No livro 1984, de George Orwell, um governo instiga o ódio
generalizado na população para promover o controle social e a desunião do povo de Oceânia. Analogamente, no Brasil contemporâneo, a Mídia sensacionalista resume o debate público à vilanização do outro, enquanto líderes de viés autoritário semeiam a discórdia na sociedade a fim de controlá-la. Dessa forma, é essencial traçar paralelos entre os Dois Minutos de Ódio da ficção e suas contrapartes reais, a fim de perceber seus efeitos na democracia e nas relações sociais. Na obra orwelliana, os Dois Minutos de Ódio são uma programação diária que expõe os inimigos do povo aos cidadãos a fim de manter os espectadores em estado de tensão constante. Isso ocorre porque, em poucos minutos, um avalanche de imagens induzem emoções negativas que seriam canalizadas, pelo partido, aos seus propósitos. No Brasil contemporâneo, o jornalismo de baixa qualidade e a mídia sensacionalista são responsáveis por compilar todas as imoralidades e todos os crimes violentos em programas televisivos que instigam a dicotomia entre a figura do cidadão de bem e o mal difusos nas cidades. Como consequência, é criado um discurso de vilanização do outro que, se não impede, entrava a união da sociedade para um futuro democrático e harmônico. Dado o ódio generalizado produzido pela mídia sensacionalista, líderes de viés autoritário também ascendem com base no contexto de terror e de raiva instituídos. De fato, nesse aspecto, a realidade transcende a distopia a partir do movimento que os políticos propõem ideias violentas e radicais para eliminar o outro. No século XXI, no entanto, essas propostas são divididas em linhas e entrelinhas para que o emissor não encontre problemas com a lei. Seja por meio do discurso oficial defensor do encarceramento em massa, seja por meio da mensagem subliminar defensora do linchamento de suspeitos de crimes, instaura-se o caos social e o projeto autoritário. Assim, é fundamental reconhecer que associação entre políticos sanguinários e o mau jornalismo tem prole perversa e deletéria à sociedade. É evidente, portanto, que a realidade contemporânea foi bem-sucedida em apartar os piores pesadelos da distopia orwelliana ao mundo concreto. Nesse sentido, a vilanização do outro e a perseguição das minorias apresentam-se filhas legítimas dos Dois Minutos de Ódio do século XXI. Mesmo assim, por mais avassalador que o contexto atual possa parecer, tanto o Partido quanto o populismo midiático dependem de uma sociedade alienada e desarmônica para agirem. Cabe, por fim, à humanidade moderna escolher entre o terror e a paz social. Esperemos, apenas, que a escolha seja bem-feita. Publicidade íntima No livro 1984, George Orwell conjectura um futuro no qual um governo totalitário observa os membros da burocracia a todo instante para garantir sua dominação sobre o povo. Analogamente, no século XXI, enquanto Estados fortalecem seus sistemas de vigilância pública, empresas enfraquecem o valor dado pela sociedade ao direito à privacidade. Assim, em um contexto no qual o público e o privado se invertem, a intimidade gradualmente torna-se um luxo poucos. Na obra orwelliana, o leitor é apresentado a uma realidade em que os cidadãos são mantidos sob vigilância constante tanto das teletelas quanto por parte daqueles que os rodeiam. De forma semelhante, no Brasil contemporâneo, a observação e o registro constante do espaço público tornou-se uma importante política de controle social mascarada de investimento em segurança pública. Nesse sentido, a presença de câmera de segurança nada mais é que a privatização, por parte do governo e suas empresas associada, da vida comum dos indivíduos. Mesmo assim, é importante frisar que, enquanto o Partido vigiava a população mais educada em busca de subversão, os regimes reais violam sobretudo a privacidade dos mais pobres, tidos erroneamente como inclinados ao crime. Assim, o direito à intimidade torna-se cada vez mais um luxo para poucos. Além das violações brutais por parte do governo, empresas de informação depredam o valor do direito à privacidade ao induzirem uma cultura de exposição nas redes sociais. Surge, assim, um ponto de essencial consideração: a intimidade pode ser atacada tanto a partir do meio externo quanto a partir da interioridade dos seres. Isso ocorre quando a expressão pessoal possibilitada pela internet é subvertida em necessidade reconhecimento por parte de interesses empresariais. Consequentemente, a sociedade torna-se fonte de informações para um corpo de agentes privados que a manipulam. Nesse sentido, o privado é convertido em público para o proveito de outros privados. Dessa forma, as redes sociais transformam a intimidade em um lixo para aqueles que não se deixam manipular. É evidente, portanto, que a privacidade tem gradativamente se tornado um privilégio para um grupo decrescente de pessoas. Contudo, o problema não está fora do alcance de nossas mãos. Cabe à sociedade repelir as investidas vigilantes dos governos e resistir à cultura da exposição na internet. Resta, agora, descobrir se a privacidade fará de si uma publicidade ou se o mundo tomará outro caminho. Humanidade vegetativa No livro 1984, de George Orwell, o protagonista é obrigado a inibir sua expressão pessoal perante um regime opressor a fim de não ter a sua existência censurada pelo Partido. Analogamente, no século XXI, o esvaziamento da subjetividade, garantido pela anestesia do entretenimento, suplanta o lugar do controle violento no empreendimento de censurar os seres humanos. Dessa forma, a dominação pelo outro mostra-se uma das estratégias usadas para suprimir os anseios sociais. Se Thomas Hobbes propõe que os humanos suprimam seus desejos pelo bem maior, o romance orwelliano transforma o controle de pulsões em uma forma de manter a ordem vigente. Na obra, a opressão não promete melhoras, mas sim uma transposição eterna do presente no futuro. De maneira semelhante, a estrutura das sociedades modernas exige a uniformização e a autocensura dos cidadãos. Nesse sentido, a repressão do id das massas ocorreria de forma mais severa nos regimes autoritários e seria mais morno nas culturas democráticas. Portanto, o domínio das expressividades do sujeito é alcançada por força externas. Por outro lado, no século XXI, o controle externo tende a se tornar menos necessário à medida em que o entretenimento ocupa o tempo e desejo dos cidadãos. Em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, as telas perdem a função de observar as pessoas para esvaziarem o sujeito. Agora, diferentemente de 1984, a censura da humanidade não se limita à margem ser-objeto, mas invade o âmago da interioridade pessoal de cada um. De maneira semelhante, no contexto contemporâneo, os cidadãos pagam para carregarem teletelas consigo e, como forma de adquirir um prazer imediato, livram-se de pulsões e anseios. Consequentemente, nasce uma nova maneira de censurar as potencialidades das massas por parte de setores interessados na conservação do regime vigente. Portanto, o controle externo tende a suplantar a dominação no objetivo de calar as personalidades coletivas. É evidente, portanto, que o controle social é um dos tipos de censura das pulsões humanas. Contudo a ameaça crescente da descaracterização das massas pelo entretenimento dá urgência à reversão desse exagero. Resta saber se queremos ser humanos ou vegetais frente ao celular. A transgressão como norma No livro 1984, de George Orwell, um regime totalitário mantém o seu poder por meio do controle sobre a classe mais educada e da acomodação induzida da casta trabalhadora. Da mesma forma, no século XXI, a despolitização da sociedade e o esvaziamento do sujeito pelo entretenimento entravam o desenvolvimento de uma cultura transgressiva necessária para a transformação da realidade. Assim, é preciso perceber que, em sociedades pautadas no controle social, apenas o desvio da norma pode garantir a plena humanização dos cidadãos. Na obra orwelliana, a construção de uma linguagem altamente objetiva e ambígua impede a clareza do pensamento e de expressão a fim de alienar os habitantes de Oceânia uns dos outros. Como consequência, a falta de organização interior e exterior reforça a acomodação dos indivíduos sob uma realidade cada vez mais opressora. Analogamente, no Brasil do século XXI, uma onda de despolitização da sociedade impede a transgressão coletiva essencial para a realização dos seres humanos. Seja por falhas de comunicação entre os diversos agentes sociais, seja pela desarticulação construída por uma população polarizada, é preocupante tamanha anestesia da humanidade perante seus desejos. Dessa forma, o alinhamento e a articulação política possibilitado pelo debate claro são preciosos para a transformação de um povo. Ademais, o esvaziamento da interioridade subjetiva aliena o sujeito das suas aspirações e extrai o motor transgressivo dentro de cada ser humano. Em Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury, as telas – em vez de representarem o terror da vigilância – transmitem um conteúdo pobre e irreversivelmente anestesiante que induzem o povo a uma acomodação total. De maneira semelhante, na contemporaneidade, reina o entretenimento da Indústria Cultural, que suprime a indagação pessoal necessária para que o indivíduo saia de sua zona de conforto e se transforme. Dessa maneira, a acomodação demonstra-se um perigoso elo entre distopias diferentes e entre a ficção pessimista e a realidade presente. Evidente, portanto, que a sociedade precisa, mais do que nunca, de uma cultura transgressiva no meio coletivo e no âmbito pessoal. Contudo, esse ideal só pode ser estabelecido mediante intenso trabalho de comunicação, de politização e de introspecção. Resta saber, agora, se a humanidade pretende tomar para si a ordem do mundo ou se vai permitir a dormência de suas aspirações frente a alienação. Seja como for, apenas a decisão correta tem o potencial de afastar a contemporaneidade do banimento eterno para a zona de conforto. Por um novo passado No livro 1984, escrito por George Orwell, o Partido se encarrega de destruir a memória social do povo e impor uma narrativa histórica única a fim de condenar Oceânia a um eterno presente opressor. Analogamente, no século XXI, a retenção do passado e a construção da lembrança coletiva são desafios de uma sociedade que anseia estar em contato com a sua história e seus valores. Dessa maneira, o esquecimento e o revisionismo histórico irresponsável apresentam-se como problemas para unidades de povos e sua articulação institucional. Na obra orwelliana, a existência enquanto ser social é antiética: toda a população é, ao mesmo tempo, massa coletivista e entidade atomizada. Isso ocorre porque o regime totalitário vigente garante o seu poder por meio do apagamento da memória social e, com ela, toda a conexão dos cidadãos uns com os outros. Da mesma forma, no Brasil, o discurso histórico no qual de dizia que a Lei Áurea teria libertado os escravizados por decreto alienava os negros de um passado comum e de um futuro viável. Contudo, o trabalho histórico e político de cidadãos empenhados em mudar o presente permitiu a construção de uma memória coletiva que é mais fiel aos fatos e reconhece o protagonismo dos escravizados e sua emancipação. Assim, enquanto a amnésia desune a sociedade sob a égide de “estórias” incompletas, a lembrança é capaz de mudar a compreensão do presente. Ademais, a compreensão do presente por meio do passado transforma a aspiração do futuro, conforme permite que os cidadãos entrem em contato com a sua condição social. Esse processo é fundamental ao ponto que existem narrativas históricas que separam o indivíduo de sua posição na realidade. No século XXI, empresas desejam convencer a sociedade de que os seus empregados são, na verdade, sócios a fim de não pagarem os encargos e direitos da carteira assinada. A origem dessa afronta é, essencialmente, a ideia falsa de que as garantias seriam concessões do patrão em vez de conquistas de toda a classe trabalhadora. Assim, a história e seu estudo podem entravar a produção de revisionismos e melhorar a compreensão do presente. É evidente, portanto, que o passado contribui para o entendimento da realidade atual, seus desafios e suas conquistas. Seja pelo esquecimento, seja pela mentira, todo vácuo de memória pode ser preenchido com discursos falsos ou deturpados. Resta saber se a sociedade contemporânea deseja a escravidão do eterno presente ou se oferece a liberdade de avançar com base nos erros e nos acertos do passado. A felicidade de Sísifo No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente oprime a população de Oceânia e garante o seu poder ao convencê-los de que liberdade é escravidão. Essa frase, apesar do aparente paradoxo lógico e absurdo moral, revela uma verdade tanto do sistema capitalista quanto das sociedades humanas como um todo. Nesse sentido, cabe aos intelectualmente responsáveis garantir a compreensão dessa questão que é, ao mesmo tempo, atual e perene sem dar margens à deturpação conceitual como a perpetrada pelo Partido. Dessa forma, em nossa sociedade, podemos afirmar que liberdade é escravidão. O romance Robinson Crusoé é uma obra importante no desenvolvimento da mitologia e da ideologia burguesa ao reforçar a ideia de que o Homem é um ser atomizado e liberdade significa fazer o que quiser. Entretanto, sob uma perspectiva hegeliana, que valoriza as relações sociais, o protagonista do livro seria um escravo da sua condição solitária e um ingrato por não valorizar os conhecimentos socialmente construídos que aplica. Analogamente, no sistema capitalista, o trabalhador é livre para ser escravo do industrial de sua escolha. Nesse sentido, o lema do Partido acerta ao reconhecer que a liberdade individual é a escravidão desse mesmo humano, mas deturpa a mensagem ao instituir um poder ainda mais opressor e impedir o desenvolvimento pessoal dos cidadãos. Assim, a ideia de um homem como sendo uma entidade no vácuo é deletéria à melhora e à evolução da humanidade. Ademais, a humanidade tem o poder de dar sentido à sua própria existência e, portanto, anseia o trabalho enfadonho e angustiante de escrever em si o propósito que não encontrou nas estrelas. Para Albert Camus, como Sísifo que empurra uma rocha para cima da colina e deixá-la descer, faz parte do mal-estar existencial a construção e desconstrução eternas da razão pela qual estamos aqui. Nesse sentido, a liberdade de decidir a sua própria origem garante a escravidão de uma tarefa interminável e satisfatória. Contudo, como observado na obra orwelliana, o governo se ocupa de esvaziar os cidadãos e entravar seu desejo de serem plenamente humanizados. Assim, liberdade e escravidão são congruentes quando a pulsão pelo trabalho existencial surge do indivíduo ou sociedade. É evidente, portanto, que o lema do Ingsoc é, na realidade, uma perversão de uma verdade que é tanto atual quando remonta tempos imemoriais da humanidade. Cabe a nós garantir a plena procedência da mensagem a deturpação de eventuais interessados. Resta saber, agora, se as sociedades querem permanecer no estado em que se encontram ou se preferem trocar a liberdade de Robinson Crusoé pela realização humana de Sísifo. Seja como for, devemos imaginá-lo feliz apesar e por causa de seu trabalho sem fim. Inverdades nas paredes No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma realidade em que o regime totalitário empreende uma política propagandística agressiva ao ponto de moldar a percepção dos cidadãos. Analogamente, no século XXI, o caráter parcial e a onipresença da publicidade gera falsas concepções do mundo capazes de contaminar o inconsciente das sociedades e permitir a manipulação das massas. Dessa forma, torna-se importante reconhecer como certas políticas empresariais e governamentais ameaçam a liberdade humana. Na obra orwelliana, o protagonista nos apresenta a uma realidade na qual o governo exalta suas supostas vitórias a todo momento e em virtualmente todos os espaços urbanos. Consequentemente, o fluxo constante e volumoso das vanglórias estatais termina por contaminar profundamente o inconsciente dos cidadãos, que começam a acreditar nas inverdades distribuídas. No Brasil, durante a pandemia de covid-19, o Governo Federal propagandeou mentiras acerca do perigo real da doença e apoiou medidas pouco eficientes no combate ao vírus a fim de garantir os lucros do empresariado. Seja nas redes sociais, seja nos espaços públicos de grande circulação de pessoas, a publicidade é tão comum hoje quanto seria no mundo de Winston Smith. Portanto, é necessário que a sociedade perceba a propaganda como um perigo a sua autonomia intelectual. Ademais, a publicidade é um gênero textual que seleciona meticulosamente a forma e o conteúdo das informações e termina por gerar concepções distorcidas da realidade no receptor. No segundo arco narrativo de O triste fim de Policarpo Quaresma, o protagonista trágico – depois de consumir grande volume de literatura ufanista – convence a si mesmo de que o campo é um meio farto e promissor. Apesar de viver em tempos anteriores à propaganda contemporânea, o personagem criado por Lima Barreto escara uma realidade rural difícil e incongruente com as obras românticas que lera. De maneira semelhante, transnacionais petrolíferas atuais se vangloriam de sua consciência ambiental enquanto permanecem caladas acerca de seus eventuais derramamentos de petróleo no oceano. Assim, é essencial saber que a propaganda serve a interesses particulares e pode mascarar a verdade. É evidente, portanto, que a propaganda funciona como ferramenta de manipulação das massas. A verdade é que, seja por parte do governo, seja por parte das empresas, a onipresença e o propósito primeiro da publicidade formam uma eficiente arma de distorção do pensamento de um povo. Resta saber se a sociedade acolherá o que vê nos “outdoors” como verdade absoluta, ou se irá perceber o texto que lê como um discurso, igual a qualquer outro. A segunda abertura No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário oprime os cidadãos de Oceânia e transforma o futuro em tempo vazio no qual existe apenas a eterna transposição do presente. Analogamente, no século XXI, os seres sociais perdem a confiança na ação política coletiva e os povos perdem a esperança frente à disseminação de narrativas fatalistas de mundo. Entretanto, são os agentes politizados e as infinitas possibilidades de transformação que escrevem a história da humanidade. Portanto, é necessário reconhecer a capacidade humana de manipular a trama do seu destino. Na obra orwelliana, o amanhã tem uma natureza paradoxal: enquanto o Partido promete fartura à população, a realidade presente determina uma decadente marcha de um hoje para um outro hoje mais opressor. Essa evolução estática é garantida pela alienação dos cidadãos consigo e entre si, seja pela desconfiança a que foram induzidos, seja pela passividade criada a partir da violência e medo generalizados. Ambos os pontos aludem à realidade do Brasil contemporâneo ao passo que a imensa polarização ideológica e a submissão aos políticos de viés autoritário congelaram a organização coletiva em vários campos da sociedade. Consequentemente, é perceptível que apenas o desenvolvimento da ação direta e coordenada do povo pode mudar o destino desse mesmo organismo social. Portanto, a história das sociedades não vai mudar a menos que seja escrita na 1ª pessoa do plural e na voz ativa. Em Antígona, peça de Sófocles, o velho oráculo Tirésias é obrigado a assistir a morte trágica da princesa de Tebas envolvida em um destino inexorável. Na peça de teatro, o espectador conhece o fim da narrativa no começo e de nada pode fazer. Assim, também são as narrativas fatalistas recorrentes no discurso público contemporâneo. Contudo, hoje – diferentemente da Grécia Antiga – sabemos que tudo pode mudar a menos que seja mantido no estado atual. A verdade é que a trama da história não está completamente tecida, mesmo que as possibilidades de inovação estejam restritas pelo presente real. Esse ponto alude diretamente outro mito grego: a história de Pandora. Se por um lado ela abre a caixa e deixa escapar todos os males do mundo, por outro ela voluntariamente abre o artefato uma segunda vez para libertar a esperança. É evidente, portanto, que o futuro não existe ainda e precisa ser construído a partir do presente. Contudo, forças como a alienação e a passividade induzida entravam esse processo ao tirarem a voz ativa dos povos, como observado em 1984. Resta saber se a humanidade deseja permitir que a sua biografia seja escrita por outros ou se anseia traçar o próprio caminho. Seja como for, é necessário que honremos a segunda abertura da caixa de Pandora. Entre tutsis e hutus No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma realidade na qual um regime totalitário garante seu poder por meio da despolitização e desunião da sociedade. Analogamente, tanto no Brasil contemporâneo quanto em conflitos étnicos da história recente, a visão negativa acerca da política e o não reconhecimento dos indivíduos facilitam a manipulação social. Assim, é necessário perceber como grupos poderosos podem alienar os sujeitos de sua humanidade a fim de dividir os povos e censurar seu pensamento. No decorrer da obra orwelliana, percebe-se que a linguagem direta e obscura da novafala extrai todo e qualquer significado filosófico ou ideológico das palavras. Consequentemente, as palavras tornam-se apenas transmissoras de ideias simples, enquanto o Partido continua a reprimir a população sem resistência alguma. Da mesma maneira, a recente caçada às ideologias nas escolas brasileiras reflete o crescimento de uma visão negativa da política no país. Contudo, é necessário lembrar que o oposto de debate público não é a neutralidade – é a manutenção dos problemas vigentes. Assim, negar a gestão da pólis aos cidadãos é uma forma de desumanizá-los porque aliena eles de sua dimensão de autonomia e de ação coletiva. Não podemos, portanto, permitir a dominação da sociedade sob a égide de uma suposta imparcialidade. Ademais, a negação da humanidade a certas parcelas da população gera a desarmonia social e permite a manipulação, como observado quando colonizadores belgas dominaram Ruanda. Durante a colonização do país africano, os belgas deram poder político à etnia tutsi, enquanto instigaram a opressão da maioria hutu, que desenvolveu certo ódio em relação ao outro povo. Consequentemente, a saída do dominador europeu levou à degradação do poder tutsi seguido do massacre por parte dos ressentidos hutus. Analogamente, no Brasil contemporâneo, a intensa desigualdade e segregação socioespacial vigente estimulam a oposição entre as classes baixas e médias. Isso ocorre porque, embora ambas tenham interesses próximos, os trabalhadores mais ricos pensam ser mais próximos dos milionários do que dos pauperizados, o que enfraquece a união das massas. É evidente, portanto, que a visão negativa acerca da política e a desunião de grupos sociais permite a manipulação do povo. Tanto para o Partido, quanto para os colonizadores belgas, a alienação e a divisão da sociedade foram úteis para a conquista. Resta saber se o Brasil, frente a exemplos da literatura e da história, lutará contra a desumanização dos sujeitos ou permitirá o massacre da sua autonomia intelectual. Lutas de mente e corpo No livro 1984, de George Orwell, mesmo a intensa opressão e doutrinação do Partido encontram a insipiente transgressão de cidadãos aparentemente comuns como Winston Smith. Analogamente, lutas, tanto contra a alienação quanto pela libertação, são exemplos históricos de como os humanos anseiam por sua plena humanização. Assim, é necessário reconhecer os fatores que permitem a transgressão de cenário deterministas por parte dos indivíduos desejosos de sua completude existencial. Na obra orwelliana, a percepção crítica do protagonista guia o leitor pela realidade de Oceânia e permite a transgressão de Winston frente ao controle avassalador do regime totalitário. Isso ocorre porque a luta contra a alienação depende da introspecção pessoal e de uma ampla visão do cenário. Por isso, é o setor mais intelectual e desalinhado com a ordem vigente que identifica e acusa as falhas e contradições da realidade. No caso do Brasil, durante o regime militar, foram os estudiosos e os artistas que mais se viram censurados ou forçados ao exílio. Consequentemente, as lutas contra forças alienantes dependem da participação dos membros mais educados da população, como era o protagonista de 1984. Dessa forma, o projeto de educar os povos fortalece o esforço pela plena humanização dos humanos. Por outro lado, além do pensamento e teorização, é o desejo puro pela liberdade que põe em prática a resistência dos mais oprimidos pelos regimes deterministas. Esse fator, mais bem representados no livro por Julia, alude diretamente ao anseio natural dos sujeitos pela humanização. No Brasil, durante a escravocracia, foi o ódio pelas amarras e o amor pela vida que motivou as rebeliões e fugas de negros desejosos por sua libertação. Contudo, a força de vontade necessária para transgredir situações opressoras não aparece em todas as pessoas, mas depende do contato do sujeito com suas aspirações. É evidente, portanto, que o pensar – possibilitado pela educação – e o agir – motivado pelo desejo – são fatores essenciais para a transgressão das forças que reprimem os humanos. Conclui-se, com isso, que as condições para a emancipação não são restritas a um grupo de escolhido e podem ser desenvolvidas por todo e qualquer cidadão. Resta saber se a sociedade instigará o pensamento e a ação que movem sua evolução ou se permitirá que os regimes deterministas insultem a sua capacidade de transformação. Seja como for, cabe aos humanos se responsabilizarem por sua humanização. O outro lado da tela No livro 1984, de George Orwell, as teletelas espalhadas nos espaços socais e individuais têm o propósito claro de reprimir comportamentos reprovados pelo Partido. Analogamente, nas sociedades contemporâneas, a vigilância remota também serve para inibir os cidadãos e controlar as massas em demonstrações de insatisfação. Contudo, é inegável a utilidade das câmeras de segurança na captação de informações sobre as cidades e na coleta de evidências criminais. Assim, faz-se necessário definir limites parcimoniosos em relação à prática. Na obra orwelliana, o leitor é apresentado a uma realidade extrema na qual o interior dos lares de muitos cidadãos é constantemente registrado por teletelas e transmitido ao Estado. Consequentemente, a população vive em constante medo da observação por parte do regime autoritário. Isso ocorre porque o humano, quando sabe que pode ser visto por olhos julgadores e punitivos, reprime a sua expressão pessoal pelo bem de sua invisibilidade. No Brasil do século XXI, com a intensa proliferação de câmeras de segurança no meio urbano, também há certo receio quanto a invasão da vida privada em espaços públicos. Assim, fica claro como a vigilância inibe a personalidade e estimula a uniformização. Nesse sentido, a expansão dos sistemas de observação remota mostram-se deletérios. Por outro lado, o registro de imagens em vias públicas permite o estudo do fluxo de pessoas e, pode ser usado no rastreamento de suspeitos de crimes. A dupla natureza da vigilância habita na necessidade de integração informacional das cidades. Caso a tecnologia seja bem aplicada, as câmeras podem informar o núcleo decisório acerca de melhores soluções para os problemas de transporte público e segurança. Além disso, se as imagens registradas puderem cair nas mãos da sociedade civil, as câmeras podem ser expositoras das injustiças diárias e das violências institucionais recorrentes. Isso ocorre porque o que define as propriedades benéficas ou nocivas de uma prática são seus usos e suas consequências. Se a vigilância estiver à disposição da população e por um instrumento de melhora das condições de vida, as câmeras poderão até receber apelidos carinhosos. É evidente, portanto, que o limite para as propriedades benéficas ou nocivas da vigilância não está nas câmeras, e sim em quem as rege ou para que fim servem. Resta saber se a sociedade civil organizada pretende tomar o poder sobre sua imagem ou se prefere deixá-la nas mãos de quem tem sede de controle social. Seja como for, não façamos com que o apelido das câmeras seja teletelas. O inferno somos todos No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma realidade em que a espionagem entre civis e a virtual onisciência do regime totalitário vigente mantém um estado de terror constante. Analogamente, o temos do outro e de si faz com que a união dos povos em direção ao anseio comum e o desenvolvimento da verdadeira consciência moral sejam dificultadas. Dessa maneira, é necessário compreender como apenas a transposição do medo tem o potencial de humanizar os sujeitos e permitir que atinjam suas capacidades sociais e éticas. Nesse contexto, o temor em relação ao outro, seja ele o vizinho, seja ele o colega de trabalho, é um grande empecilho para a articulação política da sociedade. Isso ocorre porque a desconfiança e a hostilidade em relação ao próximo aliena os sujeitos. Na Alemanha nazista, por exemplo, com medo de ser punidos pelo Estado, famílias próximas se distanciaram umas das outras devido ao medo de serem denunciadas de subversão. Consequentemente, o cenário político estimulava o crescimento do nazifascismo agora sem grandes oposições populares. Contudo, a explicação não é justificativa, já que a sociedade alemã – ao não ultrapassar as barreiras do pavor – tornou-se cúmplice dos mais diversos horrores. Dessa forma, por maior que seja a alienação em relação aos outros, é dever do ser humano se responsabilizar por sua paralisia covarde. Na obra orwelliana, o Deus abraãmico é substituído por uma entidade igualmente imaterial e onisciente: o Partido. De fato, a revelação de que o esconderijo de Winston Smith era um posto de observação da Polícia do Pensamento permite perceber como os olhos e ouvidos do regime têm atributos quase sobrenaturais. Frente a essa situação, é perceptível como o medo da função divina distorce a verdadeira moralidade humana. Tanto no caso da população de Oceânia, quanto em algumas seitas religiosas mais radicais, o temor da observação é tão grande que os cidadãos se reprimem violentamente por ideias inortodoxas ou pecados de pensamento. A evidência dessa proposição está em um dos dez mandamentos, já que “não cobiçarás a mulher do próximo” é o primeiro crime de pensamento que um fundamentalista poderia cometer. É evidente, portanto, que o desenvolvimento da ação coletiva e da verdadeira moralidade são bloqueados pelo medo que o sujeito tem do outro e de si. Contudo, como qualquer emoção, o temor é de responsabilidade exclusiva daquele que o experiencia. Resta saber se a humanidade prefere ser dominada pelos pavores que criou ou se deseja transpor as barreiras que montou a fim de aproximar-se de sua plena humanização. Seja como for, não deixemos cair na repressão dos anseios. Vidas Secas e Oceânicas No livro 1984, de George Orwell, o fim trágico que leva o protagonista é consequência da sua desconfiança em relação ao poder do povo e sua submissão às figuras de autoridade como O’Brien – ícone do Partido. Analogamente à realidade distópica retratada, tanto no Brasil contemporâneo quanto no sertão de Vidas Secas, a alienação política e a excessiva hierarquização social levam as pessoas, como o subversivo Winston e o retirante Fabiano, a se perceberem como inferiores às demais. Desta forma, é necessário reconhecer como a prática da democracia e da igualdade pode restabelecer a autoestima dos mais vulneráveis. A partir da leitura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é possível perceber como a distância entre as instituições e a sociedade causa a alienação do poder cidadão e a diminuição da autoestima dos empobrecidos. Em certo momento da narrativa, Fabiano – um sertanejo em estado de vulnerabilidade social – fica perplexo ao se ver enganado pelo soldado amarelo. Esse episódio alude diretamente à falta de integração entre o povo e o Estado, visto como entidade distante e perfeita. No caso do Brasil contemporâneo, há pouquíssima atuação da massa trabalhadora nas decisões institucionais e, muitas vezes, a única interação dos indivíduos com o poder é mediada pelo monopólio da violência da polícia. Consequentemente, apenas o trabalho coletivo em prol do exercício da democracia pode mostrar ao cidadão seu verdadeiro potencial político. Ademais, a intensa hierarquização da sociedade gera uma confiança injustificada em figuras de autoridade e faz com que a população delegue sua responsabilidade política a grupos considerados superiores. Na obra orwelliana, uma breve troca de olhares foi suficiente para que Winston decidisse que o ícone do Partido – O’Brien – era um homem confiável. Assim, o protagonista demonstrou a sua autoestima deficiente e sua ingenuidade ao entregar as suas ideias subversivas a um importante membro do regime totalitário. No Brasil contemporâneo, é comum ver a submissão de movimentos sociais tais quais grupos conservacionistas em relação a um corpo legislativo claramente ligado à economia de extrativismo predatório. Dessa forma, a confiança dos povos vulneráveis decorre diretamente do grau de igualdade social e deve ser promovida sob os preceitos democráticos de ação direta da população. Dessa maneira, torna-se notório que a alienação política e a extrema hierarquização da sociedade são fatores que levam pessoas, em condições semelhantes às de Fabiano e Winston Smith, a se considerarem inferiores. Seja pela personificação do governo no soldado amarelo, seja na materialização do Partido em O’Brien, o poder popular nunca pode ser delegado. Portanto, para a contemplação de uma estrutura social harmônica e coerente, resta saber se continuaremos a baixar para a autoridade ou se passaremos a escrever nossa própria história. Só assim, é possível tomar responsabilidade e superar vidas secas e oceânicas. Humanos humanos No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário dominara a massa trabalhadora a animais e termina por retirar a humanidade tanto dos degradados proletas quanto dos dessensibilizados burocratas. Analogamente, o neocolonialismo e a questão indígena exemplificam como a animalização e a divinização – dois processos aparentemente dicotômicos – causam a desumanização tanto do opressor quanto do oprimido e permite a manipulação social de ambos. Assim, evidencia-se fundamental permitir que humanos sejam nada mais e nada menos do que humanos. Segundo o filósofo Frantz Fannon, a degradação da condição simbólica do oprimido desumaniza tanto aquele que se vê degradado quanto aquele que degrada, já que impede o opressor de sentir empatia e compaixão por um igual. Na obra orwelliana, esse processo é descaracterizado pela total indiferença das castas superiores de Oceânia em relação aos proletas. Como bem enuncia Winston, todo o sofrimento causado aos animalizados só serviu para extrair a humanidade dos burocratas e permitir sua manipulação. No contexto neocolonial, os colonizados foram reduzidos a agentes de uma dominação da qual nem iriam se beneficiar diretamente e os colonizados se viram servos das grandes nações imperialistas. Assim, os trabalhadores europeus foram manipulados a odiar e humilhar povos inteiros sob a égide de uma suposta superioridade racial e cultural. Ademais, sujeitos também podem ser alienados de sua humanidade por meio da construção de um ideal irreal desenhado para manipular tanto os idealizados quanto os idealizadores. A partir da ascensão do romantismo no Brasil, a construção do chamado “indígena romântico” – nobre e forte – permitiu a opressão mais severa da população autóctone real. Nesse processo de divinização, a caracterização fantástica do povo retratado permite o distanciamento subjetivo e dessensibilização por parte do opressor. Consequentemente, a exaltação termina por manipular os sujeitos a cometer as mais diversas atrocidades contra os exaltados. Assim, a desumanização pode ocorrer tanto no sentido da degradação quanto da elevação injustificada dos seres. Dessa maneira, é notório como a desumanização sempre permite a manipulação social dos desumanizados e a destruição do futuro dos povos alienados. Portanto, para a contemplação de uma sociedade coerente, resta saber se o círculo vicioso de atrocidades e dessensibilização vai continuar ou se a empatia e a compaixão humana serão finalmente pautar o desenvolvimento dos povos. Só assim, todos os humanos poderão ser o que nasceram para ser. O lindo caminho torto No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente difunde a sua ideologia por meio dos discursos unidirecionais e debates políticos de fachada. Analogamente à realidade distópica, a ascensão do monopólio midiático no século XX e a eterna prisão do paradigma demonstram a impossibilidade de avançar na busca da verdade sem a adoção de múltiplas visões de mundo e a superação de paradigmas totalizantes. Assim, a vida e o conhecimento merecem uma abordagem mais cubista e transgressora do que a metodologia vigente na contemporaneidade. É fundamental perceber que a verdade estabelecida com base em apenas um ponto de vista está sujeita a interesses e vieses pessoais. Da mesma forma que um caso judicial não é solucionado apenas com o testemunho nem do réu nem da vítima, a opinião não pode ser embasada em uma única perspectiva. No século XXI, apesar da aparente polifonia gerada pela ascensão de uma pequena imprensa digital, o monopólio midiático herdado do século anterior faz com que a análise da realidade ocorra nos moldes monolíticos observados na obra orwelliana. Nesse contexto, apenas a tese cubista, de uma verdadeira multiplicidade de discursos, pode responder às necessidades sociais de Verdade. Os resultados dessa síntese de elementos díspares, como as obras de Picasso, podem não ser tão coerentes ou belas quanto as enunciações baseadas na concordância total da ideologia, mas serão mais próximos da Verdade. Antes das Grandes Navegações, o Mundo Cristão acreditava em um ideal de triplicidade baseado na tríade divina: África, Ásia e Europa eram três terras habitadas por três povos e cercadas por três mares. Contudo, a descoberta da quarta terra – América – forçou o abandono ou separação de um ideal tido como perfeito e estático. E, assim, é a história do mundo para Hegel: um encadeamento de surgimentos e mortes de ideias totalizantes e limitantes. Nesse sentido, a ingênua tentativa de ver o mundo sob uma única perspectiva traz apenas frustrações ou o delírio. Para o filósofo, os debates de fachada promovidos em Oceânia não rompem paradigmas e, portanto, servem apenas para anda em círculos. Dessa forma, cabe aos humanos se basearem em suas ideias mais óbvias para, com debate e esforço, transgredir essas mesmas perspectivas. Assim, torna-se notório que a verdade não pode ser alcançada de maneira unilateral. Esse ideal é uma ilusão luxuosa e a única forma de realmente evoluir o pensamento é por meio da abordagem cubista e transgressora. Se os paradigmas forem como óculos, cabe a nós o trabalho de trocá-los, fundi-los, abandoná-los e ressignificá-los a fim de aproximar o ser humano da verdade, por mais torto que seja o caminho. De baixo do tapete No livro Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, o protagonista defende todo tipo de melhoramento para o Brasil, mas não considera o sofrimento dos povos explorados em suas propostas. Analogamente, na contemporaneidade, existe uma amnésia acerca do fato da história se estender no presente e uma negação das feridas sociais ainda abertas pelo ódio aos violentados e oprimidos. Assim, para o pleno desenvolvimento de uma sociedade mais justa e coesa, é necessário o reconhecimento das experiências de desumanização e seu reflexo no hoje. Se a História não tem utilidade n presente, então não há espaço para memorizar vastos acervos de datas passadas e nomes de homens defuntos. Mesmo assim, essas listas de batalhas e seus respectivos comandantes é a história de cidadãos acríticos como o major Policarpo Quaresma. Enquanto os ufanistas exaltam o grande feito da Princesa Isabel e a assinatura da Abolição, um negro continua a ser percebido de forma degradada. A verdade é que o passado se transpõe no presente até que a sociedade enteja preparada para superá-lo. A condição da população negra do Brasil ilustra bem esse fato ao passo que as tentativas de mascarar o racismo avassalador – como o mito da democracia racial – nunca foram capazes de reverter o preconceito social e institucional sobre a negritude. Portanto, uma sociedade justa só pode ser construída quando o estudo da História é acessível, crítico e voltado para a superação dos erros passados. Ademais, como um organismo biológico, um corpo social precisa cuidar das feridas abertas em sua história para avançar em direção a um futuro mais coeso. Esse ponto alude diretamente à questão do terrorismo doméstico na Europa que, embora moralmente injustificável, pode ser parcialmente explicado pela islamofobia e a opressão dos povos islâmicos. Nesse cenário, jovens muçulmanos, ao serem negligenciados e empobrecidos pelas sociedades europeias, podem se aproximar de organizações extremistas nesses países. De fato, é importante frisar que o ódio gerado pela opressão não torna a violência nada mais justa. Contudo, apenas a reparação das enfermidades sociais pode quebrar os círculos viciosos de sofrimento e alimentar a harmonia dos povos. Torna-se, portanto, notório que o conhecimento acerca das experiências de violência é fundamental para o combate às oposições sociais e para a superação de passados dolorosos. Não devem ser os acríticos Policarpos ou os odiosos islamofóbicos os guias de uma sociedade que preza pela justiça e pela coesão. É fato que há mais odores quanto a sujeira é tirada de baixo do tapete, mas limpar o que outrora fora negligenciado é a única forma de evoluir a História. Estantes esvaídas No livro 1984, de George Orwell, o leitor é apresentado a uma realidade na qual a arte literária é praticamente inexistente, o que restringe a imaginação política e o sentimento de compaixão. Analogamente à realidade distópica, a contemporaneidade presente valoriza apenas a leitura técnica, que informa sem transformar, e as mensagens instantâneas que não permite um mergulho profundo na subjetividade do outro. Dessa maneira, é preciso avaliar a capacidade de transgressão e a conduta moral de um povo ou pessoa, pela leitura de literatura. Na obra orwelliana, o regime totalitário vigente restringe o uso da linguagem escrita à propaganda e às mensagens curtas trocadas entre os cubículos ministeriais. Nesse contexto, o protagonista – apesar de odiar o Partido – não conhece nenhuma outra luta de emancipação nem outro mundo além do seu e, por isso, termina por se submeter ao representante da instituição que jurou destruir. No Brasil do século XXI, essa falta de criatividade política decorre igualmente da inacessibilidade intelectual da arte literária. Não é que os cidadãos não queiram ler, a alfabetização apenas voltada ao meio técnico-científico é a figura central da equação. Contudo, é essencial frisar que a transgressividade e o anseio pela transformação são valores fundamentais da condição humana e devem ser critério de avaliação dos valores sociais. Mas seria a leitura o caminho para o sucesso dos povos e nações? Não, não seria. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, escrito por Lima Barreto, a estante pouco diversa e muito consistente do major tornou-se elemento de alienação. Na narrativa, a congruência de discursos e ausência de vozes díspares nos livros restringiram as capacidades empáticas de um ávido leitor. Esse processo se deve ao fato de que para gerar compaixão com um outro, é necessário haver um outro: o que não ocorre quando todas as fontes concordam entre si e com o receptor. No caso da contemporaneidade, a aversão patológica à discordância faz os cidadãos se rodearem de livros e pessoas que reflitam o “eu”. Consequentemente, faz-se necessário compor uma dieta de romances e contos diferenciadas para construir maior senso de empatia com alguém externo à pessoa. Torna-se notório, portanto, que a leitura de diversas literaturas deve ser critério de avaliação dos indivíduos e um objetivo social dos povos. A verdade é que ausência de estante no apartamento de Winston e as estantes espiritualmente empobrecidas de Policarpo Quaresma são entraves ao pleno desenvolvimento da dimensão ética da humanidade. Para a contemplação de uma sociedade justa e coesa, resta saber se a literatura será parte apenas do método de avaliação ou será expandida a todos os cidadãos. Novas Sementes No livro 1984, de George Orwell, o regime totalitário mantém a população alienada ao impedi-la de participar da produção de conhecimento e da discussão acerca de suas aplicações. Analogamente à realidade distópica, a ciência contemporânea nos apresenta com tantos dilemas e rupturas de paradigma que, se não forem discutidos publicamente, nós não poderíamos ser chamados de democráticos. Frente a esse cenário, faz-se necessário difundir e debater tanto os problemas que advém da descoberta quanto seu impacto na coletividade. É verdade que novas descobertas são, ou podem ser, as sementes de um mundo novo. Contudo, sementes novas são justamente o centro de discussão acerca dos riscos sociais dos organismos transgênicos. Esse cenário é causado pelo alastramento de variedades geneticamente modificadas em espaços em que eram cultivadas plantas não alteradas. A resolução encontrada para essa questão biológica foi a criação de um dilema socioeconômico, já que instituiu-se a dependência dos agricultores em relação às empresas criadoras de modificações por meio da venda de sementes estéreis. Assim, percebe-se que o avanço científico cria dilemas e, em uma sociedade democrática, é inaceitável que os interesses não sejam publicamente debatidos. Ademais, para que o novo seja abraçado, é preciso que ele chegue em todos os espaços sociais a fim de ser devidamente metabolizado. Na obra orwelliana, a sociedade não tem protagonismo intelectual porque recebe os saberes de forma unilateral do Partido e não pode contestar a credibilidade desses dados porque não tem instrumentos. Analogamente à situação ficcional, no Brasil contemporâneo, o desenvolvimento do saber é restrito por ser excludente. Quantas novidades mais iriam surgir se todos os membros da população tivessem condições mínimas de compreender os avanços da academia? Evidencia-se, assim, o ponto de essencial consideração: a ruptura. A verdade é que a mudança de paradigma é dolorosa e, sem a discussão acerca dos usos dessas ideias novas, a tendência é que as massas hesitem ou voltem-se contra a ruptura em prol do conforto do passado. É notório, portanto, que a sociedade receba os instrumentos intelectuais e políticos para conhecer, debater e decidir acerca das motivações, usos e efeitos das pesquisas. Para a contemplação de uma sociedade coerente, resta saber se as sementes da novidade serão pisadas para a escravização do povo ou para a sua libertação. Só assim, nós poderemos nos chamar de defensores da democracia. Inegáveis verdades No livro 1984, de George Orwell, a negação sistemática da ciência pelo regime totalitário gera a crença no absurdo e a livre manipulação do saber coletivo. Analogamente à realidade distópica, no Brasil do século XXI, há um descompasso social quanto a verdades fundamentais e um crescimento acelerado de movimentos que distorcem o conhecimento científico. Nesse contexto, é preocupante como o mundo concreto, que deveria fundamentar as posições políticas, inverte partes com elas. Assim, o atual negacionismo tem o potencial desconstruir a conexões sociais que fundamentam a democracia. Com efeito, a prole mais imediata da atual negação científica é o descompasso entre setores da sociedade, já que ao abandonarem a realidade os negacionistas deixam também os sensatos. Esse processo, que pode ser gradual ou rápido, é, contudo, um grande golpe contra a democracia. A verdade da sociedade democrática é o embate harmônico de diferentes posicionamentos. Contudo, em um contexto de desarticulação, os grupos dão as costas e deixam um vácuo decisório. Consequentemente, os tolos – mais numerosos – tomam o espaço público sem mesmo porem suas ideias à prova. Portanto, é necessário resgatar o ideal dos enciclopedistas: difundir o conhecimento a toda a população e colher os frutos do progresso. Só assim, é possível fazer a discordância vencer sobre o descompasso. Na obra orwelliana, o Partido deseja o poder absoluto de desmontar e montar a realidade quando e como quiser. Para chegar a esse objetivo, a instituição recorre à mentira sistemática e à doutrinação avassaladora. No Brasil, a história de Canudos foi símbolo do potencial destrutivo do Estado associado à Mídia. Enquanto jornalistas e burocratas consideravam a cidade um perigo à jovem república, a vila não representava risco algum ao Rio de Janeiro. No contexto do negacionismo científico, o evento alude diretamente ao ponto fundamental: a livre manipulação da verdade. Da mesma forma com que Canudos foi destruída pela mentira, também poderá ser a autonomia intelectual brasileira caso a negação dos fatos continue. É notório, portanto, que a atual negação dos fatos projeta um futuro de desunião e mentira inconsequente. Para a contemplação de uma sociedade democrática, resta saber se a realidade será submissa à opinião ou o contrário. Assim, é necessário retornar ao ideal enciclopédico de síntese da verdade. Habilidades literárias No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário impede a apreciação de arte literária a fim de extinguir a coragem moral e a compaixão na sociedade de Oceânia. Analogamente À realidade distópica apresentada, no Brasil contemporâneo, a falta de um público leitor bem desenvolvido ajuda a manter o povo em estado submisso e egoísta – dos vícios deletérios à democracia e ao republicanismo. Assim, é necessário considerar a leitura de literatura para julgar o caráter de uma pessoa, seja ela individual ou coletiva. Em seu livro “Vidas Secas”, Graciliano Ramos nos apresenta Fabiano: um retirante nordestino pauperizado que, apesar de resistir às dificuldades do sertão, submete-se a todos os considerados superiores. Consequentemente, o sertanejo torna-se uma pessoa pouco confiável por não assumir seu propósito com a coragem moral necessária. De fato, essa covardia decorre da sua desconexão com sua interioridade, o que poderia ser mitigado pela leitura de ficção que estimulasse sua subjetividade. Da mesma forma, a coletividade brasileira mostra-se altamente submissa à autoridade. Portanto, para fortalecermos a coragem do povo, é necessário estimular a leitura de literatura a fim de gerar melhor contato entre o brasileiro e sua interioridade. Ademais, o contato íntimo com a literatura permite, ao indivíduo e à comunidade, criar mais laços de empatia. Na obra orwelliana, Winston Smith sente um ódio inexplicável em relação a Julia, antes de conhecê-la. A verdade é que parte dessa pulsão de violência vem da sua capacidade limitada de se pôr no lugar do outro. Em um mundo sem romances, contos ou novelas, é impossível experienciar a vida com olhos além dos seus a fim de desenvolver qualquer compaixão com o outro. No caso do Brasil, o egoísmo é amplamente vivenciado no meio social e político. Dentre as muitas falhas da democracia brasileira, a indiferença dos encarregados do poder em relação ao povo é a mais gritante. Por mais que os representantes eleitos sejam socioeconomicamente distantes da população, é preciso ser muito moralmente inapto para ver o sofrimento vigente e não fazer o máximo para extingui-lo. Dessa maneira, é notório que a leitura de literatura deve ser considerada na avaliação do caráter e formação de uma pessoa. Seja ela individual ou coletiva, a necessidade por mais coragem e compaixão é essencial. Portanto, para a contemplação de uma sociedade mais apta para desafios morais, resta saber se os indivíduos estrarão em contato consigo e com o outro por meio da apreciação de arte literária. O mito do livre pensar No livro 1984, de George Orwell, conjectura-se um mundo no qual o regime totalitário dita pensamentos permitidos por meio da doutrinação e da alienação intelectual. Analogamente à realidade distópica, a ascensão da indústria cultural e a permanência da carência por uma educação crítica entravam o desenvolvimento do pensar autônomo e independente dos cidadãos. Assim, é fundamental evidenciar os fatores que afastam a contemporaneidade de um futuro mais livre e a aproxima de Oceânia. Na obra Orwelliana, os cidadãos são forçados a abdicar de sua capacidade intelectual pelo partido, que toma para si a responsabilidade de raciocinar e oprimir a sociedade. De maneira semelhante, nas sociedades capitalistas modernas, o desenvolvimento das tecnologias de disseminação de informações permitiu o surgimento da indústria cultural. O trabalho desse agente ideológico é justamente a homogeneização dos valores e ideias da população. Nesse sentido, tanto o Ministério da Verdade ficcional quanto a cultura massificada independente da modernidade impedem ou congelam o pensamento autônomo e independente. Se no romance há a doutrinação forçada do povo, as ferramentas ideológicas atuais apresentam os jovens a Willy Wonka – o industrial bonzinho escravizador de Oompa-Loompas. Ademais, os modelos de educação contemporâneos não instigam o pensamento autônomo e independente. Esse processo decorre diretamente da sobrevalorização do conteúdo escolar em detrimento da plena desenvoltura das habilidades críticas dos estudantes. Para o pedagogo pernambucano Paulo Freire, o aprender e ensinar devem, entretanto, ser atividades emancipatórias. Consequentemente, a permanência dos modelos educativos vigentes configura uma escolha, consciente ou não, de entravar o raciocínio livre da população. Assim, a escola não deve mais ser cúmplice da alienação intelectual dos povos. Dessa maneira, torna-se notório que os cidadãos do século XXI não exercem o pensamento autônomo e independente. Tendo esse fato em vista, contudo, permite a opção entre a difícil mudança para um mundo mais livre pensante, e a confortável permanência na realidade alienante. Portanto, para a contemplação de sociedades libertas de grilhões mentais resta saber se a supressão da indústria cultural e a desenvoltura do pensar crítico são objetivos gerais, ou se continuarão a nos convencer de que Willy Wonka era um bom homem. Estado Desconsciente No Livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário alimenta o mesmo cenário de pavor e desespero que permitiu a sua ascensão algumas décadas antes. Analogamente à realidade distópica, são as ameaças fabricadas e a desconfiança no processo democrático as principais bases de legitimidade para os governos autoritários contemporâneos. Assim, o nascimento de um Estado opressor não é uma escolha consciente e publicamente debatida, pois nasce da passividade e da submissão geradas pela irracionalidade. Na obra Orwelliana, o partido mantém a população sob controle por meio do terrorismo e da fabricação de ameaças internas tal qual a Confraria. No caso do Brasil contemporâneo, apesar de real, a criminalidade é combatida de forma ineficiente pelo Estado, o que justifica a criação de oficiais de polícia cada vez mais brutais, contudo, esse processo não é consciente, uma vez que fundamenta-se no medo emergencial da morte. Além da negligência mediada das autoridades, a mídia – em sua corrida por furos jornalísticos superficiais – compila horrores diários em programas sensacionalistas, o que fortalece e difunde o medo irracional que expande o autoritarismo. Ademais, a desconfiança no processo democrático é filha do desespero e da desesperança desmedida. No Brasil de 1964, foi a negação da democracia pelos setores empresariais e conservadores que os fizeram implorar para que a ala golpista das forças armadas intervissem contra um perigo fabricado. Essa negação, contudo, é fruto do desespero de grupos que não acreditam poder ganhar pelo justo processo de debate público. Nesse sentido, a ascensão do Regime Militar brasileiro não pode ser considerado uma escolha consciente e debatida porque sua gênese é o rompimento da consciência e do debate. Dessa forma, a delegação dos direitos do povo é um evento que, mesmo envolvendo interesses do empresariado, advém do abandono da racionalidade. É notável, portanto, que o autoritarismo nasce de escolhas inconscientes da população. Mesmo assim, é necessário reconhecer que a opressão só se instala frente a um cenário de desespero e desconfiança induzidos. Resta saber se as sociedades permitirão o crescimento do medo e da irracionalidade, ou se irão lutar contra os desconscientizadores. Ser Anti-Pavloviano No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário mantém um cenário de opressão e de doutrinação a fim de inibir toda e qualquer tentativa de emancipação por parte da população de Oceânia. Mesmo assim, Winston Smith – um homem imerso, como tantos outros, na dor e no medo - rompe as expectativas ao transcender o controle determinista do Partido. Analogamente, são muitos aqueles que apresentam a pulsão de liberdade e o inesperado, frente a governos autoritários. Assim, é possível compreender como um cidadão comum pode negar a realidade opressora na qual se insere. É, sim, verdade que o meio condiciona os pensamentos e ações dos seres humanos. Contudo, o desejo pela liberdade é muito mais fundamental do que qualquer controle mental. Esse ponto alude diretamente às experiências de opressão da história recente que sempre enfrentavam a resistência dos oprimidos. No caso do Brasil escravocrata, nem mesmo a ameaça da chibata ou da morte eram suficientes para garantira submissão total dos negros escravizados. Consequentemente, percebe-se o desejo pela emancipação como inalienável e avassalador. De fato, Pavlov – grande nome do behaviorismo – conseguiu condicionar seus cães a salivarem em resposta aos sons. Entretanto, mesmo frente a um poder sem igualou uma alienação sem precedentes, o cientista nunca poderia convencer todos os seres a amarem suas jaulas e odiarem o ar livre. Na obra Orwelliana, o protagonista é um burocrata comum do partido, e mesmo assim, transgride o determinismo da entidade a que serve. Esse fato é essencial no sentido em que Winston não é um Messias enviado pelos céus, nem um ser imune à alienação estatal. Ao contrário disso, ele é justamente o alvo da doutrinação mais opressora e é sua normalidade que dá a rara esperança do livro. Quantos indivíduos encontram, no seu caminho, pedras? E, mesmo assim, são poucos os que refletem sobre as pedras do seu caminho. Nesse sentido, é no inesperado que reside a transformação. Muitas vezes, é verdade, nos convencemos que tudo pode ser previsto – se solto uma pedra, ela cai. – Contudo o indeterminismo é a lei que rege os seres humanos, sejam eles plenamente consciente de si ou envoltos na alienação. Assim, os regimes deterministas são ilusões dos que se negam a resistir. Dessa forma, é notório que pessoas comuns Winston transgredem regimes deterministas quando percebem que não há determinismo algum. Tanto a pulsão de liberdade quanto o inesperado comprovam que, com as devidas condições, o futuro pode ser criado pela vontade humana. Resta saber se os indivíduos pretendem assumir sua insubmissão ou se continuarão a salivar em resposta aos apitos de governos autoritários. Só assim o humano tomará para si o nome de ser anti-pavloviano. Maravilha Concentrada No início do século XX, a Reforma Pereira Passos marcou um paradigma de modernização urbana baseado na exclusão da população mais pobre que se reproduz até o século XXI. Como consequência, a cidade do Rio de Janeiro apresenta uma certa proximidade distante entre regiões reconhecidas e as favelas, além da forte hierarquização entre os bairros. Assim, é necessário reperceber que a Cidade Maravilhosa reserva sua beleza para poucos e o resto simplesmente não sai bem na foto do cartão postal carioca. Nesse contexto, a cidade do Rio de Janeiro demonstra um caráter antitético: existem grandes diferenças socioeconômicas demarcadas por tênues limites territoriais. No caso das memoráveis praias cariocas, o Vidigal esconde o sol que se põe e recebe eventuais visitantes no Morro dos Dois Irmãos. Dessa forma, as favelas configuram bolsões de pobreza espalhados pela paisagem. Só não nos enganemos, o contrate de espaços não surge por geração espontânea. Na verdade, a negligência da população pobre por parte do governo local, associada a especulação imobiliária, expulsou os menos abastados das áreas valorizadas. Frente a isso, os reconhecidos são fotografados e recebem investimentos, enquanto os esquecidos são abandonados e eventualmente hostilizados em sua própria cidade. Ademais, a hierarquização urbana na cidade gera grande desigualdade de experiências de vida entre ricos e pobres. Essa diferença é perceptível no momento em que vê-se as condições de diferentes zonas. Enquanto a Zona Sul – mais enriquecida – tem todo o seu atrativo natural exposto e valorizado, a Zona Norte – menos rica – tem seu patrimônio histórico degradado ou esquecido. Nesse sentido, os bairros mais abastados demonstram-se muito mais recheados de significado do que os outros, já que concentram a identidade carioca. Consequentemente, o título de cidade maravilhosa só faz sentido para os que vivem em bairros fotogênicos como Copacabana e Ipanema. Assim, a população carioca divide-se entre maravilhada e a degradada. Dessa forma é notório que a hierarquização urbana e antítese da cidade do Rio de Janeiro comprovam a exclusão de muitos da maravilha registrada em cartões postais. Resta saber se a sociedade carioca pretende continuar o padrão de segregação centenário ou se prefere expandir sua beleza a todos. A traição de um povo No livro de 1984. De George Orwell, o regime totalitário vigente evidencia-se traidor ao não responder às necessidades da população e ao atacar aqueles que legitimam seu poder. Analogamente à realidade distópica, a traição institucional do século XXI decorre das falhas de representatividade e da fragilidade das instituições, presentes em Estado-Nação como o Brasil. Dessa forma, frente a um cenário no qual o governo volta-se contra seu próprio povo, apenas a politização e a organização da sociedade podem oferecer resistência á opressão. Na obra orwelliana, o partido age independentemente e em desacordo com a vontade geral da população de Oceânia porque as massas não têm voz alguma nos processos decisórios do governo. Esse ponto alude diretamente às falhas de representatividade em tempos de autoritarismo. Embora este fato seja óbvio na realidade extrema vivenciada por Winston Smith – onde proletas não têm atividade política alguma – a traição institucional gerada pela alienação política ocorre mais sutilmente no Brasil. A relativa sutileza advém do fato de que não há impeditivos formais contra grupos sub-representados, mas a falta de recursos para a campanha eleitoral e a menor visibilidade dos mais empobrecidos garante menos votos aos que mais se aproximam da população brasileira. Assim, frente a situações em que o elo entre sociedade e estado é perdido, apenas a politização pode reverter a situação. Ademais, o uso privado do poder público a fim de atacar ativamente o povo é produto do enfraquecimento das instituições associado a concentração econômica em alguns indivíduos. Em seu livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto apresenta o leitor a um episódio em que um político interiorano pune o protagonista, depois que o maior se recusa a fraudar as eleições em prol ao candidato. Consequentemente, a mistura entre o desejo privado e a coisa pública apresenta-se como fator central do ataque aos cidadãos perpetrado pelo Estado. É fundamental apontar, contudo, que apenas os mais abastados tem a capacidade financeira de agir e fazer segundo sua vontade. Assim, a sociedade civil deve fortalecer as instituições a fim de proteger-se contra a violência motivada por motivos pessoais de um latifundiário qualquer. Dessa forma, torna-se notório que o Estado volta-se contra o povo quando este não compõe seu núcleo decisório ou quando o dinheiro fala mais alto que vidas humanas. Contudo, tanto a opressão de Winston Smith, quanto a punição de Major Quaresma não devem nos ser indiferentes. Resta saber, portanto, se a sociedade resistirá e acusará o autoritarismo violento ou será submetida por aqueles que deveriam proteger. A Negação da Verdade No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário vigente baseia sua política publicitária na manipulação sistêmica dos fatos a fim de manter seu poder absoluto. Analogamente à distopia, no século XXI, o desmonte da realidade perpetrado por empresas e grupos políticos causa a polarização da sociedade e a exclusão do social da verdade. Assim, a ascensão da pós verdade e dos fatos alternativos pode representar um grande entrave à democracia e à coesão social. Na obra orwelliana, a população de Oceânia baseia sua visão de mundo unicamente nas mentiras difundidas pelo Estado totalitário. Esse cenário é causado, principalmente, pela incapacidade de diferenciar o real do imaginário, e alude diretamente à exclusão social da verdade. No Brasil do século XXI, o desmonte geral da objetividade é recebido desigualmente pelas diversas camadas da sociedade porque essas têm diferentes níveis de educação digital. Enquanto a parcela mais escolarizada da população é educada a aferir a validade dos fatos e pesquisar a credibilidade de enunciadores, a maioria mais humilde não é instruída de forma a poder separar o joio do trigo. Assim, a desigualdade de acesso à verdade pode alienar os menos abastados e enfraquecer a democracia. Ademais, a seletivização da realidade gera a polarização da sociedade e o enfraquecimento do poder cidadão que fundamenta a democracia. Esse ponto alude diretamente a empresas que, em associação com grupos ideológicos, espalham discursos distintos pera demografias diferentes. Consequentemente, informados por dados e conclusões opostas, setores da população se distanciam e se opõem. Enquanto um conservador assume que o regime militar heroicamente frustrou uma revolução comunista em 1964, um progressista defende o empresário que arquitetou o golpe militar minuciosamente. Assim como é impossível que ambos estejam certos, é provável que os dois estejam equivocados e as suas incongruências ideológicas entrave o processo de decisão conjunta. Dessa forma, é notório que a pós-verdade é um risco à democracia, pois aliena parte da população e polariza a sociedade. Para a contemplação de uma democracia justa, portanto, resta saber se a contemporaneidade irá negar a mentira em prol da verdade. Noção do Tempo Faz parte da ética de trabalho capitalista acreditar que é possível transformar um dia de esforço em possibilidade de um futuro mais rico. E, de fato, o enunciado tem sua validade. Contudo, a equivalência entre tempo e dinheiro é falsa porque os dois elementos têm propriedades distintas e porque a temporalidade é a dimensão fundamental da existência humana. Assim, os ensinamentos de Benjamim Franklin devem ser seguidos de maneira parcimoniosa para que não sejam usados na alienação da humanidade de sua realidade. Durante sua ascensão, o capitalismo precisou renovar o pensamento social acerca do trabalho e de sua duração. Se antes o esforço era uma necessidade para existir materialmente, agora ele representa a possibilidade de um futuro mais confortável. Não obstante, a fabulada cigarra e da formiga pode ser vista como um combate de ideias de vida da Idade Média e da Modernidade. Consequentemente, nasce a equivalência entre tempo e dinheiro e a necessidade de escolher entre um e outro. A verdade é que a passagem das horas tem potencial de enriquecer o sujeito, mas o processo contrário é impossível. Assim, torna-se perceptível que o enunciado de Benjamin Franklin deve ser aplicado com precaução. Ademais, a dimensão temporal é muito mais valiosa do que qualquer amontoado de ouro ou prata, pois é o que dá sentido a vida humana. Nesse sentido, é importante destacar que é a continuidade tempo e a finitude da vida que forçam o sujeito a vivenciar sua existência. Já na Idade Antiga Grega, os humanos imaginavam que o interesse dos deuses por eles era explicado pelo desejo de saber como é viver com a capacidade de entender a morte. Para Heidegger, na contemporaneidade, o sujeito sempre foi regido por sua temporalidade e finitude. A verdade é que ambas as concepções se aproximam, apesar de sua distância histórica. O tempo é, portanto, aquilo que dá sentido e motivação para os indivíduos, e dá sentido até mesmo ao dinheiro, já que esse existe em um mundo de abstração de trocas e sacrifícios pelo futuro. Dessa maneira, é notável que o tempo não é dinheiro porque demonstra-se como algo muito mais fundamental. Sendo assim, é preciso ser cigarra ou formiga de acordo com a situação, pois o trabalho demasiado termina por alienar a vivência humana de sua fundamentação temporal. Resta saber se a humanidade continuará a seguir alucinadamente a ética capitalista, ou se vai reaver a noção de tempo. De Dentro da Tela No século XXI, com o advento das redes sociais e das grandes plataformas de conteúdo digital, o público e o privado se misturam e a fronteira entre os elementos perde a nitidez de outrora. Nesse contexto, empresas induzem uma forte cultura de exposição e retiram autonomia dos usuários para proveito próprio. Percebe-se, portanto, que a realidade vigente aproxima-se da apresentada em 1984, de George Orwell, na qual os cidadãos são forçados a servir um poder aparentemente superior. É fato que a ascensão das redes sociais gerou uma cultura de exposição demasiada, já que a fama momentânea ocupa lugar especial como o objetivo de muitos jovens. Nascem assim, os influenciadores digitais que, a fim de receberem patrocinadores e atenção, filmam e dramatizam suas vidas inteiras. Entretanto, esse fenômeno não é gerado espontaneamente pelo corpo usuários – é induzido pelo modo de operação das empresas envolvidas. A verdade é que as redes sociais lucram com base na apresentação de publicidade e, para isso, estão dispostas a usar dados de consumidor para apresentá-lo a mais propagandas. Portanto, o motivo da exposição é coletar informações que darão capital a uma indústria sedenta por dinheiro. Na obra Orwelliana, o regime totalitário toma para si a maioridade intelectual dos indivíduos a fim de deixá-los a mercê das arbitrariedades do Partido. Consequentemente, o cidadão só sabe e pensa o que o governo quer que ele saiba ou pense. Analogamente à distopia, as grandes plataformas de conteúdo digital ganharam o poder de privatizar a autonomia intelectual dos usuários. Esse processo ocorre mediante o uso de algoritmos para encontrar conteúdos de devem o indivíduo viciado na plataforma. Assim, o tempo também é privatizado pelas empresas, que sempre procuram melhores formas de anestesiar o ser humano frente a sua tela. Assim, o bem público da autonomia intelectual e temporal torna-se frágil e restrito. Dessa forma, é notório que p século XXI apresenta uma grande mudança entre as relações do público e o privado. Contudo, cabe à sociedade decidir se empresas tão poderosas podem existir ou se estaremos melhor sem elas. Só essa decisão pode delimitar o que é fora e o que é dentro do sujeito. A servidão do Homem Livre No livro de 1984, de George Orwell, o regime totalitário usa o seu lema – liberdade é escravidão – para justificar a opressão dos habitantes de Oceânia. Mesmo assim, a mensagem do Partido tem uma verdade muito mais fundamental: até os homens livres servem a algo. Esse ponto alude diretamente à ideologia capitalista e à dimensão existencial da humanidade e, por isso, é de grande importância para toda a sociedade. Assim, percebe-se que o processo de libertação não ocorre à partir do momento em que o sujeito faz o que quer, como pensavam os liberais clássicos. O romance Robinson Crusoé é uma obra fundamental para compreender a concepção de liberdade individualista presente no sistema capitalista. Na narrativa, um náufrago chega até uma ilha deserta e, com muito planejamento, e trabalho duro domina o ambiente em que se encontra. Da mesma forma, pensaram os liberais da época de publicação do livro, funciona a economia de mercado. Entretanto, o personagem de Daniel Defoe não precisou lidar com nenhum entrave do capitalismo real, como a posse dos meios de vida por outrem. No mundo concreto, o que se percebe como liberdade, tal qual a posse de grandes terras ou o uso de trabalho assalariado de indivíduos pauperizados, representam a escravidão de um igual. Dessa forma, a contradição de conceitos apresenta-se operante no modo de produção vigente. Ademais, a própria existência humana expõe a antítese fundamental da vida: liberdade é escravidão. Na visão existencialista, todo humano é servo submisso de si e das responsabilidades que assume durante a vida. Esse ponto alude diretamente à perversão conceitual perpetrada pelo Partido. Na obra orwelliana, o regime totalitário oprime o povo de forma que ele não possa atingir seu destino de servir a si, o que causa o mal-estar generalizado. Nesse sentido evidencia-se que o trabalho do sujeito pelo que deseja é necessário para a sua satisfação pessoal e seu desenvolvimento enquanto humano. Entretanto, a servidão ao outro exclusivamente aliena o ser de seu dever para consigo e causa seu esvaziamento. Não obstante, as litas de emancipação atuais são centradas em servir o eu – seja no caso da negritude, seja no caso do feminismo. Dessa forma, é notável que a liberdade é escravidão, apesar de não ser da forma mais imaginada pelo regime totalitário de Oceânia, portanto, para a contemplação de sociedades mais livres, resta saber se os indivíduos continuarão a servir apenas os povos das coisas e as pessoas hierarquicamente superiores, ou se começarão a serem escravos de si. Só assim, poderemos ser plenamente humanizados. O Vegetal do Sofá No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário vigente se utiliza da violência e da manipulação sistemática dos fatos para manter a população alienada. Analogamente a realidade distópica, o século XXI observa grande ascensão do obscurantismo, apesar da ausência de um Grande Irmão para punir os cidadãos. Na verdade, o distanciamento da iluminação coletiva decorre do entretenimento contemporâneo e da inadequação educacional. Assim, não podemos nos deixar chegar perto do mundo de Oceânia. Em seu livro “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury cria uma distopia na qual a população abandona a iluminação do pensar pelo conforto de assistir às telas nas paredes. Da mesma forma, a indústria cultural programas televisivos tão anestesiantes que a reflexão e o debate acerca de questões fundamentais tem se tornado cada vez mais raros. É claro que, em um mundo tão avassalador quanto o que experienciamos, o escapismo da realidade torna-se importante. Contudo, o entretenimento não deve impedir os indivíduos de investirem em seu desenvolvimento pessoal e intelectual. Dessa maneira, faz- se necessário discutir se os reality shows devem continuar a ter a mesma posição de destaque no meio social. Na obra orwelliana, o principal elemento alienante do governo é a doutrinação da população associada à extração do pensamento crítico dos indivíduos. De forma semelhante, no Brasil contemporâneo, a Escola não estimula a dúvida de ideias socialmente difusas. Esse ponto alude diretamente ao educador pernambucano Paulo Freire, que defendia a criação de um modelo educacional voltado para emancipação sociais dos oprimidos. Nesse sentido, o ensino libertador faz-se necessário para afastar os indivíduos do obscurantismo. Caso contrário, os cidadãos estarão vulneráveis às instituições e grupos que os querem enganar. Nessa perspectiva, a fuga da mentira apresenta-se como um processo ativo e que deve ser exercido a todo momento. Por conseguinte, a ideologia vigente deve ser questionada pelo bem do desenvolvimento intelectual do indivíduo. Dessa forma, é notável que o obscurantismo é um desejo induzido pela defasagem educacional e pelo entretenimento anestesiante atual. Frente a esse cenário, resta saber se a sociedade deseja se aproximar da realidade retratada por 1984, ou se prefere buscar a iluminação do pensar. Assim, um futuro brilhante depende de esforço e desenvolvimento coletivo, o que não pode ser atingido vegetando frente à televisão. Habilidades Literárias No livro “1984” de George Orwell, o regime totalitário vigente impede a apreciação de arte literária a fim de extinguira coragem moral e a compaixão na sociedade de Oceânia. Analogamente à realidade distópica apresentada, no Brasil contemporâneo, a falta de um público leitor bem desenvolvido ajuda a manter o povo em estado submisso e egoísta – dois vícios deletérios à democracia e ao republicanismo. Assim, é necessário considerar a leitura de literatura pra julgar o caráter de uma pessoa, seja ela individual ou coletiva. Em seu livro “Vidas Secas”, Graciliano Ramos nos apresenta Fabiano: um retirante nordestino pauperizado que, apesar de resistir às dificuldades do sertão, submete-se a todos os considerados superiores, Consequentemente, o sertanejo torna-se uma pessoa pouco confiável por não assumir seu propósito com a coragem moral necessária. De fato, essa covardia decorre da sua desconexão com sua interioridade, o que poderia ser mitigado pela leitura de ficção que estimulasse sua subjetividade. Da mesma forma, a coletividade brasileira mostra-se altamente submissa à autoridade. Portanto, para estabelecermos a coragem do povo, é necessário estimular a leitura de literatura a fim de gerar melhor contato entre o brasileiro e sua interioridade. Ademais, o contato íntimo com a literatura permito ao indivíduo e à comunidade, criar mais laços de empatia. Na obra orwelliana, Winston Smith sente um ódio inexplicável em relação à Júlia antes de conhecê-la. A verdade é que parte dessa pulsão de violência vem da sua capacidade limitada de se pôr no lugar do outro. Em um mundo sem romances, contos ou novelas, é impossível experienciar a vida com olhos além dos seus a fim de desenvolver qualquer compaixão com o outro. No caso do Brasil, o egoísmo é amplamente vivenciado no meio social e político. Dentre as muitas falhas da democracia brasileira, a indiferença dos encarregados do poder em relação ao povo é mais gritante. Por mais que os representantes eleitos sejam socioeconomicamente distantes da população, é preciso ser muito moralmente inapto para ver o sofrimento vigente e não fazer o máximo para extingui-lo. Desta maneira, é notório que a leitura de literatura deve ser considerada na avaliação do caráter e formação de uma pessoa. Seja ela individual ou coletiva, a necessidade por mais coragem e compaixão é essencial. Portanto, para a contemplação de uma sociedade mais apta para desafios morais, resta saber se os indivíduos entrarão em contato consigo e com o outro por meio da apreciação de arte literária. Novas sementes No livro “1984”, de George Orwell, o regime totalitário mantém a população alienada ao impedi-la de participar da produção de conhecimento e da discussão acerca de suas aplicações. Analogamente à realidade distópica, a ciência contemporânea nos apresenta com tantos dilemas e rupturas de paradigmas que, se não forem discutidos publicamente, nós não poderíamos ser chamados de democráticos. Frente a esse cenário, faz-se necessário difundir e debater tanto os problemas que advém da descoberta quanto seu impacto na coletividade. É verdade que novas descoberta são, ou podem ser, as sementes de um mundo novo. Contudo, sementes novas são justamente o centro de discussão acerca dos riscos sociais dos organismos transgênicos. Esse cenário é causado pelo alastramento de variedades geneticamente modificadas em espaços em que eram cultivados plantas não alteradas. A resolução encontrada para essa questão biológica foi a criação de um dilema socioeconômico, já que instituiu-se a dependência dos agricultores em relação às empresas criadoras de modificação por meio de venda de sementes estéreis. Assim, percebe-se que o avanço científico cria dilemas e em uma sociedade democrática, é inaceitável que os interesses não sejam publicamente debatidos. Ademais, para que o novo seja abraçado é preciso que ele chegue em todos os espaços sociais a fim de devidamente metabolizado. Na obra orwelliana, a sociedade não tem protagonismo intelectual porque recebe os saberes de uma forma unilateral do Partido e não pode contestar a credibilidade desses dados porque não tem instrumentos. Analogamente à situação ficcional, no Brasil contemporâneo, o desenvolvimento do saber é restrito por ser excludente. Quantas novidades mais iriam surgir se todos os membros da população tivessem condições mínimas de compreender os avanços da academia? Evidencia-se assim, o ponto de essencial consideração: a ruptura. A verdade é que a mudança de paradigmas é dolorosa e, sem a discussão acerca dos usos dessas ideias novas, a tendência é que as massas hesitem ou voltem-se contra a ruptura em prol do conforto passado. É notório, portanto, que a sociedade receba os instrumentos intelectuais e políticos para conhecer, debater e decidir acerca das motivações, usos e efeitos das pesquisas. Para a contemplação de uma sociedade coerente, resta saber se as sementes da novidade serão usadas para a escravização do povo ou para a sua libertação. Só assim, nós poderemos nos chamar de defensores da democracia. Inquestionável Poder Nos porões do ministério do Amor, o ícone do Partido – O’Brien – tortura Winston Smith a fim de lesionar sua mente e construir um afeto artificial pelo Grande Irmão. Essas cenas, construídas por George Orwell em “1984”, demonstram a falta que fazem os Direitos Humanos em uma sociedade. Contudo, a simples existência desses valores não tem feito o mundo mais seguro: vide a destruição das guerras e as rotas do tráfico humano. Assim, é dever dos povos da terra discutir a aplicação e a natureza desses princípios tão importantes. Na obra orwelliana, três superestados batalham pelo controle de territórios-chave para sua estratégia militar e seu desenvolvimento industrial. O real motivo, conhecido por todos os leitores, é a opressão de seus respectivos povos. Contudo, se fato se desenrolasse na contemporaneidade, bastava dizer que as invasões serviram para proteger os direitos de povos oprimidos. Essa situação hipotética alude diretamente a realidade concreta na qual nações perpetram as maiores atrocidades contra outros países sob a égide da justiça. Nesse momento, os valores que deveriam guiar a humanidades à um futuro mais brilhante tornam-se a razão de seu fracasso. É chegada a hora e que a Organização de Nações Unidas deixe justificar o mal pelo mal. Assim, percebe-se que a aplicação dos princípios definem seu efeito no planeta. Ademais, surge um questionamento fundamental acerca da natureza dos Direitos Humanos: seriam eles as leis a serem impostas ou utopias a serem seguidas? Em “O Alienista”, de Machado de Assis, o psiquiatra Simão Bacamarte aprisiona os habitantes de Itaguaí com base em critérios cada vez mais vagos. Hoje sabemos que a violência em psiquiatria é, geralmente, violência perpetrada pela psiquiatria. Frente a esse fato, devemos decidir como extinguir os manicômios – que tanto trazem o sofrimento humano. Se a carta for vista como lei, todos os hospícios devem ser fechados imediatamente. Caso o contrário, a população deve usar seu poder popular para substituir essas instituições por outras melhores gradualmente. Fica claro que os direitos universais deve ser ideais, não regras. Entretanto, os Estados Unidos mantém campos de concentração de imigrantes e os americanos não trabalham para extingui-los. Assim, tanto a concepção de regra quanto a concepção de ideal mantém Simão no poder. Dessa maneira, é notável que os Direitos Humanos têm suas limitações de aplicação e de natureza. Para a contemplação de sociedades mais justas, portanto, resta saber se esses valores serão utilizados com boa fé ou serão pervertidos por interesses diplomáticos e políticos. Só assim, a carta poderá fazer sentido para nós: o inquestionável poder do debate.