protérvia de
entregar-se à sodomia aqueles pobres campônios que gemiam sob o peso
dos impostos e os aguadeiros que vergavam debaixo da férula
administrativa, todos eles conhecidos de José havia nove anos? Em resumo,
o ancião sonhava com solenes absurdos a respeito dos egípcios, como se o
seu gênero de vida pudesse fazer tremer de lubricidade os filhos de Deus.
Não obstante, José era o último a dissimular a si mesmo a ponta de
verdade existente nesta recusa de adesão moral de Jacó ao pais dos
adoradores de animais e de cadáveres; e durante este período mais de uma
palavra edificante e crua lhe retiniu nos ouvidos, palavra essa pronunciada
pelo preocupado velho com referência a uma gente que, a seu talante,
aproximava o seu leito do leito do vizinho e mudava de esposa; de mulheres
que, a caminho do mercado, vendo algum mancebo que lhes agradava, se
ofereciam imediatamente para dormir com ele, sem se lhes dar do pecado.
José conhecia a esfera de onde Jacó extraía estes quadros inquietantes; era a
esfera de Canaã, com o tremendo refervor do seu culto oposto à razão dada
por Deus; a esfera da demência de Molech, das danças acompanhadas de
cantos, da prostituição e do “aulasaukala”, onde se adoravam os ídolos
dispensadores de fecundidade, num furor de cópula ritual. José, o filho de
Jacó, não entendia que se pudesse adorar a Baal, e era este o quinto dos sete
motivos da sua reserva. O sexto será enunciado daqui a pouco. Todavia, em
nome da compaixão, assinalemos de passagem a triste fatalidade que pesava
sobre o amoroso desejo da pobre Mut: efetivamente, aquele a quem sua
esperança tardia se agarrava olhava-a precisamente debaixo de prismas
semelhantes. Por culpa de seu pai, desconhecia-a, colocando-a sob o signo
de um mito, acreditando perceber na chamada da sua ternura um som de
impudicícia tentadora que não existia. A paixão de Eni nada tinha de
comum com a insânia dos sequazes de Baal e com o “aulasaukala”; era um
sofrimento fundo e sincero provocado pela formosura e pela mocidade de
José, um desejo brotado das profundidades do seu ser, tão decente como
outro qualquer e não mais libertino do que o amor. Se depois degenerou e se
ela perdeu a razão, único responsável é o seu desespero ao chocar-se com
uma reserva sete vezes motivada. Quis a desgraça que não fosse sua
verdadeira pessoa a que decidisse de seu amor, mas a que representava para
José o sexto motivo, “a aliança com o Cheol”.
Convém que se compreenda bem tudo isto. José considerava de um
ângulo espiritual e do ponto de visa dos princípios um caso em que queria
demonstrar sabedoria, sagacidade, evitar culpas e não deitar nada a perder;
e para ele à ideia hostil e capciosa da demência balbuciante de Baal, de
essência cananeia, vinha agregar-se (objeção ainda mais grave) um
elemento especificamente egípcio; o culto da morte dos mortos, forma
autóctone da prostituição de Baal, e, para desgraça de Mut, José via a
representação clara dela em sua ardorosa senhora. E inimaginável o rigor da
advertência vinda do fundo das idades, do Não primordial que, para José, se
apoiava nas entrelaçadas ideias de morte e devassidão, a ideia do pacto com
a região inferior e com os de lá de baixo: infringir esta proibição, “pecar”,
comportar-se mal neste ponto equivalia a perder tudo. Iniciados em tais
coisas, tratamos de tomar-vos familiar, a vós outros a quem uma distância
maior separa dele, um modo de pensar que, unido às sérias dificuldades que
lhe criava, parecerá sem dúvida absurdo ao espírito racional de uma época
posterior. Sem embargo, o que emergia contra a tentação irracional e
impudica era a razão mesma, a depurada razão paternal. Não é que José não
tivesse o sentido e o gosto do desatino; em sua casa, a ansiedade do pai
soubera a quantas andava a tal respeito. Mas, para poder pecar, não é
preciso que uma pessoa saiba que está em pecado? Para pecar, é necessário
o espírito; tudo bem ponderado, o espírito não é outra coisa senão o
entendimento do pecado.
O Deus dos pais de José era um Deus espiritual, ao menos se se
considera o objeto com que fizera sua aliança com o homem; unindo sua
vontade de santificação à do homem, nunca tinha tido nada de comum com
o mundo ínfero e com a morte ou com qualquer insensatez saída das trevas
da fecundidade. No homem Ele adquirira consciência de que estas coisas
lhe eram abomináveis e o homem adquirira disso consciência nele. Quando
José havia desejado uma boa-noite a Mont-kav na sua hora derradeira,
deixara-se levar ao comentário de sua concepção da morte; para confortá-lo,
havia-lhe falado do que sucederia depois da vida e de como se encontrariam
sempre juntos, unidos através das histórias. Isto, porém, fora uma pura
concessão à amizade, um sacrifício à inquietação do homem, um ato de
impiedade misericordiosa com o qual se apartara um instante do princípio
estatuído — a proibição estrita e rigorosa de olhar para o além. Para seus
pais e para seu Deus que neles se santificava, este preceito fora um meio de
diferençar-se nitidamente dos vizinhos deuses cadavéricos, em seus templos
sepulcrais e em sua rigidez mortal. Somente a comparação permite se façam
distinções para ficarmos sabendo quem somos, a fim de que se possa chegar
a ser plenamente o que se deve ser. Assim a famosa e decantada castidade
de José, futuro esposo e pai, não era "ma negação injuriosa e sistemática do
amor e da procriação, o que, de resto, seria um desmentido à promessa feita
ao antepassado de que sua semente seria inumerável como as areias. José
levava no sangue a ordem transmitida por herança que lhe prescrevia
conservasse intacta a sabedoria recebida de Deus e a preservasse da
demência comuda, o “aulasaukala”, que, com o culto dos mortos, constituía
a seus olhos uma indissolúvel unidade psíquica e lógica. O infortúnio de
Mut foi que José vira no seu desejo a tentação através deste complexo de
morte e libertinagem, uma cilada do Cheol; sucumbir significaria a nudez
total que destruiria tudo.
E assim chegamos ao sétimo e último motivo — o último no sentido de
que englobava os outros, os quais, no fundo, derivavam todos deste
sentimento de pudor: era o “desnudamento”. Este motivo já se nos
apresentou quando Mut quis tirar ao colóquio a sua folha de parreira — o
pretexto dos negócios. Mas cumpre-nos considerá-lo aqui mais uma vez,
com a solene multiplicidade de seus significados e de suas consequências
de vastas projeções.
A acepção de uma palavra, o seu sentido, está sujeita a um fenômeno
bastante estranho quando se refrata diversamente no espírito, assim como a
unidade da luz, decomposta pela nuvem, se transforma num arco-íris. Basta,
na verdade, que uma de suas refrações se associe inoportunamente com o
pensamento do mal e se faça anátema para que a palavra caia em descrédito
e constitua um horror em seus diferentes aspectos, já não mais apta senão
para designar coisas horrorosas, e condenada a servir de rótulo a todos os
erros imagináveis, como se, por ser o vermelho uma cor nefasta, a cor do
deserto, a cor da estrela polar, estivesse desprovido da inocência serena de
toda a luz celeste, não-decomposta. Em sua origem, a noção de nudez e de
desnudamento não estava desprovida de inocência e de serenidade. Sobre
ela não pesava nenhum rubor de pejo, nenhum anátema. Mas, desde a
maldita história de Noé na tenda, com Cam e Kenaan, o mau filho, havia
sofrido uma rachadura, se assim e licito dizer-se; aparecendo vermelha e
suspeita a princípio no lugar da fenda, passara completamente a vermelho-
púrpura. Depois, nada mais havia que fazer senão designar com seu nome
as coisas abomináveis, todas as abominações (ou quase todas) avassaladas
por esse nome e dele impregnadas. Antes, nove anos atrás, quando o bom
Jacó admoestava seu filho à beira do poço por estar este confabulando com
a lua, a prestar-lhe a homenagem da sua desnudez, tinha-se podido medir a
desagradável alteração da ideia, em si agradável, de um rapaz despido junto
a um poço. O desnudamento, no sentido simples e verdadeiramente camal
da palavra, era em sua origem tão inocente e tão neutro como a luz celeste.
O vocábulo não se tingira de vermelho a não ser figuradamente, para
designar a demência de Baal e a vista mortalmente sacrílega de um parente
nu. Agora, porém, em vez de ter apenas um sentido metafísico, o fulgor
vermelho reverberava sobre a palavra limpa também em sua pureza
original, e estes jogos de iluminação alternados haviam exasperado tanto
sua vermelhidão que “nudez” chegara a caracterizar todos os pecados do
sangue, o que efetivamente estava consumado como o que o não estava a
não ser pelo olhar e a intenção, de modo que tudo o que era proibido ou
entregue ao anátema, no domínio da voluptuosidade e da penetração da
carne, e em particular (sempre em memória da vergonha irrogada a Noé) a
irrupção do filho no terreno reservado ao pai, chamava-se “desnudamento”.
E, como se isto não bastasse, uma nova equivalência e outra relação se
operavam aqui: a falta de Rubem, a ofensa feita pelo filho ao leito paterno,
começava a aplicar-se a tudo quanto estava defeso — olhares que se
cruzam, desejos, atos —, e não estava longe de evocar o pensamento e até
de receber o nome de ultraje ao pai.
Eis aqui o que (não há como deixar de reconhecê-lo) passava pela
mente de José. O ato que a esfinge do país dos mortos desejava que ele
realizasse afigurava-se-lhe um desnudamento paterno. E não o era acaso, se
se pensa na imagem imunda que no espírito do ancião, tão distante,
suscitava o país da lama, e quão angustiado e cheio de terror se sentina ao
saber que seu filho vagava no meio de tentações, em vez de achar-se sob o
amparo da eternidade? Diante de seus olhos, cujo olhar José sentia — olhos
obscuros, repletos de ansiedade, vincados de olheiras —, iria José cometer
o pecado do desnudamento, exceder-se estupidamente como noutros tempos
fizera Rubem, a quem sua impetuosidade despojara da bênção paterna?
Além disso, esta adejava em torno de José, e iria ele comprometê-la por
uma estúpida impetuosidade, brincando com o equívoco animal armado de
garras, como antes Rubem com Bala? Quem irá estranhar se, no seu íntimo,
a resposta a tal pergunta era”Por nenhum preço.”? Quem estranhará,
repetimos, se considera que o conceito de pai, e por conseguinte o de
afronta ao pai, se apresentava a José em forma composta, repleta de
identificações? Por ardente, por afeiçoado às coisas do amor que seja um
homem, achará extraordinária uma “castidade” baseada numa prudência
elementar para com Deus e que consiste em evitar a mais grosseira e
prejudicial das culpas?
Tais eram os sete motivos pelos quais José não queria por nenhum preço
seguir a chamada do sangue da dama. Reunimo-los segundo seu número e
peso, examinando-os com certa serenidade bem fora de lugar, na hora
festiva que estamos celebrando, visto que José ainda se debate no meio da
tentação e uma vez que, na época na qual a história pela vez primeira se
contou a si mesma, ele não tinha nenhuma certeza de sair, no momento
preciso, são e salvo deste apuro. E para a queda pouco faltou; sabemos que
José escapou por um triz. Mas também por que se aventurou tanto? Por que,
passando por cima das advertências sussurradas pelo anão, seu amigo, que
já via o fosso aberto ante seus pés, foi ouvir os discursos falazes do outro
anão, o fálico? Numa palavra, por que, apesar de tudo, não evitou a dama e
deixou as coisas chegarem ao ponto que sabemos? Seria por faceirice, por
mundanismo, por simpática curiosidade dirigida ao que é vedado, por certa
complacência reflexiva com seu nome de falecido e com o estado divino
que implicava. Havia também confiança muito cega em si mesmo, a
presunção de que se arriscava bastante por um terreno resvaladiço que ele,
se o quisesse, podia desandar em qualquer momento. Era também (reverso
mais elogiável do mesmo sentimento) por amor ao perigo, pela ambição de
ir ter com a dificuldade sem fazer maior esforço, de levar a situação até o
seu limite máximo, para depois resistir mais vitoriosamente à tentação.
Tratava-se, em suma, de pôr a sua virtude a uma prova tal que merecesse do
espírito paterno muito mais do que se o risco fosse apenas leve... Talvez
também ia nisso o conhecimento secreto do caminho que lhe cumpria
seguir, inclusive nos seus meandros, o pressentimento de que uma vez mais
iria terminar num ciclo restrito e que uma vez mais teria de descer ao fosso
inevitável, se era necessário que se realizasse o que estava escrito no livro
do destino.
7

O FOSSO

CARTINHAS DE AMOR

Estamos vendo e já dissemos que a mulher de Putifar, no terceiro ano do


seu amor, o décimo da estada de José no solar do camarista, começou a
oferecer o seu coração ao filho de Jacó com crescente violência. Em
substância, a diferença entre as insinuações do segundo ano e “o
oferecimento” do terceiro é mínima, achando-se este incluído naquelas e
sendo um pouco difícil determinar a fronteira limítrofe. No entanto existe e,
para transpô-la, para passar de uma simples homenagem e de olhares a
transbordar de desejo, que já eram um convite, a um autêntico pedido, a
mulher teve necessidade de tanto domínio sobre si como o de que precisaria
para triunfar da sua fraqueza e renunciar a suas ânsias; um pouco menos,
evidentemente, porque do contrário teria ela dado preferência a esta
segunda vitória.
Não fez tal. Em vez de dominar seu amor, reprimiu seu pudor e seu
orgulho, tarefa bastante ingrata, mas de uma dificuldade sensivelmente
menor, tanto mais que para realizar esse ato não estava tão só como para pôr
de lado o seu desejo. Efetivamente, encontrava apoio em Dudu, o anão
procriador, que entre ela e o filho de Jacó fazia de alcoviteiro. Acreditava
ser, no gênero, o primeiro e único e desempenhava assaz dignamente um
papel de protetor astuto, ao mesmo tempo conselheiro e mensageiro,
sempre soprando nas cinzas de ambos os lados, com as bochechas bem
inchadas. Porque havia dois fogos, não um só. O plano pedagógico de José,
que lhe servia de pretexto para encontros quase cotidianos com a dama,
quando devia fugir dela, era um absurdo, uma asnice pura e simples, uma
vez que, conscientemente ou não, o jovem se achava no estado do deus
pronto a romper suas ataduras. Dudu naturalmente percebia isto, como o
compreendia o trêmulo Teófilo, porquanto sua astúcia e competência neste
terreno não só igualavam às do seu minúsculo colega, senão que as
superavam.
—Jovem intendente — dizia-lhe, nesta ponta do caminho, o anão
maldoso —, até agora tens sabido assegurar tua felicidade, e a inveja (coisa
que ignoro) vê-se obrigada a reconhecê-lo. Apesar de tua origem, honesta
sem dúvida, mas modesta, suplantaste aqueles que estavam acima de ti.
Deitas-te na câmara privada da confiança, e as rendas em trigo, pão,
cerveja, gansos, linho e couro, de que outrora fruíra o Osíris Mont-kav,
agora és tu quem as recebe. Leva-as ao mercado, já que te é impossível
consumi-las, aumentas teus cabedais e tua fortuna parece feita. Porém às
vezes, neste mundo, o que está feito se desfaz, perde-se o que se ganha,
quando o homem não sabe conservar sua sorte nem consolidá-la e não é
capaz de firmá-la sobre fundamentos inamovíveis, assegurando-lhe uma
duração eterna, como a um templo dos mortos. Amiúde sucede que à coroa
do feliz falta um florão para que seja completa e inabalável, quando ele só
teria de estender a mão para alcançá-lo. Mas, seja por timidez ou teimosia,
seja por indolência ou orgulho, o louco se abstém, mete a mão entre as
dobras da sua capa e obstina-se em não estendê-la para a suprema dita, que
descura, menoscaba e lança ao vento. Qual a consequência? A triste
consequência é que felicidade e proveito se esboroam, se arrasam e, por
causa de uma negativa desdenhosa, em breve a pessoa ignora que altura
alcançaram. Pôs-se de mal com as potências empenhadas em promover-lhe
a felicidade e fazê-la subsistir perenemente, à sombra deste radioso favor;
menosprezadas, ultrajadas, estas potências se encapelam como o mar, seus
olhos despedem chispas e de seu peito Mota um furacão de areia, como na
montanha do Oriente. E não somente se desinteressam da sorte desse
homem, mas se voltam, furiosas, contra ela e a solapam nas bases, o que
para elas e coisa de brinquedo. Tu desconheces, não o duvido, até que ponto
tua felicidade me interessa, a mim, homem de honra; na verdade, não
somente por tua causa, mas também e em igual proporção por causa da
pessoa que minhas palavras, conforme espero, designam claramente. E tudo
uma coisa só: sua felicidade é a tua e tua felicidade é a dela. Esta união é,
desde há algum tempo, uma feliz virtualidade, e só se trata de convertê-la
numa realidade de voluptuosas delícias. Quando penso e imagino em minha
alma na volúpia que gozarás, a cabeça me vacila, apesar de ser eu o homem
sólido que sou. Não falo da embriaguez carnal, primeiro por pudor, e depois
porque não padece dúvida de que será vivíssima, dada a pele sedosa e a
maravilhosa plástica da pessoa em questão. Refiro-me à volúpia da alma
que guindará a outra a regiões infinitas e consistirá no pensamento de que
tu, rapaz de origem certamente respeitável, mas muito modesta, estreitas em
teus braços a mais formosa e nobre dos dois países; hás de arrancar-lhe seus
mais apaixonados suspiros, em sinal de que tu, o jovem das areias e da
miséria, subjugaste o Egito e o fazes arfar e gemer debaixo do teu corpo. E
por que preço irás pagar esta dupla embriaguez, cujos componentes se
exaltam um ao outro cada vez mais, até o inaudito? Não a pagarás; és tu o
que será pago com a perenidade de uma ventura indestrutível, uma vez que
te transformarás no verdadeiro senhor desta casa. Pois o que possui a
senhora — concluiu Dudu — é o autêntico senhor.
E, alçando os bracinhos como diante de Putifar, enviou um beijo ao solo
em sinal de que antecipadamente o beijava diante de José.
Este havia, é certo, escutado com nojo o discurso vulgar do onze-letras,
mas, assim como assim, havia-o escutado, de modo que a altivez com que
acompanhou sua resposta ficou descabida.
— Eu gostaria, anão — respondeu-lhe José —, de que não me falasses
tão extensamente das tuas iniciativas e não me desenvolvesses, sem que to
peça, tão singulares ideias, que não têm aqui nenhuma cabida. Fica no teu
papel de emissário e de boca informadora. Se tens algum recado vindo do
alto para notificar-me ou transmitir-me, dá-mo. Se não, prefiro ver-te pelas
costas.
— Seria culpável ir-me antes do tempo — retrucou Dudu — e sem ter
cumprido minha missão. Pois tenho alguma coisa que transmitir-te. Cuido
que é permitido ao emissário, ao enviado superior, adornar e comentar a
mensagem.
— Qual é ela? — indagou José.
O gnomo entregou-lhe alguma coisa, um breve papiro, uma folha
estreita e comprida, na qual Mut havia traçado algumas palavras com o
pincel...
Porque, na outra extremidade do caminho, o astuto anão falara assim:
— O mais fiel dos teus servos (e com estas palavras creio que a mim
mesmo me designo) se irrita, ilustre senhora, com o tempo que as coisas
necessitam para mover-se e avançar, sendo lento e vacilante o seu avanço.
O acima mencionado se torce de raiva e de cuidados por tua causa, pois tua
beleza poderia padecer. Não que ela já me pareça afetada (os deuses nos
preservem de tal coisa!), porquanto se acha no auge de sua expansão ema
tens em abundância. Se diminuísse, se minguasse consideravelmente, seu
resplendor sobrepujaria sempre a norma humana. Por este lado, nada há que
temer. Mas, sem falar na tua beleza, tua honra (e por conseguinte também a
minha) sofre com esta situação que faz com que tu e o jovem colocado à
testa da casa, e que se chama Osarsif, mas a quem eu quisera chamar
“Nefernefru”, pois certamente é o belo dos belos... gostas deste nome, não é
verdade?... Imaginei-o para ti, ou melhor, não o imaginei eu, senão que o
ouvi e apanhei no ar para pô-lo à tua disposição, pois é o nome que lhe dão
tanto na casa como nos caminhos da terra e da água e na cidade. Sim, até as
mulheres sobre os telhados e os muros lhe chamam assim, e nomeadamente
as mulheres, sim, contra as quais por desgraça ainda não se assentou
nenhuma sanção séria... Deixa, porém, que reate o fio do meu discurso
maduramente elaborado. Teu humilde servidor se enfurece porque a tua
honra está em jogo e só te chegas com grande lentidão à finalidade que te
propões com esse Nefernefru, a qual consiste, como sabemos, em
surpreender-lhe o feitiço e arrastá-lo à sua queda, para que te revele seu
nome. Combinei e obtive, é certo, de ti e dele, que ama e servo não se
encontrem mais com uma escolta de escrivães e de seguidoras, mas
conversem sem constrangimentos nem fastidioso ritual, sós por sós, e em
qualquer ocasião. Isto aumenta as possibilidades de que ele por fim te diga
o seu nome na hora mais silenciosa e mais doce e que tu sucumbas com o
prazer de tua vitória sobre ele, o esquivo, e sobre todas aquelas a quem sua
boca e seus olhos trazem embeiçadas. Hás de selar-lhe os lábios de tal
maneira que se esquecerá de suas palavras maviosas e farás de modo que
seu olhar meigo se quebre na embriaguez da derrota. A dificuldade está em
que o rapaz se protege e não quer ser derrotado por ti, nem dever a ti sua
queda, a ti, sua senhora, o que aos meus olhos é simplesmente uma rebelião
e um gênero de pudor que Dudu não titubeia em capitular de impudência.
Como? Tu desejas vencê-lo, convida-o a submeter-se, tu, a filha de Amun,
flor do harém do Sul, e ele, o Amu hebreu, o escravo estrangeiro de uma
linhagem obscura, te resiste, não quer o que tu queres e se entrincheira por
trás do seu palanfrório e de suas contas domésticas? É intolerável. Isto se
transforma em insubordinação e numa insolente falta de deferência da parte
dos deuses da Ásia para com Amun, o senhor em sua capela. Assim, o
escândalo da casa mudou de aspecto e de natureza. No começo consistia
simplesmente na elevação do escravo, agora é a rebelião aberta dos deuses
asiáticos que negam a Amun o seu tributo, pagável com a derrota desse
moço por ti, a filha de Amun. Isto devia suceder. A seu tempo eu o havia
predito. Mas o justo não poderia nem perdoar-te completamente, ilustre
dama, nem deixar-te imune de toda censura a propósito desta abominação
que paralisa o assunto e entrava a sua marcha. Tu não a aceleras por
escrúpulo de virgem, permites que esse rapaz mofe de Amun, o rei dos
deuses, por meio de rodeios e pretextos que se prolongam de uma lua a
outra. Isto é simplesmente terrível. Tua virgindade é a responsável por
carecer de iniciativa e de experiência.
Perdoa esta reflexão ao teu servidor leal; mas, realmente, donde te viria
o que te falta? Devias, sem vacilação nenhuma, mandar chamar esse
recalcitrante e rotundamente exigir dele o tributo da sua derrota, sem evasão
possível. Se não queres fazê-lo de viva voz, por virginal reserva, escuta-me,
existe para isso a escrita e a suave mensagem que ele, ao lê-la, entenderá, e
que podes redigir mais ou menos nestes termos”Queres bater-me hoje no
tabuleiro? Joguemos uma partida íntima.” A isto se chama uma missiva de
amor em que a energia da madureza se exprime com uma reserva alegórica
e virginal e se faz inteligível. Permite que eu te traga material para escrever;
escreverás conforme as minhas indicações, eu lhe entregarei tua mensagem
e afinal a ação deixará de arrastar-se, para glórias de Amun!
Assim falava Dudu, o hábil anão. Eni, por submissão de donzela à
autoridade do macho, tinha, pois, redigido uma carta por ditado seu. Agora
José a ha e não lograva dissimular o rubor de Atum que lhe subia ao rosto;
irritado com esta reflexão, despediu o mensageiro sem uma palavra de
agradecimento. Mas, apesar dos sussurros inquietos que o assediaram por
outro lado, rogando-lhe que não respondesse à capciosa provocação,
mostrou-se submisso e jogou com a dama no salão da colunata, debaixo da
imagem de Rá-Horachte, algumas partidas no tabuleiro. Uma vez ele a
lançou “na água” e deixou que ela o lançasse na vez seguinte, de sorte que,
compensando-se vitória e derrota, o resultado do encontro foi declarado
nulo, com desagrado de Dudu, que via imobilizada a intriga.
Tentou, pois, um derradeiro esforço e, jogando a última cartada, disse a
José, sussurrando do canto da boca.
— Tenho uma coisa para te entregar, da parte de certa pessoa.
— Que é? — perguntou o mancebo.
O pigmeu alçou até a altura dele um papelzinho, e pode dizer-se que
imprimiu à ação um impulso desesperado. Continha ele a palavra que
chamamos de incompreendida, porque não emanava de uma rameira, mas
de uma possessa, aquela palavra nua e crua, inequívoca, a despeito da
transposição que a escrita confere, em especial a escrita egípcia, de que
naturalmente se valera a mulher, e que, no agrupamento ornamental de seus
sinais em que as vogais emudecem, com suas evocações de consoantes
sugeridas por imagens simbólicas, possui sempre qualquer coisa de
hieróglifo mágico, de dissimulação florida, de espiritual mascarada
logogrífica, criada expressamente para a redação de recados amorosos, onde
as palavras mais diretas ganham um aspecto imaterial. A passagem decisiva
da carta de Mut-em-enet, aquela a que chamaríamos a sua essência,
compunha-se de três sinais fonéticos, precedidos de alguns outros
igualmente graciosos, e terminando com a imagem alusiva, rapidamente
esboçada, de um leito de descanso com a cabeça de leão, sobre o qual
repousava uma múmia. Eis aqui o hieróglifo:

Significava “deitar-se” ou “dormir”. Na língua de Keme ambos se


confundem, porquanto o mesmo hieróglifo tem o significado de "deitar-se”
e de “dormir”. A linha inteira traçada na estreita missiva e firmada com
uma imagem de abutre que significava Mut, exprimia claramente, sem
rodeios”Vem, dormiremos juntos uma hora.” Que documento! Valia o seu
peso em ouro, respeitável e comovedor em extremo, conquanto perigoso,
inquietante e de natureza sinistra. Temos aqui, na redação primitiva, na
versão original e marcada com o particular caráter da língua egípcia, a
confissão de seu desejo que, segundo a tradição, a mulher de Putifar dirigiu
pela primeira vez a José nesta forma escrita e por instigação de Dudu, o
anão procriador, que lhe ditara do canto da sua boca. E se o vê-la nos
comove, que tremor atravessaria José até a medula quando a decifrou!
Pálido, aterrado, fez sumir o papel em sua mão e despediu Dudu com o
reverso do seu abana-moscas. Mas a mensagem ficava, a doce exigência, o
grito voluptuoso, a chamada promissora da apaixonada; e ainda que, com
toda a honestidade, não tivesse ele de que surpreender-se, sentiu-se
profundamente conturbado, e foi tal a fermentação do seu sangue que
estaríamos quase a desconfiar, temerosos, da capacidade de resistência dos
sete argumentos, se é que a turbação desta hora de festa nos fizesse
esquecer o desenlace. Mas José, a quem aconteceu a história quando esta
em sua origem se contou a si mesma, vivia realmente, por inteiro, na
presente hora da festa, incapaz de enxergar do lado de lá e de adivinhar o
que quer que fosse a respeito do desfecho. No ponto a que chegamos a
história estava no ar, e no instante decisivo bastaria um cabelo para que os
sete motivos fossem postos de banda e para que José se convertesse em
presa do pecado, pois as coisas muito facilmente poderiam girar tanto para
um lado como para o outro. E certo que José estava resolvido a não cometer
o grande pecado e a não descontentar a Deus por nenhum preço; mas o
pequeno Teófilo tivera razão quando, na alegria que seu amigo demonstrara
por poder livremente optar entre o bem e o mal, divisava um como gosto
para o mal e não pela liberdade de escolher. Uma semelhante inclinação
inconfessada, oculta na soberba do livre alvedrio, encerra outra que consiste
em enganar-se e,por um extravio da razão, tomar o mal pelo bem. Já que
Deus estava tão admiravelmente disposto para com José, haveria de
condená-lo por causa do suave prazer que se lhe ofertava e que talvez fosse
Ele mesmo que lhe proporcionava? E se esse prazer fizesse parte — quem o
sabe? — do plano de sua elevação, essa elevação a cuja espera vivia o
vendido? Já o mancebo havia subido muito alto na hierarquia da casa e eis
que agora a ama volvia os olhos para ele e aspirava a entregar-lhe ao
mesmo tempo que seu nome suave o nome do Egito inteiro e a torná-lo, de
certo modo, o senhor do mundo. Qual o mancebo a quem a amada se
entrega que não acredita ser o senhor do mundo? E não era justamente isto
— fazê-lo senhor do mundo — o que Deus se propunha?
E vê-se que tentações solicitavam sua razão ligeiramente perturbada.
Seu conceito do bem e do mal se baralhava um pouquinho, e momentos
havia em que estava prestes a atribuir ao mal o sentido do bem. O sinal
simbólico que se seguia a “deitar-se”, essa forma de múmia, era adequado a
fazer-lhe compreender de que reino brotava a tentação e que sua derrota
seria uma ofensa imperdoável àquele que não era um deus mumificado, de
uma duração sem promessa, mas o Deus do futuro. José, contudo, tinha
sobejas razões para desconfiar dos sete argumentos, bem como da sua
atitude nas próximas horas festivas, e para prestar ouvidos ao amiguinho
que, em voz muito baixa, lhe rogava que não fosse ter com a senhora, que
não aceitasse mais os bilhetinhos que lhe trazia o outro anão e que temesse
o touro de fogo, já pronto para transformar com seu bafo as sorridentes
palavras num campo de cinzas. Conselho era este mais fácil de dar que de
seguir, porque, bem lançadas as contas, como podia José escapar da sua
patroa? Afinal, ela era a sua senhora e uma vez que lho ordenava tinha que
apresentar-se. O homem, porém, se reserva a faculdade de optar pelo mal,
compraz-se na sua liberdade de escolher e brinca com o fogo, quer por
bravata, para pegar o touro pelas pontas, quer por leviandade e sensualidade
secreta... quem poderá fazer uma distinção clara?
A LÍNGUA FERIDA (DRAMA E EPÍLOGO)

Veio a noite do terceiro ano em que Mut, a mulher de Putifar, mordeu a


língua porque, atormentada pelo furioso desejo de dizer ao jovem mordomo
de seu marido honorário o que já lhe havia comunicado em forma de
hieróglifo, queria ao mesmo tempo, por altivez e vergonha, proibir à sua
língua que se exprimisse e que oferecesse seu sangue ao escravo, para que
ele lho estancasse. Seu papel de ama encerrava esta antinomia: se por uma
parte tinha medo de falar e de propor a união de seus corpos, de seu sangue,
por outra parte esta iniciativa lhe incumbia na sua qualidade de iniciadora
do amor viril, de certo modo barbuda. Assim, uma noite mordeu a língua
em cima e embaixo, a ponto de quase cortá-la, e no dia seguinte, toda
dorida, parecia um menino que se machucou.
Nos dias que se seguiram à entrega da carta, tinha evitado José e não lhe
havia mostrado seu rosto, porque depois de sua ordem escrita não se atrevia
a fitá-lo cara a cara. Mas exatamente este privar-se de vê-lo a induziu a
dizer-lhe com a sua própria boca o que já lhe confessara com a escritura
mágica. O desejo de sua presença se traduzia pelo anelo de tomar a
iniciativa da palavra proibida ao servidor amado; de modo que, para saber
se também encontrava um eco em sua alma, Mut não tinha outra alternativa
senão pronunciá-la, ela, a dama, e oferecer-lhe sua carne e seu sangue com
a ardente esperança de que isso correspondesse aos desejos secretos de
José. Seu papel de senhora a obrigava a impudência, muito embora por isso
houvesse por antecipação castigado a si mesma mordendo a língua durante
a noite. Não obstante, podia dizer o essencial, de alguma forma,
balbuciando, por exemplo, como fazem as crianças; sempre era um recurso,
porque assim as piores palavras adquiriam uma expressão de inocência e de
candor, e até sua crueza se tomava tocante.
Por intermédio de Dudu mandou, pois, chamar José para discutir os
assuntos domésticos e depois jogar uma partida. Recebeu-o na sala de
Atum, à hora do dia em que o jovem intendente terminara seu serviço de
leitor na sala de Putifar, uma hora depois do almoço. Mut saiu de seu quarto
e dirigiu-se a ele, e, enquanto avançava ao seu encontro, teve José pela
primeira vez, ou pela primeira vez com conhecimento de causa, a revelação
que nós também reservamos para este instante — a da mudança
extraordinária operada nela desde que amava, ou seja, como bem se pode
inferir, por efeito do seu amor.
Em uma mudança singular. Definindo-a, corre-se o risco de surpreender
ou de não ser compreendido. Essa mudança oferecia ao jovem, desde que
dela dera fé, amplo campo para a surpresa e para a meditação profunda.
Não existe apenas a profundidade da vida do espírito, pois que há também a
da carne. Não que a mulher tivesse envelhecido nesse período; o amor
tinha-a conservado. Fizera-se mais formosa? Sim e não. Antes não que sim.
Antes, decididamente não, se por beleza se entende o que é puramente
admirável e de uma perfeição harmoniosa, uma imagem de refulgência que
deveria ser um enlevo celeste apertá-la nos braços, mas que não nos incita a
tanto, ou antes nos afasta de tal coisa, porque se dirige ao mais lúcido dos
nossos sentidos, à vista, e não à boca e à mão, se é que a alguma coisa se
dirige. A beleza conserva em tal caso um quê de abstrato e espiritual;
afirma sua independência e a prevalência da ideia sobre a forma; não é
produto e obra do sexo, mas, ao contrário, este se toma sua matéria e
instrumento. A beleza feminina pode ser a beleza encarnada num molde
feminino, servindo o feminino de modo de expressão ao belo. Mas que sena
se as relações do espírito e da matéria se invertessem e, em vez de falar de
beleza feminina, falássemos antes de bela feminilidade, tendo-se o feminino
tomado o elemento capital, o fator essencial, e não sendo a beleza mais que
um atributo seu, em vez de ser a feminilidade o atributo da beleza? Que
seria, dizemos, se o sexo se servisse da beleza como de uma matéria em que
de tal modo se encarna que seria a expressão do elemento feminino? E claro
que daí resultaria uma beleza de índole totalmente diversa da que acima
decantamos, uma beleza perigosa, sinistra, que até pode orçar pela fealdade
e, sem embargo, exercer desgraçadamente a atração do belo, por meio do
sexo que lhe toma o lugar e lhe usurpa o nome. Então não é uma beleza
respeitável e espiritual, manifestada sob uma forma feminina, mas uma
beleza em que se expressa a feminilidade, uma explosão do sexo, uma
beleza de feiticeira.
Esta palavra, sem dúvida terrível, se faz necessária para caracterizar a
transformação há muito verificada no corpo de Mut-em-enet, uma
metamorfose ao mesmo tempo comovente e comovida, que fazia dela uma
feiticeira. Entenda-se que, na íntima compreensão desta palavra, é preciso
afastar dela a ideia de bruxa, embora não eliminando completamente essa
ideia. A feiticeira não é, por definição, uma bruxa. E, todavia, ainda entre as
mais encantadoras, encontram-se vários traços de bruxa que
inevitavelmente participam do quadro. O novo corpo de Mut era um corpo
de feiticeira, um corpo todo sexo e todo amor; de longe recordava a bruxa,
embora este elemento, no máximo, se manifestasse no contraste que
oferecia o desenvolvimento de seus membros com sua gracilidade. A bruxa
tipo era, por exemplo, a negra Tabubu, a encarregada dos potes de
arrebiques, com seus seios semelhantes a odres. Os seios de Mut, antes de
uma graça virginal, tinham-se desenvolvido sob a influência da paixão e
formavam curvas salientes, sólidos frutos de amor cuja protuberância tinha
alguma coisa de bruxa, mas apenas em oposição à magreza, à delgadeza das
frágeis omoplatas. Os ombros pareciam miúdos, quebradiços, pueris e
ternos; os braços haviam perdido muito da sua amplidão, quase se tinham
tomado débeis. Bem diferente era o que acontecia com as coxas, as quais
também, por contraste, quase se diria incongruente, com as extremidades
superiores, se haviam desenvolvido de maneira desmesurada. A impressão
de que cavalgavam um cabo de vassoura, ao qual a mulher, inclinada, de
seios pendentes, se agarrava com os braços flácidos, era uma impressão que
não somente parecia plausível, mas que se impunha. A isto vinha juntar-se o
rosto rodeado de cachos negros, um rosto de nariz em sela, de faces
sombreadas, no qual durante muito tempo prevalecera uma contradição cujo
verdadeiro nome se podia definir pela primeira vez. Tinha tomado agora um
caráter bem marcado: era o contraste, peculiar às feiticeiras, entre a
expressão severa, ameaçadora dos olhos, e a sinuosidade provocadora dos
lábios de comissuras profundas, contradição comovente, levada ao extremo,
que dava ao semblante uma tensão doentia, assemelhando-o a uma máscara,
acentuada ainda pela abrasadora dor da língua mordida. Um dos motivos
que a tinham induzido a ferir-se era que se veria obrigada a tartamudear
como uma mocinha inocente e que esse falar hesitante aformosearia e
disfarçaria a expressão do seu novo corpo.
E fácil imaginar como, ao vê-la, se sentiria angustiado o responsável por
essa metamorfose. Pela primeira vez compreendeu a leviandade do seu
comportamento. Não seguindo os conselhos do seu desinteressado
amiguinho, em vez de evitar a dama, deixara as coisas chegarem a tal ponto
que de cisne virginal ela se havia transformado em feiticeira. Percebeu o
absurdo do seu plano de salvação pedagógica e talvez pela primeira vez
entreviu que sua culpabilidade, na atual circunstância de sua nova vida, não
era menor que a que em outros tempos tivera relativamente a seus irmãos.
Esta compreensão, este pressentimento deviam, com o correr do tempo,
tornar-se certeza e explicam muitas coisas que hão de seguir-se.
No momento, sua má consciência e sua emoção ao ver a dama
transformada em bruxa enamorada dissimularam-se por trás do respeito
especial, quase adorador, que usou saudando-a e falando-lhe, tratando de
conformar-se, na medida do possível, com o seu culposo e absurdo plano de
salvação. Apoiado em algarismos, expôs-lhe os gastos feitos com a
manutenção do serralho em diversos artigos de primeira necessidade ou de
luxo, as dispensas e os novos contratos entre o pessoal. Tudo isto o impediu
de notar imediatamente a ferida de sua língua, porque ela se limitava a
escutá-lo com seu aspecto exaltado, sem falar. Mas para jogar a partida
sentaram-se a um lado e outro da mesa belamente ornamentada, ela no leito
de repouso de ébano e marfim, ele num tamborete com patas de boi.
Alinharam os peões que representavam leões deitados, e, enquanto
trocavam esclarecimentos concernentes ao jogo, José começou a reparar,
com crescente consternação, que ela balbuciava. Depois de tê-lo notado
várias vezes, não lhe ficando mais dúvida nenhuma a respeito, aventurou
uma pergunta delicada:
— Que vejo, senhora, e como é isto possível? Tenho a impressão de que
tartamudeias um pouco ao falar...
Mut respondeu-lhe que “sofia” da “íngua”; havia-se machucado de noite
e “modido a íngua”, e o intendente não devia “impotá-se” com aquilo.
Assim disse. Transpomos para a nossa língua as dolorosas deformações
e as puerilidades de sua elocução, para dar uma equivalência. José ficou
espantado. Interrompendo o jogo, declarou que não tocaria num peão
enquanto ela não tratasse e não aplicasse um bálsamo que na mesma hora ia
mandar Chun-Anup fazer. Ela, porém, recusou e repreendeu-o ironicamente
por valer-se de escapatórias a fim de abandonar uma partida que desde o
principio prometia ser bastante difícil para ele. Ia ser lançado na água e por
isso buscara salvação recorrendo ao boticário e interrompendo o jogo. Em
suma, reteve-o no seu assento com palavras de menininha ferida e gracejos
perturbadores, acomodando voluntariamente sua linguagem à impotência da
língua, falando como uma menininha e procurando dar à sua cara dolorosa e
repuxada um ar de amabilidade atoleimada. Abster-nos-emos de reproduzir
seus balbucios quando falou do “zogo”, das “pedas” e de “escapatoias”.
Dir-se-ia estarmos fazendo troça justamente no momento em que ela, com a
morte na alma, se aprestava para despojar-se do seu orgulho e da sua honra
espiritual e conquistar, com a realização da ventura entrevista em sonhos,
sua honra carnal.
Aquele que lhe inspirara esse desejo também tinha a morte na alma, e
com muita razão. Não se atrevia a levantar os olhos do jogo e apertava os
beiços. A consciência remordia-o. Contudo, não podia deixar de jogar
razoavelmente e teria sido difícil dizer qual dos dois — ele próprio ou sua
razão — dominava o outro. Mut também movia seus peões, levantava-os,
largava-os, mas com tanta incoerência que logo, derrotada sem remissão,
nem sequer o percebeu e continuou jogando, como uma demente, até que,
volvendo a si pela imobilidade de José, teve de fixar seu olhar e seu
extraviado sorriso no caos da sua derrota. Com palavras corteses e sensatas
quis ele dissipar o constrangimento daquele instante com a vã esperança de
restabelecer a ordem, de salvá-la. E assim disse sossegadamente:
— Será necessário recomeçar, senhora, seja hoje ou outro dia. Esta
partida se malogrou, com certeza fui eu quem a deitou a perder pelo meu
desazo, pois estás vendo que nenhum dos dois pode mais avançar — tu por
minha causa, eu por causa tua. Portanto, a partida está perdida por ambas as
partes e não se trata de vitória nem de derrota, porquanto cada jogador é
aqui vencedor e vencido...
Pronunciou estas últimas palavras vacilando, com voz estrangulada, tão-
somente porque já havia começado a falar, mas sem esperança de salvar a
situação ou de discuti-la, porque no intervalo se dera a coisa: a cabeça de
Mut tinha caído sobre o seu braço pousado junto ao tabuleiro, seus cabelos
polvilhados de ouro e prata varriam os leões em repouso sobre a mesinha e
o ardente hálito do seu balbucio febril, afogado num murmúrio, acariciava o
braço de José. Em atenção à sua angústia, não iremos reproduzir suas
palavras de uma puerilidade mórbida, cujo sentido ou falta de sentido é o
seguinte:
— Sim, sim, não mais, não poderemos ir mais além, a partida está
perdida, não nos resta senão a derrota comum, Osarsif, formoso deus vindo
de longe, meu cisne, meu touro, meu amado, ardentemente, altamente,
eternamente amado, para morrermos juntos e naufragarmos numa noite de
desesperado êxtase. Fala-me, fala-me, fala-me livremente, já que não vês
meu rosto, já que ele descansa em teu braço, finalmente em teu braço, e
meus lábios perdidos roçam tua carne e teu sangue, enquanto a ti sobe sua
imploração e sua súplica!... Confessa-me francamente, sem ver meus olhos,
se recebeste a tenra carta que te escrevi antes de morder minha língua para
não ter que dizer o que te escrevi e que estou obrigada a dizer-te de
qualquer forma, pois sou tua ama e sou eu quem devo proferir a palavra que
te está proibida, que para ti está condenada por motivos já há muito
abolidos. Mas não sei se te agradaria dizê-la e meu coração sofre, pois, se
ele soubesse que a dirias prazenteiro, eu a tomaria, ditosa, de teus lábios e a
pronunciaria, como ama, num sussurro, com o rosto escondido em teu
braço. Dize-me, recebeste do anão a folha em que eu a pintara? Leste-a?
Alegraste-te de ver meus sinais escritos, e teu sangue afluiu numa onda
jubilosa até a praia da tua alma? Osarsif, deus disfarçado em criado, meu
falcão celeste, amas-me como eu te amo faz já tempo, muito tempo, na
embriaguez e na angústia? Teu sangue arde de desejo pelo meu, como eu
pelo teu? Pintei a carta depois de prolongada luta, fascinada como estou
pelos teus ombros dourados, pela ternura que a toda a gente inspiras, mas
principalmente pelo teu olhar de deus, sob o qual meu corpo se transformou
e meus seios se arredondaram em frutos de amor. Deita-te... comigo... Dá-
me, dá-me tua juventude e teu esplendor, e em troca eu te darei uma
embriaguez com que nem sequer sonhas, bem sei o que te digo... Deixa que
nossas cabeças e nossos pés se unam, pois já não suporto que vivamos tu
aqui, eu ah, divididos...
Assim falou a mulher no seu arroubo. Nós não reproduzimos sua
súplica tal como a exprimiu na realidade, através do murmúrio de sua
língua lacerada. Cada sílaba lhe era lancinante, mas, com a fronte apoiada
no braço de José, exalou tudo aquilo de uma só vez, pois as mulheres
suportam grandemente o sofrimento. Convém saber, convém reter, de uma
vez por todas, que a palavra incompreendida, a palavra lapidar da tradição
não a pronunciou ela com a boca sã e à maneira de uma mulher adulta, mas
com cruciantes dores e na língua das meninas, dizendo ”Dêta co... migo.”
Para isto foi que pusera a língua em tal estado, para que tudo fosse assim.
E José? Estava sentado e recordava rapidamente os sete motivos,
examinando-os em todos os seus aspectos. Não vamos afirmar que seu
sangue não afluía em ondas até a praia da sua alma; mas os argumentos
contrários eram em número de sete e conservavam sua validade. Em abono
seu seja dito que não os fez soar muito nem demonstrou menosprezo pela
feiticeira que o expunha a uma pendência com o céu. Mostrou-se bom e
indulgente e com afetuoso respeito procurou consolá-la, conquanto a coisa
não deixasse de ter seus riscos... porque, em casos semelhantes, onde
termina o consolo? Não fez nenhuma violência para desprender dali seu
braço, apesar do cálido sussurro e da pressão dos lábios: deixou-o ficar até
que acabou de balbuciar e ainda um pouco depois disso, enquanto assim
falava:
— Senhora, em nome de Deus, que faz aqui o teu rosto e que dizes na
febre de tua ferida? Suplico-te que caias em ti, pois esqueces quem es tu e
quem sou eu. Além disso, teu quarto está aberto para quem queira a qui
chegar, pensa bem, e qualquer pessoa poderia ver-nos, anão ou homem
normal, e enxergar onde reclinas a cabeça... Não posso tolerar isto, perdoa-
me; tenho de retirar o braço e velar para que lá de fora...
E, como dizia, assim o fez. Ela, porém, com violência, levantou-se
também do lugar onde já não estava o braço de José. De pé, com os olhos
fuzilantes, a voz subitamente a vibrar, gritou palavras que bem poderiam
inteirá-lo sobre a pessoa com quem ele teria de avir-se. Ainda há pouco a
implorar, como que despedaçada, ei-la agora que parecia mostrar as garras,
como verdadeira leoa, mas sem ferir. Sua vontade se contraiu para suportar
a dor e, obrigando sua língua a articular, bradou com clareza selvagem:
— Deixa a sala aberta de par em par e que a vejam os olhos da terra
inteira, fitos em mim e em ti, meu amado! Tens medo? Eu não temo nem a
deuses, nem a anões, nem a homens, não receio que me vejam contigo e que
nos espiem. Se quiserem, corram para contemplar-nos! Como trastes, arrojo
aos pés pudor e vergonha, pois para mim outra coisa não são: trastes e
mísera frioleira, em comparação com aquilo que há entre mim e ti e com a
angústia da minha alma! Que deveria eu temer? Só eu sou terrível no meu
amor! Sou Ísis, e, se alguém nos surpreendesse, virar-me-ia de ti para ele e
o fulminaria com um olhar tão espantoso que sem tardança a morte havia de
empalidecer-lhe o semblante...
Assim falou Mut, qual furibunda leoa, sem se lhe dar de sua ferida e dos
sofrimentos atrozes que cada palavra lhe custava. José, porém, correu as
cortinas entre os pilares da sala e disse:
— Deixa-me ser prudente por ti, pois prevejo o que sucederia se nos
vissem, e para mim deve ser sagrado o que queres anojar aos pés do mundo,
que não é digno disso, assim como não é digno de ser fulminado pelo teu
olhar. Quando, corridas as cortinas, voltou para junto dela na penumbra da
sala, Mut já não era uma leoa, mas a menina que titubeia. Ao mesmo
tempo, astuta como uma serpente, volveu contra ele esta situação recém-
criada e tartamudeou, encantadora:
— Fechaste-nos, mauzinho, e estendeste a sombra entre o mundo e nós
para que este não possa proteger-me da tua maldade, hem? Ah, Osarsif, que
maroto que és para me teres embruxado tão indizivelmente, para teres
transformado minha alma e meu corpo ao ponto de que já me desconheço a
mim mesma! Que diria tua mãe se pudesse saber daquilo a que reduzes as
pessoas, enfeitiçando-as tão bem que não reconhecem a si próprias? Meu
filho teria sido tão formoso e astuto, e devo vê-lo em ti, esse filho formoso e
astuto, o menino solar que pus no mundo e que ao meio-dia junta sua
cabeça e seus pés com os de sua mãe para procriar novamente a si mesmo
com ela? Osarsif, amas-me na terra como no céu? Terei pintado a tua alma
quando pintei o bilhetinho que te mandei? Estremeceste até o mais íntimo
de ti lendo-o, como eu estremeci de volúpia e de vergonha infinita ao
escrevê-lo? Quando tua boca me fascina proclamando-me dona de ma
cabeça e de teu coração, como entendes tu o que dizes? Dizes-mo por
conveniência ou por fervor? Confessa-mo aqui na sombra. Depois de tantas
noites em que, no meu leito solitário, sem ti, entre as ganas da dúvida, meu
sangue clamava por ti, é necessário que me salves, meu salvador, e me
livres, confessando-me que tua venusta frase mentirosa dizia a verdade e
que me amas.
José: — Oh, mais nobre das mulheres! Assim, não... sim, assim como
dizes; mas contém-te, se me é dado crer que me concedes alguma
benevolência, contém-te e contém-me, atrevo-me a rogar-te. Não me sofre o
coração ver como obrigas tua língua ferida a articular palavras, cruéis
palavras, em vez de deixá-la curar com bálsamo. Como poderia eu deixar
de amar-te, senhora? Amo-te caindo de joelhos, e de joelhos te imploro que
não procures determinar cruelmente, no amor que te tenho, a parte da
humildade e a do ardor, a da piedade e a da doçura. Digna-te deixá-lo
intacto, com as suas diversas partes que compõem um todo precioso e
delicado. Não lhe faças a afronta de analisá-lo e dissecá-lo, o que seria
deplorável. Não; tem paciência e permute-me dizer-te... Uma vez que por
via de regra me escutas com agrado quando te falo do que quer que seja,
digna-te de escutar-me com benevolência esta vez também. Um bom servo
ama o seu senhor, contanto que ele seja nobre; isto é justo. Se, porém, o
nome de senhor passa a ser o de senhora, de uma mulher amável, embebe-
se de doçura e de um suave ardor graças a essa transformação. A suavidade
penetra então o amor do que serve, converte-se em humildade, e a doçura
que então se chama ardor quer dizer ternura adoradora. E o coração maldiz
o cruel que o fere com sua indagação e com seus olhos pejados de
quebranto. Isto não lhe pode trazer a felicidade. Se digo que és dona de
minha cabeça e de meu coração é porque é este o uso, é claro, e porque é
conveniente, consoante a fórmula; mas até que ponto a fórmula me é doce e
quão feliz é, para a minha cabeça e para o meu coração, a coincidência
entre ela e o uso, eis aí uma coisa que requer uma delicada discrição e é
segredo meu. Mostras-te magnânima e sábia perguntando-me
indiscretamente como é que eu a entendo e deixando-me por toda resposta a
eleição entre a mentira e o pecado? É esta uma escolha cruel e errônea que
não desejo conhecer. E de joelhos te suplico que te dignes ser boa e
misericordiosa para a vida do coração.
A mulher: — Ah, Osarsif, és terrível com tua beleza e eloquência, que
te faz parecer divino aos homens e os submete a todos os teus desejos, mas
que a mim desespera, hábil como és! E uma divindade terrível a habilidade,
filha do espírito e da beleza — para o coração enamorado e melancólico,
um sortilégio mortal. Tachas de indiscreto o meu interrogatório, mas quão
indiscreta é a tua hábil evasão, pois a beleza deveria calar e, em nome do
coração, não dizer palavra. Em redor da beleza devia estabelecer-se o
silêncio que cerca a tumba sagrada de Abodu. O amor, como a morte, pede
silêncio; no silêncio eles são iguais e as palavras os ferem. Rogas-me que
deixe livre prudentemente a vida do coração e pareces tomar partido por ele
contra mim e contra a minha inquietude indagadora. Mas isto é o mundo
pelo carnaz, pois sou eu a que, na minha aflição, luto por essa vida,
tentando, com insistência, aprofundá-la. Que outra coisa posso fazer, amado
meu, e onde encontrar ajuda? Para ti, meu senhor e meu salvador, sou a
senhora e por ti me consumo e não posso deixar livre o teu coração e
tampouco o teu amor; não posso deixá-los em paz sob o pretexto de que
assim seria piedosa. Vejo-me obrigada a tratá-los com uma crueldade
escrutadora, como o homem, o barbudo, trata a frágil menina que se
desconhece, para fazer brotar de sua humildade a paixão e de sua piedade o
prazer, para que assim, animando-se, teu coração conceba por si mesmo a
ideia de dormires ao meu lado. Toda a ventura do mundo se encerra nestas
palavras: faze isto comigo, que é questão de felicidade ou de infernal
tormento. Pois para mim é um tormento infernal estarem nossos corpos
separados, um aqui, outro lá. E quando me falas em pedir-me não sei o quê
de joelhos, vem-me um ciúme sem nome a propósito dos teus joelhos,
porque eles são meus e também não o são; eles têm que estar ao meu lado,
tens que dormir comigo, para que eu não sucumba e morra.
José: — Minha menina, isto não é possível, entra em ti. Teu servidor
ousa exortar-te que não te obstines nessa ideia, realmente nefasta. Dás uma
importância exagerada, mórbida, à aproximação do pó ao pó. É certo que o
ato seria momentaneamente agradável, mas, quanto a achar que o prazer
compensaria os desastrosos resultados e os remorsos que viriam depois, é
uma ilusão do teu juízo febril. Tratas-me como se tu fosses o que usa a
barba e pedes-me, como ama, que te proporcione o prazer; isto não fica bem
e ninguém poderia acomodar-se a tal. Há nisto qualquer coisa de
abominável que não quadra com a nossa época. Minha condição de servo
não me marcou de tal forma que eu não possa conceber o que me propões;
sou muito capaz disso, asseguro-te, porém não nos é permitido realizá-lo
por mais de um motivo, por um montão de motivos, semelhante à série de
estrelas da constelação do Touro. Entende-me: não me é licito morder essa
maçã deliciosa que me ofereces, porquanto isto seria consumar o pecado e
destruir tudo. Eis por que falo em vez de guardar silêncio, e por isso não me
deves guardar rancor, minha menina; desde o momento que não me é
possível calar-me diante de ti, cumpre-me falar e escolher palavras
consoladoras, pois acima de tudo, amada senhora, tenho a peito consolar-te.
A mulher: — É tarde, Osarsif, já é muito tarde para ti, para nós dois. Já
não podes recuar, nem eu tampouco; estamos confundidos um com o outro.
Não correste as cortinas da sala para isolar-nos, não nos encerraste na
sombra, ao abrigo do mundo, e já não formamos um par? Tu mesmo não
dizes “nós” e “nos” e podiam “ver-nos”? Tu nos unes, a ti e a mim, em doce
enlace, com essas palavras preciosas que são as cifras da felicidade integral
que te deixo entrever e que nelas já está contida, de modo que o ato nada
cria de novo, uma vez pronunciado esse “nós”, pois já temos o nosso
segredo diante do mundo e estamos ambos longe dele, com o nosso
segredo, e não nos resta mais que pô-lo em execução.
José: — Não. Escuta, filhinha, isto não é exato. Deformas as coisas e
me obrigas a protestar. Como? A circunstância de te teres esquecido de ti
mesma foi o que me forçou a fechar a entrada da sala para proteger tua
honra, para que do pátio não se veja onde reclinaste a cabeça, e tu invertes a
situação, como se o ato já estivesse quase realizado, porque temos este
segredo e nos vemos obrigados a fechar-nos? É injustíssimo, pois eu não
tenho nenhum segredo e me limito a proteger o teu. Não se poderia falar de
“nós” a não ser sob este aspecto, e nada aconteceu, como nada deve
acontecer, por toda uma série astral de motivos.
A mulher: — Osarsif, doce mentiroso! Recusas admitir nossa
cumplicidade e nosso segredo e contudo não acabas de confessar-me que te
sentias bastante inclinado a aceitar minha amorosa súplica? E isto, ó mau,
chamas não ter segredo comigo perante o mundo? Não pensas, pois, em
mim como eu penso em ti. Ah! Como pensarias em chegar-te a mim se
soubesses, dourado filho do sol, que volúpia te está reservada nos braços da
deusa celeste! Deixa-me anunciar-te, predizer-te, ao ouvido, longe de todos,
na sombra profunda, o que te aguarda. Nunca amei e nunca recebi homem
algum no meu leito; nunca dei sequer uma partícula do tesouro do meu
amor e do meu delírio, e tu te verás enriquecido e repleto até um grau que
supera todos os teus sonhos. Escuta o meu murmúrio: para ti, Osarsif, o
meu corpo se transformou, se metamorfoseou, se converteu no corpo de
uma amante, da cabeça aos pés. Aproximando-te de mim, fazendo-me o
dom da tua juventude e do teu esplendor, não imaginarás estar junto de uma
mulher terrestre, mas. — palavra! saborearás o gozo dos deuses junto da
mãe, da esposa e irmã, porque, já o estás vendo, ela não é senão eu! Eu sou
o óleo que reclama o teu sal para que arda a lâmpada na festa noturna. Sou a
campina sedenta que te chama, onda viril, touro de tua mãe, para que a
cubras com a tua cheia e te unas a mim antes de abandonar-me, deus
formoso, esquecendo tua coroa de lótus junto a mim, no solo úmido. Ouve,
ouve o que te digo. Cada uma de minhas palavras mais te embebe no
segredo que nos é comum e já faz muito tempo que não podes evadir-te,
pois tão estreitamente unidos estamos no mais fundo do segredo, que seria
absurdo refugir do que te dou a entender...
José: — Mas, querida menina (perdoa-me por te chamar assim), se aqui
somos evidentemente cúmplices no segredo, por causa do teu desvario que
até me obriga a vedar a sala aos olhares do exterior, não é menos sensato, e
sensato por sete motivos, que eu tenha de declinar o que me deixas entender
de maneira tão sedutora. Queres arrastar-me para um fundo lodoso onde
medram canas ocas e não trigo; queres fazer de mim o asno do adultério e
de ti a cadela vagabunda. Como então não proteger-te contra ti mesma e
proteger-me também dessa vil metamorfose? Pensas no que nos sucederia
se o nosso crime se assenhoreasse de nós e caísse sobre as nossas cabeças?
Devo deixar que as coisas cheguem a tal ponto que degolem e lancem teu
corpo aos cães ou que te cortem o nariz? Nem se deve pensar nisso. No que
toca ao asno, receberia por sua parte inúmeras pauladas, mil pauladas por
sua néscia atitude, se é que não o jogam logo aos crocodilos. Esta a punição
que nos tocaria, no caso que o nosso ato se assenhoreasse de nós.
A mulher. — Ah, covarde, se visses quanta volúpia te aguarda em seus
braços, não olharias tão longe e ririas dos castigos possíveis, pois que,
fossem quais fossem, nada seriam em comparação do que terias saboreado
junto de mim!
— Sim, querida amiga — disse ele —, vê como o desvario de tua mente
te envilece, pondo-te provisoriamente por baixo da humanidade. A
vantagem e a honra do homem consistem justamente em projetar-se para
além do presente momento e em prever o que virá depois. Quanto a mim,
nenhum temor tenho...
De pé, no meio da sala envolta em sombra, um junto do outro, falavam-
se em voz baixa, precipitadamente, como quem discute um assunto
importantíssimo, com o semblante alterado e enrubescido.
— Nenhum temor tenho — dizia ele — dos castigos que nos
ameaçariam, porque isto é o de menos. Eu temo a Petepré, meu amo, a ele,
e não seus castigos, como se teme a Deus, não por causa do mal que poderia
fazer-nos, mas por Ele mesmo, por temor de Deus. De Petepré recebi
quanto possuo; o que sou na casa e no país a ele o devo. Como ousaria
comparecer na sua presença e mergulhar o meu olhar no dele cheio de
suavidade, embora nenhum castigo tivesse eu de temer por ter compartido o
teu leito? Ouve, Eni, e, em nome de Deus, põe toda a tua atenção para
receberes o que te vou dizer, pois nossas palavras permanecerão e, quando a
nossa história, ressuscitada, aflorar aos lábios dos homens, serão
reproduzidas tais quais. Pois tudo o que sucede pode converter-se numa
história e em matéria para um belo colóquio, e pode bem ser que venhamos
a figurar em alguma crônica. Cuida tu, portanto, também de ti e não
desdenhes tua lenda para não fazeres nela figura de espantalho, de mãe do
pecado. Eu poderia dizer-te muitas outras coisas, muito complicadas, para
resistir a ti tanto quanto a mim mesmo resisto; porém se estas coisas estão
destinadas a andar pela boca dos homens e se as minhas palavras hão de
ser-lhes transmitidas, dir-te-ei coisas singelas, que até uma criança poderia
compreender. Por isso é que assim te falo”Meu amo pôs entre minhas mãos
tudo o que lhe pertence, e de tudo o que há na sua casa posso dispor, menos
de ti, sua mulher. Como, pois, poderia eu cometer tal crime e pecar contra
Deus?” São estas as palavras que te digo para todos os tempos que virão e
que se opõem ao nosso mútuo desejo. Não estamos sós no mundo e não
podemos impunemente gozar da nossa carne e do nosso sangue, porquanto
existe também Petepré, nosso grande senhor na sua soledade, e não nos é
permitido ofendê-lo com este ato, em vez de tributar-lhe em nossa alma um
culto amoroso; isto seria manchar sua frágil dignidade e infringir o pacto de
fidelidade. Ele nos fecha o caminho das delícias. Eis aí.
— Osarsif— sussurrou ela, juntinho dele, balbuciando e enchendo-se de
valor para fazer sua proposta —, Osarsif, meu amado, que há tanto tempo
partilhas meu segredo, ouve tua Eni e entende-a bem.
Eu poderia...
Neste momento estalou o motivo verdadeiro que decidira Mut-em-enet
a morder a língua, e a resposta, há muito preparada, que tencionava
sussurrar por meio da sua ferida, com uma impotência comovente e uma
graça dolorosa. Não tivera ela em conta somente a palavra com que se havia
oferecido ou, pelo menos, se nela pensara, não era ela o móvel essencial
que a tinha determinado a ferir-se para assim falar como uma menininha,
mas sim para emitir a sugestão (que conciliaria tudo) que nesse instante lhe
fez. Descansando, pois, no ombro de José a obra de arte que era sua mão de
veias azuis, adornada de anéis multicores, e apoiando a face na mão, estirou
os lábios e sussurrou.
— Poderia matá-lo.
José retrocedeu bruscamente. Era, na verdade, ir muito longe na sua
gentileza, jamais lhe teria lembrado nem ocorrido uma coisa tão incrível da
parte dessa mulher, embora ela já lhe tivesse surgido como uma leoa, de
garras alçadas e rugindo”Só eu sou terrível!”
— Poderíamos — sussurrou, apertando-se contra ele, que se debatia —
fazê-lo morrer, tirá-lo do caminho, e que mal havia nisso, meu falcão? Nada
há que objetar, de nenhum ponto de vista. Julgas que Tabubu não me traria,
a um aceno meu, uma límpida tisana, algum resíduo cristalino encerrando
uma força misteriosa, e que eu passaria às tuas mãos para que tu a deitasses
no vinho que ele bebe para confortar-se? É só ele sorvê-lo e esfriará de
repente e ninguém perceberá nada, graças à arte culinária do país dos
negros. Embarcá-lo-emos para o ocidente, já não será deste mundo e não
nos fechará mais o caminho da voluptuosidade. Deixa que eu o faça,
amado, não protestes contra tão inocente medida. Seu corpo já não está
morto para a vida? Serve acaso para alguma coisa que não seja vegetar
como uma massa inerte? Como o odeio desde que o meu amor a ti me rasga
o coração e fez florescer o meu corpo! Atrevo-me a dizer-to e sou capaz de
gritá-lo. Assim, pois, doce Osarsif, esfriemo-lo, que isto nada importa.
Terias alguma repugnância em derrubar com uma cajadada um cogumelo
inchado, um licopódio? Seria menos um ato do que uma forma negligente
de pôr de lado... Uma vez baixado ele à tumba, e estando a casa sem ele,
estaremos sós e livres, dois corpos extasiados, desembaraçados de ataduras,
senhores de se abraçarem sem restrições, sem condições, boca contra boca.
Tens razão, meu divinal menino, quando dizes que ele nos fecha o caminho
das delícias e que não temos direito a fazer-lhe isto. Aprovo o teu
escrúpulo. Mas por isso mesmo deves admitir que urge enregelá-lo e
expulsá-lo deste mundo, para que o escrúpulo não exista e nosso abraço não
o ofenda. Entendes, meu pequelusso? Imagina a nossa dita, uma vez
cerceado o cogumelo. Estaremos sós na casa, e tu, na tua juventude, serás o
amo. Sê-lo-ás porque sou eu a ama, e quem partilha o leito da ama é o amo.
De noite nos embriagamos em arroubos e também de dia estaremos
estendidos juntos, em almofadas de púrpura, entre essências de nardo;
jovens dos dois sexos coroados de flores tocam alaúde com mímica suave,
e, enquanto contemplamos e ouvimos, sonhamos com a noite que passou e
com a que virá. Depois te oferto a taça, pousamos os lábios no mesmo lugar
e, enquanto bebemos, nossos olhos falam uns aos outros no gozo da passada
noite e no da noite próxima e nossos pés se entrelaçam...
— Não. Ouve, Mut-em-enet, vale do deserto — disse ele. — E preciso
que eu te conjure... E a expressão usada, “eu te conjuro”; mas aqui se aplica
no seu sentido próprio, e em verdade que se te há de conjurar, a ti ou antes
ao demônio que em ti fala e manifestamente te possui. Assim é e nada mais.
Tu absolutamente não te preocupas com a tua lenda, bom é que se note, e
fazes de ti uma mulher que nos tempos vindouros será chamada a mãe do
pecado. Pensa que somos os personagens de uma história e trata de
reabilitar-te. Claro está que eu também me violento para resistir ao teu
delicioso chamado, embora a resistência me seja facilitada por causa do
assombro que me inspira a tua sugestão de possessa, a sugestão de matar
Petepré, meu senhor e teu esposo honorário. E horrível! Já não haverá
necessidade de repetires que somos cúmplices no segredo, porque, tendo-
me associado no pensamento, por desgraça este é meu também. Mas isso
não há de passar do estado de pensamento. Não viveremos uma história
semelhante. Estarei vigilante. Querida Mut! A existência de nós dois
debaixo deste teto, com que tu sonhas, depois de nos termos desfeito de
nosso senhor por meio do assassínio, para saciar-nos um no outro,
absolutamente não é do meu agrado. Se penso como deva viver contigo na
casa do crime, como teu escravo de amor, e como tire a minha condição de
amo do fato de dormir com a ama, sinto por mim um profundo desprezo.
Teria eu, além disso, de usar trajes femininos e me ordenarias cada noite
que te proporcionasse o prazer requerido, eu, o amo por causalidade, que
assassinou seu pai e se deita com sua mãe? Pois, com a maior exatidão,
assim seria. Putifar, meu senhor, é para mim um pai e, vivendo contigo na
casa do crime, eu teria a impressão de que com minha mãe me deito. Por
isso, minha boa e querida menina, conjuro-te o mais amistosamente que é
possível que te consoles e não penses em mim para um delito semelhante!
— Louco! Menino louco! — respondeu ela com sua voz musical. —
Respondes-me como um rapazelho pusilânime diante do amor, e eu hei de
vencer-te na minha qualidade de ama que solicita. Cada um se deita com
sua mãe, não o sabes? A mulher é a mãe do universo, o homem é seu filho e
todo homem é gerado com sua mãe. Irei recordar-te estas noções
elementares? Eu sou Ísis, a grande mãe, e uso a coifa do abutre. Mut é meu
nome maternal, e tu, meu filho, hás de dizer-me o teu na doce noite
procriadora dos mundos...
— Não fales assim, não fales assim! — protestou José, ardoroso. — O
que dizes e declaras não é exato e hei de retificar tua opinião. O pai do
universo não é filho de uma mãe, e é amo não por virtude de uma ama. A
ele pertenço, diante dele caminho, sou filho de um pai e digo-te uma vez
por todas: não quero pecar contra o Senhor meu Deus, a quem pertenço,
ofendendo a meu pai e acasalando-me com minha mãe como um
hipopótamo lascivo. E dito isto, minha menina, vou andando. Amada
senhora minha, rogo-te me dês licença para me retirar. Não quero
abandonar-te no teu desvario, claro está que não. Hei de consolar-te com
palavras e confortar-te o melhor que possa, porque isto sim é o que te devo.
Agora, porém, tenho de retirar-me, de ir-me embora, para atender aos
afazeres da casa do meu senhor.
E como José a deixasse, Mut gritou atrás dele:
— Achas que escapas? Julgas que poderemos fugir um do outro? Bem
sei, bem sei quem é o teu Deus ciumento, ao qual estás prometido e cuja
coroa levas. Mas o estrangeiro não me atemoriza; despojar-te-ei da tua
coroa, seja ela qual for, e em troca hei de coroar-te de hera e de pâmpanos
para a festa maternal do nosso amor. Fica, amado! Fica, ó belo entre os
belos, fica, Osarsif, fica!
E deixou-se cair, soluçando.
Com ambos os braços, afastou José as cortinas e foi seguindo
rapidamente para a frente. Mas em cada dobra do pano que descerrou havia
um anão embrulhado: um chamava-se Dudu, o outro, Teófilo Chespses-Bes.
Tendo-se encontrado, fulminaram-se cada qual com o olhar, cotovelo com
cotovelo, dentro da cortina, com uma mão no joelho e a outra na orelha,
espreitando atentamente, Dudu por maldade e Teófilo por temor. Nos
intervalos, arreganhavam os dentes um para o outro, ameaçavam-se com o
punho e cada um dizia ao outro que devia ir-se embora, coisas todas, afinal,
que os haviam molestado não pouco, impedindo-os de escutar devidamente.
E nenhum dos dois se arredara sequer uma polegada.
Por trás das costas de José, pois, emergiram das dobras e, silvando, com
os bracinhos erguidos até as têmporas e saltando um sobre o outro
chegaram às vias de fato, tomados de surda raiva por causa da aversão
recíproca, nascida da sua comum condição de anões e de suas naturezas
diferentes.
— Que buscas aqui? — silvou Dudu, marido de Zeset. — Aborto, mito,
pigmeu deficiente! Que tens que fazer aí, escondido, onde só eu tenho
direito de estar, em virtude de meus deveres, e por que não te retiras, apesar
da ordem que te dei, cabeçudo, mísero bufão? Vou moer-te de tal modo que
fiques aí para sempre, larva, incubo gorado, traça impotente! Que tem que
estar espiando esse palhaço ridículo, sempre a favor do seu patrão e grande
amigo, o formoso fátuo, o bastardo do junco, a mercadoria imprestável!
Introduziu a ele na casa para manchá-la e para vir a ocupar altos postos,
para vergonha dos países e por fim para transformar a nossa ama numa
desavergonhada.
— Oh, oh, miserável, monstro pérfido! — coaxou o outro, com a
enrugada cara cheia de mil dobras coléricas, com o cone de unguentos de
través sobre a cabeça. — Quem se embosca e espreita aqui para ver aquilo
que diabolicamente pôs em marcha com suas manobras e discursos
incendiários? E aqui, escondido, se regozija com o tormento e a angústia
dos grandes para que pereçam, conforme seus planos perversos? Quem,
senão tu, montão de vaidade, fanfarrão, cavalheiro dos trapos... ui, ui, ui!...
espantalho, coelho no cio, figura exótica, em quem tudo é anão e não tem
de gigante senão uma coisa, macho desarvorado, espantoso, perverso, de
um alcoviteiro...
— Espera — grunhiu o outro —, espera um pouco, palhaço, buraco e
lacuna do mundo, despojo deforme, palerma enfezado! Se não te afastares
imediatamente do lugar onde Dudu vela pela honra da casa, hei de
envergonhar-te, como macho que sou, miserável enjeitado, e te lembrarás
de mim. Quanto à vergonha que te espera, vermezinho, vou daqui direito a
Petepré para revelar-lhe o segredo do que se está tramando na sombra e
para repetir-lhe as palavras que o intendente murmura à senhora em seu
quarto, com as cortinas corridas.
Está tudo inscrito num rolo especial que breve lerás. Foste tu que
introduziste o mancebo na casa e não te cansaste de encher a cabeça do
finado intendente com tuas tolices acerca da pequena sabedoria e estiveste a
elogiar tua perspicácia de anão em relação aos homens e às mercadorias,
inclusive as mercadorias humanas, de tal maneira que ele acabou por
comprar de uns mendigos esse mendigo, contrariando o meu parecer, e o
colocou na casa para que insulte nossa ama e engane o grande eunuco de
Faraó. Foste tu, só tu, desde a sua origem, o causador dessa obra suja.
Mereces ser atirado aos crocodilos, como sobremesa, depois que eles se
tiverem fartado do teu amigo do peito, bem contundido e convenientemente
amarrado.
— Ah, língua escandalosa! — gritou o pequeno Teófilo, trêmulo e mais
encarquilhado que nunca de raiva concentrada. — Tromba imunda, não é a
razão que dita tuas palavras. Elas jorram de outra fonte e não passam de
uma obscenidade. Atreves-te a tocar-me e ultrajar-me na mínima coisa,
pobre homenzinho como sou, e verás minhas unhas afiadas na tua cara e
nas tuas órbitas, pois também aos puros foram dadas algumas armas contra
os bandidos... Acaso sou responsável pela angústia e a desolação que
reinam lá dentro? A culpa está nessa má coisa, a sensualidade lamentável
em que tua competência se afirma com orgulho e que puseste
diabolicamente a serviço da tua inveja e do teu ódio, para fazer o meu
amigo Osarsif cair na cilada e no fosso. Mas não vês, mísera ratazana, que
teu golpe falhou e que meu formoso amigo é irrepreensível? Uma vez que
te puseste à espreita, não reparaste que ele se mostrou digno como o noviço
a quem iniciam nos mistérios e que preserva sua lenda como um herói? Aí
do teu esconderijo, que coisa pudeste tu ouvir como testemunha auricular,
tu que perdeste toda a confiança anã e cujo espírito se fez obtuso na
proporção de tuas capacidades de galo? Gostaria de saber que coisa
poderias contar a nosso amo a respeito de Osarsif, quando tuas grosseiras
orelhas não puderam colher coisa alguma inteligente, no seu posto de
espionagem...
— Oh! — exclamou Dudu. — O marido de Zeset aceita teu desafio, seu
insignificante, no que concerne à finura do ouvido e à sensibilidade
auditiva, em especial quando se trata da coisa que é da sua competência e
de que tu nada entendes, estridente insuficiência! Porventura o teu casto
amigo não se mostrou arrulhador ali dentro, não pulou e brincou,
entusiasmado como estava pelo amor? Eu sei essas coisas e recordo que
disse “minha menininha querida” e “minha amada”, ele, o escravo, a ela, a
senhora, que lhe chamava “falcão” e “touro” com sua voz mais suave, e que
em seguida comentaram minuciosamente como cada qual gozaria do corpo
e do sangue do outro. Vês agora que Dudu nada teme no que toca ao
testemunho auditivo? Mas o melhor que pude surpreender no meu
esconderijo é que, no meio do seu ardor, tramaram a morte de Petepré e
combinaram derribá-lo com uma cajadada...
— Mentes! Mentes! Bem se vê que aí do teu lugar não compreendeste
senão grosseiros absurdos e queres levar a Petepré, a respeito dos dois,
palavras que se baseiam no mais visível mal-entendido. O jovem chamou à
senhora “menina” e “amiga” por bondade pura e por meiguice, para assim
consolá-la no seu desvario. Repreendeu-a virtuosamente e recusou derribar
um cogumelo que fosse. Manteve uma atitude exemplar para a sua idade e
até este momento não deixou a menor nódoa na sua história, apesar da
deliciosa chamada.
— E por isso acreditas, toleirão — disse Dudu —, que eu não poderia
denunciá-lo e perdê-lo diante do patrão? Este é o fim dos fins e o meu
triunfo numa partida da qual tu, mequetrefe, nada pescas. Pouco importa
como proceda o vilão, se com decoro ou com lascívia; o que importa é que
nossa ama está apaixonada, louca por ele, e não acha no mundo nada mais
lindo do que lisonjeá-lo, o que bastaria para perdê-lo, e acredita-me que não
depende dele sua salvação. Um escravo por quem a senhora se apaixona
está destinado aos crocodilos, sem apelo nem agravo. Por isso vê-se ele
obrigado a fingir. Pois se se mostra condescendente e deseja dar-lhe gosto,
tenho-o na unha! Se se defende, com isso não faz mais que aguçar seu
apetite e envenená-lo de tal modo que, de qualquer maneira, está fadado aos
crocodilos ou, pelo menos, à faca do barbeiro-cirurgião que porá fim aos
seus transportes amorosos e curará a ama, castrando-o...
— Ah, maldito, ah, monstro! — guinchou Teófilo. — Vê-se e percebe-
se de uma vez por todas, graças a ti, quanta coisa abominável se pode
produzir e pulular na terra, quando um da raça anã não possui a piedade e a
delicadeza próprias dos anões, mas se vê dotado da dignidade viril; em tal
caso, tem-se um ser como tu, tipo odioso, paladino de alcova!
Dudu respondeu-lhe que, quando o barbeiro tivesse feito o seu oficio,
Osarsif seria tal qual ele — um bonifrate vazio. Assim os dois compadres,
anão contra anão, se ofenderam largamente com réplicas amargas e
malignas, até que acudiu gente da herdade. Então cessaram sua peleja, um
para ir informar o amo, o outro para advertir a José, a fim de que pudesse
livrar-se, se alguma possibilidade existia disso, do fosso aberto.
A ACUSAÇÃO DE DUDU

Como ficou dito, Putifar, por causa da arrogância que lhe supunha, não
tolerava Dudu, e por isso o Osíris Mont-kav sempre o vira com maus olhos.
Viu-se também que o cortesão conservava a distância o encarregado do
cofre das joias, não o admitia nunca em sua presença, interpondo entre si e
o anão, para o seu serviço particular, intermediários, pessoas de tamanho
normal, mais habilitadas, primeiro em razão de sua estatura, a passar para
aquela torre de carne os competentes adornos e trajes, para o que Dudu teria
de trepar numa escada, e depois porque, sendo desenvolvidas, davam menor
importância a certas propriedades naturais e a certo poder solar e não se
vangloriavam delas como Dudu, para quem esse poder constituía uma
surpresa perpétua e uma distinção importante e fagueira.
Por esse motivo não foi fácil ao homúnculo — no tortuoso caminho
pelo qual por fim julgara conveniente enveredar depois de ter ido e vindo as
ocultas entre o intendente e a senhora — chegar a seus fins, isto é, ao amo,
para aclará-lo com suas luzes. Isto não se verificou logo após a sua briga
com o vizir truão à entrada da sala defendida pelos cortinados. Durante
dias, semanas, se viu menosprezado e teve de solicitar audiência. Foi-lhe
preciso, a ele, chefe do guarda-roupa, peitar os escravos camareiros ou
ameaçá-los de lhes não entregar tal adereço ou tal veste, que guardaria
debaixo de chave (o que os arruinaria perante o amo), se não lhe dissessem
que Dudu queria falar-lhe de um grave assunto interno. Durante quartos de
lua completos, rogou, bateu o pé, intrigou, antes de lhe ser concedido tal
favor. E tanto mais ardentemente desejava recebê-lo quanto pensava que,
uma vez outorgado, já não lhe seria, de futuro, denegado, sendo o serviço
que ia prestar ao patrão de uma natureza destinada a granjear-lhe para
sempre o seu afeto e a sua condescendência.
O obstinado Dudu conseguiu por fim ganhar para a sua causa, por meio
de presentes, dois escravos incumbidos do banho, e obteve que, a cada
cântaro d’água derramado no peito e nas costas do amo, lhe dissessem-
“Senhor, lembra-te de Dudu.” Reiteraram sua advertência quando a
gotejante torre de carne, passando da piscina para o pavimento de mármore,
se deixava enxugar com panos perfumados, e disseram então,
alternativamente”Lembra-te, senhor, que Dudu espera ansioso.” Vencido
afinal, acabou ordenando”Pois que venha e fale. " Então fizeram sinais aos
escravos preparadores dos unguentos, também pagos, que se achavam de
guarda no dormitório, e estes, chamando o anão que na sala ocidental se
consumia de impaciência, o introduziram na alcova. Ergueu quanto pôde
suas mãozinhas para a banqueta em que o amigo de Faraó se estendia para
entregar-se aos massagistas e deixou caída de banda, com humildade, sua
cabeça de anão entre os diminutos braços levantados, aguardando uma
palavra de Petepré, ou um olhar. Mas não vinha nem uma coisa nem outra.
O camareiro se limitava a gemer suavemente sob o punho enérgico de seus
servidores, que, com azeite de nardos, lhe friccionavam os ombros, as
cadeiras e os músculos, os grossos braços de mulher, o peito anafado. Mais
ainda, até virou a nobre e pequena cabeça, na almofada de couro, para o
lado contrário ao de que vinha a saudação de Dudu, postura muito
humilhante para este; contudo, seu assunto lhe parecia tão rico de
promessas que Dudu absolutamente não se acovardou com isso.
— Dez mil anos além do termo marcado para o teu destino tenhas tu
que comandas os homens, guerreiro do soberano! Quatro talhas para
conterem tuas vísceras e um sarcófago de alabastro para encerrar tua forma
eterna!
— Gradas — disse Petepré. Disse-o em babilônio, como nós diríamos
“merci”, por exemplo, e acrescentou: — Este pretende falar muito?
A palavra “este” era mortificante. Porém o assunto de Dudu estava
cheio de esperanças e por isso não se deixou vencer pelo desânimo.
— Não muito, senhor, nosso sol — respondeu. — Antes, muita coisa
em poucas palavras.
E, a um sinal da mão miúda de Petepré, avançou um passo, cruzou seus
dois cotos sobre as costas e, retirando o lábio inferior e com dignidade
estirando o superior para a frente como um telhado, começou sua
informação, bem sabendo que não lhe seria possível terminá-la diante dos
dois massagistas, que Petepré despacharia quanto antes para escutá-lo
melhor.
Apresentou seu discurso de um modo que se poderia qualificar de hábil,
se tivesse sido mais delicado. Começou entoando loas a Min, deus da
vindima, que em certos lugares se reverenciava como uma forma particular
do supremo poder solar, mas que tivera de entregar seu nome a Amun-Rá.
Na qualidade de Amun-Min ou Min-Amun-Rá formava com ele uma só
coisa, de modo que Faraó podia com igual serenidade falar de “meu pai
Min” ou “meu pai Amun”, especialmente durante a festa da coroação e da
vindima, na qual o aspecto Min de Amun se acentuava e ele era um deus
fecundo, padroeiro dos viandantes do deserto e, em todo o ímpeto da sua
força procriadora, o sol itifálico. Dudu o invocou com dignidade; apoiando-
se nele, pediu a aprovação do amo para o fato de que, fazendo parte do
pessoa! superior, grão-mestre dos cofres das vestes senhoriais, não limitara
seu zelo ao círculo restrito dos deveres do seu cargo; como esposo e pai que
era, genitor de dois rapazinhos de boa conformação, chamados desta e
daquela maneira, e aos quais, se os indícios não enganavam e segundo a
confissão que a senhora Zeset lhe sussurrara junto ao peito, breve viria
juntar-se um terceiro, em resumo, ele que contribuía para a proliferação da
casa e estava devotamente adstrito à sua dignidade de homem e à majestade
de Min (e portanto a Amun na sua qualidade de Min), tinha os olhos fitos
em tudo e especialmente no que dizia respeito à fecundidade humana e à
reprodução; patrocinava todos os acontecimentos felizes que se davam —
matrimônios, uniões abençoadas, noivados, procriação e partos —, anotava-
os e os regulava, deliberava com aqueles que se encontravam nestes
diversos casos, aconselhava-os, estimulava-os ou dava-lhes com sua própria
pessoa o exemplo da atividade e da ordem rigorosa. Pois, disse Dudu, o
exemplo deve vir do alto, naturalmente não da altura suprema, onde, por
certo, como para toda outra coisa, não se podia nem se desejava ocupar-se
desta. Daqui se seguia ser tanto mais importante e urgente tomar a tempo as
medidas adequadas para impedir que se pudesse perturbar o repouso
sagrado do chefe augusto que se elevava por cima de todo exemplo, e evitar
que no lugar da dignidade se introduza o seu oposto. E os que vinham
imediatamente depois do amo tinham o dever, segundo o seu parecer de
anão, de servir de modelos ao pessoal subalterno tanto no que se refere à
atividade como à ordem. Aqui perguntou Dudu se suas palavras vinham
obtendo a aprovação do senhor, nosso sol.
Petepré encolheu os ombros e virou-se de bruços para que suas
formidáveis costas ficassem entregues aos massagistas; depois, levantando
a graciosa cabeça, perguntou a que vinham essas alusões à perturbação do
seu repouso e à “dignidade e seu oposto”.
— O primeiro dos teus servos chegará logo a esse ponto — respondeu
Dudu. E filiou do defunto mordomo Mont-kav, que vivera probamente e, a
seu tempo, desposara a filha de um empregado; por ela, tinha-se convertido
em pai ou, pelo menos, o teria sido se as coisas não houvessem tomado um
rumo desfavorável e seu valor não tivesse sido vítima do destino;
desalentado, findara seus dias na viuvez, tendo, sem embargo, dado provas
de boa vontade. Isto pelo que dizia respeito a Mont-kav. Agora Dudu ia
passar ao belo presente — belo no sentido de que o finado tinha encontrado
um sucessor, seu igual —, ou melhor, se não seu igual (por se tratar de um
estrangeiro), pelo menos alguém que nada lhe ficava a dever na parte
intelectual. Via-se à frente da casa um jovem seguramente notável, de nome
um tanto singular, é certo, mas bem parecido, hábil e astuto, em suma, um
indivíduo dotado de qualidades eminentes.
— Idiota! — murmurou Petepré, apoiado em seus braços cruzados, pois
nada nos parece mais estúpido do que a apreciação elogiosa de um objeto
cujo valor verdadeiro quiséramos ser os únicos a apreciar.
Dudu fez que não ouviu. Era possível que o amo tivesse dito “idiota”,
mas não tomava conhecimento disto, para conservar seu valor e não
desmoralizar-se.
Disse que nunca poderia encarecer bastante os predicados do jovem em
questão, verdadeiramente sedutores, deslumbrantes e, para certas pessoas,
até perturbadores; e justamente por causa deles era tanto mais grave a
preocupação que se impunha em relação à ordem e à prosperidade de uma
casa que o mencionado jovem tinha sido chamado para dirigir, graças a seus
méritos.
— Que coisa está engrolando este? — disse Petepré, meneando a
cabeça e virando-a ligeiramente de lado, como se estivesse falando com os
massagistas. — Os méritos do intendente são uma ameaça para a boa
direção da casa?
Este “engrolando” era duro, e ainda mais com a repetição do “este”. O
anão, porém, não esmoreceu.
— Não o seriam de nenhum modo — retorquiu — em circunstâncias
diversas das atuais, que não são boas, e teriam sido uma bênção inteira para
a casa, se recebessem, ou melhor, se tivessem recebido a limitação e a
satisfação legal que tais qualidades — isto é, fisionomia atraente, astúcia e
fascinação da palavra — requerem, para que assim não propaguem em
torno a agitação, o fermento e a ruína.
E Dudu deplorou que o jovem mordomo, cujas convicções religiosas
aliás eram impenetráveis, se abstivera de pagar à majestade de Min o tributo
que lhe devia, e que apesar de seu importante cargo se conservava solteiro,
não condescendendo em contrair uma aliança adequada a suas origens, por
exemplo, com a escrava babilônia Istar-ummi, do harém, e assim deixando
de aumentar a casa, multiplicando-se. Era lamentável e odioso, era
inquietante, era uma coisa cheia de perigos. Não somente sofria com isso o
decoro, senão que assim se faltava ao bom exemplo de atividade e de ordem
que deviam dar as esferas superiores. E por fim, em terceiro lugar, essas
sedutoras qualidades do jovem intendente, que ninguém punha em dúvida,
estavam privadas da limitação que lhes daria o caráter de inocuidade
necessário desde há muito para não inflamar, enlouquecer e transtornar os
espíritos, em suma, para não espalhar a infelicidade mais longe, não só na
sua condição, mas em outra muito superior, até uma esfera augusta.
Uma pausa. Petepré deixava-se pisoar e não respondia.
— Uma de duas! — explicou Dudu. — Um mancebo desta classe ou
devia tomar estado para que suas qualidades, cessando de causar em redor
estragos funestos, se apaziguem no remanso do matrimônio e se tomem
inofensivas, ou, melhor ainda, necessário seria que a navalha do barbeiro
entrasse em ação para provocar-lhe a saudável inocuidade, preservando o
repouso e a dignidade de altíssimas personalidades e destarte impedir que
sua honra degenere no seu oposto.
Novo silêncio. Petepré virou-se bruscamente de costas e os massagistas,
ocupados em sová-lo, ficaram um instante coibidos, com as mãos no ar.
Levantou a cabeça para o anão, mirou-o de alto a baixo e dos pés à cabeça
(a falar verdade, um caminho curto para os seus olhos) e olhou rapidamente
para uma cadeira sobre a qual estavam suas vestes, as sandálias, o abanico e
outros objetos. Depois voltou-se de novo, com a testa entre as mãos.
Invadia-o uma cólera gelada de espanto, uma espécie de indignação
aterrada ante a ameaça à sua tranquilidade que lhe viera trazer aquele
homenzinho repelente, de um tamanho ridículo. Não havia dúvida de que o
vaidoso aborto da natureza queria contar-lhe alguma coisa que, se era
verdadeira, merecia ser dita a ele, Petepré, o qual o estava exprobando pelo
fato de vir informá-lo, como se fosse uma grosseira falta de afeto. “Vai tudo
bem na casa? Nenhum incidente? A senhora está de bom humor?” Tratava-
se, evidentemente, disto e também era evidente que alguém, sem ser
interrogado, se enfeitava para responder a essas perguntas. Detestou-o
acima de tudo; não estava disposto a odiar a ninguém enquanto não ficasse
positivada a veracidade da informação. Ia ser preciso, portanto, despedir os
massagistas e ficar cara a cara com esse guarda da honra, deixar-se inteirar
por ele sobre a honra, com grande apoio de verdades ou de vãs calúnias. A
honra! Reflita-se que coisa isto representa na atual circunstância. E a honra
sexual, a honra do macho casado. Consiste na fidelidade da esposa ao
esposo, em testemunho de que este é um galo magnífico, completo; as
satisfações que este lhe proporciona tiram à fêmea a ideia de buscá-las
alhures, e as solicitações de um terceiro não poderiam tentá-la, a ela, a
saciada. Supondo, porém, que ela trave comércio com outro, vem então a
negação de tudo quanto se disse anteriormente, e nisto consiste a desonra
sexual; o galo-marido toma-se como, isto é, um capão; uma mão delicada
adoma-lhe a cabeça com umas pontas risíveis; para salvar o que é suscetível
de ser salvo, preciso se toma que em combate singular derribe esse rival
com quem sua mulher cuidou que obteria gozos superiores, e que, se
necessário for, a mate também, para restaurar, por meio de impressionantes
proezas sangrentas, aos seus próprios olhos e aos do mundo, sua
respeitabilidade de macho.
A honra! Era o que Petepré não tinha. Faltava-lhe em sua carne; por
causa da sua conformação física não entendia de semelhante bem e muito se
admirava de que toda a gente, como esse infeliz inchado de honra, fizesse
tanto estardalhaço a respeito. Em compensação, possuía um coração
suscetível de equidade, isto é, reconhecia o direito dos outros, mas também
um coração vulnerável, que contava com a adesão plena desses outros, isto
é, com seu afeto, um coração criado para sofrer amargamente com uma
traição. Durante a pausa, enquanto os massagistas recomeçavam a triturar-
lhe o dorso forte, conservando ele o rosto oculto entre seus braços de
mulher obesa, rápidos pensamentos cruzaram sua mente a respeito das duas
pessoas de quem esperava tão vivamente a ternura e a fidelidade até o ponto
de poder dizer-se que as amava. Tratava-se de Mut, sua esposa honorária,
que ele, de resto, detestava um poucochinho por causa da censura que
naturalmente ela não formulava, mas que só com a sua existência
proclamava, Mut, a quem ao mesmo tempo desejaria de coração manifestar
seu afeto e poderio e não só por sua satisfação pessoal; e tratava-se de José,
o jovem benfazejo, que melhor que o vinho lhe dava certa consciência da
sua personalidade. Por causa dele não quis nem pôde, apesar de lamentá-lo,
aceder ao desejo de sua mulher, na sala vesperal, nem mostrar-se afetuoso e
cheio de poder. Petepré, seja dito cá entre nós, não deixava de suspeitar o
alcance da sua negativa. Durante aquele colóquio conjugal, não lhe havia
escapado que os motivos invocados para a expulsão de José eram pretextos
e argumentos especiosos e que a exigência de Mut ocultava seu temor de si
mesma e sua ânsia de salvaguardar sua honra contra possíveis ataques do
jovem. Faltando-lhe, porém, a honra, havia-se preocupado menos com
tranquilizar sua esposa do que com conservar ao pé de si o mancebo
consolador. Dera a este a preferência e, abandonando sua mulher às suas
próprias forças, incitara ambos a preferirem-se mutuamente, passando por
cima de sua pessoa, e a traí-lo.
Reconheceu tudo isto e, como tinha coração, sofreu. Mas reconheceu-o,
porque seu coração propendia para a equidade, embora talvez só
propendesse para ela para não ter de ralar-se e porque a equidade prescinde
da cólera e do rancor. Sentia também que ela é o melhor refúgio da
dignidade. O abjeto guarda da honra pareceu insinuar que se tramava uma
traição, pondo em risco sua dignidade. Como se — pensou — a dignidade
deixasse de ser dignidade quando se vê obrigada a cobrir dolorosamente a
face diante da traição. Como se o traído não fosse mais digno do que o
traidor. Mas se não o é, por ter cometido o erro de provocar a traição, fica-
lhe o recurso da equidade, com o que a dignidade se reabilita reconhecendo
a própria culpa e o direito dos outros.
A equidade, pois, se inclinou Petepré, o eunuco, prevendo o que ia
dizer-lhe aquele paladino da honra. A equidade tem um caráter espiritual,
oposto ao caráter carnal da honra, e, à falta desta, tinha ele de apelar para a
outra. Contara também com os valores espirituais, a propósito destes dois
que juntos o enganavam, se devia crer nas insinuações do provocador, do
delator a quem nada perguntara. Petepré julgava saber dos grandes
obstáculos de ordem moral que impunham uma estrita disciplina a seus
corpos, estando ambos predestinados e sendo espiritualmente afins: a
mulher repleta de consolações, a concubina de Amun, a prometida do seu
templo, que diante dele dançava com as vestes justas da deusa; o mancebo,
objeto de um certo exclusivismo, que em seus cabelos usava a coroa do
reservado, o mancebo “não-me-toque”. Tê-los-ia vencido a carne? Este
pensamento gelou-o de terror. A carne era sua inimiga, embora ele
possuísse uma considerável massa dela. Cada vez que, ao voltar para casa,
indagava”Tudo vai bem? Nenhum incidente?” — tremia de que a carne,
triunfando da proibição espiritual, tranquilizadora, mas precária, que pesava
sobre a casa, tivesse provocado alguma desordem abominável. Sem
embargo, seu frio terror desapareceu na cólera. Era absolutamente
imprescindível que fosse inteirado? Não o poderiam deixar em paz? Se por
detrás dele os dois entes consagrados, vencidos pela carne, tinham alguma
coisa que ocultar-lhe, porventura o mistério em que se envolviam não
atestava afeto, coisa que estava disposto a levar-lhes em conta? Em
compensação, sentia-se furioso contra o minúsculo cretino vaidoso que lhe
vinha trazer informes que ninguém lhe pedia e, campeão da honra, atentava
vilmente contra sua tranquilidade.
— Ainda não acabaram com isto? — perguntou aos massagistas. Tinha
de despedi-los; despedia-os de má vontade, só porque a tanto se via
obrigado pelo infame intrigante, mas, assim como assim, tinha de afastá-
los. Verdade é que esses homens eram autênticos brutos irracionais,
havendo cultivado a estupidez até o ponto correspondente ao seu rude
ofício, conforme um provérbio que dizia, mui veridicamente, “besta como
um massagista”. Mas, embora fosse certo que nada teriam compreendido e
que sua mente absolutamente não se aguçaria, Petepré não podia deixar de
aceitar o tácito desejo do importuno e ficar a sós e cara a cara com ele. E
por isto mesmo ainda mais se enfureceu com o pigmeu.
— Não se vão embora antes de terminar — disse-lhes —, e não é
preciso pressa. Se, contudo, já terminaram, deem-me o lençol e retirem-se
lentamente.
Nunca, absolutamente nunca, teriam eles podido compreender que
deviam afastar-se antes de haver terminado. Como, porém, na realidade já
haviam concluído sua tarefa, estenderam um lençol sobre a carnuda massa
do amo, até o pescoço, puseram em terra a fronte que não tinha mais de dois
dedos de largura e lá se foram, com os cotovelos pegados ao corpo, numa
espécie de trote igual e gingado, que por si só demonstrava de modo
convincente sua bestialidade completa.
— Chega-te para cá, amigo — disse o camareiro. — Aproxima-te
quanto quiseres e julgares necessário para a tua comunicação, pois parece
que se trata de uma dessas coisas que não ficaria bem anunciar de longe,
gritando, mas de uma coisa que nos aproximará numa intimidade
confidencial, o que considero uma vantagem, trate-se lá do que se tratar. És
para mim um servidor precioso; pequeno, é certo, muito abaixo do
mediano, e, neste ponto, uma criatura risível, porém possuis dignidade,
peso, dons. Tudo isto justifica que saias de tuas atribuições, que ponhas os
olhos em toda a casa e te erijas em amo para regular sua fecundidade. Não
que me recorde de te haver encarregado dessa função, de te haver pedido
que a assumisses. Mas confirmo-te retrospectivamente em tuas funções, em
atenção à tua provada competência. Se bem entendi, teu carinho e teu dever
te movem a fazer-me certas revelações relativas à esfera em que se exerce
tua vigilância e tua contabilidade, a propósito de incidentes cuja natureza é
suscetível de provocar desordens...
— Efetivamente! — respondeu o inimigo de José com veemência a esta
alocução cujas alusões desagradáveis tragou, em razão do resto animador.
— Uma fidelidade de servidor sempre atento me traz diante de ti para pôr-te
de sobreaviso, senhor, nosso sol, contra um perigo cuja iminência exigiria
que já eu tivesse sido admitido à tua presença, conforme pedido meu, pois é
possível, e talvez questão de instantes, que chegue demasiado tarde a
advertência.
— Assustas-me.
— Sinto-me consternado, mas está dentro de minhas intenções assustar-
te, tão ameaçador é o perigo. E, apesar de toda a minha perspicácia na
solução do problema, teu servo não poderia decidir se já é tarde demais e se
o ultraje já não é um fato consumado, caso em que minha advertência não
chegaria a tempo senão em um aspecto — no de que ainda estás vivo.
— Estou mortalmente ameaçado?
— Duas são as ameaças: a vergonha e a morte.
— Uma delas seria bem-vinda, se não me fosse possível evitar a outra
— disse Petepré com nobreza. — E de que lado estas funestas coisas me
ameaçam?
— Ao indicar a fonte do perigo — disse Dudu —, avancei tanto que a
dúvida não é possível. Unicamente o temor de compreender explicaria que
não me tenhas compreendido.
— Teu descaro me demonstra até que ponto é aborrecida a minha
situação — retorquiu Petepré. — Corresponde, sem dúvida, à minha
miséria, não me restando outra coisa senão louvar o zelo devotadíssimo que
te inspira. Confesso que é invencível o meu temor de compreender. Ajuda-
me a dominá-lo, meu amigo, e dize-me a verdade tão desenganadamente
que meu temor já não tenha escapatória possível.
— Seja! — replicou o anão, firmando-se sobre a outra perna, com o
punho na cadeira. — Eis aqui tua situação: as qualidades não-limitadas do
jovem intendente Osarsif exercem vastos estragos, provocaram um incêndio
no seio de nossa ama Mut-em-enet, tua esposa, e já entre estalos e
torvelinhos de fumo as chamas lambem o edifício da tua honra, prestes a
desmoronar-se e a sepultar tua vida entre seus escombros.
Petepré puxou mais para cima, tapando a boca, até o nariz, o lençol que
o cobria.
— Queres dizer — perguntou de sob a coberta — que não somente ama
e intendente puseram um no outro os olhos, senão que querem atentar
contra a minha vida?
— Assim é — respondeu o anão, e com gesto enérgico pôs o outro
punho sobre a cadeira. — E esta a situação em que se encontra um homem
como tu, que era tão grande não faz muito tempo.
— Em que prova — perguntou o comandante das tropas com voz surda
(e seus beiços faziam mover o lençol) — podes fundamentar uma acusação
tão terrível?
— Minha vigilância — tornou Dudu —, meus olhos e meus ouvidos, a
perspicácia que meu zelo pela honra da casa confere ao meu espírito
observador te garantem, meu deplorável senhor, a triste e aborrecida
veracidade da minha informação. Quem pode dizer qual dos dois (assim se
tem de falar agora destas pessoas tão diferentes pela posição, sim, tem-se
que falar “os dois”), qual dos dois, repito, foi o primeiro a pôr no outro os
olhos? Seus olhares se encontraram e culposamente se penetraram, é o que
é. Não podemos escurecer, ilustre senhor, que Mut-no-vale-do-deserto é
uma mulher solitária no seu leito. Quanto ao intendente, faz estragos em
volta de si. Qual o servo que teria precisão de ser chamado duas vezes por
uma tal senhora? Isto pressuporia tamanha fidelidade e tamanha afeição ao
amo da ama, como não se manifesta no posto da mordomia, mas no posto
imediatamente inferior... Culposo? Que importa saber quem foi o primeiro a
erguer os olhos para o outro e em qual dos dois germinou primeiro a ideia
da culpa? A do jovem intendente consiste não só no seu ato mas na sua
presença, isto é, em achar-se ele na casa, onde suas qualidades exercem
livremente seus estragos, por não se verem cerceadas nem pelo leito nupcial
nem pela navalha do barbeiro. Se a ama se fina pelo servo, isto depende da
existência dele, da cabeça dele, e para a sua culpa é exatamente a mesma
coisa que se ele tivesse cometido um atentado impudico contra a pura: deste
ponto de vista deve ser tratado. Mas, enfim, vejamos em que ponto estão as
coisas. Reina entre os dois um acordo apaixonado. Cartas de amor (tendo-as
visto, posso atestar-te seu inflamado estilo) se trocam entre eles. A pretexto
de ocupar-se de assuntos internos, encontram-se ora aqui, ora ali, na sala
das mulheres, onde a ama, por amor ao servo, erigiu uma efígie de
Horachte, e também no jardim, no pavilhão, na câmara privada que ela
ocupa aqui, debaixo do teu próprio teto, em todos estes lugares o par tem
encontros secretos, e já faz tempo que entre eles se versam temas lícitos;
não são senão frívolos jogos de língua, arrulhos, cochichos ardentes. Até
onde chegaram e gozaram já de sua carne e de seu sangue, a ponto que as
medidas preventivas viriam tarde demais e não te restaria senão a
vergonha? Eu não poderia dizê-lo com precisão. Mas o que posso jurar
diante de qualquer deus e diante de ti, senhor maculado, por tê-lo ouvido
com os meus próprios ouvidos enquanto os espiava, é que, entre arrulhos,
conluiaram matar-te a pauladas no crânio; depois do que, nesta casa, da qual
te expulsariam assassinando-te, gozariam seu prazer em leitos coroados de
flores, ama e amante.
A estas palavras Petepré estendeu completamente o lençol sobre a
cabeça, ficando invisível de todo. Assim permaneceu um bom espaço de
tempo. A Dudu começava a afigurar-se muito dilatada aquela pausa, se bem
que a princípio vira com júbilo o amo assim, massa informe, coberto de
vergonha, submergido por ela. Mas de súbito Petepré atirou o lençol ate os
quadris e erguendo-se um pouco voltou para o nanico a miúda cabeça
apoiada na sua breve mão.
— Fico-te seriamente reconhecido — disse —, intendente dos meus
cofres, pelo que me acabas de revelar (empregou um termo estrangeiro,
babilônico) para bem da minha honra, ou melhor, para permitir-me
comprovar que já está perdida e que no máximo poderei salvar a vida. Devo
salvá-la, não pelo que vale, mas pela espantosa vingança que desde agora
procurarei realizar. Mas existe o perigo de que minhas reflexões acerca das
sanções que se hão de tomar me façam descuidar do interesse, igualmente
importante, dos agradecimentos e das recompensas que te devo em troca de
tais revelações. O terror e a cólera que me inspiram só são igualados pela
surpresa ante as façanhas que teu devotamento e teu afeto realizaram. Sim,
estou assombrado, confesso-o, e bem sei que devia moderar minha surpresa.
Muitas vezes vem-nos um bem de uma pessoa insignificante, ainda que o
não tenhamos merecido por nenhuma demonstração de carinho e de
confiança; não obstante, não posso coibir o meu assombro incrédulo. És
uma pilhéria da natureza, um mostrengo, um grotesco anão ridículo, ao qual
foi dado o cargo de camareiro mais a modo de facécia, um tipo entre
cômico e repugnante, duas particularidades acentuadas ainda mais pelo ar
de importância que te dás. Nestas circunstâncias não parece inverossímil,
ou mais que isso, a ideia de que tenhas conseguido penetrar na vida secreta
de pessoas altissimamente colocadas nesta casa, ao ponto de ler as missivas
amorosas que, a acreditar-se na tua informação, trocam entre si o intendente
e a senhora? Não devo, não posso acaso duvidar da existência desses
papéis, enquanto me pareça inverossímil que tenhas conseguido vê-los?
Para isso, meu amigo, terias de ser mais que simpático ao confidente por
eles escolhido para levar tais missivas. E como pode ser isto possível, dado
o indiscutível horror que a tua pessoa incute?
— O temor — respondeu Dudu — de acreditar na tua vergonha e no teu
lamentável rebaixamento te incita, pobre senhor, a buscar razões para
desconfiar de mim. Comprazes-te em argumentos muito ruins. Tua
vacilação se explica, de tal maneira receias descobrir a verdade, a qual
realmente te mostra uma cara bem irônica e lastimosa. Reconhece, portanto,
como é vã a tua dúvida. Não me foi preciso ganhar a confiança do
confidente escolhido para levar essas mensagens exaltadas, porque o
escolhido era eu mesmo.
— Pasmoso! — exclamou Petepré. — Tu levaste as cartas, tu, tão
minúsculo, tão cômico? Só de ouvir o teu informe minha consideração por
ti sobe de ponto, mas ainda terá de subir muito mais antes que eu admita a
veracidade da tua história. Com que então a senhora seria tão íntima tua, tu
estarias em tão amistosos termos com ela que te fizesse depositário da sua
ventura e da sua culpa?
— Sem dúvida — retrucou Dudu, descansando o peso de seu corpo
sobre a outra perna e pondo o punho na anca. — E não somente me fez de
correio senão que as cartas fui eu que lhas ditei, porque ela era ignorante em
matéria de cartas amorosas, sendo necessário que eu, homem do mundo, a
industriasse neste delicado expediente.
— Quem o havia de crer! — disse, assombrado, o camarista. — Cada
vez mais caio na conta de como te hei menoscabado e meu respeito para
contigo está em via de pleno desenvolvimento, rápido, incessante. Fizeste
isto para que as coisas chegassem ao extremo e para ver até onde podia a
senhora aventurar-se na senda da culpa?
— Por certo — confirmou Dudu. — Assim procedi por amor e
fidelidade a ti, meu humilhado senhor. Se assim não fora, estaria eu aqui
informando-te para que te pudesses vingar?
— Mas — insistiu Petepré —, como foi que, truanesco e repelente qual
és, te insinuaste na confiada amizade da senhora e te apoderaste do seu
segredo?
— Isso se realizou simultaneamente — respondeu o anão. — Uma e
outra coisa ao mesmo tempo. Como todos os homens de bem, lamentei-me
e irritei-me em Amun com a astuta fortuna do estrangeiro nesta casa. Eu
desconfiava dele e de seu coração pérfido, e não sem fundamento, como
admitirás agora que te engana deploravelmente, agora que desonra teu leito
honorífico e faz de ti, que o encheste de benefícios, o objeto de escárnio da
cidade, e em breve dos dois países. Na minha aflição cheia de dúvidas,
queixei-me a Mut, tua esposa, desse escândalo e injustiça; e, mostrando-lhe
o miserável, atraí sua atenção para ele, pois no começo ela dizia que
ignorava de que servidor estava eu falando. Mais tarde a ama apreciou
minhas amargas queixas; ladeava singularmente a questão, exprimindo-se
de maneira equívoca, sob o disfarce da inquietação e em termos cada vez
mais desavergonhados, pelo que não pude deixar de entender que ela
simplesmente alimentava no íntimo o desejo do escravo e estava louca por
ele como qualquer rapariga da cozinha. Eis a que ponto chegara a
orgulhosa, por culpa da presença do tal. E se um homem como eu não
tivesse tomado a si o assunto, se eu judiciosamente não houvesse entrado no
jogo para poder, no momento oportuno, reduzir a nada o seu vil intento,
perdida estava a tua honra. Por isso, quando vi os pensamentos de tua
mulher resvalarem pela encosta tenebrosa, lancei-me no seu encalço como
quem segue um ladrão noturno que se quer apanhar em flagrante delito.
Lembrei-lhe as cartas amorosas para tentá-la e ver até onde havia chegado e
de que coisa era capaz. Minha inquieta espera foi recompensada. Graças à
cega confiança com que me distinguiu, acreditando que eu, o experto
homem do mundo, estivesse pronto a servir o seu desejo, reconheci com
espanto que o infame e sedutor mordomo já tomara a nobre dama capaz de
tudo e que não só a tua dignidade mas também a tua vida estavam em
perigo.
— Ora, ora! — exclamou Petepré. — Atraíste, pois, sua atenção e
depois lhe sugeriste tudo isto; compreendo muito bem. Isto, pelo que diz
respeito à ama. Mas que tenhas também conseguido ganhar a confiança do
intendente, ainda não o admito, à vista da tua lastimosa aparência, e
continuo crendo que é absolutamente impossível.
— Teu ceticismo, desconfiado senhor — volveu Dudu —, devia
capitular diante dos fatos. Atribuo isto ao terror que te inspira a verdade e
ainda à tua conformação singular e sagrada, a qual, conforme hás de
reconhecer, é a causa primeira do desastre. Ela te faz inapto para conhecer
os homens e compreender que sua opinião a respeito do próximo e sua
simpatia por ele — pouco importando sua estatura, alta ou meã — está em
função da sua capacidade para satisfazer sua avidez e seus desejos. Bastou-
me, pois, fingir-me disposto e propor-me delicadamente como discreto
intermediário entre seu desejo e o de nossa ama para ver o passarinho
pousar no visco. Estava eu num pé de tão cordial intimidade com ele que
absolutamente já não desconfiava de mim. Desde então não só me foi
possível vigiar de muito perto as criminosas manobras do par, mas até
provocá-los e estimulá-los para ver até onde chegariam, até que ponto se
engolfariam na culpa, para apanhá-los de improviso quando chegassem ao
último extremo. E esta a prática habitual nos guardas da ordem, cujo
modelo sou eu. Além disso, minha paciência incansável logrou ir-lhes ao
fundo da ideia e do especioso argumento sobre que alicerçam sua ação, a
saber, que quem anda de amores com a senhora há de ser senhor da casa.
Esta é, sabê-lo-ás claramente, pobre senhor, sua versão assassina e lúbrica;
veem-se todos os dias, falam nisto e arrogam-se o direito e a autorização
(de suas bocas o sei) de derribar-te a pauladas e desfazer-se de ti, para assim
poderem celebrar nos próprios lugares do crime suas festas floridas, eles
dois, amante e amásia. Tendo-os conduzido até ah e surpreendido, na minha
qualidade de confidente, seus inauditos propósitos em suas mesmas bocas,
o abscesso pareceu-me maduro para o bisturi e aqui vim encontrar-te, a ti, o
maculado, a quem guardo minha fidelidade na angústia, com a intenção de
informar-te, para que possamos agarrá-los.
— E o que vamos fazer — disse Petepré. — Nossa mão se fará sentir
sobre eles, terrível — a tua, querido anão, e a minha —, e assim cairá sobre
eles o crime que cometem. Que sanção, segundo o teu sentir, poderia
aplicar-se, e que castigo te parece bastante cruel para lhes ser infligido?
— Inclino-me à clemência — tornou Dudu —, pelo menos no que toca
à nossa Mut, a bela pecadora, pois a soledade do seu leito explica muitas
coisas, e se te parece mal que ela falte a seus deveres, não te fica bem, seja
dito entre nós, fazer muito ruído por causa disto.
Por outra parte, repito, se a ama se enamora de um criado, a culpa é
deste, esta incumbe a ele pelo fato da sua existência e deve expiá-la. Mas
também com ele me mostraria misericordioso e não pediria que fosse
lançado aos crocodilos, amarrado, como o mereceriam sua ventura e seu
infortúnio. Dudu não se preocupa tanto com a vingança como com tomar
medidas preventivas para atalhar os estragos provocados pelo intendente.
Ficará, pois, amarrado o tempo necessário para que a navalha do barbeiro
faça a sua tarefa e deste modo o mal seja cortado pela raiz. Mut-em-enet já
não poderá tolerá-lo assim e sua formosa aparência não seduzirá mais
nenhuma mulher. Pronto estou a cumprir pessoalmente o ato de
apaziguamento, com a condição de que o amarrem de antemão
convenientemente.
— És muito leal — tornou Petepré — oferecendo-te para esse mister, e
acrescentas isto ao muito que já te devo. Não achas, pequeno, que, encarada
a coisa de outro ponto de vista, também se contribuirá assim para o
restabelecimento da equidade sobre a terra, visto que, para desempenhar
essa tarefa, te acharás em situação vantajosa em relação ao mutilado,
satisfação que para ti, deforme como és, compensará o desagrado que te
causa sua estatura?
— Vai nisto alguma verdade — respondeu Dudu — que se há de levar
em conta subsidiariamente.
E cruzando os bracinhos, estendeu para a frente um ombro, e com a
perna atrevidamente arqueada começou a balançar o corpo, meneando a
cabeça para um lado e para outro, tomado de uma crescente hilaridade.
— E que te parece? — continuou Petepré. — Esse moço não pode
continuar à testa da casa depois que o puseres naquelas condições e o
submeteres a um tal tratamento.
— Não, está claro. — Dudu pôs-se a rir, comportando-se como
anteriormente. — A testa da casa, para dirigir o pessoal, não é possível que
esteja um delinquente punido, mas um homem que goze da plenitude dos
seus recursos, que seja apto para substituir o senhor em todos os negócios e
para representá-lo em todos os negócios em que este ou não possa ou não
queira figurar.
— E assim — terminou o comandante-em-chefe — terei encontrado ao
mesmo tempo a recompensa com que te quero premiar, bondoso Dudu, por
teus leais serviços de espião e por teres vindo informar-me para que eu me
ponha a salvo da ignomínia e da morte.
— Esperemo-lo assim! — exclamou Dudu com uma presunção que
raiava pela insolência. — Espero que saibas qual a posição que corresponde
a Dudu e a que coisa te obrigam o reconhecimento e as necessidades da
sucessão. Não exageras quando dizes que eu te salvei da ignomínia e da
morte, a ti e a nossa bela pecadora. Que ela saiba, não obstante, que deve
seu perdão às minhas súplicas, já que fiz valer a solidão do seu leito; deve-
me, pois, a vida, e, se respira, é graças ao meu favor e misericórdia. E se me
pagar com ingratidão, poderei qualquer dia, quando bem me parecer,
proclamar sua vergonha e seu crime através da cidade e do país, de modo
que te vejas obrigado a estrangulá-la e a reduzir a cinzas seu formoso corpo,
ou, ao menos, a devolvê-la aos seus, depois de lhe ter cortado o nariz e as
orelhas. Por isso, porte-se bem a louquinha, a infeliz, e saiba afastar seus
olhos de pedra preciosa da formosura absurda e pousá-los sobre Dudu, o
consolador sensato, o amo da ama, o robusto, pequeno mordomo.
Isto dito, Dudu atirou olhares cada vez mais atrevidos à direita e à
esquerda, ao vácuo, encolheu-se, agitou-se, comportando-se, em resumo, tal
qual um galo silvestre no cio, trepado numa árvore, a bambolear-se, cego e
surdo, embriagado pela sua própria chamada amorosa. Teve, porém, o
destino do galo que é derrubado pelo caçador. De um salto repentino,
Petepré, atirando para longe o lençol, pusera-se de pé, nu, semelhando uma
torre de carne encimada por uma cabecinha. De outro salto, estava perto da
banqueta onde ficavam suas coisas e agarrou então a maça de honra. Já
vimos entre suas mãos este belo atributo, insígnia do comando, vimos o
mesmo ou outro idêntico, um bastão pinhiforme, arredondado, enfeitado de
ouro e de couro, coroado de folhas douradas, imagem simbólica do poder e
além disso um fetiche da vida, objeto de culto para as mulheres. O senhor o
ergueu e o desfechou de tal maneira sobre os ombros e as costas de Dudu,
que o anão, perdendo o uso do ouvido e da vista por motivos bem diferentes
dos anteriores, começou a berrar como um leitãozinho.
— Ai, ai! — gritava e tremiam-lhe as pernas. — Ah, que desgraça!
Sofro, morro, sangro, meus ossos se partem! Perdoa o teu servo!
Mas a graça não veio, pois que Petepré — toma, toma, toma, néscio
descarado, espia que me vieste revelar tua torpeza! — o perseguia a golpes
desapiedados, de um canto a outro da sala, até que o fiel Dudu, encontrando
a porta, saiu com a maior velocidade que lhe consentiam suas doloridas
pernas.
A AMEAÇA

Reza a história que a mulher de Putifar assediava cada dia José com
“palavras semelhantes” e o convidava a dormir com ela. Dar-lhe-ia ele
então ocasião para isto? Depois do incidente da língua ferida, porventura
não a evitou e continuou a encontrar-se com ela em diversos lugares e em
diferentes instantes do dia? Assim tinha que ser. Afinal ela era a ama, o amo
em forma feminina; podia dar-lhe ordens, mandar chamá-lo quando lhe
parecesse. Além disso, ele lhe prometera não abandoná-la no seu extravio,
prodigalizar-lhe consolações verbais; era uma dívida para com ela. José o
reconhecia, o sentimento da culpa o amarrava à senhora; no seu íntimo ele
reconhecia que criminosamente havia deixado as coisas chegarem ao ponto
onde estavam e que seu plano terapêutico era um culposo absurdo. O
recurso agora era aguentar suas consequências e atenuá-las na medida do
possível, por perigoso e difícil, por quase insolúvel que fosse o problema.
Deveremos elogiá-lo por não ter privado de sua presença a atormentada
mulher e por expor-se ou quase expor-se, cada dia, ao bafo do touro de
fogo, continuando a arrostar uma das mais fortes tentações que tenham
salteado no mundo a um homem jovem? Sem dúvida, posto que com certas
reservas e só até certo ponto. Entre seus motivos reconheçamos que havia
alguns bons. Seu sentimento de culpa e de responsabilidade é digno de
louvor, bem como o ânimo varonil com que, na sua angústia, pôs sua
confiança em Deus e na força dos sete argumentos. Se quisermos, levemos
também em conta o espírito de obstinação que começava a intervir nestas
relações e o instigava a medir sua razão com a demência da mulher. Com
efeito, ela o tinha ameaçado, havia-se vangloriado de quebrar a coroa que
José levava em homenagem ao seu Deus e de substituí-la por sua própria
coroa. Para o jovem aquelas eram palavras desaforadas. Digamos logo que
algumas outras, acrescentadas a estas, o faziam considerar a coisa como um
combate entre Deus e os ídolos do Egito, assim como nela, com o tempo,
sua ambição pelo nome de Amun estimulou seu desejo. Pelo menos,
sugestões exteriores assim o fizeram crer. Compreender-se-á, portanto, e até
se aprovará que José tenha vedado a si mesmo todo subterfúgio, porque
julgou necessário resistir e levar a aventura até seu último extremo, para
glória de Deus.
Isto era perfeito. Esta perfeição, porém, não deixava de andar
acompanhada de outras coisas, porquanto ele tinha também outras razões
para seguir Mut, para encontrar-se com ela e visitá-la, razões que, como
José bem sabia, não eram merecedoras de encômio: chame-se-lhes
curiosidade e leviandade, vendo-se nelas sua repugnância a renunciar à
faculdade de optar pelo mal, o desejo de prolongar o instante em que tinha
licença para escolher entre o mal e o bem, muito embora não tivesse o
propósito de sucumbir às forças perversas. Ou seria talvez o agrado que
sentia, por grave e arriscada que fosse a situação, de privar com a senhora,
pondo-se num pé de igualdade que lhe permitia chamá-la “minha menina”,
pois a tanto o autorizavam a paixão de Mut e seu delírio. Conjetura banal,
mas sem dúvida exata, à vista de uma explicação mais edificante e mais
quimérica de seu procedimento — a ideia profundamente entusiástica de
sua morte e divinização na qualidade de Osarsif e do estado de sagrada
espera que encerrava, estado sobre o qual, de resto, pairava de novo a
maldição da lascívia asinina.
Em suma, frequentou a ama. Junto dela, resistia. Sofria com o fato de
Mut o assediar constantemente com as mesmas palavras e suplicar-
lhe”Deita-te comigo.” Sofria, dizemos, pois não era pouca coisa nem coisa
de gracejo perseverar junto de uma mulher extraviada por terríveis apetites,
estar a exortá-la com brandura, recordar-lhe de contínuo, fortemente, os sete
motivos da recusa, para defender-se do seu desejo quando ele mesmo, em
razão de seu próprio estado, se sentia movido a muitas coisas. Na verdade,
sentimo-nos inclinados a revelar ao filho de Jacó os motivos menos nobres
de seu procedimento, pensando na tortura que a inditosa lhe infligia. Todos
os dias instava tanto com ele, que durante alguns momentos o mancebo
chegava a compreender o gesto de Gilgamesh que, de furor e angústia,
acabou arremessando a Istar, em plena cara, o membro arrancado do touro.
A mulher degenerava e cada vez se tornava menos difícil para a escolha
dos meios, quando o acometia com súplicas para obter que consentisse no
enlaçamento de suas cabeças e joelhos. Não renovou sua proposta de
assassinar o senhor da casa para levarem em seguida, amásio e amante,
adornados de vistosas vestes, uma vida de delícias entre flores; esta ideia o
horrorizava, ela bem o tinha notado, e temia, se voltasse à carga, apartá-lo
para sempre. Ebria, conturbada, compreendia, contudo, que José se achava
com a verdade quando energicamente se defendia contra esse pensamento
selvagem, que ele tinha razão para rechaçar indignado uma oferta que ela
mesma teria dificuldade de repetir, uma vez cicatrizada sua língua, privada
de seu ferimento infantil. Mas não se cansava de repetir-lhe que era absurdo
ele negar-lhe o seu amor. Encontrando-se unidos em segredo, podiam
perfeitamente chegar à consumação material da ventura; prometia-lhe
inefáveis delícias em seus braços de apaixonada que para ele se guardara
intacta; e como a tão temas solicitações ele sempre opunha o seu “minha
menina, isto não é lícito”, Mut procurou exasperá-lo formulando dúvidas
acerca da sua virilidade.
Não que ela acreditasse nisto seriamente, coisa impossível; porém a
atitude de José dava-lhe certo direito formal e razoável para melindrá-lo por
esse lado. Dificultosamente podia o moço expor a ela os seus sete
argumentos, cuja maioria lhe havia de parecer incompreensível; os que, em
seu lugar, lhe expôs deveram parecer-lhe simplistas e fracos e produzir em
Mut o efeito de pretextos estudados. Nada podia haver de comum entre sua
pena e sua paixão e a sentença moral, a resposta que uma vez por todas ele
lhe dera na previsão do caso que estes sucessos, convertidos em história,
fossem chamados a perpetuar-se nos livros dos homens; seu senhor tinha-
lhe entregado todas as coisas, podendo ele dispor de tudo na casa, menos
dela, que era sua mulher; não podia cometer uma falta semelhante e pecar
com ela... Tratava-se de pretextos costurados com linha muito fraca, cujos
pontos estalavam sob o peso de sua angústia e de sua paixão; e, supondo
que devessem figurar numa história, Mut-em-enet estava persuadida de que
todo o mundo, em todos os tempos, acharia justo que um casal como o que
ela formava com José aproximasse seus pés e suas cabeças sem se
preocupar com o chefe supremo das tropas, o marido honorário; e assim
cada um deles se regozijaria muito mais que com uma sentença moral.
E que mais dizia José? Dizia:
— Tu queres que eu te visite de noite e durma contigo; mas em geral é
justamente de noite que o nosso Deus, que não conheces, se revelou a meus
pais. E se Ele quisesse revelar-se-me de noite e me encontrasse em tal
postura, que seria de mim?
Que puerilidade! Ou então dizia:
— Faz-me medo Adão, que foi expulso do jardim por causa de um
pecado venial. Que castigo seria então o meu?
Ela achava a resposta tão inexpressiva como quando José lhe dizia:
— Não estás inteirada de tudo. Por ter sido impetuoso como uma
torrente de água viva, meu irmão Rubem comprometeu seu direito de
primogenitura e meu pai mo deu a mim. Mas retirar-mo-ia se soubesse que
tu fizeste de mim um asno.
Ela achava extremamente frouxa e lamentável a objeção. Nada de
estranhar se, após estas explicações forçadas, trazidas até ah pelos cabelos,
ela lhe dava a entender, entre lágrimas de pena e de raiva, que começava a
acreditar — já tendo esgotado as demais conjecturas — que a grinalda de
sua fronte nada mais era que a coroa de palha da impotência. Uma vez
mais, não era possível que ela estivesse falando a sério. Lançava um desafio
desesperado à honra camal de José, e o olhar com que ele a fulminara
humilhou-a ao mesmo tempo que a abrasou; foi mais explícito e comovido
do que as palavras com que o jovem o acompanhou.
— Tu o crês? — disse-lhe com pesar. — Pois bem, então desiste! Se
fosse certo isso que fantasias, meu papel seria fácil e a tentação não se
assemelharia ao dragão e ao leão rugindo. Acredita-me, mulher, que já
pensei em pôr fim aos teus sofrimentos e aos meus infligindo a mim próprio
a conformação que erradamente me atribuís e imitar esse jovem de uma das
vossas histórias que se mutilou com a folha cortante de uma cana e depois
lançou ao rio o membro incriminado, para que os peixes o devorassem,
demonstrando assim sua inocência. Mas não me é permitido fazer outro
tanto; o pecado seria tão grande como se sucumbisse e eu perderia todo o
mérito aos olhos de Deus. Ele exige que eu me conserve são e intacto.
— Horrível! — gritou ela. — Osarsif, que coisas são essas que pensas?
Não faças tal, meu amado, meu esplêndido, olha que isto é atroz. Nunca
pensei seriamente nisso que disse. Amas-me, amas-me, teu olhar
descontente te denuncia, assim como o teu criminoso intento. Doce amigo,
vem libertar-me, veda meu sangue que corre!
E ele respondeu: — Não é possível.
Então ela se enfureceu e o ameaçou com o martírio e a morte. Eis a que
ponto chegara, e é nisto que pensamos quando dissemos que dia a dia foi
recorrendo a meios menos dignos para alcançar seus fins. José descobrira
enfim com quem teria de medir-se, compreendia a vibrante significação de
seu brado”Só eu sou terrível no meu amor!” A gata gigantesca erguia a pata
e suas garras ameaçadoras saíam do seu estojo de veludo para despedaçá-lo.
Se não lhe cedesse — disse ela—, se não lhe largasse a coroa recebida de
Deus, para receber em troca a da volúpia amorosa, ver-se-ia obrigada a
aniquilá-lo e não deixaria de fazê-lo. Concitava-o a tomá-la a sério e não
imaginar que falava aereamente: ali onde a via, era capaz de tudo e estava
pronta para tudo. Diante de Petepré lhe imputaria o ato de que agora fugia e
o acusaria de ter intentado violar sua virtude. Acusá-lo-ia de a ter
violentado e esta denúncia lhe causaria um prazer infinito. Saberia fingir tão
bem o papel de violentada, que ninguém duvidaria de sua sinceridade. Sua
palavra e seu juramento pesariam na casa mais do que os de José, e de nada
serviriam suas negativas. Aliás, Mut estava convencida de que José não
negaria nada e que se deixaria culpar em silêncio, porquanto, se ela havia
chegado a tal ponto de furor e desespero, quem tinha a culpa senão o jovem,
com seus olhos, sua boca, seus ombros dourados e a recusa do seu amor? E
pouco importava a acusação que contra ele se faria, uma vez que a acusação
estava justificada pela realidade da falta cometida contra sua ama, não
restando ao mancebo outra alternativa senão estar apercebido para sofrer a
pena de morte, uma morte que sem dúvida o faria lamentar seu silêncio e
talvez também sua cruel renúncia ao amor. Os homens como Petepré
tinham a imaginação especialmente fértil a serviço da vingança; ao
selvagem que violara a ama havia de estar reservado um gênero de suplício
a que nada faltaria em requintes de perversidade.
E descrevia-lhe a maneira como havia de morrer depois de acusado; e
esta descrição ela a fazia ora com voz maviosa e vibrante, ora ao seu
ouvido, num murmúrio que passaria por um temo arrulho amoroso.
— Não esperes — dizia — que o teu processo seja rápido e que sejas
precipitado do alto de uma rocha ou dependurado no ar, de cabeça para
baixo, de modo que o sangue, afluindo ao cérebro, se faça expirar sem
sofrer. Isto se dará mui lentamente, depois dos açoites que rasgarão tuas
costas por ordem de Petepré. Quando ele te houver acusado de violência,
seu peito vomitará um furacão de areia como a montanha oriental, e seu
maligno furor não conhecerá limites. É medonho ser atirado aos crocodilos,
estar estendido entre os canaviais, amarrado, sem defesa, quando o
devorador avança, ávido e trepando em ti com seu úmido ventre, principia
seu festim com teus músculos ou teus ombros. Teus berros selvagens se
confundirão com os gemidos de sua fome e ninguém ouvirá ou quererá
ouvir falar no desamparo em que estarás. Outros sofreram esta sorte, e nós
ouvimos sua história com uma compaixão superficial, sem aprofundar nada,
sem atentar bastante nela, por não estar em jogo nossa própria pele. Agora,
porém, trata-se de ti: é a tua carne que o devorador ataca, encetando por
aqui, por exemplo, ou por ali. Conserva tua lucidez, retém o grito inumano
que se escapa do teu peito. Não me chames, amado, a mim que quis dar um
beijo ali onde o ventre úmido ferra seus terríveis colmilhos. Talvez também
os beijos sejam de outra índole. Talvez, meu lindo, sejas estendido de costas
sobre o solo, com barras de bronze nos pés e nas mãos, sob um montão de
matérias combustíveis, às quais se ateará fogo; e, entre torturas sem nome
que só tu conhecerás, tua carne se carbonizará lentamente, enquanto,
ofegante, imploras aos assistentes, que se limitam a olhar. Talvez assim
suceda, meu amado; mas não é impossível que sejas encerrado vivo com
dois molossos numa cova coberta de tábuas e de terra, e ninguém pode
imaginar (nem tu tampouco, enquanto esta ameaça não se converta em
realidade) o que se passará no escuro entre os três. Terás acaso ouvido falar
na porta da sala e no seu gonzo? Depois da minha acusação serás o homem
que esconjura e uiva de dor porque o gonzo da porta entra num de seus
olhos e a porta lhe gira na cabeça cada vez que ao vingador apraza transpor
o umbral. Estes são apenas alguns dos castigos que certamente te aguardam
se eu te acusar, como a tanto estou resolvida no caso de minha desesperação
me conduzir ao último limite; e já não poderás desculpar-te, uma vez que eu
tenha jurado. Por piedade, Osarsif, entrega-me a tua coroa!
— Ama e amiga — respondeu ele —, falas verdade, não terei desculpa
se assim me fores enodoar diante do senhor. Mas entre os castigos com que
me ameaças, Petepré terá de escolher: só me pode infligir um, não todos ao
mesmo tempo, e este circunscreverá sua vingança e meus sofrimentos.
Porém, dentro de seus limites, minha capacidade de sofrimento também
marcará um termo às minhas dores, além do qual o padecimento não poderá
prolongar-se, sendo, como é, limitado. Tu me pintas o prazer e a dor como
incomensuráveis, mas exageras, porque nenhum dos dois ultrapassa a
capacidade humana. Incomensurável seria, ao invés, a falta que eu
cometeria indispondo-me com Deus, meu Senhor, que não conheces, de
modo que ignoras o que significa ser desamparado por Deus. Assim, pois,
minha menina, não posso satisfazer os teus desejos.
— Ai da tua prudência! — exclamou Mut com voz cantante. — Ai dela!
Eu não sou prudente. Sou imprudente por causa da ânsia infinita que tenho
do teu sangue e da tua carne, e farei o que te disse. Sou Ísis amorosa e meu
olhar dá a morte. Toma cuidado, toma cuidado, Osarsif!
A RECEPÇÃO DAS DAMAS

Quão majestosa parecia a nossa Mut quando, de pé diante dele, o


ameaçava com sua voz vibrante! E, contudo, era débil como uma menina,
indiferente à sua dignidade e à sua lenda, tendo começado já a pôr todo o
mundo a par da sua paixão e da angústia em que a abismava o jovem. Não
eram apenas Tabubu, a mastigadora de goma, e Meh-en-Vesecht, a
concubina. Já sabiam também do seu amor e da sua desolação Renenutet, a
mulher do superintendente dos bois de Amun, e Neit-em-heb, esposa do
lavador principal de Faraó, e ainda Achvere, consorte de Kakabu, escrivão
da casa da prataria do monarca, numa palavra, todas as suas amigas, todo o
domínio, metade da cidade. Sinal manifesto da sua decadência, no fim do
terceiro ano do seu amor, falava a respeito dele a qualquer pessoa, isso sem
o menor pejo nem recato, e nenhum escrúpulo teve de pôr toda a terra ao
corrente daquilo que no começo escondera tão altiva e pudicamente em seu
seio, tanto que preferiria morrer a confessá-lo ao seu amado ou a outra
pessoa qualquer. Nesta história não foi Dudu, o anão, o único a conhecer o
desvario. Mut, a senhora, também o conheceu, a ponto de perder todo o
domínio de si e sua fina educação. Ela era uma criatura duramente provada,
ferida no mais vivo da sua alma, fora de si; não pertencia mais ao mundo
civilizado, não se achava mais no seu próprio nível, era agora uma bacante
que corre, com o olhar parado, pronta a oferecer sua garganta às bestas
feras, agitando o tirso, coroada de flores silvestres, queixosa e feliz. A que
extremos chegou! Digamo-lo cá entre nós e com antecipação: rebaixou-se
até praticar a magia com a negra Tabubu. Mas não é este o lugar para
falarmos no assunto. Por ora, limitemo-nos a verificar com surpresa e com
dó que à direita e à esquerda se expandiu em falatórios acerca de seu amor
insaciado, incapaz de ocultá-lo aos grandes e aos pequenos, de modo que
seu tormento converteu-se em assunto predileto de todo o pessoal. E os
cozinheiros, remexendo seus molhos e depenando suas aves, e os guardas
das portas sobre seu banco de ladrilhos diziam uns aos outros:
— Parece que a senhora corre no encalço do jovem intendente e que
este foge sempre. Que coisa gozada!
É esta a forma que tomam tais coisas na cabeça e nos lábios das
pessoas, em razão do deplorável contraste que existe entre a consciência
grave e sagrada, dolorosamente bela, que de si tem a paixão cega, e o efeito
que produz nos indiferentes, aos quais sua impotência para dissimular
parece matéria de escândalo e de sarcasmos, como se fosse o espetáculo de
um bêbedo na estrada.
Várias versões posteriores da nossa história (feita abstração da mais
respeitável, é verdade, mas também a mais lacônica), o Corão, os dezessete
cantos persas que a relatam, o poema de Firdusi, o desiludido, ao qual
consagrou sua velhice, a formosa narrativa de Djami, tudo isto e inúmeras
descrições devidas ao pincel ou ao estilo relatam a recepção que a primeira
e legítima mulher de Petepré deu por essa época para exprimir seu mal e
explicá-lo às suas amigas, as principais damas da sociedade de No-Amun,
desejando com isso suscitar as simpatias de suas irmãs e também sua inveja.
Porque o amor, por pouco correspondido que seja, não é só flagelo e
maldição, mas também um tesouro magnífico que não se quer conservar
escondido. Os cantos vetustos caíram em vários erros; tornaram-se culpados
de mais de uma variante e de adornos com que alcançaram, é certo, a suave
beleza a que aspiravam, mas com prejuízo da estrita verdade. Mas não são
falsos quando aludem à recepção das damas; e se, preocupados com o
efeito, se apartam da forma rigorosa com que a história a si mesma se
narrou na sua origem, se suas divergências se infligem recíprocos
desmentidos, este episódio, não obstante, não é invenção de aedos: é a
história mesma, ou melhor, é a mulher de Putifar em pessoa, a pobre Eni,
que a imaginou e a pôs em execução, demonstrando uma astúcia que forma
o mais estranho contraste, embora muito realista, com a perturbação do seu
espírito.
Para nós que conhecemos o sonho revelador de Mut-em-enet no começo
dos três anos de amor, é fácil apanhar claramente o vínculo entre seu sonho
e sua invenção, bem como o processo de ideias que lhe sugeriu este meio ao
mesmo tempo deplorável e malicioso de informar suas amigas. A realidade
do sonho (cuja autenticidade desde então se toma evidente) é para nós a
melhor prova de que a recepção das damas foi historicamente verdadeira e
que a tradição que nos é familiar, mais merecedora de fé, a omitiu
unicamente em virtude de uma concisão lapidar.
O prólogo desta recepção foi que Mut-em-enet caiu doente, dessa
doença bastante imprecisa que em todas as histórias ataca os príncipes e as
filhas de reis quando amam sem esperança, doença que, regularmente,
“zomba da arte dos médicos mais famosos”. Mut recorreu a ela porque
ficava dentro do estabelecido, porque era o natural e o lógico, e contra tais
coisas é difícil opor-se. Em segundo lugar, tinha vivas ânsias (e isto parece
que para os príncipes e filhas de reis de outras histórias é também um dos
motivos principais de sua languidez) de causar sensação, de impressionar a
todos, de ser interrogada com insistência, como se se tratasse de vida ou de
morte, interrogada a fundo, pois, quanto às perguntas superficiais,
testemunhos de um interesse mais ou menos sincero, já havia tempo que
vinham sendo feitas, desde que seu aspecto mudara. Enfermou, pois, por
imperioso desejo de impressionar, de proclamar a felicidade e o tormento
do seu amor. Do ponto de vista da ciência austera, a nenhuma gravidade do
seu mal fica patente só com o fato de que, para sua recepção, pôde
perfeitamente levantar-se da cama e desempenhar seus deveres de anfitrioa.
Aliás, não vai nisto nada de maravilhoso, já que esta reunião mundana
figurava certamente de antemão no plano da sua enfermidade.
Mut foi, pois, atacada de grave afecção, embora vaga, que a obrigou a
ficar de cama. Trataram dela dois médicos elegantes: o doutor da casa dos
livros de Amun, que já fora chamado junto ao leito do antigo mordomo
Mont-kav, e outro sábio com funções no templo. Também cuidaram dela
suas irmãs da Casa das Reclusas, as concubinas de Petepré, e suas amigas
da grande ordem de Hathor e do harém meridional de Amun a visitaram. As
senhoras Renenutet, Neit-em-heb, Achvere e muitas outras acudiram a
saber notícias suas. Veio também em sua liteira Nes-ba-met, a superiora da
ordem, esposa do grande Beknechons, “chefe dos sacerdotes de todos os
deuses do Alto e do Baixo Egito”. E todas, isoladamente ou em grupos de
duas ou três, sentadas à sua cabeceira, demonstravam seu pesar e se
informavam de seu estado com palavras que em algumas eram
sinceramente afetuosas, em outras repletas de sangue-frio, ditas por
conveniência e até com malignidade.
— Eni, cujo canto é uma sedução — diziam —, em nome do Oculto,
que tens tu e em que aflição nos pões? Tão certo como viver o rei, há tempo
já que não és a mesma; todas nós, mas amigas do peito, temos notado em ti
sinais de fadiga e mudanças certamente não tão marcadas que prejudiquem
tua beleza, mas que todavia alarmam nosso carinho. Não será mau-olhado?
Todas temos verificado, e o temos comunicado umas às outras chorando
lágrimas ardentes, que a languidez te oprime, traduzida num debilitamento
que na verdade não ataca todo o teu corpo, porque, se algumas partes dele
se desenvolveram, outras se reduziram. Tuas faces, por exemplo, se
encovam, teu olhar tornou-se parado e em volta de tua célebre boca sinuosa
o tormento cravou sua garra. Todas nós tuas irmãs temos visto isto e temo-
lo comentado a chorar. Agora, porém, teu esgotamento é tal que te
acamaste, não bebes nem comes, e tua doença desafia o saber dos médicos.
Na realidade, quando disto soubemos, já não sabíamos em que parte da
terra estávamos, tão grande foi o nosso pavor! Importunamos com
perguntas os sábios da casa dos livros, os teus médicos Te-Hor e Pete-
Bastet. Responderam-nos que estavam quase nos limites do seu saber e não
escondiam sua perplexidade. Conhecem apenas mais alguns remédios de
que se pode esperar um bom resultado, pois até agora tua languidez tem
sido mais forte do que os que eles hão receitado. Grande deve ser o
tormento que te rói e te consome como o rato rói a árvore na raiz até
derrubá-la. Em nome de Amun, querida, tens realmente alguma coisa que te
atormenta e rói? Dize-nos seu nome, somos teus coraçõezinhos, antes que a
maldita atente contra a tua doce vida!
— Ainda supondo — respondeu Em com voz aflita — que eu tivesse
algum tormento, de que serviria mencioná-lo? Boas e compassivas amigas,
não podeis livrar-me dele e sem dúvida não me resta outra coisa senão
morrer.
— E então verdade que um tormento dessa natureza é o que te extenua?
— indagaram.
E nos tons mais agudos aquelas damas se maravilharam de que fosse
possível uma coisa semelhante. Uma mulher como Eni? Pertencendo à nata
do país, rica, de uma beleza sedutora, invejada entre todas as mulheres do
império? Que coisa lhe faltava? Havia algum desejo que a si própria
negasse? Suas amigas não viam explicação para o fato. Interrogaram-na
insistentemente, um pouco por cordialidade, outro pouco por curiosidade,
por alegria maligna de vê-la sofrer e por amor as emoções. Durante muito
tempo a enferma se negou lânguida e desesperadamente a descer a
confidências, visto como ninguém podia vir em seu auxílio. Por fim — pois
bem, vá lá! — declarou que lhes dana uma resposta coletiva, durante uma
hora de cavaqueira íntima, num banquete de mulheres para o qual as
convidaria dentro em breve. Quando houvesse comido alguma coisa,
mesmo sem apetite — um fígado de ave, um pouquinho de legume —,
talvez tivesse forças para se levantar e revelar assim a suas amigas a causa
de sua mudança e de sua doença.
Dito e feito. No primeiro quarto lunar — estava perto o dia de ano-bom
e a grande festa de Opet, por ocasião da qual acontecimentos decisivos iam
verificar-se em casa de Putifar —, Eni efetivamente convidou suas amigas
para essa reunião, objeto de numerosos relatos, nem sempre verídicos, nas
salas do serralho de Petepré. A festa realizou-se à tarde, no meio de grande
concorrência, tendo-lhe emprestado particular brilho a presença de Nes-ba-
met, a esposa de Beknechons e a primeira das mulheres do harém. Nada
faltou: flores, perfumes, bebidas embriagadoras ou refrescantes, pastéis em
profusão, frutas cristalizadas e doces açucarados, que eram oferecidos por
jovens servas vestidas de um modo encantador, com suas negras tranças
caídas sobre os ombros e trazendo em volta do rosto véus de um matiz
inédito que foi muito apreciado. Uma deliciosa orquestra de harpistas, de
tocadoras de alaúde e diaulos, envolvidas em amplas vestes finíssimas que
deixavam ver em torno dos quadris o cinturão bordado, tocava a música no
pátio da fonte, onde a maioria das damas formava grupos livremente, umas
sentadas em cadeiras e tamboretes, entre os aparadores repletos de
guloseimas, outras ajoelhadas em vistosas esteiras; ainda outras estavam no
salão das colunas que já conhecemos e donde havia sido novamente retirada
a imagem de Amun-Rá.
As amigas de Mut eram de boa aparência e sabiam ataviar-se com arte.
Do alto de suas cabeças descia derretendo-se um óleo perfumado sobre suas
cabeleiras soltas e dispostas em franjas, através das quais cintilavam os
discos de ouro dos brincos; seus membros eram de um moreno agradável,
os olhos coruscantes subiam para as têmporas e os narizinhos não
exprimiam outra coisa que não fosse altivez e arrogância; os esmaltes de
porcelana e de pedras preciosas dos seus afogadores e braceletes, o linho
fino que lhes modelava os brandos seios, pareciam raios de sol ou de lua e
eram a expressão do supremo requinte. Exalavam um cheiro de lótus,
passavam umas às outras guloseimas e gralhavam com guinchos agudos ou
vozes baixas e roucas, como as que muitas vezes têm as mulheres dessas
latitudes. Entre outras, era assim a de Nes-ba-met, a esposa de Beknechons.
Falavam da festa de Opet, muito próxima, do grande cortejo da santa tríade
em suas barcas e capelas, por água e por terra, do banquete do deus no
harém meridional de Amun, onde deviam dançar, bater palmas e cantar
diante dele, na sua qualidade de concubinas de vozes sedutoras. O tema da
conversação, embora importante e atraente, não era a essa altura senão um
pretexto para não dar descanso à língua e permitia encher o tempo da espera
até que Mut-em-enet, a dona da casa, comunicasse sua resposta às
convidadas, revelando-lhes o sensacional motivo de seu esgotamento.
A beira da fonte estava Mut sentada entre elas, imagem do sofrimento,
com um frouxo sorriso errando-lhe pela boca sinuosa e atormentada, e só
aguardava o momento propício. Como se estivesse a sonhar e inspirando-se
num sonho, tinha tomado suas disposições para informar suas amigas, e
também como em sonho tinha a certeza de triunfar. A execução do seu
plano coincidiu com o ponto culminante da festa. Frutas esplêndidas
haviam sido dispostas em açafates floridos: perfumadas esferas de ouro,
cheias, debaixo da rugosa casca, de um suco refrescante, rubros limões da
Índia, laranjas, frutas todas extremamente raras. Para descascá-las havia
umas lindíssimas faquinhas com cabos de lazulita. Suas folhas de bronze,
cuidadosamente polidas, tinham sido objeto de especial atenção de Mut; ela
mandara afiá-las a tal ponto que até então nunca se haviam visto no mundo
faquinhas tão cortantes. Estavam tão amoladas que podiam servir para rapar
uma barba, embora esta fosse dura como arame. Era preciso cuidado: a
menor distração, o tremor mais ligeiro podia ocasionar uma ferida séria. Na
verdade, aquelas folhinhas tinham sido aguçadas de uma forma perigosa;
parecia ser suficiente aproximá-las da ponta dos dedos para que o sangue
esguichasse. Limitavam-se a isto os preparativos de Mut? Não. Havia
também certo vinho muito apreciado, originário de Chipre, que acendia nas
veias um doce fogo e devia figurar à sobremesa, com as laranjas. Os belos
cálices de ouro batido e de argila pintada, revestida de estanho, destinados a
contê-lo, foram as primeiras coisas que, a um sinal da senhora, amáveis
ancilas, cuja vestimenta única era um vistoso cinturão em redor dos quadris,
distribuíram em volta, no pátio da fonte e na sala das colunas. Mas quem ia
deitar nas taças o vinho das ilhas? As agradáveis ancilas? Não. A dona da
casa havia julgado isto pouco honroso para a recepção e para as convidadas.
Sua decisão era muito diferente. A um novo sinal de Mut as maçãs de ouro
e as lindas faquinhas foram também repartidas entre as damas, provocando
gritinhos de entusiasmo. Admiraram as frutas e também, por sua graça, as
encantadoras faquinhas, cuja propriedade principal ainda era desconhecida.
Todas, portanto, começaram imediatamente a estonar as frutas para chegar à
branda polpa, mas logo seus olhos se desviaram, distraídos, de sua
ocupação. De novo Mut havia feito um sinal e entrou em cena o copeiro.
Era José. A enamorada pedia-lhe que desempenhasse aquele oficio. Como
ama, exigira dele que servisse o vinho de Chipre a suas companheiras, sem
descobrir-lhe o segredo de seus outros preparativos, de sorte que o jovem
ignorava os fins para que ela contava empregá-lo. Mut havia sofrido, sem
dúvida, por ter de enganá-lo e utilizá-lo para um mau fim: estava, porém,
aflita para informar convenientemente suas amigas e abrir-lhe seu coração.
Por isso exigira de José esse serviço, e, tendo-se ele mais uma vez recusado
com toda a delicadeza a partilhar seu leito, disse-lhe a ama:
— Queres ao menos, Osarsif, dar-me a alegria de servir pessoalmente
depois de amanhã, na minha festa, o vinho nove vezes bom de Alachia,
como prova da sua bondade e em sinal de que me amas um pouquinho e de
que sou alguma coisa nesta casa, uma vez que aquele que a superintende me
serve e serve minhas convidadas?
— Naturalmente, senhora — respondera-lhe ele. — Fá-lo-ei de bom
grado e de muito boa mente servirei o vinho, visto que assim o queres. De
corpo e alma estou ao teu serviço e à tua disposição em tudo que quiseres,
menos no pecado.
Eis aqui como entre as damas que descascavam sua fruta no pátio
apareceu de improviso o filho de Raquel, o jovem intendente de Petepré
vestido de gala com um traje branco e trazendo nas mãos uma jarra
micênica pintada com cores vivas. Cumprimentou, derramou algumas gotas
e imediatamente começou a encher as taças, girando entre as convidadas.
Então, vendo-o todas, tanto as que já tinham tido ocasião de vê-lo como as
que não o conheciam, esqueceram não somente sua ocupação, mas até, por
assim dizer, sua personalidade. Como só tinham olhos para a escanção, as
pérfidas faquinhas fizeram sua obra e as damas, sem excetuar uma,
cortaram horrivelmente os dedos, sem, a princípio, nem sequer perceber tão
desagradável incidente, porquanto um corte produzido por uma folha tão
afiada mal se sente, sobretudo no estado de distração profunda em que
estavam mergulhadas as amigas de Eni.
Esta cena, várias vezes descrita, tem sido considerada por alguns como
apócrifa e alheia à história propriamente dita. Ela é autêntica e tem por si
todas as presunções. Se se pondera que, por uma parte, se tratava do moço
mais formoso do país e, por outra, que as faquinhas eram as mais cortantes
que até então se tinham visto, fica patente que a coisa não poderia dar-se
senão como se deu, com aquele derrame de sangue, e que era mais do que
justificada a firmeza como que de sonâmbula com que Mut combinara e
previra as diversas peripécias. Com seu gesto dolorido, seu rosto sombrio,
esse rosto de linhas sinuosas, contemplou a desgraça provocada por ela, o
banho de sangue que corria silenciosamente e que no começo foi ela a única
a advertir, pois que os rostos assombrados e lascivos das damas seguiam o
mancebo que já se dirigia ao salão das colunas, onde (Mut acreditava nisso
com inteira segurança) o mesmo fato iria repetir-se. Depois que o amado
havia desaparecido da vista de todas, perguntou num tom de perversa
inquietude, no meio do silêncio:
Irmãzinhas, que tendes e que fazeis? Estais sangrando!
Visão aterradora. Em muitas, como as ágeis faquinhas houvessem
penetrado uma ou duas polegadas, o sangue corria não gota a gota, mas em
densos fios. O rubro líquido inundava e manchava as mãozinhas e as maçãs
de ouro; tingia os finos tecidos dos vestidos, formava poças no regaço das
mulheres e descia-lhes até os pés, espalhando-se pelo chão. Que gritos, que
lamentos, que ranger de dentes, que olhos desvairados, quando, com a
advertência fingidamente atônita de Mut-em-enet, perceberam o que se
passava! Algumas para quem o ver sangue, o seu em especial, era
insuportável, cuidaram que iam desmaiar. Foi necessário prevenir os
delíquios, reanimando-as com azeite de zedoária e sais administrados pelas
amáveis servas, que corriam de uma para outra. Para fazer frente ao
desastre, as criadas repartiram jarros, toalhas, vinagre, fios de linho e tiras
de pano, de modo que a reunião tomou o aspecto de um hospital, e isto
tanto no pátio como no salão das colunas, para onde Mut-em-enet se dirigiu
um instante para certificar-se de que também ah tudo nadava em sangue.
Renenutet, a esposa do superintendente dos bois, era das mais feridas e teve
de insensibilizar provisoriamente a mãozinha, comprimindo os dedos
exangues por meio de uma sólida atadura que detinha a circulação,
atalhando a hemorragia. Nes-ba-met, mulher de Beknechons, a dama da voz
grave, encontrava-se em lastimoso estado. Com o vestido que era uma
ruína, vociferava em voz alta sem saber contra quem, enquanto duas
criadas, uma branca e uma preta, lhe prodigalizavam seus cuidados.
— Minha muito querida superiora e vós todas, minhas irmãzinhas —
disse hipocritamente Mut-em-enet, quando a calma e o silêncio se
restabeleceram alguma coisa —, como é possível que vos tenhais magoado
a tal ponto em minha casa e que este rubro incidente haja deslustrado a
minha festa? Que semelhante acontecimento se tenha verificado em minha
casa é coisa que dificilmente posso suportar,mas... e como foi isto possível?
As vezes, estornando um pero, acontece que uma ou outra se corte, mas
todas ao mesmo tempo e até os ossos? Isto nunca se viu, desde que eu
conheço o mundo, e sem dúvida o fato ficará como único na história
mundana dos países; é isto ao menos o que se deve esperar. Mas consolai-
me, minhas boas amigas, e dizei-me como isto pôde acontecer.
— Deixa — respondeu em nome das outras mulheres Nes-ba-met com
sua voz grossa —, deixa, Eni, pois não há nisto mal nenhum, se bem que o
rubro Set tenha estragado os nossos vestidos da tarde e algumas de nós
tenham empalidecido de tanto sangrar. Não te aflijas. Tuas intenções foram
boas, segundo supomos, e tua recepção é estupenda até nos seus menores
detalhes. Todavia, caíste numa grande inadvertência, minha boa amiga, no
melhor da festa — falo-te com franqueza em nome de todas. Põe-te no
nosso lugar. Tu nos convidas para nos revelar a causa dessa languidez que
desorienta a ciência dos médicos, e nos deixas tanto tempo aguardando tua
revelação que, cansadas, fomos enganando a nossa curiosidade com uma
garrulice frívola. Como vês, digo tudo sem rebuço, sem rodeios,
interpretando o sentir das demais. Fazes-nos servir maçãs de ouro,
saborosas, esplêndidas, tais como nem o próprio Faraó as tem todos os dias.
Mas justamente quando nos aprestamos a descascá-las, ordenas que se
apresente diante de nós esse copeiro, pouco importa quem seja, presumo
que se trate do teu jovem intendente, aquele a quem chama “Nefernefru”
pelos caminhos da terra e da água. Já é bem mortificante para uma dama
estar de acordo com a plebe dos diques e canais em matéria de juízos e de
gostos. Mas aqui não se trata de gostos nem de divergências, porquanto esse
jovem, com a cabeça e a conformação que tem, se nos oferece como uma
imagem celestial. Não pode deixar de produzir-se um choque quando entre
mulheres que já estão nervosas aparece de supetão um mancebo, ainda que
seja menos guapo que esse. Como queres, pois, que não se sinta um frêmito
até a medula e que os olhos não nos saltem das órbitas quando aparece um
jovem de semblante divino, inclinando sua jarra até a nossa taça? Não
podes exigir que se pense no que se está fazendo, nem que se cuide de livrar
os dedos de qualquer incidente menos agradável. Temos-te incomodado e
causado fundo desgosto vertendo sangue à tua vista, Eni, mulher de voz de
sereia; mas francamente te direi que és responsável por esse aborrecimento,
dispondo as coisas como dispuseste, para produzir o choque.
— Assim é — exclamou Renenutet, a superintendente dos bois.
— E necessário, querida, que aceites a censura: pregaste-nos uma boa
peça, que guardaremos na lembrança, embora sem rancor, porque sem
dúvida a tua inocência não suspeitava sequer semelhante coisa. Mas o fato
é, querida, que deste prova de leviandade e desconsideração.
Se quiseres ser justa, tens de reconhecer-te culpada deste rubro
incidente. Hás de reconhecer que a soma de feminilidade que uma tão
numerosa reunião de mulheres representa reage particularmente sobre o
nosso sistema nervoso e excita a sensibilidade de cada uma de nós. E eis
que em tal círculo introduzes de improviso um elemento masculino! E que
momento escolhes? O momento de descascar a fruta! Minha amiga, como
era possível evitar que corresse sangue? Pensa bem. E, para remate, era
necessário que esse copeiro fosse o teu jovem mordomo, um mancebo
realmente divino. Vendo-o, eu me senti esquisita; digo-o tal como foi e não
procuro estar com cerimônias, pois que nos achamos numa hora e numas
circunstâncias em que o coração está à flor da boca, e a gente sente que
pode dizer de uma vez e abertamente a verdade. Eu sou uma mulher que me
deixo impressionar pelos homens, vós não o ignorais, e por isso recordarei
singelamente que, além do meu marido, o diretor dos bois, que está no
vigor da idade, conheço também certo oficial da guarda e o jovem ecônomo
do templo de Chonsu, que frequenta minha casa, como é sabido. Isto não
impede que eu sempre esteja alerta em relação ao homem que em mim
produz um efeito divino. Tenho um fraco especial pelos escanções; um
escanção tem sempre o que quer que seja de divino ou de predileto dos
deuses, não sei por que fantasio isto, mas deve provir de suas funções e
ademanes. E eis que surge esse Nefernefru, esse lótus azul, o divinal rapaz
com a sua infusa... Minhas boas amigas, fiquei fora de mim! Julguei estar
contemplando um deus e na minha piedosa alegria não soube mais onde me
achava. Era toda olhos, e, enquanto o contemplava, cortei-me até o osso
com a faquinha e verti fartamente meu sangue sem o perceber, tão alheia
me sentia. Mas ainda não cheguei ao fim dos meus pesares, pois que estou
certa de que toda vez que tiver de esburgar uma fruta, a figura desse maldito
copeiro aparecerá na minha retina e me absorverá de tal modo que
novamente me cortarei até o osso. Assim sendo, nunca mais poderei servir-
me de fruta que tenha de ser descascada, ainda que me fine por ela. Foi o
que fizeste, querida, com a tua tonta administração.
— Sim, sim! — exclamaram todas as damas, tanto as do pátio da fonte
como as da sala das colunas, que se tinham aproximado durante o discurso
de Nes-ba-met e o de Renenutet. — Sim, sim! — tornaram a gritar em coro,
com vozes agudas e graves. — Foi isso mesmo. As oradoras falaram muito
bem, e todas estivemos a pique de esvair-nos em sangue por nos haver
perturbado tão improvisadamente a vista daquele copeiro. E em vez de nos
dizeres a causa da tua languidez, pois para isso nos havias convidado, Eni,
nos fizeste uma boa partida.
Então a voz de Mut-em-enet se alçou com toda a amplidão de um canto
e disse:
— Insensatas! Não só vos mencionei, mas também vos mostrei a causa
da minha languidez mortal e de toda a minha angústia. Volvei, pois,
também um olhar para mim, já que fostes todas olhos para ele. Não o vistes
mais que o breve tempo de algumas pulsações e vos magoastes, perdidas
como estáveis em vossa contemplação, ao ponto de estardes ainda pálidas
por causa da rubra angústia em que ela vos abismou. Quanto a mim, posso
ou devo vê-lo todos os dias, a qualquer hora... Que fazer em tão contínua
aflição? Pergunto-vos: que será de mim? Esse rapaz — cegas que sois e a
quem em vão quis abrir os olhos —, esse intendente da casa de meu marido
e seu copeiro é o meu pesar e a minha perdição; morro com o feitiço de sua
boca e de seus olhos; por causa dele é que, ó minhas irmãs, derramo,
gemendo, o meu sangue escarlate, e por causa dele morrerei se ele não mo
estanca. Só de vê-lo cortastes os dedos, mas o amor que tenho à sua beleza
me transtornou o coração e é todo o meu sangue que vai fugindo.
Tendo assim cantado com voz entrecortada, Mut caiu em seu assento,
soluçando perdidamente. É fácil imaginar a emoção que estas palavras
provocaram no coração das amigas. Acolheram com as mesmas
manifestações que Tabubu e Meh-en-Vesecht a grande notícia de que Mut
sofria de mal de amor, e a atitude delas a respeito foi idêntica à das duas
mulheres, salvo as diferenças ditadas pela posição. Rodearam-na, afagaram-
na, expressaram num burburinho de enternecidas vozes suas felicitações e
sua piedade. Porém os olhares que trocavam furtivamente e as reflexões que
entre si cochichavam diziam coisa um pouco diferente de terno interesse.
Sentiam uma decepção maligna de que tudo se reduzia a quase nada e que,
no fundo, essa tortura não fosse mais que uma vulgar paixão inspirada por
um criado. Manifestou-se uma calada desaprovação, mas acima de tudo a
satisfação perversa diante da pena alheia, porque Mut, a altiva, a pura, a
casta noiva lunar de Amun, via-se assim atingida em idade mais provecta e
visitada por uma prova das mais comuns: definhava por causa de um
formoso servidor e, impotente para recalcar tais sentimentos por respeito a
si mesma, desarmada, exibia diante de todo mundo sua decadência, que a
colocava no nível de uma mulher qualquer, sobretudo quando gemia”Que
será de mim?” Por lisonjeadas que com isto se sentissem as amigas, não
lhes escapou que, através dessa confissão pública, assomava a antiga
arrogância de Mut, disposta a ver num incidente ordinário que só a ela dizia
respeito um acontecimento excepcional, sem precedentes, um caso fadado a
abalar os fundamentos do mundo. Era isto que molestava as amigas de Eni.
Tudo isto aflorou aos olhares que entre si trocavam aquelas damas; como,
porém, fosse como fosse, era grande a sua alegria com a sensação
produzida e com o lindo escândalo mundano, inclinaram-se à solidariedade
feminina. Com sincero e cordial interesse pelas tristezas da irmã,
agruparam-se em torno dela, abraçaram-na, exaltaram-na e em animada
loquacidade prodigalizaram-lhe suas consolações. Não se cansavam de
referir-se à dita do rapaz, a quem fora dado despertar um sentimento
semelhante no coração de sua ama.
— Sim, doce Eni — disseram —, informaste-nos e nós compreendemos
perfeitamente que não é coisa insignificante para uma mulher dever e poder
olhar todos os dias tão divino semblante. Nada de admirar que por fim tu
também te encontres colhida num conflito sentimental. Feliz dele! O que
nenhum homem pôde conseguir em dilatados anos aconteceu pela graça da
sua juventude, perturbando teus sentidos de santa. Com certeza isto não lhe
foi predito no berço, porém é aqui onde precisamente se revela a ausência
de preconceitos do coração, indiferente sempre a condições sociais. Não se
trata do filho de um príncipe dos gnomos, nem de um oficial ou de um
conselheiro privado; não é outro senão o intendente da casa de teu marido,
que soube bulir com os teus sentidos, sendo esta a sua posição, este o seu
título, e a circunstância de ser ele um forasteiro, um rapaz da Ásia, um
hebreu, para dizer tudo de uma vez, toma picante a coisa e lhe dá um
sainete delicioso. Quão felizes somos, queridíssima, e quão aliviadas nos
sentimos no imo do peito ao saber que o teu tormento e a tua languidez
provêm simplesmente de que gostas desse formoso rapaz! Perdoa-nos se a
nossa inquietação, afastando-se de ti, se volta para ele, a quem o excesso de
uma tal honra põe em perigo a sua cabeça; é o único motivo de inquietação
que se impõe, porque, quanto ao mais, a coisa nos parece muito simples.
— Ah! — soluçou Mut. — Se soubésseis! Mas não sabeis e eu sei que
durante muito tempo nada sabereis nem compreendereis, ainda depois que
eu vos tiver aberto os olhos. Não suspeitais o que é esse rapaz e o que
significa o ciúme do Deus ao qual está consagrado e do qual leva a coroa.
Considera-se ele muito superior para deter meu sangue, o sangue de uma
egípcia, e sua alma está surda aos meus chamados. Ah, quanto melhor
faríeis, minhas irmãs, não vos inquietando com o excesso de honra que lhe
cabe em sorte e reservando toda a vossa compaixão para mim, a quem sua
piedosa pieguice condena a morrer!
Então as amigas instaram com ela para que desse maiores detalhes
acerca desses religiosos melindres e ficaram admiradíssimas de saber que o
servo, em vez de submeter-se à alta honra, se mostrava esquivo.
Os olhares que então entre si trocaram não estavam desprovidos de
malícia. Insinuava-se que, no fundo, Eni estava muito velha para o formoso
mancebo, o qual alegava pretextos de ordem religiosa porque simplesmente
não a desejava, e mais de uma das presentes pensou que sua pessoa podia
proporcionar-lhe um prazer mais vivo. Mas sua indignação não dissimulada
diante desta resistência de um criado estrangeiro prevaleceu sobre o resto, e
Nes-ba-met em especial, sua superiora, declarou com sua voz grave que,
desse ponto de vista, o caso era escandaloso e intolerável.
— Já como mulher — disse-lhe —, minha mui querida, estou contigo e
tua pena é também minha. Pondo isto de parte, a coisa, no meu entender, é
de índole política, é assunto que diz respeito aos templos e ao Estado. Pois a
recusa desse moncoso (oh, perdão! tu o amas, mas assim lhe chamo por
legítima cólera e não para ferir-te em teus sentimentos), sua repugnância
para pagar-te o tributo de sua juventude são indício certo de uma
insubordinação perigosa para o Estado. E como se o Baal de uma cidade
qualquer do Retenu ou do país dos fenícios se sublevasse contra Amun e lhe
negasse sua renda, no qual caso seria necessário imediatamente armar uma
expedição de castigo para salvaguardar a honra de Amun, ainda que os
gastos tivessem de exceder o valor do tributo. Desse ponto de vista, querida,
é que olho o teu tormento, e logo que regresse a casa falarei sobre isto com
meu esposo, que comanda todos os sacerdotes do Alto e do Baixo Egito.
Hei de falar-lhe na escandalosa rebelião cananeia e lhe perguntarei que
medidas preconiza para pôr cobro à desordem.
Depois destas palavras desfez-se, no meio de grandes comentários, a
assembleia de damas que se tornou famosa e que afinal se vê reconstituída
aqui, debaixo do seu aspecto autêntico, verídico. Recorrendo a este meio,
Mut-em-enet conseguiu fazer de sua paixão infeliz o tema de conversação
de toda a cidade, resultado que de súbito a aterrava nos seus momentos
lúcidos, mas que também a fazia sentir uma desassossegada satisfação.
Tanto ia ela descendo na sua decadência... A maior parte dos namorados
cuida que o seu amor não está suficientemente honrado se o universo não
põe nele os olhos, ainda que seja para vituperá-lo; ele tem de ser
proclamado aos quatro ventos. Por isso as amigas de Mut a visitaram
frequentemente para inteirar-se do estado da sua angústia, para confortá-la e
aconselhá-la; mas suas opiniões desdenhavam nesciamente levar em
consideração o caráter excepcional das circunstâncias. A torturada mulher
limitava-se a encolher os ombros e responder”Ah, minhas filhas, palrais,
aconselhais e absolutamente não compreendeis este caso particular.” Isto se
repetiu tantas vezes, que as damas de Vese acabaram por dizer umas às
outras; “Se ela imagina que a coisa é demasiado alta para o nosso
entendimento e tão especial que escapa à nossa competência, é melhor que
segure a língua e não continue falando-nos dos seus assuntos privados.”
Mas veio alguém em pessoa, escoltado pela sua vanguarda e sua
retaguarda, e fez-se conduzir até o harém de Petepré: o grande Beknechons,
o primeiro oficiante de Amun, a quem sua mulher pusera a par da história.
Não estava ele disposto a pô-la no rol das coisas frívolas, mas, pelo
contrário, a incluí-la na pauta dos assuntos capitais. O poderoso crânio
espelhante, o homem de Estado do deus, na sua pele de leopardo talhada
sob medida, todo empertigado e de queixo erguido, explicou seu
pensamento a Mut, enquanto media o aposento a grandes passadas, diante
da sua cadeira de pés de leão. Era mister fazer abstração de todo ponto de
vista pessoal ou simplesmente moral para julgar um acontecimento
deplorável, sem dúvida, à luz da sã moral e da ordem social, mas que, visto
ter-se verificado, devia receber uma solução adequada. Na qualidade de
sacerdote, condutor de almas e guarda da piedosa disciplina, e também
como amigo e colega do bondoso Petepré na corte, cumpria-lhe condenar o
interesse que Mut demonstrava por esse moço e combater o desejo que nela
despertava. Mas o templo julgava inadmissível a resistência do estrangeiro,
sua negativa a pagar o tributo, e então insistia em que o assunto fosse
solucionado sem perda de tempo, para maior glória de Amun. Por isso ele,
Beknechons, achava-se na necessidade de não encarar seus sentimentos
pessoais e o que ele considerava como desejável ou condenável, e de
exortar Mut, sua filha, exigindo que ela pusesse em campo todos os meios,
ainda os mais extremados, suscetíveis de reduzir o rebelde, não tanto para
sua satisfação própria (supondo-se que naquilo achasse algum prazer, coisa
que ele reprovava), como para o triunfo de Amun. De resto, se se tomasse
preciso, o recalcitrante seria obrigado a outorgar seu consentimento.
Estas opiniões eclesiásticas, esta aprovação que de tão alto vinha
tranquilizavam Mut no seu íntimo. Ela viu nisso uma consolidação da sua
posição perante o amado. Haverá prova mais dolorosa da sua decadência?
Ela, a mulher que em outros tempos vivia em harmonioso acordo com o seu
grau de civilização, fazendo depender a sua felicidade e o seu mal da
liberdade da sua alma viva, eis que agora, vítima da paixão, caía tanto que
sentia uma espécie de prazer desesperado e dilacerante com as manigâncias
policiais do templo. Estava madura para as bruxarias de Tabubu. José não
ignorou a atitude do sacerdote de Amun naquela circunstância. Não havia
frincha demasiado estreita para o seu fiel e pequerrucho Bes-em-heb,
sobretudo tratando-se de assistir, escondido, à visita do grande Beknechons
a Mut-em-enet e de guardar-lhe as prescrições em sua fina orelha de anão
para levá-las ainda frescas ao seu protegido. Assim, José foi informado, e
sua convicção se fortaleceu extraordinariamente. Tudo aquilo não era mais
que um conflito entre o poder de Amun e o Senhor seu Deus. Em nenhum
caso, por nenhum preço, e ainda que esta necessidade absolutamente não se
harmonizasse com o desejo do velho Adão nele existente, era possível que o
Senhor seu Deus fosse derrotado.
A CADELA

E assim foi que, de tanto descer, Mut-em-enet, a orgulhosa, a


atormentada pelo mal de amor, se deixou arrastar ao ato que antes tão
resolutamente repelira. Baixando ao nível de Tabubu, a kuchita,
condescendia com ela a entregar-se a impuras práticas ocultistas a fim de
excitar José por meio da magia amorosa, e sacrificou a uma odiosa
divindade cujo nome ignorava e queria continuar ignorando e a quem
Tabubu chamava simplesmente “a cadela”, e era quanto lhe bastava.
Ao que parece, a negra prometeu que seus sortilégios tomariam propício
aos anelos de Mut, a senhora, aquele espectro noturno, uma horrenda fúria,
uma bruxa. Mut conveio em renunciar à alma do amado, para ter a
satisfação de apertar somente seu corpo, um momo cadáver — e, se não a
satisfação, ao menos a triste saciedade, visto estar estabelecido que os
encantamentos e exorcismos não podem excitar e lançar aos braços do outro
ser que ama senão um corpo, um cadáver destituído de alma. Necessário é,
pois, ter renunciado realmente a toda consolação para aceitar esta, para
persuadir-se de que para a satisfação amorosa o corpo é o que mais vale, e
que é mais fácil deixar de lado a alma, e não o contrário, por triste que deva
ser o gozo dispensado por um cadáver.
Que Mut, cedendo às baixas sugestões da mascadora de goma, se
declarasse pronta a entregar-se à magia com ela, devia-se à sua nova
natureza de feiticeira. Tinha consciência disso, já o vimos, e os recentes
indícios que se haviam manifestado lhe pareciam destiná-la a este estado e a
esporeavam a agir de acordo com ele. Não esqueçamos que seu corpo atual
era um produto, uma criação do amor, isto é, a acentuação dolorosa da
feminilidade. Além disso, em geral a feitiçaria não é outra coisa senão a
feminilidade exasperada, levada ao seu paroxismo de maneira ilícita e
sedutora. Donde resulta que a feitiçaria foi sempre e de preferência tarefa e
obra exclusivamente feminina e que quase não se encontram feiticeiros;
segue-se também e era natural que o amor desempenhasse aí um papel
importante, uma vez que se achava no centro de todas as práticas desse
gênero, e o sortilégio de amor representava a magia integral, seu objeto
preferido.
O leve aspecto de bruxa que o corpo de Mut oferecia e que já tivemos
ensejo de indicar com toda a delicadeza necessária, com toda a
verossimilhança, a levou a tentar a feitiçaria e a deixar que Tabubu
realizasse, por ela, o inquietante rito mágico e propiciatório. A divindade a
que se dirigiria era, no dizer da negra, a lascívia encarnada, uma bruxa
divina e uma divindade bruxa, a estrige em que havia de ver-se a suprema
síntese e a realidade das mais ignóbeis representações que a este nome se
podem associar um horror repugnante, a bruxa tipo. Semelhantes
divindades existem e devem existir, pois o mundo tem lados repelentes
encravados na imundície sangrenta, que não parecem muito adequados a
prestar-se à divinização, mas que, bem como seus aspectos mais sedutores,
necessitam ser representados por uma forma eterna e exigem a
materialização pelo espírito ou a espiritualização da matéria. Assim sucede
que o nome e a natureza do divino se confundem no horrível e que cadela e
dama não fazem mais que uma só coisa, tanto mais que se trata da cadela
por excelência, a que está especificamente ligado o caráter de amante, e,
quando Tabubu falava da síntese ignóbil e libertina cujo auxílio ia invocar,
só a designava como “a nobre dama Cadela”.
A negra julgou conveniente prevenir a Mut que o estilo e o gênero da
cena projetada se afastariam dos hábitos sociais da grande dama.
Antecipadamente pediu à sua fineza perdão por isso e rogou-lhe, em vista
da finalidade almejada, se acomodasse por uma vez ao tom trivial que teria
de empregar: a “nobre dama Cadela” não conhecia nem entendia outro, não
sendo possível, sem impudor de linguagem, chegar a um entendimento com
ela. Não era muito agradável a operação — declarou para preparar o
espírito de Mut —, sendo os ingredientes empregados, em grande parte, dos
mais repugnantes, e ela sem dúvida teria de valer-se de muitas injúrias e de
destempero idiomático. A ama devia sabê-lo e, chegado o instante, não
sentir repulsão, ou ao menos não demonstrá-la, porquanto um ato
embaraçoso como aquele se diferençava do culto divino a que ela estava
habituada justamente nisto que aqui tudo era violência, soberba, horror. As
coisas não aconteciam aqui ao gosto do homem, mas segundo a
despudorada natureza daquela cuja presença se ia invocar. Seu culto,
portanto, não podia deixar de ser obsceno e a baixeza da operação
correspondia ao seu nível de bruxa. Ademais, acrescentou Tabubu, um ato
que apenas se propõe obter de um jovem uma submissão meramente carnal
ao amor não exige tom muito elevado.
A tais palavras Mut empalideceu e mordeu os beiços, um tanto por
pavor de civilizada e também um pouco por ódio à porcalhona que a
obrigava a violentar a vontade do mancebo, porquanto agora que a preta lhe
arrancara seu consentimento cria-se com direito a lançar-lhe em rosto de
modo ferino a desprezível natureza da sua docilidade. Desde os tempos
antigos o homem sabe por experiência que aqueles que o pervertem e
querem rebaixá-lo de seu posto, uma vez conseguido o intento, já o aterram
e insultam com o desdém com que de repente falam no novo degrau, para
ele insólito, ao qual baixou. Então o orgulho lhe ordena que dissimule sua
angústia e perturbação e que diga”Suceda o que suceder, eu já sabia o que
fazia quando deliberei acompanhar-te.” Mais ou menos assim se exprimiu
também Mut quando, apesar de sua repugnância, tomou a decisão de
estimular seu amado por meio da magia.
Teve de esperar alguns dias. Antes de tudo, para seus preparativos, a
sacerdotisa negra não contava com todos os ingredientes necessários. Entre
as coisas que lhe faltavam havia algumas sinistras e que não podiam ser
encontradas da noite para o dia, como, por exemplo, o timão de um barco
naufragado, madeira de patíbulo, carne em putrefação, um membro
qualquer de um animal morto e, acima de tudo, cabelos de José, que Tabubu
obteve por astúcia, comprando-os do barbeiro da casa. Era, além disso,
necessário esperar pela lua cheia para trabalhar com mais eficácia, com
maiores probabilidades de bom êxito, debaixo da influência total do astro
ambíguo, feminino em relação ao Sol, masculino em relação à Terra, e que,
em virtude de tal propriedade, garante certa unidade do universo e pode
servir de intérprete entre os mortais e os imortais. A cerimônia deviam estar
presentes, além de Tabubu, que oficiava, e da solicitante, a senhora Mut,
uma negra jovem que fizesse de auxiliar e a concubina Meh-en-Vesecht, na
qualidade de testemunha. O lugar escolhido para a cena foi o terraço do
harém.
Ainda que seja esperado com temor ou desejo ardente, ou com um
desejo tímido e uma vergonha impaciente, cada dia acaba chegando e se
torna um dia da vida, trazendo consigo o que era iminente. Assim aconteceu
com o dia da degradação, referto de esperança, em que a amarga angústia
de Mut-em-enet demonstrou até que baixo nível tinha caído e marcou seu
envilecimento. As horas desse dia, cada uma delas aguardada como antes o
haviam sido os dias, passaram umas depois das outras; o Sol declinou, sua
glória póstuma empalideceu e a Terra ficou envolta em sombras. A Lua, de
um tamanho incrível, elevou-se por cima do deserto; seu brilho tomado de
empréstimo substituiu o altivo fogaréu da luz desaparecida, fazendo o
relevo do dia, tecendo o seu pálido encantamento indeciso e doloroso.
Quando chegou a grande altura no céu, a vida repousou, e na casa de Putifar
tudo se engolfou serenamente no regaço do sono. Era o momento escolhido
pelas quatro mulheres, as únicas que velavam na espera de um rito feminino
e secreto, para encontrar-se no terraço onde Tabubu, acompanhada de sua
auxiliar, já tinha tudo pronto para o sacrifício.
Mut-em-enet, com sua capa branca por cima dos ombros e um facho na
mão, subiu os degraus da escada que ligava o pátio da fonte ao primeiro
andar, não muito alto, e em seguida a escada mais apertada que levava ao
terraço. Ia a passo rápido, e a concubina Meh, também portadora de um
archote que despedia uma claridade alvacenta, dificilmente podia
acompanhá-la. Mal saíra do seu quarto de dormir, Eni principiara a correr,
com o facho acima da cabeça erguida, olhos fitos, boca aberta, a mão direita
soerguendo as vestes.
— Por que corres assim, queridíssima? — sussurrou Meh. — Vais ficar
sem fôlego, cambaleias, para, cuidado com a chama!
Mas a primeira e legítima mulher de Petepré respondeu com voz
trêmula:
— Tenho de correr, correr mais, efetuar esta subida impetuosamente, a
arquejar; não mo impeças, Meh, que o espírito assim mo ordena e temos de
correr!
Ofegante, com os olhos muito abertos, brandia seu facho por cima da
cabeça; algumas partículas do linho aceso, untado de pez, se desprenderam
e Meh, que corria atrás dela, sufocada, agarrou aterrorizada o cabo giratório
para lho arrebatar, porém Mut não o consentiu e sua resistência aumentou o
perigo. Estavam já no último degrau que conduzia ao terraço; o corpo-a-
corpo fez Mut vacilar e ela teria caído se Meh não a recebesse nos braços.
Assim enlaçadas e agitando suas luzes, precipitaram-se pela estreita porta e
desembocaram no terraço adormecido.
Recebeu-as o vento e a voz roufenha da sacerdotisa que aqui tomava
imperiosamente a palavra. Conservou-a sem interrupção, sem pausa,
fanfarrona, despótica e grosseira. A sua jactância se vinha misturar amiúde
um uivar de chacal vindo do esbranquiçado deserto, ao Oriente, ou, de mais
longe ainda, o rugido de algum leão errante. O vento soprava do ocidente,
da cidade imersa no sono e do rio onde a lua se mirava em tremulina, da
ribeira dos mortos e de suas colinas. Enfurnava-se sibilando numas
aberturas semelhantes a chaminés, rasgadas dessa banda para captar as
lufadas e refrescar a casa. Sobre a superfície lisa do telhado havia umas
uchas com trigo, de forma cônica; mas, além destas coisas usuais, viam-se
ali agora várias outras um tanto insólitas, os acessórios da cerimônia
projetada. Para alguns desses convinha bem que o vento soprasse; com
efeito, sobre trípodes e pelo chão jaziam nacos de carne azulada, em
decomposição, levada ali para que exalasse seu cheiro fétido, o que não
deixava de fazer assim que o vento parava. Quanto aos outros arranjos
aprestados para o rito sinistro, um cego os teria percebido, visto com seus
olhos interiores, um cego ou qualquer outro que não se dispusesse a olhar
em torno, como Mut-em-enet, que permaneceu imóvel, com as pupilas
cravadas no vácuo, a boca entreaberta, as comissuras dos lábios caídas.
Tabubu, negra e nua até as cadeiras, com suas melenas cinzentas por entre
as quais o vento remoinhava, com um cinto de pele de cabra por baixo dos
seios de bruxa (sua jovem ajudante estava também assim ataviada),
enumerava os objetos presentes com sua móbil boca palradora, onde
subsistiam unicamente dois solitários dentes incisivos, e mencionava o
nome e a utilidade de cada ingrediente, como numa feira pública.
— Aqui estás então, mulher — disse, gesticulando muito e dando
ordens, enquanto a senhora chegava, trêmula, ao terraço. — Sê bem-vinda,
implorante, desdenhada, pobre aflita, película de que o caroço se esquiva,
perseguidora enamorada, chega-te para o fogo. Toma o que se te oferece.
Toma na tua mão grãos de sal, dependura um ramo de loureiro na tua
orelha, depois põe-te de cócoras diante da chama do lar que tremula ao
vento; tremula por ti, figura dolorosa, para que te venha o socorro, nos
limites determinados.
“Falo eu! Antes que aqui viesses, falava aqui e reinava como
sacerdotisa. Continuo falando, falo em voz alta, de um modo grosseiro,
porque mimos aqui não ficam bem; enquanto se luta com aquela ali, é
preciso chamar descaradamente as coisas pelos seus nomes. Por isso,
suplicante, eu te trato de mísera apaixonada e de desdenhada estúpida. Já
tens teu grão de sal na mão e o louro na orelha? Tua companheira tem os
seus e está de cócoras a teu lado, diante do altar? Então, levantemo-nos para
o sacrifício, celebrante e ajudante, pois está tudo pronto para a merenda,
tanto os ornamentos como as oferendas irreprocháveis.
“Onde está a mesa? Está onde está, em frente do lar, adequadamente
enfeitada de folhagem e de ramos de hera e de cereais de que gosta a
convidada, aquela que já se aproxima — a obscuridade da vagem encerra os
grãos farinhentos. Por isso a mesa está coroada assim como as peanhas
sobre as quais os alimentos tresandam o seu fétido apetitoso. Está o
apodrecido timão arrimado à mesa? Sim. E que vemos? Um braço da cruz
sobre a qual se pregam os malfeitores; em tua honra, ó dissoluta, que
prazenteira te aferras aos réprobos; para estimular-te está apoiado na mesa.
Mas não te oferecerão, para teu agrado, um pedacinho do próprio
enforcado, uma orelha, um dedo? Sim, certamente! Entre os belos
fragmentos de asfalto, seu dedo putrefato enfeita a mesa, bem como a
cartilagem cérea de uma orelha do bandido, estriada de sangue coagulado
como é do teu gosto, para que te fartes. Oh, monstro! Na mesa de
oferendas, essas brilhantes estrigas de cabelo, quase de cor idêntica, não
pertenceram ao bandido, provêm de outras cabeças que estão longe e que
estão perto, mas aqui reunimos amavelmente o longínquo e o próximo, e
teu perfume te será agradável se estiveres disposta a socorrer-nos, ó
noturna, a quem invocamos!
“E agora silêncio, ninguém se mova! Tu, que estás sentada junto do lar,
fitas teus olhos em mim e não em outra parte, pois não se sabe de que lado
ela chegará furtivamente. Imponho o silêncio do sacrifício. Apaga esse
archote, rapariga. Bom. Onde está a folha de duplo fio? Aqui está. E o
mastim? Está deitado no chão, semelhante a uma hiena nova, com as patas
amarradas, o focinho atado, esse focinho úmido que com tanto gosto
farejava imundícies. Dá-me antes o asfalto! A robusta sacerdotisa o atira em
negras migalhas à chama, para que a fumaça do chumbo suba a ti, pesada
como os cheiros do holocausto, soberana lá de baixo! Agora, as libações; os
vasos na ordem prescrita; água, leite de vaca, cerveja — eu as esparzo, com
elas borrifo, distribuo-as. No bebedouro, no charco crepitante de borbulhas,
meus pés pretos se banham agora, enquanto procedo ao sacrifício do cão,
bastante nauseabundo, mas não somos nós, os humanos, que o escolhemos
para ti; sabemos apenas que nenhum te é mais agradável.
“Passa-me o farejador, o animal desavergonhado, e cortemos-lhe o
pescoço. Abro-lhe agora o ventre e mergulho minhas mãos em suas
entranhas ardentes, cuja exalação sobe até mim na frescura da noite lunar.
Inundadas de sangue, repletas com estas vísceras, alço para ti as mãos de
sacrificadora, que à tua imagem me fiz. Assim te saúdo e te convido
piedosamente para o festim do sacrifício, soberana do povo noturno! Com
cortesia e solenidade começamos, pedindo-te que te dignes de tomar a parte
que te corresponde nestes irrepreensíveis presentes. Queres aceitar nosso
rogo? Se não, hás de saber que a sacerdotisa reunirá suas forças e te
afrontará, te agarrará com energia e te obrigará a receber uma influência
esperta e audaz. Aproxima-te, quer saltes até aqui ao sair de uma cilada, ou
depois de ter atormentado uma parturiente no momento difícil, ou
acariciado suicidas, quer te apresentes manchada de sangue, surgindo dos
cemitérios que tens frequentado e onde tens encontrado que roer, quer ainda
as porcarias que até aqui te atraem te tenham apartado da encruzilhada onde
uma volúpia mórbida te colava aos infames... Porventura não te conheço
bem e não te reconheces nas minhas palavras? Na nossa luta corporal não te
aferrei convenientemente? Não notas como estou bem informada de teus
atos, de teus costumes indescritíveis, de tuas comidas e bebidas que não se
mencionam, de teus insaciáveis apetites? Ou será preciso que meus punhos
te agarrem com maior ciência ainda, com mais precisão ainda, e que minha
boca, desistindo das últimas atenções, designe com seu nome tua extrema
devassidão? Injurio-te, figura horrenda, puta e duas vezes puta, súcubo de
olhos remelosos, tortulho infame, gordurosa bruxa do inferno, moradora do
monturo, donde roubas, agarras e róis, manchando-os com a tua baba, os
ossos dos cadáveres. Tu, que concedes ao enforcado a derradeira volúpia no
instante em que estoura e, com o regaço mádido, te acasalas com o
desespero, cobarde, debilitada pelos teus vícios, trêmula ao menor sopro; tu,
que em toda a parte vês espectros, vilmente sensível a tudo que é tenebroso.
A última das devassas! Conheço-te? Chamo-te pelo nome? Tenho-te?
Penetro-te? Sim, és ela. Tinhas-te aproveitado de unia nuvem que escurecia
a lua. Os violentos latidos do cão na frente da casa confirmam tua vinda. A
chama foge, ardente, da fornalha. Vê: a companheira da suplicante entra em
transe. Para que direção se volta O seu olhar? A deusa vem do lado para o
qual faz girar os olhos.
“Saudamos-te, senhora! Digna-te servir-te. Fizemos o melhor possível.
Se o impuro festim é do teu agrado, bem como os demais presentes
irrepreensivelmente ignóbeis, assiste-nos! Vem em ajuda dessa que definha,
da menosprezada aqui presente! Ela suspira por um rapaz que não quer
saber dela. Socorre-a na medida do teu poder; deves fazê-lo, tenho-te
prisioneira no círculo. Tortura em seu corpo o rebelde, atormenta-o em seu
leito, para que vá ter com ela irresistivelmente, para que dobre a cerviz sob
as mãos dela, para que ela saboreie uma vez O acre perfume juvenil que a
torna lânguida.
“E agora, rapariga, depressa, as madeixas! Executo diante da deusa o
sacrifício do amor, o encantamento do fogo. Que lindas as madeixas da
cabeça que está longe e da que está próxima, lindas, brilhantes, sedosas!
Relíquias do seu corpo, amostras da sua substância, eu, a sacerdotisa, as
uno, as tranço, as amarro, as desposo com minhas mãos sangrentas de
sacrificadora, muitas vezes, estreitamente, e assim as deixo cair na chama
que as consome, crepitantes. Suplicante, por que motivo teu rosto se
descompõe, doloroso e horrorizado? Incomoda-te o cheiro de chamusco? E
a tua substância, ó minha delicada, é o vapor do corpo abrasado, o cheiro do
amor!” E agora basta! — disse com modo vulgar. — Terminou o serviço.
Prova, saboreia o teu formoso. A Dama Cadela to concede, graças à arte de
Tabubu que vale muito.
Concluído o seu serviço, a abjeta escrava afastou-se para um lado,
depôs sua insolência, enxugou o nariz com as costas da mão e mergulhou
numa bacia os dedos manchados no sacrifício. A lua estava clara. A
concubina Meh voltou a si do seu desmaio de terror.
— Ainda está aqui? — indagou, trêmula.
— Quem? — inquiriu Tabubu, que lavava as mãos como um médico
depois de uma intervenção cirúrgica. — A Cadela? Tranquiliza-te,
concubina, pois tornou a volatilizar-se. E olha que ela não veio cá de muito
boa vontade. Se me obedeceu, foi por causa da imundície da minha
apóstrofe e porque sei delinear tão perfeitamente com palavras sua natureza.
Não pode realizar nada fora do que exigi dela, porque está escondida no
umbral uma trinca de remédios conjuradores. Mas, de que concederá o que
se pede, não há dúvida possível. Ela acolheu com boa sombra o sacrifício, e
o sortilégio da queima dos cabelos a subjuga.
Neste ponto ouviu-se Mut, a senhora, soltar um profundo suspiro e
viram-na erguer-se, deixando o seu lugar ao pé do fogo, onde estivera
acocorada. Embrulhada na sua capa branca, com o louro ainda na orelha, as
mãos juntas debaixo do queixo levantado, pôs-se diante do cadáver do cão.
Desde que sentira o cheiro dos chamuscados cabelos de José que ardiam
com os seus, os cantos de sua entreaberta boca de máscara tinham caído,
cada vez mais pesados, como que arrastados por seu peso. Ela era
deplorável com essa boca, movendo rigidamente os lábios tristes para
elevar ao céu uma queixa melodiosa.
— Escutai — começou ela —, espíritos puros, que eu quisera ver sorrir
diante do meu grande amor por Osarsif, o jovem hebreu, escutai e vede
quanto sofro com o meu envilecimento e quão desditoso se sente o meu
coração até a morte diante da terrível renúncia a que me devo sujeitar queira
ou não queira, pois que, Osarsif, meu suave falcão, tua senhora, a mulher
desesperada, não tem outro recurso. Ah, espíritos puros, quão
acabrunhadora e infame é esta renúncia e esta abdicação, pois renunciei à
sua alma, entregando-me finalmente, por força das circunstâncias, às
práticas da magia que o hão de domesticar! Renunciei à tua alma, Osarsif,
meu amado. Quão dolorosa e amarga é para o meu amor esta renúncia!
Renunciei a teus olhos, dor infinita! Não pude proceder de outra maneira,
meu desvario não tinha outros meios que escolher. Mortos, fechados para
mim estarão os teus olhos durante o nosso abraço e só a tua boca será minha
e em humilhado êxtase a cobrirei de beijos. Amo acima de tudo, é certo, o
hálito da tua boca; porém preferiria a tudo o mais, filho do sol, o olhar da
tua alma. E esta a queixa que mana de todo o meu ser. Ouvi-me, espíritos
puros. Diante do fogo da magia negra a ergo a vós, do fundo da minha
angústia. Vede como eu, mulher de alta posição, desci por amor muito
abaixo dela, sacrificando a felicidade ao prazer, para ter ao menos este e
para que à falta da beatitude do seu olhar me fique sequer a volúpia da sua
boca. Mas, oh! Permiti que a filha do príncipe dos nomos não fique
silenciosa diante do tormento da amargura desta renúncia, e que ela se
lamente em voz alta antes de expiar o êxtase obtido por um artifício mágico
e de saborear uma embriaguez sem alma junto a um doce cadáver! Na
minha degradação, deixai-me a esperança, espíritos, a íntima e secreta
esperança de que talvez por fim ventura e volúpia se unam, não
permaneçam separadas, e que, se esta é bastante forte, faça florescer aquela,
e que com os irresistíveis beijos da voluptuosidade o menino morto abra ao
fim os olhos para dar-me o olhar de sua alma e assim seja possível passar
por cima da cláusula mágica! Que ao meu envilecimento reste esta secreta
esperança; espíritos puros que recebeis minha queixa, não ma façais
perder...
E Mut-em-enet, com os braços levantados, caiu entre violentos soluços
no regaço de sua acompanhante, a concubina Meh, que a levou dali.

ANO-NOVO
Nossos ouvintes estão, sem dúvida, cheios de viva impaciência por
saber o que cada qual já sabe. Soou a hora de satisfazê-los, uma hora de
festa decisiva, um momento culminante da história, inamovível desde que
ela se produziu e se narrou em sua origem — - a hora e o dia em que José,
intendente de Putifar havia três anos e propriedade sua havia dez, evitou o
mais grosseiro dos erros, e em que esteve a pique de sucumbir à ardente
tentação. Contudo, mais uma vez findou um ciclo de sua vida e de novo
desceu ao fosso graças à sua leviandade (ele o reconheceu assim) e em
castigo de uma atitude cuja provocativa despreocupação, para não dizer
criminosa audácia, oferecia grande analogia com sua existência anterior.
Pode-se estabelecer um paralelo entre sua culpa em relação à mulher e
sua culpa em relação a seus irmãos. Uma vez mais, seu desejo de
deslumbrar o conduzira demasiado longe; uma vez mais, deixara os efeitos
de sua graça — de que podia alegrar-se e que estava em seu direito
empregar para maior glória de Deus — crescerem levianamente,
degenerarem perigosamente e o vencerem. Na sua vida de outros tempos,
esses efeitos haviam-se traduzido na forma negativa do ódio; agora
tomavam a forma nitidamente positiva, e portanto de novo funesta, da
paixão amorosa. Cegamente, tinha favorecido tanto um como a outra.
Seduzido pelas ressonâncias que nele despertavam os desenfreados
sentimentos da mulher, havia-se comprazido no seu papel de educador, ele
que evidentemente precisaria ainda de educação para si mesmo. Que essa
atitude mereceria castigo, não é necessário discutir; notemos, todavia, não
sem sorrir à socapa, que o castigo que justificadamente recebeu lhe foi
infligido de uma forma que contribuiu para a sua felicidade futura, a qual
superou em grandeza e brilho sua ventura destruída; e alegremo-nos com as
perspectivas que o incidente abre para a suprema vida espiritual. E antiga a
presunção, pois que remonta aos prelúdios da história, de que a falibilidade
da criatura foi sempre um motivo de áspera alegria para os habitantes das
esferas superiores, sempre prontos a formular esta censura”Que é o homem
para que tanto ocupe teu pensamento?”; porém esta falibilidade coíbe o
Criador, obrigado a dar satisfação ao reino do rigor e a deixar que se
cumpra a justiça imanente, menos por espontâneo impulso do que debaixo
de uma pressão moral difícil de iludir. O nosso exemplo ilustra
agradavelmente a maneira com que a suprema bondade e dileção, quando
cede com dignidade à instância, sabe dar uma lição ao reino da vingança e
do rigor, utilizando para a cura o instrumento do castigo e fazendo do
infortúnio o campo de germinação de uma felicidade nova.
O dia que marcou uma fase decisiva da vida de José foi o grande dia de
festa em que Amun-Rá visitava o harém meridional, o primeiro dia da cheia
do Nilo, o dia do ano-novo oficial no Egito — oficial, frisemo-lo, porque o
dia do ano-novo natural, aquele em que o ciclo sagrado se encerrava
verdadeiramente, em que Sírio reaparecia no céu matinal e em que as águas
começavam a crescer, estava longe de coincidir com este. No Egito, aliás
tão avesso à desordem, reinava neste ponto uma confusão quase perpétua.
No curso das idades, na vida dos homens e das dinastias, sucedia que o
primeiro dia do ano natural coincidia uma vez com o do calendário, mas
depois eram necessários mil, quatrocentos e sessenta anos para que este
formoso fenômeno de concordância se reproduzisse, e mais ou menos umas
quarenta e oito gerações humanas passavam sem que lhes fosse dado
contemplá-lo, ao que alegremente se teriam acomodado, contanto que não
tivessem outra preocupação a não ser essa. O século em que José viveu sua
vida egípcia também não estava destinado a ver essa formosura, a
coincidência da data real e da data oficial; e os filhos de Keme que nessa
data choravam ou riam debaixo do sol sabiam que as duas não
concordavam, sendo esta a menor de suas preocupações. Praticamente, era
preciso estar na época das colheitas — Chemu —, quando se celebrava o
começo da cheia — Achet —, o dia do ano-novo. Estavam na época do
inverno — Peret —, chamada também tempo da semeadura; e, se os filhos
de Keme nada tinham que dizer, porquanto uma desordem destinada a durar
mil anos mais pode passar por ordem, ao menos José, em razão da sua
secreta repugnância pelos costumes do Egito, sempre achava nisto um
motivo de riso. Só festejava o fictício dia do ano-novo à maneira pela qual
se associava à vida e aos atos da gente do país, fazendo restrições e com
aquela indulgência que para si mesmo estava também certo de conseguir do
alto por sua participação mundana. De caminho diga-se que é digno de nota
o fato de que, com tantas restrições e tanto espírito crítico em relação ao
mundo para o qual fora transplantado, entre pessoas cujo comportamento no
fundo lhe parecia uma loucura, tenha José podido exibir tanta gravidade,
realizar uma carreira tão brilhante e assinalar-se com serviços tão meritórios
como os que estava talhado a prestar.
Digno ou não de ser tomado a sério por um espírito imparcial, o dia
oficial da cheia do Nilo era celebrado em todo o Egito e em particular em
Novet-Amun, a Vese das cem portas, com uma solenidade de que não se
pode ter uma ideia senão evocando as comemorações solenes dos nossos
grandes dias populares ou nacionais. Desde as primeiras horas da manhã a
cidade inteira estava de pé, e o número enorme de sua população, muito
superior a cem mil, como já é sabido, aumentava consideravelmente graças
à afluência de camponeses estabelecidos num e noutro sentido do rio, que
acorriam no grande dia de Amun à própria sede do deus do império.
Confundidos com os cidadãos, boquiabertos e saltitantes, contemplavam o
espetáculo majestoso que o Estado oferecia, para que este esplendor fizesse
o campônio, rebentado com os impostos e com a férula despótica, esquecer
a sombria angústia do ano findo e o fortificasse patrioticamente para
suportar no ano vindouro a disciplina do látego. Esta multidão suarenta,
levando no nariz o cheiro da gordura queimada e dos montes de flores,
empenhava-se em abarrotar os átrios dos templos, de cores deslumbrantes,
repletos de alabastros, cobertos de toldos, ecoantes de cânticos piedosos e,
para essa circunstância, providos de uma inverossímil profusão de comidas
e bebidas. Queriam, ao menos uma vez, encher a pança à custa do deus, ou
melhor, dos poderes superiores que durante doze meses os oprimiam e lhes
apertavam as cravelhas e que hoje lhes sorriam com uma bondade pródiga.
Apesar de sua passada experiência, acalentavam a esperança de que no
futuro tudo ia andar assim, que esta data inaugurava uma era de alegria e de
delicias, a idade de ouro da cerveja à discrição e dos gansos assados, que
nunca mais o cobrador de impostos seguido de núbios armados de chicote
feito de fibra de palmeira molestaria o pequeno lavrador, que de agora em
diante viveria como no templo de Amun-Rá, onde se via uma mulher ébria,
de cabelo ao vento, que passava os seus dias em festa, porque escondia em
si o rei dos deuses.
Com efeito, à hora do pôr-do-sol, toda Vese estava tão bêbeda que
cambaleava às cegas, entregando-se a mil excessos. Mas para os belos
milagres da aurora e da manhã, quando Faraó ia “receber a dignidade de seu
pai”, segundo a expressão oficial, e quando Amun passava pelo Nilo com
seu cortejo célebre dirigindo-se a Opet Resit, o harém meridional, a cidade
tinha os olhos bem abertos e uma alegria decente. Seu fervor jubiloso e sua
piedosa curiosidade faziam-na sensível às pompas do Estado e do deus,
destinadas a alimentar os corações de seus filhos e hóspedes com nova
reserva de paciência cotidiana, de altiva e temerosa submissão à pátria. As
festas alcançavam quase sempre o brilho da volta dos antigos reis, que
vinham carregados de despojos de suas campanhas núbias e asiáticas, cujas
vitórias se eternizavam nos baixos-relevos dos templos. Estes monarcas
haviam engrandecido o Egito, conquanto sua era tivesse instaurado o
sistema da dura opressão aplicada ao pequeno camponês obrigado a
trabalhar.
Neste dia insigne do calendário, Faraó passava, coroado e enluvado.
resplandecente como o sol matinal, na sua alta cadeirinha de baldaquins,
ladeado de flabelos de penas de avestruz, entre nuvens de incenso de
capitoso perfume, que os incensadores que o precediam, voltados para o
deus bondoso, não deixavam de fazer subir até ele. Saía do palácio para ir à
casa de seu pai contemplar-lhe a formosura. Os gritos jubilosos da multidão
cobriam as vozes dos sacerdotes leitores. Tambores e clarins precediam o
cortejo em que figuravam os parentes do rei, os dignitários, os amigos
únicos e verdadeiros, bem como os demais amigos do soberano; soldados
levando emblemas, azagaias e machadinhas de combate fechavam o
séquito. Possas durar tanto tempo como a vida de Rá. paz de Amun! Mas
onde é o melhor lugar para a gente se deter e engolir poeira, de pescoço
esticado e olhos bem abertos? Aqui ou em Karnak, perto da mansão de
Amun, repleta de bandeirolas, para a qual tudo convergia? Pois o deus
também aparecia nesta data. Saía do mais venerando dos vetustos
santuários, lá no fundo de sua tumba gigantesca, por trás dos portais, dos
pátios e das salas cada vez mais silenciosas e baixas. Na figura de um
bonequinho acocorado, singularmente deforme, Amun as atravessava,
passava por salas cada vez mais altas e de uma maior policromia
deslumbrante, na sua barca adornada com cabeças de carneiros, santamente
dissimulado na sua capela velada, levado em charola sobre largas varas por
vinte e quatro crânios espelhantes de saiote engomado, sendo também ele
abanado e incensado quando ia ao encontro de seu filho, na luz e no bulício.
Era coisa de sensação assistir à libertação dos gansos, costume cuja
origem se pedia na noite dos tempos e que se observava no lugar ocupado
pela praça fronteira ao templo. Lugar belo e ameno! Em hastes douradas,
coroadas com a tiara do deus, tremulavam bandeiras multicores. Montanhas
de flores e de frutos se viam nas mesas das oferendas, diante dos santuários
da santa tríade — o pai, a mãe e o filho — e diante das estátuas que
representavam os antecessores de Faraó, os reis do Alto e do Baixo Egito,
trazidas pela comitiva da barca solar, dividida em quatro grupos de guardas.
A cavaleiro da turba, sobre pedestais dourados, com o rosto virado para o
leste, o oeste, o meio-dia e o norte, os sacerdotes soltavam as aves
silvestres, na direção dos quatro pontos cardeais, para que levassem a todos
os deuses a notícia de que Horus, filho de Osíris e de Ísis, cingira a coroa
branca e a vermelha, pois era esta a forma de comunicação que outrora
havia adotado o que fora gerado na morte, ao subir ao trono dos países.
Através de inumeráveis anos de júbilo, este modo de expressão tinha
prevalecido durante as festas, enquanto os sábios e o povo deduziam do voo
dos mensageiros diversas coisas relativas ao destino do país em geral ou
dos homens em particular.
Que formosos ritos, que mistérios Faraó celebrava depois da partida dos
gansos! Sacrificava às estátuas dos antigos reis. Com uma foice de ouro
cortava uma gavela de trigo que lhe estendia um sacerdote e depositava as
espigas diante de seu pai, em sinal de agradecimento e de prece; em seguida
lhe mandava o divino aroma por meio de um vaso de largo cabo, enquanto
leitores e cantores salmodiavam os textos inscritos em seus papiros. Isto
feito, a majestade do deus se sentava e recebia, impassível, os votos de
ventura dos cortesãos, expressos em termos nobres, escolhidos, muitas
vezes em forma de cartas de felicitação enviadas por dignitários que não
tinham podido comparecer — um verdadeiro regalo para os ouvintes.
Era o primeiro ato da festa cuja beleza aumentava continuamente. Ia-se
depois ao Nilo com a santa tríade, cujas barcas eram de novo içadas aos
ombros dos vinte e quatro crânios reluzentes; e, por modéstia filial, Faraó
seguia a pé, como um simples mortal, a barca de seu pai Amun.
A multidão convergia em massa para o rio, rodeava o cortejo de três
grupos divinos, dirigido pelo primeiro oficiante, Beknechons, com sua pele
de leopardo às costas, o qual vinha imediatamente depois dos clarins e
tambores. No meio do bater dos grandes flabelos subiam os cânticos e
ascendia o incenso. Na margem, três naus recebiam as barcas sagradas;
eram amplas e de deslumbrante beleza; a mais indescritível era a nau de
Amun, construída com madeira de cedro que príncipes do Retenu tinham
feito derribar no monte dos cedros e, segundo se dizia, haviam arrastado
pessoalmente por sobre a montanha. Era revestida de prata. O dossel do
trono erguido no centro e as hastes das bandeirolas e os obeliscos colocados
à frente eram de ouro. As rodas de popa e de proa eram adornadas de coroas
armadas de serpentes, diversas figurinhas simbólicas e emblemas sagrados,
inexplicáveis em sua maioria desde muito tempo e desconhecidos do povo,
tão antigos eram, o que de resto aumentava o respeito e a alegria que
inspiravam, em vez de diminui-los.
As naus de gala da grande tríade eram barcaças de reboque, avançavam
não a golpes de remo, mas arrastadas desde a praia por ágeis galeotes que as
faziam subir o Nilo até o harém meridional. Era uma insigne distinção ser
um desses homens, o que, no decurso do ano seguinte, trazia vantagens
práticas. Toda Vese, à exceção dos moribundos ou daqueles cuja idade os
prostrara na decrepitude (as mães levavam suas criancinhas ao colo ou às
costas), uma considerável massa humana afluía às margens, acompanhando
o divino cortejo náutico, e também se ordenava processionalmente. Um
servidor de Amun os guiava cantando hinos; seguiam-no os soldados do
deus, armados com escudos e azagaias; negros trajando vestes de cores
diversas, saudados pela hilaridade geral, bailavam tocando tambor e
fazendo toda sorte de momices e extravagâncias, às vezes obscenas (como
sabiam que eram desprezados, exageravam sua mísera condição para
lisonjear a grotesca imagem que o povo fazia deles); sacerdotes e
sacerdotisas que agitavam crótalos e sistros; animais destinados ao
sacrifício e engrinaldados, carros de combate, porta-estandartes, tocadores
de alaúde, religiosos de alta posição escoltados por seus servos, aos quais se
juntavam as pessoas da cidade e dos campos que cantavam e marcavam o
compasso com as mãos.
Assim caminhou o cortejo, em meio do júbilo, até a casa dos colunas à
margem do no, onde as naus dos deuses atracaram. Ainda uma vez as
barcas sagradas foram erguidas aos ombros e conduzidas em nova
procissão, ao som de tambores e de buzinas, até a esplêndida casa do
nascimento. Ali as concubinas terrestres de Amun, as damas da nobre
ordem de Hathor, com suas vestes diáfanas, receberam-nas com
reverências, agitando palmas. Dançaram diante do esposo augusto (o
bonequinho acocorado e enfaixado dentro do seu camarote velado), tocaram
timbales e cantaram com sua voz sedutora. Era a grande visita do primeiro
dia do ano ao harém de Amun, celebrada com a mais faustosa
hospitalidade, com profusão de ofertas, comidas, libações, honras sem fim e
complicadas cerimônias simbólicas — que a maior parte do povo não
compreendia -— no interior do santuário, na nave anterior do templo do
abraço e do parto, ornados de baixos-relevos polícromos e de inscrições,
sulcados de peristilos de colunas papiriformes de granito rosa, de salas com
pavimento de prata, onde se desdobravam tendas, e de pátios cheios de
estátuas, abertos ao povo. Imagine cada um o cortejo divino, tão alegre e
brilhante como a sua chegada, chegando a Kamak ao entardecer, por água e
por terra; em todos os templos, a atividade forasteira, as diversões populares
e as representações teatrais em que os sacerdotes, ocultos debaixo de uma
máscara, representavam cenas da vida dos deuses; as festas se prolongavam
o dia inteiro, e tudo isto, se é possível imaginá-lo, pode dar uma ideia da
beleza deste primeiro dia do ano. A tardinha, a grande cidade estava
inundada de despreocupação e de fé serena, engolfada na cerveja; uma volta
da idade de ouro. Os homens da equipagem dos rebocadores divinos
percorriam a cidade coroados de flores, ungidos de óleo e copiosamente
borrachos, com licença quase completa de fazer o que quisessem.
A CASA VAZIA

Muito importa pintar, ao menos a largos traços, a festa de Opet e o dia


do crescimento oficial do Nilo, para familiarizar os leitores com o ambiente
em que se desdobrou a hora culminante da nossa história privada e
autêntica. Um conhecimento superficial do cenário basta para compreender
até que ponto Petepré, o cortesão, estava ocupado em tal dia. E que
participava da comitiva imediata de Sua Majestade, Horus em seu palácio,
aquele que em nenhum dia de sua vida tinha tantos deveres pontificais que
cumprir corno nesta ocasião. Dizemos de sua comitiva imediata, isto é,
entre os amigos únicos do soberano, pois nessa manhã de ano-bom sua
elevação a uma tão rara dignidade tinha-se convertido em realidade e a
leitura de seus títulos que figuravam na ata de investidura tinha sido para
ele uma grande felicidade. O chefe titular das tropas passou, pois, o dia fora
de casa, a qual abas estava tão vazia como as demais da capital. Já dissemos
que só os moribundos e os macróbios ficavam em casa; a este grupo
pertenciam os sagrados pais do andar superior, Hui e Tui. Seus passos
nunca os levavam além do pavilhão do jardim, o quiosque do regozijo, e
ainda assim não iam até ah com muita frequência. O fato de ainda viverem
já era qualquer coisa de sobrenatural; dez anos antes esperavam a todo
momento exalar o último suspiro e eis que continuavam vegetando, a rata
do campo e o castor do pântano, ela com seus olhos cegos, ele com sua
barbicha de prata velha, na obscura morada de sua fraternidade, e isto talvez
porque certos velhos vivem indefinidamente sem encontrar a morte, já não
tendo forças para morrer, ou então porque receavam comparecer perante o
monarca dos ínferos e os quarenta nomes formidandos, por causa do seu
errado ato propiciatório.
Tinham, portanto, ficado em casa, no andar superior, com o seu infantil
pessoal de serviço, duas rapariguitas idiotas que haviam substituído as
mocinhas de outros tempos, quando estas tinham deixado de ser muito
tenras. Afora eles, a casa e a herdade estavam mortas, como acontecia em
qualquer casa da cidade. Mas estariam realmente mortas? Somos obrigados
a restringir um pouquinho esta afirmação, num ponto que não deixa de ter
importância; Mut-em-enet, a primeira e legítima esposa de Putifar, também
estava em casa.
Isto pode surpreender o leitor familiarizado com a atmosfera da festa.
Mas assim foi. Mut não tomou parte no formoso culto que suas irmãs, as
concubinas de Amun, celebraram. Não ondulou ao ritmo da dança, com a
cabeça omada de cornos com o disco solar, trajando a veste de Hathor. Sua
voz de sereia não foi ouvida, ao som dos chocalhos de prata. Desculpara-se
diante da superiora e transmitira seu pesar à augusta padroeira da ordem,
Teje, a esposa do deus, alegando o mesmo pretexto que Raquel em outros
tempos quando, sentada sobre os terafins escondidos na palha dos camelos,
não se tinha levantado para receber Labão. Mandara dizer que
desgraçadamente estava indisposta naquele dia, e claro está que convinha
entendê-la no discreto sentido das palavras. As nobres damas tinham
manifestado para tal impedimento maior compreensão do que Putifar, a
quem ela também o declarou, e que, por falta de sensibilidade para tudo
quanto era humano, manifestara o mesmo espirito obtuso que em seu tempo
o bronco Labão. “Como indisposta? Doem-te os dentes ou estás sofrendo de
chiliques?”, havia perguntado, empregando uma absurda expressão médica
muito em voga na sociedade elegante, para caracterizar um mal-estar geral
que tem como causa apenas o capricho. E, tendo ela acabado por explicar-
lhe com bastante clareza a coisa, Petepré recusou ver nisso um motivo de
abstenção. “Isso não importa”, disse como Labão, se bem se lembram. “Não
é uma doença que se possa mencionar e por causa da qual se deva fugir da
festa do deus. Mais de uma era capaz de fazer-se conduzir quase agonizante
até lá para não perdê-la, e tu renuncias a ela por uma coisa tão normal, tão
corriqueira?”“Não é necessário, meu amigo, que uma moléstia seja anormal
para nos prostrar”, respondeu-lhe ela, fazendo-o escolher: ou a dispensaria
da festa pública ou do banquete privado e da recepção com que em sua casa
devia rematar o dia de ano-bom, para celebrar a nomeação do camarista
com o título de “amigo único”. Era-lhe impossível — tinha dito — assistir a
ambas. Se no estado em que se achava fosse à dança do deus, voltaria
esfalfada e teria de abster-se de se apresentar na festa íntima.
Contrariado, acabou por consentir que se poupasse durante o dia, a fim
de que de noite estivesse apta a desempenhar suas funções de dona da casa.
Contrariado, sim, porque tinha um pressentimento, afirmamo-lo com inteira
certeza. Sentia-se desassossegado. O cortesão inquietava-se com esta
abstenção de sua mulher, que ficaria solitária em casa e na herdade, por
causa de uma pretensa indisposição. Via isto com maus olhos, com um
pressentimento desagradável, tanto para seu repouso como para a
conservação da proibição espiritual que impendia sobre a casa. Voltou, pois,
da festa do deus mais cedo do que era exigido pela necessidade da sua
recepção, trazendo nos lábios a habitual pergunta feita com ar de confiança,
embora, no fundo, cheio de ansiedade”Vai tudo bem na casa? A senhora
está de bom humor?” — para afinal receber desta vez a resposta terrível que
secretamente esperava sempre, Estamo-nos antecipando, visto que, para
falar como Renenutet, a superintendente dos bois, já sabemos tudo e no
máximo nossa impaciência pode ir até as minudências. Ninguém se
surpreenderá, portanto, que na agitação e contrariedade de Putifar entrasse
também a lembrança de José, e que por associação de ideias a indisposição
e ausência de sua mulher fizessem com que ele procurasse José
mentalmente e a si mesmo perguntasse onde podia estar. Nós fazemos o
mesmo e a nós mesmos perguntamos, não sem inquietação pela validade
dos sete argumentos, se por acaso ele também havia ficado em casa.
Não. Isto lhe seria impossível e estaria em flagrante contradição com os
seus hábitos e princípios. Sabe-se que o José egípcio, após dez anos de
permanência no país dos mortos, era, aos vinte e sete anos, um egípcio
autêntico, não pela sua personalidade burguesa, mas pela moral, de posse,
havia três anos, de um revestimento camal totalmente egípcio, de tal
maneira que sua forma estava agora guardada e constituída por uma
substância egípcia. Já se sabe como, adaptado, embora com reservas
mentais, e feito já um filho do tempo egípcio, lhes acompanhava os
costumes insensatos e as festas idólatras, embora com moderação e ironia,
confiado na indulgência daquele que levara o bezerro ao campo. Em
especial a festa do ano-novo, a grande festa de Amun, lhe dava ensejo para
acentuar essa sociabilidade de viver e deixar-se viver. O filho de Jacó
celebrou-o como qualquer outra solenidade daqueles países, trajando suas
vestes de gala, em festa desde a manhã. Mais ainda: para tornar visível seu
desejo de honrar o costume popular e deixar-se ver entre o povo, bebeu um
pouco mais do que costumava, isto durante o dia, tendo tido primeiro de
executar as obrigações do seu cargo. Como intendente de um grande
dignitário, componente da escolta régia, tomou parte no cortejo do soberano
desde a casa ocidental do horizonte até a grande morada de Amun, e com
ele fez a travessia, acompanhando-o até o templo de Opet. O regresso da
família divina não exigia a mesma ordem rigorosa que a viagem de ida,
havendo então possibilidade de eclipsar-se. Por isso José passou o dia
vagando por entre milhares de curiosos; assistiu às feiras dos templos, aos
sacrifícios e às representações teatrais dos deuses, sem se deslembrar que
tinha de regressar cedo, pelo fim da tarde, antes do resto do pessoal, para
cumprir seus deveres de intendente-chefe, responsável pela vigilância geral.
Queria certificar-se de que a vasta sala que servia de despensa (onde antes
recebera do escrivão do aparador os refrescos para Hui e Tui) e a sala do
banquete, como as demais da casa, estavam preparadas para a recepção do
ano-novo e a festa da promoção de Petepré.
Propunha-se proceder a este controle, a esta inspeção sozinho, sem ser
incomodado, na casa ainda vazia, antes que o pessoal posto à sua disposição
— escrivães e servos — estivesse de volta. Assim convém proceder, disse
consigo José, e para se conservar em tal determinação chamou em seu
auxilio provérbios que não existiam, mas que forjou para o caso, fingindo
tomá-los por máximas consagradas pela sabedoria popular, como por
exemplo”Não há cargos sem encargos”, “Quem assume funções de
importância aceita suas exigências”, “O último a dormir, o primeiro a
acordar”, e outras regras de ouro análogas. Fantasiava-as e para si as repetia
desde que, na metade do caminho, quando o cortejo vogava pelo rio,
soubera que a ama recusara tomar parte na dança das Hathors, em razão de
um mal-estar que a retinha solitária em casa. Noutros tempos nunca havia
pensado em frases dessas, nem em persuadir-se de que eram adágios
populares, e não desconfiava da necessidade (inspirada por essa alada
sabedoria que agora lhe parecia imperiosa) de tomar à casa vazia antes dos
outros, para ver se tudo andava bem.
Usava esta expressão “Ver se tudo andava bem”, ainda que ela não
deixasse de parecer-lhe de certo mau agouro e ainda que uma voz interior o
aconselhasse a evitá-la por arriscada. De resto, José, rapaz leal, não tomava
a nuvem por Juno; sabia que sua submissão aos velhos ditados encerrava
grande perigo de índole capaz de transtornar-lhe o coração, e transtornar-lhe
não só como perigo, mas também gostosamente, porque era esta uma
ocasião extraordinária. Por que uma ocasião? A ocasião, pequeno Teófilo
murmurador, de terminar por fim, de uma forma ou de outra, um assunto
que se havia convertido em assunto de honra entre Deus e Amun, de pegar
o touro pelas pontas e de se entregar por inteiro a Deus fazendo seu papel. É
esta, meu trêmulo amiguinho, a grande, a perturbadora ocasião que se
apresenta, não passando tudo o mais de puro farelório. “Sua gente de folga
e o amo no trabalho.” Estas virtuosas e venerandas fórmulas consagradas
pelo passado guiam o jovem intendente José, que não vai deixar-se vencer
pelo gritinho inoportuno de um anão ou pelo capcioso isolamento da dama.
Se se lhe segue o curso dos pensamentos, não se fica muito tranquilo a
respeito da sua sorte. Se não se conhecesse o desfecho da história, porque a
seu tempo ela já foi contada até o fim, realizando-se, não sendo o nosso
relato mais que uma repetição, sua narração retrospectiva, de certo modo
uma representação teatral litúrgica, a gente havia de sentir suores frios nas
fontes, à força de inquietude. Mas que significa “repetição”? A repetição
festiva é a abolição da diferença entre “ser” e “ter sido”; e assim como
nessa fase da ação, quando a história se narrava a si mesma, não podia uma
pessoa sentir-se tranquila nem ter certeza de que o herói sairia são e
escorreito do perigo, evitando sua ruína e qualquer pendência com o céu,
assim agora não convém entregar-se a uma despreocupação irrefletida. O
lamento das mulheres que amortalham o formoso deus na caverna não é
menos lancinante por se saber que ele vai ressuscitar; no momento, ele está
morto e despedaçado; a cada hora ritual do acontecimento importa conceder
a honra total e a dignidade de sua presença, seja na pena ou na alegria, na
alegria como na dor. Porventura Esaú não teve também sua hora de glória
quando caminhava muito teso, repleto de orgulho, a ponto de suas
pimponices fazerem dele um objeto de dó e de troça? E que para uivar e
gemer não se achava ainda bastante avançado na sua história. A nossa
tampouco está suficientemente avançada para que os pensamentos de José e
seus rifões não façam assomar na nossa testa o suor do desassossego.
E a nossa inquietação subiria de ponto se déssemos uma vista d’olhos à
abandonada casa de Putifar. A mulher que ali permaneceu solitária e cujo
papel é fazer-se mãe do pecado não terá posto nesta hora sua mais ardente
confiança? Iremos acreditar que ela esteja menos decidida que o filho de
Jacó a levar as coisas ao extremo e que não tenha perfeita razão para
aguardar o amargo e inefável triunfo da sua paixão? Não terá ela motivos
bastantes para acalentar a sombria e tema esperança de que em breve
apertará o jovem entre seus braços? Seu desejo recebeu o estimulo da
suprema autoridade religiosa, a honra e o poder solar de Amun a protegem,
as potências ínferas garantiram sua realização graças à espantosa, à infernal
coerção pela qual a filha do príncipe dos nomos desceu muito abaixo do seu
estado. No seu foro íntimo conta burlar a aviltante cláusula imposta no
conjuro. Diz-lhe sua astúcia feminina que em amor o corpo e a alma não
podem facilmente dissociar-se, que o doce abraço carnal poderá conquistar
também a alma do mancebo e, por meio do prazer, alcançar a ventura. Uma
vez que na nossa narrativa a história se renova, a mulher está aqui, neste
momento, atada ao acontecimento da hora como antes esteve (convertido
este “antes” em “neste momento”) e não pode conhecer o futuro. Mas sabe
muito bem e com apaixonada certeza que José virá encontrá-la na casa
vazia. A Dama Cadela “o atormentará até que venha”, isto é, na metade do
caminho ele irá saber que Mut não participará da festa, que ficou sozinha na
casa silenciosa, e este pensamento crescerá e fará preponderar nele a ânsia
da volta,para que esta coincida com aquele significativo e extraordinário
estado de coisas. E, supondo que esta sugestão seja obra da Cadela, que este
pensamento se aposse dele e guie seus passos, José — pensa a mulher
devorada de desejos —, desconhecendo a Cadela e as práticas vis de
Tabubu, acreditará na espontaneidade do impulso que o lança na direção de
Mut, na casa vazia, e imaginará que “alguma coisa” o impele
irresistivelmente a procurá-la 11a sua solidão. E se ceder, se este
pensamento lhe parecer nascido em seu cérebro e tiver a convicção de que
está agindo por iniciativa própria, não se converterá, lá na sua alma, esta
ilusão numa verdade? E, sendo assim, já não se pregou à bruxa uma boa
peça? “Alguma coisa me impele”, diz o homem de si para consigo. Mas que
vem a ser essa coisa, para que ele a alheie de si, deixando pesar a
responsabilidade do seu ato num objeto exterior a ele? Muito
provavelmente esta “coisa” é ele mesmo, unida ao seu desejo.
“Quero”,“alguma coisa em mim quer”: acaso diferem estas duas
proposições? Aliás, para agir é necessário dizer “quero”? O ato deriva da
vontade, ou não será antes a vontade que se afirma no ato? José virá e com
o fato de vir saberá que quis vir, e para quê? E se vem, se escuta a chamada
da excepcional ocasião, está tudo ganho e Mut o coroará, vitoriosa, com
hera e pâmpanos!
São estes os pensamentos ébrios, superexcitados, da mulher de Putifar.
Pintou densamente com antimônio as sobrancelhas e pestanas, servindo-se
de uma espátula de marfim, e seus olhos desmesuradamente dilatados
brilham de maneira sobrenatural. Têm uma chama sombria, uma expressão
obstinada, mas os lábios sinuosos sorriem sem trégua com uma confiança
de triunfo, agitados por um movimento apenas perceptível, pois, para
perfumar seu hálito, morde e chupa bolinhas de incenso diluído em mel,
deixando-as derreter na boca. Sua veste de linho real deixa aparecer seus
membros criados para o amor e que evocam vagamente uma feiticeira; das
dobras do traje, como dos cabelos, se exala um fino perfume de cipreste.
Está ela na sala destinada à dama na morada do senhor; esta peça que lhe
está reservada confina por um tabique interior com o vestíbulo provido de
sete portas e de pavimento adornado com as constelações, e, pelo outro
lado, com a sala hipostila do norte onde Putifar costuma ler com José. A um
canto, o toucador é contíguo à sala de recepção e de banquete que, por sua
vez, é contígua à sala de jantar da família; naquela se realizará esta noite o
ágape comemorativo da nova dignidade conferida a Petepré na corte. Mut
conserva a porta do seu quarto aberta para a sala do norte, e uma das portas
que levam dali à sala de recepções também está aberta. Neste espaço, a
mulher que espera agita-se, cheia de esperança, sendo a sua solidão
partilhada apenas pelos dois anciãos que no andar superior contemplam a
chegada da morte. Muitas vezes Eni, a nora, em suas idas e vindas, pensa
nos sagrados pais, alçando para o teto ornado de pinturas os olhos de gema,
obscuros em seu brilho desesperado. De quando em quando sai do vestíbulo
e da sala para entrar na penumbra de seu aposento privado, onde a luz se
coa pelas aberturas de pedra das altas janelas, e esconde o rosto entre as
almofadas. Nos piveteiros do quarto, brilham frouxamente a canela e a
mirra, e seu perfume, consumindo-se, passa através das portas abertas até o
salão para o qual todos se retiram depois das refeições, a sala dos
convidados.
Isto, pelo que diz respeito a Mut, a maga. Voltemos, porém, ao defunto
filho de Jacó. Como é sabido, ele regressou antes do pessoal do serviço.
Regressou e, ao fazê-lo, pôde notar que tinha desejado vir ou que alguma
coisa o havia impelido a vir, pouco importa! As circunstâncias não o tinham
feito esquecer sua obrigação nem o sentimento que se conformava com suas
atribuições, renunciando às suas alegrias antes dos demais para concentrar
toda a sua atenção na casa que dirigia. Não obstante, tinha tergiversado e
diferira, mais do que se poderia pensar, o cumprimento de um dever
prescrito e escorado por tantos preceitos sábios. E certo que chegou a casa
quando ainda estava deserta, mas pouco faltou para que os outros também
estivessem de volta da festa, pelo menos aqueles que, não tendo licença
para passar fora a noite, deviam apresentar-se ao serviço, na herdade e na
casa. Antecipou-se, pois, a eles apenas uma hora invernal, se não menos.
Não se perca de vista que nesse país as horas do inverno são muito mais
curtas que as do estio.
José passara o dia de uma maneira muito diversa da mulher que o
esperava: ao sol, entre a turba, no extravagante rebuliço da festa pagã. Por
trás de suas pestanas se erguiam as imagens dos cortejos de gala, as
representações, os folguedos populares. Impregnava-lhe o nariz — o nariz
de Raquel — o cheiro dos holocaustos consumados e das flores, das
exalações de toda uma humanidade exaltada, abrasada de tanto brincar
alegre e de tanta orgia. Rumor de timbales, de clarins, rítmico bater de
mãos, entusiásticos gritos de júbilo, prenhes de esperança, enchiam-lhe
ainda os ouvidos. Comera e bebera, e sem querer falar mal das condições
em que se achava o seu espírito, poderia dizer-se que elas eram as de um
rapazelho que, num perigo, o qual é ao mesmo tempo uma ocasião propícia,
mais propende para a ocasião do que para o perigo. Na cabeça levava uma
grinalda de lótus azuis e nos lábios uma flor. Agitava em torno dos ombros
as brancas crinas do seu vistoso enxota-moscas e cantarolava”A criado que
se diverte, patrão que se esfalfa”, na persuasão de que este fosse um antigo
ditado cunhado pelo povo e que ele apenas lhe adaptara a música. Quando o
dia declinava, chegou à casa do amo, abriu a porta revestida de bronze,
cruzou obliquamente o mosaico constelado do vestíbulo e penetrou na bela
sala do estrado, já preparada com requintado bom gosto e magnificência
para a festa de Petepré.
O jovem intendente José viera velar pela boa ordem dos preparativos e
ver se o escrivão do aparador, Cha’ma’t, merecia alguma censura.
Caminhou pela sala das colunas, entre as cadeiras, as mesas, as ânforas de
vinho sobre suas peanhas, os aparadores abarrotados de pirâmides de frutas
e tortas. Examinou as lâmpadas, a mesa com os seus festões, as flores
formando colares e coroas, as caixas de perfumes e condimentos, e fez
trincolejar taças de ouro, ao retificar-lhes o alinhamento. Havia já algum
tempo que passeava os olhos por tudo aquilo e já fizera tilintar duas ou três
vezes as taças quando de repente estremeceu; uma voz um tanto longínqua,
vibrante, maviosa, chegou aos seus ouvidos. Dizia o seu nome, o nome que
ele dera no país: — Osarsif!
Nunca em sua vida poderia olvidar o instante em que, na casa deserta, a
vibração desse nome veio ferir-lhe o tímpano. De pé, com o mosqueiro
debaixo do braço, com duas taças de ouro na mão, cujo brilho examinava, e
que já fizera tinir, põe-se a escutar, não muito certo de ter ouvido bem. Mas
finge imaginá-lo, pois permanece muito tempo imóvel, à escuta, com suas
taças, sem que a chamada se renove. Finalmente seu nome torna a soar,
melodioso, através das salas:
— Osarsif.
— Aqui estou — responde. Como, porém, estava meio rouco, limpa a
goela e repete:
— Aqui estou.
De novo, o silêncio. Imóvel, José espera. Daí a pouco diz a voz
cantante:
— Es tu, Osarsif, que ouço andar pela sala? Voltaste da festa, antes dos
outros, para a casa vazia?
— E como dizes, senhora — responde, colocando as taças no seu lugar.
Transpõe a porta aberta e entra na sala setentrional de Petepré, a fim de que
o som de suas palavras chegue ao quarto contíguo da direita.
— Sim, efetivamente — continua ele —, já estou aqui, para ver se na
casa tudo está em ordem. Quem diz ordenar, diz renunciar. Tu conheces,
sem dúvida, este sábio preceito, e já que o meu amo me colocou à frente da
casa, sem preocupar-se com coisa alguma do festim que vai dar, confiado,
portanto, naquele sobre quem deixou cair todas as responsabilidades, e
como eu não quero, literalmente, ser maior do que ele na casa, autorizei o
pessoal de serviço a passear e aproveitar o mais que possa. Mas para mim
julguei conveniente renunciar aos últimos prazeres que este dia nos oferece
e voltar à hora justa, conforme o ditado”Dá folga ao servidor e cuida tu do
labor.” De resto, não quero gabar-me diante de ti, pois precedo os outros
com uma antecipação tão diminuta que mal vale a pena de ser mencionada.
Poderão chegar em massa de um momento para outro, e Petepré também, o
amigo único do deus, teu esposo e meu nobre amo.
— E comigo — disse a voz, partindo da peça envolvida no crepúsculo
— não te preocupas, Osarsif, tu que queres preocupar-te com tudo na casa?
No entanto, soubeste que fiquei só e que estou doente. Transpõe a soleira e
vem ter comigo.
— De bom grado o faria — respondeu José — e iria visitar-te, senhora,
cruzando o umbral da tua porta, se não fossem algumas minúcias na sala da
festa que ainda faltam e exigem que eu não as largue de mão...
Porém a voz ressoou:
— Entra. Tua ama to ordena.
E José, cruzando o umbral, entrou.
O SEMBLANTE PATERNO

Aqui a história emudece. Emudece, sim, em sua versão, em sua


representação de festa atual, pois não aconteceu o mesmo na sua origem,
quando ela a si própria se narrou. Dentro, no quarto sombrio, desenrolou-sc
em forma de movimentado diálogo, de dueto, no sentido de que ambos os
protagonistas falavam ao mesmo tempo; mas sobre este colóquio
lançaremos o véu da delicadeza e do escrúpulo humano. A seu tempo,
desenvolveu-se só e sem testemunhas, ao passo que agora tem um vasto
público — diferença considerável do ponto de vista do tato — como
ninguém porá em dúvida. José não se calou, não podia calar-se; de rijo,
obstinadamente, com desenvoltura incrível, opôs ao desejo de Mut, para
dissuadi-la, toda a graça e a sagacidade do seu espírito. E justamente este o
motivo principal da nossa reserva: José viu-se apanhado em contradição, ou
melhor, verificou-se uma contradição, extremamente dura e penosa para a
sensibilidade humana — o contraste entre o espiritual e o carnal. De feito,
ante as réplicas, formuladas ou mudas, com que ela atacava suas
ponderações, a carne do jovem se rebelou contra o espírito, a ponto de,
apesar de suas palavras ágeis e sagazes, tornar-se um asno. E que
desconcertante antinomia esta que exige as reticências do narrador— a
sabedoria discursiva que, terrivelmente desmentida pela carne, apresenta a
imagem dum asno!
Para a mulher, o estado em que ele fugiu, análogo ao do deus morto
(sabe-se que conseguiu fugir), foi o motivo particular de desespero e de
furiosa decepção. Seu desejo tinha encontrado José virilmente pronto, e o
grito de dor e de júbilo com que a desprezada, num paroxismo de
sofrimento e de exaltação, maltratou e acariciou a parte da veste que lhe
ficara entre as mãos — também é sabido que ele perdeu um pedaço da sua
vestimenta —, esse reiterado grito da egípcia foi ”Me’eni nachtef” ”Eu vi o
seu vigor!” Mas o que a José deu força para arrancar-se dela no último e
supremo instante foi a visão do rosto paterno. Todas as versões mais exatas
da história o atestam e nós o confirmamos. Assim foi. Apesar da agilidade
de suas palavras, estava prestes a sucumbir quando se lhe fez presente a
imagem do pai. Como? A imagem de Jacó? Sim, precisamente a sua. Mas
não uma imagem de traços definidos, pessoais, vista em tal ou qual lugar do
espaço. Viu-a antes em espírito e com o espírito — uma visão evocadora e
premonitória, a imagem do pai num sentido mais vasto e geral, em que os
lineamentos de Jacó se confundiam com as feições paternais de Putifar e
ainda com as de Montkav, o modesto finado. Por cima de tais analogias
apresentavam outra, mais soberana. Olhos paternais, obscuros e brilhantes,
acentuados por umas bolsas leves, fitavam José com inquietude.
Foi o que o salvou; ou antes (queremos julgar com equidade e atribuir o
mérito da sua fuga a ele em pessoa e não a uma visão), ou antes, dizíamos,
fugiu enquanto seu espírito o fazia ver a imagem premonitória. Afastou-se
violentamente de uma situação que pelo menos era muito escabrosa, muito
próxima já da derrota. Teve a sorte (para maior dor da mulher, digamo-lo a
fim de repartir por igual nossa simpatia) de que sua agilidade corporal
igualasse a de suas palavras, pois num abrir e fechar de olhos pôde
desfazer-se da sua veste (a “capa”, a “roupa de cima”) pela qual a
enamorada em desespero quis retê-lo, e, numa figura realmente pouco digna
de um mordomo, fugiu, chegou ao vestíbulo, à sala de recepção.
Por trás dele, a paixão decepcionada clamava, meio ébria de êxtase
”Me’eni nachtef”, mas medonhamente enganada. Com o pano que lhe
ficara entre as mãos ainda mornas, entregou-se a terríveis violências:
cobriu-o de beijos, inundou-o com seu pranto, rasgou-o com os dentes,
conculcou-o (quanta doçura neste abomínio!); não procedeu muito
diferentemente do que fizeram outrora os irmãos com o véu do filho em
Dotan, no vale.
— Oh, meu amado! — gritava. — Aonde vais? Fica! Ditoso jovem! Oh,
criado infame! Ai de ti! Traição! Violência! Agarrai o libertino! O ladrão da
honra! Socorro! Socorro para a senhora! Um monstro me assaltou!
Aí está! Seu pensamento, se se pode falar de pensamento, não se
tratando mais que de um torvelinho de furor e de lágrimas, voltou-se para a
acusação com que mais de uma vez ameaçara José quando, no frenesi do
seu desejo, transformada em leoa, lhe mostrava as garras — a treda
acusação de haver monstruosamente faltado ao respeito à sua ama. Esta
feroz lembrança assenhoreou-se da mulher, fê-la vociferar com todo o seu
vigor, como quando, forçando a voz, se procura emprestar realidade à
mentira; e em nome da nossa simpatia equitativamente distribuída,
alegremo-nos de que o tormento da ofendida tenha encontrado este
derivativo, de que se tenha oferecido uma expressão ao seu desespero —
falsa, é certo, mas não menos horrenda —, própria para causar assombro a
todo mundo e para provocar em prol da honra ferida uns defensores ébrios
de vingança. Seus gritos ecoaram longe.
Já havia gente no vestíbulo. O sol se punha e o pessoal de Petepré,
voltando da festa, já na sua maioria se encontrava na casa e na herdade. Por
sorte, o fugitivo, antes de chegar ao vestíbulo, tivera bastante tempo para
recobrar-se. A criadagem, muda de terror, escutava, pois os chamados da
senhora ressoavam até fora, e, embora o jovem mordomo saísse da sala das
festas a passo medido e atravessasse as filas com toda a compostura, era
quase impossível não estabelecer uma correlação entre a desordem da sua
veste e os gritos que partiam do aposento privado. José queria refugiar-se
em seu quarto, “a câmara da confiança”, à direita, para remediar o desalinho
do seu traje; como, porém, os servos lhe fechavam o passo e, por outro
lado, lhe vinha o desejo de sair de casa, de respirar ar livre, atravessou
obliquamente a peça e, pela porta de bronze aberta, entrou no pátio, onde
reinava o alvoroço da volta: diante do harém chegavam as liteiras das
concubinas que, vigiadas pelos escrivães da Casa das Reclusas e pelos
eunucos núbios, tinham sido autorizadas a assistir ao espetáculo e agora
eram trazidas de novo à sua jaula de honra.
Para onde podia ir aquele fugitivo que escapara por um triz? Tornar a
atravessar o portal por onde entrara? E, depois, ir para onde? Ele próprio o
ignorava e sentia-se satisfeito por ter ainda à sua frente uma boa porção do
pátio, como se se dirigisse tranquilamente a alguma parte. Percebeu que o
puxavam pela roupa: Teófilo, o homúnculo encarquilhado, com a cara
repassada de pesar, erguia até ele os seus gritinhos — ”Está assolado o
campo! Calcinado pelo touro! Cinzas! Cinzas! Ah, Osarsif!” Tinham
chegado a meio caminho entre o corpo principal do edifício e o portal do
muro exterior. O anão, pendurado à sua veste, fez José virar-se. A voz da
mulher os alcançou, a voz da senhora, de pé, pálida no alto da escadaria,
rodeada de gente que afluía do vestíbulo. Estendeu para ele os braços, na
direção indicada; uns homens que também estendiam os braços correram
para ele. Aferraram-no e o colocaram entre os da herdade que se haviam
agrupado defronte da casa: artífices, guardas, palafreneiros, jardineiros,
cozinheiros, serventes da mesa, com seus saiotes de prata. O anãozinho,
choramingando, se agarrava a ele.
Então, a criadagem de seu esposo honorário, agrupada por trás dela, ou
à frente, no pátio, a esposa de Putifar dirigiu a célebre apóstrofe que a
humanidade sempre vituperou e que nós também, apesar de termos feito o
possível para defender a lenda de Mut-em-enet, nos vemos obrigados a
vituperar, não por ser inexata a sua afirmação, que deformava totalmente a
verdade, mas por ter inflamado os espíritos por meio de um discurso
demagógico.
— Egípcios! — bradou a mulher. — Filhos de Keme! Filhos do rio e da
terra negra!
Mas que significaria esta linguagem? Aqueles a quem se dirigia eram
pessoas vulgares, que em tais momentos se achavam, quase na sua maioria,
embriagadas. Seu caráter autêntico de filhos de Ápis (supondo que
existisse, pois entre eles também havia mouros de Kuch e donos de nome
caldeu) só lhes cabia agora, mercê da atual circunstância, porquanto não o
tinham, já que ninguém lho tomava em consideração quando cometiam
alguma falta no serviço, e nem por isso deixavam de ter as costas marcadas
pelos açoites, que não se tinham preocupado muito com a distinção de seu
nascimento. Senão quando este nascimento, que habitualmente era deixado
de lado e que para nenhum deles tinha algum valor na vida prática, lhes era
reconhecido com uma ênfase lisonjeira, porque assim se podia utilizar seu
pundonor e a efervescência de seu orgulho coletivo contra um indivíduo
que se procurava aniquilar. A apóstrofe lhes pareceu estranha, mas não
deixou de produzir efeito, tanto mais que o espírito da cerveja os tomava
mais receptivos.
— Irmãos egípcios! (Irmãos de repente? A expressão lhes chegou
diretamente ao coração e saborearam-na com júbilo. ) Vede-me, a mim,
vossa senhora e vossa mãe, a primeira e legítima mulher de Petepré? Vede-
me no umbral da casa, e nos reconhecemos, vós e eu? (“Vós e eu”. Estas
palavras lhe agradaram decididamente; não podia negar-se que era um dia
de regozijo. ) Conheceis também esse jovem hebreu, seminu na grande data
do calendário, pois não leva sua roupa de cima, porque a tenho eu nas
mãos? Reconheceis aquele que vos foi imposto, a vós, filhos do país, como
mordomo, e que se acha à frente da casa de um grande do Egito? Vede: de
uma terra miserável veio ter aqui, ao Egito, ao belo jardim de Osíris, à sede
de Rá, o horizonte do espírito bondoso. Introduziram um estrangeiro na
casa, para que zombe de nós e nos encha de opróbrio. Pois aconteceu esta
coisa horrenda: estava eu só no harém, tendo-me desculpado perante Arnun
por causa de uma indisposição, e me encontrava sozinha na casa deserta.
Então o infame aproveitou o ensejo, entrou na minha habitação o monstro
hebreu, para fazer de mim o que desejava e cobrir-me de vergonha. O
criado queria deitar-se com a ama — gritou com acento estridente —, e
deitar-se, usando violência! Mas eu clamei com a minha voz mais poderosa
quando ele quis fazer isto, quando quis infligir-me este vexame para
satisfazer sua luxúria de criado. Pergunto-vos, irmãos egípcios, ouviste-me
gritar forte, como prova da minha resistência, da minha defesa aterrada,
como o exige a lei? Sim, que o ouvistes. Também ele, o devasso, ouviu
meus clamores, meu chamado, e, como sua coragem criminosa o tivesse
abandonado, fugiu, deixando-me a veste que aqui tenho como prova e pela
qual quis retê-lo para que vós o detivésseis. E fugiu sem ter podido
consumar seu crime, de modo que, graças a meus gritos, ainda sou pura
diante de vós. Ele, porém, que se achava por cima de todos vós, à testa da
casa, agora está ali, como um infame sobre o qual terá de recair a sua
façanha, sobre quem cairá a justiça apenas esteja de volta o senhor, meu
esposo. Que lhe ponham as algemas!
Foi este o discurso de Mut, não somente falso, senão também, e por
desgraça, provocador. Aquela gente pertencente a Putifar achava-se coibida,
desamparada, com o espírito transtornado pela cerveja bebida copiosamente
nos templos, mas sobretudo pelo que escutava. Não lhes diziam todos e,
além disso, não estavam cansados de saber que aquela mulher andava
perseguindo o formoso intendente, que se lhe negava? E eis que de repente
lhes vêm dizer que atentara contra a ama, desejoso de violentá-la! A cabeça
lhes andava à roda por causa da cerveja e também por causa desta história,
em absoluto desacordo com suas ideias. Ademais, todos tinham grande
estima ao jovem intendente. Mas o fato estava de pé: a ama havia gritado;
eles tinham-na ouvido, conheciam a lei e sabiam que esta era a prova da
inocência de uma mulher, pois gritava em voz muito alta quando se atentava
contra a sua honra. Além disto, tinha nas mãos a capa do mordomo, como
um refém que lhe ficasse quando ele fugira. E ele, de pé, com a cabeça
descida para o peito, calava.
— Por que tardais? — bradou uma nobre voz masculina, a voz de Dudu,
que havia chegado ali com o seu traje de festa. — Não ouvis a ordem de
nossa ama ultrajada, desonrada, que exige ponhais as algemas ao patife do
hebreu? Ei-las aqui, eu as trouxe. Mal ouvi os gritos que ela soltava,
conforme pede a lei, compreendi imediatamente de que se tratava e a que
ponto tinham chegado as coisas, e com toda a presteza corri ao quarto da
flagelação a buscar as algemas, para que não faltassem no momento
oportuno. Aqui estão. Não fiqueis aí boquiabertos e amarrai as mãos ao
sacrílego, comprado em outros tempos, a despeito dos sábios conselhos
contrários, atendo-se antes a conselhos miseráveis. Já há muito manda ele
em todos nós, legítimos filhos deste país. Ao obelisco! Será conduzido à
casa da tortura e do último suplício.
Era a hora triunfal de Dudu, o anão casado, e ele a saboreava. Dentre os
presentes houve dois indivíduos que tomaram as algemas e as colocaram
em José, apesar das lamúrias de Chepses-Bes, das quais era difícil não rir.
As algemas eram um cepo em forma de fuso, com uma fenda, e abriam-se
com um golpe seco e se fechavam por meio de uma lingueta, de modo que
as mãos presas na fenda ficavam totalmente reduzidas à impotência, sob a
pressão da madeira.
— Lançai-o no canil! — ordenou Mut com um terrível soluço. Depois
pôs-se de cócoras diante da porta aberta da casa, colocando junto de si o
manto de José.
— Aqui me sento — disse ela com sua voz cantante —, no pátio escuro,
à soleira da casa, tendo ao meu lado a veste acusadora. Afastai-vos todos de
mim, e que ninguém me peça que entre, a pretexto de que meu vestido é
leve e com ele me arrisco a apanhar o frio da noite que se aproxima. Ficarei
surda a tais súplicas. Quero permanecer aqui sentada, junto da minha prova,
até que Petepré regresse no seu carro e eu receba satisfação do ultraje
monstruoso.
O JUÍZO

As horas são grandes, cada qual segundo sua natureza, altiva ou


miserável. Quando Esaú se entregava a suas fanfarronadas e caminhava
com orgulho, achava-se no pináculo e para ele aquela hora era gloriosa.
Mas, quando se precipitou para fora da tenda — “maldito! maldito!” — e se
atirou ao solo, deixando que rolassem suas lágrimas da grossura de avelãs,
acaso aquela hora era menos grandiosa e solene para o Peludo?
Examinemo-lo. Eis chegada para Petepré a mais penosa das horas da festa,
aquela que ele no seu íntimo esperara sempre: fora, caçando pássaros ou
hipopótamo, ou no deserto, ou lendo os bons autores antigos, sempre
vagamente se havia preparado para uma hora semelhante, cujas
particularidades ignorava e que em grande parte dependiam dele, chegado o
momento. E eis que ele lhes conferiu muita nobreza.
Escoltado por portadores de fachos, volveu a casa em seu carro
conduzido por seu cocheiro Neternacht, muito antes, como dissemos, do
que podia exigir a solenidade mundana daquela noite. Agitava-o um
pressentimento. Sua volta era parecida com muitas outras nas quais, em seu
coração, levava o temor de alguma má notícia; porém desta vez a coisa já
estava feita. “Vai tudo bem na casa? A senhora está de bom humor?” Não,
exatamente. A senhora está sentada tragicamente na soleira da casa e teu
copeiro, cuja presença te era benfazeja, está encerrado no canil, com
algemas nos punhos.
Assim, pois, e desta forma se realizou o pressentimento. Examinemos-
lhe os aspectos. Já de longe Petepré tinha visto que Mut, sua mulher, estava
sentada diante da porta da casa. Devia haver algum motivo terrível para
isto. Contudo, ao apear-se do carro, fez as perguntas habituais, que esta vez
ficaram sem resposta. Os que o ajudavam a descer baixaram a cabeça e
guardaram silêncio. Ah! Sucedera então o que ele sempre havia temido,
embora as demais particularidades da hora divergissem da sua suposição.
Torre frágil, à Rubem, com o abano e a maça honorífica na mão, enquanto o
carro se afastava e os criados se conservavam a respeitosa distância no pátio
alumiado pelos tachos, subiu os degraus até chegar junto de sua mulher ah
sentada.
— Que hei de pensar, querida amiga, deste espetáculo? — perguntou
com uma cortesia prudente. — Estás sentada aqui, vestida à ligeira, num
lugar de passagem, tendo ao teu lado unia coisa que não sei o que é.
— E como dizes — respondeu ela. — Empregas, é verdade, palavras
frouxas e impotentes para descrever este espetáculo muito mais trágico e
medonho do que imaginas, meu marido. Mas, no fundo, tua observação é
justa. Estou sentada aqui e tenho junto de mim uma coisa cuja tremenda
significação terás de conhecer.
— Ajuda-me então a compreender — disse Petepré.
— Estou aqui — prosseguiu Mut —, à espera de teu julgamento. Trata-
se do crime mais horrendo que se viu no país e, sem dúvida, em todos os
países.
Com o dedo o cortesão fez um gesto como que a esconjurar o mal e
esperou com calma.
— Veio ter comigo — modulou a mulher— o criado hebreu que
introduziste entre nós e quis faltar-me ao respeito. Na sala velada pelo
crepúsculo eu te implorei, abracei teus joelhos, para que expulsasses o
estrangeiro que cá trouxeste, pois nada de bom eu futurava dele. Em vão.
Teu escravo te era muito caro e tu me deixaste partir desconsolada. E o
infame se lançou sobre mim e quis saciar em mim sua luxúria, na casa
deserta, e seu vigor viril já estava pronto. Não crês em mim e não podes
conceber uma coisa tão abominável? Então olha esta prova e interpreta-a
como se deve. O sinal é mais forte que as palavras; não se discute, não se
pode pô-lo em dúvida, pois que fala a linguagem irrecusável das coisas.
Olha! E do teu escravo esta veste? Examina-a bem, porque é um sinal que
me justifica. Como, ao ser acometida pelo monstro, eu gritasse, deu-lhe
medo e ele a deixou abandonada entre minhas mãos. Ponho diante de teus
olhos a prova do seu crime horrendo; existe ainda a prova de sua fuga e de
meus gritos. Pois, se não tivesse fugido, eu não ficaria com a sua roupa, e,
se eu não tivesse gritado, ele não teria fugido. A casa toda pode atestar que
gritei. Interroga tua gente.
Petepré conservava-se calado, com a fronte caída. Depois, levantando-a,
deu um suspiro e disse:
— E uma história profundamente triste.
— Triste? — repetiu ela, ameaçadora.
— Eu disse “profundamente triste” — respondeu Petepré. — E
horrenda, e eu teria buscado um epíteto mais enérgico ainda, se não me
fosse dado inferir das tuas palavras que, graças à tua presença de espírito e
ao teu conhecimento da lei, ela teve um bom desfecho e as coisas não foram
levadas ao extremo.
— E para o infame escravo não buscas um epíteto?
— E um escravo infame. Não há para que dizer que o qualificativo
“profundamente triste” se referisse a ele, já que se trata do seu
procedimento. E justamente nesta tarde, entre tantas outras, veio cair sobre
mim essa coisa horrível, na tarde da minha elevação ao posto de amigo
único e quando volto para casa para comemorar o carinho e o favor de
Faraó com uma festinha cujos convidados de um momento para outro
devem aparecer! Confessa que é duro!
— Petepré, tens no peito um coração humano?
— Por que fazes esta pergunta?
— Porque numa hora indescritível como a presente podes falar de teu
novo título e da maneira como esperas festejá-lo.
— Se o fiz, foi para estabelecer rudemente o contraste entre o caráter
indescritível desta hora e a glória deste dia, e assim fazê-lo sobressair ainda
mais. E da própria natureza do indescritível não se poder falar dele, tanto
que, para poder expressá-lo, toma-se necessário falar de outra coisa.
— Não, Petepré, não tens um coração humano!
— Minha querida, deixa que eu te diga isto: há casos em que uma
pessoa pode felicitar-se por não ter um coração humano, tanto no interesse
do ofendido como no interesse dos acontecimentos, que talvez se dominam
melhor se neles não se faz intervir demasiado o coração. Que partido tomar
agora, neste assunto profundamente triste e tremendo, que me depara este
dia glorioso? E preciso resolvê-lo sem nenhuma delonga e fazê-lo
desaparecer deste mundo, pois compreendo muito bem que não te
levantarás desse lugar inconveniente enquanto não tiveres recebido
satisfação pelo inverossímil infortúnio que te toca. É necessário que antes
da iminente chegada dos hóspedes o caso tenha sido solucionado. Tenho,
pois, de instituir aqui mesmo um tribunal de justiça privada, e — louvado
seja o Invisível! — tudo me será fácil,já que tua palavra, minha amiga, é a
única que vale e nenhuma outra lhe poderá ser oposta. O veredicto será,
portanto, dado sem perda de tempo. Onde está Osarsif?
— No canil.
— Era o que eu supunha. Que o tragam à minha presença! Que chamem
os sagrados pais do andar superior para que assistam às decisões do tribunal
privado, ainda que já estejam dormindo. O pessoal do domínio se reunirá
diante da minha alta cátedra, que quero ver colocada aqui, no lugar em que
a ama está sentada, para que não se levante senão depois que eu tenha
julgado.
Estas ordens foram executadas à risca e só encontraram dificuldade com
Hui e Tui, o casal de pais fraternos, que se recusavam a comparecer. Suas
criadinhas os tinham inteirado do tumulto; com suas bocas afuniladas, as
rapariguitas, de braços parecendo talos, haviam-lhes contado o que
acontecia. Tal como seu filho expiatório, o cortesão da luz, os dois anciães
tinham vivido sempre secretamente na expectativa desse minuto; agora,
tomados de pânico, não queriam vir; no juízo prestes a efetuar-se percebiam
como que uma prelibação do juízo diante do monarca ínfero; com a cabeça
muito fraca para poder reunir os argumentos justificativos, não saberiam
dizer senão”Nossas intenções foram boas.” Como resposta, alegaram que,
quase a dar o último suspiro, se sentiam incapazes de assistir a um tribunal
de justiça privada. Mas seu filho, o senhor, se impacientou a ponto de bater
com o pé no chão e exigiu que se fizessem transportar fosse como fosse e
no estado em que se encontrassem; se estavam a ponto de morrer, o lugar
onde Mut, sua nora, estava sentada pedindo justiça era o mais indicado.
Desceram, pois, sustentados pelas suas pequenas cuidadoras, o velho
Hui com sua barbicha prateada e trêmula, movendo terrivelmente a cabeça,
e a velha Tui, virando em todas as direções, com desalentado sorriso, seus
olhos cegos no grande rosto branco, como a procurar alguma coisa.
Tiveram de permanecer de pé por trás do assento de justiça de Petepré, e a
princípio, invadidos de emoção vivíssima, balbuciavam sem cessar”Nossas
intenções eram boas”; mas pouco a pouco recobraram a calma. Mut estava
sentada junto da sua prova, próxima ao supedâneo da curul do juiz, por trás
da qual um mouro vestido de vermelho agitava um alto flabelo. Atrás do
grupo ficavam os portadores de archotes, e as luzes iluminavam o pátio
onde se reuniam os servos que não tinham permissão para achar-se fora.
Conduziram José algemado para junto dos degraus, seguido de Se’ench-
Ven-nofre-etc. , que não se separava do seu saiote. Dudu também estava ali,
na doce esperança de que sua hora festiva se tomaria cada vez mais bela. Os
dois anões achavam-se de cada lado do réu.
Com sua voz aflautada, Petepré falou rápido, segundo a norma:
— Vai realizar-se aqui um julgamento, mas temos pressa. A ti invoco, a
ti que tens cabeça de íbis, a ti que escreveste as leis dos homens, macaco
branco junto da balança! E a ti, Ma’at, soberana enfeitada com penas de
avestruz, a ti que presides a verdade! Os sacrifícios propiciatórios que vos
devemos vos serão oferecidos posteriormente, asseguro-o, e é como se já
estivessem feitos. Por ora temos pressa. Faço justiça nesta casa, que é
minha, e falo assim.
Tendo proferido estas palavras, de mãos erguidas, tomou em seguida
uma atitude de mais abandono, a um canto da alta cadeira, e apoiou os
cotovelos sobre os braços desta, movendo ao de leve a mãozinha.
— Apesar das maciças barreiras que esta casa opõe ao mal — disse ele
—, apesar da irredutibilidade das máximas tutelares e das palavras
benéficas, o espírito da dor logrou insinuar-se aqui, perturbando-lhe a bela
atmosfera de paz e de delicadas cortesias. Tudo isso é profundamente
acabrunhador, sobretudo porque o mal veio manifestar-se exatamente no dia
em que o favor e o carinho de Faraó se dignaram agraciar-me com o posto e
o título esplêndido de amigo único, dia em que, por conseguinte, eu bem
podia esperar da parte dos homens amabilidades e gentis felicitações e não
a dolorosa surpresa de ver que a ordem da casa vacila. Já desde muito
tempo, apesar das barreiras, o espírito nefasto havia-se introduzido aqui e
minava em segredo a formosa ordem da casa para derribá-la e fazer cumprir
a ameaçadora predição segundo a qual os ricos serão pobres, os pobres
serão ricos e os templos ficarão desertos. Desde muito tempo, repito, o mal
fazia seus estragos em silêncio, oculto para todos, mas não para o senhor
que é ao mesmo tempo pai e mãe da casa, pois seu olho é como o raio de
lua que emprenha a vaca e o sopro de suas palavras é semelhante ao vento
que leva o pólen de árvore em árvore, em sinal de fecundidade divina.
Assim, pois, toda iniciativa e toda prosperidade brotam de sua presença
como do favo o mel virgem; nada escapa à sua vigilância, e o que está
velado para a multidão aparece claramente diante de seus olhos. Ficai
sabendo disto por ocasião da presente desordem. Conheço de sobra a lenda
que corre aí junto com o meu nome, segundo a qual eu não me ocupo de
nada nesta terra a não ser da comida. Nada mais falso. Ficai cientes de que
eu sei de tudo, e, se o medo do amo e o temor do seu olho vigilante se
acham fortalecidos pelo desagradável incidente que vou julgar, pode dizer-
se que, apesar de sua profunda tristeza, não deixará de ter seus lados bons.
Levou ao nariz um frasquinho de malaquite cheio de perfume, suspenso
pela asa a uma correntinha no seu colar, e tendo-se refrescado, continuou:
— Assim, pois, já desde muito tempo me eram conhecidos os caminhos
pelos quais enveredara o espírito de dor que havia irrompido na casa. Porém
o meu olhar descobriu também as sendas por onde caminhavam aqueles que
por presunçosa perfídia o fomentaram e que por vil inveja lhe abriram
passagem e até lhe permitiram traiçoeiramente entrar e insinuar-se na casa,
a despeito de todas as boas máximas preservadoras. Estes traidores estão
diante de mim, na pessoa anã do ex-guarda das minhas joias e cofres, o
chamado Dudu. Ele foi obrigado a confessar-me sua perversidade,
declarando-me como abriu a porta ao mal ávido e lhe indicou o caminho.
Que a sentença caia sobre ele! Longe de mim a ideia de castigá-lo privando-
o da força com que o senhor do Sol teve a fantasia de agraciar a sua
insignificante pessoinha. Nada farei contra isto. Corte-se a língua ao traidor.
— A metade da língua — retificou, estomagado, e fazendo com a mão o
gesto de afastá-lo, quando Dudu soltou altos gritos lamentosos.
—- Mas — acrescentou —, como estou acostumado a saber que minhas
pedras preciosas e minhas vestes são guardadas por um anão e como não é
desejável que os meus costumes sofram interrupção, nomeio o outro anão
da minha casa, Se’ench-Ven-nofre-Neteruhotpe-em-per-Amun, escrivão do
meu guarda-roupa. Desde hoje será o chefe dos meus cofres.
O pequeno Teófilo, cujo narizinho mostrava uma vermelhidão de
cinábrio no enrugado rosto, por ter chorado por José, deu um pulo de
alegria. Porém Mut, levantando a cabeça na direção de Petepré, murmurou
entre os dentes:
— Que sentenças são essas que pronuncias, meu esposo? Estão à
margem das coisas, são inteiramente acessórias. Que se há de pensar de teu
juízo e como poderei levantar-me daqui se é assim que julgas?
— Paciência — replicou em voz baixa, curvando-se para ela. — Pouco
a pouco cada um receberá o que merece e a culpa do criminoso sobre ele há
de cair. Fica tranquilamente sentada aí. Dentro em pouco poderás levantar-
te, tão satisfeita como se pessoalmente houvesses julgado. Eu julgo em teu
lugar, querida, sem fazer intervir demasiado o coração; alegra-te com isto.
Pois, se fosse ele que tivesse de formular o veredicto, sua impetuosidade
poderia expô-lo a eternos remorsos.
Depois de dizer baixinho estas palavras a Mut, endireitou-se e disse: —
Arma-te de coragem, Osarsif, meu jovem ex-mordomo, pois passo agora a
ocupar-me de ti. Vais ouvir também tua sentença que talvez há muito estejas
aguardando ansioso; para agravar o teu castigo, matreiramente prolonguei
tua espera. Deliberei tratar-te com rudez e impor-te um duro castigo, sem
contar com o que te virá de tua própria alma, porquanto desde hoje três
animais de nomes vis seguem teus passos. Chamam-se eles. se não me falha
a memória,“vergonha”, “culpa” e “riso zombeteiro”. São eles naturalmente
que fazem com que te encontres de cabeça curvada e olhos baixos diante da
minha curul, e não penses que só agora o percebo, pois não cessei de
observar-te secretamente durante a angustiosa espera a que te submeti. Com
a cabeça profundamente inclinada, de mãos algemadas, guardas silêncio e é
a única coisa que podes fazer, porquanto nem sequer te pedem que te
justifiques, sendo a senhora quem te aniquila com sua acusação
irrefragável, a qual por si só bastaria para terminar o assunto, se além disso
o sinal, de fácil interpretação, que constitui tua veste, não se visse ah,
vergonhosamente exibido. Ele fala a indiscutível linguagem das coisas,
denunciando a presunção que finalmente te induziu a alçares os olhos para a
senhora; e como esta quisesse entregar-te à minha justiça, abandonaste tua
vestimenta entre suas mãos. Pergunto-te: que sentido teria opor, em tua
defesa, uma objeção à palavra da ama e à linguagem inequívoca das coisas?
José continuou calado e baixou ainda mais a cabeça.
— É claro que nenhum — respondeu Petepré à sua própria pergunta. —
Tens de ficar mudo como muda fica a ovelha diante do tosquiador; nada
mais te resta a fazer agora, por sutis e agradáveis que tenham sido sempre
tuas palavras. Mas dá graças ao Deus da tua raça, a esse Baal ou Adon, que
sem dúvida equivale ao sol poente; ele te protegeu, apesar da tua presunção,
impediu que teu espírito rebelde levasse as coisas ao extremo, arrancando-te
de tuas próprias vestiduras. Rende-lhe graças, repito, porque, se não fosse
ele, neste momento estarias destinado ao crocodilo ou à morte lenta pelo
fogo, se não ao gonzo da porta da sala. Estes castigos devem ser postos de
parte, é certo, uma vez que te viste imune da pior culpa, e eu não estou na
situação de infligir-tos. Não cuides, todavia, que eu não esteja resolvido a
tratar-te com dureza e escuta a minha sentença, depois de uma espera
adrede prolongada. Lanço-te na prisão em que estão os prisioneiros do rei,
em Zavi-Rá, a fortaleza da ilha do rio. Desde este momento não me
pertences, és de Faraó e escravo do rei. Coloco-te debaixo da férula do
chefe dos carcereiros, homem com o qual ninguém brinca e que, como bem
pode presumir-se, não se deixará imediatamente seduzir pelos teus modos
agradáveis na aparência; de maneira que tua vida será dura no cárcere, pelo
menos no princípio. Além disso, darei àquele funcionário algumas
instruções particulares a teu respeito numa carta que conto enviar-lhe junto
contigo e na qual te descreverei de acordo com os teus méritos. Para esse
lugar de expiação, donde o riso está banido, serás embarcado amanhã, e
nunca mais verás o meu rosto, depois de ter tido o privilégio de ficar ao
meu lado durante uma série de anos amistosos, de encher minha taça e de
ler para mim os bons autores. E possível que isto te seja penoso, e eu não
estranharia que os teus olhos profundamente baixos estivessem neste
momento rasos de lágrimas. Seja como for, amanhã serás levado àquele
lugar severíssimo. Por ora não voltarás para o canil. Já cumpriste esta pena
e será Dudu quem passará a noite ah, até que amanhã lhe cortem a língua.
Ao invés, tu poderás dormir como de costume na câmara privada da
confiança, que por esta noite se chamará “câmara de custódia do preso’’. E
como te puseram algemas, a equidade exige que também sejam postas em
Dudu, se é que existe outro par. Se há só um, este será para Dudu. Disse.
Está dissolvido o tribunal de família. Volte cada qual ao seu posto, para a
recepção dos convidados.
Ninguém se surpreenderá ao saber que, ouvindo esta sentença, todos os
que se achavam no pátio se prostraram por terra com as mãos erguidas,
aclamando o nome do amo sábio e misericordioso. José também se
prosternou com gratidão. Até Hui e Tui, ajudados pelas rapariguinhas que
deles cuidavam, prestaram homenagem ao filho, pousando a fronte no solo.
E se me interrogais acerca de Mut-em-enet, a senhora, direi que não
constituiu uma exceção: viram-na inclinar-se sobre o escano colocado
diante da cadeira do juiz e esconder a cabeça entre os pés do seu marido.
— Nada tens que agradecer-me, minha amiga — disse-lhe ele. —
Sentir-me-ei feliz se conseguir satisfazer-te nesta prova e ser-te agradável
com o meu poder. Agora dirijamo-nos à sala de recepções para celebrarmos
o meu dia glorioso. Pois, tendo-te conservado judiciosamente em casa
durante o dia, te fortaleceste para a noite.
E assim, pela segunda vez, desceu José ao fosso, à prisão. Como saiu
dali para alcançar um mais alto destino será objeto de futuros cantos.

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