Você está na página 1de 33

Filhas do Ódio

No livro 1984, de George Orwell, um governo instiga o ódio


generalizado na população para promover o controle social e a desunião do
povo de Oceânia. Analogamente, no Brasil contemporâneo, a Mídia
sensacionalista resume o debate público à vilanização do outro, enquanto
líderes de viés autoritário semeiam a discórdia na sociedade a fim de
controlá-la. Dessa forma, é essencial traçar paralelos entre os Dois Minutos
de Ódio da ficção e suas contrapartes reais, a fim de perceber seus efeitos na
democracia e nas relações sociais.
Na obra orwelliana, os Dois Minutos de Ódio são uma programação
diária que expõe os inimigos do povo aos cidadãos a fim de manter os
espectadores em estado de tensão constante. Isso ocorre porque, em poucos
minutos, um avalanche de imagens induzem emoções negativas que seriam
canalizadas, pelo partido, aos seus propósitos. No Brasil contemporâneo, o
jornalismo de baixa qualidade e a mídia sensacionalista são responsáveis por
compilar todas as imoralidades e todos os crimes violentos em programas
televisivos que instigam a dicotomia entre a figura do cidadão de bem e o mal
difusos nas cidades. Como consequência, é criado um discurso de
vilanização do outro que, se não impede, entrava a união da sociedade para
um futuro democrático e harmônico.
Dado o ódio generalizado produzido pela mídia sensacionalista, líderes
de viés autoritário também ascendem com base no contexto de terror e de
raiva instituídos. De fato, nesse aspecto, a realidade transcende a distopia a
partir do movimento que os políticos propõem ideias violentas e radicais para
eliminar o outro. No século XXI, no entanto, essas propostas são divididas em
linhas e entrelinhas para que o emissor não encontre problemas com a lei.
Seja por meio do discurso oficial defensor do encarceramento em massa, seja
por meio da mensagem subliminar defensora do linchamento de suspeitos de
crimes, instaura-se o caos social e o projeto autoritário. Assim, é fundamental
reconhecer que associação entre políticos sanguinários e o mau jornalismo
tem prole perversa e deletéria à sociedade.
É evidente, portanto, que a realidade contemporânea foi bem-sucedida
em apartar os piores pesadelos da distopia orwelliana ao mundo concreto.
Nesse sentido, a vilanização do outro e a perseguição das minorias
apresentam-se filhas legítimas dos Dois Minutos de Ódio do século XXI.
Mesmo assim, por mais avassalador que o contexto atual possa parecer,
tanto o Partido quanto o populismo midiático dependem de uma sociedade
alienada e desarmônica para agirem. Cabe, por fim, à humanidade moderna
escolher entre o terror e a paz social. Esperemos, apenas, que a escolha seja
bem-feita.
Publicidade íntima
No livro 1984, George Orwell conjectura um futuro no qual um governo
totalitário observa os membros da burocracia a todo instante para garantir sua
dominação sobre o povo. Analogamente, no século XXI, enquanto Estados
fortalecem seus sistemas de vigilância pública, empresas enfraquecem o
valor dado pela sociedade ao direito à privacidade. Assim, em um contexto no
qual o público e o privado se invertem, a intimidade gradualmente torna-se um
luxo poucos.
Na obra orwelliana, o leitor é apresentado a uma realidade em que os
cidadãos são mantidos sob vigilância constante tanto das teletelas quanto por
parte daqueles que os rodeiam. De forma semelhante, no Brasil
contemporâneo, a observação e o registro constante do espaço público
tornou-se uma importante política de controle social mascarada de
investimento em segurança pública. Nesse sentido, a presença de câmera de
segurança nada mais é que a privatização, por parte do governo e suas
empresas associada, da vida comum dos indivíduos. Mesmo assim, é
importante frisar que, enquanto o Partido vigiava a população mais educada
em busca de subversão, os regimes reais violam sobretudo a privacidade dos
mais pobres, tidos erroneamente como inclinados ao crime. Assim, o direito à
intimidade torna-se cada vez mais um luxo para poucos.
Além das violações brutais por parte do governo, empresas de
informação depredam o valor do direito à privacidade ao induzirem uma
cultura de exposição nas redes sociais. Surge, assim, um ponto de essencial
consideração: a intimidade pode ser atacada tanto a partir do meio externo
quanto a partir da interioridade dos seres. Isso ocorre quando a expressão
pessoal possibilitada pela internet é subvertida em necessidade
reconhecimento por parte de interesses empresariais. Consequentemente, a
sociedade torna-se fonte de informações para um corpo de agentes privados
que a manipulam. Nesse sentido, o privado é convertido em público para o
proveito de outros privados. Dessa forma, as redes sociais transformam a
intimidade em um lixo para aqueles que não se deixam manipular.
É evidente, portanto, que a privacidade tem gradativamente se tornado
um privilégio para um grupo decrescente de pessoas. Contudo, o problema
não está fora do alcance de nossas mãos. Cabe à sociedade repelir as
investidas vigilantes dos governos e resistir à cultura da exposição na internet.
Resta, agora, descobrir se a privacidade fará de si uma publicidade ou se o
mundo tomará outro caminho.
Humanidade vegetativa
No livro 1984, de George Orwell, o protagonista é obrigado a inibir sua
expressão pessoal perante um regime opressor a fim de não ter a sua
existência censurada pelo Partido. Analogamente, no século XXI, o
esvaziamento da subjetividade, garantido pela anestesia do entretenimento,
suplanta o lugar do controle violento no empreendimento de censurar os
seres humanos. Dessa forma, a dominação pelo outro mostra-se uma das
estratégias usadas para suprimir os anseios sociais.
Se Thomas Hobbes propõe que os humanos suprimam seus desejos
pelo bem maior, o romance orwelliano transforma o controle de pulsões em
uma forma de manter a ordem vigente. Na obra, a opressão não promete
melhoras, mas sim uma transposição eterna do presente no futuro. De
maneira semelhante, a estrutura das sociedades modernas exige a
uniformização e a autocensura dos cidadãos. Nesse sentido, a repressão do
id das massas ocorreria de forma mais severa nos regimes autoritários e seria
mais morno nas culturas democráticas. Portanto, o domínio das
expressividades do sujeito é alcançada por força externas.
Por outro lado, no século XXI, o controle externo tende a se tornar
menos necessário à medida em que o entretenimento ocupa o tempo e
desejo dos cidadãos. Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, as telas perdem a
função de observar as pessoas para esvaziarem o sujeito. Agora,
diferentemente de 1984, a censura da humanidade não se limita à margem
ser-objeto, mas invade o âmago da interioridade pessoal de cada um. De
maneira semelhante, no contexto contemporâneo, os cidadãos pagam para
carregarem teletelas consigo e, como forma de adquirir um prazer imediato,
livram-se de pulsões e anseios. Consequentemente, nasce uma nova maneira
de censurar as potencialidades das massas por parte de setores interessados
na conservação do regime vigente. Portanto, o controle externo tende a
suplantar a dominação no objetivo de calar as personalidades coletivas.
É evidente, portanto, que o controle social é um dos tipos de censura
das pulsões humanas. Contudo a ameaça crescente da descaracterização
das massas pelo entretenimento dá urgência à reversão desse exagero.
Resta saber se queremos ser humanos ou vegetais frente ao celular.
A transgressão como norma
No livro 1984, de George Orwell, um regime totalitário mantém o seu
poder por meio do controle sobre a classe mais educada e da acomodação
induzida da casta trabalhadora. Da mesma forma, no século XXI, a
despolitização da sociedade e o esvaziamento do sujeito pelo entretenimento
entravam o desenvolvimento de uma cultura transgressiva necessária para a
transformação da realidade. Assim, é preciso perceber que, em sociedades
pautadas no controle social, apenas o desvio da norma pode garantir a plena
humanização dos cidadãos.
Na obra orwelliana, a construção de uma linguagem altamente objetiva
e ambígua impede a clareza do pensamento e de expressão a fim de alienar
os habitantes de Oceânia uns dos outros. Como consequência, a falta de
organização interior e exterior reforça a acomodação dos indivíduos sob uma
realidade cada vez mais opressora. Analogamente, no Brasil do século XXI,
uma onda de despolitização da sociedade impede a transgressão coletiva
essencial para a realização dos seres humanos. Seja por falhas de
comunicação entre os diversos agentes sociais, seja pela desarticulação
construída por uma população polarizada, é preocupante tamanha anestesia
da humanidade perante seus desejos. Dessa forma, o alinhamento e a
articulação política possibilitado pelo debate claro são preciosos para a
transformação de um povo.
Ademais, o esvaziamento da interioridade subjetiva aliena o sujeito das
suas aspirações e extrai o motor transgressivo dentro de cada ser humano.
Em Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury, as telas – em vez de
representarem o terror da vigilância – transmitem um conteúdo pobre e
irreversivelmente anestesiante que induzem o povo a uma acomodação total.
De maneira semelhante, na contemporaneidade, reina o entretenimento da
Indústria Cultural, que suprime a indagação pessoal necessária para que o
indivíduo saia de sua zona de conforto e se transforme. Dessa maneira, a
acomodação demonstra-se um perigoso elo entre distopias diferentes e entre
a ficção pessimista e a realidade presente.
Evidente, portanto, que a sociedade precisa, mais do que nunca, de
uma cultura transgressiva no meio coletivo e no âmbito pessoal. Contudo,
esse ideal só pode ser estabelecido mediante intenso trabalho de
comunicação, de politização e de introspecção. Resta saber, agora, se a
humanidade pretende tomar para si a ordem do mundo ou se vai permitir a
dormência de suas aspirações frente a alienação. Seja como for, apenas a
decisão correta tem o potencial de afastar a contemporaneidade do
banimento eterno para a zona de conforto.
Por um novo passado
No livro 1984, escrito por George Orwell, o Partido se encarrega de
destruir a memória social do povo e impor uma narrativa histórica única a fim
de condenar Oceânia a um eterno presente opressor. Analogamente, no
século XXI, a retenção do passado e a construção da lembrança coletiva são
desafios de uma sociedade que anseia estar em contato com a sua história e
seus valores. Dessa maneira, o esquecimento e o revisionismo histórico
irresponsável apresentam-se como problemas para unidades de povos e sua
articulação institucional.
Na obra orwelliana, a existência enquanto ser social é antiética: toda a
população é, ao mesmo tempo, massa coletivista e entidade atomizada. Isso
ocorre porque o regime totalitário vigente garante o seu poder por meio do
apagamento da memória social e, com ela, toda a conexão dos cidadãos uns
com os outros. Da mesma forma, no Brasil, o discurso histórico no qual de
dizia que a Lei Áurea teria libertado os escravizados por decreto alienava os
negros de um passado comum e de um futuro viável. Contudo, o trabalho
histórico e político de cidadãos empenhados em mudar o presente permitiu a
construção de uma memória coletiva que é mais fiel aos fatos e reconhece o
protagonismo dos escravizados e sua emancipação. Assim, enquanto a
amnésia desune a sociedade sob a égide de “estórias” incompletas, a
lembrança é capaz de mudar a compreensão do presente.
Ademais, a compreensão do presente por meio do passado transforma
a aspiração do futuro, conforme permite que os cidadãos entrem em contato
com a sua condição social. Esse processo é fundamental ao ponto que
existem narrativas históricas que separam o indivíduo de sua posição na
realidade. No século XXI, empresas desejam convencer a sociedade de que
os seus empregados são, na verdade, sócios a fim de não pagarem os
encargos e direitos da carteira assinada. A origem dessa afronta é,
essencialmente, a ideia falsa de que as garantias seriam concessões do
patrão em vez de conquistas de toda a classe trabalhadora. Assim, a história
e seu estudo podem entravar a produção de revisionismos e melhorar a
compreensão do presente.
É evidente, portanto, que o passado contribui para o entendimento da
realidade atual, seus desafios e suas conquistas. Seja pelo esquecimento,
seja pela mentira, todo vácuo de memória pode ser preenchido com discursos
falsos ou deturpados. Resta saber se a sociedade contemporânea deseja a
escravidão do eterno presente ou se oferece a liberdade de avançar com
base nos erros e nos acertos do passado.
A felicidade de Sísifo
No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente oprime a
população de Oceânia e garante o seu poder ao convencê-los de que
liberdade é escravidão. Essa frase, apesar do aparente paradoxo lógico e
absurdo moral, revela uma verdade tanto do sistema capitalista quanto das
sociedades humanas como um todo. Nesse sentido, cabe aos
intelectualmente responsáveis garantir a compreensão dessa questão que é,
ao mesmo tempo, atual e perene sem dar margens à deturpação conceitual
como a perpetrada pelo Partido. Dessa forma, em nossa sociedade, podemos
afirmar que liberdade é escravidão.
O romance Robinson Crusoé é uma obra importante no
desenvolvimento da mitologia e da ideologia burguesa ao reforçar a ideia de
que o Homem é um ser atomizado e liberdade significa fazer o que quiser.
Entretanto, sob uma perspectiva hegeliana, que valoriza as relações sociais, o
protagonista do livro seria um escravo da sua condição solitária e um ingrato
por não valorizar os conhecimentos socialmente construídos que aplica.
Analogamente, no sistema capitalista, o trabalhador é livre para ser escravo
do industrial de sua escolha. Nesse sentido, o lema do Partido acerta ao
reconhecer que a liberdade individual é a escravidão desse mesmo humano,
mas deturpa a mensagem ao instituir um poder ainda mais opressor e impedir
o desenvolvimento pessoal dos cidadãos. Assim, a ideia de um homem como
sendo uma entidade no vácuo é deletéria à melhora e à evolução da
humanidade.
Ademais, a humanidade tem o poder de dar sentido à sua própria
existência e, portanto, anseia o trabalho enfadonho e angustiante de escrever
em si o propósito que não encontrou nas estrelas. Para Albert Camus, como
Sísifo que empurra uma rocha para cima da colina e deixá-la descer, faz parte
do mal-estar existencial a construção e desconstrução eternas da razão pela
qual estamos aqui. Nesse sentido, a liberdade de decidir a sua própria origem
garante a escravidão de uma tarefa interminável e satisfatória. Contudo, como
observado na obra orwelliana, o governo se ocupa de esvaziar os cidadãos e
entravar seu desejo de serem plenamente humanizados. Assim, liberdade e
escravidão são congruentes quando a pulsão pelo trabalho existencial surge
do indivíduo ou sociedade.
É evidente, portanto, que o lema do Ingsoc é, na realidade, uma
perversão de uma verdade que é tanto atual quando remonta tempos
imemoriais da humanidade. Cabe a nós garantir a plena procedência da
mensagem a deturpação de eventuais interessados. Resta saber, agora, se
as sociedades querem permanecer no estado em que se encontram ou se
preferem trocar a liberdade de Robinson Crusoé pela realização humana de
Sísifo. Seja como for, devemos imaginá-lo feliz apesar e por causa de seu
trabalho sem fim.
Inverdades nas paredes
No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma
realidade em que o regime totalitário empreende uma política propagandística
agressiva ao ponto de moldar a percepção dos cidadãos. Analogamente, no
século XXI, o caráter parcial e a onipresença da publicidade gera falsas
concepções do mundo capazes de contaminar o inconsciente das sociedades
e permitir a manipulação das massas. Dessa forma, torna-se importante
reconhecer como certas políticas empresariais e governamentais ameaçam a
liberdade humana.
Na obra orwelliana, o protagonista nos apresenta a uma realidade na
qual o governo exalta suas supostas vitórias a todo momento e em
virtualmente todos os espaços urbanos. Consequentemente, o fluxo constante
e volumoso das vanglórias estatais termina por contaminar profundamente o
inconsciente dos cidadãos, que começam a acreditar nas inverdades
distribuídas. No Brasil, durante a pandemia de covid-19, o Governo Federal
propagandeou mentiras acerca do perigo real da doença e apoiou medidas
pouco eficientes no combate ao vírus a fim de garantir os lucros do
empresariado. Seja nas redes sociais, seja nos espaços públicos de grande
circulação de pessoas, a publicidade é tão comum hoje quanto seria no
mundo de Winston Smith. Portanto, é necessário que a sociedade perceba a
propaganda como um perigo a sua autonomia intelectual.
Ademais, a publicidade é um gênero textual que seleciona
meticulosamente a forma e o conteúdo das informações e termina por gerar
concepções distorcidas da realidade no receptor. No segundo arco narrativo
de O triste fim de Policarpo Quaresma, o protagonista trágico – depois de
consumir grande volume de literatura ufanista – convence a si mesmo de que
o campo é um meio farto e promissor. Apesar de viver em tempos anteriores
à propaganda contemporânea, o personagem criado por Lima Barreto escara
uma realidade rural difícil e incongruente com as obras românticas que lera.
De maneira semelhante, transnacionais petrolíferas atuais se vangloriam de
sua consciência ambiental enquanto permanecem caladas acerca de seus
eventuais derramamentos de petróleo no oceano. Assim, é essencial saber
que a propaganda serve a interesses particulares e pode mascarar a verdade.
É evidente, portanto, que a propaganda funciona como ferramenta de
manipulação das massas. A verdade é que, seja por parte do governo, seja
por parte das empresas, a onipresença e o propósito primeiro da publicidade
formam uma eficiente arma de distorção do pensamento de um povo. Resta
saber se a sociedade acolherá o que vê nos “outdoors” como verdade
absoluta, ou se irá perceber o texto que lê como um discurso, igual a qualquer
outro.
A segunda abertura
No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário oprime os
cidadãos de Oceânia e transforma o futuro em tempo vazio no qual existe
apenas a eterna transposição do presente. Analogamente, no século XXI, os
seres sociais perdem a confiança na ação política coletiva e os povos perdem
a esperança frente à disseminação de narrativas fatalistas de mundo.
Entretanto, são os agentes politizados e as infinitas possibilidades de
transformação que escrevem a história da humanidade. Portanto, é
necessário reconhecer a capacidade humana de manipular a trama do seu
destino.
Na obra orwelliana, o amanhã tem uma natureza paradoxal: enquanto
o Partido promete fartura à população, a realidade presente determina uma
decadente marcha de um hoje para um outro hoje mais opressor. Essa
evolução estática é garantida pela alienação dos cidadãos consigo e entre si,
seja pela desconfiança a que foram induzidos, seja pela passividade criada a
partir da violência e medo generalizados. Ambos os pontos aludem à
realidade do Brasil contemporâneo ao passo que a imensa polarização
ideológica e a submissão aos políticos de viés autoritário congelaram a
organização coletiva em vários campos da sociedade. Consequentemente, é
perceptível que apenas o desenvolvimento da ação direta e coordenada do
povo pode mudar o destino desse mesmo organismo social. Portanto, a
história das sociedades não vai mudar a menos que seja escrita na 1ª pessoa
do plural e na voz ativa.
Em Antígona, peça de Sófocles, o velho oráculo Tirésias é obrigado a
assistir a morte trágica da princesa de Tebas envolvida em um destino
inexorável. Na peça de teatro, o espectador conhece o fim da narrativa no
começo e de nada pode fazer. Assim, também são as narrativas fatalistas
recorrentes no discurso público contemporâneo. Contudo, hoje –
diferentemente da Grécia Antiga – sabemos que tudo pode mudar a menos
que seja mantido no estado atual. A verdade é que a trama da história não
está completamente tecida, mesmo que as possibilidades de inovação
estejam restritas pelo presente real. Esse ponto alude diretamente outro mito
grego: a história de Pandora. Se por um lado ela abre a caixa e deixa escapar
todos os males do mundo, por outro ela voluntariamente abre o artefato uma
segunda vez para libertar a esperança.
É evidente, portanto, que o futuro não existe ainda e precisa ser
construído a partir do presente. Contudo, forças como a alienação e a
passividade induzida entravam esse processo ao tirarem a voz ativa dos
povos, como observado em 1984. Resta saber se a humanidade deseja
permitir que a sua biografia seja escrita por outros ou se anseia traçar o
próprio caminho. Seja como for, é necessário que honremos a segunda
abertura da caixa de Pandora.
Entre tutsis e hutus
No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma
realidade na qual um regime totalitário garante seu poder por meio da
despolitização e desunião da sociedade. Analogamente, tanto no Brasil
contemporâneo quanto em conflitos étnicos da história recente, a visão
negativa acerca da política e o não reconhecimento dos indivíduos facilitam a
manipulação social. Assim, é necessário perceber como grupos poderosos
podem alienar os sujeitos de sua humanidade a fim de dividir os povos e
censurar seu pensamento.
No decorrer da obra orwelliana, percebe-se que a linguagem direta e
obscura da novafala extrai todo e qualquer significado filosófico ou ideológico
das palavras. Consequentemente, as palavras tornam-se apenas
transmissoras de ideias simples, enquanto o Partido continua a reprimir a
população sem resistência alguma. Da mesma maneira, a recente caçada às
ideologias nas escolas brasileiras reflete o crescimento de uma visão negativa
da política no país. Contudo, é necessário lembrar que o oposto de debate
público não é a neutralidade – é a manutenção dos problemas vigentes.
Assim, negar a gestão da pólis aos cidadãos é uma forma de desumanizá-los
porque aliena eles de sua dimensão de autonomia e de ação coletiva. Não
podemos, portanto, permitir a dominação da sociedade sob a égide de uma
suposta imparcialidade.
Ademais, a negação da humanidade a certas parcelas da população
gera a desarmonia social e permite a manipulação, como observado quando
colonizadores belgas dominaram Ruanda. Durante a colonização do país
africano, os belgas deram poder político à etnia tutsi, enquanto instigaram a
opressão da maioria hutu, que desenvolveu certo ódio em relação ao outro
povo. Consequentemente, a saída do dominador europeu levou à degradação
do poder tutsi seguido do massacre por parte dos ressentidos hutus.
Analogamente, no Brasil contemporâneo, a intensa desigualdade e
segregação socioespacial vigente estimulam a oposição entre as classes
baixas e médias. Isso ocorre porque, embora ambas tenham interesses
próximos, os trabalhadores mais ricos pensam ser mais próximos dos
milionários do que dos pauperizados, o que enfraquece a união das massas.
É evidente, portanto, que a visão negativa acerca da política e a
desunião de grupos sociais permite a manipulação do povo. Tanto para o
Partido, quanto para os colonizadores belgas, a alienação e a divisão da
sociedade foram úteis para a conquista. Resta saber se o Brasil, frente a
exemplos da literatura e da história, lutará contra a desumanização dos
sujeitos ou permitirá o massacre da sua autonomia intelectual.
Lutas de mente e corpo
No livro 1984, de George Orwell, mesmo a intensa opressão e
doutrinação do Partido encontram a insipiente transgressão de cidadãos
aparentemente comuns como Winston Smith. Analogamente, lutas, tanto
contra a alienação quanto pela libertação, são exemplos históricos de como
os humanos anseiam por sua plena humanização. Assim, é necessário
reconhecer os fatores que permitem a transgressão de cenário deterministas
por parte dos indivíduos desejosos de sua completude existencial.
Na obra orwelliana, a percepção crítica do protagonista guia o leitor
pela realidade de Oceânia e permite a transgressão de Winston frente ao
controle avassalador do regime totalitário. Isso ocorre porque a luta contra a
alienação depende da introspecção pessoal e de uma ampla visão do cenário.
Por isso, é o setor mais intelectual e desalinhado com a ordem vigente que
identifica e acusa as falhas e contradições da realidade. No caso do Brasil,
durante o regime militar, foram os estudiosos e os artistas que mais se viram
censurados ou forçados ao exílio. Consequentemente, as lutas contra forças
alienantes dependem da participação dos membros mais educados da
população, como era o protagonista de 1984. Dessa forma, o projeto de
educar os povos fortalece o esforço pela plena humanização dos humanos.
Por outro lado, além do pensamento e teorização, é o desejo puro pela
liberdade que põe em prática a resistência dos mais oprimidos pelos regimes
deterministas. Esse fator, mais bem representados no livro por Julia, alude
diretamente ao anseio natural dos sujeitos pela humanização. No Brasil,
durante a escravocracia, foi o ódio pelas amarras e o amor pela vida que
motivou as rebeliões e fugas de negros desejosos por sua libertação.
Contudo, a força de vontade necessária para transgredir situações opressoras
não aparece em todas as pessoas, mas depende do contato do sujeito com
suas aspirações.
É evidente, portanto, que o pensar – possibilitado pela educação – e o
agir – motivado pelo desejo – são fatores essenciais para a transgressão das
forças que reprimem os humanos. Conclui-se, com isso, que as condições
para a emancipação não são restritas a um grupo de escolhido e podem ser
desenvolvidas por todo e qualquer cidadão. Resta saber se a sociedade
instigará o pensamento e a ação que movem sua evolução ou se permitirá
que os regimes deterministas insultem a sua capacidade de transformação.
Seja como for, cabe aos humanos se responsabilizarem por sua
humanização.
O outro lado da tela
No livro 1984, de George Orwell, as teletelas espalhadas nos espaços
socais e individuais têm o propósito claro de reprimir comportamentos
reprovados pelo Partido. Analogamente, nas sociedades contemporâneas, a
vigilância remota também serve para inibir os cidadãos e controlar as massas
em demonstrações de insatisfação. Contudo, é inegável a utilidade das
câmeras de segurança na captação de informações sobre as cidades e na
coleta de evidências criminais. Assim, faz-se necessário definir limites
parcimoniosos em relação à prática.
Na obra orwelliana, o leitor é apresentado a uma realidade extrema na
qual o interior dos lares de muitos cidadãos é constantemente registrado por
teletelas e transmitido ao Estado. Consequentemente, a população vive em
constante medo da observação por parte do regime autoritário. Isso ocorre
porque o humano, quando sabe que pode ser visto por olhos julgadores e
punitivos, reprime a sua expressão pessoal pelo bem de sua invisibilidade. No
Brasil do século XXI, com a intensa proliferação de câmeras de segurança no
meio urbano, também há certo receio quanto a invasão da vida privada em
espaços públicos. Assim, fica claro como a vigilância inibe a personalidade e
estimula a uniformização. Nesse sentido, a expansão dos sistemas de
observação remota mostram-se deletérios.
Por outro lado, o registro de imagens em vias públicas permite o estudo
do fluxo de pessoas e, pode ser usado no rastreamento de suspeitos de
crimes. A dupla natureza da vigilância habita na necessidade de integração
informacional das cidades. Caso a tecnologia seja bem aplicada, as câmeras
podem informar o núcleo decisório acerca de melhores soluções para os
problemas de transporte público e segurança. Além disso, se as imagens
registradas puderem cair nas mãos da sociedade civil, as câmeras podem ser
expositoras das injustiças diárias e das violências institucionais recorrentes.
Isso ocorre porque o que define as propriedades benéficas ou nocivas de uma
prática são seus usos e suas consequências. Se a vigilância estiver à
disposição da população e por um instrumento de melhora das condições de
vida, as câmeras poderão até receber apelidos carinhosos.
É evidente, portanto, que o limite para as propriedades benéficas ou
nocivas da vigilância não está nas câmeras, e sim em quem as rege ou para
que fim servem. Resta saber se a sociedade civil organizada pretende tomar
o poder sobre sua imagem ou se prefere deixá-la nas mãos de quem tem
sede de controle social. Seja como for, não façamos com que o apelido das
câmeras seja teletelas.
O inferno somos todos
No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma
realidade em que a espionagem entre civis e a virtual onisciência do regime
totalitário vigente mantém um estado de terror constante. Analogamente, o
temos do outro e de si faz com que a união dos povos em direção ao anseio
comum e o desenvolvimento da verdadeira consciência moral sejam
dificultadas. Dessa maneira, é necessário compreender como apenas a
transposição do medo tem o potencial de humanizar os sujeitos e permitir que
atinjam suas capacidades sociais e éticas.
Nesse contexto, o temor em relação ao outro, seja ele o vizinho, seja
ele o colega de trabalho, é um grande empecilho para a articulação política da
sociedade. Isso ocorre porque a desconfiança e a hostilidade em relação ao
próximo aliena os sujeitos. Na Alemanha nazista, por exemplo, com medo de
ser punidos pelo Estado, famílias próximas se distanciaram umas das outras
devido ao medo de serem denunciadas de subversão. Consequentemente, o
cenário político estimulava o crescimento do nazifascismo agora sem grandes
oposições populares. Contudo, a explicação não é justificativa, já que a
sociedade alemã – ao não ultrapassar as barreiras do pavor – tornou-se
cúmplice dos mais diversos horrores. Dessa forma, por maior que seja a
alienação em relação aos outros, é dever do ser humano se responsabilizar
por sua paralisia covarde.
Na obra orwelliana, o Deus abraãmico é substituído por uma entidade
igualmente imaterial e onisciente: o Partido. De fato, a revelação de que o
esconderijo de Winston Smith era um posto de observação da Polícia do
Pensamento permite perceber como os olhos e ouvidos do regime têm
atributos quase sobrenaturais. Frente a essa situação, é perceptível como o
medo da função divina distorce a verdadeira moralidade humana. Tanto no
caso da população de Oceânia, quanto em algumas seitas religiosas mais
radicais, o temor da observação é tão grande que os cidadãos se reprimem
violentamente por ideias inortodoxas ou pecados de pensamento. A evidência
dessa proposição está em um dos dez mandamentos, já que “não cobiçarás a
mulher do próximo” é o primeiro crime de pensamento que um
fundamentalista poderia cometer.
É evidente, portanto, que o desenvolvimento da ação coletiva e da
verdadeira moralidade são bloqueados pelo medo que o sujeito tem do outro
e de si. Contudo, como qualquer emoção, o temor é de responsabilidade
exclusiva daquele que o experiencia. Resta saber se a humanidade prefere
ser dominada pelos pavores que criou ou se deseja transpor as barreiras que
montou a fim de aproximar-se de sua plena humanização. Seja como for, não
deixemos cair na repressão dos anseios.
Vidas Secas e Oceânicas
No livro 1984, de George Orwell, o fim trágico que leva o protagonista é
consequência da sua desconfiança em relação ao poder do povo e sua
submissão às figuras de autoridade como O’Brien – ícone do Partido.
Analogamente à realidade distópica retratada, tanto no Brasil contemporâneo
quanto no sertão de Vidas Secas, a alienação política e a excessiva
hierarquização social levam as pessoas, como o subversivo Winston e o
retirante Fabiano, a se perceberem como inferiores às demais. Desta forma, é
necessário reconhecer como a prática da democracia e da igualdade pode
restabelecer a autoestima dos mais vulneráveis.
A partir da leitura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é possível
perceber como a distância entre as instituições e a sociedade causa a
alienação do poder cidadão e a diminuição da autoestima dos empobrecidos.
Em certo momento da narrativa, Fabiano – um sertanejo em estado de
vulnerabilidade social – fica perplexo ao se ver enganado pelo soldado
amarelo. Esse episódio alude diretamente à falta de integração entre o povo e
o Estado, visto como entidade distante e perfeita. No caso do Brasil
contemporâneo, há pouquíssima atuação da massa trabalhadora nas
decisões institucionais e, muitas vezes, a única interação dos indivíduos com
o poder é mediada pelo monopólio da violência da polícia.
Consequentemente, apenas o trabalho coletivo em prol do exercício da
democracia pode mostrar ao cidadão seu verdadeiro potencial político.
Ademais, a intensa hierarquização da sociedade gera uma confiança
injustificada em figuras de autoridade e faz com que a população delegue sua
responsabilidade política a grupos considerados superiores. Na obra
orwelliana, uma breve troca de olhares foi suficiente para que Winston
decidisse que o ícone do Partido – O’Brien – era um homem confiável. Assim,
o protagonista demonstrou a sua autoestima deficiente e sua ingenuidade ao
entregar as suas ideias subversivas a um importante membro do regime
totalitário. No Brasil contemporâneo, é comum ver a submissão de
movimentos sociais tais quais grupos conservacionistas em relação a um
corpo legislativo claramente ligado à economia de extrativismo predatório.
Dessa forma, a confiança dos povos vulneráveis decorre diretamente do grau
de igualdade social e deve ser promovida sob os preceitos democráticos de
ação direta da população.
Dessa maneira, torna-se notório que a alienação política e a extrema
hierarquização da sociedade são fatores que levam pessoas, em condições
semelhantes às de Fabiano e Winston Smith, a se considerarem inferiores.
Seja pela personificação do governo no soldado amarelo, seja na
materialização do Partido em O’Brien, o poder popular nunca pode ser
delegado. Portanto, para a contemplação de uma estrutura social harmônica e
coerente, resta saber se continuaremos a baixar para a autoridade ou se
passaremos a escrever nossa própria história. Só assim, é possível tomar
responsabilidade e superar vidas secas e oceânicas.
Humanos humanos
No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário dominara a massa
trabalhadora a animais e termina por retirar a humanidade tanto dos
degradados proletas quanto dos dessensibilizados burocratas. Analogamente,
o neocolonialismo e a questão indígena exemplificam como a animalização e
a divinização – dois processos aparentemente dicotômicos – causam a
desumanização tanto do opressor quanto do oprimido e permite a
manipulação social de ambos. Assim, evidencia-se fundamental permitir que
humanos sejam nada mais e nada menos do que humanos.
Segundo o filósofo Frantz Fannon, a degradação da condição simbólica
do oprimido desumaniza tanto aquele que se vê degradado quanto aquele
que degrada, já que impede o opressor de sentir empatia e compaixão por um
igual. Na obra orwelliana, esse processo é descaracterizado pela total
indiferença das castas superiores de Oceânia em relação aos proletas. Como
bem enuncia Winston, todo o sofrimento causado aos animalizados só serviu
para extrair a humanidade dos burocratas e permitir sua manipulação. No
contexto neocolonial, os colonizados foram reduzidos a agentes de uma
dominação da qual nem iriam se beneficiar diretamente e os colonizados se
viram servos das grandes nações imperialistas. Assim, os trabalhadores
europeus foram manipulados a odiar e humilhar povos inteiros sob a égide de
uma suposta superioridade racial e cultural.
Ademais, sujeitos também podem ser alienados de sua humanidade
por meio da construção de um ideal irreal desenhado para manipular tanto os
idealizados quanto os idealizadores. A partir da ascensão do romantismo no
Brasil, a construção do chamado “indígena romântico” – nobre e forte –
permitiu a opressão mais severa da população autóctone real. Nesse
processo de divinização, a caracterização fantástica do povo retratado
permite o distanciamento subjetivo e dessensibilização por parte do opressor.
Consequentemente, a exaltação termina por manipular os sujeitos a cometer
as mais diversas atrocidades contra os exaltados. Assim, a desumanização
pode ocorrer tanto no sentido da degradação quanto da elevação injustificada
dos seres.
Dessa maneira, é notório como a desumanização sempre permite a
manipulação social dos desumanizados e a destruição do futuro dos povos
alienados. Portanto, para a contemplação de uma sociedade coerente, resta
saber se o círculo vicioso de atrocidades e dessensibilização vai continuar ou
se a empatia e a compaixão humana serão finalmente pautar o
desenvolvimento dos povos. Só assim, todos os humanos poderão ser o que
nasceram para ser.
O lindo caminho torto
No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente difunde a
sua ideologia por meio dos discursos unidirecionais e debates políticos de
fachada. Analogamente à realidade distópica, a ascensão do monopólio
midiático no século XX e a eterna prisão do paradigma demonstram a
impossibilidade de avançar na busca da verdade sem a adoção de múltiplas
visões de mundo e a superação de paradigmas totalizantes. Assim, a vida e o
conhecimento merecem uma abordagem mais cubista e transgressora do que
a metodologia vigente na contemporaneidade.
É fundamental perceber que a verdade estabelecida com base em
apenas um ponto de vista está sujeita a interesses e vieses pessoais. Da
mesma forma que um caso judicial não é solucionado apenas com o
testemunho nem do réu nem da vítima, a opinião não pode ser embasada em
uma única perspectiva. No século XXI, apesar da aparente polifonia gerada
pela ascensão de uma pequena imprensa digital, o monopólio midiático
herdado do século anterior faz com que a análise da realidade ocorra nos
moldes monolíticos observados na obra orwelliana. Nesse contexto, apenas a
tese cubista, de uma verdadeira multiplicidade de discursos, pode responder
às necessidades sociais de Verdade. Os resultados dessa síntese de
elementos díspares, como as obras de Picasso, podem não ser tão coerentes
ou belas quanto as enunciações baseadas na concordância total da ideologia,
mas serão mais próximos da Verdade.
Antes das Grandes Navegações, o Mundo Cristão acreditava em um
ideal de triplicidade baseado na tríade divina: África, Ásia e Europa eram três
terras habitadas por três povos e cercadas por três mares. Contudo, a
descoberta da quarta terra – América – forçou o abandono ou separação de
um ideal tido como perfeito e estático. E, assim, é a história do mundo para
Hegel: um encadeamento de surgimentos e mortes de ideias totalizantes e
limitantes. Nesse sentido, a ingênua tentativa de ver o mundo sob uma única
perspectiva traz apenas frustrações ou o delírio. Para o filósofo, os debates
de fachada promovidos em Oceânia não rompem paradigmas e, portanto,
servem apenas para anda em círculos. Dessa forma, cabe aos humanos se
basearem em suas ideias mais óbvias para, com debate e esforço, transgredir
essas mesmas perspectivas.
Assim, torna-se notório que a verdade não pode ser alcançada de
maneira unilateral. Esse ideal é uma ilusão luxuosa e a única forma de
realmente evoluir o pensamento é por meio da abordagem cubista e
transgressora. Se os paradigmas forem como óculos, cabe a nós o trabalho
de trocá-los, fundi-los, abandoná-los e ressignificá-los a fim de aproximar o
ser humano da verdade, por mais torto que seja o caminho.
De baixo do tapete
No livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, o
protagonista defende todo tipo de melhoramento para o Brasil, mas não
considera o sofrimento dos povos explorados em suas propostas.
Analogamente, na contemporaneidade, existe uma amnésia acerca do fato da
história se estender no presente e uma negação das feridas sociais ainda
abertas pelo ódio aos violentados e oprimidos. Assim, para o pleno
desenvolvimento de uma sociedade mais justa e coesa, é necessário o
reconhecimento das experiências de desumanização e seu reflexo no hoje.
Se a História não tem utilidade n presente, então não há espaço para
memorizar vastos acervos de datas passadas e nomes de homens defuntos.
Mesmo assim, essas listas de batalhas e seus respectivos comandantes é a
história de cidadãos acríticos como o major Policarpo Quaresma. Enquanto os
ufanistas exaltam o grande feito da Princesa Isabel e a assinatura da
Abolição, um negro continua a ser percebido de forma degradada. A verdade
é que o passado se transpõe no presente até que a sociedade enteja
preparada para superá-lo. A condição da população negra do Brasil ilustra
bem esse fato ao passo que as tentativas de mascarar o racismo avassalador
– como o mito da democracia racial – nunca foram capazes de reverter o
preconceito social e institucional sobre a negritude. Portanto, uma sociedade
justa só pode ser construída quando o estudo da História é acessível, crítico e
voltado para a superação dos erros passados.
Ademais, como um organismo biológico, um corpo social precisa cuidar
das feridas abertas em sua história para avançar em direção a um futuro mais
coeso. Esse ponto alude diretamente à questão do terrorismo doméstico na
Europa que, embora moralmente injustificável, pode ser parcialmente
explicado pela islamofobia e a opressão dos povos islâmicos. Nesse cenário,
jovens muçulmanos, ao serem negligenciados e empobrecidos pelas
sociedades europeias, podem se aproximar de organizações extremistas
nesses países. De fato, é importante frisar que o ódio gerado pela opressão
não torna a violência nada mais justa. Contudo, apenas a reparação das
enfermidades sociais pode quebrar os círculos viciosos de sofrimento e
alimentar a harmonia dos povos.
Torna-se, portanto, notório que o conhecimento acerca das
experiências de violência é fundamental para o combate às oposições sociais
e para a superação de passados dolorosos. Não devem ser os acríticos
Policarpos ou os odiosos islamofóbicos os guias de uma sociedade que preza
pela justiça e pela coesão. É fato que há mais odores quanto a sujeira é tirada
de baixo do tapete, mas limpar o que outrora fora negligenciado é a única
forma de evoluir a História.
Estantes esvaídas
No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma
realidade na qual a arte literária é praticamente inexistente, o que restringe a
imaginação política e o sentimento de compaixão. Analogamente à realidade
distópica, a contemporaneidade presente valoriza apenas a leitura técnica,
que informa sem transformar, e as mensagens instantâneas que não permite
um mergulho profundo na subjetividade do outro. Dessa maneira, é preciso
avaliar a capacidade de transgressão e a conduta moral de um povo ou
pessoa, pela leitura de literatura.
Na obra orwelliana, o regime totalitário vigente restringe o uso da
linguagem escrita à propaganda e às mensagens curtas trocadas entre os
cubículos ministeriais. Nesse contexto, o protagonista – apesar de odiar o
Partido – não conhece nenhuma outra luta de emancipação nem outro mundo
além do seu e, por isso, termina por se submeter ao representante da
instituição que jurou destruir. No Brasil do século XXI, essa falta de
criatividade política decorre igualmente da inacessibilidade intelectual da arte
literária. Não é que os cidadãos não queiram ler, a alfabetização apenas
voltada ao meio técnico-científico é a figura central da equação. Contudo, é
essencial frisar que a transgressividade e o anseio pela transformação são
valores fundamentais da condição humana e devem ser critério de avaliação
dos valores sociais.
Mas seria a leitura o caminho para o sucesso dos povos e nações?
Não, não seria. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, escrito por Lima
Barreto, a estante pouco diversa e muito consistente do major tornou-se
elemento de alienação. Na narrativa, a congruência de discursos e ausência
de vozes díspares nos livros restringiram as capacidades empáticas de um
ávido leitor. Esse processo se deve ao fato de que para gerar compaixão com
um outro, é necessário haver um outro: o que não ocorre quando todas as
fontes concordam entre si e com o receptor. No caso da contemporaneidade,
a aversão patológica à discordância faz os cidadãos se rodearem de livros e
pessoas que reflitam o “eu”. Consequentemente, faz-se necessário compor
uma dieta de romances e contos diferenciadas para construir maior senso de
empatia com alguém externo à pessoa.
Torna-se notório, portanto, que a leitura de diversas literaturas deve ser
critério de avaliação dos indivíduos e um objetivo social dos povos. A verdade
é que ausência de estante no apartamento de Winston e as estantes
espiritualmente empobrecidas de Policarpo Quaresma são entraves ao pleno
desenvolvimento da dimensão ética da humanidade. Para a contemplação de
uma sociedade justa e coesa, resta saber se a literatura será parte apenas do
método de avaliação ou será expandida a todos os cidadãos.
Novas Sementes
No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário mantém a
população alienada ao impedi-la de participar da produção de conhecimento e
da discussão acerca de suas aplicações. Analogamente à realidade distópica,
a ciência contemporânea nos apresenta com tantos dilemas e rupturas de
paradigma que, se não forem discutidos publicamente, nós não poderíamos
ser chamados de democráticos. Frente a esse cenário, faz-se necessário
difundir e debater tanto os problemas que advém da descoberta quanto seu
impacto na coletividade.
É verdade que novas descobertas são, ou podem ser, as sementes de
um mundo novo. Contudo, sementes novas são justamente o centro de
discussão acerca dos riscos sociais dos organismos transgênicos. Esse
cenário é causado pelo alastramento de variedades geneticamente
modificadas em espaços em que eram cultivadas plantas não alteradas. A
resolução encontrada para essa questão biológica foi a criação de um dilema
socioeconômico, já que instituiu-se a dependência dos agricultores em
relação às empresas criadoras de modificações por meio da venda de
sementes estéreis. Assim, percebe-se que o avanço científico cria dilemas e,
em uma sociedade democrática, é inaceitável que os interesses não sejam
publicamente debatidos.
Ademais, para que o novo seja abraçado, é preciso que ele chegue em
todos os espaços sociais a fim de ser devidamente metabolizado. Na obra
orwelliana, a sociedade não tem protagonismo intelectual porque recebe os
saberes de forma unilateral do Partido e não pode contestar a credibilidade
desses dados porque não tem instrumentos. Analogamente à situação
ficcional, no Brasil contemporâneo, o desenvolvimento do saber é restrito por
ser excludente. Quantas novidades mais iriam surgir se todos os membros da
população tivessem condições mínimas de compreender os avanços da
academia? Evidencia-se, assim, o ponto de essencial consideração: a
ruptura. A verdade é que a mudança de paradigma é dolorosa e, sem a
discussão acerca dos usos dessas ideias novas, a tendência é que as
massas hesitem ou voltem-se contra a ruptura em prol do conforto do
passado.
É notório, portanto, que a sociedade receba os instrumentos
intelectuais e políticos para conhecer, debater e decidir acerca das
motivações, usos e efeitos das pesquisas. Para a contemplação de uma
sociedade coerente, resta saber se as sementes da novidade serão pisadas
para a escravização do povo ou para a sua libertação. Só assim, nós
poderemos nos chamar de defensores da democracia.
Inegáveis verdades
No livro 1984, de George Orwell, a negação sistemática da ciência pelo
regime totalitário gera a crença no absurdo e a livre manipulação do saber
coletivo. Analogamente à realidade distópica, no Brasil do século XXI, há um
descompasso social quanto a verdades fundamentais e um crescimento
acelerado de movimentos que distorcem o conhecimento científico. Nesse
contexto, é preocupante como o mundo concreto, que deveria fundamentar as
posições políticas, inverte partes com elas. Assim, o atual negacionismo tem
o potencial desconstruir a conexões sociais que fundamentam a democracia.
Com efeito, a prole mais imediata da atual negação científica é o
descompasso entre setores da sociedade, já que ao abandonarem a
realidade os negacionistas deixam também os sensatos. Esse processo, que
pode ser gradual ou rápido, é, contudo, um grande golpe contra a
democracia. A verdade da sociedade democrática é o embate harmônico de
diferentes posicionamentos. Contudo, em um contexto de desarticulação, os
grupos dão as costas e deixam um vácuo decisório. Consequentemente, os
tolos – mais numerosos – tomam o espaço público sem mesmo porem suas
ideias à prova. Portanto, é necessário resgatar o ideal dos enciclopedistas:
difundir o conhecimento a toda a população e colher os frutos do progresso.
Só assim, é possível fazer a discordância vencer sobre o descompasso.
Na obra orwelliana, o Partido deseja o poder absoluto de desmontar e
montar a realidade quando e como quiser. Para chegar a esse objetivo, a
instituição recorre à mentira sistemática e à doutrinação avassaladora. No
Brasil, a história de Canudos foi símbolo do potencial destrutivo do Estado
associado à Mídia. Enquanto jornalistas e burocratas consideravam a cidade
um perigo à jovem república, a vila não representava risco algum ao Rio de
Janeiro. No contexto do negacionismo científico, o evento alude diretamente
ao ponto fundamental: a livre manipulação da verdade. Da mesma forma com
que Canudos foi destruída pela mentira, também poderá ser a autonomia
intelectual brasileira caso a negação dos fatos continue.
É notório, portanto, que a atual negação dos fatos projeta um futuro de
desunião e mentira inconsequente. Para a contemplação de uma sociedade
democrática, resta saber se a realidade será submissa à opinião ou o
contrário. Assim, é necessário retornar ao ideal enciclopédico de síntese da
verdade.
Habilidades literárias
No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário impede a
apreciação de arte literária a fim de extinguir a coragem moral e a compaixão
na sociedade de Oceânia. Analogamente À realidade distópica apresentada,
no Brasil contemporâneo, a falta de um público leitor bem desenvolvido ajuda
a manter o povo em estado submisso e egoísta – dos vícios deletérios à
democracia e ao republicanismo. Assim, é necessário considerar a leitura de
literatura para julgar o caráter de uma pessoa, seja ela individual ou coletiva.
Em seu livro “Vidas Secas”, Graciliano Ramos nos apresenta Fabiano:
um retirante nordestino pauperizado que, apesar de resistir às dificuldades do
sertão, submete-se a todos os considerados superiores. Consequentemente,
o sertanejo torna-se uma pessoa pouco confiável por não assumir seu
propósito com a coragem moral necessária. De fato, essa covardia decorre da
sua desconexão com sua interioridade, o que poderia ser mitigado pela leitura
de ficção que estimulasse sua subjetividade. Da mesma forma, a coletividade
brasileira mostra-se altamente submissa à autoridade. Portanto, para
fortalecermos a coragem do povo, é necessário estimular a leitura de
literatura a fim de gerar melhor contato entre o brasileiro e sua interioridade.
Ademais, o contato íntimo com a literatura permite, ao indivíduo e à
comunidade, criar mais laços de empatia. Na obra orwelliana, Winston Smith
sente um ódio inexplicável em relação a Julia, antes de conhecê-la. A verdade
é que parte dessa pulsão de violência vem da sua capacidade limitada de se
pôr no lugar do outro. Em um mundo sem romances, contos ou novelas, é
impossível experienciar a vida com olhos além dos seus a fim de desenvolver
qualquer compaixão com o outro. No caso do Brasil, o egoísmo é amplamente
vivenciado no meio social e político. Dentre as muitas falhas da democracia
brasileira, a indiferença dos encarregados do poder em relação ao povo é a
mais gritante. Por mais que os representantes eleitos sejam
socioeconomicamente distantes da população, é preciso ser muito
moralmente inapto para ver o sofrimento vigente e não fazer o máximo para
extingui-lo.
Dessa maneira, é notório que a leitura de literatura deve ser
considerada na avaliação do caráter e formação de uma pessoa. Seja ela
individual ou coletiva, a necessidade por mais coragem e compaixão é
essencial. Portanto, para a contemplação de uma sociedade mais apta para
desafios morais, resta saber se os indivíduos estrarão em contato consigo e
com o outro por meio da apreciação de arte literária.
O mito do livre pensar
No livro 1984, de George Orwell, conjectura-se um mundo no qual o
regime totalitário dita pensamentos permitidos por meio da doutrinação e da
alienação intelectual. Analogamente à realidade distópica, a ascensão da
indústria cultural e a permanência da carência por uma educação crítica
entravam o desenvolvimento do pensar autônomo e independente dos
cidadãos. Assim, é fundamental evidenciar os fatores que afastam a
contemporaneidade de um futuro mais livre e a aproxima de Oceânia.
Na obra Orwelliana, os cidadãos são forçados a abdicar de sua
capacidade intelectual pelo partido, que toma para si a responsabilidade de
raciocinar e oprimir a sociedade. De maneira semelhante, nas sociedades
capitalistas modernas, o desenvolvimento das tecnologias de disseminação
de informações permitiu o surgimento da indústria cultural. O trabalho desse
agente ideológico é justamente a homogeneização dos valores e ideias da
população. Nesse sentido, tanto o Ministério da Verdade ficcional quanto a
cultura massificada independente da modernidade impedem ou congelam o
pensamento autônomo e independente. Se no romance há a doutrinação
forçada do povo, as ferramentas ideológicas atuais apresentam os jovens a
Willy Wonka – o industrial bonzinho escravizador de Oompa-Loompas.
Ademais, os modelos de educação contemporâneos não instigam o
pensamento autônomo e independente. Esse processo decorre diretamente
da sobrevalorização do conteúdo escolar em detrimento da plena
desenvoltura das habilidades críticas dos estudantes. Para o pedagogo
pernambucano Paulo Freire, o aprender e ensinar devem, entretanto, ser
atividades emancipatórias. Consequentemente, a permanência dos modelos
educativos vigentes configura uma escolha, consciente ou não, de entravar o
raciocínio livre da população. Assim, a escola não deve mais ser cúmplice da
alienação intelectual dos povos.
Dessa maneira, torna-se notório que os cidadãos do século XXI não
exercem o pensamento autônomo e independente. Tendo esse fato em vista,
contudo, permite a opção entre a difícil mudança para um mundo mais livre
pensante, e a confortável permanência na realidade alienante. Portanto, para
a contemplação de sociedades libertas de grilhões mentais resta saber se a
supressão da indústria cultural e a desenvoltura do pensar crítico são
objetivos gerais, ou se continuarão a nos convencer de que Willy Wonka era
um bom homem.
Estado Desconsciente
No Livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário alimenta o
mesmo cenário de pavor e desespero que permitiu a sua ascensão algumas
décadas antes. Analogamente à realidade distópica, são as ameaças
fabricadas e a desconfiança no processo democrático as principais bases de
legitimidade para os governos autoritários contemporâneos. Assim, o
nascimento de um Estado opressor não é uma escolha consciente e
publicamente debatida, pois nasce da passividade e da submissão geradas
pela irracionalidade.
Na obra Orwelliana, o partido mantém a população sob controle por
meio do terrorismo e da fabricação de ameaças internas tal qual a Confraria.
No caso do Brasil contemporâneo, apesar de real, a criminalidade é
combatida de forma ineficiente pelo Estado, o que justifica a criação de
oficiais de polícia cada vez mais brutais, contudo, esse processo não é
consciente, uma vez que fundamenta-se no medo emergencial da morte.
Além da negligência mediada das autoridades, a mídia – em sua corrida por
furos jornalísticos superficiais – compila horrores diários em programas
sensacionalistas, o que fortalece e difunde o medo irracional que expande o
autoritarismo.
Ademais, a desconfiança no processo democrático é filha do
desespero e da desesperança desmedida. No Brasil de 1964, foi a negação
da democracia pelos setores empresariais e conservadores que os fizeram
implorar para que a ala golpista das forças armadas intervissem contra um
perigo fabricado. Essa negação, contudo, é fruto do desespero de grupos que
não acreditam poder ganhar pelo justo processo de debate público. Nesse
sentido, a ascensão do Regime Militar brasileiro não pode ser considerado
uma escolha consciente e debatida porque sua gênese é o rompimento da
consciência e do debate. Dessa forma, a delegação dos direitos do povo é
um evento que, mesmo envolvendo interesses do empresariado, advém do
abandono da racionalidade.
É notável, portanto, que o autoritarismo nasce de escolhas
inconscientes da população. Mesmo assim, é necessário reconhecer que a
opressão só se instala frente a um cenário de desespero e desconfiança
induzidos. Resta saber se as sociedades permitirão o crescimento do medo e
da irracionalidade, ou se irão lutar contra os desconscientizadores.
Ser Anti-Pavloviano
No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário mantém um
cenário de opressão e de doutrinação a fim de inibir toda e qualquer tentativa
de emancipação por parte da população de Oceânia. Mesmo assim, Winston
Smith – um homem imerso, como tantos outros, na dor e no medo - rompe as
expectativas ao transcender o controle determinista do Partido.
Analogamente, são muitos aqueles que apresentam a pulsão de liberdade e o
inesperado, frente a governos autoritários. Assim, é possível compreender
como um cidadão comum pode negar a realidade opressora na qual se
insere.
É, sim, verdade que o meio condiciona os pensamentos e ações dos
seres humanos. Contudo, o desejo pela liberdade é muito mais fundamental
do que qualquer controle mental. Esse ponto alude diretamente às
experiências de opressão da história recente que sempre enfrentavam a
resistência dos oprimidos. No caso do Brasil escravocrata, nem mesmo a
ameaça da chibata ou da morte eram suficientes para garantira submissão
total dos negros escravizados. Consequentemente, percebe-se o desejo pela
emancipação como inalienável e avassalador. De fato, Pavlov – grande nome
do behaviorismo – conseguiu condicionar seus cães a salivarem em resposta
aos sons. Entretanto, mesmo frente a um poder sem igualou uma alienação
sem precedentes, o cientista nunca poderia convencer todos os seres a
amarem suas jaulas e odiarem o ar livre.
Na obra Orwelliana, o protagonista é um burocrata comum do partido, e
mesmo assim, transgride o determinismo da entidade a que serve. Esse fato
é essencial no sentido em que Winston não é um Messias enviado pelos
céus, nem um ser imune à alienação estatal. Ao contrário disso, ele é
justamente o alvo da doutrinação mais opressora e é sua normalidade que dá
a rara esperança do livro. Quantos indivíduos encontram, no seu caminho,
pedras? E, mesmo assim, são poucos os que refletem sobre as pedras do
seu caminho. Nesse sentido, é no inesperado que reside a transformação.
Muitas vezes, é verdade, nos convencemos que tudo pode ser previsto – se
solto uma pedra, ela cai. – Contudo o indeterminismo é a lei que rege os
seres humanos, sejam eles plenamente consciente de si ou envoltos na
alienação. Assim, os regimes deterministas são ilusões dos que se negam a
resistir.
Dessa forma, é notório que pessoas comuns Winston transgredem
regimes deterministas quando percebem que não há determinismo algum.
Tanto a pulsão de liberdade quanto o inesperado comprovam que, com as
devidas condições, o futuro pode ser criado pela vontade humana. Resta
saber se os indivíduos pretendem assumir sua insubmissão ou se continuarão
a salivar em resposta aos apitos de governos autoritários. Só assim o humano
tomará para si o nome de ser anti-pavloviano.
Maravilha Concentrada
No início do século XX, a Reforma Pereira Passos marcou um
paradigma de modernização urbana baseado na exclusão da população mais
pobre que se reproduz até o século XXI. Como consequência, a cidade do Rio
de Janeiro apresenta uma certa proximidade distante entre regiões
reconhecidas e as favelas, além da forte hierarquização entre os bairros.
Assim, é necessário reperceber que a Cidade Maravilhosa reserva sua beleza
para poucos e o resto simplesmente não sai bem na foto do cartão postal
carioca.
Nesse contexto, a cidade do Rio de Janeiro demonstra um caráter
antitético: existem grandes diferenças socioeconômicas demarcadas por
tênues limites territoriais. No caso das memoráveis praias cariocas, o Vidigal
esconde o sol que se põe e recebe eventuais visitantes no Morro dos Dois
Irmãos. Dessa forma, as favelas configuram bolsões de pobreza espalhados
pela paisagem. Só não nos enganemos, o contrate de espaços não surge por
geração espontânea. Na verdade, a negligência da população pobre por parte
do governo local, associada a especulação imobiliária, expulsou os menos
abastados das áreas valorizadas. Frente a isso, os reconhecidos são
fotografados e recebem investimentos, enquanto os esquecidos são
abandonados e eventualmente hostilizados em sua própria cidade.
Ademais, a hierarquização urbana na cidade gera grande desigualdade
de experiências de vida entre ricos e pobres. Essa diferença é perceptível no
momento em que vê-se as condições de diferentes zonas. Enquanto a Zona
Sul – mais enriquecida – tem todo o seu atrativo natural exposto e valorizado,
a Zona Norte – menos rica – tem seu patrimônio histórico degradado ou
esquecido. Nesse sentido, os bairros mais abastados demonstram-se muito
mais recheados de significado do que os outros, já que concentram a
identidade carioca. Consequentemente, o título de cidade maravilhosa só faz
sentido para os que vivem em bairros fotogênicos como Copacabana e
Ipanema. Assim, a população carioca divide-se entre maravilhada e a
degradada.
Dessa forma é notório que a hierarquização urbana e antítese da
cidade do Rio de Janeiro comprovam a exclusão de muitos da maravilha
registrada em cartões postais. Resta saber se a sociedade carioca pretende
continuar o padrão de segregação centenário ou se prefere expandir sua
beleza a todos.
A traição de um povo
No livro de 1984. De George Orwell, o regime totalitário vigente
evidencia-se traidor ao não responder às necessidades da população e ao
atacar aqueles que legitimam seu poder. Analogamente à realidade distópica,
a traição institucional do século XXI decorre das falhas de representatividade
e da fragilidade das instituições, presentes em Estado-Nação como o Brasil.
Dessa forma, frente a um cenário no qual o governo volta-se contra seu
próprio povo, apenas a politização e a organização da sociedade podem
oferecer resistência á opressão.
Na obra orwelliana, o partido age independentemente e em desacordo
com a vontade geral da população de Oceânia porque as massas não têm
voz alguma nos processos decisórios do governo. Esse ponto alude
diretamente às falhas de representatividade em tempos de autoritarismo.
Embora este fato seja óbvio na realidade extrema vivenciada por Winston
Smith – onde proletas não têm atividade política alguma – a traição
institucional gerada pela alienação política ocorre mais sutilmente no Brasil. A
relativa sutileza advém do fato de que não há impeditivos formais contra
grupos sub-representados, mas a falta de recursos para a campanha eleitoral
e a menor visibilidade dos mais empobrecidos garante menos votos aos que
mais se aproximam da população brasileira. Assim, frente a situações em que
o elo entre sociedade e estado é perdido, apenas a politização pode reverter
a situação.
Ademais, o uso privado do poder público a fim de atacar ativamente o
povo é produto do enfraquecimento das instituições associado a concentração
econômica em alguns indivíduos. Em seu livro “Triste Fim de Policarpo
Quaresma”, Lima Barreto apresenta o leitor a um episódio em que um político
interiorano pune o protagonista, depois que o maior se recusa a fraudar as
eleições em prol ao candidato. Consequentemente, a mistura entre o desejo
privado e a coisa pública apresenta-se como fator central do ataque aos
cidadãos perpetrado pelo Estado. É fundamental apontar, contudo, que
apenas os mais abastados tem a capacidade financeira de agir e fazer
segundo sua vontade. Assim, a sociedade civil deve fortalecer as instituições
a fim de proteger-se contra a violência motivada por motivos pessoais de um
latifundiário qualquer.
Dessa forma, torna-se notório que o Estado volta-se contra o povo
quando este não compõe seu núcleo decisório ou quando o dinheiro fala mais
alto que vidas humanas. Contudo, tanto a opressão de Winston Smith, quanto
a punição de Major Quaresma não devem nos ser indiferentes. Resta saber,
portanto, se a sociedade resistirá e acusará o autoritarismo violento ou será
submetida por aqueles que deveriam proteger.
A Negação da Verdade
No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente baseia
sua política publicitária na manipulação sistêmica dos fatos a fim de manter
seu poder absoluto. Analogamente à distopia, no século XXI, o desmonte da
realidade perpetrado por empresas e grupos políticos causa a polarização da
sociedade e a exclusão do social da verdade. Assim, a ascensão da pós
verdade e dos fatos alternativos pode representar um grande entrave à
democracia e à coesão social.
Na obra orwelliana, a população de Oceânia baseia sua visão de
mundo unicamente nas mentiras difundidas pelo Estado totalitário. Esse
cenário é causado, principalmente, pela incapacidade de diferenciar o real do
imaginário, e alude diretamente à exclusão social da verdade. No Brasil do
século XXI, o desmonte geral da objetividade é recebido desigualmente pelas
diversas camadas da sociedade porque essas têm diferentes níveis de
educação digital. Enquanto a parcela mais escolarizada da população é
educada a aferir a validade dos fatos e pesquisar a credibilidade de
enunciadores, a maioria mais humilde não é instruída de forma a poder
separar o joio do trigo. Assim, a desigualdade de acesso à verdade pode
alienar os menos abastados e enfraquecer a democracia.
Ademais, a seletivização da realidade gera a polarização da sociedade
e o enfraquecimento do poder cidadão que fundamenta a democracia. Esse
ponto alude diretamente a empresas que, em associação com grupos
ideológicos, espalham discursos distintos pera demografias diferentes.
Consequentemente, informados por dados e conclusões opostas, setores da
população se distanciam e se opõem. Enquanto um conservador assume que
o regime militar heroicamente frustrou uma revolução comunista em 1964, um
progressista defende o empresário que arquitetou o golpe militar
minuciosamente. Assim como é impossível que ambos estejam certos, é
provável que os dois estejam equivocados e as suas incongruências
ideológicas entrave o processo de decisão conjunta.
Dessa forma, é notório que a pós-verdade é um risco à democracia,
pois aliena parte da população e polariza a sociedade. Para a contemplação
de uma democracia justa, portanto, resta saber se a contemporaneidade irá
negar a mentira em prol da verdade.
Noção do Tempo
Faz parte da ética de trabalho capitalista acreditar que é possível
transformar um dia de esforço em possibilidade de um futuro mais rico. E, de
fato, o enunciado tem sua validade. Contudo, a equivalência entre tempo e
dinheiro é falsa porque os dois elementos têm propriedades distintas e porque
a temporalidade é a dimensão fundamental da existência humana. Assim, os
ensinamentos de Benjamim Franklin devem ser seguidos de maneira
parcimoniosa para que não sejam usados na alienação da humanidade de
sua realidade.
Durante sua ascensão, o capitalismo precisou renovar o pensamento
social acerca do trabalho e de sua duração. Se antes o esforço era uma
necessidade para existir materialmente, agora ele representa a possibilidade
de um futuro mais confortável. Não obstante, a fabulada cigarra e da formiga
pode ser vista como um combate de ideias de vida da Idade Média e da
Modernidade. Consequentemente, nasce a equivalência entre tempo e
dinheiro e a necessidade de escolher entre um e outro. A verdade é que a
passagem das horas tem potencial de enriquecer o sujeito, mas o processo
contrário é impossível. Assim, torna-se perceptível que o enunciado de
Benjamin Franklin deve ser aplicado com precaução.
Ademais, a dimensão temporal é muito mais valiosa do que qualquer
amontoado de ouro ou prata, pois é o que dá sentido a vida humana. Nesse
sentido, é importante destacar que é a continuidade tempo e a finitude da vida
que forçam o sujeito a vivenciar sua existência. Já na Idade Antiga Grega, os
humanos imaginavam que o interesse dos deuses por eles era explicado pelo
desejo de saber como é viver com a capacidade de entender a morte. Para
Heidegger, na contemporaneidade, o sujeito sempre foi regido por sua
temporalidade e finitude. A verdade é que ambas as concepções se
aproximam, apesar de sua distância histórica. O tempo é, portanto, aquilo que
dá sentido e motivação para os indivíduos, e dá sentido até mesmo ao
dinheiro, já que esse existe em um mundo de abstração de trocas e sacrifícios
pelo futuro.
Dessa maneira, é notável que o tempo não é dinheiro porque
demonstra-se como algo muito mais fundamental. Sendo assim, é preciso ser
cigarra ou formiga de acordo com a situação, pois o trabalho demasiado
termina por alienar a vivência humana de sua fundamentação temporal. Resta
saber se a humanidade continuará a seguir alucinadamente a ética capitalista,
ou se vai reaver a noção de tempo.
De Dentro da Tela
No século XXI, com o advento das redes sociais e das grandes
plataformas de conteúdo digital, o público e o privado se misturam e a
fronteira entre os elementos perde a nitidez de outrora. Nesse contexto,
empresas induzem uma forte cultura de exposição e retiram autonomia dos
usuários para proveito próprio. Percebe-se, portanto, que a realidade vigente
aproxima-se da apresentada em 1984, de George Orwell, na qual os cidadãos
são forçados a servir um poder aparentemente superior.
É fato que a ascensão das redes sociais gerou uma cultura de
exposição demasiada, já que a fama momentânea ocupa lugar especial como
o objetivo de muitos jovens. Nascem assim, os influenciadores digitais que, a
fim de receberem patrocinadores e atenção, filmam e dramatizam suas vidas
inteiras. Entretanto, esse fenômeno não é gerado espontaneamente pelo
corpo usuários – é induzido pelo modo de operação das empresas
envolvidas. A verdade é que as redes sociais lucram com base na
apresentação de publicidade e, para isso, estão dispostas a usar dados de
consumidor para apresentá-lo a mais propagandas. Portanto, o motivo da
exposição é coletar informações que darão capital a uma indústria sedenta
por dinheiro.
Na obra Orwelliana, o regime totalitário toma para si a maioridade
intelectual dos indivíduos a fim de deixá-los a mercê das arbitrariedades do
Partido. Consequentemente, o cidadão só sabe e pensa o que o governo quer
que ele saiba ou pense. Analogamente à distopia, as grandes plataformas de
conteúdo digital ganharam o poder de privatizar a autonomia intelectual dos
usuários. Esse processo ocorre mediante o uso de algoritmos para encontrar
conteúdos de devem o indivíduo viciado na plataforma. Assim, o tempo
também é privatizado pelas empresas, que sempre procuram melhores
formas de anestesiar o ser humano frente a sua tela. Assim, o bem público da
autonomia intelectual e temporal torna-se frágil e restrito.
Dessa forma, é notório que p século XXI apresenta uma grande
mudança entre as relações do público e o privado. Contudo, cabe à
sociedade decidir se empresas tão poderosas podem existir ou se estaremos
melhor sem elas. Só essa decisão pode delimitar o que é fora e o que é
dentro do sujeito.
A servidão do Homem Livre
No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário usa o seu lema
– liberdade é escravidão – para justificar a opressão dos habitantes de
Oceânia. Mesmo assim, a mensagem do Partido tem uma verdade muito mais
fundamental: até os homens livres servem a algo. Esse ponto alude
diretamente à ideologia capitalista e à dimensão existencial da humanidade e,
por isso, é de grande importância para toda a sociedade. Assim, percebe-se
que o processo de libertação não ocorre à partir do momento em que o sujeito
faz o que quer, como pensavam os liberais clássicos.
O romance Robinson Crusoé é uma obra fundamental para
compreender a concepção de liberdade individualista presente no sistema
capitalista. Na narrativa, um náufrago chega até uma ilha deserta e, com
muito planejamento, e trabalho duro domina o ambiente em que se encontra.
Da mesma forma, pensaram os liberais da época de publicação do livro,
funciona a economia de mercado. Entretanto, o personagem de Daniel Defoe
não precisou lidar com nenhum entrave do capitalismo real, como a posse
dos meios de vida por outrem. No mundo concreto, o que se percebe como
liberdade, tal qual a posse de grandes terras ou o uso de trabalho assalariado
de indivíduos pauperizados, representam a escravidão de um igual. Dessa
forma, a contradição de conceitos apresenta-se operante no modo de
produção vigente.
Ademais, a própria existência humana expõe a antítese fundamental da
vida: liberdade é escravidão. Na visão existencialista, todo humano é servo
submisso de si e das responsabilidades que assume durante a vida. Esse
ponto alude diretamente à perversão conceitual perpetrada pelo Partido. Na
obra orwelliana, o regime totalitário oprime o povo de forma que ele não
possa atingir seu destino de servir a si, o que causa o mal-estar generalizado.
Nesse sentido evidencia-se que o trabalho do sujeito pelo que deseja é
necessário para a sua satisfação pessoal e seu desenvolvimento enquanto
humano. Entretanto, a servidão ao outro exclusivamente aliena o ser de seu
dever para consigo e causa seu esvaziamento. Não obstante, as litas de
emancipação atuais são centradas em servir o eu – seja no caso da
negritude, seja no caso do feminismo.
Dessa forma, é notável que a liberdade é escravidão, apesar de não
ser da forma mais imaginada pelo regime totalitário de Oceânia, portanto,
para a contemplação de sociedades mais livres, resta saber se os indivíduos
continuarão a servir apenas os povos das coisas e as pessoas
hierarquicamente superiores, ou se começarão a serem escravos de si. Só
assim, poderemos ser plenamente humanizados.
O Vegetal do Sofá
No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário vigente se utiliza
da violência e da manipulação sistemática dos fatos para manter a população
alienada. Analogamente a realidade distópica, o século XXI observa grande
ascensão do obscurantismo, apesar da ausência de um Grande Irmão para
punir os cidadãos. Na verdade, o distanciamento da iluminação coletiva
decorre do entretenimento contemporâneo e da inadequação educacional.
Assim, não podemos nos deixar chegar perto do mundo de Oceânia.
Em seu livro “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury cria uma distopia na qual
a população abandona a iluminação do pensar pelo conforto de assistir às
telas nas paredes. Da mesma forma, a indústria cultural programas televisivos
tão anestesiantes que a reflexão e o debate acerca de questões fundamentais
tem se tornado cada vez mais raros. É claro que, em um mundo tão
avassalador quanto o que experienciamos, o escapismo da realidade torna-se
importante. Contudo, o entretenimento não deve impedir os indivíduos de
investirem em seu desenvolvimento pessoal e intelectual. Dessa maneira, faz-
se necessário discutir se os reality shows devem continuar a ter a mesma
posição de destaque no meio social.
Na obra orwelliana, o principal elemento alienante do governo é a
doutrinação da população associada à extração do pensamento crítico dos
indivíduos. De forma semelhante, no Brasil contemporâneo, a Escola não
estimula a dúvida de ideias socialmente difusas. Esse ponto alude
diretamente ao educador pernambucano Paulo Freire, que defendia a criação
de um modelo educacional voltado para emancipação sociais dos oprimidos.
Nesse sentido, o ensino libertador faz-se necessário para afastar os
indivíduos do obscurantismo. Caso contrário, os cidadãos estarão vulneráveis
às instituições e grupos que os querem enganar. Nessa perspectiva, a fuga
da mentira apresenta-se como um processo ativo e que deve ser exercido a
todo momento. Por conseguinte, a ideologia vigente deve ser questionada
pelo bem do desenvolvimento intelectual do indivíduo.
Dessa forma, é notável que o obscurantismo é um desejo induzido pela
defasagem educacional e pelo entretenimento anestesiante atual. Frente a
esse cenário, resta saber se a sociedade deseja se aproximar da realidade
retratada por 1984, ou se prefere buscar a iluminação do pensar. Assim, um
futuro brilhante depende de esforço e desenvolvimento coletivo, o que não
pode ser atingido vegetando frente à televisão.
Habilidades Literárias
No livro “1984” de George Orwell, o regime totalitário vigente impede a
apreciação de arte literária a fim de extinguira coragem moral e a compaixão
na sociedade de Oceânia. Analogamente à realidade distópica apresentada,
no Brasil contemporâneo, a falta de um público leitor bem desenvolvido ajuda
a manter o povo em estado submisso e egoísta – dois vícios deletérios à
democracia e ao republicanismo. Assim, é necessário considerar a leitura de
literatura pra julgar o caráter de uma pessoa, seja ela individual ou coletiva.
Em seu livro “Vidas Secas”, Graciliano Ramos nos apresenta Fabiano:
um retirante nordestino pauperizado que, apesar de resistir às dificuldades do
sertão, submete-se a todos os considerados superiores, Consequentemente,
o sertanejo torna-se uma pessoa pouco confiável por não assumir seu
propósito com a coragem moral necessária. De fato, essa covardia decorre da
sua desconexão com sua interioridade, o que poderia ser mitigado pela leitura
de ficção que estimulasse sua subjetividade. Da mesma forma, a coletividade
brasileira mostra-se altamente submissa à autoridade. Portanto, para
estabelecermos a coragem do povo, é necessário estimular a leitura de
literatura a fim de gerar melhor contato entre o brasileiro e sua interioridade.
Ademais, o contato íntimo com a literatura permito ao indivíduo e à
comunidade, criar mais laços de empatia. Na obra orwelliana, Winston Smith
sente um ódio inexplicável em relação à Júlia antes de conhecê-la. A verdade
é que parte dessa pulsão de violência vem da sua capacidade limitada de se
pôr no lugar do outro. Em um mundo sem romances, contos ou novelas, é
impossível experienciar a vida com olhos além dos seus a fim de desenvolver
qualquer compaixão com o outro. No caso do Brasil, o egoísmo é amplamente
vivenciado no meio social e político. Dentre as muitas falhas da democracia
brasileira, a indiferença dos encarregados do poder em relação ao povo é
mais gritante. Por mais que os representantes eleitos sejam
socioeconomicamente distantes da população, é preciso ser muito
moralmente inapto para ver o sofrimento vigente e não fazer o máximo para
extingui-lo.
Desta maneira, é notório que a leitura de literatura deve ser
considerada na avaliação do caráter e formação de uma pessoa. Seja ela
individual ou coletiva, a necessidade por mais coragem e compaixão é
essencial. Portanto, para a contemplação de uma sociedade mais apta para
desafios morais, resta saber se os indivíduos entrarão em contato consigo e
com o outro por meio da apreciação de arte literária.
Novas sementes
No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário mantém a
população alienada ao impedi-la de participar da produção de conhecimento e
da discussão acerca de suas aplicações. Analogamente à realidade distópica,
a ciência contemporânea nos apresenta com tantos dilemas e rupturas de
paradigmas que, se não forem discutidos publicamente, nós não poderíamos
ser chamados de democráticos. Frente a esse cenário, faz-se necessário
difundir e debater tanto os problemas que advém da descoberta quanto seu
impacto na coletividade.
É verdade que novas descoberta são, ou podem ser, as sementes de
um mundo novo. Contudo, sementes novas são justamente o centro de
discussão acerca dos riscos sociais dos organismos transgênicos. Esse
cenário é causado pelo alastramento de variedades geneticamente
modificadas em espaços em que eram cultivados plantas não alteradas. A
resolução encontrada para essa questão biológica foi a criação de um dilema
socioeconômico, já que instituiu-se a dependência dos agricultores em
relação às empresas criadoras de modificação por meio de venda de
sementes estéreis. Assim, percebe-se que o avanço científico cria dilemas e
em uma sociedade democrática, é inaceitável que os interesses não sejam
publicamente debatidos.
Ademais, para que o novo seja abraçado é preciso que ele chegue em
todos os espaços sociais a fim de devidamente metabolizado. Na obra
orwelliana, a sociedade não tem protagonismo intelectual porque recebe os
saberes de uma forma unilateral do Partido e não pode contestar a
credibilidade desses dados porque não tem instrumentos. Analogamente à
situação ficcional, no Brasil contemporâneo, o desenvolvimento do saber é
restrito por ser excludente. Quantas novidades mais iriam surgir se todos os
membros da população tivessem condições mínimas de compreender os
avanços da academia? Evidencia-se assim, o ponto de essencial
consideração: a ruptura. A verdade é que a mudança de paradigmas é
dolorosa e, sem a discussão acerca dos usos dessas ideias novas, a
tendência é que as massas hesitem ou voltem-se contra a ruptura em prol do
conforto passado.
É notório, portanto, que a sociedade receba os instrumentos
intelectuais e políticos para conhecer, debater e decidir acerca das
motivações, usos e efeitos das pesquisas. Para a contemplação de uma
sociedade coerente, resta saber se as sementes da novidade serão usadas
para a escravização do povo ou para a sua libertação. Só assim, nós
poderemos nos chamar de defensores da democracia.
Inquestionável Poder
Nos porões do ministério do Amor, o ícone do Partido – O’Brien –
tortura Winston Smith a fim de lesionar sua mente e construir um afeto
artificial pelo Grande Irmão. Essas cenas, construídas por George Orwell em
“1984”, demonstram a falta que fazem os Direitos Humanos em uma
sociedade. Contudo, a simples existência desses valores não tem feito o
mundo mais seguro: vide a destruição das guerras e as rotas do tráfico
humano. Assim, é dever dos povos da terra discutir a aplicação e a natureza
desses princípios tão importantes.
Na obra orwelliana, três superestados batalham pelo controle de
territórios-chave para sua estratégia militar e seu desenvolvimento industrial.
O real motivo, conhecido por todos os leitores, é a opressão de seus
respectivos povos. Contudo, se fato se desenrolasse na contemporaneidade,
bastava dizer que as invasões serviram para proteger os direitos de povos
oprimidos. Essa situação hipotética alude diretamente a realidade concreta na
qual nações perpetram as maiores atrocidades contra outros países sob a
égide da justiça. Nesse momento, os valores que deveriam guiar a
humanidades à um futuro mais brilhante tornam-se a razão de seu fracasso. É
chegada a hora e que a Organização de Nações Unidas deixe justificar o mal
pelo mal. Assim, percebe-se que a aplicação dos princípios definem seu efeito
no planeta.
Ademais, surge um questionamento fundamental acerca da natureza
dos Direitos Humanos: seriam eles as leis a serem impostas ou utopias a
serem seguidas? Em “O Alienista”, de Machado de Assis, o psiquiatra Simão
Bacamarte aprisiona os habitantes de Itaguaí com base em critérios cada vez
mais vagos. Hoje sabemos que a violência em psiquiatria é, geralmente,
violência perpetrada pela psiquiatria. Frente a esse fato, devemos decidir
como extinguir os manicômios – que tanto trazem o sofrimento humano. Se a
carta for vista como lei, todos os hospícios devem ser fechados
imediatamente. Caso o contrário, a população deve usar seu poder popular
para substituir essas instituições por outras melhores gradualmente. Fica
claro que os direitos universais deve ser ideais, não regras. Entretanto, os
Estados Unidos mantém campos de concentração de imigrantes e os
americanos não trabalham para extingui-los. Assim, tanto a concepção de
regra quanto a concepção de ideal mantém Simão no poder.
Dessa maneira, é notável que os Direitos Humanos têm suas
limitações de aplicação e de natureza. Para a contemplação de sociedades
mais justas, portanto, resta saber se esses valores serão utilizados com boa
fé ou serão pervertidos por interesses diplomáticos e políticos. Só assim, a
carta poderá fazer sentido para nós: o inquestionável poder do debate.

Você também pode gostar