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VOLUME 2
JOSÉ NO EGITO
1
DIANTE DO AMO
UM ENCONTRO
Dezessete dias? Não, foi uma viagem de sete vezes dezessete, não
contados, mas que devem ser entendidos no sentido de longa duração; e,
por fim, ninguém podia saber quanto da sua duração se devia à marcha
vagarosa dos madianitas e qual a extensão de terra que venceram. Viajavam
por um país populoso, movimentado e fértil, coroado de olivais, coberto de
palmeiras, nogueiras e figueiras com vasto cultivo de cereais, regado com
água de fundas cisternas diante das quais passavam bois e camelos. Aqui e
acolá viam-se em campo aberto fortins dos reis a que davam o nome de
paradas, guarnecidos de torres e muralhas, sobre cujas ameias estavam
archeiros e de cujas poreis saíam guerreiros guiando suas parelhas de
fogosos corcéis; e mesmo com os soldados do rei os ismaelitas não
hesitavam em entabular negócio. Vilarejos, granjas, colônias em redor de
um Migdal, por toda parte eram convidados a deter-se, e eles se detinham
semanas e semanas, não importando o tempo. Antes de alcançarem o lugar
onde a baixa margem litorânea subitamente se erguia num alto paredão de
rochedos, em cujos píncaros estava situada Ascalon, o estio se avizinhava
do seu termo.
Santa e forte era Ascalon. As lajes das muralhas que a cintavam e que
desciam em semicírculo até o mar em redor do forte pareciam ter sido ali
colocadas por gigantes; o seu templo de Dagon era uma construção maciça,
com numerosos pátios, um bosquete muito ameno onde havia um tanque
cheio de peixes; a sua mansão de Astaroth gabava-se de ser mais antiga que
qualquer outro templo de Baalat. Sob as palmeiras crescia na areia, sem
cultivo algum, uma espécie aromática de cebolinhas. Dava-as de presente
Derketo, senhora de Ascalon, e podiam ser vendidas a outras localidades. O
velho mandou recolhê-las em saquinhos, sobre os quais escreveu em
caracteres egípcios”Finíssimas cebolas de Ascalon.”
Dali foram até Gaza, chamada Chazati, no meio de olivais nodosos, a
cuja sombra pastavam muitos rebanhos. E já haviam assim feito um bom
trecho da sua jornada. Já se achavam quase em território egípcio. Quando,
em outros tempos, Faraó irrompia do Sul com seus carros e seus peões,
avançando através das míseras terras de Zahi, Amor e Retenu até o fim do
mundo, para que pudessem, em linhas profundas, representá-lo gigantesco
sobre a estrutura dos muros do templo, enquanto com a mão esquerda
segurava pelos cabelos cinco bárbaros de uma só vez e com a direita
brandia a clava sobre eles, transidos de um terror sagrado — então Gaza
fora sempre a primeira etapa da expedição. Já se viam muitos egípcios pelas
travessas de Gaza, cheias de odores penetrantes. José observava-os
atentamente. Tinham costas largas, trajavam roupas brancas e eram
orgulhosos. Ao longo da costa e no interior da região, pela estrada que ia
dar em Bersabé, obtinha-se um vinho excelente por preço módico. Em troca
de mercadorias, o velho comprou várias talhas e carregou com elas dois
camelos, escrevendo sobre as mesmas”Vinho oito vezes bom de Chazati.”
Mas por longo que fosse o caminho já percorrido até a cidade
fortificada de Gaza, esperava-os ainda a parte pior da viagem, em
comparação com a qual a morosa marcha através do país dos filisteus não
fora mais que um entretenimento e um folguedo de meninos. Logo depois
de Gaza, na direção do meio-dia, onde uma estrada arenosa, correndo ao
longo da costa, ia sempre baixando, à medida que se aproximava do rio do
Egito, o mundo tomava-se extremamente inóspito. Disso bem sabiam os
ismaelitas, que já várias vezes haviam percorrido a mesma estrada. Antes de
alcançar os férteis campos pelos quais o Nilo se espraiava, abria-se um
mundo infernal e profundamente tristonho, uma planície apavorante na qual
se gastavam nove dias de jornada, maldita e perigosa, o apavorante deserto,
onde ninguém devia demorar-se mas que era preciso palmilhar e deixar para
trás o mais depressa possível; e assim foi Gaza o último lugar de descanso,
antes de se chegar a Mizraim. Por isso o velho, o amo de José, não tinha
pressa de partir de Gaza, pois, segundo dizia, a próxima viagem seria de
longa duração. Demorou-se em Gaza muitos dias, mesmo porque tinha de
fazer sérios preparativos para a travessia do deserto, abastecer-se de água,
tomar um guia experiente e um abridor de caminhos. Para ser franco,
deveria também munir-se de armas contra perigosos salteadores
vagabundos, habitantes das areias. Mas de tudo isto desistiu o nosso velho,
em primeiro lugar porque ele, na sua prudência, reputava aquilo uma
providência escusada, visto como, alegava, ou a gente tem a sorte de
escapar daqueles excomungados e então não se tem necessidade de armas,
ou tem-se a infelicidade de ser agarrado por alguns deles, e então, embora
se consiga derrubar alguns, sempre ficarão muitos para saquear-nos. O
mercador, dizia ele, deve contar com a sua sorte, não com dardos e flechas,
que isto não é da sua profissão.
Em segundo lugar, o guia por ele contratado na praça em frente à porta
da cidade, local onde tais indivíduos costumam oferecer seus serviços aos
viandantes, o tranquilizara insistentemente com referência aos vagabundos,
garantindo-lhe que, conduzidos por ele, não havia nenhuma necessidade de
armas, porque ele era um acompanhador perfeito e abria os caminhos mais
seguros através de horrendas plagas, motivo pelo qual seria coisa
verdadeiramente ridícula tomá-lo como guia e além disto armar-se até os
dentes. Como se admirou José, ou antes, como ficou estarrecido e depois
alegre, não podendo crer no que seus olhos viam, quando, no mercenário
que na manhã do dia da partida se juntou à pequena caravana pondo-se à
sua testa, reconheceu o mancebo ao mesmo tempo solícito e importuno que
pouco tempo antes de lhe acontecerem tantas coisas o guiara de Siquém a
Dotan! Era ele sem nenhuma dúvida, se bem que o albornoz que agora
usava lhe desse uma aparência diversa da anterior. Era impossível não
reconhecer aquela cabeça pequena e o pescoço grosso, a boca vermelha e o
queixo redondo como uma fruta, e especialmente a languidez do olhar e a
atitude estranhamente afetada. Muito confuso, julgou José ter percebido um
olhar que o guia, apesar de impassível, lhe lançara, piscando ao de leve um
olho — olhar que era ao mesmo tempo uma alusão ao seu antigo
conhecimento, colocando-o contudo sob condição de ser discreto. Isto
tranquilizou bastante José, porque esse conhecimento o reconduzia muito
atrás, até a sua vida precedente, bem mais atrás de quanto ele desejava que
pudesse penetrar a vista do ismaelita; e aquele piscar de olhos era um
indício de que o guia o entendera.
Não obstante, José desejava vivamente trocar uma palavra com aquele
indivíduo, e quando por entre o canto dos que iam à frente e o tilintar das
campainhas dos camelos a comitiva deixara para trás a região verde,
abrindo-se diante dela a terra árida, o jovem pediu ao ancião que o precedia
licença para interrogar mais uma vez, por via das dúvidas, o guia, e apurar
se ele realmente entendia do oficio.
— Tens medo? — indagou o mercador.
— E por causa de todos — respondeu José. — Eu, porém, entro pela
primeira vez no país maldito e me dá vontade de chorar.
— Vai então ter com ele.
José guiou o seu animal para o camelo número um e disse ao guia:
— Eu sou a boca do patrão. Quer ele saber se conheces mesmo as
estradas.
O mancebo olhou-o à sua velha moda, por cima do ombro e com os
olhos quase fechados.
— Por tua própria experiência poderias tranquilizá-lo.
— Silêncio! — sussurrou José. — Que fazes por estas bandas?
— E tu? — foi a resposta.
— Está bem, não digas uma só palavra aos ismaelitas sobre a minha
jornada à procura dos meus irmãos — murmurou José.
— Não tenhas receio — respondeu o outro também em voz baixa. E,
por enquanto, a conversação ficou nisso.
Entretanto iam penetrando cada vez mais no deserto, à medida que
passavam os dias. O Sol se punha sombriamente por trás de cordilheiras
mortas, e esquadrões de nuvens, cinzentas no centro e nas fímbrias
esbraseadas com a luz vespertina, cobriam o céu sobre uma planície de
areia dum amarelo de cera, sobre a qual a distância se viam uns cômoros
dispersos, cobertos de erva seca. Numa dessas noites José teve ainda
ocasião de falar com aquele homem, sem com isso dar na vista. Alguns dos
viandantes se haviam estirado em redor dos montículos cobertos de erva e,
por causa do frio repentino, haviam acendido uma fogueira com gravetos
ressequidos. No meio deles estava também o guia, que aliás não
frequentava muito a companhia nem de amos nem de servos e evitava
conservas, limitando-se a discutir com o velho cada dia sobre a jornada que
lhes competia levar a termo. José, depois de ter feito a sua obrigação e ter
desejado ao senhor um sono feliz, juntou-se ao grupo, sentou-se ao lado do
guia e esperou que a monossilábica conversação dos viajantes cessasse e
eles passassem por uma modorra. Então acotovelou levemente o vizinho e
disse:
— Escuta. Sinto naquela ocasião não ter podido manter a palavra e ter-
te deixado esperar em vão.
O amigo deu-lhe uma olhada passageira por cima do ombro e de novo
fitou o fogo que ia morrendo.
— Com que então não podias, hem? — retrucou. — Deixa que eu te
diga que nunca na minha vida encontrei um rapaz tão sem palavra como tu.
Lá me deixas montando guarda ao animal, talvez por uns sete jubileus, se
de ti dependesse, e não voltas, como havias prometido. Realmente, muito
me admira que fale ainda contigo; estou deveras admirado de mim mesmo.
— Mas já te pedi desculpas — murmurou José — e creio que estou
desculpado. Tu de nada sabes. As coisas tomaram um rumo diferente do
que eu supunha. Não me foi possível ir de novo ter contigo, como era
anteriormente minha firme resolução.
— Sim, sim, palavrório, desculpas. Sete jubileus do Senhor poderia eu
ficar lá à espera...
— Mas a verdade é que não ficaste lá sete jubileus. Ao perceberes que
eu faltava ao encontro combinado, seguiste com certeza o teu caminho. Não
exageres a seca que, contra a minha vontade, te causei. Dize-me antes que
coisa aconteceu a Hulda depois de minha partida.
— Hulda? Quem é Hulda?
— Perguntar quem é perguntar um pouco demais — disse José. —
Pergunto por Hulda, a minha branca burrinha de viagem, tirada da
cavalariça de meu pai.
— Burrinha, burrinha, branca burrinha de viagem! — arremedava-o o
guia em voz baixa. — Tens um modo tão temo de falar dos teus, que por ele
se pode deduzir o teu egoísmo. Gente dessa é que depois se comporta da
maneira que se sabe, faltando à palavra...
— Não, não — protestou José. — Se falo de Hulda com ternura, não é
por minha causa, mas por causa dela, porque era o animal amável e
circunspeto que meu pai me confiara. Quando penso na crespa crina que lhe
crescia na testa e ia até os olhos, o meu coração se comove. Desde quando
te deixei, nem um só instante se passou sem que eu me interessasse pela
sorte dela, de tomar informações, ainda nos momentos e nas longas horas
que também para mim não foram destituídas de terror. Quero que saibas
que, desde que vim a Siquém, a má sorte não me abandonou e graves
tribulações me foram reservadas.
— Não é possível — comentou o mancebo —, não se pode crer em tal.
Tribulações? Estou um tanto desorientado e firmemente convencido de que
não ouvi bem. Não encontraste teus irmãos? Tu não cessas de trocar
sorrisos com os outros homens, porque és gracioso e belo como uma
imagem esculpida, tendo além disso de que viver. Donde, pois, há de vir a
má sorte e a grave tribulação? Vou fazendo a mim mesmo essas perguntas e
não acho resposta.
— No entanto, assim é — replicou José. — E apesar de tantas
vicissitudes, digo-te eu, não cessei um só instante de preocupar-me com a
sorte da pobre Hulda.
— Está bem, está bem — disse o guia. E José reconheceu o estranho
movimento das pupilas, o rápido rolar dos olhos que já observara antes
naquele indivíduo. — Está bem, jovem escravo Osarsif, tu falas e eu escuto.
A falar verdade, parece escusado que uma pessoa, assoberbada de
dificuldades, se preocupe tanto com a sorte de um bicho. Com efeito, que
serviços nos pode prestar um animal desses, que importância pode ter ele
em comparação com tudo mais? Mas considero possível que se deva
apreciar a tua solicitude e que deve redundar em honra tua essa tua
preocupação por uma pobre criatura, mesmo no meio das tuas angústias.
— Em suma, que é feito dela?
— Da burra? Para um homem como eu não deixa de ser doloroso
primeiro ter de tomar-se guarda de asnos, e isto sem nenhuma utilidade, e
depois ainda ter de prestar contas do que se passou. Realmente seria
interessante saber como se chega a este extremo. Mas podes ficar
sossegado. As minhas últimas impressões sobre o jarrete do animal não
eram afinal tão tétricas como supusemos no primeiro momento de
desalento. Aparentemente havia contusão e não ruptura... isto é,
aparentemente havia ruptura e na realidade só havia contusão. Procura
compreender-me. Aguardando a tua volta, tive tempo de sobra para pensar a
pata do bicho, e quando afinal cansei de esperar, a tua Hulda estava tão
melhor que podia trotar de novo, embora quase que só sobre três patas. Eu
mesmo fui montado nela até Dotan e coloquei-a numa casa à qual já tive
ensejo de prestar várias vezes diversos serviços, com lucro meu e dela, a
primeira casa do lugar, pertencente a um lavrador, onde a burrinha estará
tão bem como na casa do teu pai, o chamado Israel.
— Deveras? — exclamou José em voz baixa e muito satisfeito. —
Quem havia de crer? Então ela se ergueu e pôde trotar e tu providenciaste
de modo que está em bom lugar?
— Em ótimo lugar— confirmou o outro. — Ela pode dar-se por feliz
que eu a tenha colocado na casa do tal lavrador; a sorte lhe foi benigna.
— Agora entendamo-nos — disse José. — Tua vendeste em Dotan. E o
produto da venda?
— Perguntas pelo produto?
— Claro que pergunto.
— Com ele paguei a mim mesmo os serviços que te prestei como guia e
como guarda.
— Ah! Deveras? Bom. Não quero perguntar quanto foi. E a carga de
bons comestíveis que Hulda levava?
— Será possível que no meio de tantas dificuldades ainda penses
naquelas guloseimas e aches que, em confronto com o resto, são
importantes?
— Não muito, mas o fato é que elas lá estavam.
— Pois também com elas me indenizei.
— A verdade é — ponderou José — que já muito tempo antes tinhas
começado a indenizar-te pelas minhas costas; com estas palavras quero
referir-me a uma certa quantidade de cebola e de fruta cristalizada. Mas vá
lá, que talvez a intenção fosse boa e, assim como assim, quero recordar as
boas qualidades que demonstraste. Fico-te verdadeiramente agradecido por
teres curado Hulda e assegurado sua subsistência, e agradeço também à
fortuna que fez que nos tomássemos a encontrar, com o que fiquei sabendo
estas notícias.
— E agora me toca novamente pôr-te no bom caminho, a ti, balão de
vento, para que chegues à tua meta — disse o homem. — Quanto a saber se
este papel é agradável e se convém ao que o desempenha, sucede amiúde
que uma pessoa pergunta isso a si própria mas inutilmente, porque ninguém
mais propõe semelhante questão.
— Estarás tu outra vez de mau humor — replicou José —, exatamente
como naquela noite, na estrada de Dotan, quando espontaneamente me
ajudaste a procurar meus irmãos e de tão má vontade o fizeste? Pois desta
vez não me censuro de ser-te molesto, porque tu te puseste ao serviço dos
ismaelitas para conduzi-los pelo deserto e eu vou com eles por acaso.
— E a mesma coisa que eu guie a ti ou aos ismaelitas.
— Não vás dizer isso aos ismaelitas, porque eles fazem muita questão
da sua dignidade e soberania, e não gostam que lhes venham dizer que de
certo modo eles viajam somente para que eu chegue lá onde Deus me quer.
O guia calou-se e fincou o queixo no manto. Terá revirado os olhos
como era seu costume? E possível, mas a escuridão impedia de vê-lo.
— E quem é que gosta que lhe digam que é apenas um instrumento? —
perguntou o guia. — E mais ainda quando quem lhe diz isso é um
criançola? De tua parte, jovem escravo Osarsif, isto é uma desfaçatez; por
outro lado, porém, é precisamente o que eu digo, e é sempre a mesma coisa,
podendo muito bem ser que sejam os ismaelitas que aqui se achem por
acaso, e a ti é que eu devia abrir o caminho. Para mim é indiferente. E para
não falar mais no burro, digo-te que nesse meio-tempo tive também de
tomar conta de um poço.
— Um poço?
— Tive sempre de contar com uma tal função, em se tratando dum
poço. Era a caverna mais vazia que já vi; tão vazia não era possível haver
outra, chegando mesmo isso a ser deveras ridículo. Avalia agora a
dignidade e valor da minha incumbência. Aliás, quanto ao tal fosso, era
talvez justamente a circunstância de estar tão vazio o que mais importava.
— A pedra fora retirada?
— Naturalmente. Eu estava sentado nela e sentado continuei, apesar dos
desejos do homem que me queria ver pelas costas.
— Que homem?
— O tal que, na sua estultícia, veio às ocultas até o fosso. Um homem
de uma estatura excepcional, de pernas que pareciam colunas de um templo,
mas com uma voz que não condizia com a sua corpulência.
— Rubem! — exclamou José, e quase se lhe ia a circunspeção.
— Chama-o como quiseres, mas era uma estulta torre humana. Voltou
com a sua corda e a sua túnica diante de um fosso totalmente vazio.
— Queria salvar-me! — reconheceu José.
— E possível — concordou o guia e bocejou feminilmente, levando a
mão à boca com gesto afetado e um leve suspiro. — Ele também fazia o seu
papel — acrescentou depois, falando de modo pouco claro porque afundara
queixo e boca no manto e parecia querer dormir. José ainda o ouviu
murmurar palavras desconexas, de despeito, mais ou menos como estas:
— Não se deve tomar a sério... Puro gracejo e alusão... Criançola...
Espera...
Não foi possível arrancar-lhe palavras mais coerentes; e depois, durante
o resto da viagem pelo deserto, José não mais falou com aquele guia e
guarda.
A FORTALEZA DE ZEL
A ENTRADA NO CHEOL
A CIDADE DO ENFAIXADO
A CHEGADA
E, de fato, viram-se logo cercados por uma turba curiosa que vira os
asiáticos entrar, e, conquanto o acontecimento não fosse raro, nele
encontrava uma distração para o seu trabalho ou mesmo para o seu ócio. Do
harém vinham guardas da Núbia e ancilas, cujas formas feminis, segundo o
costume da região, apareciam claras e evidentes através da ralíssima
cambraia que usavam; servos da casa principal, vestidos, de acordo com o
grau que ocupavam na hierarquia do famulato, de um simples saiote curto
ou ainda de um outro mais comprido sobreposto ao primeiro e de uma
túnica de mangas curtas; gente da cozinha trazendo nas mãos alguma ave
depenada pela metade; moços de cavalariça, artífices vindos da casa da
servidão e jardineiros. Todos se aproximavam, espiavam, tagarelavam,
agachavam-se para observar os artigos, tomavam nas mãos esta ou aquela
peça, informavam-se do preço de troca expresso em pesos de prata e de
cobre. Vieram também dois homenzinhos insignificantes, dois anões, que
pertenciam à famulagem do flabelífero. Nenhum dos dois excedia três pés
de altura; mas eram de modos muito diferentes, porque um não passava de
um bufão e o outro tinha um porte distinto. Foi este o primeiro a vir da casa
principal. Sobre umas perninhas que, em comparação com a parte superior
do corpo, pareciam ainda mais tortas, chegou ele, esforçando-se por manter
um andar desenvolto, conservando-se bem empertigado, de peito para a
frente, olhando cautelosamente ao redor, remando em ritmo rápido com os
seus bracinhos curtos, voltada sempre para trás a palma da mão. Usava um
saiote engomado que na frente lhe pendia num triângulo oblíquo. A cabeça
era grande demais em relação ao corpo, coberta de cabelos curtos que lhe
cresciam sobre a testa e as têmporas, o nariz grosso, imperturbável e até
resoluta a expressão do rosto.
— Es o chefe da caravana? — perguntou o homúnculo, adiantando-se
na direção do velho, que se pusera de cócoras junto das suas mercadorias,
posição que evidentemente agradava ao pigmeu, que assim podia falar com
ele como que de homem para homem. Sua voz cavernosa empregava
principalmente o registro grave. O anão espetava o queixo no peito e metia
o beiço inferior por cima dos dentes. — Quem vos deixou entrar? O
porteiro? Com ordem do superintendente? Então está bem. Podeis ficar e
esperá-lo, conquanto não se saiba quando achará ele tempo para atender-
vos. Trazeis objetos úteis, coisas belas? Ou serão antes quinquilharias sem
grande valor? Ou talvez não. Talvez haja, entre as vossas bugigangas, coisas
de valor, sérias, decorosas, sólidas. Vejo bálsamos, vejo bastões. De um
bastão justamente é que eu estaria necessitando, contanto que fosse de
madeira duríssima e perfeito no seu acabamento. Antes de tudo, tendes
adornos pessoais, correntes, colares, anéis? Eu sou o zelador das roupas e
joias do patrão; superintendo o guarda-roupa. Meu nome é Dudu. Quisera
também proporcionar uma alegria a Zeset, minha mulher, oferecendo-lhe
uma joia ou enfeite qualquer em agradecimento à sua maternidade. Estais
bem providos de coisas destas? Vejo vidro em pasta, vejo bufarinhas. O que
mais me interessa é ouro, âmbar, boas pedras, lazulita, cornalina, cristal de
rocha...
Enquanto o homenzinho falava desta forma, o outro anão vinha pulando
do lado do harém, onde provavelmente andara fazendo suas truanices diante
das damas. Ao que parecia, a notícia do grande acontecimento chegara
atrasada aos seus ouvidos, e ele, com pueril solicitude, se dava pressa em
comparecer; andava com quanta velocidade lhe permitiam suas anafadas
perninhas; de vez em quando interrompia a corrida sobre as duas pernas
para saltar somente sobre um pé, e, enquanto isso, com voz sutil e aguda
gritava arfando num como espasmo de júbilo:
— Que há? Que há? Que coisa acontece no mundo? Um ajuntamento,
um grande tumulto? Que há para ver? Que há para admirar no nosso pário?
Mercadores... talvez homens selvagens? Homens da areia? O anão tem
medo, mas está morto de curiosidade, hop, hop, ei-lo que vem correndo...
Com uma das mãos segurava com força sobre o ombro uma mona cor
de ferrugem que, esticando o pescoço, espiava do seu posto, com olhos
arregalados, vigilantes e medrosos. As vestes desse gnomo eram ridículas,
consistindo numa espécie de traje de gala que parecia ser a sua roupa
habitual, motivo pelo qual as finas pregas do seu saiote, que chegava à
panturrilha com os folhos guarnecidos de franjas, como também a
transparente camisolinha com as mangas igualmente pregueadas, estavam
amarrotadas e descoloridas. Nos pulsos diminutos usava argolas de ouro em
espiral, e em volta do pequeno pescoço trazia uma amarfanhada grinalda de
flores com a qual se entrelaçavam outras grinaldas em derredor dos ombros.
Sobre o castanho chinó de lã todo ondulado, que lhe cobria a cabecinha,
havia um cone de unguentos, feito não de uma gordura perfumada qualquer,
mas apenas de um cilindro de feltro impregnado de perfume. A contrastar
com o outro que viera antes, a cara deste anão era ao mesmo tempo
envelhecida e pueril, cheia de ruguinhas, fazendo lembrar uma mandrágora.
Enquanto Dudu,o encarregado do guarda-roupa, fora cumprimentado
respeitosamente pelos presentes, a chegada do seu companheiro de destino
e irmão no tamanho diminuto foi acolhida com hilaridade.
— Vizir,Vizir — gritavam-lhe (devia ser essa a sua alcunha). — Bes-
em-heb!
Esse era o nome de um burlesco deus anão, importado de fora, e sempre
pronunciado junto com a designação “em festa”, com que se queria aludir
ao eterno traje de gala do palhacinho.
— Queres comprar, Bes-em-heb? Olhem como mete a perna debaixo do
braço. Corre, Chepses-Bes (o que significava “magnífico Bes”, “esplêndido
Bes”)! Corre e compra, mas primeiro toma fôlego! Compra uma sandália,
Vizir, e põe debaixo dela essas perninhas de vitelo; assim terás um leito
sobre o qual poderás esticar-te, mas antes hás de pôr um degrauzinho para
poderes subir.
Assim lhe gritavam; e ao chegar, ele respondia, asmático, com a sua voz
de grilo, que parecia vir de longe:
— Aí vindes com as vossas chalaças, homens de pernas compridas! E
achais ter dado no alvo? O Vizir, porém, tem de bocejar escutando-vos —
huh, huh — porque o vosso espírito o enjoa como o enjoa o mundo em que
um deus o pôs e no qual tudo é feito para gigantes, mercadorias, chalaças,
tempo. Se o mundo fosse feito sobre a medida do Vizir, se fosse criado para
ele, seria também divertido e não era preciso a gente bocejar. Então haveria
aninhos rápidos, horinhas duplas e ágeis velas noturnas. Tique-taque, tique-
taque, o coração se apressaria e o tempo passaria num relâmpago, de
maneira que as gerações dos homens se sucederiam rapidamente. Mal teria
tempo um homem de fazer sobre a terra uma boa brincadeira e já estava
tudo terminado para ele e um outro apareceria no horizonte. Esta vidinha
havia de ser alegre. Mas assim o pigmeu é posto na vastidão e tem de
bocejar. Não quero comprar as vossas grosseiras mercadorias e, quanto ao
vosso chiste desenxabido, nem de graça o levo. Desejo apenas ver as
novidades que trazem esses gigantes que aqui estão no nosso pátio:
forasteiros, homens da miséria, homens da areia, nômades selvagens, com
umas roupas que ninguém usa... ui! — exclamou,interrompendo de
improviso o seu piado sinistro, e a sua cara de gnomo se contraiu de raiva.
Reparara em Dudu, seu companheiro de nanismo, que estava diante do
velho sentado e pedia coisas de valor, gesticulando com os seus bracinhos.
— Ui! — exclamou o chamado Vizir. — Lá está sua excelência, o
compadre. Diabo que me venha atrapalhar o caminho justamente esse tipo,
enquanto eu quero matar a sede de novidades. Como é desagradável! Ei-
lo,já lá está, o senhor do guarda-roupa; tomou-me a dianteira e faz discursos
vagos muito de ouvir-se. Bom dia, senhor Dudu! — piou o anãozinho,
pondo-se ao lado do outro. — Uma boa manhã à vossa grandeza e todos os
obséquios à vossa vigorosa pessoa! E permitido pedir informações sobre a
saúde da sra. Zeset, que vos toma nos braços, e dos vossos excelsos
rebentos Esesi e Ebebi, tão engraçadinhos...?
Dudu voltou com sumo desdém a cabeça na direção dele por cima do
ombro, aparentemente sem se dignar olhá-lo, e fez seus olhos vaguearem
num ponto qualquer no chão, diante dos pés do outro.
— Rato! — disse, meneando a cabeça por cima do Vizir e repuxando o
beiço inferior de modo que o superior ficou sobre aquele como um teto. —
Que estás aí a remexer, a assobiar? Para mim tu não passas de um
caranguejo ou de uma noz vazia dentro da qual só há uma pouco de pó. É
nessa conta que eu te tenho. Como podes pedir informações acerca da
minha mulher Zeset, ocultando na tua pergunta um secreto desprezo, e
como queres notícias dos meus filhos Esesi e Ebebi, que já aspiram a ser
alguma coisa? Essa pergunta é imprópria, porque isso não é da tua conta
nem te fica bem fazê-la, palhaço, fragmento de...
— Vejam só! — replicou aquele a quem haviam chamado “Chepses-
Bes, e a sua carinha se encarquilhou ainda mais. —Tu queres elevar-te
sabe-se lá quanto acima de mim, e de tanta empáfia fazes sair a tua voz
como de uma pipa, porquanto tu mesmo não chegas a olhar por cima de um
ninho de toupeira e não estás à altura da tua ninhada e muito menos daquela
que te empolga com os seus braços. Tu não passas de um anão, és da raça
dos anões, por importante que queiras ser e ainda que repilas como
imprópria a minha pergunta cortês sobre a saúde da tua família, com dizer
que tal não me fica bem. Ah! mas a ti fica bem e adapta-se à tua figura
desempenhar o papel de marido e de pai no meio dos grandes, e casas com
uma mulher bem espigada, renegando a espécie pequena...
A gente do pátio ria alto da altercação dos dois homúnculos, cuja
aversão recíproca parecia ser para todos eles uma habitual fonte de alegria.
Açulavam-nos dizendo”Dá-lhe, Vizir!” “Paga-lhe na mesma moeda, Dudu,
mando de Zeset!” Mas aquele a quem haviam chamado “Bes-em-heb”
deixou de altercar, alheando-se repentinamente da contenda. Estava em pé
diante do odiado companheiro e este estava diante do velho sentado. Mas ao
lado deste último se achava José, de modo que “Bes" se via em frente do
filho de Raquel. Mal enxergou este, calou-se e encarou-o, enquanto a sua
velha carinha de duende, em que pouco antes se via o despeito, tornou-se
serena, tomando ele um ar de investigação e esquecendo-se de si mesmo. A
boca ficou aberta e no lugar onde deviam estar as sobrancelhas (mas não
estavam) a pele se erguera para a testa. Desse modo olhou de alto a baixo o
jovem hebreu, no que foi imitado, lá da posição em que estava acorrentada,
pela macaquinha encarapitada sobre seu ombro. Também ela, esticando
para a frente o pescoço, de olhos vivos e arregalados, fitou de alto a baixo a
cara do descendente de Abraão.
José se divertia com este exame. Sorridente, correspondeu ao olhar do
pigmeu, ficando assim os dois algum tempo, enquanto o austero Dudu
continuava com os seus pedidos ao velho. Já agora a atenção das demais
pessoas que se achavam no pátio se dirigira também aos estrangeiros e às
suas mercadorias.
Finalmente o aborto, com a sua estranha vozinha que parecia vir de
longe, apontando para si mesmo com o dedinho virado para o peito, disse:
— Se’ench-Ven-nofre-Neteruhotpe-em-per-Amun.
— Que dizes? — perguntou José.
O anão repetiu aquelas palavras, continuando a apontar para si mesmo
com o dedo espetado no peito. — Nome! — explicou. — O nome do
pequeno. NãoVizir. Chepses-Bes, não. Se’ench-Ven-nofre... — e sussurrou
pela terceira vez aquela frase. O seu nome inteiro era tão comprido e
magnífico quanto era insignificante a sua pessoa. O sentido era: O Ente
benigno (isto é, Osíris) conserve em vida na casa de Amun o predileto dos
deuses (ou o amado de Deus — o “Teófilo”); e José o entendeu.
— Um belo nome! — disse.
— Belo, sim, mas não verdadeiro — sussurrou de longe o pequeno.
— Eu nem aceito nem caro aos deuses, um simples sapo. Tu aceito, tu
Neteruhotpe, isso, sim, é belo e verdadeiro.
— Como o sabes? — perguntou José a sorrir.
— Ver! — respondeu uma voz que parecia vir de dentro da terra. — Ver
claramente! — e levou os dedinhos aos olhos. — Inteligente —
acrescentou. — Pequeno e inteligente. Tu não da raça dos miúdos,mas
ainda assim inteligente. Bom, belo e inteligente. Pertences àquele ali? — E
mostrou o velho, que estava negociando com Dudu.
— A ele pertenço — confirmou José.
— Desde a infância?
— Para ele nasci.
— Então é ele o teu pai?
— Para mim ele é um pai.
— Como te chamas?
José não respondeu logo, mas à resposta fez preceder um sorriso.
— Osarsif— disse.
O anão semicerrou os olhos. Refletia sobre o nome.
— Nasceste entre os juncos? — perguntou. — És um Usir entre os
caniços? Achou-te na umidade a mãe errante?
José se calou. O liliputiano continuou a piscar.
— Aí vem Mont-kav! — disse alguém entre a gente do pátio. E
começaram todos a escamugir-se, para que aquele que administrava a casa
não os encontrasse ali a papar moscas, longe do trabalho. Quem olhava
entre o harém e a casa dos homens, a parte do pátio que se abria diante dos
edifícios situados no ângulo nordeste daquela herdade, podia vê-lo. Ele
andava e parava. Era um homem já maduro, vestido de branco,
acompanhado de alguns servos escrivães, com penas de cana atrás das
orelhas, que se inclinavam para ele e iam escrevendo suas palavras sobre
tabuazinhas.
Ele se aproximou. A gente do pátio já se fora. O velho se erguera.
Entretanto, no meio desses movimentos, José percebeu a vozinha que,
parecendo vir por baixo do solo, cochichava:
— Fica conosco, homem da areia!
MONT-KAV
O ALTÍSSIMO
Havia um homem que tinha uma vaca rebelde, a qual não queria saber
de canga quando se tratava de arar o campo e sempre a sacudia fora do
pescoço. O homem a separava do bezerro, levando este para o campo que
devia ser arado. Quando a vaca ouvia o mugido do filho, deixava que a
conduzissem onde estava o bezerro e aceitava a canga.
O bezerro está no campo para onde o levou o homem, mas não muge,
conserva-se num silêncio sepulcral, lançando primeiro uma vista d’olhos ao
campo desconhecido que ele considera um campo de morte. E demasiado
cedo, pensa o bezerro, para soltar a voz, mas tem com certeza uma ideia dos
propósitos do homem e dos seus projetos longamente amadurecidos, esse
bezerro Jeosif ou Osarsif Conhecendo o homem, ele conjetura logo e
percebe, embora como num sonho, que o seu transporte para esse campo,
contra o qual houve tanta oposição em casa, não é um fato isolado ou uma
meia medida, mas parte de um plano no qual uma coisa arrasta após si a
outra. O tema do “arrastar após si” e do “fazer seguir” é um daqueles que se
põem musicalmente um defronte do outro na sua alma inteligente e
sonhadora, na qual, como às vezes sucede, o sol e a lua resplandecem ao
mesmo tempo no céu; e ao motivo condutor da lua que, cintilando, abre
caminho dos deuses astrais, seus irmãos, cabe também a sua parte.
Porventura José, o bezerro, em presença dos reluzentes prados do país de
Gosem, não terá tido também, por sua própria iniciativa, ainda que em
harmonia com as deliberações do homem, os seus próprios pensamentos?
Pensamentos prematuros e há muito antecipados, segundo o seu mesmo
juízo, que por ora devem conservar-se mudos. De fato, muitas coisas se
devem realizar antes que aqueles pensamentos, por sua vez, adquiram
exequibilidade, e o arrebatamento só não basta; deve acontecer ainda
alguma outra coisa, à qual se devota a mais tácita expectativa e a mais
secreta confiança filial, alguma coisa, porém, que se realizará de maneira
imprevisível. Tudo isso só o sabe o homem que levou o bezerro ao campo,
sabe-o Deus.
Não, José não se deslembrara do velho que lá na sua casa se finava de
dor. O seu silêncio — silêncio de tantos anos — nunca deve dar causa a que
murmuremos dele, muito menos neste momento, cujos sucessos relatamos
com emoções exatamente iguais às dele, pois que são as dele. Se nós temos
a sensação de já havermos chegado outra vez a este ponto da nossa história
e de já termos contado tudo isto uma outra vez; se a sensação particular de
reconhecimento, de “já visto”, de “já sonhado” nos toca profundamente e
nos convida a entregar-nos a ela, é precisamente esta a mesma experiência
que então enchia o nosso herói — uma concordância que é plenamente
compreensível. Aquilo que nós na nossa língua somos tentados a chamar a
sua ligação com o pai — ligação tanto mais profunda e tanto mais íntima
quanto, graças a uma ampla equiparação e troca, era a um tempo ligação
com Deus — estava em particular vigor nesse momento, pois, na verdade,
como podia ser de outra maneira se ela subsistia nele, com ele e fora dele?
O que agora estava acontecendo na sua vida era imitação e sucessão; com
ligeiras diferenças, seu pai antes dele experimentara o mesmo. E é coisa
cheia de mistério ver como no fenômeno da sucessão a intenção volitiva se
mistura com a direção vinda do ano, de modo que já não há distinguir quem
é verdadeiramente aquele que imita e visa a repetir coisas já vividas: a
pessoa ou o destino. O interior se espelha no exterior e se materializa,
aparentemente sem o querer, no fato de que já antes de agora esteve sempre
unido na pessoa e foi uma coisa só com ela. Com efeito, nós caminhamos
nas pegadas dos que nos precederam e toda a vida é um presente modelado
em formas místicas.
José jogava com vários gêneros de sucessão e com modificações de si
próprio piamente deslumbrantes, com as quais sabia causar impressão e por
meio das quais sabia ganhar ao menos momentaneamente os homens. O
que, porém, agora o dominava e ocupava inteiramente era a volta do ser
paterno e a sua ressurreição nele: ele era Jacó, o pai, que entrara no reino de
Labão, arrebatado para o mundo dos ínferos, tendo-se tomado impossível
sua permanência em casa, fugindo diante do ódio dos irmãos, diante do
ardor intolerável do Vermelho a quem havia sido roubada a bênção e o
direito de primogenitura. Décupla foi desta vez a mutação de Esaú, tendo
também Labão um outro aspecto neste presente: sobre rodas de que
chispavam fogos de artificio e trajando hábitos régios viera ele, Putifar, o
domador de cavalos, gordo, imenso e tão temerário que receavam pela sua
existência. Mas era ele, Labão, pouco importando que para a mesma coisa a
vida achasse formas sempre novas e variadas. Ainda uma vez, como o
passado já o predissera, o descendente de Abraão era estrangeiro num país
que não lhe pertencia, e José serviria a Labão que, na volta, tinha um nome
egípcio e pomposamente se intitulava “Dom do Sol". Quanto tempo,
portanto, o servirá?
Fizemos essa pergunta para o presente de Jacó e a ela respondemos
segundo a razão. Agora repetimos a pergunta no caso do filho, resolvidos,
também desta vez, a retificar tudo definitivamente e a reforçar no real
aquilo que foi sonhado. Na história de José a questão do tempo e da idade
foi sempre tratada com descuido no campo da realidade. A fantasia
superficialmente sonhadora atribui à sua figura aquela imutabilidade e
aquela integridade temporal que ela adquiria aos olhos de Jacó, visto como
este acreditava que o filho estava morto e dilacerado, quando a morte e só
ela confere essa imutabilidade. Mas o jovenzinho, que, na opinião do pai,
estava morto, vivia ainda, os seus anos cresciam, e agora é preciso que a
gente se convença de que José diante de cujo sólio se acharam um dia e se
inclinaram os irmãos necessitados era um homem de quarenta anos, e de
que não só o cargo, o grau e o traje mas também as mudanças produzidas
pelo tempo na sua pessoa o tomavam irreconhecível aos olhos dos
suplicantes.
Vinte e três anos haviam decorrido desde que os irmãos, aqueles que
nesta nossa figuração representam Esaú, o tinham vendido no Egito, quase
tantos quantos, em conjunto, Jacó passara na terra de onde não há retorno. E
o mesmo nome podia ainda com mais justiça ser dado à terra onde agora o
descendente de Abraão era estrangeiro, porquanto José não ficou lá
quatorze, seis e cinco anos, ou sete, treze e cinco, mas toda a sua vida, e só
na morte tornou à casa. Completamente obscuro é todavia e coisa que
pouco se considera como se distribuem os seus anos passados no mundo
dos ínferos entre as duas épocas da sua vida abençoada, que, no entanto, se
distinguem tão claramente uma da outra, isto é, entre os primeiros anos
decisivos, os da sua estada na casa de Putifar, e os anos do fosso em que foi
de novo atirado.
Juntos, os dois períodos perfazem treze anos, tantos quantos gastou Jacó
a enfileirar os seus doze filhos mesopotâmicos; isto, na suposição de que
José tinha trinta anos quando foi elevado e ele se tornou o primeiro entre os
inferiores. Entenda-se que não se acha escrito em nenhum lugar que ele
ponha então tantos anos, ou pelo menos não se acha escrito no lugar onde,
para constituir um dado seguro, deveria achar-se. No entanto, é um fato
universalmente aceito, um axioma que não necessita demonstração, mas
que fala por si e que quase, como acontece com o sol, se gera a si mesmo
com a própria mãe, com pretensão clara a um simples “assim é realmente”.
Porque é sempre assim. Trinta anos constituem a idade justa para subir o
degrau da vida que José então subiu; aos trinta anos sai-se da obscuridade e
do deserto da época de preparação para entrar na vida ativa; é o momento
em que uma pessoa se torna visível, o instante da realização completa.
Portanto, da entrada do rapaz de dezessete anos na terra do Egito até o dia
em que ele compareceu perante Faraó, decorreram treze anos. Isto é certo.
Mas, desses treze anos, quantos pertencem ao período passado na casa de
Putifar e quantos, por conseguinte, ao período passado no fosso? A tradição
assente deixa em dúvida o ponto. Tudo o que dela se pode colher, para
esclarecer as relações de tempo da nossa história, se reduz a frases que a
bem pouco levam. Em que ficamos então? Qual havemos de concluir que é
a verdadeira divisão do tempo?
A pergunta parece inepta. Conhecemos a nossa história ou não a
conhecemos? É necessário e corresponde à natureza da narração que o
narrador calcule as datas e os fatos de acordo com algumas reflexões e
deduções? Deve o narrador ser alguma coisa mais que uma fonte anônima
da história narrada ou, ainda melhor, que a si própria se narra, na qual tudo
se toma por si mesmo, assim e não diferentemente, indubitável e certo? Dir-
se-á que o narrador deve ser na história uma coisa só com ela e não fora
dela, descobrindo-a com o cálculo e demonstrando-a. Mas então que é do
Deus que Abraão imaginou e reconheceu? Ele está no fogo, mas não é o
fogo. Ele está, portanto, ao mesmo tempo nele e fora dele. A falar verdade,
ser uma coisa e observá-la não é o mesmo. Ou então há planos e esferas em
que uma e outra coisa se realizam a um tempo: o narrador está, sim, na
história, mas não é a história; ele é o espaço dela, mas ela não é o espaço
dele, senão que ele está também fora dela, e com uma mudança da sua
natureza fica em condições de examiná-la. Nunca foi intuito nosso despertar
a ilusão de que nós somos a primeira fonte da história de José. Ela
aconteceu antes que eu pudesse contá-la, brotou do primeiro manancial de
que brota tudo aquilo que aconteceu, e, acontecendo, contou-se a si mesma.
Daí para cá ela corre mundo. Todos a conhecem ou julgam conhecê-la,
porque muitas vezes o conhecimento é irreal, casual e desconexo. Tem sido
contada centenas de vezes, em centenas de meios diferentes. Aqui e hoje ela
passa através de um meio no qual adquire como que um conhecimento de si
mesma e se recorda como certa vez ela era exatamente e realmente, de
modo que ela ao mesmo tempo brota e se explica.
Ela explica, por exemplo, como se distribuíram os treze anos decorridos
entre a venda de José e a sua elevação. No entanto, isto é certo: que também
o José que foi encerrado no cárcere não era, havia muito, o rapaz que os
ismaelitas tinham levado diante da casa de Petepré, e que a mor parte
daqueles treze anos ele a passou naquela casa. Poderíamos definitivamente
assentar que foi assim, mas com prazer consentimos em perguntar como
poderia aquilo passar-se diferentemente. Observado do ponto de vista da
sociedade José era um zero perfeito quando, com dezesseis ou dezoito anos
apenas, penetrou na casa do egípcio, e à carreira que o jovem fez na casa
deste pertence o tempo que ele realmente passou ali. “Putifar” não colocou,
logo no segundo ou no terceiro dia, o escravo chabirita à frente de toda a
sua propriedade, deixando-a nas mãos de José. Foi necessário algum tempo
antes de repararem nele Putifar e outras pessoas, decisivas para o êxito
deste importante episódio da sua vida. Mas, além disso, aquela carreira,
rapidamente ascendente na economia e na administração, devia por força
durar anos e anos para tomar-se a escola preparatória tal como fora
imaginada, isto é, o cargo de mordomo em proporções mais respeitáveis,
que àquela se seguiu.
Numa palavra: José ficou dez anos em casa de Putifar, alcançando os
vinte e sete de sua idade e tomando-se um “homem” hebreu, consoante foi
dito a respeito dele, cabendo-lhe também em certas partes e de quando em
quando a designação de “servo hebreu”, denominação aliás errônea ou
exagerada, porque, na ocasião, ele já há muito deixara de ser um “servo”.
Não é possível distinguir nem fixar com exatidão o ponto em que ele, pela
sua posição e pela consideração de que gozava, cessou de sê-lo. Não é
possível fazê-lo hoje, como não o era antes. No fundo e sob o aspecto
puramente jurídico, José permaneceu sempre um escravo, permaneceu tal,
ainda ocupando o elevado cargo que ocupou, e tal até o fim da vida. Lê-se
mesmo que foi vendido uma e outra vez, mas da sua libertação ou do seu
resgate não há notícia. A sua extraordinária carreira passou silenciosamente
por cima do fato jurídico da sua escravidão, e depois da sua rápida ascensão
ninguém mais se ocupou da sua condição de servo. Mas mesmo na casa de
Petepré ele não permaneceu por muito tempo um servo no baixo sentido da
palavra, e para a sua bendita ascensão ao grau de Eliézer, isto é, ao cargo de
mordomo, não foram necessários todos os anos da sua permanência com
Putifar. Bastaram sete anos — eis aí uma certeza. Outra certeza é que só o
resto do decênio fora dominado e ofuscado pelas complicações oriundas
dos sentimentos de uma mulher infeliz e que conduziram ao termo desse
período. A tradição nos indica, ao menos com uma fixação aproximativa e
geral do tempo, que essas complicações não começaram logo ou pouco
depois da entrada de José na casa, nem coincidiram com a sua ascensão,
senão que tiveram início somente depois que ele atingira a sua alta posição.
Foi dito que tiveram começo “depois desta história”, isto é, depois da
história da conquista da suprema confiança por parte de José, de maneira
que é lícito supor-se que aquela funesta paixão durou só três anos (bastante
para os interessados!) até seu desfecho catastrófico.
O resultado desta prova da história supera mesmo a contraprova. Se,
fiando-nos nesse resultado, contarmos para o episódio de Putifar dez anos
da vida de José, ao período seguinte, o do cárcere, tocam três. Nem mais
nem menos. E, na realidade, raramente a verdade e a verossimilhança
coincidiram de modo mais persuasivo do que neste fato. Que coisa poderia
ser mais plausível e mais justa do que a verificação de que José, assim
como passou três dias na tumba de Dotan, assim também teve de apodrecer
na prisão três longos anos, nem mais nem menos? Pode-se mesmo ir ao
ponto de afirmar que ele próprio, desde o princípio, o havia suposto, ou
antes, sabido, e que, depois de tudo aquilo que considerava conforme à
ordem, cheia de significado e justa, estava convencido de que não era
possível outra coisa... confirmado nisto por um destino que tomava um
rumo absolutamente inevitável.
Três anos: não basta que tenha sido assim; não podia sequer ser de outra
maneira. E, com uma divisão de tempo extraordinariamente rigorosa, a
tradição fixa mais minuciosamente como se repartiram estes três anos. Tem
ela como coisa certa que os célebres incidentes de José com o padeiro-mor
e o copeiro-mor, seus nobres companheiros de cárcere, a quem ele devia
servir, se verificaram no primeiro ano. Acrescenta-se logo que “dois anos
depois” Faraó teve sonhos que José lhe explicou. Dois anos depois de quê?
A questão podia ser controvertida. Com isto talvez se quisesse dizer: dois
anos depois que Faraó exatamente se tomara Faraó, isto é, depois da
ascensão ao trono daquele Faraó que teve os sonhos enigmáticos. Ou pode
também significar dois anos depois que José interpretara os sonhos
daqueles dois indivíduos e que o padeiro-mor, como sabemos, fora
justiçado. Esta discussão, porém, seria inútil, porque tanto num como
noutro caso tudo combina. Sim. Dois anos depois dos incidentes com os
cortesãos acusados, Faraó teve os seus sonhos e teve-os, ao mesmo tempo,
dois anos depois que se tomara Faraó, porque, durante a prisão de José e
precisamente no fim do primeiro ano, aconteceu que Amenhotep III se uniu
ao sol e seu filho, o sonhador, pôs sobre a cabeça a dupla coroa.
Vê-se agora que naquela história nada é falso, que tudo combina com os
dez e três anos, depois dos quais José atingiu os trinta, e que tudo em forma
pura e exata se desenvolve harmonicamente em verdade e justeza.
Não foi sem motivo que referimos aqui, palavra por palavra, tal como se
desenrolou, em todas as suas voltas e rodeios, esse diálogo de que não há
notícia em nenhum outro livro. É que foi ele o ponto de partida da famosa
carreira de José na casa de Putifar. Foi esse encontro que sugeriu ao egípcio
fazer dele o seu servo particular e em seguida colocá-lo à testa de todas as
suas propriedades, deixando-as nas mãos dele. Como um animal veloz, a
narração desse colóquio nos transportou bem ao meio dos sete anos que
conduziram o filho de Jacó a uma nova elevação da vida, antes de se
despenhar num novo precipício mortal. No exame a que foi submetido, José
demonstrou compreender que coisa lhe cumpria fazer na penosa casa de
bênção à qual fora vendido: a necessidade de uma mútua tolerância, muito
jeito e serviço prestado com muita lisonja a fim de manter a oca dignidade
da casa. E não somente compreendeu tudo isto, mas demonstrou também
estar em condições de executar o que fosse preciso, melhor e com mais
perícia do que qualquer outra pessoa.
Tal tinha sido especialmente a experiência de Mont-kav, o qual se sentiu
visivelmente suplantado, pela incrível habilidade de José, nos seus leais
desvelos pela saúde da alma do seu nobre amo. Queremos expressamente
acrescentar, em homenagem ao bom coração do administrador e para
mostrar a diferença entre amor e lisonja, que ele não sentia com isso
nenhum travo de inveja, mas somente júbilo. Na verdade, não era
absolutamente necessária uma ordem do senhor para induzir o
superintendente, depois da cena do bosquete, a tirar imediatamente o jovem
escravo da obscuridade do mais baixo grau da escravidão para lhe abrir
melhores possibilidades de dar boa cópia de si. Já sabemos há muito que o
que até então o detinha não era outra coisa senão uma timorata vergonha
dos pensamentos que lhe povoaram o espírito ao ver pela primeira vez o
portador de rolos — pensamentos parecidos com os que tivera Putifar no
seu colóquio com o jovem jardineiro.
Por esse motivo, mal despontara o sol do dia seguinte, e logo depois de
ter José, após a parca refeição da manhã, empreendido o seu serviço às
ordens de Chun-Anup como ajudante do vento, Mont-kav mandou chamar o
hebreu e lhe anunciou radicais mudanças no seu emprego. Achou que devia
acrescentar que essas mudanças já vinham tarde e de certo modo culpou
José do atraso. Como são os homens e como acham que se devam torcer as
coisas! Mostrou-se áspero com ele, comunicando a boa sorte do seu
subordinado sob a forma estranha de uma censura, como se José fosse, com
os seus atos, responsável por uma situação já insustentável.
Recebeu-o na parte do pátio entre a casa dos servos, a cozinha e o
harém, próximo à cavalariça.
— Até que afinal — disse ao jovem que o saudava. — Ainda bem que
apareces ao menos quando te chamam. Achas que é possível continuar
sempre assim, e que podes vaguear entre as árvores até o fim dos dias?
Andas errado, deixa que to diga. Agora tangeremos outras cordas do alaúde
e vai terminar a indolência. Sem mais aquela, vais passar para o serviço
interno. Tens de servir os senhores na sala de jantar, apresentas os pratos e
ficas atrás da cadeira do amigo de Faraó. Ninguém te vai perguntar se isso é
do teu agrado. Tens perdido bastante tempo fazendo asneiras e subtraindo-te
a mais altos deveres. Em que estado estás? Pele e roupa cobertas de cascas
de árvores e de pó do jardim! Vai limpar-te. Lá em cima pede o saiote de
prata dos criados de mesa e depois com os jardineiros arranjarás uma bela
coroa para os cabelos. Ou achas que poderias apresentar-te de outra maneira
ficando atrás da cadeira de Petepré?
— Nunca me passou pela mente ocupar tal posto — respondeu José,
calmo.
— As coisas não andam de acordo com o teu pensamento. Prepara-te
mais para o seguinte: finda a refeição, vais ler alguma coisa para o senhor
antes que ele adormeça. E na sala hipóstila do norte, onde sempre corre uma
aragem. Será uma prova. Serás capaz de fazer isso de modo tolerável?
— Thot há de ajudar-me — ousou responder José, fiado na indulgência
daquele que o arrebatara e depois o trouxera para o Egito e seguindo o
ditado “cada terra com seu uso”. — Mas quem até agora foi admitido a ler
diante do senhor? — acrescentou.
— Quem foi? Foi Amenemuje, o aluno da casa dos livros. Por que
perguntas?
— Por amor do Oculto eu não quereria sobrepujar ninguém — disse
José —, não quereria violar as fronteiras de ninguém, roubando-lhe o cargo
que é a sua honra.
Mont-kav ficou agradavelmente impressionado com esse inesperado
escrúpulo. Desde o dia anterior — e talvez antes — viera-lhe a ideia de que
a capacidade e vocação daquele jovem para desbancar os outros das suas
ocupações na casa iam mais longe do que talvez ele próprio suspeitasse,
mais longe ainda que o cargo e a pessoa de Amenemuje, o leitor. Assim,
gostou da delicadeza de José, tanto mais que pertencia à classe de homens
de índole parecida com a de Rubem, que encontram a sua felicidade e a
dignidade da sua alma em ser retos e justos; em outras palavras, daqueles
homens que, ainda quando se trata da própria abdicação, unem alegremente
os seus projetos aos de potências superiores. A essa alegria, a essa
dignidade aspirava Mont-kav por natureza, talvez porque não gozava muita
saúde e frequentemente passava mal dos rins. Apesar disto, repetimo-lo, a
preocupação de José foi-lhe agradável. Eis o que disse:
— Estás cheio de escrúpulos nas tuas relações com os homens. Deixa a
Amenemuje e a mim o cuidado de zelar pelo seu emprego. Além de que
esses escrúpulos são da mesma categoria que a indiscrição. Ouviste a
ordem.
— E ordem do augustíssimo senhor?
— O que o superintendente ordena, ordenado está, e que coisa te
mandei fazer neste momento?
— Que eu fosse proceder ao asseio da minha pessoa.
— Então vai-te!
José se inclinou e retirou-se aos recuos.
— Osarsif! — chamou o mordomo com voz mais branda, e José se
aproximou de novo.
Mont-kav pôs a mão sobre seu ombro.
— Amas o senhor? — perguntou-lhe, e os seus olhinhos de volumosas
bolsas se fixaram na cara do jovem com expressão penetrante e
melancólica, como a sondá-lo.
Pergunta estranhamente comovedora, cheia de recordações, familiar a
José desde a sua primeira infância! Isso mesmo lhe perguntara Jacó quando
atraía a si o predileto e o colocava entre os seus joelhos e tom a mesma
melancólica indagação os seus olhos castanhos com as glândulas levemente
intumescidas se cravavam no rostinho do menino. Instintivamente o
vendido respondeu com a fórmula adequada a tais casos e que, nem por ser
convencional, perdia sua íntima significação:
— Com toda a minha alma, com todo o meu coração, com toda a minha
mente.
O mordomo baixou a cabeça, satisfeito, como outrora fizera Jacó.
— Assim está bem — disse. — Ele é bom e grande. Ontem no jardim
das tâmaras falaste diante dele com muita graça, como nem toda gente o
faria. Vi perfeitamente que sabes dizer muito mais que “boa noite”.
Escaparam-te alguns erros, como o de chamar virginal um nascimento só
porque se deu sob o signo da Virgem; mas isto se pode desculpar à tua
pouca idade. Os deuses te deram pensamentos finos e te desembaraçaram a
língua para exprimi-los, de modo que eles se adaptam e se dobram como
numa dança de roda. O senhor gostou e tu deves ficar atrás da sua cadeira.
Mas vais ficar também comigo, como meu aprendiz e discípulo nos meus
giros pela casa, para te familiarizares com as suas dependências no pátio e
nos campos e para que conheças toda a propriedade e faças uma ideia geral
do que nela há, de maneira que com o tempo possas tomar-te meu auxiliar,
porque eu tenho muitos dissabores no mundo e amiúde não me sinto bem.
Estás contente?
— Se realmente não afasto ninguém do seu lugar atrás da cadeira do
senhor e da tua companhia — disse José —, decerto que estou contente e
cheio de gratidão, conquanto não deixe de titubear um pouco. Porque, para
confessá-lo aqui em segredo, quem sou eu e que coisa sei? Meu pai, o rei
dos rebanhos, me ensinou, é verdade, a escrever e a falar; a não ser isso,
porém, eu não sabia fazer outra coisa senão ungir-me com óleo de alegria,
não conheço nenhum oficio, nem o de sapateiro, nem o de colador de
papéis, nem o de oleiro. Como animar-me, pois, a andar no meio daqueles
que estão sentados exercendo o seu ofício, quem fazendo uma coisa, quem
outra? Como me atreverei a assumir a responsabilidade de ver e fiscalizar?
— Acreditas que eu saiba o ofício de sapateiro e de colador de papéis?
— respondeu Mont-kav. — Não sei fazer nem vasos, nem cadeiras, nem
ataúdes. Não é necessário que eu saiba, ninguém exige isso de mim, muito
menos aqueles que sabem fazer essas coisas. Porque a minha origem é
diferente da deles e outro o meu jaez; eu possuo um espírito universal e por
isso fui feito superintendente. Os operários nas suas oficinas não te vão
perguntar o que sabes, senão quem és, porque a isto está unida uma outra
força bem diversa, destinada exatamente à vigilância e fiscalização. Aquele
que, como tu, sabe falar diante do senhor, tendo arte de, com belas palavras,
exprimir pensamentos delicados, não deve ficar sentado e com a cabeça
curvada sobre um objeto único, mas deve caminhar ao meu lado entre os
trabalhadores. Pois na palavra e não na mão está o comando e o descortino.
Tens alguma objeção, alguma crítica que apresentar contra esse meu modo
de ver?
— Não, não, ó grande mordomo, estou de acordo contigo e cheio de
gratidão.
— E esta, Osarsif, a palavra que convém! E tal palavra deve existir
entre mim e ti, entre o velho e o moço, a saber — que queremos estar de
acordo no serviço e no amor ao patrão, a Petepré, o nobre, o comandante
das tropas de Faraó. Por amor do seu serviço vamos fazer um com o outro
um pacto que havemos de observar, cada qual até o seu fim, de sorte que
nem ainda a morte do mais velho há de desfazer esse pacto e o sobrevivente
deverá conservá-lo vivo para lá do túmulo, tal qual o filho e sucessor que
protege e justifica seu pai, protegendo e justificando o nobre senhor em
aliança com p morto. Compreendes o alcance disto e será que isto te
agrada? Ou te parecerá fantástico e extravagante?
— Nada disso, meu pai e superintendente — respondeu José. — As tuas
palavras correspondem plenamente aos meus sentimentos e ao meu espírito,
porquanto há muito tempo eu entendo esse pacto que se faz com o senhor e
também entre os seus empregados para o serviço de amor para com ele; e
não sei que coisa me poderia ser mais fácil e menos extravagante diante de
meus olhos. Pela cabeça de meu pai e pela vida de Faraó, eu sou teu.
Aquele que o tinha comprado conservava ainda uma mão sobre o seu
ombro e com a outra tomou a mão de José.
— Bem, Osarsif, bem — disse. — Agora vai pôr-te asseado para o
serviço particular e para a leitura diante do senhor. E quando ele dispensar
os teus préstimos, vem ter comigo para que eu te introduza na economia
doméstica e te ensine a abarcar tudo com a vista.
5
O ABENÇOADO
BEKNECHONS
Não mais visível aos olhos paternos, mas intensamente vivo no seu
lugar e em si mesmo, José olhava e movia-se no mundo egípcio, vendo-se
posto muito rapidamente diante de grandes tarefas; e enquanto, na primeira
fase da sua vida, não conhecera deveres nem esforços mas procedera como
lhe dava na cabeça, estava agora ativamente atarefado em alçar-se à altura
dos planos divinos, com a cabeça cheia de números, coisas, valores e
negócios. Além disso, via-se envolvido numa rede de problemas de
delicadas relações humanas que era necessário atender com incessante
cuidado. Os fios dessa rede se estendiam a Putifar, ao bom Mont-kav, aos
anões da casa, a Deus sabe que outras pessoas mais, dentro da casa e fora
dela, todos seres vivos dos quais não se tinha ideia na sua antiga morada,
onde estavam seu pai e seus irmãos.
Essa morada estava muito distante, a uma distância muito maior do que
a que se percorre em dezessete dias, mais distante do que estivera Jacó de
Isaac e Rebeca quando aquele vivia e se movia na luz mesopotâmica. Então
nem mesmo eles podiam fazer qualquer ideia dos seres vivos e dos
problemas de relações entre os quais vivia o filho e este se fizera estranho à
sua vida cotidiana. O mundo de um homem é onde ele vive: um apertado
círculo de vida, trabalho e ação. O resto é uma coisa vaga, uma névoa. Tem
sido constante aspiração dos mortais deslocar o centro da sua vida, fazer
descer até a névoa o centro usual e olhar as coisas numa luz diferente. Entre
eles era forte também o instinto que tinha Neftali de entrar na névoa e
contar as coisas de cá aos moradores de lá, os quais sabiam somente das
suas próprias coisas, e em compensação trazer para casa, com a nova luz,
algo digno de saber-se. Numa palavra, havia o tráfico, a troca. Tudo isto
existia já há muito tempo, existiu sempre, ainda entre as remotas moradas
de Jacó de uma parte e as de Putifar de outra. O próprio primeiro emigrante
já estava habituado a trocar o seu horizonte, estivera no país da lama,
embora não tão longe como José agora, e a sua irmã-esposa, a bisavó de
José, tinha até pertencido durante algum tempo ao serralho de Faraó, que
então ainda não brilhava em Vese, mas muito acima, próximo à esfera de
Jacó, no seu horizonte. Entre essa esfera e a que agora cercava José tinha
havido sempre relações. Com efeito, não havia o moreno e o belo Ismael
tomado para mulher uma filha da lama? Não deviam sua existência a esse
conúbio misto os ismaelitas que eram meio egípcios e tinham sido
chamados e escolhidos para conduzir José aonde ele agora estava? Como
eles, muito outros comerciavam de um lado e de outro entre os rios,
emissários giravam pelo mundo já desde milênios levando nas dobras de
suas vestes umas mensagens gravadas em ladrilhos. Mas se este costume à
Neftali existia já então, como se tornou usual e espalhado e como se
desenvolvera agora nos tempos de José, nos quais o pais da sua segunda
vida e do seu arrebatamento era já declaradamente um país dos netos! Já
não era pudicamente ensimesmado, já não eta devoto como o queria Amun,
mas afeito ao mundo, alegremente mundano e já de costumes tão relaxados
que, para um rapaz asiático apanhado na estrada, era necessária uma certa
astúcia no dar a boa-noite e na arte de fazer dois de zero, para chegar a ser o
servo particular de um grande egípcio e muitas outras coisas mais!
Entre o lugar onde estava Jacó e o em que estava o seu predileto, não
faltavam possibilidades de comunicações. Delas competia a José servir-se,
pois que ele sabia perfeitamente onde seu pai estava. Também lhe seria fácil
pôr-se em contato com o ancião, porque, na sua qualidade de braço direito
do mordomo e versado como estava na supervigilância universal, abarcava
com o olhar também as ocasiões favoráveis para mandar notícias. Mas ele
não o fez, não o fez durante muitos anos, por motivos que há muito já nos
são conhecidos e dos quais não resta quase nenhum quando se resumem
todos numa só palavra: a espera. O bezerro não mugiu, guardou silêncio de
morte, não deu a saber à vaca para que campo o homem o tinha levado;
indubitavelmente com o consentimento do homem, o bezerro supunha
também existente nela a espera, por gravosa que esta lhe devia ser,
porquanto por necessidade a vaca considerava como morto e despedaçado o
seu bezerro.
É estranho e de certo modo embaraçoso pensar que o velho Jacó, lá
detrás de sua névoa, durante todo aquele tempo tivesse o filho como morto.
Embaraçoso, porque por um lado a gente quase se sente alegre vendo-o
embalado por essa ilusão e por outro lado a gente se aflige por causa dessa
mesma ilusão. A morte da pessoa amada tem também, como é notório, suas
vantagens para aquele que ama, ainda que estas sejam de natureza vazia e
desolada; e assim, se bem se consideram as coisas, podemos sentir uma
dupla compaixão pelo velho: primeiro porque considerava José morto,
segundo porque este não o estava! Com imensa aflição mas também para
consolo seu, o coração paterno se embalava na certeza de que José estava
morto. Imaginava-o guardado e defendido na morte, imutável, invulnerável,
não mais precisado de auxílio, eternamente o rapaz de dezessete primaveras
que partira montado na branca Hulda. Era isso um erro absoluto, não só
quanto à aflição como especialmente pelo que diz respeito à certeza de
consolo que pouco a pouco ia levando a melhor. É que nesse meio-tempo
José estava vivo e exposto a todas as vicissitudes da vida. Raptado, ele não
tinha sido entretanto privado do tempo e não ficou sempre o rapaz de
dezessete anos, mas cresceu e amadureceu no seu posto, chegando aos
dezenove, aos vinte e aos vinte e um anos; era sempre José, porém já o pai
não o reconheceria bem à primeira vista. A matéria da sua vida mudava
enquanto ele conservava a bela marca da sua forma; José amadureceu, ficou
um pouco maior e mais sólido, cada vez menos rapaz, cada vez mais
homem. Quando decorrerem mais alguns anos e da matéria daquele José
que, na despedida, Jacó abraçou pensando abraçar Rebeca, não ficará mais
nada ou só muito pouco, como se a morte houvesse desmanchado a sua
carne. Apenas, não tendo sido a morte que o mudara, mas a vida, a forma de
José ficou de certo modo conservada. Ficou conservada menos fielmente,
menos exatamente do que o teria conservado em espírito a morte que tudo
guarda, menos do que o que ela realmente fez por ilusão no espírito de Jacó.
Dá, porém, bastante que pensar o fato de que, com relação à matéria e à
forma, a questão de se saber se é a morte que apaga uma imagem de nossos
olhos ou se é a vida, não tenha uma diferença tão marcada como o homem
quisera imaginar.
Quanto à matéria com que José recebeu a sua forma no mudar e entre as
mudanças do amadurecer, é necessário acrescentar que sua vida extraiu essa
matéria de uma esfera bem diferente daquela da qual o mancebo a teria
extraído sob os olhos de Jacó, sendo com isso atingida também a marca da
forma. Ele se alimentava com o ar e com os sucos do Egito, contia as
comidas de Keme; a água do país saturava e ingurgitava as células do seu
corpo, que era também banhado pelos raios do sol egípcio; vestia-se com o
pano feito do linho do país,caminhava sobre o seu solo que nele
manifestava as suas forças antigas, que lhe inspirava os seus tácitos sentidos
da forma; dia a dia ele bebia com os olhos as conformações, obras da mão
do homem, das realizações e expressões desse sentimento fundamental
tacitamente resoluto que tudo abrangia; e falava o idioma do país, que dava
à sua língua, aos seus lábios, às suas maxilas outra posição, diversa da que
até então tivera, de sorte que, dentro em pouco, Jacó lhe teria dito”Damu,
meu pimpolho, que aconteceu com a tua boca? Eu não a reconheço mais.”
Em breve José se tornava a olhos vistos egípcio na fisionomia e nos
gestos, e isto acontecia rápida, fácil e inadvertidamente, pois que ele era de
um espírito e de uma matéria dúctil e mundana e era ainda muito jovem e
tenro quando chegou ao Egito. A adaptação da sua pessoa ao estilo do país
se executou com tanto maior vontade e com tanto maior comodidade
quanto, em primeiro lugar, sob o aspecto físico, o seu exterior, sabe Deus
como, tinha sempre mostrado uma certa aproximação do exterior egípcio,
com os membros flexíveis, os ombros horizontais; e em segundo lugar,
considerado do lado espiritual, porque a sua posição como estrangeiro que
se insinuava entre “os filhos do país” vivendo com eles não lhe era nova
mas sim familiar desde ps tempo antigos e correspondente à sua tradição.
Também no seu país ele e os seus, a gente de Abraão, tinham sempre
morado como “gerim” e hóspedes entre os filhos do país, aí se haviam
adaptado, unido e estabelecido há muito tempo, mas sempre com uma
intima reserva, olhando sempre objetivamente e de través os abomináveis e
cômodos costumes caros a Baal, vigentes entre os verdadeiros filhos de
Canaã. Tal era também a situação de José no Egito; e a reservada sua
mundanidade e a sua adaptação andavam comodamente e a passo igual,
pois que aquele Eloim que agora lhe facilitava essa adaptação e lhe tirava o
espinho da infidelidade para com Ele era o mesmo que o havia levado para
aquele país, podendo José contar com a sua dispensa e a sua
condescendência se se portava inteiramente à moda egípcia e se
externamente se tomara filho de Ápis e súdito de Faraó, sempre feita de
antemão, bem entendido, a tácita reserva. A sua mundanidade era portanto
uma coisa completamente à parte; sem dúvida era graças a ela que José,
adaptando-se prazerosamente, se mesclava com a gente do Egito e podia
mostrar-se afeiçoado à sua bela civilização; mas tacitamente e de outro
modo eram eles, os egípcios, os mundanos que ele olhava de lado e com
benévola indulgência, na ironia espiritual do seu sangue contra os graciosos
horrores dos seus costumes populares.
O ano egípcio o agarrava e o conduzia consigo numa excursão com os
altos e baixos da sua natureza e com o ciclo corrente das suas festas, cujo
início podia ser considerado este ou aquele dia; a festa do ano novo no
princípio da inundação, dia incrivelmente rico de alvoroços e esperanças —
fatalmente importante, de resto, também para José, como em seguida se
verá —, ou a data da ascensão de Faraó ao trono, na qual se renovavam
cada ano todas as fagueiras esperanças do povo, acalentadas já no primeiro
dia que fora realmente o princípio do novo reinado e da nova era: a
esperança de que o direito expulsaria a injustiça e de que todos viveriam
risonhos e admirados; ou era alguma outra solenidade comemorativa, algum
outro dia de festa, porquanto o rido se renovava sempre.
José entrara em contato com a natureza do Egito na época em que
baixavam as águas do rio, quando a terra reaparecia e se havia feito a
semeadura. Fora vendido nessa época e daí por diante a sua vida se
desenrolou no ano e com o ano. Veio o tempo da colheita que, conforme o
nome, durava até o ardente estio e até as semanas que colocamos debaixo
do vocábulo junho, quando o rio minguado começava, com devoto júbilo de
todo o povo, a subir e lentamente ia transbordando, observado e medido
com toda a exatidão pelos empregados de Faraó, porque era de suma
importância que o rio chegasse no momento exato; não demasiado indômito
nem frouxo demais, pois disso dependia se os filhos de Keme iam ter que
comer e se seria um bom ano de impostos, de modo que Faraó pudesse
construir. Seis semanas subia o rio, nutridor, silencioso, subia polegada a
polegada, de dia e também de noite, quando os homens dormiam e
dormindo acreditavam nele. Depois, avizinhando-se a época em que o sol
mais dardejava, quando para nós seria a segunda metade de julho e os filhos
do Egito falavam na lua Paoli, a segunda lua do seu ano e da sua primeira
estação que chamavam Achet, então primeiro se intumescia
veementemente, depois transbordava numa e noutra margem sobre os
campos e cobria o país — aquele país estranho, de condições únicas, que
não tinha rival em todo o mundo e que agora, provocando a princípio o
assombro e o riso de José, se convertera num lago sagrado, do qual, todavia,
graças à sua situação altaneira, emergiam como ilhas as cidades e aldeias,
unidas entre si por diques praticáveis. Assim ficava o deus e durante quatro
semanas fazia cair sobre os campos sua gordura e sua lama nutridora até
chegar a estação Peret, a segunda, a estação invernal. Aí começava a
desaparecer e a se retirar; “as águas se escoavam”, como dizia José,
profundamente relembrado, para caracterizar esse fato, de maneira que sob
a lua do nosso janeiro voltavam ao seu antigo leito onde continuavam
sempre a baixar e diminuir até o estio. E eram ao todo setenta e dois, os dias
dos setenta e dois conspiradores, os dias da seca invernal, durante os quais o
deus desaparecia e morria, até o dia em que as sentinelas fluviais de Faraó
anunciavam que o rio de novo principiava a crescer e começava um novo
ano de bênção, moderado ou abundante, mas em todo o caso sem carestia
(Amun nos livre disso!), sem desastrosas diminuições dos impostos para
Faraó que o impedissem de construir.
O ciclo ficava logo concluído — dizia José consigo — de um novo ano
a outro, ou desde o dia da sua chegada ao Egito até voltai esse mesmo dia
—, logo concluído, fosse qual fosse sua maneira de calcular ou onde quer
que colocasse o começo, através das três estações — inundações,
semeadura, safra — cada uma com seu cortejo de festas nas quais tomava
parte, mundanamente, confiado na suprema indulgência e fazendo algumas
restrições mentais. Na verdade, o jovem era forçado a participar delas e a
mostrar-lhes boa cara pela razão muito simples de que as festas dos ídolos
estavam entrelaçadas com a vida econômica e José, achando-se a serviço de
Putifar e sendo substituto de Mont-kav nos negócios, não podia ficar
afastado das feiras e mercados que durante as solenidades religiosas sempre
se realizam, porque em toda parte o comércio desabrocha no terreno onde
os homens acodem em maior número. Nos vestíbulos dos templos de Tebas
havia sempre mercados, mercê do tráfico comum para os holocaustos; além
disso, eram numerosos os lugares de peregrinação, tio acima e rio abaixo,
aonde acorria de toda parte o povo em densos bandos, sempre que havia
aqui ou ah um deus em festa que ornava a sua casa e se mostrava pronto a
distribuir oráculos e, ao lado do pábulo espiritual, prometia concorridos
divertimentos às massas e orgias e patuscadas próprias de feiras. Não era só
Bastet, a gata do delta inferior, que tinha a sua festa, a respeito da qual logo
haviam contado a José coisas licenciosas. Também para ver o bode de
Mendes ou Djedet, como diziam os filhos de Keme, não longe dali, afluía
cada ano de perto e de longe uma multidão imensa, ainda mais alvoroçada
do que a que ia a Per Bastet, porque Bindini, o bode, robusto e lascivo
como era, achava mais ressonância na alma popular do que a gata e, por
ocasião da sua festa, se unia publicamente com uma virgem do país.
Podemos contudo afirmar peremptoriamente que José, indo a negócios
também a esta festa do bode, não se dignava dirigir um olhar a esse ato,
mas, como homem de confiança do seu mordomo, tratava exclusivamente
de vender entre o povo o seu papel, as suas vasilhas e a sua verdura.
No país e nos costumes do país, principalmente nos costumes da festa
(já que a festa é o momento mais característico do costume, o momento em
que ele se manifesta mais vivo e a si mesmo se glorifica), havia muitas
coisas às quais José, a despeito de todo o seu cosmopolitismo, pensando em
Jacó, nem sequer dava atenção ou a que apenas lançava com muita frieza
um olhar de esguelha. Não lhe agradava, por exemplo, a paixão da bebida,
muito espalhada entre os filhos daquela terra. A simples lembrança de Noé
o impedia de ter simpatia por essa usança, e sua aversão era ainda
aumentada pelo sóbrio e ponderado exemplo paterno que guardava na alma,
bem como pela sua própria natureza que, apesar de serena e alegre, não
tolerava o cambaleio do ébrio. Ao invés disso, para os filhos de Keme não
havia nada melhor do que embriagar-se copiosamente com cerveja ou vinho
em qualquer ocasião, tanto os homens como as mulheres. Em toda festa
recebiam vinho em grande quantidade, de modo que com suas mulheres e
filhos tinham bebida para uns quatro dias, durante os quais, é claro, ficavam
inutilizados. Mas havia ainda dias especiais de orgias, como a grande festa
da cerveja, comemorativa da velha lenda segundo a qual a poderosa Hathor,
a Sachmet de cabeça leonina, investiu furiosa contra os homens para
destruí-los, sendo impedida de extirpar a nossa raça em virtude do
estratagema de Rá, que a embebedou com cerveja tinta de sangue. Por isso
naquele dia os filhos do Egito bebiam cerveja em quantidade absurda, certa
cerveja escura e muito forte, chamada “ches”, cerveja com mel, cerveja de
fora e cerveja do país, esta na maior parte fabricada na cidade de Dendera,
residência de Hathor, aonde se ia em romaria exatamente para tal fim, de
sorte que, como casa da senhora da embriaguez, era chamada “sede da
embriaguez”.
José não dava grande atenção a essas coisas, e, por mera polidez, fazia
menção de beber um pouco de cerveja, apenas o exigido pelos negócios e a
sociabilidade. Com o pensamento em Jacó, ele olhava só com o canto do
olho certos costumes populares, em voga na grande festa de Osíris, o senhor
dos mortos, na época do dia mais curto, quando o sol morria, conquanto
acompanhasse essa festa e seus jogos e representações com uma atenção
cheia de simpatia. Renovavam-se aí os dias de paixão do deus dilacerado e
sepultado, que depois ressuscitava; em imponentes mascaradas eram
evocados pelos sacerdotes e pelo povo aqueles momentos de terror e
igualmente os momentos de júbilo de ressurreição, quando todo o povo em
sinal de alegria pulava sobre um pé só. A esses espetáculos andavam unidas
certas loucuras próprias do lugar, costumes antigos que já ninguém sabia
explicar; por exemplo, ásperas brigas entre diversos grupos de pessoas,
sendo dada a alguns desses grupos a designação de “gente da cidade de Pe”
e a outros a de “gente da cidade de Dep”, sem que ninguém soubesse que
cidades eram essas; ou era tangida através da cidade uma récua de burros no
meio de um infernal berreiro de chufas e de violentíssimas pauladas. Até
certo ponto era uma contradição tratar com tal escárnio e com cacetadas a
criatura que era símbolo de fálicos fornicoques porque, por outro lado, a
festa do deus morto e sepultado era também a santificação da rígida
prontidão viril que rebentou as faixas da múmia de Osíris, de modo que Ísis,
na sua qualidade de abutre fêmea, concebeu dele o filho vingador. Por essa
época do ano, as mulheres das aldeias levavam processionalmente o
símbolo viril, do comprimento de uma vara, glorificando-o e movendo-o
com cordas. Assim o culto contradizia os maus-tratos, sendo óbvio o
motivo dessa contradição, porque por um lado a rígida procriação era coisa
da vida amada e da fecunda continuidade, enquanto por outro era
especialmente coisa da morte. De feito, Osíris estava morto quando o abutre
fêmea concebeu dele. Todos os deuses, ao morrerem, ficam rígidos para a
procriação, e, para dizê-lo baixinho cá entre nós, estava aqui a razão por
que José, apesar de toda a sua simpatia pessoal pela festa de Osíris, o
Despedaçado, não queria ver certos usos em voga nessa festa e no seu
íntimo se conservava alheio a ela. Qual a razão disso? Ora, é difícil falar de
assunto tão delicado quando um interlocutor sabe e o outro ainda não... o
que, de resto, é tanto mais desculpável quanto o próprio José mal via de que
se tratava e percebia apenas vagamente a metade ou três quartos do
problema. Agitava-o um medo surdo e quase inconsciente, causado por
remorsos de consciência e precisamente remorsos por infidelidade —
infidelidade para com o “Senhor” —, interpretada esta palavra do lado que
se queira. Não se deve esquecer que José se considerava morto e
pertencente ao reino dos mortos, no qual crescia; lembre-se ainda o nome
que ele, com engenhosa arrogância, tomara. Afinal, não era tão grande
assim a arrogância: os filhos de Mizraim já há muito haviam conseguido
que cada um deles, ainda o mais humilde, na sua morte se tomasse Usire
juntasse o seu nome ao do Dilacerado, como o touro Ápis se tornou Serápis
na morte. Aquela união queria dizer”morrer para tomar-se deus” ou “ser
como deus”. Mas justamente esse “ser deus” e “morto" fazia pensar na
rigidez viril que rebenta as faixas; e o medo semi-inconsciente produzido
em José pelos seus escrúpulos dependia do íntimo reconhecimento de que
certos olhares provocados por Dudu — olhares que então começavam a
produzir na sua vida uma impressão ao mesmo tempo de medo e de alegria
— estavam já de longe em perigosa conexão com a divina rigidez da morte
e portanto com a infidelidade.
Acabamos de exprimir em palavras e com o maior respeito possível por
que não interessava muito a José contemplar os costumes populares da festa
de Osíris, as procissões das aldeias, os asnos espancados. Mas lançava uma
boa olhada a muita outra coisa, na cidade e no campo, durante as festas que
marcavam e adornavam o ano egípcio. No curso dos anos viu uma ou duas
vezes a Faraó, pois às vezes sucedia que o deus se mostrava: não somente à
janela da audiência quando, na presença de alguns eleitos, atirava ouro de
louvor como prêmio a certos felizardos, mas subia também com grande
esplendor no horizonte do seu palácio e com imensa pompa irradiava luz
sobre todo o povo, que em sinal de alegria saltava sobre um pé só, como
estava prescrito e como o coração ditava aos filhos daquela terra. José
observou que Faraó era gordo e baixote e que a cor da sua cara não era das
melhores; pelo menos não o era quando o filho de Raquel o viu pela
segunda ou terceira vez, ocasião em que a expressão do seu rosto fazia
lembrar a de Mont-kav quando a este lhe doíam os rins.
Na verdade, nos anos que José passou na casa de Putifar e aí cresceu,
Amenhotep III, Neb-ma-ré, começava a decair e, segundo o parecer dos
sacerdotes do templo, dos peritos em medicina e dos magos da casa dos
livros, na sua condição física mostrava uma crescente tendência a reunir-se
com o sol. Escusado é dizer que os profetas da saúde não estavam em
condições de pôr um paradeiro a esta tendência, porque ela era mais que
natural. Quando José percorreu pela segunda vez o ciclo anual do egípcio, o
divino filho de Tutmés IV e da mitânia Mutenveje celebrava o jubileu do
seu reinado, chamado Hebsed, isto é, eram passados trinta anos desde que,
no meio de inúmeras cerimônias que depois se repetiam exatamente na data
do grande fato, ele pusera sobre a cabeça a dúplice coroa.
Fora uma esplêndida vida de soberano, quase sem guerras, envolta em
pompa hierática e cuidados públicos como num manto dourado, animada
pelos prazeres da caça, para cuja comemoração ele emitira gemas de
escaravelhos; era repleta de júbilos por ter satisfeito a sua ânsia de
construções; agora, porém, a sua natureza deperecia tanto quanto a de José
se revigorava. Tempo houve, é verdade, em que a majestade desse deus
tinha sofrido de cárie dos dentes, sofrimento que ele estimulara com o seu
hábito de lambiscar guloseimas, e não raro nas audiências e nas recepções
oficiais na sala do trono aparecia com a bochecha inchada. Depois do
Hebsed (ocasião em que José o viu) as dores físicas eram produzidas por
órgãos mais ocultos; às vezes o coração de Faraó vacilava ou batia contra o
peito em pulsações excessivamente numerosas, vindo-lhe então a faltar o
fôlego; as suas secreções expeliam matérias que o corpo deveria reter, mas
não podia, porque trabalhava na sua própria desintegração; e mais tarde não
era só a bochecha que inchava, mas também o ventre e as pernas.
Aconteceu então que o longínquo confrade e correspondente do deus, que
na sua esfera igualmente passava por divino, o rei Tuchrata de Mitanni,
filho de Chutama, pai da Mutenveje, por sua vez mãe de Amenhotep — em
suma, seu cunhado do Eufrates, visto que recebera de Chutama como
segunda mulher no seu harém a princesa Giluchipa —, lhe havia mandado
da sua longínqua capital, por segura escolta, uma imagem milagrosa de
Istar. E que Tuchrata ouvira falar na enfermidade de Faraó e em casos
simples fizera ele próprio boas experiências com a imagem bendita. A
capital toda ou antes todo o Alto e Baixo Egito, desde as fronteiras dos
negros ate o mar, comentou a chegada dessa expedição ao palácio Merimat.
Também na casa de Putifar durante vários dias não se falava de outra coisa.
Verificou-se, porém, que Istar relutou ou foi incapaz de produzir um alívio
pouco mais que passageiro à asma e às inchações de Faraó, com grande
satisfação dos magos indígenas, cujos salutares tóxicos nem sequer um
alívio desses produziram, simplesmente porque a tendência a reunir-se com
o sol era mais forte do que tudo e prosseguia, lenta mas irresistivelmente,
no seu caminho.
José viu Faraó por ocasião do Hebsed, quando toda Vese estava de pé
para apreciar a saída do deus, que era uma parte das solenidades e
cerimônias do dia de júbilo. Todas essas investiduras, ascensões ao trono,
coroações, banhos purificatórios executados pelos sacerdotes com máscaras
representando deuses, todas essas incensadelas e antigos ritos simbólicos
eram realizados quase sempre no interior do palácio, diante dos olhos
apenas dos grandes da corte e do país, enquanto lá fora o povo, bebendo e
dançando, se entregava à ilusão de que com esse dia se daria uma reforma
radical e ia começar uma era de bênçãos, de justiça, de paz, de riso e de
fraternidade universal. Esta leda convicção já havia animado a todos
fervidamente uma geração antes, no dia da mudança de soberano sobre o
trono e cada ano, na mesma data, se renovava em forma um pouco mais
frouxa e fugaz. Mas por ocasião do Hebsed ela tomara a brotar com toda a
frescura nos corações — triunfo da fé sobre toda experiência, culto de uma
esperança que nenhuma experiência pode arrancar da alma humana, porque
foi aí plantada por mão superior. Mas a saída de Faraó ao meio-dia, quando
se dirigia à casa de Amun para o sacrifício, era um espetáculo público. Uma
grande multidão, de que também José fazia parte, o aguardava no ocidente,
diante da porta do paço, enquanto outra turbamulta se comprimia por todo o
trajeto que o cortejo real devia percorrer através da cidade na outra margem
do rio, e especialmente na grande avenida das esfinges com cabeça de
carneiro, o caminho triunfal de Amun.
O paço real, a grande casa de Faraó, de onde exatamente derivava o seu
nome Faraó, pois esta palavra quer dizer“casa grande”, conquanto na boca
dos egípcios soasse um pouco diversamente e diferisse de “Faraó”, quase
tanto como “Petepré” difere de “Putifar” — o paço real, pois, estava situado
à orla do deserto, ao pé das alturas rochosas de Tebas, resplendente de
várias cores, no centro de uma vasta muralha circular, com portas
guardadas. No seu interior ficavam os amenos jardins do deus, bem como o
lago que sorria entre flores e plantas exóticas e que uma palavra de
Amenhotep fizera um dia resplandecer, a leste do jardim, para deliciar Teje,
sua excelsa esposa.
O povo de fora, por mais que alongasse o pescoço, não via muita coisa
da luminosa magnificência de Merimat. Via diante da porta os guardas do
palácio com folhas cuneiformes de couro sobre o saiote e cocares sobre as
celadas; via a folhagem, iluminada pelo sol, cintilar entre os ventos que
sopravam incessantemente; via tetos penseis sobre coloridas colunas
torneadas, via compridas flâmulas de variegadas cores tremular em hastes
douradas, sentia os perfumes siríacos que se evolavam dos canteiros do
oculto jardim e se casavam lindamente com a ideia da divindade de Faraó,
porquanto um perfume suave acompanha quase sempre aquilo que é divino.
Mas ia agora ser satisfeita a expectativa da alegre, ansiosa e palreira
multidão de beijoqueiros e comedores de pó postados em frente à porta.
Quando a barca de Rá havia chegado exatamente ao ponto culminante,
ecoava um grito, as sentinelas em frente à porta erguiam as alabardas, os
batentes de bronze entre as hastes embandeiradas se abriam, deixando livre
a vista para a alameda das esfinges que, polvilhada de poeira azul,
atravessava o jardim; e pela porta principal saía o cortejo dos coches de
Faraó, penetrando por entre a turba que se desviava, se espalhava, bradava
por gracejo ou de medo. Efetivamente, sobre ela se arremessavam os
maceiros para abrir caminho aos coches e aos cavalos, soltando gritos
estridentes”Faraó! Faraó! Animo! Voltem a cabeça! Aí vem ele! Caminho!
Abram alas para a sua saída!” E a turba, a cambalear, dividida, andava a pé-
coxinho, ondulava, encapelava-se como o mar em procela, estendia os
braços delgados para o sol do Egito, atirava beijos entusiásticos; as
mulheres faziam espernear nos ares os seus pimpolhos a choramingar ou,
jogando para trás a cabeça, ofereciam com as mãos ambos os peitos,
enquanto o espaço se enchia do júbilo de todos e dos seus apaixonados
gritos”Faraó! Faraó! Touro robusto de tua mãe! De alta plumagem! Vive
milhões de anos! Vive para sempre! Ama-nos! Dá-nos a tua bênção! Nós te
amamos e bendizemos com veemência! Falcão de ouro! Horus! Horus! És
Rá em todos os teus membros! Chepre na sua autêntica figura! Hebsed!
Flebsed! Mudança dos tempos! Fim dos trabalhos! Começo da ventura!”
E muito comovente esse júbilo popular, toca o coração mesmo de quem
nele não toma parte e no seu íntimo se lhe mostra alheio. José despediu um
ou outro grito de alegria junto com os demais, saltitou um pouco à moda
dos filhos do país, mas sobretudo quedou-se a ver, silenciosamente
comovido. O que mais o emocionava e o induzia a olhar com mais
intensidade era que ele via o supremo, Faraó, sair do seu palácio como a lua
no meio das estrelas e que, conforme uma antiga herança degenerada nele
um tanto mundanamente, o seu cotação batia pelo amo supremo a quem
somente deve o homem servir. Muito tempo antes de lhe ser permitido ficar
diante do inferior imediato a este, Putifar, suas reflexões eram dirigidas,
como temos observado, a mais definitivas, mais incondicionais
personificações desta ideia. Veremos agora que a sua pretensão não se
deteve nesse ponto.
Era maravilhoso ver Faraó. O seu coche era de ouro puro, de ouro as
rodas do coche, de ouro as paredes e o toiço, tudo coberto de imagens
cinzeladas mas que não se conseguia distinguir o que representavam,
porque com o revérbero do sol do meio-dia a carruagem coruscava e
cintilava de tal modo que doía nos olhos; e, como as rodas e os cascos dos
cavalos levantavam num turbilhão densas nuvens de poeira, parecia que
Faraó se aproximava envolvido num nimbo de fumo e chamas, terrível e
estupendo de ver-se. Só faltava que também os cavalos à frente do coche, “a
primeira grande parelha” de Faraó, como diziam, expelissem fogo pelo
nariz, tal o feroz recacho com que avançavam, na pompa do seu arnês, com
peitorais de ouro, tendo a encimá-los áureas cabeças de leão das quais se
erguiam, a tremular, penachos de variegadas cores. Era o próprio Faraó
quem guiava. Estava só no coche envolvido em nuvens de fogo e com a
mão esquerda segurava as rédeas, enquanto com a direita empunhava o
chicote e o curvo bastão do império, branco e preto, de través diante do
peito, numa espécie de posição ritual, imediatamente debaixo do precioso
afogador. Faraó era já bem idoso; via-se isso pela boca caída, pelo olhar
mortiço e pelas costas que pareciam um pouco curvadas sob a sua veste
alva como o lótus. Os magros zigomas ressaltavam e dir-se-ia que o
soberano havia passado neles um pouco de carmim. De sob o traje desciam
pelos quadris, como a proteger as pernas, vários enfeites entrecruzados,
muitos laços variamente entretecidos, muitos emblemas rígidos. Sua cabeça
era coberta até atrás das orelhas e até o pescoço pela tiara azul,
profusamente adornada de estrelas amarelas. Sobre a testa, por cima do
nariz de Faraó, erguia-se, cintilante de esmaltes coloridos, a áspide
venenosa, o mágico talismã de Rá.
Assim passou diante dos olhos de José o rei do Alto e do Baixo Egito,
sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Por sobre a sua cabeça
oscilavam altos flabelos de penas de avestruz; aos lados das rodas corriam,
sob os estandartes, guerreiros da sua guarda pessoal, escudeiros e
alabardeiros, egípcios, asiáticos e negros; vinham em seguida oficiais em
carruagens cobertas de couro cor de púrpura. Depois recomeçavam as
aclamações populares, porque em seguimento àquelas vinha um outro
coche isolado, cujas rodas de ouro giravam entre nuvens de pó, e nele
estava sentado um menino de oito ou nove anos, também ele cercado de
flabelos de penas de avestruz, guiando ele próprio com os braços franzinos
adornados de braceletes. Tinha cara comprida e pálida, com beiços
polpudos que naquela palidez eram de um vermelho de framboesa e sorriam
tímidos e amáveis para a turba ruidosa, e trazia olhos semicerrados,
podendo isso denotar orgulho ou tristeza. Era Amenhotep, o divino rebento
e sucessor, que devia herdar os tronos e as coroas quando aquele que o
precedia resolvesse reunir-se com o sol — filho único de Faraó, filho da sua
velhice, o seu José. Sobre o magro busto infantil daquele menino aclamado
pela multidão nada havia, a não ser os braceletes e o alvo colar de pedrarias.
Mas sua veste, de um pano de ouro com dobras, lhe subia alta sobre as
costas e descia até a panturrilha, enquanto na frente, no ponto onde pendia o
cordão de franjas douradas, se dobrava muito, deixando exposto um ventre
bojudo como o de um menino negro. Tinha a cabeça envolvida num pano
de tecido dourado, liso, aderente à testa, sobre a qual, como sobre a do pai,
estava a víbora, sendo amarrado à nuca de modo que formava uma espécie
de bolsa para os cabelos. Sobre uma orelha estava dependurado, em forma
de larga fita de franjas, o cacho infantil dos filhos dos reis.
O povo ovacionava em altos brados o menino, o sol já criado mas ainda
não despontado, o sol ainda sob o horizonte do oriente, o sol de amanhã.
“Paz de Amun! Viva muitos anos o filho do deus! Quão belo surge no
oriente do céu! Jovem Horus com o cacho infantil! Falcão encantador!
Protetor do pai, protege-nos!” O povo ainda tinha muito que gritar, porque
depois dos carros que acompanhavam o sol do amanhã vinha de novo um
alto coche de fogo, no qual, por trás do cocheiro inclinado para a frente,
estava sentada Teje, a mulher do deus, a excelsa consorte de Faraó, a
senhora dos países. Era pequena e de rosto trigueiro. Seus olhos alongados
pela pintura fulguravam, o gracioso e enérgico narizinho de deusa fazia uma
curva bem pronunciada e sua boca de lábios revirados sorria satisfeita. Não
havia no mundo nada mais belo que o seu toucado, pois a coifa
representando o abutre, a ave toda, era toda de ouro, e o ventre da ave que
ressaía à frente da cabeça cobria-lhe a risca, enquanto as asas pendiam,
esplendidamente lavradas, sobre as faces e os ombros. Sobre as costas da
ave fora forjado um círculo de onde saíam algumas penas altas e rígidas,
fazendo da coifa um diadema de deidade; e na frente, sobre a testa, além do
crânio nu do abutre com o bico recurvo, estava o “uraeus", túmido de
veneno. Grandes sinais divinos havia que fartasse e o povo só tinha de
extasiar-se e bradar fora de si”Ísis! Ísis! Mut, celeste vaca mãe! Geradora
do deus! Ó doce Hathor, tu, que enches o palácio de amor, tem piedade de
nós!” Aclamavam também as filhas do rei, as quais, com os braços travados
uns nos outros, estavam no carro por trás do cocheiro profundamente
inclinado para a frente. Gritavam à passagem das damas da corte que
vinham de carro, duas a duas, trazendo no braço o flabelo de honra, bem
como à passagem dos grandes da intimidade e privança do rei, os
verdadeiros e únicos amigos de Faraó, os camaristas privados que vinham
depois. Assim, da casa de Merimat, atravessou o cortejo do Hebsed a
multidão até o rio onde estavam as barcas coloridas, a barca celeste de
Faraó, chamada “Estrela dos dois países”, para que o deus, a geradora do
deus, o rebento e toda a corte pudessem passar para o outro lado das águas
e, chegando à margem oriental, atravessassem com outros coches a cidade
dos vivos onde, pelas mas e sobre os telhados, todos ainda gritavam até a
casa de Amun e a grande fumigação.
E assim José tinha visto Faraó, tal como outrora o escravo comprado
vira pela primeira vez, no pátio da casa de bênção, a Putifar, o amo supremo
de sua mais íntima companhia, e tinha meditado como poderia estar o mais
cedo possível a seu lado. Já o seguira graças à sua inteligente loquacidade;
mas a história julga saber que já em tal momento José se propunha entrar
em contato com encarnações mais longínquas e perfeitas do amo supremo,
e até ela levou sua audácia a ponto de fazê-lo aspirar a mais alto ainda.
Como? Haverá alguma coisa acima do mais alto? Sim, quando se tem no
sangue o sentido do futuro, isto é, do que está acima do amanhã. Entre o
júbilo da turba que ele partilhara com certa reserva havia José observado
com bastante cuidado a Faraó no seu coche de fogo. Contudo a sua mais
íntima e última curiosidade e participação não se detivera muito no velho
deus, mas no que vinha depois dele, no menino de cacho, com o sorriso
mórbido nos lábios, no José de Faraó, no sucessor único. O filho de Jacó o
seguiu com os olhos, os seus ombros estreitos, os seus cabelos dourados,
observou como ele guiava o carro com os braços franzinos ornados de
pulseiras; a ele e não a Faraó via José em espírito quando já tudo passara e a
multidão se aglomerava às margens do Nilo; seus pensamentos se dirigiam
ao pequeno, ao que vinha, e bem pode ser que nisto ele estivesse de acordo
com os filhos do Egito, os quais também, vendo o jovem Horus,
ovacionavam com mais fervor que quando passava Faraó. E que o futuro é
esperança e por bondade foi dado tempo ao homem para viver na
expectativa. Não devia José firmar-se vigorosamente no seu posto antes que
a sua ideia de achar-se diante do amo supremo e talvez ao seu lado tivesse a
mínima, a mais vaga perspectiva de realização? Assim, com razão era que,
durante a festa do Hebsed, o seu olhar ia além do supremo atual, alcançando
o futuro, na direção do sol ainda não despontado.
NARRAÇÃO DO SINGELO PASSAMENTO DE MONT-KAV
Sete vezes havia o ano egípcio conduzido consigo José no seu giro;
oitenta e quatro vezes o astro que ele amava e com o qual era aparentado
percorrera todas as suas fases, e daquela substância que revestira o filho de
Jacó, quando este o despedira, com preocupações e bênçãos,já agora nada
restava nas vicissitudes da vida. Ele trazia, por assim dizer, uma túnica
inteiramente nova de que Deus havia coberto a sua vida e na qual não
ficava nem uma fibra mais da túnica antiga que ele vestira aos dezessete
anos. Aquela era tecida com material egípcio e nela com bastante
dificuldade Jacó teria reconhecido o filho quando este lhe dissesse; eu sou
José. Sete anos haviam passado para ele, dormindo ou acordado, pensando,
sentindo, agindo, tal como passam os dias, isto é, nem depressa nem
devagar, mas simplesmente passado, e agora, chegando aos vinte e quatro
anos, José estava um mocetão de bonita cara e figura, filho de uma mulher
amável, filho do amor. No hábito dos negócios o seu modo de proceder se
tornara mais importante e mais seguro, e a sua voz de rapaz, que já fora
dura, havia-se tornado mais harmoniosa quando, ao passar entre os
trabalhadores e a criadagem da casa no seu trabalho de fiscalização, lhes
dava suas instruções ou transmitia as de Mont-kav, na sua qualidade de
substituto do mordomo e de sua “primeira boca”. Isto era ele, com efeito, já
há bastante tempo, e se poderia também chamá-lo o seu olho, a sua orelha
ou o seu braço direito. O pessoal da casa, porém, chamava-lhe
simplesmente a “boca” por ser esta a expressão com que os egípcios
designavam um homem por intermédio do qual se transmitem ordens. No
caso de José a palavra era duplamente apropriada, porque o jovem falava
como um deus, dom sumamente desejável, uma delícia para os filhos do
Egito, os quais bem sabiam que José abrira o seu caminho com o seu belo e
prudente discretear, coisa de que eles jamais seriam capazes, ou pelo menos
preparara para si aquele caminho junto do senhor e do mordomo Mont-kav.
Por essa época Mont-kav já lhe confiava tudo — administração, contas,
fiscalização, negócios. Quando a tradição diz que Putifar tinha posto toda a
sua casa nas mãos de José e não cuidara de outra coisa senão de comer e
beber, isto não era, em última análise, mais que uma cessão: do senhor ao
mordomo e deste ao rapaz comprado, com o qual fizera um pacto para
servir com amor o amo. E este e a casa podiam dar-se por felizes de que tal
cessão viesse afinal parar nas mãos de José e em nenhuma outra e que ele
na realidade já cuidava da propriedade, porque dela realmente cuidava com
suma fidelidade por amor do amo e dos seus próprios remotos projetos, e
dia e noite pensava no bem da casa, de maneira que, exatamente conforme
as palavras do velho ismaelita e de acordo com o nome que escolhera, ele
não só provia mas aumentava.
Da razão pela qual Mont-kav, no fim desse período de sete anos, havia
cada vez mais, e depois inteiramente, cometido a José a fiscalização da
casa, retirando-se completamente dos negócios para a câmara da confiança,
se falará em breve. Antes, porém, convém dizer que o maligno Dudu, a
despeito de todos os seus esforços, não logrou fechar a José o caminho que
este tomara e que, ainda antes de terem terminado os sete anos, o levara
bem longe, sobrepondo-o não só a todo o pessoal de serviço da casa, mas
também ao grau e à estima do pequeno guarda das pedrarias de Putifar. O
cargo de Dudu era sem dúvida muito honorífico e lhe coubera em sorte
mercê da sua honradez e seriedade e do seu pleno valor de anão. Esse cargo
o conservava na vizinhança pessoal do senhor, de sorte que, dada a sua
natureza, lhe teria oferecido ocasião para granjear uma influência familiar,
perigosa para José. Mas Putifar não podia tolerar o anão casado; a
dignidade e os ares de importância deste lhe repugnavam vivamente e, sem
se considerar autorizado a privá-lo do seu cargo, mantinha-o o mais
possível longe de si, pondo como intermediárias entre si e o encarregado do
guarda-roupa, para o serviço da manhã e do próprio guarda-roupa, pessoas
de menor valor. Confiara-lhe apenas a suprema superintendência das joias,
alfaias, amuletos, distintivos honoríficos, sem admiti-lo à sua presença mais
vezes e durante mais tempo do que o estritamente necessário, de maneira
que verdadeiramente Dudu nunca podia tomar a palavra perante ele para
fazer aquelas representações que gostaria de fazer contra o estrangeiro e
contra o escândalo da sua ascensão na casa.
Ainda, porém, que as circunstâncias o tivessem favorecido, não se
atreveria a falar, pelo menos na presença direta do senhor. Efetivamente o
anão sabia da repugnância que Petepré sentia por ele, Dudu, e isto por causa
daquela secreta presunção que o homenzinho não ousava negar sequer a si
mesmo, bem como por ser ele, anão, partidário da suprema força solar de
Amun, receando assim fundadamente que a sua palavra carecesse de efeito
na presença do amo. Teria ele, Dudu, necessidade de expor-se a um tal
papel? Não. Preferiu caminhos indiretos: o caminho que passava pela
senhora, diante da qual várias vezes se queixou e junto de quem achou pelo
menos atenção e estima; o caminho que passava por Beknechons, o homem
forte de Amun, que ele podia açular, por ocasião das suas visitas à senhora,
contra o favoritismo do hebreu, tão contrário às antigas tradições. Instigou
também Zeset, sua desenvolvida mulher, a qual igualmente prestava
serviços a Mut-em-enet, a influir sobre a ama de maneira hostil a José.
Mas o homem de mérito também pode fracassar: suponhamos que Zeset
não tivesse dado a seu marido frutos de sua união e teremos ilustrado o
nosso pensamento. Assim Dudu não obteve êxito no seu esforço. Nada
conseguiu. É certo que Beknechons, achando-se um dia na corte, na
antessala de Faraó, submeteu Petepré a uma espécie de severo
interrogatório diplomático a propósito do escândalo a que os homens pios
da sua casa eram obrigados a assistir com a ascensão de um impuro; a esse
respeito fez-lhe advertências paternalmente delicadas. Mas o flabelífero não
compreendia, quase não se recordava, cerrava os olhos, parecia distraído; e
Beknechons, com a sua disposição natural, não foi capaz de deter-se mais
de um instante sobre o particular, sobre miudezas caseiras. Daí a pouco
estava falando em grandes temas, começou a indicar os quatro pontos
cardeais, a falar de altas questões políticas referentes à conservação do
poder, a lembrar os reis estrangeiros Tuchrata, Chubbilulima, Abd-achirtu, e
assim a conversa se perdeu nesses assuntos transcendentais. Quanto a Mut,
a senhora, ainda não se animara a falar sobre o assunto ao mando. Ela lhe
conhecia a surda casmurrice e não tinha costume de tratar com ele de coisas
importantes, limitando-se as relações de ambos a uma mera troca de
cumprimentos exageradamente respeitosos; a ela não ocorreria a ideia de
lhe pedir o que quer que fosse. Estas razões eram mais que suficientes para
explicar sua inação. Aos nossos olhos, porém, é isto um indício de que
ainda por essa época, a saber, ainda pelo fim dos sete anos, a presença de
José deixava indiferente aquela mulher, pouco se lhe dando que o
afastassem da casa. Para a mulher do egípcio devia ainda chegar o momento
em que ela desejaria vê-lo transferido para longe de sua vista. A chegada
desse momento devia coincidir com o medo de si mesma, que por enquanto
o seu orgulho não conhecia. E ainda outra simultaneidade se devia
estranhamente verificar: no mesmo tempo em que a senhora reconheceu
que para ela seria melhor não ver mais a José e realmente instou com
Petepré para que o afastasse, pareceu que Dudu tinha tomado partido a
favor do hebreu. Pois começou a adulá-lo, a fingir-se sempre pronto a
prestar-lhe serviços, de tal modo que parecia ter-se operado uma troca de
papéis entre o anão e a senhora, tendo esta ficado com a parte odiosa,
enquanto aquele não se cansava de elogiar o mancebo em presença dela.
Tanto uma ciosa como a outra eram apenas aparentes. Quando a ama se
lembrou de exigir a partida de José, na verdade não se sentia capaz de
semelhante coisa, e fingindo desejá-la a si própria mentia. Mas Dudu, que
farejara o negócio, procedia insidiosamente e só esperava poder prejudicar
melhor o filho de Jacó, fingindo-se seu amigo.
De tudo isto havemos de falar um pouco mais tarde. O fato que
provocou essas mudanças ou depois do qual elas se operaram foi a funesta
enfermidade mortal de Mont-kav, o aliado de José no serviço leal do amo
— funesta para ele, funesta para José, que lhe era cordialmente afeiçoado e
que do seu sofrimento e da sua morte sentia quase remorso; e funesta para
quantos simpatizavam com aquele homem simples, mas cheio de
pressentimentos — ainda que esses simpatizantes pudessem ter
conhecimento da necessidade da sua partida deste mundo em obediência ao
destino. Porque somos obrigados a vera mão do destino na circunstância de
José ter sido trazido para uma casa cujo mordomo estava condenado à
morte; e assim, em certo sentido, o seu passamento foi um sacrifício. Ainda
bem que, na sua alma, Mont-kav era propenso a aposentar-se, propensão
essa que alhures quisemos atribuir à sua velha nefrite. Mas é também
plausível que esta fosse uma expressão física de uma tendência psíquica de
natureza análoga, distinguindo—se dela somente na forma em que a palavra
se diferencia do pensamento e do sinal ideográfico da palavra, de tal modo
que no livro da vida do mordomo um rim poderia figurar como o hieróglifo
da “aposentadoria”.
Mas para que preocupar-nos com Mont-kav? Por que falar dele com
uma certa emoção, sem ter muito que relatar senão que era conhecido como
homem simples, isto é, modesto e reto, isto é, prático e de bons
sentimentos? Era um homem que então andava pela terra e no país de
Keme, tarde ou cedo, como se quiser, na época em que a vida que gera
coisas múltiplas o produziu justamente a ele, mas, por tarde que fosse, tão
cedo que já de muito a sua múmia pulverizada se dispersou aos ventos nas
suas mais insignificantes partículas. Era um desapaixonado filho da terra,
que não presumia ser melhor do que a vida e que no fundo não queria saber
nem de ousadias nem de coisas muito altas, não por baixeza mas por
modéstia; e, conquanto no seu intimo fosse perfeitamente acessível a
sugestões superiores — o que o pôs em condições de representar na vida de
José um papel não de todo insignificante, comportando-se, no fundo, como
se comportara um dia o grande Rubem —, para exprimir por uma metáfora
a coisa, também Mont-kav deu três passos para trás, inclinando-se diante de
José, e depois se afastou. Este papel que o destino lhe designou já o toma
credor da nossa simpatia. Mas, mesmo prescindindo de tudo mais, vemos e
reconhecemos a figura deste homem, simples porém dotada de sentimentos
finos, cercada de uma melancolia sem pretensões — essa figura que nós
aqui reconstruímos da sua milenária volatilização, graças a uma simpatia
espiritual a que ele teria dado o nome de magia.
Mont-kav era filho de um funcionário médio da tesouraria do templo de
Montu, em Kamak. Bem cedo, contando apenas cinco anos, seu pai, de
nome Achmose, o consagrou a Thot e o mandou para a casa de instrução
anexa à administração do templo, a casa em que os empregados de Montu,
o deus da guerra representado com a cabeça de falcão, eram educados com
severa disciplina, escassa alimentação e abundantes pancadas. (Vigorava ah
a máxima de que o aluno tem as orelhas por cima das costas e ouve quando
lhe batem. ) Não era, porém, só este o fim da escola que, frequentada por
meninos de diversas condições, nobres e humildes, ensinava em geral os
elementos fundamentais da cultura literária, a palavra divina, isto é, a
escrita, a arte de manejar a cana e um agradável estilo, bem como os
rudimentos exigidos para a carreira burocrática e de letrado.
O filho de Achmose não queria tornar-se letrado, não porque fosse
estúpido, mas por modéstia, porque desde o princípio tinha aspirações mais
simples, não querendo de nenhum modo sobressair. Se não passou, como o
pai, os dias de sua vida copiando documentos nos escritórios de Montu e foi
ser mordomo de um grande, tudo isto aconteceu sem concurso da sua
vontade. Foram, com efeito, os seus mestres e superiores que o
recomendaram e lhe arranjaram aquela boa colocação, sem que ele nada
tivesse feito para isso, movidos apenas da estima que lhe haviam criado
pelos seus dotes e pela sua reserva. Quanto a pancadas, ele recebeu na casa
de instrução apenas as que eram inevitáveis, a parte que cabia até ao melhor
dos alunos para que ouvisse. Evidenciou sempre a sua mente universal pela
rapidez com que assimilou o sublime presente do macaco, a escrita, o
cuidado e asseio com que transportava para as compridas linhas dos seus
rolos escolares tudo quanto lhe era ensinado, as regras da civilidade e os
modelos de cartas que formavam o estilo, os ensinamentos que provinham
de séculos remotos, poesias didáticas, orações exortatórias, elogios da
classe dos escrivães. Ao mesmo tempo enchia as costas do rolo com contas
de sacos de cereais recebidos e remetidos ao armazém, com apontamentos
para cartas comerciais, porquanto já desde o princípio fosse também
encarregado de trabalhos práticos na administração, mais de acordo com a
sua vontade do que de acordo com a vontade do pai, que queria fazer do
filho alguma coisa superior a si mesmo, um profeta, um mago ou astrólogo,
enquanto Mont-kav desde menino, com modéstia e persistência, se
preparava para os aspectos mais práticos da vida.
Existe um quê de singular nessa espécie de inata resignação,
manifestada numa honesta habilidade e também numa tranquila tolerância
com as iniquidades da vida, que em outros provocariam ásperas
exprobrações contra os deuses. Ainda jovem desposou Mont-kav a filha de
um colega de seu pai, da qual se enamorara. Mas a mulher morreu no
primeiro parto e com ela a criança. Mont-kav chorou-a amargamente,
porém não estranhou demasiado o golpe nem levantou muito os punhos
para o ar diante dos deuses por terem as coisas tomado aquela feição. Nem
tentou mais a felicidade de um lar, preferindo ficar viúvo e solitário. Uma
irmã sua casara com o proprietário de um bazar de Tebas; de vez em quando
ia visitá-la nos dias de folga, que aliás não eram muitos. Terminados os
estudos, trabalhou a principio na administração do templo de Montu, depois
foi mordomo do primeiro profeta daquele deus, cabendo-lhe finalmente a
direção da bela casa de Petepré, o cortesão, onde com jovial mas firme
autoridade exercia o seu cargo havia já dez anos, quando os ismaelitas lhe
trouxeram um ajudante para o amoroso serviço do delicado amo, ajudante
superior a ele e que devia ser seu sucessor.
Que José estava predestinado a ser seu sucessor, Mont-kav o pressentiu
bem depressa, porquanto, apesar da sua simplicidade intencional, eta um
homem cheio de pressentimentos e pode-se dizer que essa mesma
simplicidade, essa tendência à renúncia e a restringir suas aspirações, era
um produto do pressentimento, isto é, do pressentimento da doença
incubada no seu corpo vigoroso. A própria ação da enfermidade,
quebrantando-lhe a coragem da vida, mas requintando-lhe o espírito, foi o
que o tornou sensível às delicadas impressões recebidas quando viu José
pela primeira vez. Naquela época o mordomo já conhecia o seu ponto fraco,
porque, em virtude de certa pressão surda que sentia nas costas e no lado
esquerdo e de certas dores vagas na região cardíaca, das frequentes
sensações de vertigem, da má digestão, da falta de sangue e da exagerada
vontade de urinar, em virtude de todos estes sintomas Pança Queimada, o
charlatão, lhe dissera sem refolhos que ele sofria dos rins.
Esta moléstia, muitas vezes oculta, é, por sua natureza, insidiosa; às
vezes deita raízes já na meninice e deixa passar intervalos de boa saúde
aparente, durante os quais permite crer que se tenha chegado a uma pausa e
mesmo à cura, para depois dar de novo sinais do seu progresso. Mont-kav
se lembrava de que, aos doze anos, certa vez tinha vertido urina
sanguinolenta; como, porém, isso só se dera uma vez, sem repetição durante
vários anos, o fato sintomático e amedrontador caíra no esquecimento. Só
quando Mont-kav chegou aos vinte anos foi que o mal se repetiu
juntamente com os distúrbios há pouco mencionados, entre os quais as
vertigens e a dor de cabeça, seguindo-se-lhes vômitos de bílis. Isto também
passou; mas daí por diante, calmo e valente como era, a vida lhe correu na
luta com aquele mal intermitente, que muitas vezes o deixava em paz
durante meses e até anos,mas depois se apoderava novamente do seu
organismo com maior ou menor violência. A modéstia produzida pelo mal
degenerava amiúde numa profunda prostração e indiferença, num
abatimento do coração e do espirito; habituou-se, apesar de tudo isto, a
executar com silencioso heroísmo o seu trabalho cotidiano, enquanto os
profissionais da medicina e os que queriam passar por tais lutavam contra
esses males coma aplicação de sangrias. E como o seu apetite era
satisfatório, a sua língua limpa, boas as excreções da pele e o pulso de uma
frequência bastante regular, os que dele tratavam não o reputavam ainda
gravemente enfermo. Um dia, porém, os seus tornozelos apresentaram
inchações, das quais, depois de uma punção, saiu um líquido aquoso. E
como esses escoamentos produziam um evidente alívio do sistema vascular
e do coração, chegou-se a reconhecer naquilo um fenômeno favorável,
porque por ele a doença se manifestava exteriormente e provocava a
expulsão do humores.
Convém dizer que, graças ao auxílio de Pança Queimada e dos
remédios do seu jardim, Mont-kav passou sofrivelmente os dez anos até a
entrada de José na casa. Se, porém, só raramente foi forçado a interromper a
sua capacidade de trabalho como chefe da herdade, isto se deve à sua
modesta força de vontade, com que combatia o mal que lentamente
progredia, mais que à ciência empírica do jardineiro. O primeiro ataque
verdadeiramente grave, com tal inflamação das mãos e pernas que foi
necessário enfaixá-las, com terríveis dores de cabeça, violentíssimas
perturbações gástricas e até escurecimento da vista, verificou-se quase logo
depois da aquisição de José; ou melhor, a explosão do mal já principiara
durante as negociações com o velho ismaelita e durante o exame da
mercadoria oferecida. Esta é pelo menos a nossa conjetura; parece-nos
efetivamente que os seus sensíveis pressentimentos à vista de José e a
particular comoção que lhe causou o primeiro cumprimento de boas-noites
feito como prova pelo escravo eram já um prenuncio do ataque e sintomas
de unia predisposição morbidamente agravada. Mas é também possível a
outra interpretação médica de que, ao contrário, aquela saudação de paz
excessivamente suave tenha produzido um certo enternecimento na sua
natureza e na sua força de resistência; e em verdade estamos quase a recear
que os votos de boa-noite que José infalivelmente lhe apresentava, ainda
que tenham feito bem ao mordomo, longe estavam de ser de especial
préstimo ao seu instinto de conservação em luta com a moléstia.
Também o fato de que a princípio Mont-kav não se ocupava quase nada
de José deve ser atribuído em grande parte ao ataque de então, que lhe
paralisava a iniciativa. Aquele ataque, como algum outro mais ligeiro ou
mesmo tão forte nos anos seguintes, passou graças às sangrias de Chun-
Anup, às sanguessugas, às fantásticas criaturas de produtos vegetais e
animais e às compressas abdominais feitas de fragmentos de velhos escritos
macerados em azeite quente. Conseguiu-se então uma cura ou aparência de
cura que durou longos intervalos de tempo na vida do mordomo, também já
quando José se encontrava na casa e crescia, até se tomar o seu primeiro
auxiliar e sua boca. Mas no sétimo ano da presença de José ah, tendo Mont-
kav ido assistir ao funeral de um parente (o seu cunhado, dono do bazar,
que passara desta para melhor), apanhou um resfriado que abriu portas e
janelas à ruína, prostrando-o de vez.
Isso de “apanhar” a morte e ser por ela “levado” por estar a gente numa
fria capela de cemitério, exposta a correntes de ar, prestando a um morto as
derradeiras homenagens, era um fenômeno frequente então como o é agora.
Era no verão. Fazia muito calor, mas, como amiúde acontece no Egito,
havia bastante vento — associação perigosa, porque o vento que sopra
acelera a evaporação da pele e produz um esfriamento repentino.
Sobrecarregado de afazeres, o mordomo se demorara muito, arriscando-se a
chegar atrasado à cerimônia. Teve de apressar-se, suou ejá na travessia do
rio para o ocidente em seguimento à barca fúnebre, não estando bastante
coberto, foi tomado de calafrios. Depois teve de ficar parado em frente ao
sepulcrozinho rasgado na rocha que o dono do bazar, agora unido com
Osíris, adquirira com as suas economias. Diante do seu modesto portal um
sacerdote que usava máscara canina de Anúbis segurava a múmia, enquanto
outro com o místico pé de bezerro celebrava a cerimônia da abertura da
boca, e o grupo das pessoas enlutadas, com as mãos na cabeça coberta de
cinza, assistia ao ato. As paredes da abóbada ressumbravam uma umidade
que não podia fazer bem a Mont-kav e este voltou para casa com uma
coriza e com catarro na bexiga. No dia seguinte já se queixava para José de
que lhe era estranhamente penoso mover os braços e as pernas; um como
torpor o obrigou a desistir de qualquer atividade doméstica e a meter-se na
cama; e quando o jardineiro-chefe lhe aplicou sanguessugas nas fontes
contra as insuportáveis dores de cabeça, acompanhadas de vômitos e de
uma meia cegueira, Mont-kav teve um ataque apoplético.
Reconhecendo as disposições divinas, José tremeu. De si para consigo
concluiu que tomar medidas contra elas não significava pecaminosa
tentativa de estorvar os propósitos do alto, mas simplesmente submetê-los a
uma prova necessária. Por isso persuadiu Putifar a mandar buscar um
médico de verdade na casa de Amun. Chegando ele, Pança Queimada teve
de se retirar, sentindo-se mortificado, é claro, mas também livre de uma
responsabilidade cuja gravidade ele era bastante sensato para reconhecer.
O perito da medicina, vindo da casa dos livros, repudiou a maior parte
das tisanas e cuidados prescritos por Pança Queimada, conquanto aos olhos
de todos, inclusive aos seus, a diferença entre as suas prescrições e as do
jardineiro era não tanto de índole médica quanto social: as do empírico
eram para o povo, ao qual podiam fazer bem, as do homem da ciência eram
para as esferas superiores, que eram medicadas com mais elegância. O
sábio do templo rejeitou, por exemplo, os escritos antigos embebidos em
azeite com que o seu predecessor cobrira o ventre e os quadris do enfermo e
mandou se fizessem cataplasmas de linhaça em panos limpos e decentes.
Também torceu o nariz diante das panaceias populares do curandeiro, que
se dizia terem sido inventadas pelos próprios deuses para Rá quando este
ficou velho e doente, e que se compunham de catorze ou mesmo trinta e
sete coisas repugnantes, como: sangue de lagarto, dentes de porco
pulverizados, umidade extraída das orelhas deste animal, leite de
parturiente, toda casta de excremento, mesmo o dos antílopes, ouriços e
moscas, urina humana e coisas semelhantes. Mas continham também coisas
que o mesmo cientista ministrou ao mordomo, porém sem aquelas
porcarias, por exemplo, mel e cera, meimendro, pequenas doses de ópio,
quássia, uva ursina, natro e ipecacuanha. O médico aprovou ainda o uso do
remédio preferido do jardineiro, que era mastigar bagas de rícino com
cerveja, aprovando também uma raiz rica de resina de efeito fortemente
laxativo. Pelo contrário, declarou fora de propósito as drásticas sangrias que
Pança Queimada aplicava quase diariamente, a pretexto de que só com elas
se conseguia pôr cobro às terríveis dores de cabeça e à turvação da vista. No
máximo consentiu o esculápio que fossem feitas com muita moderação,
porque, como ele ensinava, dado o aspecto lívido do doente, a passageira
melhora que se obtinha era paga muito caro com a perda de elementos
nutritivos e vivificantes contidos no sangue.
Estava-se diante de um dilema insolúvel. Evidentemente era o sangue,
indispensável mas depauperado e infecto, que veiculava pelo organismo
inflamações insidiosas, provocando nele manifestações mórbidas de vária
índole, que apareciam ou juntas ou alternativamente, tendo todas elas, como
o sabiam ambos os médicos, sua origem nos rins, que há muito
funcionavam mal. Assim, salvo os nomes com que os entendidos
designavam estes malignos fenômenos e o conceito que deles formavam,
Mont-kav sofria, ao mesmo tempo ou sucessivamente, de uma inflamação
da pleura e do peritônio, do pericárdio e dos pulmões; a isto vinham juntar-
se graves sintomas cerebrais, como vômitos, cegueira, congestão, cãibras.
Em suma, a morte o assaltou de todos os lados, com todas as armas,
parecendo verdadeiramente um milagre que ele, desde o momento em que
foi para a cama, pudesse resistir ainda semanas e semanas e em parte
superar alguns dos incômodos. Mont-kav era um doente robusto, mas por
mais que resistisse fortemente, por mais que defendesse a vida, estava
inexoravelmente condenado à morte.
Foi o que José reconheceu imediatamente, enquanto Chun-Anup e o
douto de Amun tinham esperanças de salvar o mordomo. Sentiu-o muito o
mancebo, não só porque era afeiçoado àquele homem probo que lhe
mostrara tanta bondade e cujo destino duplo lhe agradava por ver no
mordomo um desses homens tristes e alegres, do tipo de Gilgamesh, ao
mesmo tempo favorecidos e desfavorecidos, mas sendo-o também e
especialmente porque tinha remorso das dores e da morte do intendente.
Pois era manifesto que tudo fora predisposto para favorecer a ele e à sua
ascensão, tendo sido o pobre Mont-kav vitima escolhida para que pudessem
vingar os planos divinos; o mordomo era arredado do caminho, isto era
claro e patente e a José vinha vontade de dizer ao Deus dos planos”O que
fazeis, Senhor, é obra exclusiva da vossa vontade e não da minha. Declaro
explicitamente que nada tenho com isto e, se isto sucede por minha causa,
espero não se diga ser minha a culpa. Com a mais rendida humildade desejo
insistir em que isto não aconteça.” Eram, porém, improfícuos tais protestos.
Ele sentia remorso pelo sacrifício da vida do amigo e via muito bem que, se
aqui se podia falar de culpa, esta caía sobre ele, o usufrutuário, não sendo
lícito falar de culpa em se tratando de Deus. “Eis aí como se passam as
coisas”, pensava ele consigo. “Deus faz tudo, mas nos deu uma consciência
e nós somos os culpados diante d’Ele, porque para Ele somos os culpados.
O homem leva a culpa de Deus e mais justo seria se Deus resolvesse um dia
carregar a nossa culpa. Como Ele, o santo e impecável, possa fazer isso, é
difícil dizê-lo. A meu ver, Ele devia para tal fim fazer-se homem.”
José não se apartou do leito de dores da vítima, durante as quatro ou
cinco semanas nas quais ela ainda se defendeu contra a morte que a atacava
com tantas armas. Tão culpado se sentia o jovem! Com inteira dedicação
assistiu dia e noite o atribulado, sacrificando-se, como se costuma dizer e
como aqui se poderia dizer com razão, porque realmente se tratava de uma
troca de sacrifício, levado por José até a renúncia ao próprio sono e ao
emagrecimento do próprio corpo. Pôs a sua cama junto à do enfermo na
alcova da confiança e de hora em hora fazia o que podia: aplicava
compressas quentes, dava-lhe remédios, fazia-lhe fomentações com certas
misturas; segundo a prescrição do médico do deus, fazia-o aspirar o vapor
de plantas trituradas que aquecia sobre a pedra; sustinha-lhe os membros
quando o salteavam as cãibras, pois nos últimos dias o coitado sofria tantas
dores que, sob o brutal assalto da morte, soltava altos gritos; mas a morte
parecia não poder esperar que ele se rendesse e entranhava rudemente a
garra no seu corpo. Principalmente quando Mont-kav queria dormir, ela
intervinha e, provocando-lhe espasmos, fazia pular sobre a cama o corpo
fatigado, como a dizer-lhe”O quê? Queres dormir? Levanta-te, levanta-te e
morre!” Vinham então mais que nunca a propósito os refrigerantes votos de
boa-noite de José e ele os renovava com fina arte, sussurrando ao mordomo
que agora certamente encontraria o caminho do país da consolação por que
tanto almejara e que poderia dirigir-se para lá imperturbável, sem que o
braço e a pema do seu lado esquerdo, solidamente amarrados por José com
tiras de pano, o arremessassem para trás com dores terríveis, fazendo-o
voltar aos seus sofrimentos.
Tudo isto ia bem e até certo ponto era de utilidade. Mas o próprio José
começou a ser invadido pelo desânimo quando viu que as suas invocações
de paz e repouso ajudavam demais e o mordomo, que durante tantos anos
jamais tivera bom sono, agora propendia para o letargo, quase parecia
engolfar-se em torpor como sob a ação de um tóxico, de modo que o bom
caminho se tomava um mau caminho, sendo de recear que o caminhante se
esquecesse da volta. Por isso José teve de recorrer a um outro meio e, em
vez de compor canções que ninassem o amigo, devia procurar prendê-lo,
conservando nele os espíritos vitais com histórias e historietas tiradas do
arsenal de fábulas e anedotas dos tempos passados, de que dispunha graças
aos ensinamentos ministrados por Jacó e Eliézer quando era pequeno. O
mordomo tinha ouvido sempre de boa mente as histórias da primeira vida
do rapaz comprado, da sua infância no país de Canaã, da mãe amável morta
na estrada, e da ternura do pai, toda dedicada a ela e depois ao filho, de
modo que eram os dois uma só coisa na roupagem festiva desse amor.
Também da feroz inveja dos irmãos já ouvira falar e da culpa de frívola
confiança e cega presunção de José, causadoras daquela inveja, do
dilaceramento e do poço. Tanto o mordomo como Putifar e toda a casa deste
sempre haviam considerado a região onde José passara a adolescência como
uma terra longínqua, poeirenta e miserável, que naturalmente ficava
esquecida quando o destino transplantava alguém para a terra dos homens e
dos deuses. Nem ele nem ninguém mais se surpreendia de que José não se
desse ao trabalho de entrar de novo em contato com o mundo bárbaro da
sua meninice. Mas sempre gostara das histórias daquele mundo e, durante a
sua última enfermidade, sua distração preferida e que mais o acalmava era
escutar, no leito e com as mãos juntas, o seu jovem enfermeiro evocar com
graça alegre e solene as recordações da sua parentela, falando-lhe do peludo
e do liso que brigaram no ventre materno, da festa da bênção colhida
fraudulentamente e da viagem do liso ao mundo ínfero, do tio malvado e
das suas filhas trocadas por este na noite das núpcias, narrando-lhe ainda a
astúcia do liso que com tretas e tricas de atilada simpatia natural arrebatara
ao tio várias das suas ovelhas. Cá e lá troca, troca do direito de
primogenitura e da bênção, das esposas e das propriedades. Troca do filho
pelo animal sobre a mesa dos sacrifícios, troca do animal pelo filho
semelhante, pois que morre balindo. Tanta troca e mistificação encantavam
o ouvinte numa conversa atraente que o prendiam. Com efeito, que há de
mais atraente que a mistificação? Havia ademais de parte a parte um reflexo
entre a coisa narrada e o narrador: das histórias que José narrava caia sobre
ele um pouco da luz e do encanto daquela mistificação, e ele mesmo por sua
vez dava àquelas histórias alguma coisa da sua própria pessoa, que usara o
véu do amor em lugar da mãe e que aos olhos de Mont-kav tinha sempre
possuído uma fascinação agradavelmente graciosa desde o primeiro
momento em que o rapaz apareceu diante dele com o rolo escrito e,
sorridente, o havia induzido a trocar por ele o deus de cabeça de íbis.
Mont-kav quase já não enxergava mais, não podia dizer quantos dedos
lhe passavam diante dos olhos. Mas ainda podia escutar as exóticas e
estranhas histórias murmuradas de maneira tão inteligente ali ao pé do leito
e que afastavam o letargo comatoso a que o queria atrair o seu sangue
intoxicado. Escutava a história de Eliézer, que com o seu amo desbaratara
os reis do Oriente e a cujo encontro saltara a terra quando ele andava à
procura da esposa para a vítima rejeitada. E ainda muitas histórias. A
donzela junto ao poço, que saltara do camelo e se velara na presença
daquele a quem havia sido prometida como esposa. O belo irmão selvagem
do deserto que tinha querido induzir o enganado pelo ruivo a matar o pai e
comê-lo. O primeiro emigrante, o pai de todos, e o que certa vez lhe
aconteceu aqui na terra no Egito com sua irmã-esposa. Seu irmão Lot e os
anjos diante da sua porta e bem assim a extrema impudicícia dos sodomitas.
A chuva de enxofre e a estátua de sal e a história do que fizeram as filhas de
Lot, preocupadas com a conservação do gênero humano. A história de
Nemrod em Sineare da torre da temeridade. Noé, o segundo dos grandes
antepassados, o arquissábio, e a sua arca. O primeiro homem propriamente
dito, feito de terra no jardim do Oriente, a história da primeira mulher tirada
de uma sua costela e a história da serpente. Deste legado das mais estranhas
histórias, sentado ao pé da cama do enfermo, José, eloquente e atilado,
tirava narrativas para acalmar a sua própria consciência e para prender
ainda um pouco mais ao mundo o seu ouvinte. No fim Mont-kav, bafejado
pelo sopro épico, começou também a falar, fez que o recostassem nas
almofadas e com o rosto iluminado pela morte que se avizinhava pôs a mão
sobre José, apalpando-o, como se fosse Isaac na tenda quando apalpava os
filhos.
— Deixa-me ver com as mãos videntes — disse, com a face voltada
para o teto — se tu és o meu filho Osarsif, que eu, solidamente fortificado
para a bênção com as histórias de que fartamente me nutriste, quero
abençoar antes que chegue o meu fim. Sim, és tu, vejo-te e te reconheço à
maneira dos cegos, nem é possível que se insinue aqui a dúvida ou a
mistificação, pois que eu só tenho um filho a quem posso abençoar e esse
filho és tu, Osarsif, a quem me afeiçoei no decurso dos anos em lugar do
pequerrucho que a mãe, chegada a sua hora, levou consigo — pois a criança
sufocou-se, sendo a mãe de constituição muito estreita. Na estrada? Não.
Ela morreu em casa e no seu quarto, dando à luz o filho. Não me atrevo a
dizer que eram sobre-humanos os seus padecimentos, mas eram certamente
terríveis, tanto que me prostrei com a face em terra e roguei aos deuses que
lhe mandassem a morte. Fui atendido. Também a morte do pequeno eles me
concederam, conquanto não lha tivesse exorado. Mas, sem a mãe, que iria
eu fazer da criança? “Oliveira” chamava-se a filha de Kegboi, o funcionário
da tesouraria. Denominavam-na Beket. Não ousei amá-la como o
abençoado tinha ousado amar a sua, aquela amável mulher de Naarim, tua
mãe. A tanto não me atrevi eu. Mas a minha também era amável,
inesquecivelmente amável no ornamento dos seus cílios sedosos que ela
baixava sobre os olhos quando eu lhe dizia palavras do coração, palavras
maviosas que eu nunca presumira poder articular, Naqueles dias, naqueles
dias inesquecíveis as minhas palavras tinham-se tomado musicais. Sim. Nós
nos amávamos, não obstante a sua conformação acanhada; e quando ela
morreu com a criança, chorei-a muitas noites até que o tempo e o trabalho
me enxugaram os olhos; enxugaram-nos e de noite não mais chorei, mas as
bolsas que os acentuam provém, creio eu, daquelas noites de pranto. Não o
sei com certeza, pode ser assim e pode não o ser, e já que eu morro e os
olhos que choraram Beket se extinguem, será indiferente neste mundo
saber-se como então se passaram as coisas. Mas o meu coração estava vazio
e desolado depois que os meus olhos ficaram enxutos; ele também se fizera
pequeno e estreito como os meus olhos, e desalentado porque tanto amara
em vão, de maneira que dentro dele parece que só havia lugar para a
renúncia. Mas, além da renúncia, deve o coração guardar ainda alguma
coisa; e se se quer ter uma preocupação, deve ser algo de mais delicado que
a vantagem e o proveito do trabalho. Eu era o mordomo de Petepré, o seu
servo mais velho, e não conhecia outra coisa que não fosse a prosperidade
da sua casa. De feito, quem renunciou está apto para servir. Vê, esta era
uma coisa digna de guardar-se no meu coração que se estreitara: servidão,
delicada prontidão de auxílio para Petepré, meu senhor. Pois quem mais
necessitado de serviço amoroso do que ele? De nada se ocupa porque se
conserva alheio a tudo e não foi criado para se meter em negócios. Ele, o
funcionário titular, é alheio, delicado e soberbo e não pode defrontar com
nenhum negócio, de sorte que é mister haver compaixão dele porque é bom.
Não veio ele visitar-me na minha doença? Deu-se ao incômodo de vir até
cá, até a minha cabeceira, enquanto acudias aos negócios, para, na bondade
do seu coração, indagar da minha saúde, embora se percebesse que era
estranho àquilo e se mostrava medroso diante da doença, pois nunca fica
doente — ainda que se hesite em chamá-lo são ou em crer que ele morrerá
—, eu por mim quase não o acredito, porque é preciso estar são para
adoecer e viver para morrer. Mas pode tudo isto diminuir a preocupação por
ele e a necessidade de prestar auxílio à sua delicada dignidade? E antes o
contrário. O meu coração nutria esse cuidado acima da vantagem e do
proveito do trabalho, preocupando-se com esse serviço de amor, e eu
prestava auxílio a Petepré no seu cargo e lhe falava segundo o seu orgulho
como melhor sabia e podia. Tu, porém, Osarsif, sabes fazer tudo isto de um
modo incomparavelmente melhor, porque os deuses favoreceram o teu
espírito com argúcia e graça, que faltam ao meu, ou por ser demasiado
obtuso ou por não pretender subir tão alto, não se julgando capaz de tal.
Assim e por amor desse serviço, fiz contigo um pacto que deves observar
quando eu estiver morto. E se te devo abençoar, se devo deixar-te em
herança o meu cargo de mordomo da casa, tu me hás de jurar sobre o meu
leito de morte que não só guardarás a casa e tratarás dos negócios do nosso
amo com a tua melhor inteligência e conhecimento dos negócios, mas
observarás também fielmente o nosso delicado ajuste, não regateando teus
afetuosos serviços à alma de Petepré, protegendo e justificando sua
dignidade com toda a tua arte, sem ser preciso acrescentar que não deverás
jamais ofender essa dignidade suscetível e jamais cederás à tentação de
injuriá-la com palavra ou com atos. Prometes-me isto solenemente, meu
filho Osarsif?
— Solenemente e de boa vontade — respondeu José a este discurso
fúnebre. — Fica descansado, meu pai, que te prometo prestar auxílio à sua
alma com respeitosa fidelidade de servo segundo o nosso pacto e conservar
fidelidade de homem às suas necessidades, recordando-me de ti se um dia
me viesse a tentação de causar-lhe aquela dor especial que a infidelidade
causa ao solitário. Confia em mim.
— Isto me tranquiliza bastante — disse Mont-kav —, embora o
sentimento da morte me agite vivamente, quando assim não devia ser.
Efetivamente, nada é mais comum que a morte, sobretudo a minha, que é a
morte de um homem tão simples que evitou sempre e deliberadamente as
alturas. Pois não tenho uma morte grandiosa nem dela quero fazer muito
caso, como não fiz do meu amor à minha “oliveirazinha”, nem ousei
chamar sobre-humanas as suas dores. Mas eu quero-te abençoar, Osarsif,
em lugar do filho, não sem solenidade, porque solene é a bênção, não eu;
por isso inclina-te sob a mão do cego. Tudo quanto possuo a ti o deixo, meu
verdadeiro filho e sucessor no cargo de mordomo de Petepré, grande
cortesão e meu amo, e abdico em teu favor, o que é um grande prazer para a
minha alma; sim, esta alegria a morte me traz, que eu posso abdicar, e vejo-
me agitado alegremente pela morte, pois o que eu sinto é alegria e nada
mais. Se deixo tudo para ti, isto acontece pela vontade do amo que entre
todos os seus servos te aponta com o dedo e te designa paia o meu lugar
como seu superintendente após a minha morte. Quando ele recentemente,
na bondade do seu coração, veio ver-me e perplexo me observava, assentei
com ele e lhe roguei como favor que, quando eu for divinizado, volte o seu
dedo para ti só e te chame pelo nome, para que eu, por quanto toca à casa e
a todos os negócios, possa ir-me tranquilo. “Sim”, disse ele, “está bem,
Mont-kav, meu velho amigo, está bem. Para ele voltarei o meu dedo se tu
realmente tivesses de partir, o que aliás muito me penalizaria; para ele sem
nenhuma hesitação e para nenhum outro, estamos entendidos; e se alguém
por acaso tentasse pôr-se de permeio, encontraria em mim uma vontade de
bronze, igual ao granito negro das pedreiras de Rehenu. Ele mesmo disse
que é essa a natureza da minha vontade e tive de dar-lhe razão. Ele desperta
em mim o aprazível sentimento da confiança, ainda mais do que o fizeste tu
na tua vida; e muitas vezes acreditei averiguar que com ele está um deus ou
estão muitos deuses que fazem prosperar na sua mão tudo quanto
empreende. Ele me enganará ainda menos que tu na tua honestidade, porque
aprendeu na casa de onde é oriundo que coisa é o pecado e traz nos cabelos
uma coisa parecida com um adorno de sacrifício que o imuniza contra o
pecado. Em resumo, estamos entendidos; depois de ti, Osarsif assumirá a
direção da casa, ocupando-se de todas as coisas de que é impossível que eu
me ocupe. O meu dedo o indicará a ele.” Foram estas as palavras do amo;
estão perfeitamente gravadas na minha memória. Assim eu te abençoo,
depois que ele já te abençoou, pois não é assim que se faz? Abençoa-se
sempre o abençoado e felicita-se o feliz. Também aquele velho na tenda
abençoou o liso, porque este, e não o peludo, estava abençoado. Sê, pois,
abençoado, como já o és! Tens um ânimo alegre e audazmente presumes
muito de ti, e ousas chamar sobre-humanas as dores de tua mãe e virginal o
teu nascimento, com razões que são sempre discutíveis: são estes os sinais
da bênção que eu não tinha e que por isso não posso dar; mas, uma vez que
morro, posso abençoar-te e desejar-te felicidade e alegria. Baixa um pouco
mais a tua cabeça sob a minha mão, meu filho — a cabeça daquele que
aspira às alturas debaixo da mão do homem modesto. A ti deixo como
legado a casa e os campos em nome de Petepré, para o qual eu os
administrava; a ti dou a sua gordura e a sua abundância, para que
superintendas as oficinas, as provisões nos depósitos, os frutos do pomar, o
gado grosso e o miúdo e bem assim a cultura dos campos da ilha, as contas
e todo o comércio. Ponho-te na direção da semeadura e da safra, da cozinha
e da despensa, da mesa do senhor, das necessidades do harém, dos lagares
de azeite, das adegas e de toda a famulagem. Espero não ter esquecido
nada. Tu, porém, Osarsif, não te esqueças de mim quando eu for divinizado
como Osíris. Sê o meu Horus, que protege e justifica o pai. Não deixes que
o meu epitáfio se tome ilegível e conserva a minha vida. Dize-me, queres
providenciar para que o chefe dos embalsamadores, Min-neb-mat, e seus
assistentes façam do meu corpo uma bela múmia, não preta mas de um
bonito amarelo, pois já pus de parte todos os ingredientes necessários; que
eles não os consumara, mas me salguem bem com natro e para a minha
perpetuação empreguem bálsamos finos, estoraque, madeira de zimbro,
resina de cedro do pote, mastique de pistácia doce e finas faixas em volta do
corpo? Queres providenciar, meu filho, para que o meu eterno invólucro
seja bem pintado e coberto por dentro de escritos protetores, sem lacunas
nem taliscas? Prometes-me cuidar a fim de que Imhotep, sacerdote dos
mortos no Ocidente, não distribua entre seus filhos a quantia que lhe deixei
para o pão, a cerveja, o azeite e o incenso destinados a alimentar os meus
sacrifícios, mas que fique tudo com uma só pessoa, de sorte que nos dias
festivos o teu pai esteja eternamente provido de comida e de bebida?
Agrada-me e faz-me bem ouvir que me prometes tudo isto com devoto
acento, pois que a morte é uma coisa comum, mas é acompanhada de
grandes preocupações e o homem deve garantir-se por muitos lados. Instala
também uma pequena cozinha no meu quarto, para que a criadagem possa
lá assar coxas de touro. Acrescenta a isso um ganso assado de alabastro,
uma talha de vinho feita de madeira, e põe lá também uma boa quantidade
daqueles teus figos de sicômoro. Dá-me prazer ouvir que me concedes tudo
isto com devotas palavras tranquilizadoras. Por via das dúvidas, põe ao lado
do meu esquife um botezinho com remadores e deixa lá dentro, ao meu
lado, também alguns servos para que se apresentem quando o Ocidental me
chamar para arar o seu campo fértil, porque o meu cérebro tinha o dom da
organização e da vigilância, mas eu não sei guiar o arado nem manejar a
foice. Oh, em quantas coisas a morte exige que se pense! Não esqueci nada?
Promete-me pensar também naquilo que eu tiver esquecido, por exemplo,
cuida de que em cima de meu peito ponham aquele bonito escaravelho de
jaspe que Petepré, na bondade da sua alma, me deu de presente e sobre o
qual está escrito que o meu coração, posto sobre a balança, não se levante
como testemunha contra mim. Achá-lo-ás na arca, logo à direita, no
cofrezinho de teixo, junto com os meus dois colarinhos que te deixo em
herança. E agora basta. Ponho fim aos meus discursos fúnebres. Não se
pode pensar em tudo e sempre fica muita inquietação que a própria morte
traz consigo e só aparentemente traz a necessidade de prover antes. A
própria questão de se saber como viveremos depois da nossa partida é, mais
que outra coisa, um pretexto da inquietação da morte; é a forma que ela
toma nos nossos pensamentos. Contudo, os meus pensamentos não deixam
de ser pensamentos de inquietação. Estarei sobre as árvores como um
pássaro entre pássaros? Poderei ser isto ou aquilo a meu talante, uma garça
real no charco, um escaravelho que vai rolando a sua bola, um cálice de
lótus sobre a água? Viverei no meu quarto e gozarei das oferendas
adquiridas com os meus fundos? Ou estarei lá onde Rá brilha de noite e
onde tudo será exatamente como aqui, céu e terra, no, campo e casa, e eu
serei de novo o veterano dos servos de Petepré, como estou habituado a ser?
Tenho ouvido falar de uma maneira e de outra e ainda de outros modos, e
tudo de uma vez e tudo por causa da nossa inquietação, a qual entretanto
acaba na sonolência que agora me invade. Reclina-me novamente na cama,
meu filho, porque estou exausto e dirigi o meu derradeiro pensamento à
bênção e às preocupações. Quero entregar-me ao sono que me embriaga;
mas antes que me entregue todo a ele, quisera ainda saber depressa se
tornarei a achar no Nilo ocidental a minha “oliveirazinha” que morreu. E
antes de tudo eu deveria agora preocupar-me com que no último momento,
quando estou para adormecer, a cãibra me não arranque ao sono. Dá-me a
boa-noite, meu filho, como sabeis fazê-lo. Segura-me os braços e as pernas
e com palavras doces esconjura a cãibra. Faze ainda uma vez o teu delicado
oficio... pela última vez. Não, pela última, não, porque se junto ao Nilo dos
transfigurados tudo é como aqui, também tu, Osarsif, estarás de novo ao
meu lado como meu discípulo e me darás de novo a bênção noturna
segundo os teus dotes, graciosamente modificada todas as noites, porque és
abençoado e podes dar a bênção, ao passo que eu posso apenas formular
votos... Não posso mais falar, meu amigo, estão terminadas as minhas
conversações fúnebres. Não penses, porém, que eu não te possa ainda ouvir.
A mão direita de José estava sobre as brancas mãos do moribundo e a
esquerda segurava-lhe firmemente a coxa.
— A paz seja contigo! — disse. — Repousa feliz, meu pai, durante a
noite! Vê, eu velo e cuido dos teus membros, enquanto tu, completamente
livre de todo aborrecimento, podes tomar o caminho da consolação e não
tens necessidade de preocupar-te com coisa alguma; pensa em como tudo
isto é belo e alegra-te; nada mais te dê cuidado! Não te preocupes com os
teus membros, nem com os negócios da casa, nem contigo mesmo, nem
com o que será de ti, nem como que será a vida que fica do outro lado desta.
Agora é mesmo assim: nada disto é negócio teu nem te deve dar cuidado e
nenhuma inquietação mais deve atormentar-te; deixa tudo como está, pois
que de algum modo deve ser, uma vez que existe; da melhor maneira
possível se providenciou para que as coisas se passem desse jeito e não de
outro; quanto a ti não te toca mais providenciar sobre nada e podes
simplesmente descansar sobre aquilo de que cuidaste. Tudo isto não é
estupendamente cômodo e tranquilizador? Quanto a dever e a poder, acaso
hoje não é como quando a minha bênção vespertina te recomendava que
não pensasses que devias repousar, mas que apenas podias fazê-lo? Vê,
agora te é permitido! Estão acabados todos os aborrecimentos, todas as
tribulações e todo incômodo. Acabaram-se os sofrimentos físicos,
acabaram-se os terrores dos espasmos. Nada de remédios repugnantes, de
cataplasmas quentes, de chupadores anélidos no pescoço. Abre-se o cárcere
da tua moléstia. Saias dele, livre e incólume vais pelos caminhos da
consolação que em cada passo conduzem sempre mais profundamente às
mansões da paz. No começo andas ainda por campos que já conheces,
aqueles que cada noite te acolhiam com a intervenção da minha bênção.
Sem que o saibas, desse teu corpo que eu aqui seguro com as minhas mãos
vem-te ainda um pouco de peso, de dificuldade em respirar. Logo, porém (e
nem sequer percebes o passo que para lá te conduz), te acolhem prados de
completa bonança onde nem de longe, nem do modo mais inconsciente te
tocará qualquer cuidado daqui e imediatamente ficas livre de toda moléstia,
de toda dúvida a respeito de como é lá e de que será de ti e te espantas de te
teres algum dia atormentado com tais escrúpulos, porque tudo é como é e
acontece do modo mais natural, mais justo, melhor, na mais feliz harmonia
consigo mesmo e contigo que és Mont-kav por toda a eternidade. Pois o que
é, é, e o que era, será. Duvidas, com o peso que te acabrunha, se vais
encontrar a tua oliveira nos campos do além? Rirás do teu desânimo, pois
que ela está ao pé de ti; e como não havia de estar, sendo tua? E ao teu lado
estarei também eu, Osarsif, o defunto José, como eu me chamo para ti; os
ismaelitas me levarão a ti. Continuarás a vir sempre ao pátio, com a tua
barbicha, os teus brincos e debaixo dos olhos as bolsas salientes que
presumivelmente te ficaram das noites das quais secretamente choravas
Beket, a Oliveira, e perguntarás”Que é isto? Quem são estes homens?” E
dirás”Por favor! Achais que eu posso ouvir-vos tagarelar todos os dias de
Rá?” Com efeito, sendo tu Mont-kav, não podes abandonar o teu papel;
diante da gente não hás de querer fingir que verdadeiramente acreditas que
eu não sou outra coisa a não ser Osarsif, o escravo estrangeiro vendido,
porquanto no teu intimo saberás já, pelo que houve da outra vez, num
modesto pressentimento, quem sou eu e que arco descrevo para preparar o
caminho dos deuses, dos meus irmãos. Adeus, pois, meu pai e
superintendente! Na luz e na bonança nos tomaremos a ver.
Aqui José se calou, cessando de dar as boas-noites, pois viu que as
costelas e o ventre do mordomo estavam imóveis e que ele
imperceptivelmente já passara dos campos do mundo para os prados da
eternidade. Tomou uma pena que já outras vezes lhe agitara diante dos
olhos para verificar se ainda enxergava e colocou-a sobre os seus lábios. Eh,
porém, não se moveu. Não foi preciso fechar-lhe os olhos porque ele
próprio já os havia pacificamente cerrado no seu sono.
Vieram os entendidos e durante quarenta dias salgaram e embalsamaram
o corpo de Mont-kav. Foi depois envolvido em faixas, posto num caixão
exatamente do seu tamanho e, convertido agora num Osíris todo pintado,
pôde ficar ainda alguns dias no fundo do pavilhão do jardim defronte dos
deuses de prata. Depois ainda teve de fazer uma viagem rio abaixo até o
sagrado túmulo de Abodu, em visita ao Senhor do Ocidente, antes de poder
dar entrada, com pompa medíocre, na câmara da rocha que adquirira, nas
montanhas de Tebas.
E José não pôde nunca pensar naquele homem sem que seus olhos se
umedecessem. Então aqueles olhos se pareciam surpreendentemente com os
de Raquel quando estavam rasos de lágrimas impacientes, nos anos durante
os quais ela e Jacó esperavam um pelo outro.
6
A PALAVRA INCOMPREENDIDA
Agora que seus olhos estavam abertos, Mut resolveu proceder como um
ser humano razoável e dar um passo que não fizesse ruim figura diante do
trono da razão. Seu intuito claro e inequívoco era afastar José da sua
presença. Perante Petepré, seu marido, proporia, com todas as energias de
que dispunha, a saída do servo.
Eni passara na solidão o dia seguinte à noite do sonho, apartada de suas
irmãs e sem receber nenhuma visita. Ficara sentada ao pé do tanque da sua
galeria, olhando para além dos irrequietos peixinhos, olhando com o olhar
parado, como se diz quando o olhar se perde no espaço, sem se fixar em
nenhum objeto determinado. De repente, porém, no meio dessa fixidez do
olhar os seus olhos, embora ainda cravados no nada, haviam-se dilatado
com espanto, arregalando-se o mais que podiam, como se estivessem
tomados de horror, enquanto a boca se lhe escancarava, sorvendo
rapidamente o ar. Depois, de novo seus olhos se tinham comprimido, as
comissuras da boca se aprofundaram e os lábios se afrouxaram num sorriso
inconsciente sob o olhar sonhador. Durante todo um minuto ela própria não
sabia que estava a sorrir; estremecendo de repente, levou a mão aos lábios
ociosos, colocando o polegar sobre uma das faces e os outros quatro dedos
sobre a outra. “O deuses!”, murmurou. Depois tudo começou de novo: o
olhar sonhador, o sorver o ar, o sorriso inconsciente, o estremecimento —
até que afinal veio a conclusão: Eni tinha que pôr cobro àquilo.
Pela tardinha, havendo-se certificado de que Petepré estava em casa,
dera ordem às escravas para que a vestissem, a fim de poder visitá-lo.
O cortesão achava-se na sala oriental da sua casa, cuja vista dava para o
pomar e para um dos lados do quiosque de recreio. A luz crepuscular,
coando-se pelas esbeltas pilastras coloridas da parte externa, alagava a sala,
dando um tom mais intenso às cores demasiadas das pinturas que uma mão
negligente de artista traçara sobre o estuque do pavimento, das paredes e do
teto, representando pássaros voando sobre o pântano, bezerros a pular,
tanques com patos e uma manada de bois guiada por pastores através do
vau de um rio, observada por um crocodilo que espiava fora da água. Os
afrescos da parede posterior, entre as portas que Ligavam aquela sala com a
sala de jantar, representavam o próprio cortesão em carne e osso,
reproduzindo-o de volta a casa e atendido por zelosos servos. Vítreos
quadrinhos de porcelana emolduravam as portas, as quais sobre um fundo
cor de camelo eram cobertas de hieróglifos em vermelho, azul e verde, com
máximas de bons autores antigos e palavras tiradas de hinos sacros. Entre
uma porta e outra, ao longo da parede, havia uma espécie de saliência com
encosto ou borda levantada, tudo de barro coberto de estuque branco e de
hieróglifos coloridos sobre as partes anteriores. Essa saliência ou banco
servia para suster obras de arte, presentes de que andavam cheias as salas de
Petepré, mas podia-se também ficar lá sentado; e justamente no meio desse
banco estava sentado agora o homem carregado de honrarias, recostado
numa almofada, com os pés descansando sobre um escabelo, e aos seus
lados achavam-se alinhados diversos objetos, como animais, imagens de
deuses, esfinges de reis lavradas em ouro, malaquite e marfim; e atrás dele
os falcões, os patos, as corujas, as denteadas linhas de flutuação e outros
sinais ideográficos das inscrições. Pusera-se à vontade, tirando a roupa e
conservando apenas o saiote de forte pano branco que lhe chegava aos
joelhos, com uma larga faixa engomada. O traje de cima e seu bastão com
as sandálias amarradas nele estavam sobre uma cadeira com pés de leão,
perto de uma das portas. Petepré, porém, não consentia o mínimo
afrouxamento à sua postura; sentava-se perfeitamente empertigado, com as
mãos breves estendidas sobre o joelho. Comparadas com o tamanho do
corpo, as mãos pareciam minúsculas. Trazia também erguida a cabeça,
graciosamente proporcionada, nariz nobremente recurvo, a boca de talhe
fino, fazendo pensar num belo quadro natural que estivesse ali pousado,
majestosamente recolhido consigo, os braços como os de uma mulher
gorda, o peito largo e saliente. Com os meigos olhos castanhos de
compridas pestanas olhava à sua frente, através da sala, para a tarde
purpurina. Apesar de toda a sua gordura, não tinha barriga, sendo mesmo
delgado de ancas. Contudo, o umbigo chamava atenção pelo seu volume
excepcional; alargado horizontalmente, fazia o efeito de uma boca.
Estava ali sentado imóvel havia muito tempo, num ócio que o natural
porte majestoso do homem enobrecia. No sepulcro que o aguardava,
imitação em tamanho natural da sua pessoa, talvez em pé disfarçado dentro
de uma porta, na obscuridade e com a mesma calma imóvel na qual aqui se
exercitava, ficaria a olhar com olhos castanhos de vidro para a sua casa
eterna, para aquilo que estava realmente nela e aquilo que era, como
talismã, pintado nas paredes para todo o sempre. A estátua seria uma só
coisa com ele; o cortesão já lhe antecipava a identidade, ali sentado e
tomando-o eterno. Por trás dele, junto ao escabelo, falavam as inscrições
ideográficas vermelhas, azuis e verdes; aos seus lados estavam alinhados os
brindes de Faraó; perfeitamente correspondentes ao senso da forma do
Egito estavam as pilastras pintadas da sua sala, por entre as quais ele olhava
a tarde que caía. O estar rodeado dos bens que se possuem conduz à
imobilidade; ficam eles na sua inércia e formosura, e o dono mesmo, inerte
também, permanece entre eles imobilizado. A mobilidade convém antes aos
procriadores abertos ao mundo, que semeiam e produzem e, morrendo,
passam para a sua descendência, e nada tem que ver com um indivíduo
como Petepré, enclausurado na sua existência. Harmonioso, simétrico,
imóvel, lá estava ele sentado, sem acesso ao mundo, inacessível à morte da
procriação, eterno, um deus na sua capela.
Uma sombra negra deslizou por entre as pilastras, movendo-se de lado
na direção dos olhos do dignitário, não mais que um contorno, uma silhueta
contra o rubro fulgor. Entrou toda encolhida e assim ficou, silenciosa, com a
fronte entre as mãos postas em terra. Petepré voltou lentamente para aquela
sombra os bugalhos dos olhos. Era uma das nuas escravas mouras de Mut,
com qualquer coisa do aspecto de um animalzinho. Ele refletiu, cerrando os
olhos. Depois ergueu ao de leve, somente até o pulso, uma das mãos
apoiadas ao joelho e ordenou:
— Fala.
A escrava despegou a fronte do chão, moveu os olhos em torno e com
voz rouca e selvagem disse:
— A senhora está perto e desejava aproximar-se do senhor.
Petepré pensou mais uma vez e depois respondeu:
— Concedido.
O animalzinho desapareceu aos recuos, para lá do limiar. Petepré
continuava sentado, com as sobrancelhas erguidas. Instantes depois, Mut
estava no mesmo ponto onde se aninhara a escrava. Com os cotovelos
fincados nos lados, estendeu para ele as palmas numa atitude de oferta.
Putifar viu que ela estava densamente vestida. Sobre a apertada veste
inferior que lhe chegava aos tornozelos, Mut usava uma segunda veste de
baixo mais ampla, em forma de manto e toda pregueada. Suas faces
sombrias estavam emolduradas dentro de um pano azul escuro em forma de
chinó, que lhe caía sobre os ombros e a nuca, e amarrado por uma fita
bordada. No alto da cabeça havia um cone de unguentos, com um furo
através do qual passava a haste de um lótus que descia recurvo
paralelamente à linha da cabeça, de modo que a flor lhe pendia sobre a
testa. As pedras da gargantilha e dos braceletes despendiam chispas escuras.
Petepré também levantou para ela em saudação as mãozinhas e levou
uma das dela aos lábios para osculá-la.
— Flor dos países! — disse ele em tom de surpresa. — Ó tu, formosa de
rosto, tu que tens um lugar na casa de Amun! Única na formosura, com
mãos puras quando tanges o sistro e de bela voz quando cantas! —
Conservou o tom de alegre surpresa enquanto dizia rapidamente essas
fórmulas. — Tu que enches a casa de beleza, mulher graciosa a quem todos
prestam homenagem, confidente da rainha, tu sabes ler no meu coração,
pois satisfazes os meus desejos antes que eu os manifeste e os executas
ainda antes de os conheceres. Eis aqui uma almofada — disse depois em
tom comum, tomando-a detrás das suas costas e acomodando-a sobre a
saliência inferior ao lado dos próprios pés. — Queiram os deuses —
acrescentou, reatando o tom delicado — que tenhas vindo a mim com um
desejo que eu possa satisfazer com tanto maior alegria quanto maior for ele!
Tinha razão de estar curioso. Aquela visita era qualquer coisa fora do
comum e o agitava, pois aquilo se afastava da usual ordem respeitosa que
dominava na casa. Adivinhou alguma razão especial para aquela quebra de
hábitos, algum pedido quiçá, e veio-lhe uma certa alegria ansiosa. Mut, no
momento, limitou-se a dizer bonitas palavras.
— Que desejo poderia eu ainda ter, sendo tua irmã, meu senhor e
amigo? — disse ela com sua meiga e harmoniosa voz de contralto, na qual
se percebia o exercício do canto. — Só respiro por teu intermédio e graças à
tua grandeza todo desejo meu é satisfeito. Se tenho um lugar no templo, é
porque sobressais entre os ornamentos do país; se me chamam amiga da
rainha, é somente porque és amigo de Faraó e a tua pessoa é aureolada pela
graça do sol. Sem ti eu seria escura. Sendo tua, tenho luz em abundância.
— Inútil seria contradizer-te, pois que é esse o teu modo de ver— disse
ele sorrindo. — Vamos ao menos cuidar que não seja logo desmentido
aquilo que dizes da abundância de luz. — Bateu palmas. — Traze luz! —
ordenou ao servo que veio da sala de jantar. Eni protestou pedindo:
— Ainda não, meu marido. Ainda não está de todo escuro. Estavas aqui
sentado a gozar a linda hora do crepúsculo; não me quero arrepender de te
ter perturbado.
— Não, eu insisto — respondeu ele. — Toma isto conto uma
confirmação do que se anda dizendo de mim em tom de reproche — que a
minha vontade é como o negro granito do vale de Rehenu. Não posso
mudá-la e estou velho demais para melhorar. Fazê-lo seria mostrar-me
ingrato a quem tenho de mais caro e melhor, que adivinhou o mais secreto
desejo do meu coração com esse desejo. Poderia eu recebê-la no escuro e na
sombra? Não é para mim uma festa o teres vindo? E deixa-se sem luz uma
festa? Todas as quatro luzes — disse aos dois servos que traziam fogo e se
apressaram a acender os candelabros de cinco lâmpadas, postos sobre
pedestais nos cantos da sala. — Fazei subir alto as chamas!
— O que tu queres, sucede — disse ela, como se estivesse cheia de
admiração, encolhendo submissamente os ombros. — Na verdade eu
conheço a firmeza das tuas decisões e quero deixar a censura aos homens
que com ela se escandalizam. E difícil que as mulheres deixem de apreciar
a inflexibilidade no homem. Devo dizer por quê?
— Eu gostaria de ouvi-lo.
— Porque só isto pode dar valor à submissão e tomá-la alguma coisa de
que nos possamos orgulhar quando a recebemos.
— Verdadeiramente encantador — disse ele e fechou os olhos por causa
da claridade que agora reinava na sala, pois os pavios das vinte lâmpadas
estavam embebidos numa cera gordurosa que os fazia emitir grandes
chamas dum clarão deslumbrante, inundando o aposento de uma luz
crepuscular branca e rubra, como de leite e sangue; e fechou os olhos
também porque as palavras de Mut lhe davam que pensar.
“Evidentemente”, pensava consigo, “ela tem um pedido a fazer-me, e não
pequeno, porque do contrário não faria tais exórdios. Não é esse o seu jeito,
pois sabe muito bem das minhas nobres peculiaridades e quanto me agrada
que me deixem em paz e que não me deem ocupação nenhuma. Por seu
lado, ela é em geral muito arrogante para me pedir seja o que for, e assim a
sua arrogância e a minha comodidade se juntam em harmonia conjugal.
Entretanto, me faria bem à alma prestar-lhe um serviço, mostrando-me
poderoso. Estou ansioso por saber o que quer. Melhor seria que isso lhe
parecesse uma coisa grandiosa, mas que para mim não o fosse, de modo que
eu pudesse alegrá-la sem grande incômodo meu. Noto que há um conflito
no meu íntimo entre o meu desejo de mostrar-me amável e poderoso
perante essa mulher e o meu justificado egoísmo que provém da minha
posição especial e da santidade do meu estado, de maneira que acho
extraordinariamente enfadonho que alguém me importune ou perturbe a
minha paz. Ela está bonita nesse vestido de pano espesso com que se
apresenta diante de mim, razão por que mandei que fizessem luz nesta sala;
bonita com as duas gemas dos seus olhos e com as sombras das suas faces.
Quero-lhe bem tanto quanto me permite o meu justificado egoísmo; mas
está aqui justamente a contradição, pois que também a odeio, odeio-a
sempre por causa do direito que de mim não reclama, mas que é
naturalíssimo no casamento. Entretanto, não a odeio por gosto e quisera
poder amá-la sem ódio. Se se me oferecesse uma boa ocasião de me mostrar
amável e poderoso perante ela, o ódio sena eliminado do meu amor e eu
seria feliz. Por isso estou muito curioso de saber o que quer, conquanto eu
esteja também ansioso por causa da minha comodidade.”
Assim pensava Petepré com os olhos fechados, enquanto os escravos
com o fogo faziam chamejar as lâmpadas e depois se retiraram em silêncio,
segurando os tições entre os braços cruzados.
— Permites então que eu me sente aqui perto de ti? — perguntou-lhe
Em, sorrindo. Saindo sobressaltado da sua própria meditação, Petepré se
inclinou mais uma vez, no meio de demonstrações de júbilo, para a
almofada, a fim de lha acomodar. Mut sentou-se aos pés no banquinho
coberto de inscrições.
— Realmente — disse ela —, raro acontece estarmos juntos assim
durante uma hora, gozando a presença um do outro sem outro intuito que
não seja conversar sobre qualquer assunto; porquanto conversar tendo um
objeto em vista é uma necessidade, mas conversar sem nenhum intuito em
vista é uma deliciosa superfluidade. Não te parece?
Petepré conservava estendidos sobre o espaldar da saliência os seus
grandes braços femininos e fez um aceno afirmativo com a cabeça. E ia
pensando”Raro acontece? Nunca acontece, porque nós, membros desta
nobre e sagrada família, pais e filhos, vivemos isolados nos nossos
aposentos e, excetuando o tempo das refeições, nos evitamos
reciprocamente, por delicadas considerações. E se hoje isso acontece, deve
haver um objeto e uma necessidade que espero com uma curiosidade
inquieta. Será possível que eu não tenha razão? Que essa mulher só tenha
vindo aqui para nos vermos? Que um desejo do coração a tenha feito
suspirar por esta hora? Não sei que coisa desejar, porque na verdade seria
desejo meu que ela viesse fazer-me algum pedido que não perturbe muito a
minha comodidade; mas quase que desejaria ainda mais vivamente que
tivesse vindo só por causa da minha presença.” E, enquanto pensava, disse:
— Sou inteiramente da mesma opinião. E próprio de pobres e humildes
servirem-se da conversa para explicar suas necessidades. O que ao contrário
nos toca a nós ricos e nobres é a bela superfluidade em todas as coisas e
também no discurso da nossa boca, porquanto beleza e superfluidade são a
mesma coisa. E esquisito o que acontece com as palavras e a dignidade
delas, esquisito, porque elas podem erguer-se da sua fraqueza às alturas do
seu significado. A palavra “supérfluo”, por exemplo, muitas vezes traz
consigo um sentido desprezível; contudo ela pode levantar-se a uma
verdadeira grandeza além do alcance do desprezo e em si mesma significar
realmente o nome e a índole da beleza. Amiúde eu penso no mistério das
palavras quando estou só e entretenho o meu espírito com essa encantadora
e ociosa ocupação.
— Sou grata ao meu senhor por me conceder a mercê de tomar parte em
tudo isso — disse ela. — O teu espírito é claro como as lâmpadas que
fizeste acender para o nosso encontro. Se não fosse o camarista de Faraó,
poderias facilmente ser um desses pensadores que andam pelos átrios do
templo e meditam nas palavras da sabedoria.
— Muito possível — disse ele. — O homem podia ser muito mais que
aquilo de que o encarregam de ser ou de representar. Cabe-lhe muitas vezes
maravilhar-se do absurdo papel que representa; sente-se sufocar com a
máscara que a vida pôs nele, como às vezes os sacerdotes podem sentir-se
sufocados com a máscara do deus. Concordas comigo?
— Concordo.
— Provavelmente não de todo — disse ele numa insinuação. — E
possível que as mulheres sintam menos isso. Pois a Grande Mãe lhes
concedeu um sentido mais geral quanto a serem mais mulheres e imagens
da Mãe e menos esta ou aquela mulher individual, como se, por exemplo, tu
fosses menos obrigada a ser Mut-em-enet do que eu sou obrigado a ser
Petepré pelo severo espírito paterno. Concordas?
— Está tão claro nesta sala — disse ela com a cabeça baixa — por
causa das chamas que se levantam em virtude da tua máscula vontade. A
mim me parece que seria melhor acompanhar esses pensamentos numa luz
mais branda. Na luz crepuscular seria mais fácil para mim considerar essa
questão de ser mais uma mulher e imagem da Mãe do que simplesmente
Mut-em-enet.
— Perdoa-me — apressou-se ele de responder. — Da minha parte foi
uma falta de senso não adaptar a nossa conversa deliciosamente ociosa à luz
que mais quadra a esta hora aprazível. Vou imediatamente dar à nossa
conversa um rumo mais condizente com a iluminação que julguei adaptar-
se melhor aqui. Nada mais fácil. Passo agora das coisas do espírito e de
natureza íntima às do mundo palpável que está mais à flor da nossa
compreensão. Já sei como vou mudar de rumo. Deixa somente que eu me
alegre de passagem com este belo segredo: que o mundo das coisas
palpáveis é também o das coisas compreensíveis. Com efeito, aquilo que se
pode tocar com a mão pode ser comodamente compreendido ainda pelo
espírito das mulheres, das crianças, do povo, ao passo que o impalpável só é
compreensível ao mais severo espírito paterno. Compreender é o nome
metafórico e espiritual que se usa para tocar; mas também este se toma, por
sua vez, uma metáfora e de um objeto espiritual facilmente compreensível
gostamos de dizer que se pode tocar com a mão.
— São muito engraçadas as tuas observações, os teus vãos pensamentos
— ponderou ela — e não posso descrever-te como com isto alegras
conjugalmente o meu espírito. Não penses que eu tenha grande pressa de
passar das coisas impalpáveis às compreensíveis. Pelo contrário, eu queria
ainda deter-me contigo sobre este ponto e ficar escutando a tua
superfluidade, fazendo-te oposição na medida da minha inteligência de
mulher e de criança. Queria somente dizer que, tratando-se de coisas de
natureza íntima, se pode falar mais profundamente com uma luz menos
flamejante.
Meio agastado, Petepré não respondeu imediatamente. Depois,
sacudindo a cabeça em sinal de desaprovação, disse:
— A senhora desta casa volta sempre ao mesmo argumento e ao ponto
em que as coisas não andaram inteiramente segundo a sua vontade, mas
segundo uma vontade mais forte. Isto não é muito bonito e menos ainda por
ser essa a maneira que têm as mulheres de insistir num mesmo assunto.
Concede-me advertir-te que, ao menos a esse respeito, a nossa Eni deveria
tentar ser mais Mut, a mulher particular, do que a mulher em geral.
— Escuto e me arrependo — disse ela.
— Se nós — prosseguiu Petepré, dando expressão ainda maior ao seu
mau humor —, se nós quiséssemos fazer-nos censuras pelas nossas mútuas
medidas e decisões, como me seria fácil observar com acrimônia que tu,
minha amiga, nesta hora de visita te apresentaste num manto cheio de
dobras espessas, quando o desejo e o júbilo do amigo é poder acompanhar,
através do amável tecido, as linhas do teu corpo de cisne.
— Na verdade, ai de mim! — disse ela e baixou a cabeça, corando. —
Para mim melhor seria morrer do que saber que me escapou um erro ao
vestir-me para a visita ao meu senhor. Juro-te que com este vestido eu
acreditava que faria resplandecer mais que nunca diante de ti a minha
beleza. Ele é mais precioso e foi feito com maior trabalho que a maior parte
dos meus outros vestidos. Minha escrava costureira Cheti trabalhou nele
com esforço indefesso e entre nós duas dividimos a preocupação para que
eu encontrasse agrado aos teus olhos; mas preocupação dividida não é
preocupação diminuída.
— Não importa, querida — disse ele. — Deixa isso de lado. Não quis
dizer com isso que queria queixar-me, mas que, dado o caso, o poderia fazer
também eu se tu o quisesses fazer. Não posso todavia supor que tenhas essa
intenção. Prossigamos, pois, com a nossa vã conversa como se a questão da
censura jamais tivesse penetrado aqui, como uma nota desafinada. Passo
agora às coisas do mundo palpável, exprimindo o contentamento que sinto
pelo fato de a missão da minha vida levar a marca de uma superfluidade
sem objetivo e não a da necessidade. Chamei régia a superfluidade e
realmente ela está no seu lugar próprio na corte e no palácio Merimat, tal
qual o ornamento, a forma por amor à forma, a frase elegantemente boleada
com que se saúda o deus. Tudo isso são negócios do cortesão; e sob este
aspecto pode-se dizer que a máscara da vida abafa o cortesão menos que ao
que o não é, pois este se vê oprimido pelo fato objetivo e pode-se dizer que
ele é mais chegado às mulheres, porque lhe é concedido ser menos
individual. Verdade é que eu não estou entre os conselheiros aos quais
Faraó pede o parecer sobre a abertura de um poço na estrada através do
deserto até o mar, ou sobre a ereção de um monumento, ou sobre quantos
homens são precisos para assegurar um carregamento de ouro em pó
proveniente das minas da miserável Kuch; e é possível que isto prejudique
o contentamento que tenho de mim mesmo e que eu me tenha zangado com
aquele tal Hor-em-heb que comanda as tropas da casa e exerce o principal
cargo entre os algozes, quase sem haver pedido a minha opinião, a mim que
também tenho o título desses cargos. Sempre, porém, tenho superado
rapidamente esses acessos de aborrecimento. Com efeito, tanta diferença há
entre mim e Hor-em-heb como a há entre o titular do flabelo de honra e o
homem necessário mas insignificante que realmente segura o flabelo por
cima de Faraó, quando este sai na sua cadeirinha. Gente desse estofo está
abaixo de mim. A mim incumbe ficar diante de Faraó na sua audiência
matinal com os demais titulares e dignitários da corte e com voz agradável
repetir o hino de saudação à majestade desse deus”Tu és igual a Rá”; a mim
toca desmanchar-me em incríveis floreios verbais, como”A tua língua é
uma balança, ó Neb-ma-ré, os teus lábios são mais exatos do que o fiel da
balança de Thot”, ou em extravagantes afirmações, como”Quando dizes ao
oceano: — Ergue-te até a montanha! — eis que as águas saem do seu leito,
mal acabaste de falar.” Desta maneira bela e sem objeto, alheia às
necessidades da vida ordinária, é que eu falo. Pois a pura forma, o adorno
sem escopo, é a minha honra e a minha tarefa, tal como é tarefa da realeza
ser régia. É o que eu devia dizer para honra do contentamento que de mim
mesmo tenho.
— Está muito bem — retrucou ela — se, como não pode haver dúvida,
as tuas palavras são profundas ao mesmo tempo para honra do
contentamento que de ti mesmo tens e para honra da verdade, meu marido.
Parece-me, entretanto, que as cerimônias da corte e os ornamentos oratórios
na audiência matinal servem para revestir de honra e de terror as
preocupações materiais do deus, como seriam pela sua própria importância
nacional os poços, as construções e o transporte do ouro, e que a
preocupação com essas coisas é que constitui a verdadeira realeza no poder
régio.
Mais uma vez Petepré se absteve durante algum tempo de dar qualquer
resposta, brincando com a faixa bordada do seu saiote. Finalmente disse
com um leve suspiro:
— Eu faltaria à verdade se quisesse afirmar que neste nosso colóquio tu,
minha querida, te hajas com insuperável habilidade. Não sem arte mudei o
rumo à conversa passando a discorrer sobre coisas do mundo palpável,
falando de Faraó e sua corte. Mas em vez de apanhar a bola e de perguntar-
me, por exemplo, a quem Faraó puxou a orelha hoje de manhã, como sinal
de graça, quando saía da sala depois da recepção matinal, divagas e fazes
considerações sobre poços do deserto e minas, assuntos de que, minha
amiga, hás de com certeza entender menos que eu.
— Tens razão — respondeu ela e abanou a cabeça como a reprovar o
seu erro. — Perdoa-me. Era muito grande a minha curiosidade de saber a
quem Faraó hoje puxou a orelha. Por isso a disfarcei divagando.
Compreende-me bem: eu tencionava diferir essa minha informação, porque
o adiamento me parece uma bela e necessária parte integrante do discurso
florido. Quem será tão bronco que dê logo a saber o que lhe importa? Mas,
uma vez que me facultas a pergunta, dize-me, meu marido, foste acaso tu
que deus tocou ao sair?
— Não — disse Petepré —, não fui eu. Mais de uma vez já fui tocado,
mas hoje não. Mas o que acabas de dizer saiu da tua boca...
não sei como. Saiu da sua boca como se estivesses propensa a crer que
Hor-em-heb, o comandante ativo das tropas, seja maior do que eu na corte e
nos países...
— Por amor do Oculto, meu esposo! — disse ela consternada e pôs a
mão sobre o joelho de Petepré, onde este ficou olhando-a como se naquele
lugar tivesse pousado um pássaro. — Eu teria de estar doente do espírito e
deveria ter perdido o bem do intelecto sem esperança de melhora se, ainda
que fosse por um instante...
— Mas assim te exprimiste — insistiu ele, encolhendo acabrunhado os
ombros, embora, provavelmente, sem ser de propósito. Seria pouco mais ou
menos como se dissesses... que exemplo devo citar? Como se dissesses que
um padeiro da corte de Faraó que, com a cabeça metida no forno, coze o
pão para o deus e para a sua casa, é maior que o grande superintendente da
panificação régia, o padeiro-mor de Faraó, cujo título é “príncipe de
Mênfis”. Ou como se dissesses que eu, que, como é natural, de nada me
ocupo, sou nesta casa menos do que Mont-kav ou, pior ainda, menos que a
sua jovem “boca”, o sírio Osarsif, que está à testa da propriedade. Estes são
confrontos contundentes...
Mut estremeceu.
— Sim. Na verdade são tão contundentes que tremo com eles — disse
ela. — Tu o vês e na tua generosidade ser-te-á suficiente ter-me dado este
castigo. Agora reconheço que atrapalhei a nossa conversa com a minha
tendência ao retardamento. Tu, porém, veda a minha curiosidade que queria
esconder-se; veda-a, como se faz com o sangue e conta-me quem foi que
recebeu hoje a carícia real na sala do trono.
— Foi Nofer-rohu, chefe dos unguentos da tesouraria do rei —
respondeu Petepré.
— Ah! Foi esse príncipe? — disse ela. — Rodearam-no os outros'
— Consoante o uso da corte, rodearam-no para o felicitar — respondeu
Petepré. — Momentaneamente ele está em primeira linha na atenção do
deus, e para nós seria importante que fosse visto no banquete que queremos
dar no próximo quarto de lua. Seria de importância decisiva para o brilho
do banquete e para o esplendor da minha casa.
— Sem dúvida — confirmou Mut. — Deves convidá-lo com uma
bonita carta, de modo que ele a leia com agrado por causa dos títulos que
lhe deves dar, por exemplo, “Dileto do seu senhor!”, “Premiado e mimado
pelo seu senhor”, e deves mandar essa carta à sua casa acompanhada de um
presente, por intermédio de servos escolhidos. Assim será improvável que
Nofer-rohu te dê uma negativa.
— E o que eu também acredito firmemente — disse Petepré. — O
presente também deve ser uma coisa especial. Quero que me tragam um
grande sortimento de objetos, vou escolher e esta mesma noite escreverei a
carta com títulos que ele lê com sumo agrado. Deves saber, minha filha —
prosseguiu ele —, que quero que essa festa seja verdadeiramente de
arromba, de modo que se comente na cidade e que a fama corra até outras
cidades mais longínquas, com uns setenta convidados e abundância de
perfumes, flores, músicos, iguarias e vinho. Adquiri uma belíssima múmia
que será mostrada a cada comensal, excelente artigo de uma vara e meia de
comprimento; se a quiseres ver antes, mostro-ta. A caixa é de ouro, o corpo,
de ébano, e sobre a sua testa está escrito”Celebra o dia festivo.” Ouviste
falar nas dançarinas babilônias?
— Que dançarinas, meu esposo?
— Está aqui na cidade uma companhia ambulante dessas forasteiras.
Mandei-lhes presentes para que compareçam no meu banquete. Pelo que me
contaram, devem ser de uma formosura rara e acompanham suas danças
com guizos e timbales de barro. Dizem que sabem gestos novos e solenes e
ao dançar põem uma espécie de raiva nos olhos bem como na mímica
amorosa. A mim mesmo prometo uma verdadeira sensação e um sucesso
perante a nossa sociedade para as dançarinas e para a minha festa.
Eni parecia pensativa; tinha os olhos baixos.
— Pretendes — perguntou ela após um instante de silêncio — -convidar
para a tua festa a Beknechons, primeiro sacerdote de Amun?
— Sem a menor dúvida — respondeu ele. — Beknechons? É claro. Que
pergunta a tua!
— Achas importante a sua presença?
— E por que não? Beknechons é grande.
— Mais importante do que a presença das jovens de Babel?
— Que comparações são estas, querida? Que escolhas são essas que me
vais enumerando?
— E que, meu marido, uma coisa não se pode conciliar com a outra.
Advirto-te que terás de escolher. Se na tua festa fazes dançaras jovens de
Babel diante do primeiro sacerdote de Amun, poderia dar-se que a estranha
raiva dos olhos das dançarinas seja igual à raiva estuante no coração de
Beknechons e que ele se levante, chame os seus servos e deixe a sala.
— Impossível!
— Até bastante possível, meu amigo. Ele não tolerará vero Oculto
ofendido ante seus próprios olhos.
— Por uma dança de bailarinas?
— De bailarinas estrangeiras, quando no Egito há tanta graça que se
chega a mandar desse artigo para países estrangeiros.
— Com maior razão pode então o Egito, do seu lado, gozar um pouco o
encanto do novo e do raro.
— Não é essa a opinião do austero Beknechons. A sua repugnância pelo
estrangeiro é invencível.
— Espero que seja essa a tua opinião.
— A minha opinião é a do meu senhor e amigo — disse Mut —, pois
que nunca será possível que ela seja contra a honra dos nossos deuses.
— A honra dos deuses, a honra dos deuses! — repetiu ele, encolhendo
os ombros. — Devo confessar que nessa tua conversa o meu estado de
ânimo começa desgraçadamente a perturbar-se, conquanto não possa ser
esse o sentido e o intuito de uma palestra decorativa.
— Eu ficaria acabrunhada — respondeu Mut — se fosse esse o
resultado do zelo que eu própria tenho pela tua alma. Porque em que
condições ficaria tua alma se Beknechons, na sua ira, chamasse os seus
servos e abandonasse a tua festa, de modo que os dois países comentassem
essa afronta?
— Não será tão mesquinho que se exaspere com uma distração
elegante, nem tão atrevido que faça uma tal afronta ao amigo de Faraó.
— Ele é tão grande que mesmo por um pequeno pretexto os seus
pensamentos se voltam para coisas grandiosas, e fará uma afronta ao amigo
de Faraó de preferência a fazê-la ao próprio Faraó, e isto justamente para
pô-lo de sobreaviso. Amun odeia o relaxamento que entra por obra do
estrangeiro, quebrando os laços; odeia o desprezo do velho costume
piedoso, porque esse desprezo enfraquece os países e priva do cetro o
império. É esse o ódio de Amun, ambos o sabemos; o seu desejo é que os
severos costumes dominem em Keme como em tempos remotos e que os
seus filhos trilhem o caminho do patriotismo. Mas tu sabes tão bem como
eu que lá — (e Mut-em-enet apontou o oeste, o lado do Nilo e para lá deste
o palácio) — domina outro sentido do sol, dissolutamente amado entre os
sábios de Faraó, o sentido de On no vértice do triângulo, o volúvel sentido
de Atum-Rá, propenso à expansão e ao acordo — chamam-lhe Aton, não
sei com que assonância maliciosa. Porventura não há de Beknechons
indignar-se por Amun de que o seu filho carnal favoreça o relaxamento e
permita que os seus sábios enfraqueçam com frívolo estrangeirismo a
medula do povo do império? O primeiro sacerdote não pode ralhar com
Faraó, mas ralhará com ele em ti e fará uma manifestação em favor de
Amun. Indignando-se como um leopardo do Alto Egito ao ver as raparigas
de Babel, pôr-se-á de pé e chamará os seus servos.
— Minha querida — objetou ele —, ouço-te discorrer com língua
desembaraçada como um papagaio de Punt, que muitas vezes repete o que
ouviu e que não é da sua própria colheita. Medula do povo, costume dos
povos, estrangeirismo que relaxa os costumes. É a desagradável lista de
vocábulos de Beknechons, que tu me vais recitando com evidente
perturbação do meu espírito, porque a tua vinda me abrira a perspectiva de
um cordial cavaco contigo e não com ele.
— Recordo-te, meu esposo — respondeu ela —, as suas ideias que
conheces, para salvar de graves dissabores a tua alma. Não digo que as
ideias de Beknechons sejam as minhas ideias.
— São — replicou ele. — Quando falas, é a ele que ouço. Não é
verdade que tu me expendas as suas ideias como algo de estranho em que
não tomes parte, senão que as fazes tuas, estando tu contra mime de acordo
com ele, com aquela cabeça calva. É esta uma atitude que não te fica bem.
Acaso não sei que ele anda à vontade na tua casa, que te visita cada quarto
de lua e até mais vezes? Isto sucede, mas com tácito despeito meu, porque
ele não é meu amigo e eu não o posso tolerar com aqueles seus termos e
expressões de caturra. A minha natureza e a minha disposição de espírito
exigem um sentido do sol brando, fino, indulgente; por isso, no meu
coração, eu sou de Atum-Rá, o deus complacente, mas antes de tudo sou
dele porque sou de Faraó e cortesão seu, pois que ele deixa que, pensando,
os seus pensadores experimentem o universal e brando sentido solar desse
deus magnífico. E, nesta circunstância, como te comportas tu, minha
mulher e minha irmã, diante dos deuses e dos homens? Em vez de ficares
do meu lado, isto é, do lado de Faraó e de quinhoar os sentimentos da corte,
ficas do lado de Amun, o imóvel, o cara de bronze; pões-te da tua parte
contra mim e te entregas à suprema cabeça calva do deus desgracioso, sem
refletir como é feio melindrar-me e tomar outro partido que não o meu.
— Empregas comparações, meu senhor — disse ela com voz apertada,
abafada pela ira —, a que falta bom gosto, o que, com a leitura que tens, é
de admirar. Pois é de péssimo gosto dizer que eu me entrego ao profeta,
cometendo com isso uma deslealdade contigo. É um símile claudicante e
retorcido. Devo lembrar-te que, segundo a doutrina dos pais e a antiga
crença do povo, Faraó é filho de Arnun; assim sendo, não violarias de
nenhum modo o teu dever de cortesão se levasses na devida conta o sagrado
sentido solar de Amun, ainda que o aches extravagante e fizesses por ele o
fútil sacrifício da curiosidade que tu e os teus convidados tendes de ver uma
dança vil. Isto pelo que te diz respeito. Pelo que a mim me toca, eu sou toda
de Amun com toda a minha honra, com toda a minha religiosidade, porque
sou a esposa do seu templo, pertenço ao seu harém, sou Hathor e danço
diante dele nos trajes da deusa: é esta toda a minha honra, todo o meu
prazer; outro não tenho. Essa posição honorífica é a razão da minha vida;
entanto, tu altercas comigo porque me conservo fiel ao senhor meu deus e
meu mando sobrenatural, e empregas contra mim comparações tortuosas
que clamam ao céu. — E, tomando uma parte da fimbria do seu manto
pregueado e inclinando-se, cobriu o rosto.
O comandante das tropas sentiu-se penosamente comovido. Estremeceu
e chegou mesmo a sentir um arrepio por todo o corpo; pois lhe pareceu que
negócios íntimos, cuidadosamente ocultados até então, ameaçavam vir à
tona de um modo terrível e arrasador. Com os braços estirados sobre o
espaldar da saliência, se recostou ainda mais, afastando-se de Mut, aturdido
e consternado, e confuso com a sua culpa, olhava a mulher que chorava.
“Que é isso?”, pensava. “Uma coisa extravagante e inaudita. Minha
tranquilidade corre grave perigo. Fui longe demais. Trouxe a campo o meu
justificado egoísmo; ela, porém, baniu-mo dele com o seu egoísmo. E não é
somente a nossa conversa; meu coração ficou ferido com as suas palavras,
de sorte que a piedade e a dor se misturam com o terror das suas lágrimas.
Sim, anto-a; suas lágrimas, para mim terríveis, fazem-mo sentir, e eu
quisera fazê-lo sentir também a ela com aquilo que digo.” E despegando os
braços do espaldar da saliência e inclinando-se para Mut, sem todavia tocar-
lhe, disse não sem amargura:
— Bem vês, minha flor, as tuas próprias palavras põem de manifesto
que não falaste apenas para me avisar da obstinada disposição de espírito de
Beknechons, mas sim porque participas da mesma disposição, porquanto as
ideias dele são as tuas e o teu coração está do lado dele e contra mim.
Disseste-o sem rodeios na minha cara”Eu sou toda de Arnun.” Terá sido,
pois, tão falso o símile e terei eu culpa de que o seu gosto seja amargo para
mim, teu marido?
Ela destapou a cara e olhou para Petepré.
— Tens ciúme do Invisível? — indagou Mut, entortando a boca. As
duas gemas dos seus olhos em que se misturavam motejo e lágrima?
estavam cravadas nos dele e coruscavam, metendo-lhe medo e fazendo-o
rapidamente afastar-se da sua posição curva. “Tenho de baterem retirada”,
pensou o cortesão. “Fui longe demais e devo recuar um pouco por amor da
minha tranquilidade e da paz da casa que inesperadamente se encontram em
medonho risco. Como foi possível que eu tenha de ver essa paz tão
imprevistamente ameaçada e que de repente os olhos da mulher se tenham
tomado tão terríveis? Tudo parecia correr bem e estar seguro.” E lembrava-
se de alguma volta sua a casa, quando chegava da corte ou de uma viagem e
a sua primeira pergunta ao mordomo que o saudava era sempre”Vai tudo
bem? A senhora está de bom humor?” E que no seu íntimo havia sempre
uma secreta apreensão quanto à tranquilidade, à dignidade e à segurança da
casa, uma vaga consciência de que elas se firmavam sobre bases bem pouco
sólidas. Agora, fitando os olhos chorosos de Eni, notou que fora sempre
assim e que os seus tácitos receios ameaçavam terrivelmente confirmar-se
de certa maneira.
— Não — respondeu ele —, longe de mim. Repudio e rejeito essa tua
ideia de que eu possa ter ciúme de Amun, o deus. Sei perfeitamente
estabelecer a diferença entre aquilo que deves ao Invisível e aquilo que
deves ao marido. E se, conforme penso, te desagradou a expressão que usei
para caracterizar a tua familiaridade com Beknechons, eu estou sempre
pronto e sempre procuro ensejo de te dar prazer, e isso farei retirando a
comparação da coberta. Será como se eu não tivesse dito aquilo, de sorte
que seja cancelada da relação das minhas palavras. Estás contente?
Mut deixou que as lágrimas secassem de per si nos seus olhos, como se
não soubesse que elas ainda lá estavam. O marido havia esperado
reconhecimento pela sua renúncia, mas Mut não lho mostrou.
— E o menos que eu podia esperar — disse ela sacudindo a cabeça.
“Ela vê que eu me encolho, tomado de medo pelo sossego da casa”,
pensou Petepré, “e explora a situação o mais possível, como fazem as
mulheres. Ela é uma mulher em geral, mais que uma mulher em especial e
minha mulher. Isto não me deve surpreender, embora seja sempre um tanto
penoso ver o eterno feminino exibindo os seus ardis na própria esposa da
gente. Faria uma pessoa sorrir tristemente e tem na realidade um efeito
irritante sobre mim perceber que uma pessoa pensa proceder de acordo com
o seu espírito individual, quando o que ela realmente faz é reproduzir o
padrão comum. E na verdade mortificante. Mas de que valem esses
pensamentos? Posso apenas pensá-los, não dizê-los. O que eu devo dizer é
isto.” E prosseguiu:
— Não era o menos em geral, mas o menos que eu queria dizer. Com
efeito, eu não tencionava deter-me nesse ponto, mas queria também
aumentar o teu prazer declarando-te que, no decurso da nossa conversa,
desisti da ideia de fazer as bailarinas de Babel tomarem parte na minha
festa. Não é desejo meu ofender um homem altamente colocado e teu amigo
com conceitos que se podem considerar preconceitos, sem com isso
eliminá-los do mundo. A minha festa será esplêndida sem as estrangeiras.
— Ainda isto é o menos, Petepré — disse ela, chamando-lhe pelo nome,
o que lhe causou nova apreensão.
— Que dizes? — perguntou ele. — Ainda o menos?
— Sim, menos do que é para desejar, menos do que se deve exigir —
respondeu Mut, depois de soltar um profundo suspiro. — Nesta casa, meu
esposo, devia haver certas mudanças, para que ela não se tome uma casa de
escândalo para os piedosos, mas sim uma casa edificante. Es o senhor de
todas as suas repartições, e quem não se curvaria diante de ti? Quem não
desejaria à tua alma as doçuras e finezas de um complacente sentido do sol
segundo o qual tu vives e pelo qual são satisfeitos os teus hábitos? Eu bem
compreendo que não se pode querer ao mesmo tempo o império e a
vigorosa antiguidade porque, com o tempo, desta nasce aquele e a vida
agora na riqueza do reino deve ser diferente do que era na simplicidade dos
velhos tempos. Não deves dizer que eu não compreendo os tempos e a
mudança da vida. Mas tudo deve ter seus limites, e um resto daqueles
sagrados costumes dos pais que criou o império e a riqueza deve continuar a
viver neles e ser sempre venerado, para que império e riqueza não pereçam
ignominiosamente e o cetro não venha a ser arrebatado do país. Negas esta
verdade, ou negam-na os sábios de Faraó que se ocupam do volúvel senso
solar de Atum-Rá?
— Não se nega a verdade — respondeu o flabelífero — e pode mesmo
suceder que a alguém ela seja mais cara do que o próprio cetro. Falas no
destino. Nós somos filhos do nosso tempo e acho mais fácil viver conforme
a sua verdade, da qual saímos, do que tentar viver segundo uma verdade de
tempos imemoriais e fazer o papel de vigorosos fanáticos da antiguidade,
renegando a nossa alma. Faraó tem muitos mercenários — asiáticos, líbios,
núbios e até nacionais. Eles hão de guardar o reino enquanto o destino o
permitir. Mas nós devemos viver com sinceridade.
— A sinceridade — disse Mut — é cômoda e portanto não é nobre. Que
seria do homem se cada qual quisesse viver na sinceridade dos seus desejos,
sem ter absolutamente nenhuma vontade de emendar-se e dominar-se?
Também o ladrão é sincero e o ébrio que se espoja na valeta e o adúltero. E
havemos de desculpar-lhes o procedimento em razão da sua sinceridade? Tu
desejas viver autenticamente, meu esposo, como filho da tua época e não de
acordo com a antiguidade. Mas onde cada um vive segundo a verdade do
seu impulso há antiguidade bárbara; uma época mais avançada requer a
limitação do indivíduo em atenção a considerações mais elevadas.
— Em que coisa pretendes que eu me emende? — perguntou Petepré
ansioso.
Em nada, meu marido. Tu és imutável e longe de mim abalar a sagrada
calma imota do teu ser. Longe de mim também a vontade de te censurar o
não te ocupares de nada na casa e de nenhuma coisa no mundo, a não ser de
comer e beber; porquanto, mesmo que isso não fosse segundo a tua
natureza, em todo caso seria conforme com a tua posição. As mãos dos teus
servos fazem para ti as tuas coisas, como o farão na tumba. A tua única
tarefa é dar ordens aos servos ou talvez nem isso, porque somente dás
ordens àquele que as dá aos servos, isto é, o teu substituto, para que ele
governe a casa segundo a tua intenção, a casa de um grande do Egito. Só
esta e mais nenhuma outra é a tua tarefa — coisa imensamente fácil, mas da
máxima importância, a saber, que não erres na indicação do homem que te é
necessário.
— Há anos, tantos que já nem os posso contar — disse ele —, é
mordomo da minha casa Mont-kav, homem bom, que me ama como se deve
e que sente no seu íntimo como seria feio amargurar-me. Pelo que se pode
ver das suas contas, creio que nunca me tenha enganado em coisa de
importância e governou a casa nobremente, como a mim agradava. Teve ele
a desgraça de incorrer no teu desfavor?
Mut sorriu com desprezo dessa tentativa de fugir da questão.
— Tu sabes — respondeu ela — como eu sei, como o sabe toda Vese,
que Mont-kav está deperecendo por causa do seu rim arruinado e que, já de
algum tempo para cá, trata tanto das coisas como tu. Faz-lhe as vezes um
outro a quem chamam “a sua boca” e cuja ascensão a esse posto ninguém
jamais acreditaria ser possível. E ainda não basta, pois é voz corrente que,
depois do previsto passamento de Mont-kav, a tal “boca” vai
definitivamente investir-se nas suas funções, ficando nas suas mãos todos
os negócios da casa. Tu exaltas a afeição leal que tem o teu mordomo à tua
dignidade; permite-me confessar que em vão procuro esse sentimento nas
suas ações.
— Pensas em Osarsif?
Ela baixou a cabeça.
— E um modo estranho de exprimir-se — respondeu ela — dizer que eu
penso nele. Fosse vontade do Oculto que ele não existisse, de sorte que não
se tivesse de pensar em tal criatura, quando o que agora se dá é que, por
culpa do teu superintendente, somos vergonhosamente obrigados a pensar
nela. O doente dos rins comprou aquele de quem falas quando ele era rapaz,
comprou-o, digo, de uns mercadores nômades; depois, em vez de conservá-
lo na posição correspondente à sua vileza e ao seu sangue miserável,
exalçou-o, deixando-o encher-se de influência na casa, colocou debaixo
dele todo o pessoal de serviço, tanto o teu como o meu, e levou as coisas a
tal ponto que tu, meu senhor, falas nesse escravo com uma desenvoltura que
me afeta ignominiosamente e contra a qual o meu espírito se revolta. Se,
pensando nele, tivesses dito”Vejo que te referes ao sírio, o do mísero
Retenu, o escravo hebreu” — seria o natural e adequado. Mas a que ponto
chegamos diz-mo tua expressão, que soa assim como se o tal fosse teu
primo: chamá-lo confidencialmente pelo nome e me perguntas”Pensas em
Osarsif?”
E com isso também ela pronunciou-lhe o nome, com um esforço que no
seu íntimo a fazia feliz. Proferiu as místicas sílabas, com seu eco de morte e
divindade, sílabas que para ela encerravam toda a doçura do destino, e
proferiu-as com um soluço no qual procurava pôr indignação, e mais uma
vez cobriu os olhos com o seu manto.
Putifar ficou de novo sinceramente aterrado. — Que há? Que há, minha
boa mulher? — disse, estendendo as mãos sobre ela. — De novo lágrimas?
Explica-me por quê. Chamei o servo pelo seu nome, que é como o chamam
todos. O nome não é a maneira mais breve de nos referirmos a uma
determinada pessoa? Vejo que a minha suposição era justa. Tu pensas no
jovem cananeu que me serve como copeiro e leitor e, não o nego, com
minha inteira satisfação. Não devia isso ser um motivo para pensares
favoravelmente em relação a ele? Não tive nenhuma parte na sua aquisição.
Mont-kav, que tem plenos poderes para contratar e despedir servos,
comprou-o, faz alguns anos, a comerciantes honestos. Depois aconteceu
que o examinei em conversa enquanto ele trabalhava no meu jardim e
achei-o surpreendentemente agradável, agraciado pelos deuses de notáveis
dotes de corpo e de espírito, combinados de um modo extraordinário.
Efetivamente, a sua beleza aparece como a demonstração natural da graça
do seu espírito, e por sua vez seus predicados mentais estão em invisível
correspondência com a graça exterior, de maneira que tu permitirás,
segundo espero, que eu o chame extraordinário, porque é o termo adequado.
Quanto à sua origem, ela não é das piores, pois que o seu nascimento pode
até ser chamado virginal, e, seja como for, é certo que o seu pai era uma
espécie de rei de rebanhos, um príncipe de Deus, e que o rapaz vivia numa
bela situação, como um ente repleto de dons, crescendo perto dos rebanhos
paternos. Verdade é que dores de toda casta foram o seu alimento e houve
pessoas que com êxito armaram ciladas aos seus passos. Não é menos
notável a história da sua paixão; ela tem espírito e engenho ou, como se
costuma dizer, pés e cabeça. Há nela um entrelaçamento de circunstâncias
semelhante ao que faz parecer como uma só coisa o seu exterior aprazível e
o seu interior. Pois essa história tem por si a própria realidade; além disso,
parece ter relação com uma predisposição mais alta e estar de acordo com
ela, de sorte que tu dificilmente distingues uma da outra, pois uma se
espelha na outra e o conjunto forma em redor do jovem um atrativo de
duplo sentido. Como se verificou que ele não se saíra mal no exame a que o
submeti, puseram-no como meu copeiro e leitor, sem que eu desse um passo
para isso, mas, bem entendido, por amor a mim; e confesso que nesses
misteres se me tornou indispensável. E depois, ainda sem qualquer
intervenção minha, cresceu até adquirir o tino sobre todos os negócios da
casa, e também nisto se viu literalmente o Oculto fazer prosperar por seu
intermédio tudo que faz; não me posso exprimir de outra maneira. E agora
que ele se tornou indispensável a mim e à casa, que queres que eu faça
dele?
Realmente, que coisa se podia ainda querer e fazer depois que o
cortesão se havia pronunciado? Satisfeito, olhou em redor e sorriu depois
do que acabava de dizer. Putifar se firmara solidamente, tinha organizado
fortes defesas e preventivamente amolgado o iminente pedido como uma
enormidade, como uma falta de amor para com ele, uma falta incrível. Mal
imaginava o flabelífero que a mulher quase não dera atenção à importância
das suas palavras como trincheira e baluarte, senão que as havia
secretamente sorvido como hidromel e que sempre curvada no seu manto,
na sua profunda tensão ansiosa, não tinha deixado escapar nada daquilo que
ele dissera em louvor de José. Isto mitigou muito o efeito admoestador que
Petepré esperava daquelas palavras e não impediu, o que não deixa de ser
estranho, que Mut se mantivesse com toda a lealdade fiel ao propósito
moral e razoável com que viera. Ela se endireitou e disse:
— Meu marido, suponho que tenhas dito em favor do servo tudo quanto
com certo direito se pode dizer dele. Pois bem, isto não basta nem tem valor
diante dos deuses do Egito, e aquilo que tiveste a bondade de me comunicar
a respeito daquele entrelaçamento de circunstâncias na pessoa do teu servo
e com referência aos atraentes sentidos duplos, isso não se pode sustentar
contra o que é desejável, contra a exigência que Amun deve
inequivocamente apresentar pela rainha boca. Porque também eu sou uma
boca e não somente aquele que dizes ser indispensável a ti e à casa... com
evidente irreflexão. De efeito, como poderia um estrangeiro, recolhido na
estrada, ser indispensável no país dos homens e na casa de Petepré, que era
uma casa de bênção antes que esse servo comprado começasse a crescer
nela? Nunca devia acontecer que ele crescesse nesta casa. Uma vez que o
rapaz foi comprado, o seu lugar era nos campos, no trabalho dos escravos,
em vez de conservá-lo aqui no pátio e confiar-lhe até o teu cálice bem como
o teu ouvido na sala dos livros, graças aos seus dotes apreciáveis. Os dotes
não são o homem; cumpre distinguir este daqueles. Tanto pior se um
homem de baixa origem possui dotes que acabam fazendo com que se
esqueça a sua baixeza natural. Onde estão os dotes que justificam a
exaltação de quem é de baixa origem? E o que devia ter perguntado a si
mesmo Mont-kav, o teu mordomo, que, como há pouco ouvi, sem nenhum
concurso teu, o fez subir e descer depressa demais na tua casa, com angústia
de todas as pessoas pias. Permitirás que ele desafie os deuses até na morte e
aponte como seu sucessor o jovem hebreu, profanando a tua casa perante
todo o mundo e submetendo ao poder de que vem de baixo a criadagem
indígena, fazendo-a ranger os dentes?
— Minha boa mulher — disse o camarista —, como te enganas! A
julgar pelas tuas palavras, não estás bem informada, pois não é o caso de se
falar em ranger de dentes. O pessoal da minha casa ama Osarsif, do
primeiro ao último, do escrivão do aparador ao guarda dos cães, à última
das tuas escravas e ninguém absolutamente se envergonha de obedecer-lhe.
Não sei donde te possa ter vindo a notícia de que nesta casa há um ranger
de dentes por causa da sua grandeza, porquanto essa afirmação é
inteiramente falsa. Ao contrário, todos procuram os seus olhos e porfiam
por fazer debaixo deles o seu dever quando Osarsif passa entre eles e
pendem serenamente dos seus lábios quando o jovem lhes dá instruções. E
até aqueles mesmos que por sua causa tiveram de deixar os seus cargos para
lhe abrir a vaga, mesmo esses não o olham de soslaio, mas de frente e em
cheio, porque os seus dotes são irresistíveis. E por quê? Porque de nenhum
modo as coisas são como tu dizes, e principalmente neste ponto te mostras
mal informada. Não é como dizes, que os seus dotes formam um incômodo
apêndice da sua pessoa e devem ser separados dela. Pelo contrário, eles
formam uma só coisa com a sua pessoa e são os dotes de um abençoado,
tanto que se teria a tentação de dizer que ele os merece, se por sua vez isso
não significasse uma inadmissível separação entre pessoa e dotes, e se, em
se tratando de dotes naturais, se pudesse falar de mérito. Daí acontecer que,
quer andando por terra quer por água, as pessoas o reconhecem de longe, se
acotovelam e dizem alegremente”Aí vem Osarsif, o servo particular de
Petepré, a ‘boca’ de Mont-kav, jovem excelente que viaja para seu senhor,
encarregado de negócios que despachará favoravelmente, à sua maneira.”
Acontece mais que, se os homens o olham de frente e em cheio, as
mulheres o olham de esguelha e pelo canto do olho, o que, segundo sei, é
para elas um bom sinal como o outro o é para os homens. E quando ele
aparece na cidade e passa pelas ruas, sucede as mais das vezes, segundo
ouço dizer, que as moças sobem nos muros e nos telhados e lhe atiram anéis
de ouro dos seus dedos para captar os seus olhares. Mas não os captam.
Eni ouvia com êxtase indescritível. Não é possível dizer como a
inebriasse a exaltação de José, a descrição da sua popularidade. A alegria
corria-lhe pelas veias e cada frase, como uma torrente de fogo, soerguia-lhe
o peito, fazia-a arfar e respirar penosamente como num soluço, aquecia-lhe
as orelhas e só com muito custo ela podia impedir que os seus lábios
sorrissem beatificamente ao ouvir aquelas coisas. O observador compassivo
não pode deixar de sacudir a cabeça diante de um tal contrassenso. O elogio
de José devia confirmar a mulher, se é lícito exprimir-nos assim, no seu
fraco pelo escravo estrangeiro, devia justificar essa fraqueza perante a sua
altivez, precipitá-la cada vez mais no fundo, incapacitá-la ainda mais de
realizar o propósito com que viera ah, qual o de salvar a sua própria vida.
Era essa uma razão de alegria? De alegria, não, mas de delícia — uma
diferença à qual o observador compassivo deve adaptar-se sacudindo a
cabeça. De resto, ela sofria também não pouco. A notícia de que as
mulheres olhavam de esguelha José e lhe arrojavam anéis causava-lhe vivos
ciúmes, confirmava-a de novo no seu fraco e lhe inspirava ao mesmo tempo
uma raiva desesperada contra aquelas que o quinhoavam. Que aquelas
mulheres não tivessem podido atrair para si mesmas os olhares daquele a
quem jogavam os anéis confortava-a um pouco e ajudou-a a portar-se ainda
à maneira de um ser dotado de razão. Disse ela:
— Deixa, meu amigo, que eu passe por alto o fato de não ter sido
grande delicadeza da tua parte inteirar-me do mau comportamento das
mulheres de Vese, supondo que haja algum fundo de verdade nesses
mexericos, os quais talvez sejam divulgados pela própria vaidade do seu
herói ou pela adulação daqueles que ele atraiu para o seu lado mediante
promessas.
Falar daquele que ela já amava sem esperança de salvação custou-lhe
menor fadiga do que se poderia acreditar. Ela o fez maquinalmente, como
se fizesse falar uma pessoa que não era ela própria, tomando então a sua
voz musical um som vazio que correspondia à dureza dos seus traços, a
vacuidade do seu olhar. Todo aquele conjunto formava uma imagem
enganosa.
A coisa principal é — continuou ela desse modo — que a tua censura de
que eu esteja mal informada sobre os negócios da casa resvala por mim e
vai ricochetear sobre ti, de sorte que melhor seria que não a houvesses feito.
O teu hábito de não te ocupares de nada, mas de olhar para tudo com olhos
estranhos e vagos, devia levar-te a ter alguma dúvida sobre o conhecimento
que tens daquilo que se passa em volta de ri. A verdade é que isso de o teu
escravo ter todo esse prestígio na casa dá azo a que os teus se irritem e
fiquem de mau humor. Mais de uma vez, e até muitas vezes, Dudu, o
superintendente dos teus cofres de joias, me falou nesse caso e apresentou
sentidas queixas por causa da mortificação que os homens pios estão
sofrendo com o domínio do impuro...
— Ah, bela flor — disse Petepré, rindo —, não mo leves a mal, belo
companheiro arranjaste, e companheiro de respeito! Esse Dudu é um
pigmeu, um nanico, um megalômano, a quarta parte de um homem, digno
de riso e nada mais. Como havia a sua palavra de ter peso nisto como em
qualquer outro assunto?
— Não é do tamanho da pessoa que se trata — tornou Mut. — Se a sua
palavra é tão desprezível e tão destituído de peso o seu juízo, como o
nomeaste teu guarda-joias?
— Isto não passou de uma brincadeira — disse Petepré — e só para rir
se dá um belo cargo a anões de corte. Ao seu maninho, o outro palhaço,
chamam até de vizir, mas quem levará isso a sério?
— Não tenho sequer necessidade — respondeu ela — de apontar-te a
diferença. Tu o conheces muito bem, conquanto neste momento não o
queiras reconhecer. Mas é bem triste que eu tenha de proteger contra a tua
ingratidão os teus servos mais fiéis e mais dignos. A parte a sua minguada
estatura, o senhor Dudu é um homem digno, sério e leal, que de nenhum
modo merece o epíteto de palhaço e cuja palavra e juízo têm muito peso nos
negócios da casa e da sua honra.
— Dá-me por aqui — observou o comandante das tropas, marcando sua
tíbia com o dorso da mão.
Mut silenciou por um instante.
— Deves ver, meu marido — disse depois, dominando-se —, que és
muito alto, cresceste como uma torre, de maneira que a figura de Dudu bem
te pode parecer mais insignificante que a outros, como por exemplo a Zeset,
sua mulher, minha escrava, e a seus filhos que são também de tamanho
comum e que com amorosa veneração levantam os olhos para aquele que os
gerou.
— Ah! ah! Levantam os olhos!
— E um modo de dizer. Falo em sentido mais elevado, poético.
— Então — acudiu Petepré, escarninho — também te exprimes
poeticamente acerca do teu Dudu. Parece-me que te queixaste de que eu te
entretive pouco agradavelmente. Lembro-te agora que já há algum tempo
estás falando nesse bufão inchado de vaidade.
— Podemos perfeitamente deixar este assunto, se ele te é penoso —
disse Mut com docilidade. — Não preciso que o homem de que falamos se
junte a mim no pedido três vezes justificado em si mesmo que te devo
dirigir; nem tu tens necessidade do seu honrado testemunho para
compreenderes que deves atender-me.
— Vais-me fazer um pedido? — perguntou Petepré. “Então é mesmo
verdade”, pensou não sem amargura. “E mesmo verdade que da está aqui
para fazer-me um pedido mais ou menos incômodo. A esperança de que
tivesse vindo simplesmente para gozar da minha presença não tinha
fundamento e agora desaparece. E depois do que houve não estou muito
disposto a ouvi-la.”
— Qual é o pedido? — perguntou Petepré.
— É este, meu esposo: que afastes o escravo estrangeiro, cujo nome não
repito, da casa e de toda a tua herdade, na qual, por uma benevolência
errônea e uma negligência culposa, lhe foi permitido crescer muito
depressa, tomando-a uma casa, não do exemplo, mas do escândalo.
— Osarsif? Da casa e da minha herdade? Que ideia é essa?
— Meu marido, eu penso no que é bom e no que é justo. Penso honra da
tua casa, nos deuses do Egito e no que a eles deves, e não só a eles, mas a ti
mesmo e a mim, tua irmã-esposa, que agita o sistro diante de Amun, no
ornamento da mãe, consagrada e reservada. Nessas coisas penso e estou,
acima de qualquer dúvida, certa de que basta que eu te recorde tudo isto
para que os teus pensamentos se unam completamente aos meus e tu
atendas imediatamente o meu pedido.
— Mandando embora Osarsif... Isto não é possível, minha amiga, afasta
essa ideia, trata-se de um pedido insensato e inteiramente caprichoso; eu
não posso nem ao menos acolher esse pensamento entre os meus
pensamentos, porque é estranho a eles e contra essa ideia se rebelam com a
maior indignação.
“Chegamos então ao ponto”, pensou ele, enfurecido e ao mesmo tempo
consternado. “É este, pois, o pedido que aqui a trouxe nesta hora,
aparentemente para dar comigo dois dedos de prosa. De longe percebi que o
pedido vinha, mas até o último momento não era capaz de supor que se
tratava de coisa semelhante, de tal modo ela está em conflito com o meu
justificado egoísmo. Desejando mostrar-me grande perante ela, eu lhe
concederia alguma coisa menor, porém isso que ela pensa que é pequeno e
simples de conceder é para mim extremamente incômodo. Não foi debalde
que eu logo senti uma certa apreensão pela minha comodidade. Pena é que
ela não me dê uma possibilidade de lhe causar alegria, porque não é com
prazer que a odeio.”
— O preconceito, minha flor — disse Petepré —, que tens contra a
pessoa desse jovem e que te induz a dirigir-me esse pedido é realmente
deplorável. E evidente que a respeito dele só sabes as maldições e
maledicências que te referiram pessoas mal informadas e mal espigadas,
mas não por teu próprio conhecimento da sua maneira privilegiada que, a
meu ver, jovem como ele é, poderia habilitá-lo a cargos bem mais altos que
o de administrador dos meus bens. Chama-lhe um bárbaro, um escravo,
que, se formos tomar a coisa ao pé da letra, tens direito a isso; mas será
bastante o direito se não há um direito no espírito? Será uso da nossa terra,
quando se trata de apreciar um homem, ver se ele é, ou não, livre, se é
indígena ou estrangeiro? Ou não será antes apreciá-lo segundo se o seu
espírito é tenebroso e indisciplinado ou iluminado pela palavra e enobrecido
pela magia da eloquência? Qual é, sob este aspecto, a prática, qual o uso
dos nossos pais neste país? Pois bem, esse mancebo tem a palavra pura,
serena, escolhida, e exprime-se em tom fascinante; tem uma mão que
escreve artisticamente e lê os livros como se, movido pelo seu próprio
espírito, falasse ele mesmo do seu íntimo, de sorte que toda a argúcia e
sabedoria dos livros parecem vir dele, pertencer a ele, deixando-nos
maravilhado, O meu desejo seria que viesses a conhecer as suas qualidades,
que graciosamente falasses com ele e lhe ganhasses a amizade que te seria
de muito mais préstimo que a daquele arrogante cretino...
— Não quero conhecê-lo nem importunar-me com ele — disse Eni
hirta. — Vejo que estava em erro quando acreditava que tivesses chegado
ao fim da exaltação do escravo. Tinhas ainda alguma coisa que acrescentar.
Agora, porém, espero a palavra que me anuncie teres atendido o meu
pedido, santamente justificado.
— Essa palavra — tornou ele — não está à minha disposição, em razão
do caráter errôneo do teu pedido. Debaixo de mais de um aspecto ele é vão
e inatendível. A questão é somente poder eu explicar-te tudo isso; mas
ainda que o não consiga, nem por isso o teu pedido se tomará mais
atendível. Já te disse que Osarsif não é um escravo qualquer. Ele enriquece
a casa e é para ela um servo precioso; quem tomaria sobre si a
responsabilidade de substituí-lo? Seria o mesmo que roubar a casa e fazer a
ele uma grave injustiça, porquanto Osarsif é um homem sem defeito, um
jovem de maneiras finas, de sorte que expulsá-lo daqui sem mais nem
menos seria tarefa sumamente ingrata à qual ninguém se prestaria com
facilidade.
— Temes o escravo?
— Temo os deuses que estão com ele, fazendo prosperar tudo que tem
em mãos e tomando-o simpático a todo o mundo. Escapa à minha
percepção quais sejam esses deuses, porém isto é certo — que eles se
revelam poderosamente nele. Se não recusasses conhecê-lo melhor,
desapareceriam depressa certas ideias tuas, como a de que se deveria atirá-
lo no fosso do trabalho servil dos campos ou vendê-lo vilmente. Estou certo
de que te interessarias logo por ele e o teu coração se abrandaria em relação
ao jovem, pois que entre a sua vida e a tua existe mais de um ponto de
contato, e se me apraz tê-lo perto de mim, isto acontece, deixa que eu te
diga à puridade, porque muitas vezes ele me faz pensar em ti...
— Petepré!
— Digo o que digo e penso coisas que absolutamente não são
insensatas. Não és consagrada e reservada ao deus, diante do qual danças
como sua segunda mulher sagrada, e não usas com orgulho diante dos
homens o ornamento da tua consagração? Pois olha, também esse mancebo
(disse-me ele próprio) traz um ornamento desses, invisível como o teu.
Parece tratar-se de uma espécie de sempre-viva, que é um distintivo de
juventude consagrada e preservada, como está expresso no seu nome
realmente enigmático, pois que lhe chamam a ervinha não-me-toque. Foi o
que dele mesmo ouvi não sem espanto, porque eram coisas novas para mim.
Eu conhecia muito bem os deuses da Ásia, Attis e Achrat, e os Baal do
crescimento. Ele e os seus, porém, submetem-se a um deus que eu não
conhecia e cujo ciúme me surpreendeu. Pois esse deus único é solitário,
exige fidelidade e se comprometeu com eles como um noivo, o que é
bastante estranho. Por princípio trazem todos aquela ervinha e são
preservados para o seu deus como uma noiva. Mas entre eles o deus escolhe
ainda particularmente um para servir de holocausto, para que use
expressamente o ornamento da juventude consagrada e seja reservado para
o deus zeloso. E Osarsif é um destes. Conhecem, disse-me ele, qualquer
coisa a que dão o nome de pecado e jardim do pecado, tendo ainda
imaginado animais que ficam olhando por entre os ramos do jardim e de
cuja fealdade não podemos capacitar-nos devidamente: são três, de nome
“vergonha”, “culpa” e “riso zombeteiro”. E agora te pergunto duas coisas:
pode-se desejar um servo e mordomo melhor do que um que nasceu para a
fidelidade e de nascença teme o pecado, como é o caso de Osarsif? Além
disso, terei falado demais citando pontos de contato entre ti e o jovem?
Ah, como Mut-em-enet ficou aterrorizada com estas palavras! Se
experimentara uma dor pungente ouvindo falar das donzelas que
arremessavam anéis a José, nada disso tinha importância e era até um prazer
em confronto com a espada que a traspassou ao escutar as razões pelas
quais as moças da cidade não logravam atrair para si os olhares dele.
Salteou-a uma angústia terrível, igual ao pressentimento daquilo que ela
teria de sofrer por causa de José, e seu rosto, voltado para cima, se coloriu
de uma pálida aflição. Ponha-se alguém no seu lugar, pois a todos os seus
dissabores vinha juntar-se também o sentimento do ridículo. Por que lutava
ela e combatia a teima de Putifar, se este dizia a verdade? E se fosse mentira
o sonho salvador que lhe tinha aberto os olhos e a trouxera àquele lugar? Se
aquele contra o qual ela se esforçava por salvar a própria vida e a vida do
seu senhor, enfeitado com o título de comandante, fosse um predestinado do
holocausto, reservado e vigiado ciosamente? Em que aberração ela temera
perder-se? Faltava-lhe força para cobrir com as mãos os olhos que,
contemplando fixamente o vácuo, acreditavam ver os três animais do
jardim, a vergonha, a culpa, o riso zombeteiro, sendo que este último uivava
como uma hiena. Tudo isto era insuportável. “Fora, fora”, pensou ela
açodadamente; “agora mais que nunca deve ser mandado embora aquele
sobre o qual tive sonhos mentirosos de salvação, vergonhosos e mais que
vergonhosos, porque — ah! — debalde, completamente debalde, eu atiraria
sobre ele o anel do meu dedo. Sim, eu luto com razão e devo continuar a
lutar, agora mais que nunca, se as coisas são assim. Mas antes não espero no
meu íntimo, com triunfante confiança, que a minha ânsia de salvação se
mostre mais forte do que o seu noivado e o vença, e ele siga o meu olhar
para estancar o meu sangue? Não o espero e não o temo com uma força que
no fundo tenho como irresistível? Sim, é evidente ainda uma vez e mais que
nunca que ele tem de afastar-se dos meus olhos e da casa para que se salve a
manha vida. Está ali o meu marido com os seus grossos braços, um
verdadeiro colosso; Dudu, o anão que é pai, lhe chega somente à canela.
Dele, da sua condescendência, deve esperar salvação, só dele!” E como se
se quisesse refugiar junto de seu marido inerte, que era o mais próximo,
para experimentar nele a força da própria ânsia de salvação, retomou a
palavra e com voz harmoniosa lhe respondeu:
— Concede, meu amigo, que eu não me detenha sobre o teu discurso e
não te responda argumentando para refutá-lo. Seria ocioso. O que me dizes
não se presta à discussão; bastava que, em vez de tantas palavras, dissesses
logo”Não quero.” Todo o teu discurso não é mais que um manto a encobrir
tua vontade inflexível; é a firmeza férrea da tua decisão, a determinação
granítica que reveste tudo quanto dizes. Iria eu opor-me a tal firmeza
altercando vãmente, se eu mesma a amo e admiro com ternura toda feminil?
Agora, porém, espero de ti outra coisa; espero uma resolução que sem
aquela firmeza seria pouco ou nada, porque recebe desta magnífico valor:
espero que atendas o meu pedido. Nesta hora que não é como as outras,
nesta hora passada aqui, um defronte do outro, nesta hora cheia de
expectativa na qual vim aqui fazer-te um pedido, se dobrará sobre mim a
tua vontade de homem para satisfazer o meu desejo, dizendo”Seja afastado
da casa esse escândalo, Osarsif seja deposto, expulso, vendido a outros.”
Ouvirei isto, meu senhor e marido?
— Já ouviste, minha querida, que não te é possível ouvires essas
palavras, ainda que eu tenha toda a vontade de te causar alegria. Não posso
expulsar nem vender Osarsif, não posso querer, não tenho à minha
disposição a vontade de fazê-lo.
— Não podes querê-lo? A tua vontade então seria dona de ti e não tu
dono da tua vontade?
— Minha filha, isso são sofismas. E possível haver alguma diferença
entre mim e a minha vontade, de modo que um seja senhor e o outro servo?
Experimenta tu dominar a tua vontade e querer aquilo que te é de todo
repugnante, aquilo que te é de todo detestável.
— Estou pronta a fazê-lo — tornou Mut, atirando para trás a cabeça —
se se trata de coisas mais altas, tais como a honra, o orgulho, o reino.
— Nada disso está comprometido aqui — retrucou ele —, o de que aqui
se trata é da honra de uma sã razão, do orgulho da sabedoria e do império
da justiça.
— Não penses em tal, Petepré — rogou ela com voz estrídula. — Pensa
na hora, na hora única e na sua expectativa, quando vim ter contigo, fora da
ordem, contrariamente à tua comodidade. Vê, eu cinjo com os meus braços
o teu joelho e te imploro: satisfaze o meu desejo com o teu poder, meu
esposo, só esta vez, e permite que eu saia daqui confortada!
— Por mais agradável que me seja — respondeu Petepré — sentir em
torno dos meus joelhos os teus formosos braços, é-me impossível atender-
te, e aos teus braços deves agradecer a brandura do reparo que me cumpre
dirigir-te a propósito da pouca consideração que mostras com a minha
saúde. Mas, embora não me perguntes, quero dar-te aqui entre nós dois,
nesta hora única, algumas informações. Sabe, pois — disse ele com certo ar
de mistério —, que eu devo reter Osarsif não só pelo bem da casa que ele
me aumenta, ou porque esse jovem me lê os livros dos doutos com grande
agrado meu e como não o soube fazer nenhum outro antes dele, mas por
uma outra razão ele é sumamente importante ao meu bem-estar. Se te digo
que Osarsif desperta em mim o agradável sentimento da confiança, não
digo tudo: quero dizer alguma coisa de indispensável. O seu espírito é fértil
em invenções benéficas de toda espécie; mas a principal destas é que cada
dia e cada hora ele sabe falar-me a respeito de mim mesmo, colocando
diante de mim a minha pessoa numa luz favorável, luz divina, fortalecendo
o meu coração de maneira que adquiro consciência de mime...
— Deixa-me lutar com ele — atalhou Eni, agarrando com mais força os
joelhos do marido —, deixa-me derrotar aquele que só sabe palavras que
fortalecem o teu coração e a tua confiança em ti mesmo. Eu sei fazê-lo
melhor. Eu te ofereço o ensejo de fortificares realmente o teu coração por ti
mesmo, com o teu poder, satisfazendo a expectativa desta hora e
devolvendo o escravo ao deserto. Pois, meu marido, como te sentirás
quando satisfizeres o meu desejo, saindo eu confortada da tua presença!
— Pensas assim? — perguntou ele, cerrando os olhos. — Pois bem,
escuta. Quero dar ordens para que, quando venha a faltar o meu mordomo
Mont-kav, que está à morte, não lhe suceda na direção da casa Osarsif, mas
algum outro, talvez Chamat, o escrivão da despensa. Porém Osarsif deve
continuar na casa.
Ela sacudiu a cabeça.
— Isto a mim não aproveita, meu amigo, e portanto nem ao teu
fortalecimento nem ao sentimento de confiança que deves ter em ti próprio.
Porque desse modo só pela metade ou talvez menos que isso seria satisfeito
o meu desejo. Osarsif tem de sair da casa.
— Então — acudiu ele —, se isto não te basta, retiro a minha oferta,
será posto à testa da casa o mancebo.
Ela soltou os braços.
— É a tua última palavra?
— Infelizmente, outra palavra não está à minha disposição.
— Então me retiro — suspirou ela e levantou-se.
— É o melhor — disse Putifar. — Afinal, não deixou de ser uma hora
agradável. Para te alegrar, vou-te mandar de presente um vaso de perfumes
de marfim lavrado, representando peixes, ratos e olhos.
Ela voltou-lhe as costas e se encaminhou na direção das arcadas da sala.
Aí parou um instante, tendo algumas dobras do manto na mão que apoiava
a uma das frágeis colunas, com a fronte inclinada sobre a mão e o
semblante oculto entre as dobras. Ninguém pôde olhar o que ia por trás
daquelas dobras no rosto velado de Mut.
Depois ela bateu as palmas e saiu.
TRÍPLICE COLÓQUIO
O FOSSO
CARTINHAS DE AMOR
Como ficou dito, Putifar, por causa da arrogância que lhe supunha, não
tolerava Dudu, e por isso o Osíris Mont-kav sempre o vira com maus olhos.
Viu-se também que o cortesão conservava a distância o encarregado do
cofre das joias, não o admitia nunca em sua presença, interpondo entre si e
o anão, para o seu serviço particular, intermediários, pessoas de tamanho
normal, mais habilitadas, primeiro em razão de sua estatura, a passar para
aquela torre de carne os competentes adornos e trajes, para o que Dudu teria
de trepar numa escada, e depois porque, sendo desenvolvidas, davam menor
importância a certas propriedades naturais e a certo poder solar e não se
vangloriavam delas como Dudu, para quem esse poder constituía uma
surpresa perpétua e uma distinção importante e fagueira.
Por esse motivo não foi fácil ao homúnculo — no tortuoso caminho
pelo qual por fim julgara conveniente enveredar depois de ter ido e vindo as
ocultas entre o intendente e a senhora — chegar a seus fins, isto é, ao amo,
para aclará-lo com suas luzes. Isto não se verificou logo após a sua briga
com o vizir truão à entrada da sala defendida pelos cortinados. Durante
dias, semanas, se viu menosprezado e teve de solicitar audiência. Foi-lhe
preciso, a ele, chefe do guarda-roupa, peitar os escravos camareiros ou
ameaçá-los de lhes não entregar tal adereço ou tal veste, que guardaria
debaixo de chave (o que os arruinaria perante o amo), se não lhe dissessem
que Dudu queria falar-lhe de um grave assunto interno. Durante quartos de
lua completos, rogou, bateu o pé, intrigou, antes de lhe ser concedido tal
favor. E tanto mais ardentemente desejava recebê-lo quanto pensava que,
uma vez outorgado, já não lhe seria, de futuro, denegado, sendo o serviço
que ia prestar ao patrão de uma natureza destinada a granjear-lhe para
sempre o seu afeto e a sua condescendência.
O obstinado Dudu conseguiu por fim ganhar para a sua causa, por meio
de presentes, dois escravos incumbidos do banho, e obteve que, a cada
cântaro d’água derramado no peito e nas costas do amo, lhe dissessem-
“Senhor, lembra-te de Dudu.” Reiteraram sua advertência quando a
gotejante torre de carne, passando da piscina para o pavimento de mármore,
se deixava enxugar com panos perfumados, e disseram então,
alternativamente”Lembra-te, senhor, que Dudu espera ansioso.” Vencido
afinal, acabou ordenando”Pois que venha e fale. " Então fizeram sinais aos
escravos preparadores dos unguentos, também pagos, que se achavam de
guarda no dormitório, e estes, chamando o anão que na sala ocidental se
consumia de impaciência, o introduziram na alcova. Ergueu quanto pôde
suas mãozinhas para a banqueta em que o amigo de Faraó se estendia para
entregar-se aos massagistas e deixou caída de banda, com humildade, sua
cabeça de anão entre os diminutos braços levantados, aguardando uma
palavra de Petepré, ou um olhar. Mas não vinha nem uma coisa nem outra.
O camareiro se limitava a gemer suavemente sob o punho enérgico de seus
servidores, que, com azeite de nardos, lhe friccionavam os ombros, as
cadeiras e os músculos, os grossos braços de mulher, o peito anafado. Mais
ainda, até virou a nobre e pequena cabeça, na almofada de couro, para o
lado contrário ao de que vinha a saudação de Dudu, postura muito
humilhante para este; contudo, seu assunto lhe parecia tão rico de
promessas que Dudu absolutamente não se acovardou com isso.
— Dez mil anos além do termo marcado para o teu destino tenhas tu
que comandas os homens, guerreiro do soberano! Quatro talhas para
conterem tuas vísceras e um sarcófago de alabastro para encerrar tua forma
eterna!
— Gradas — disse Petepré. Disse-o em babilônio, como nós diríamos
“merci”, por exemplo, e acrescentou: — Este pretende falar muito?
A palavra “este” era mortificante. Porém o assunto de Dudu estava
cheio de esperanças e por isso não se deixou vencer pelo desânimo.
— Não muito, senhor, nosso sol — respondeu. — Antes, muita coisa
em poucas palavras.
E, a um sinal da mão miúda de Petepré, avançou um passo, cruzou seus
dois cotos sobre as costas e, retirando o lábio inferior e com dignidade
estirando o superior para a frente como um telhado, começou sua
informação, bem sabendo que não lhe seria possível terminá-la diante dos
dois massagistas, que Petepré despacharia quanto antes para escutá-lo
melhor.
Apresentou seu discurso de um modo que se poderia qualificar de hábil,
se tivesse sido mais delicado. Começou entoando loas a Min, deus da
vindima, que em certos lugares se reverenciava como uma forma particular
do supremo poder solar, mas que tivera de entregar seu nome a Amun-Rá.
Na qualidade de Amun-Min ou Min-Amun-Rá formava com ele uma só
coisa, de modo que Faraó podia com igual serenidade falar de “meu pai
Min” ou “meu pai Amun”, especialmente durante a festa da coroação e da
vindima, na qual o aspecto Min de Amun se acentuava e ele era um deus
fecundo, padroeiro dos viandantes do deserto e, em todo o ímpeto da sua
força procriadora, o sol itifálico. Dudu o invocou com dignidade; apoiando-
se nele, pediu a aprovação do amo para o fato de que, fazendo parte do
pessoa! superior, grão-mestre dos cofres das vestes senhoriais, não limitara
seu zelo ao círculo restrito dos deveres do seu cargo; como esposo e pai que
era, genitor de dois rapazinhos de boa conformação, chamados desta e
daquela maneira, e aos quais, se os indícios não enganavam e segundo a
confissão que a senhora Zeset lhe sussurrara junto ao peito, breve viria
juntar-se um terceiro, em resumo, ele que contribuía para a proliferação da
casa e estava devotamente adstrito à sua dignidade de homem e à majestade
de Min (e portanto a Amun na sua qualidade de Min), tinha os olhos fitos
em tudo e especialmente no que dizia respeito à fecundidade humana e à
reprodução; patrocinava todos os acontecimentos felizes que se davam —
matrimônios, uniões abençoadas, noivados, procriação e partos —, anotava-
os e os regulava, deliberava com aqueles que se encontravam nestes
diversos casos, aconselhava-os, estimulava-os ou dava-lhes com sua própria
pessoa o exemplo da atividade e da ordem rigorosa. Pois, disse Dudu, o
exemplo deve vir do alto, naturalmente não da altura suprema, onde, por
certo, como para toda outra coisa, não se podia nem se desejava ocupar-se
desta. Daqui se seguia ser tanto mais importante e urgente tomar a tempo as
medidas adequadas para impedir que se pudesse perturbar o repouso
sagrado do chefe augusto que se elevava por cima de todo exemplo, e evitar
que no lugar da dignidade se introduza o seu oposto. E os que vinham
imediatamente depois do amo tinham o dever, segundo o seu parecer de
anão, de servir de modelos ao pessoal subalterno tanto no que se refere à
atividade como à ordem. Aqui perguntou Dudu se suas palavras vinham
obtendo a aprovação do senhor, nosso sol.
Petepré encolheu os ombros e virou-se de bruços para que suas
formidáveis costas ficassem entregues aos massagistas; depois, levantando
a graciosa cabeça, perguntou a que vinham essas alusões à perturbação do
seu repouso e à “dignidade e seu oposto”.
— O primeiro dos teus servos chegará logo a esse ponto — respondeu
Dudu. E filiou do defunto mordomo Mont-kav, que vivera probamente e, a
seu tempo, desposara a filha de um empregado; por ela, tinha-se convertido
em pai ou, pelo menos, o teria sido se as coisas não houvessem tomado um
rumo desfavorável e seu valor não tivesse sido vítima do destino;
desalentado, findara seus dias na viuvez, tendo, sem embargo, dado provas
de boa vontade. Isto pelo que dizia respeito a Mont-kav. Agora Dudu ia
passar ao belo presente — belo no sentido de que o finado tinha encontrado
um sucessor, seu igual —, ou melhor, se não seu igual (por se tratar de um
estrangeiro), pelo menos alguém que nada lhe ficava a dever na parte
intelectual. Via-se à frente da casa um jovem seguramente notável, de nome
um tanto singular, é certo, mas bem parecido, hábil e astuto, em suma, um
indivíduo dotado de qualidades eminentes.
— Idiota! — murmurou Petepré, apoiado em seus braços cruzados, pois
nada nos parece mais estúpido do que a apreciação elogiosa de um objeto
cujo valor verdadeiro quiséramos ser os únicos a apreciar.
Dudu fez que não ouviu. Era possível que o amo tivesse dito “idiota”,
mas não tomava conhecimento disto, para conservar seu valor e não
desmoralizar-se.
Disse que nunca poderia encarecer bastante os predicados do jovem em
questão, verdadeiramente sedutores, deslumbrantes e, para certas pessoas,
até perturbadores; e justamente por causa deles era tanto mais grave a
preocupação que se impunha em relação à ordem e à prosperidade de uma
casa que o mencionado jovem tinha sido chamado para dirigir, graças a seus
méritos.
— Que coisa está engrolando este? — disse Petepré, meneando a
cabeça e virando-a ligeiramente de lado, como se estivesse falando com os
massagistas. — Os méritos do intendente são uma ameaça para a boa
direção da casa?
Este “engrolando” era duro, e ainda mais com a repetição do “este”. O
anão, porém, não esmoreceu.
— Não o seriam de nenhum modo — retorquiu — em circunstâncias
diversas das atuais, que não são boas, e teriam sido uma bênção inteira para
a casa, se recebessem, ou melhor, se tivessem recebido a limitação e a
satisfação legal que tais qualidades — isto é, fisionomia atraente, astúcia e
fascinação da palavra — requerem, para que assim não propaguem em
torno a agitação, o fermento e a ruína.
E Dudu deplorou que o jovem mordomo, cujas convicções religiosas
aliás eram impenetráveis, se abstivera de pagar à majestade de Min o tributo
que lhe devia, e que apesar de seu importante cargo se conservava solteiro,
não condescendendo em contrair uma aliança adequada a suas origens, por
exemplo, com a escrava babilônia Istar-ummi, do harém, e assim deixando
de aumentar a casa, multiplicando-se. Era lamentável e odioso, era
inquietante, era uma coisa cheia de perigos. Não somente sofria com isso o
decoro, senão que assim se faltava ao bom exemplo de atividade e de ordem
que deviam dar as esferas superiores. E por fim, em terceiro lugar, essas
sedutoras qualidades do jovem intendente, que ninguém punha em dúvida,
estavam privadas da limitação que lhes daria o caráter de inocuidade
necessário desde há muito para não inflamar, enlouquecer e transtornar os
espíritos, em suma, para não espalhar a infelicidade mais longe, não só na
sua condição, mas em outra muito superior, até uma esfera augusta.
Uma pausa. Petepré deixava-se pisoar e não respondia.
— Uma de duas! — explicou Dudu. — Um mancebo desta classe ou
devia tomar estado para que suas qualidades, cessando de causar em redor
estragos funestos, se apaziguem no remanso do matrimônio e se tomem
inofensivas, ou, melhor ainda, necessário seria que a navalha do barbeiro
entrasse em ação para provocar-lhe a saudável inocuidade, preservando o
repouso e a dignidade de altíssimas personalidades e destarte impedir que
sua honra degenere no seu oposto.
Novo silêncio. Petepré virou-se bruscamente de costas e os massagistas,
ocupados em sová-lo, ficaram um instante coibidos, com as mãos no ar.
Levantou a cabeça para o anão, mirou-o de alto a baixo e dos pés à cabeça
(a falar verdade, um caminho curto para os seus olhos) e olhou rapidamente
para uma cadeira sobre a qual estavam suas vestes, as sandálias, o abanico e
outros objetos. Depois voltou-se de novo, com a testa entre as mãos.
Invadia-o uma cólera gelada de espanto, uma espécie de indignação
aterrada ante a ameaça à sua tranquilidade que lhe viera trazer aquele
homenzinho repelente, de um tamanho ridículo. Não havia dúvida de que o
vaidoso aborto da natureza queria contar-lhe alguma coisa que, se era
verdadeira, merecia ser dita a ele, Petepré, o qual o estava exprobando pelo
fato de vir informá-lo, como se fosse uma grosseira falta de afeto. “Vai tudo
bem na casa? Nenhum incidente? A senhora está de bom humor?” Tratava-
se, evidentemente, disto e também era evidente que alguém, sem ser
interrogado, se enfeitava para responder a essas perguntas. Detestou-o
acima de tudo; não estava disposto a odiar a ninguém enquanto não ficasse
positivada a veracidade da informação. Ia ser preciso, portanto, despedir os
massagistas e ficar cara a cara com esse guarda da honra, deixar-se inteirar
por ele sobre a honra, com grande apoio de verdades ou de vãs calúnias. A
honra! Reflita-se que coisa isto representa na atual circunstância. E a honra
sexual, a honra do macho casado. Consiste na fidelidade da esposa ao
esposo, em testemunho de que este é um galo magnífico, completo; as
satisfações que este lhe proporciona tiram à fêmea a ideia de buscá-las
alhures, e as solicitações de um terceiro não poderiam tentá-la, a ela, a
saciada. Supondo, porém, que ela trave comércio com outro, vem então a
negação de tudo quanto se disse anteriormente, e nisto consiste a desonra
sexual; o galo-marido toma-se como, isto é, um capão; uma mão delicada
adoma-lhe a cabeça com umas pontas risíveis; para salvar o que é suscetível
de ser salvo, preciso se toma que em combate singular derribe esse rival
com quem sua mulher cuidou que obteria gozos superiores, e que, se
necessário for, a mate também, para restaurar, por meio de impressionantes
proezas sangrentas, aos seus próprios olhos e aos do mundo, sua
respeitabilidade de macho.
A honra! Era o que Petepré não tinha. Faltava-lhe em sua carne; por
causa da sua conformação física não entendia de semelhante bem e muito se
admirava de que toda a gente, como esse infeliz inchado de honra, fizesse
tanto estardalhaço a respeito. Em compensação, possuía um coração
suscetível de equidade, isto é, reconhecia o direito dos outros, mas também
um coração vulnerável, que contava com a adesão plena desses outros, isto
é, com seu afeto, um coração criado para sofrer amargamente com uma
traição. Durante a pausa, enquanto os massagistas recomeçavam a triturar-
lhe o dorso forte, conservando ele o rosto oculto entre seus braços de
mulher obesa, rápidos pensamentos cruzaram sua mente a respeito das duas
pessoas de quem esperava tão vivamente a ternura e a fidelidade até o ponto
de poder dizer-se que as amava. Tratava-se de Mut, sua esposa honorária,
que ele, de resto, detestava um poucochinho por causa da censura que
naturalmente ela não formulava, mas que só com a sua existência
proclamava, Mut, a quem ao mesmo tempo desejaria de coração manifestar
seu afeto e poderio e não só por sua satisfação pessoal; e tratava-se de José,
o jovem benfazejo, que melhor que o vinho lhe dava certa consciência da
sua personalidade. Por causa dele não quis nem pôde, apesar de lamentá-lo,
aceder ao desejo de sua mulher, na sala vesperal, nem mostrar-se afetuoso e
cheio de poder. Petepré, seja dito cá entre nós, não deixava de suspeitar o
alcance da sua negativa. Durante aquele colóquio conjugal, não lhe havia
escapado que os motivos invocados para a expulsão de José eram pretextos
e argumentos especiosos e que a exigência de Mut ocultava seu temor de si
mesma e sua ânsia de salvaguardar sua honra contra possíveis ataques do
jovem. Faltando-lhe, porém, a honra, havia-se preocupado menos com
tranquilizar sua esposa do que com conservar ao pé de si o mancebo
consolador. Dera a este a preferência e, abandonando sua mulher às suas
próprias forças, incitara ambos a preferirem-se mutuamente, passando por
cima de sua pessoa, e a traí-lo.
Reconheceu tudo isto e, como tinha coração, sofreu. Mas reconheceu-o,
porque seu coração propendia para a equidade, embora talvez só
propendesse para ela para não ter de ralar-se e porque a equidade prescinde
da cólera e do rancor. Sentia também que ela é o melhor refúgio da
dignidade. O abjeto guarda da honra pareceu insinuar que se tramava uma
traição, pondo em risco sua dignidade. Como se — pensou — a dignidade
deixasse de ser dignidade quando se vê obrigada a cobrir dolorosamente a
face diante da traição. Como se o traído não fosse mais digno do que o
traidor. Mas se não o é, por ter cometido o erro de provocar a traição, fica-
lhe o recurso da equidade, com o que a dignidade se reabilita reconhecendo
a própria culpa e o direito dos outros.
A equidade, pois, se inclinou Petepré, o eunuco, prevendo o que ia
dizer-lhe aquele paladino da honra. A equidade tem um caráter espiritual,
oposto ao caráter carnal da honra, e, à falta desta, tinha ele de apelar para a
outra. Contara também com os valores espirituais, a propósito destes dois
que juntos o enganavam, se devia crer nas insinuações do provocador, do
delator a quem nada perguntara. Petepré julgava saber dos grandes
obstáculos de ordem moral que impunham uma estrita disciplina a seus
corpos, estando ambos predestinados e sendo espiritualmente afins: a
mulher repleta de consolações, a concubina de Amun, a prometida do seu
templo, que diante dele dançava com as vestes justas da deusa; o mancebo,
objeto de um certo exclusivismo, que em seus cabelos usava a coroa do
reservado, o mancebo “não-me-toque”. Tê-los-ia vencido a carne? Este
pensamento gelou-o de terror. A carne era sua inimiga, embora ele
possuísse uma considerável massa dela. Cada vez que, ao voltar para casa,
indagava”Tudo vai bem? Nenhum incidente?” — tremia de que a carne,
triunfando da proibição espiritual, tranquilizadora, mas precária, que pesava
sobre a casa, tivesse provocado alguma desordem abominável. Sem
embargo, seu frio terror desapareceu na cólera. Era absolutamente
imprescindível que fosse inteirado? Não o poderiam deixar em paz? Se por
detrás dele os dois entes consagrados, vencidos pela carne, tinham alguma
coisa que ocultar-lhe, porventura o mistério em que se envolviam não
atestava afeto, coisa que estava disposto a levar-lhes em conta? Em
compensação, sentia-se furioso contra o minúsculo cretino vaidoso que lhe
vinha trazer informes que ninguém lhe pedia e, campeão da honra, atentava
vilmente contra sua tranquilidade.
— Ainda não acabaram com isto? — perguntou aos massagistas. Tinha
de despedi-los; despedia-os de má vontade, só porque a tanto se via
obrigado pelo infame intrigante, mas, assim como assim, tinha de afastá-
los. Verdade é que esses homens eram autênticos brutos irracionais,
havendo cultivado a estupidez até o ponto correspondente ao seu rude
ofício, conforme um provérbio que dizia, mui veridicamente, “besta como
um massagista”. Mas, embora fosse certo que nada teriam compreendido e
que sua mente absolutamente não se aguçaria, Petepré não podia deixar de
aceitar o tácito desejo do importuno e ficar a sós e cara a cara com ele. E
por isto mesmo ainda mais se enfureceu com o pigmeu.
— Não se vão embora antes de terminar — disse-lhes —, e não é
preciso pressa. Se, contudo, já terminaram, deem-me o lençol e retirem-se
lentamente.
Nunca, absolutamente nunca, teriam eles podido compreender que
deviam afastar-se antes de haver terminado. Como, porém, na realidade já
haviam concluído sua tarefa, estenderam um lençol sobre a carnuda massa
do amo, até o pescoço, puseram em terra a fronte que não tinha mais de dois
dedos de largura e lá se foram, com os cotovelos pegados ao corpo, numa
espécie de trote igual e gingado, que por si só demonstrava de modo
convincente sua bestialidade completa.
— Chega-te para cá, amigo — disse o camareiro. — Aproxima-te
quanto quiseres e julgares necessário para a tua comunicação, pois parece
que se trata de uma dessas coisas que não ficaria bem anunciar de longe,
gritando, mas de uma coisa que nos aproximará numa intimidade
confidencial, o que considero uma vantagem, trate-se lá do que se tratar. És
para mim um servidor precioso; pequeno, é certo, muito abaixo do
mediano, e, neste ponto, uma criatura risível, porém possuis dignidade,
peso, dons. Tudo isto justifica que saias de tuas atribuições, que ponhas os
olhos em toda a casa e te erijas em amo para regular sua fecundidade. Não
que me recorde de te haver encarregado dessa função, de te haver pedido
que a assumisses. Mas confirmo-te retrospectivamente em tuas funções, em
atenção à tua provada competência. Se bem entendi, teu carinho e teu dever
te movem a fazer-me certas revelações relativas à esfera em que se exerce
tua vigilância e tua contabilidade, a propósito de incidentes cuja natureza é
suscetível de provocar desordens...
— Efetivamente! — respondeu o inimigo de José com veemência a esta
alocução cujas alusões desagradáveis tragou, em razão do resto animador.
— Uma fidelidade de servidor sempre atento me traz diante de ti para pôr-te
de sobreaviso, senhor, nosso sol, contra um perigo cuja iminência exigiria
que já eu tivesse sido admitido à tua presença, conforme pedido meu, pois é
possível, e talvez questão de instantes, que chegue demasiado tarde a
advertência.
— Assustas-me.
— Sinto-me consternado, mas está dentro de minhas intenções assustar-
te, tão ameaçador é o perigo. E, apesar de toda a minha perspicácia na
solução do problema, teu servo não poderia decidir se já é tarde demais e se
o ultraje já não é um fato consumado, caso em que minha advertência não
chegaria a tempo senão em um aspecto — no de que ainda estás vivo.
— Estou mortalmente ameaçado?
— Duas são as ameaças: a vergonha e a morte.
— Uma delas seria bem-vinda, se não me fosse possível evitar a outra
— disse Petepré com nobreza. — E de que lado estas funestas coisas me
ameaçam?
— Ao indicar a fonte do perigo — disse Dudu —, avancei tanto que a
dúvida não é possível. Unicamente o temor de compreender explicaria que
não me tenhas compreendido.
— Teu descaro me demonstra até que ponto é aborrecida a minha
situação — retorquiu Petepré. — Corresponde, sem dúvida, à minha
miséria, não me restando outra coisa senão louvar o zelo devotadíssimo que
te inspira. Confesso que é invencível o meu temor de compreender. Ajuda-
me a dominá-lo, meu amigo, e dize-me a verdade tão desenganadamente
que meu temor já não tenha escapatória possível.
— Seja! — replicou o anão, firmando-se sobre a outra perna, com o
punho na cadeira. — Eis aqui tua situação: as qualidades não-limitadas do
jovem intendente Osarsif exercem vastos estragos, provocaram um incêndio
no seio de nossa ama Mut-em-enet, tua esposa, e já entre estalos e
torvelinhos de fumo as chamas lambem o edifício da tua honra, prestes a
desmoronar-se e a sepultar tua vida entre seus escombros.
Petepré puxou mais para cima, tapando a boca, até o nariz, o lençol que
o cobria.
— Queres dizer — perguntou de sob a coberta — que não somente ama
e intendente puseram um no outro os olhos, senão que querem atentar
contra a minha vida?
— Assim é — respondeu o anão, e com gesto enérgico pôs o outro
punho sobre a cadeira. — E esta a situação em que se encontra um homem
como tu, que era tão grande não faz muito tempo.
— Em que prova — perguntou o comandante das tropas com voz surda
(e seus beiços faziam mover o lençol) — podes fundamentar uma acusação
tão terrível?
— Minha vigilância — tornou Dudu —, meus olhos e meus ouvidos, a
perspicácia que meu zelo pela honra da casa confere ao meu espírito
observador te garantem, meu deplorável senhor, a triste e aborrecida
veracidade da minha informação. Quem pode dizer qual dos dois (assim se
tem de falar agora destas pessoas tão diferentes pela posição, sim, tem-se
que falar “os dois”), qual dos dois, repito, foi o primeiro a pôr no outro os
olhos? Seus olhares se encontraram e culposamente se penetraram, é o que
é. Não podemos escurecer, ilustre senhor, que Mut-no-vale-do-deserto é
uma mulher solitária no seu leito. Quanto ao intendente, faz estragos em
volta de si. Qual o servo que teria precisão de ser chamado duas vezes por
uma tal senhora? Isto pressuporia tamanha fidelidade e tamanha afeição ao
amo da ama, como não se manifesta no posto da mordomia, mas no posto
imediatamente inferior... Culposo? Que importa saber quem foi o primeiro a
erguer os olhos para o outro e em qual dos dois germinou primeiro a ideia
da culpa? A do jovem intendente consiste não só no seu ato mas na sua
presença, isto é, em achar-se ele na casa, onde suas qualidades exercem
livremente seus estragos, por não se verem cerceadas nem pelo leito nupcial
nem pela navalha do barbeiro. Se a ama se fina pelo servo, isto depende da
existência dele, da cabeça dele, e para a sua culpa é exatamente a mesma
coisa que se ele tivesse cometido um atentado impudico contra a pura: deste
ponto de vista deve ser tratado. Mas, enfim, vejamos em que ponto estão as
coisas. Reina entre os dois um acordo apaixonado. Cartas de amor (tendo-as
visto, posso atestar-te seu inflamado estilo) se trocam entre eles. A pretexto
de ocupar-se de assuntos internos, encontram-se ora aqui, ora ali, na sala
das mulheres, onde a ama, por amor ao servo, erigiu uma efígie de
Horachte, e também no jardim, no pavilhão, na câmara privada que ela
ocupa aqui, debaixo do teu próprio teto, em todos estes lugares o par tem
encontros secretos, e já faz tempo que entre eles se versam temas lícitos;
não são senão frívolos jogos de língua, arrulhos, cochichos ardentes. Até
onde chegaram e gozaram já de sua carne e de seu sangue, a ponto que as
medidas preventivas viriam tarde demais e não te restaria senão a
vergonha? Eu não poderia dizê-lo com precisão. Mas o que posso jurar
diante de qualquer deus e diante de ti, senhor maculado, por tê-lo ouvido
com os meus próprios ouvidos enquanto os espiava, é que, entre arrulhos,
conluiaram matar-te a pauladas no crânio; depois do que, nesta casa, da qual
te expulsariam assassinando-te, gozariam seu prazer em leitos coroados de
flores, ama e amante.
A estas palavras Petepré estendeu completamente o lençol sobre a
cabeça, ficando invisível de todo. Assim permaneceu um bom espaço de
tempo. A Dudu começava a afigurar-se muito dilatada aquela pausa, se bem
que a princípio vira com júbilo o amo assim, massa informe, coberto de
vergonha, submergido por ela. Mas de súbito Petepré atirou o lençol ate os
quadris e erguendo-se um pouco voltou para o nanico a miúda cabeça
apoiada na sua breve mão.
— Fico-te seriamente reconhecido — disse —, intendente dos meus
cofres, pelo que me acabas de revelar (empregou um termo estrangeiro,
babilônico) para bem da minha honra, ou melhor, para permitir-me
comprovar que já está perdida e que no máximo poderei salvar a vida. Devo
salvá-la, não pelo que vale, mas pela espantosa vingança que desde agora
procurarei realizar. Mas existe o perigo de que minhas reflexões acerca das
sanções que se hão de tomar me façam descuidar do interesse, igualmente
importante, dos agradecimentos e das recompensas que te devo em troca de
tais revelações. O terror e a cólera que me inspiram só são igualados pela
surpresa ante as façanhas que teu devotamento e teu afeto realizaram. Sim,
estou assombrado, confesso-o, e bem sei que devia moderar minha surpresa.
Muitas vezes vem-nos um bem de uma pessoa insignificante, ainda que o
não tenhamos merecido por nenhuma demonstração de carinho e de
confiança; não obstante, não posso coibir o meu assombro incrédulo. És
uma pilhéria da natureza, um mostrengo, um grotesco anão ridículo, ao qual
foi dado o cargo de camareiro mais a modo de facécia, um tipo entre
cômico e repugnante, duas particularidades acentuadas ainda mais pelo ar
de importância que te dás. Nestas circunstâncias não parece inverossímil,
ou mais que isso, a ideia de que tenhas conseguido penetrar na vida secreta
de pessoas altissimamente colocadas nesta casa, ao ponto de ler as missivas
amorosas que, a acreditar-se na tua informação, trocam entre si o intendente
e a senhora? Não devo, não posso acaso duvidar da existência desses
papéis, enquanto me pareça inverossímil que tenhas conseguido vê-los?
Para isso, meu amigo, terias de ser mais que simpático ao confidente por
eles escolhido para levar tais missivas. E como pode ser isto possível, dado
o indiscutível horror que a tua pessoa incute?
— O temor — respondeu Dudu — de acreditar na tua vergonha e no teu
lamentável rebaixamento te incita, pobre senhor, a buscar razões para
desconfiar de mim. Comprazes-te em argumentos muito ruins. Tua
vacilação se explica, de tal maneira receias descobrir a verdade, a qual
realmente te mostra uma cara bem irônica e lastimosa. Reconhece, portanto,
como é vã a tua dúvida. Não me foi preciso ganhar a confiança do
confidente escolhido para levar essas mensagens exaltadas, porque o
escolhido era eu mesmo.
— Pasmoso! — exclamou Petepré. — Tu levaste as cartas, tu, tão
minúsculo, tão cômico? Só de ouvir o teu informe minha consideração por
ti sobe de ponto, mas ainda terá de subir muito mais antes que eu admita a
veracidade da tua história. Com que então a senhora seria tão íntima tua, tu
estarias em tão amistosos termos com ela que te fizesse depositário da sua
ventura e da sua culpa?
— Sem dúvida — retrucou Dudu, descansando o peso de seu corpo
sobre a outra perna e pondo o punho na anca. — E não somente me fez de
correio senão que as cartas fui eu que lhas ditei, porque ela era ignorante em
matéria de cartas amorosas, sendo necessário que eu, homem do mundo, a
industriasse neste delicado expediente.
— Quem o havia de crer! — disse, assombrado, o camarista. — Cada
vez mais caio na conta de como te hei menoscabado e meu respeito para
contigo está em via de pleno desenvolvimento, rápido, incessante. Fizeste
isto para que as coisas chegassem ao extremo e para ver até onde podia a
senhora aventurar-se na senda da culpa?
— Por certo — confirmou Dudu. — Assim procedi por amor e
fidelidade a ti, meu humilhado senhor. Se assim não fora, estaria eu aqui
informando-te para que te pudesses vingar?
— Mas — insistiu Petepré —, como foi que, truanesco e repelente qual
és, te insinuaste na confiada amizade da senhora e te apoderaste do seu
segredo?
— Isso se realizou simultaneamente — respondeu o anão. — Uma e
outra coisa ao mesmo tempo. Como todos os homens de bem, lamentei-me
e irritei-me em Amun com a astuta fortuna do estrangeiro nesta casa. Eu
desconfiava dele e de seu coração pérfido, e não sem fundamento, como
admitirás agora que te engana deploravelmente, agora que desonra teu leito
honorífico e faz de ti, que o encheste de benefícios, o objeto de escárnio da
cidade, e em breve dos dois países. Na minha aflição cheia de dúvidas,
queixei-me a Mut, tua esposa, desse escândalo e injustiça; e, mostrando-lhe
o miserável, atraí sua atenção para ele, pois no começo ela dizia que
ignorava de que servidor estava eu falando. Mais tarde a ama apreciou
minhas amargas queixas; ladeava singularmente a questão, exprimindo-se
de maneira equívoca, sob o disfarce da inquietação e em termos cada vez
mais desavergonhados, pelo que não pude deixar de entender que ela
simplesmente alimentava no íntimo o desejo do escravo e estava louca por
ele como qualquer rapariga da cozinha. Eis a que ponto chegara a
orgulhosa, por culpa da presença do tal. E se um homem como eu não
tivesse tomado a si o assunto, se eu judiciosamente não houvesse entrado no
jogo para poder, no momento oportuno, reduzir a nada o seu vil intento,
perdida estava a tua honra. Por isso, quando vi os pensamentos de tua
mulher resvalarem pela encosta tenebrosa, lancei-me no seu encalço como
quem segue um ladrão noturno que se quer apanhar em flagrante delito.
Lembrei-lhe as cartas amorosas para tentá-la e ver até onde havia chegado e
de que coisa era capaz. Minha inquieta espera foi recompensada. Graças à
cega confiança com que me distinguiu, acreditando que eu, o experto
homem do mundo, estivesse pronto a servir o seu desejo, reconheci com
espanto que o infame e sedutor mordomo já tomara a nobre dama capaz de
tudo e que não só a tua dignidade mas também a tua vida estavam em
perigo.
— Ora, ora! — exclamou Petepré. — Atraíste, pois, sua atenção e
depois lhe sugeriste tudo isto; compreendo muito bem. Isto, pelo que diz
respeito à ama. Mas que tenhas também conseguido ganhar a confiança do
intendente, ainda não o admito, à vista da tua lastimosa aparência, e
continuo crendo que é absolutamente impossível.
— Teu ceticismo, desconfiado senhor — volveu Dudu —, devia
capitular diante dos fatos. Atribuo isto ao terror que te inspira a verdade e
ainda à tua conformação singular e sagrada, a qual, conforme hás de
reconhecer, é a causa primeira do desastre. Ela te faz inapto para conhecer
os homens e compreender que sua opinião a respeito do próximo e sua
simpatia por ele — pouco importando sua estatura, alta ou meã — está em
função da sua capacidade para satisfazer sua avidez e seus desejos. Bastou-
me, pois, fingir-me disposto e propor-me delicadamente como discreto
intermediário entre seu desejo e o de nossa ama para ver o passarinho
pousar no visco. Estava eu num pé de tão cordial intimidade com ele que
absolutamente já não desconfiava de mim. Desde então não só me foi
possível vigiar de muito perto as criminosas manobras do par, mas até
provocá-los e estimulá-los para ver até onde chegariam, até que ponto se
engolfariam na culpa, para apanhá-los de improviso quando chegassem ao
último extremo. E esta a prática habitual nos guardas da ordem, cujo
modelo sou eu. Além disso, minha paciência incansável logrou ir-lhes ao
fundo da ideia e do especioso argumento sobre que alicerçam sua ação, a
saber, que quem anda de amores com a senhora há de ser senhor da casa.
Esta é, sabê-lo-ás claramente, pobre senhor, sua versão assassina e lúbrica;
veem-se todos os dias, falam nisto e arrogam-se o direito e a autorização
(de suas bocas o sei) de derribar-te a pauladas e desfazer-se de ti, para assim
poderem celebrar nos próprios lugares do crime suas festas floridas, eles
dois, amante e amásia. Tendo-os conduzido até ah e surpreendido, na minha
qualidade de confidente, seus inauditos propósitos em suas mesmas bocas,
o abscesso pareceu-me maduro para o bisturi e aqui vim encontrar-te, a ti, o
maculado, a quem guardo minha fidelidade na angústia, com a intenção de
informar-te, para que possamos agarrá-los.
— E o que vamos fazer — disse Petepré. — Nossa mão se fará sentir
sobre eles, terrível — a tua, querido anão, e a minha —, e assim cairá sobre
eles o crime que cometem. Que sanção, segundo o teu sentir, poderia
aplicar-se, e que castigo te parece bastante cruel para lhes ser infligido?
— Inclino-me à clemência — tornou Dudu —, pelo menos no que toca
à nossa Mut, a bela pecadora, pois a soledade do seu leito explica muitas
coisas, e se te parece mal que ela falte a seus deveres, não te fica bem, seja
dito entre nós, fazer muito ruído por causa disto.
Por outra parte, repito, se a ama se enamora de um criado, a culpa é
deste, esta incumbe a ele pelo fato da sua existência e deve expiá-la. Mas
também com ele me mostraria misericordioso e não pediria que fosse
lançado aos crocodilos, amarrado, como o mereceriam sua ventura e seu
infortúnio. Dudu não se preocupa tanto com a vingança como com tomar
medidas preventivas para atalhar os estragos provocados pelo intendente.
Ficará, pois, amarrado o tempo necessário para que a navalha do barbeiro
faça a sua tarefa e deste modo o mal seja cortado pela raiz. Mut-em-enet já
não poderá tolerá-lo assim e sua formosa aparência não seduzirá mais
nenhuma mulher. Pronto estou a cumprir pessoalmente o ato de
apaziguamento, com a condição de que o amarrem de antemão
convenientemente.
— És muito leal — tornou Petepré — oferecendo-te para esse mister, e
acrescentas isto ao muito que já te devo. Não achas, pequeno, que, encarada
a coisa de outro ponto de vista, também se contribuirá assim para o
restabelecimento da equidade sobre a terra, visto que, para desempenhar
essa tarefa, te acharás em situação vantajosa em relação ao mutilado,
satisfação que para ti, deforme como és, compensará o desagrado que te
causa sua estatura?
— Vai nisto alguma verdade — respondeu Dudu — que se há de levar
em conta subsidiariamente.
E cruzando os bracinhos, estendeu para a frente um ombro, e com a
perna atrevidamente arqueada começou a balançar o corpo, meneando a
cabeça para um lado e para outro, tomado de uma crescente hilaridade.
— E que te parece? — continuou Petepré. — Esse moço não pode
continuar à testa da casa depois que o puseres naquelas condições e o
submeteres a um tal tratamento.
— Não, está claro. — Dudu pôs-se a rir, comportando-se como
anteriormente. — A testa da casa, para dirigir o pessoal, não é possível que
esteja um delinquente punido, mas um homem que goze da plenitude dos
seus recursos, que seja apto para substituir o senhor em todos os negócios e
para representá-lo em todos os negócios em que este ou não possa ou não
queira figurar.
— E assim — terminou o comandante-em-chefe — terei encontrado ao
mesmo tempo a recompensa com que te quero premiar, bondoso Dudu, por
teus leais serviços de espião e por teres vindo informar-me para que eu me
ponha a salvo da ignomínia e da morte.
— Esperemo-lo assim! — exclamou Dudu com uma presunção que
raiava pela insolência. — Espero que saibas qual a posição que corresponde
a Dudu e a que coisa te obrigam o reconhecimento e as necessidades da
sucessão. Não exageras quando dizes que eu te salvei da ignomínia e da
morte, a ti e a nossa bela pecadora. Que ela saiba, não obstante, que deve
seu perdão às minhas súplicas, já que fiz valer a solidão do seu leito; deve-
me, pois, a vida, e, se respira, é graças ao meu favor e misericórdia. E se me
pagar com ingratidão, poderei qualquer dia, quando bem me parecer,
proclamar sua vergonha e seu crime através da cidade e do país, de modo
que te vejas obrigado a estrangulá-la e a reduzir a cinzas seu formoso corpo,
ou, ao menos, a devolvê-la aos seus, depois de lhe ter cortado o nariz e as
orelhas. Por isso, porte-se bem a louquinha, a infeliz, e saiba afastar seus
olhos de pedra preciosa da formosura absurda e pousá-los sobre Dudu, o
consolador sensato, o amo da ama, o robusto, pequeno mordomo.
Isto dito, Dudu atirou olhares cada vez mais atrevidos à direita e à
esquerda, ao vácuo, encolheu-se, agitou-se, comportando-se, em resumo, tal
qual um galo silvestre no cio, trepado numa árvore, a bambolear-se, cego e
surdo, embriagado pela sua própria chamada amorosa. Teve, porém, o
destino do galo que é derrubado pelo caçador. De um salto repentino,
Petepré, atirando para longe o lençol, pusera-se de pé, nu, semelhando uma
torre de carne encimada por uma cabecinha. De outro salto, estava perto da
banqueta onde ficavam suas coisas e agarrou então a maça de honra. Já
vimos entre suas mãos este belo atributo, insígnia do comando, vimos o
mesmo ou outro idêntico, um bastão pinhiforme, arredondado, enfeitado de
ouro e de couro, coroado de folhas douradas, imagem simbólica do poder e
além disso um fetiche da vida, objeto de culto para as mulheres. O senhor o
ergueu e o desfechou de tal maneira sobre os ombros e as costas de Dudu,
que o anão, perdendo o uso do ouvido e da vista por motivos bem diferentes
dos anteriores, começou a berrar como um leitãozinho.
— Ai, ai! — gritava e tremiam-lhe as pernas. — Ah, que desgraça!
Sofro, morro, sangro, meus ossos se partem! Perdoa o teu servo!
Mas a graça não veio, pois que Petepré — toma, toma, toma, néscio
descarado, espia que me vieste revelar tua torpeza! — o perseguia a golpes
desapiedados, de um canto a outro da sala, até que o fiel Dudu, encontrando
a porta, saiu com a maior velocidade que lhe consentiam suas doloridas
pernas.
A AMEAÇA
Reza a história que a mulher de Putifar assediava cada dia José com
“palavras semelhantes” e o convidava a dormir com ela. Dar-lhe-ia ele
então ocasião para isto? Depois do incidente da língua ferida, porventura
não a evitou e continuou a encontrar-se com ela em diversos lugares e em
diferentes instantes do dia? Assim tinha que ser. Afinal ela era a ama, o amo
em forma feminina; podia dar-lhe ordens, mandar chamá-lo quando lhe
parecesse. Além disso, ele lhe prometera não abandoná-la no seu extravio,
prodigalizar-lhe consolações verbais; era uma dívida para com ela. José o
reconhecia, o sentimento da culpa o amarrava à senhora; no seu íntimo ele
reconhecia que criminosamente havia deixado as coisas chegarem ao ponto
onde estavam e que seu plano terapêutico era um culposo absurdo. O
recurso agora era aguentar suas consequências e atenuá-las na medida do
possível, por perigoso e difícil, por quase insolúvel que fosse o problema.
Deveremos elogiá-lo por não ter privado de sua presença a atormentada
mulher e por expor-se ou quase expor-se, cada dia, ao bafo do touro de
fogo, continuando a arrostar uma das mais fortes tentações que tenham
salteado no mundo a um homem jovem? Sem dúvida, posto que com certas
reservas e só até certo ponto. Entre seus motivos reconheçamos que havia
alguns bons. Seu sentimento de culpa e de responsabilidade é digno de
louvor, bem como o ânimo varonil com que, na sua angústia, pôs sua
confiança em Deus e na força dos sete argumentos. Se quisermos, levemos
também em conta o espírito de obstinação que começava a intervir nestas
relações e o instigava a medir sua razão com a demência da mulher. Com
efeito, ela o tinha ameaçado, havia-se vangloriado de quebrar a coroa que
José levava em homenagem ao seu Deus e de substituí-la por sua própria
coroa. Para o jovem aquelas eram palavras desaforadas. Digamos logo que
algumas outras, acrescentadas a estas, o faziam considerar a coisa como um
combate entre Deus e os ídolos do Egito, assim como nela, com o tempo,
sua ambição pelo nome de Amun estimulou seu desejo. Pelo menos,
sugestões exteriores assim o fizeram crer. Compreender-se-á, portanto, e até
se aprovará que José tenha vedado a si mesmo todo subterfúgio, porque
julgou necessário resistir e levar a aventura até seu último extremo, para
glória de Deus.
Isto era perfeito. Esta perfeição, porém, não deixava de andar
acompanhada de outras coisas, porquanto ele tinha também outras razões
para seguir Mut, para encontrar-se com ela e visitá-la, razões que, como
José bem sabia, não eram merecedoras de encômio: chame-se-lhes
curiosidade e leviandade, vendo-se nelas sua repugnância a renunciar à
faculdade de optar pelo mal, o desejo de prolongar o instante em que tinha
licença para escolher entre o mal e o bem, muito embora não tivesse o
propósito de sucumbir às forças perversas. Ou seria talvez o agrado que
sentia, por grave e arriscada que fosse a situação, de privar com a senhora,
pondo-se num pé de igualdade que lhe permitia chamá-la “minha menina”,
pois a tanto o autorizavam a paixão de Mut e seu delírio. Conjetura banal,
mas sem dúvida exata, à vista de uma explicação mais edificante e mais
quimérica de seu procedimento — a ideia profundamente entusiástica de
sua morte e divinização na qualidade de Osarsif e do estado de sagrada
espera que encerrava, estado sobre o qual, de resto, pairava de novo a
maldição da lascívia asinina.
Em suma, frequentou a ama. Junto dela, resistia. Sofria com o fato de
Mut o assediar constantemente com as mesmas palavras e suplicar-
lhe”Deita-te comigo.” Sofria, dizemos, pois não era pouca coisa nem coisa
de gracejo perseverar junto de uma mulher extraviada por terríveis apetites,
estar a exortá-la com brandura, recordar-lhe de contínuo, fortemente, os sete
motivos da recusa, para defender-se do seu desejo quando ele mesmo, em
razão de seu próprio estado, se sentia movido a muitas coisas. Na verdade,
sentimo-nos inclinados a revelar ao filho de Jacó os motivos menos nobres
de seu procedimento, pensando na tortura que a inditosa lhe infligia. Todos
os dias instava tanto com ele, que durante alguns momentos o mancebo
chegava a compreender o gesto de Gilgamesh que, de furor e angústia,
acabou arremessando a Istar, em plena cara, o membro arrancado do touro.
A mulher degenerava e cada vez se tornava menos difícil para a escolha
dos meios, quando o acometia com súplicas para obter que consentisse no
enlaçamento de suas cabeças e joelhos. Não renovou sua proposta de
assassinar o senhor da casa para levarem em seguida, amásio e amante,
adornados de vistosas vestes, uma vida de delícias entre flores; esta ideia o
horrorizava, ela bem o tinha notado, e temia, se voltasse à carga, apartá-lo
para sempre. Ebria, conturbada, compreendia, contudo, que José se achava
com a verdade quando energicamente se defendia contra esse pensamento
selvagem, que ele tinha razão para rechaçar indignado uma oferta que ela
mesma teria dificuldade de repetir, uma vez cicatrizada sua língua, privada
de seu ferimento infantil. Mas não se cansava de repetir-lhe que era absurdo
ele negar-lhe o seu amor. Encontrando-se unidos em segredo, podiam
perfeitamente chegar à consumação material da ventura; prometia-lhe
inefáveis delícias em seus braços de apaixonada que para ele se guardara
intacta; e como a tão temas solicitações ele sempre opunha o seu “minha
menina, isto não é lícito”, Mut procurou exasperá-lo formulando dúvidas
acerca da sua virilidade.
Não que ela acreditasse nisto seriamente, coisa impossível; porém a
atitude de José dava-lhe certo direito formal e razoável para melindrá-lo por
esse lado. Dificultosamente podia o moço expor a ela os seus sete
argumentos, cuja maioria lhe havia de parecer incompreensível; os que, em
seu lugar, lhe expôs deveram parecer-lhe simplistas e fracos e produzir em
Mut o efeito de pretextos estudados. Nada podia haver de comum entre sua
pena e sua paixão e a sentença moral, a resposta que uma vez por todas ele
lhe dera na previsão do caso que estes sucessos, convertidos em história,
fossem chamados a perpetuar-se nos livros dos homens; seu senhor tinha-
lhe entregado todas as coisas, podendo ele dispor de tudo na casa, menos
dela, que era sua mulher; não podia cometer uma falta semelhante e pecar
com ela... Tratava-se de pretextos costurados com linha muito fraca, cujos
pontos estalavam sob o peso de sua angústia e de sua paixão; e, supondo
que devessem figurar numa história, Mut-em-enet estava persuadida de que
todo o mundo, em todos os tempos, acharia justo que um casal como o que
ela formava com José aproximasse seus pés e suas cabeças sem se
preocupar com o chefe supremo das tropas, o marido honorário; e assim
cada um deles se regozijaria muito mais que com uma sentença moral.
E que mais dizia José? Dizia:
— Tu queres que eu te visite de noite e durma contigo; mas em geral é
justamente de noite que o nosso Deus, que não conheces, se revelou a meus
pais. E se Ele quisesse revelar-se-me de noite e me encontrasse em tal
postura, que seria de mim?
Que puerilidade! Ou então dizia:
— Faz-me medo Adão, que foi expulso do jardim por causa de um
pecado venial. Que castigo seria então o meu?
Ela achava a resposta tão inexpressiva como quando José lhe dizia:
— Não estás inteirada de tudo. Por ter sido impetuoso como uma
torrente de água viva, meu irmão Rubem comprometeu seu direito de
primogenitura e meu pai mo deu a mim. Mas retirar-mo-ia se soubesse que
tu fizeste de mim um asno.
Ela achava extremamente frouxa e lamentável a objeção. Nada de
estranhar se, após estas explicações forçadas, trazidas até ah pelos cabelos,
ela lhe dava a entender, entre lágrimas de pena e de raiva, que começava a
acreditar — já tendo esgotado as demais conjecturas — que a grinalda de
sua fronte nada mais era que a coroa de palha da impotência. Uma vez
mais, não era possível que ela estivesse falando a sério. Lançava um desafio
desesperado à honra camal de José, e o olhar com que ele a fulminara
humilhou-a ao mesmo tempo que a abrasou; foi mais explícito e comovido
do que as palavras com que o jovem o acompanhou.
— Tu o crês? — disse-lhe com pesar. — Pois bem, então desiste! Se
fosse certo isso que fantasias, meu papel seria fácil e a tentação não se
assemelharia ao dragão e ao leão rugindo. Acredita-me, mulher, que já
pensei em pôr fim aos teus sofrimentos e aos meus infligindo a mim próprio
a conformação que erradamente me atribuís e imitar esse jovem de uma das
vossas histórias que se mutilou com a folha cortante de uma cana e depois
lançou ao rio o membro incriminado, para que os peixes o devorassem,
demonstrando assim sua inocência. Mas não me é permitido fazer outro
tanto; o pecado seria tão grande como se sucumbisse e eu perderia todo o
mérito aos olhos de Deus. Ele exige que eu me conserve são e intacto.
— Horrível! — gritou ela. — Osarsif, que coisas são essas que pensas?
Não faças tal, meu amado, meu esplêndido, olha que isto é atroz. Nunca
pensei seriamente nisso que disse. Amas-me, amas-me, teu olhar
descontente te denuncia, assim como o teu criminoso intento. Doce amigo,
vem libertar-me, veda meu sangue que corre!
E ele respondeu: — Não é possível.
Então ela se enfureceu e o ameaçou com o martírio e a morte. Eis a que
ponto chegara, e é nisto que pensamos quando dissemos que dia a dia foi
recorrendo a meios menos dignos para alcançar seus fins. José descobrira
enfim com quem teria de medir-se, compreendia a vibrante significação de
seu brado”Só eu sou terrível no meu amor!” A gata gigantesca erguia a pata
e suas garras ameaçadoras saíam do seu estojo de veludo para despedaçá-lo.
Se não lhe cedesse — disse ela—, se não lhe largasse a coroa recebida de
Deus, para receber em troca a da volúpia amorosa, ver-se-ia obrigada a
aniquilá-lo e não deixaria de fazê-lo. Concitava-o a tomá-la a sério e não
imaginar que falava aereamente: ali onde a via, era capaz de tudo e estava
pronta para tudo. Diante de Petepré lhe imputaria o ato de que agora fugia e
o acusaria de ter intentado violar sua virtude. Acusá-lo-ia de a ter
violentado e esta denúncia lhe causaria um prazer infinito. Saberia fingir tão
bem o papel de violentada, que ninguém duvidaria de sua sinceridade. Sua
palavra e seu juramento pesariam na casa mais do que os de José, e de nada
serviriam suas negativas. Aliás, Mut estava convencida de que José não
negaria nada e que se deixaria culpar em silêncio, porquanto, se ela havia
chegado a tal ponto de furor e desespero, quem tinha a culpa senão o jovem,
com seus olhos, sua boca, seus ombros dourados e a recusa do seu amor? E
pouco importava a acusação que contra ele se faria, uma vez que a acusação
estava justificada pela realidade da falta cometida contra sua ama, não
restando ao mancebo outra alternativa senão estar apercebido para sofrer a
pena de morte, uma morte que sem dúvida o faria lamentar seu silêncio e
talvez também sua cruel renúncia ao amor. Os homens como Petepré
tinham a imaginação especialmente fértil a serviço da vingança; ao
selvagem que violara a ama havia de estar reservado um gênero de suplício
a que nada faltaria em requintes de perversidade.
E descrevia-lhe a maneira como havia de morrer depois de acusado; e
esta descrição ela a fazia ora com voz maviosa e vibrante, ora ao seu
ouvido, num murmúrio que passaria por um temo arrulho amoroso.
— Não esperes — dizia — que o teu processo seja rápido e que sejas
precipitado do alto de uma rocha ou dependurado no ar, de cabeça para
baixo, de modo que o sangue, afluindo ao cérebro, se faça expirar sem
sofrer. Isto se dará mui lentamente, depois dos açoites que rasgarão tuas
costas por ordem de Petepré. Quando ele te houver acusado de violência,
seu peito vomitará um furacão de areia como a montanha oriental, e seu
maligno furor não conhecerá limites. É medonho ser atirado aos crocodilos,
estar estendido entre os canaviais, amarrado, sem defesa, quando o
devorador avança, ávido e trepando em ti com seu úmido ventre, principia
seu festim com teus músculos ou teus ombros. Teus berros selvagens se
confundirão com os gemidos de sua fome e ninguém ouvirá ou quererá
ouvir falar no desamparo em que estarás. Outros sofreram esta sorte, e nós
ouvimos sua história com uma compaixão superficial, sem aprofundar nada,
sem atentar bastante nela, por não estar em jogo nossa própria pele. Agora,
porém, trata-se de ti: é a tua carne que o devorador ataca, encetando por
aqui, por exemplo, ou por ali. Conserva tua lucidez, retém o grito inumano
que se escapa do teu peito. Não me chames, amado, a mim que quis dar um
beijo ali onde o ventre úmido ferra seus terríveis colmilhos. Talvez também
os beijos sejam de outra índole. Talvez, meu lindo, sejas estendido de costas
sobre o solo, com barras de bronze nos pés e nas mãos, sob um montão de
matérias combustíveis, às quais se ateará fogo; e, entre torturas sem nome
que só tu conhecerás, tua carne se carbonizará lentamente, enquanto,
ofegante, imploras aos assistentes, que se limitam a olhar. Talvez assim
suceda, meu amado; mas não é impossível que sejas encerrado vivo com
dois molossos numa cova coberta de tábuas e de terra, e ninguém pode
imaginar (nem tu tampouco, enquanto esta ameaça não se converta em
realidade) o que se passará no escuro entre os três. Terás acaso ouvido falar
na porta da sala e no seu gonzo? Depois da minha acusação serás o homem
que esconjura e uiva de dor porque o gonzo da porta entra num de seus
olhos e a porta lhe gira na cabeça cada vez que ao vingador apraza transpor
o umbral. Estes são apenas alguns dos castigos que certamente te aguardam
se eu te acusar, como a tanto estou resolvida no caso de minha desesperação
me conduzir ao último limite; e já não poderás desculpar-te, uma vez que eu
tenha jurado. Por piedade, Osarsif, entrega-me a tua coroa!
— Ama e amiga — respondeu ele —, falas verdade, não terei desculpa
se assim me fores enodoar diante do senhor. Mas entre os castigos com que
me ameaças, Petepré terá de escolher: só me pode infligir um, não todos ao
mesmo tempo, e este circunscreverá sua vingança e meus sofrimentos.
Porém, dentro de seus limites, minha capacidade de sofrimento também
marcará um termo às minhas dores, além do qual o padecimento não poderá
prolongar-se, sendo, como é, limitado. Tu me pintas o prazer e a dor como
incomensuráveis, mas exageras, porque nenhum dos dois ultrapassa a
capacidade humana. Incomensurável seria, ao invés, a falta que eu
cometeria indispondo-me com Deus, meu Senhor, que não conheces, de
modo que ignoras o que significa ser desamparado por Deus. Assim, pois,
minha menina, não posso satisfazer os teus desejos.
— Ai da tua prudência! — exclamou Mut com voz cantante. — Ai dela!
Eu não sou prudente. Sou imprudente por causa da ânsia infinita que tenho
do teu sangue e da tua carne, e farei o que te disse. Sou Ísis amorosa e meu
olhar dá a morte. Toma cuidado, toma cuidado, Osarsif!
A RECEPÇÃO DAS DAMAS
ANO-NOVO
Nossos ouvintes estão, sem dúvida, cheios de viva impaciência por
saber o que cada qual já sabe. Soou a hora de satisfazê-los, uma hora de
festa decisiva, um momento culminante da história, inamovível desde que
ela se produziu e se narrou em sua origem — - a hora e o dia em que José,
intendente de Putifar havia três anos e propriedade sua havia dez, evitou o
mais grosseiro dos erros, e em que esteve a pique de sucumbir à ardente
tentação. Contudo, mais uma vez findou um ciclo de sua vida e de novo
desceu ao fosso graças à sua leviandade (ele o reconheceu assim) e em
castigo de uma atitude cuja provocativa despreocupação, para não dizer
criminosa audácia, oferecia grande analogia com sua existência anterior.
Pode-se estabelecer um paralelo entre sua culpa em relação à mulher e
sua culpa em relação a seus irmãos. Uma vez mais, seu desejo de
deslumbrar o conduzira demasiado longe; uma vez mais, deixara os efeitos
de sua graça — de que podia alegrar-se e que estava em seu direito
empregar para maior glória de Deus — crescerem levianamente,
degenerarem perigosamente e o vencerem. Na sua vida de outros tempos,
esses efeitos haviam-se traduzido na forma negativa do ódio; agora
tomavam a forma nitidamente positiva, e portanto de novo funesta, da
paixão amorosa. Cegamente, tinha favorecido tanto um como a outra.
Seduzido pelas ressonâncias que nele despertavam os desenfreados
sentimentos da mulher, havia-se comprazido no seu papel de educador, ele
que evidentemente precisaria ainda de educação para si mesmo. Que essa
atitude mereceria castigo, não é necessário discutir; notemos, todavia, não
sem sorrir à socapa, que o castigo que justificadamente recebeu lhe foi
infligido de uma forma que contribuiu para a sua felicidade futura, a qual
superou em grandeza e brilho sua ventura destruída; e alegremo-nos com as
perspectivas que o incidente abre para a suprema vida espiritual. E antiga a
presunção, pois que remonta aos prelúdios da história, de que a falibilidade
da criatura foi sempre um motivo de áspera alegria para os habitantes das
esferas superiores, sempre prontos a formular esta censura”Que é o homem
para que tanto ocupe teu pensamento?”; porém esta falibilidade coíbe o
Criador, obrigado a dar satisfação ao reino do rigor e a deixar que se
cumpra a justiça imanente, menos por espontâneo impulso do que debaixo
de uma pressão moral difícil de iludir. O nosso exemplo ilustra
agradavelmente a maneira com que a suprema bondade e dileção, quando
cede com dignidade à instância, sabe dar uma lição ao reino da vingança e
do rigor, utilizando para a cura o instrumento do castigo e fazendo do
infortúnio o campo de germinação de uma felicidade nova.
O dia que marcou uma fase decisiva da vida de José foi o grande dia de
festa em que Amun-Rá visitava o harém meridional, o primeiro dia da cheia
do Nilo, o dia do ano-novo oficial no Egito — oficial, frisemo-lo, porque o
dia do ano-novo natural, aquele em que o ciclo sagrado se encerrava
verdadeiramente, em que Sírio reaparecia no céu matinal e em que as águas
começavam a crescer, estava longe de coincidir com este. No Egito, aliás
tão avesso à desordem, reinava neste ponto uma confusão quase perpétua.
No curso das idades, na vida dos homens e das dinastias, sucedia que o
primeiro dia do ano natural coincidia uma vez com o do calendário, mas
depois eram necessários mil, quatrocentos e sessenta anos para que este
formoso fenômeno de concordância se reproduzisse, e mais ou menos umas
quarenta e oito gerações humanas passavam sem que lhes fosse dado
contemplá-lo, ao que alegremente se teriam acomodado, contanto que não
tivessem outra preocupação a não ser essa. O século em que José viveu sua
vida egípcia também não estava destinado a ver essa formosura, a
coincidência da data real e da data oficial; e os filhos de Keme que nessa
data choravam ou riam debaixo do sol sabiam que as duas não
concordavam, sendo esta a menor de suas preocupações. Praticamente, era
preciso estar na época das colheitas — Chemu —, quando se celebrava o
começo da cheia — Achet —, o dia do ano-novo. Estavam na época do
inverno — Peret —, chamada também tempo da semeadura; e, se os filhos
de Keme nada tinham que dizer, porquanto uma desordem destinada a durar
mil anos mais pode passar por ordem, ao menos José, em razão da sua
secreta repugnância pelos costumes do Egito, sempre achava nisto um
motivo de riso. Só festejava o fictício dia do ano-novo à maneira pela qual
se associava à vida e aos atos da gente do país, fazendo restrições e com
aquela indulgência que para si mesmo estava também certo de conseguir do
alto por sua participação mundana. De caminho diga-se que é digno de nota
o fato de que, com tantas restrições e tanto espírito crítico em relação ao
mundo para o qual fora transplantado, entre pessoas cujo comportamento no
fundo lhe parecia uma loucura, tenha José podido exibir tanta gravidade,
realizar uma carreira tão brilhante e assinalar-se com serviços tão meritórios
como os que estava talhado a prestar.
Digno ou não de ser tomado a sério por um espírito imparcial, o dia
oficial da cheia do Nilo era celebrado em todo o Egito e em particular em
Novet-Amun, a Vese das cem portas, com uma solenidade de que não se
pode ter uma ideia senão evocando as comemorações solenes dos nossos
grandes dias populares ou nacionais. Desde as primeiras horas da manhã a
cidade inteira estava de pé, e o número enorme de sua população, muito
superior a cem mil, como já é sabido, aumentava consideravelmente graças
à afluência de camponeses estabelecidos num e noutro sentido do rio, que
acorriam no grande dia de Amun à própria sede do deus do império.
Confundidos com os cidadãos, boquiabertos e saltitantes, contemplavam o
espetáculo majestoso que o Estado oferecia, para que este esplendor fizesse
o campônio, rebentado com os impostos e com a férula despótica, esquecer
a sombria angústia do ano findo e o fortificasse patrioticamente para
suportar no ano vindouro a disciplina do látego. Esta multidão suarenta,
levando no nariz o cheiro da gordura queimada e dos montes de flores,
empenhava-se em abarrotar os átrios dos templos, de cores deslumbrantes,
repletos de alabastros, cobertos de toldos, ecoantes de cânticos piedosos e,
para essa circunstância, providos de uma inverossímil profusão de comidas
e bebidas. Queriam, ao menos uma vez, encher a pança à custa do deus, ou
melhor, dos poderes superiores que durante doze meses os oprimiam e lhes
apertavam as cravelhas e que hoje lhes sorriam com uma bondade pródiga.
Apesar de sua passada experiência, acalentavam a esperança de que no
futuro tudo ia andar assim, que esta data inaugurava uma era de alegria e de
delicias, a idade de ouro da cerveja à discrição e dos gansos assados, que
nunca mais o cobrador de impostos seguido de núbios armados de chicote
feito de fibra de palmeira molestaria o pequeno lavrador, que de agora em
diante viveria como no templo de Amun-Rá, onde se via uma mulher ébria,
de cabelo ao vento, que passava os seus dias em festa, porque escondia em
si o rei dos deuses.
Com efeito, à hora do pôr-do-sol, toda Vese estava tão bêbeda que
cambaleava às cegas, entregando-se a mil excessos. Mas para os belos
milagres da aurora e da manhã, quando Faraó ia “receber a dignidade de seu
pai”, segundo a expressão oficial, e quando Amun passava pelo Nilo com
seu cortejo célebre dirigindo-se a Opet Resit, o harém meridional, a cidade
tinha os olhos bem abertos e uma alegria decente. Seu fervor jubiloso e sua
piedosa curiosidade faziam-na sensível às pompas do Estado e do deus,
destinadas a alimentar os corações de seus filhos e hóspedes com nova
reserva de paciência cotidiana, de altiva e temerosa submissão à pátria. As
festas alcançavam quase sempre o brilho da volta dos antigos reis, que
vinham carregados de despojos de suas campanhas núbias e asiáticas, cujas
vitórias se eternizavam nos baixos-relevos dos templos. Estes monarcas
haviam engrandecido o Egito, conquanto sua era tivesse instaurado o
sistema da dura opressão aplicada ao pequeno camponês obrigado a
trabalhar.
Neste dia insigne do calendário, Faraó passava, coroado e enluvado.
resplandecente como o sol matinal, na sua alta cadeirinha de baldaquins,
ladeado de flabelos de penas de avestruz, entre nuvens de incenso de
capitoso perfume, que os incensadores que o precediam, voltados para o
deus bondoso, não deixavam de fazer subir até ele. Saía do palácio para ir à
casa de seu pai contemplar-lhe a formosura. Os gritos jubilosos da multidão
cobriam as vozes dos sacerdotes leitores. Tambores e clarins precediam o
cortejo em que figuravam os parentes do rei, os dignitários, os amigos
únicos e verdadeiros, bem como os demais amigos do soberano; soldados
levando emblemas, azagaias e machadinhas de combate fechavam o
séquito. Possas durar tanto tempo como a vida de Rá. paz de Amun! Mas
onde é o melhor lugar para a gente se deter e engolir poeira, de pescoço
esticado e olhos bem abertos? Aqui ou em Karnak, perto da mansão de
Amun, repleta de bandeirolas, para a qual tudo convergia? Pois o deus
também aparecia nesta data. Saía do mais venerando dos vetustos
santuários, lá no fundo de sua tumba gigantesca, por trás dos portais, dos
pátios e das salas cada vez mais silenciosas e baixas. Na figura de um
bonequinho acocorado, singularmente deforme, Amun as atravessava,
passava por salas cada vez mais altas e de uma maior policromia
deslumbrante, na sua barca adornada com cabeças de carneiros, santamente
dissimulado na sua capela velada, levado em charola sobre largas varas por
vinte e quatro crânios espelhantes de saiote engomado, sendo também ele
abanado e incensado quando ia ao encontro de seu filho, na luz e no bulício.
Era coisa de sensação assistir à libertação dos gansos, costume cuja
origem se pedia na noite dos tempos e que se observava no lugar ocupado
pela praça fronteira ao templo. Lugar belo e ameno! Em hastes douradas,
coroadas com a tiara do deus, tremulavam bandeiras multicores. Montanhas
de flores e de frutos se viam nas mesas das oferendas, diante dos santuários
da santa tríade — o pai, a mãe e o filho — e diante das estátuas que
representavam os antecessores de Faraó, os reis do Alto e do Baixo Egito,
trazidas pela comitiva da barca solar, dividida em quatro grupos de guardas.
A cavaleiro da turba, sobre pedestais dourados, com o rosto virado para o
leste, o oeste, o meio-dia e o norte, os sacerdotes soltavam as aves
silvestres, na direção dos quatro pontos cardeais, para que levassem a todos
os deuses a notícia de que Horus, filho de Osíris e de Ísis, cingira a coroa
branca e a vermelha, pois era esta a forma de comunicação que outrora
havia adotado o que fora gerado na morte, ao subir ao trono dos países.
Através de inumeráveis anos de júbilo, este modo de expressão tinha
prevalecido durante as festas, enquanto os sábios e o povo deduziam do voo
dos mensageiros diversas coisas relativas ao destino do país em geral ou
dos homens em particular.
Que formosos ritos, que mistérios Faraó celebrava depois da partida dos
gansos! Sacrificava às estátuas dos antigos reis. Com uma foice de ouro
cortava uma gavela de trigo que lhe estendia um sacerdote e depositava as
espigas diante de seu pai, em sinal de agradecimento e de prece; em seguida
lhe mandava o divino aroma por meio de um vaso de largo cabo, enquanto
leitores e cantores salmodiavam os textos inscritos em seus papiros. Isto
feito, a majestade do deus se sentava e recebia, impassível, os votos de
ventura dos cortesãos, expressos em termos nobres, escolhidos, muitas
vezes em forma de cartas de felicitação enviadas por dignitários que não
tinham podido comparecer — um verdadeiro regalo para os ouvintes.
Era o primeiro ato da festa cuja beleza aumentava continuamente. Ia-se
depois ao Nilo com a santa tríade, cujas barcas eram de novo içadas aos
ombros dos vinte e quatro crânios reluzentes; e, por modéstia filial, Faraó
seguia a pé, como um simples mortal, a barca de seu pai Amun.
A multidão convergia em massa para o rio, rodeava o cortejo de três
grupos divinos, dirigido pelo primeiro oficiante, Beknechons, com sua pele
de leopardo às costas, o qual vinha imediatamente depois dos clarins e
tambores. No meio do bater dos grandes flabelos subiam os cânticos e
ascendia o incenso. Na margem, três naus recebiam as barcas sagradas;
eram amplas e de deslumbrante beleza; a mais indescritível era a nau de
Amun, construída com madeira de cedro que príncipes do Retenu tinham
feito derribar no monte dos cedros e, segundo se dizia, haviam arrastado
pessoalmente por sobre a montanha. Era revestida de prata. O dossel do
trono erguido no centro e as hastes das bandeirolas e os obeliscos colocados
à frente eram de ouro. As rodas de popa e de proa eram adornadas de coroas
armadas de serpentes, diversas figurinhas simbólicas e emblemas sagrados,
inexplicáveis em sua maioria desde muito tempo e desconhecidos do povo,
tão antigos eram, o que de resto aumentava o respeito e a alegria que
inspiravam, em vez de diminui-los.
As naus de gala da grande tríade eram barcaças de reboque, avançavam
não a golpes de remo, mas arrastadas desde a praia por ágeis galeotes que as
faziam subir o Nilo até o harém meridional. Era uma insigne distinção ser
um desses homens, o que, no decurso do ano seguinte, trazia vantagens
práticas. Toda Vese, à exceção dos moribundos ou daqueles cuja idade os
prostrara na decrepitude (as mães levavam suas criancinhas ao colo ou às
costas), uma considerável massa humana afluía às margens, acompanhando
o divino cortejo náutico, e também se ordenava processionalmente. Um
servidor de Amun os guiava cantando hinos; seguiam-no os soldados do
deus, armados com escudos e azagaias; negros trajando vestes de cores
diversas, saudados pela hilaridade geral, bailavam tocando tambor e
fazendo toda sorte de momices e extravagâncias, às vezes obscenas (como
sabiam que eram desprezados, exageravam sua mísera condição para
lisonjear a grotesca imagem que o povo fazia deles); sacerdotes e
sacerdotisas que agitavam crótalos e sistros; animais destinados ao
sacrifício e engrinaldados, carros de combate, porta-estandartes, tocadores
de alaúde, religiosos de alta posição escoltados por seus servos, aos quais se
juntavam as pessoas da cidade e dos campos que cantavam e marcavam o
compasso com as mãos.
Assim caminhou o cortejo, em meio do júbilo, até a casa dos colunas à
margem do no, onde as naus dos deuses atracaram. Ainda uma vez as
barcas sagradas foram erguidas aos ombros e conduzidas em nova
procissão, ao som de tambores e de buzinas, até a esplêndida casa do
nascimento. Ali as concubinas terrestres de Amun, as damas da nobre
ordem de Hathor, com suas vestes diáfanas, receberam-nas com
reverências, agitando palmas. Dançaram diante do esposo augusto (o
bonequinho acocorado e enfaixado dentro do seu camarote velado), tocaram
timbales e cantaram com sua voz sedutora. Era a grande visita do primeiro
dia do ano ao harém de Amun, celebrada com a mais faustosa
hospitalidade, com profusão de ofertas, comidas, libações, honras sem fim e
complicadas cerimônias simbólicas — que a maior parte do povo não
compreendia -— no interior do santuário, na nave anterior do templo do
abraço e do parto, ornados de baixos-relevos polícromos e de inscrições,
sulcados de peristilos de colunas papiriformes de granito rosa, de salas com
pavimento de prata, onde se desdobravam tendas, e de pátios cheios de
estátuas, abertos ao povo. Imagine cada um o cortejo divino, tão alegre e
brilhante como a sua chegada, chegando a Kamak ao entardecer, por água e
por terra; em todos os templos, a atividade forasteira, as diversões populares
e as representações teatrais em que os sacerdotes, ocultos debaixo de uma
máscara, representavam cenas da vida dos deuses; as festas se prolongavam
o dia inteiro, e tudo isto, se é possível imaginá-lo, pode dar uma ideia da
beleza deste primeiro dia do ano. A tardinha, a grande cidade estava
inundada de despreocupação e de fé serena, engolfada na cerveja; uma volta
da idade de ouro. Os homens da equipagem dos rebocadores divinos
percorriam a cidade coroados de flores, ungidos de óleo e copiosamente
borrachos, com licença quase completa de fazer o que quisessem.
A CASA VAZIA