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O DRAMA

PLATÔNICO 1.
O que conta é a distância.
JOHN SALLIS O que conta é como a distância é medida, medida e dividida,
[Professor emérito da Pennsylvania contada, contada e contabilizada.
State University – EUA] Isto é o que conta no caso dos legados, por exemplo. Também
no caso da tragédia.
No Livro X da República, Sócrates aborda ambos os assuntos
em conjunto. Trata-se de uma questão do legado homérico, de reco-
nhecer este legado e ao mesmo tempo restringir a honra que lhe é
outorgada. Sócrates diz de Homero: Pois ele parece ter sido o primeiro
mestre e líder de todas estas coisas belas e trágicas. Mesmo assim, con-
tudo, um homem não deve ser honrado acima da verdade, mas, como
digo, isto deve ser contado (595c). O que – como diz Sócrates com a
força de um performativo – deve ser contado? O que deve ser con-
tado é a verdade, que deve ser honrada mesmo acima de Homero.
O que deve ser contado é a verdade acerca da tragédia, acerca do
legado da tragédia.
No momento em que está prestes a, de fato, contar esta ver-
dade, como o passo final levando a ela, Sócrates introduz uma curi-
osa descrição daqueles a quem denomina imitadores (mimhthv").
O imitador, diz ele, é aquele que está “afastado da natureza por três
graus [tou' trivtou...gennhvmato" ajpo; th'" fuvsew"]” (597e). Algo
curioso na descrição é que ela se aplica primeiramente ao imita-
dor e não diretamente ao que é gerado pela imitação, por meio da
tevcnh imitativa praticada pelo imitador. Parece que o próprio imita-
dor deve ser gerado a esta distância da natureza para, então, através
de sua mimhthv, gerar aquelas imitações que também comprovarão
estarem colocadas a tal distância. Apenas à distância, ao que parece,
pode o imitador gerar aqueles fantasmas (ei[dwla) – a saber, pin-
turas e tragédias –, que em si estão afastados com relação às obras
do verdadeiro tecnivth" e ainda mais afastados da própria natureza,

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daquilo “que é ele mesmo na natureza” (598a). Assim, a imitação então deve ser acolhida na volta do exílio ao que teria sido condenada
envolve um distanciamento duplicado da natureza, um distancia- pelas acusações de degeneração (vide 607c). Por que a hesitação?
mento tanto do imitador como da imitação produzida. Por que Sócrates mantém aberta a possibilidade de uma apologia
Há outra coisa curiosa acerca desta descrição, algo estranho através da qual a poesia – em particular, a tragédia – se redimiria?
na forma em que a distância é medida, na direção em que é contada. Só podemos suspeitar que a hesitação, que primeiro aparece com a
A geração à qual tanto o imitador quanto a imitação são submetidos mudança da imitação em geral à tragédia em particular, é ligada ao
não ocorre dentro da natureza; não é uma geração de acordo com a amor (filiva) a Homero e à vergonha ou reverência (aijdwv") perante
natureza, tal como os pais geram os filhos. É, antes, uma geração na ele que Sócrates confessa logo no início. Trata-se de uma questão do
direção contrária à da natureza (ajpo; th'" fuvsew"), uma geração que legado homérico, uma questão de permanecer-se condicionalmente,
se distancia da natureza, que coloca aquilo que é gerado a três gera- à distância, aberto a este legado.
ções da natureza. Assim, a imitação coloca em jogo uma ordem de Mas, e a respeito da verdade da tragédia? Como acontece
geração que, com respeito à natureza, é uma ordem de degeneração. com os imitadores em geral, o que conta é a distância. Tanto o
Quanto à descrição que Sócrates faz dos imitadores, e que tragediógrafo quanto a tragédia estão três graus afastados do rei e da
coloca como questão, Glauco responde: “Com toda certeza [pavnu verdade. Gerado numa ordem que o leva para longe da natureza, o
me;n ou\n]”. Com a verdade da imitação assim estabelecida, a verdade tragediógrafo fica fora da linhagem real e não pode reivindicar direi-
da tragédia agora, ao que parece, pode ser contada. Abandonando a tos ao legado, que é passado pela ordem da geração natural. Tanto o
forma interrogativa, Sócrates declara: Portanto, isto também se apli- tragediógrafo quanto a tragédia estão três graus afastados da verdade:
cará ao criador da tragédia, se for imitador; naturalmente é o terceiro, a verdade da tragédia é que esta é distante da verdade, e a verdade
depois do rei e da verdade como são todos os outros imitadores (597e). do tragediógrafo é, no máximo, uma verdade mais bem apreendida
Mesmo que Sócrates tenha contado – ou seja, declarado e não ques- à distância. Mas o que é mais notável na verdade do tragediógrafo,
tionado – a verdade da tragédia, a resposta de Glauco é mais reser- conforme relatado por Sócrates, é que esta distância, este afasta-
vada. Diz ele: “Provavelmente [kinduneuvei]” – ou, mais literalmente: mento, é algo natural, que o autor de tragédias está naturalmente
pode ser tentado, arriscado (kivnduno" significa: tentativa, risco, (pefukwv") três graus depois do rei, da verdade e, como todos os imi-
perigo). Nesta resposta há hesitação, ainda que aquilo que Sócrates tadores, da natureza. Hesita-se, portanto, em declarar simplesmente
declarou pareça ser nada mais do que uma extensão da descrição que a ordem da tragédia é a de uma degeneração da natureza. Antes,
que Glauco acabara de afirmar como bem certo; a transição para a conforme determinado por um distanciamento da natureza que é,
verdade da tragédia parece apenas exigir concordância com a decla- por sua vez, natural, através de um afastamento natural da natureza,
ração de que os tragediógrafos são imitadores. Mas a hesitação nun- o tragediógrafo e a tragédia são monstruosos. A verdade da tragédia
ca desaparece por completo: toda a discussão conclui-se mantendo é a sua monstruosidade.
aberta a possibilidade de retratação, ao insistir que se a poesia deve Tudo que Sócrates declara ou pergunta acerca do legado ho-
fornecer um lovgo" demonstrando o seu valor para existir na cidade, mérico da tragédia se situa dentro do compasso desta verdade, deste

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desvelar da tragédia. Dos vários complexos de discurso, permitam- Entretanto, a sua incredulidade se dissolve à medida que Sócrates
me extrair três que são particularmente pertinentes. explica a Glauco como ele mesmo poderia fazer todas estas coi-
No primeiro, Sócrates delineia um contraste entre o tipo de sas: você poderia produzi-las rapidamente de muitas formas e muito
caráter que se presta a uma apresentação trágica e um tipo opos- rapidamente se estiver disposto a tomar um espelho e carregá-lo consigo
to. A tragédia favorece o caráter que é irritável (ajganakthtikovn) e por toda parte; rapidamente fará o sol e as coisas no céu, rapidamente
volúvel ou multifacetado (poikivlon), já que este tipo é facilmente a terra, e rapidamente a si mesmo e os outros viventes e instrumentos
imitável e sua imitação satisfaz a multidão que freqüenta o teatro. e plantas e tudo mais que acabou de ser mencionado (596d-e). O que
Por outro lado, Sócrates fala como advogado de um outro tipo de é notável – e mesmo assim não é notado à medida que Sócrates e
caráter, alguém que ele designa como sendo adequado ou razoável Glauco se dirigem à identificação deste artesão como o imitador
(epieikhv"). Este é o tipo de caráter que, ao sofrer alguma calamidade, – é que a única outra coisa “que acabou de ser mencionada” mas
“irá suportá-la é mais facilmente do que outros” (603e). Embora al- que é omitida na passagem do espelho é “tudo no Hades debaixo
guém de tal caráter seja atraído pelo sofrimento à sua dor, o lovgo" da terra”. Mas tudo no Hades ($Aidh") está escondido sob a terra.
e a ordenação (novmo") ditarão que permaneça firme, que não ceda à Não pode ser visto pelos viventes, é invisível (ajeidhv") a eles, con-
sua dor. Assim, ele será capaz de manter a sua distância, aceitando forme sugere a assonância entre $Aidh" e ajeidhv". Em particular,
a calamidade e reconhecendo que o bem e o mal em tais coisas não as coisas do Hades não poderiam ser vistas pelo maravilhoso sofis-
são manifestos. Tal caráter prudente e quieto (to;...frovnimon te ta portador do espelho e, conseqüentemente, uma imagem destas
kai; hJsuvcion h\qo") não é facilmente imitado, nem, quando imitado, coisas não poderia ser capturada no espelho. Diferentemente de
facilmente compreendido pelo vulgo no teatro. todas as outras coisas, as coisas no Hades não se submetem à imi-
O segundo discurso aparece perto do início do Livro X, logo tação. Este reino escuro, sombrio habitado pelas almas dos mortos
após a referência a Homero e muito antes que a verdade da tragé- e inteiramente retirado dos viventes não deve ser visto e assim não
dia venha a ser dita. Trata-se do discurso através do qual Sócrates pode ser submetido à imitação. Apesar da maneira como a maior
primeiro introduz o tema da imitação e, em particular, o do imita- parte, se não a totalidade, da tragédia grega está centralizada na
dor, aquele que pratica a tevcnh da imitação (mimhtikhv). Sócrates morte, no discurso sobre a morte, o reino para o qual se passa após
fala de um certo artesão (dhmiourgov"), um que é separado de todos a morte seria – aceitando-se o exemplo de Sócrates – inteiramente
os outros. Este artesão é aquele que faz tudo que os outros artesãos resistente à representação trágica. A morte marcaria o limite da
fazem separadamente. Sócrates entra em detalhes: este artesão tragédia; e mesmo que as palavras do poeta invoquem as sombras
Não só é capaz de fabricar todos os instrumentos, como também de pro- do Hades (como no Livro 23 da Odisséia), estas sombras ainda as-
duzir tudo aquilo que cresce naturalmente da terra, e produz todos os sim se retiram para além do limite da representação trágica. Se,
viventes, os outros e a si próprio e, além disto, produz a terra e o céu e os como Sócrates disse, a tragédia lida apenas com fantasmas, os seus
deuses e tudo no céu e tudo no Hades debaixo da terra (596c). Glauco fantasmas não fazem qualquer contato com aqueles que são ditos
exclama acerca deste “maravilhoso sofista” de quem Sócrates fala. habitar o submundo.

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O terceiro discurso, perto do fim de toda a discussão, le- e quieto diante de um evento que evocaria o páthos trágico no cora-
vanta por um breve momento a questão da comédia. Sócrates se ção dos outros. Mas é também uma encenação que não prescinde
refere a uma certa tendência ao riso que está dentro de cada um de inteiramente do riso e da comédia.
nós, mas que suprimimos por medo de sermos reputados bufões;
o caso do riso guarda estreito paralelo, neste caso, ao do homem 2.
razoável, de quem Sócrates falou anteriormente, aquele capaz de O Fédon possui toda a predisposição a ser tragédia, e Sócrates, retra-
manter a sua distância – isto é, de suprimir – para com a preocupa- tado ao encarar a morte a que fora condenado pelo seu conflito com
ção com a dor. Mas agora, o argumento de Sócrates é que quando a Atenas, possui todo o potencial de ser figura trágica. Não menos, ao
tendência ao riso anteriormente suprimida é liberada, então a pes- que parece, que Antígone e sua heroína no seu conflito com Creonte,
soa passa a deixar-se levar por questões domésticas, deixar-se levar um conflito entre família e cidade, entre o oi\ko" e novmo", economia
por questões domiciliares (ejn toi'" oijkeivoi"), e então se torna um e direito.
poeta cômico. Apesar do tom de censura nesta passagem, Sócrates E no entanto, o Fédon não chega a ser tragédia, nem é o
não diz que não se deve deixar ser assim levado; tampouco chama Sócrates do Fédon simplesmente uma figura trágica.
a atenção para a direcionalidade peculiar desse movimento cômico, Mesmo antes de Fédon narrar a Equécrates a história do úl-
que envolve ser levado de si mesmo de uma forma que o engaja timo dia de Sócrates, ele começa, com efeito, diferenciando a história
precisamente no que é o seu próprio, em seu domicílio. De fato, da tragédia. Fala do maravilhoso páthos que sentiu na presença dos
não seria de se esperar que Sócrates condenasse tal riso extático, eventos daquele dia, e comenta, em especial, que “nenhuma dó me
considerando-se precisamente que, em um ponto bem anterior na sobrepujou, mesmo estando eu presente à morte de um homem que
República, quando a discussão voltava-se para as mulheres e crian- era meu companheiro” (58e). Todavia, a dó (e[leo") é precisamente
ças, os próprios Sócrates e Glauco foram levados para a encenação aquilo – de acordo com o relato de Sócrates na República (vide 606a-
de uma comédia.1 b) – que é evocado pelas cenas típicas do drama trágico. Se parece,
Basta para o momento notar uma coisa realizada por estes então, que Fédon, ao testemunhar os eventos, estava agindo mais
três discursos ligados ao ato de dizer a verdade da tragédia. Estes dis- como o homem razoável, aquele que permanece prudente e quie-
cursos esboçam a figura de outra verdade disposta de forma oblíqua, to diante da calamidade, isso fica ainda mais aparente no caso do
à distância da monstruosidade da tragédia. Trata-se da figura de próprio Sócrates, não apenas no momento em que bebe o favrmakon,
uma encenação posta no limiar da morte, de uma encenação feita mas no decorrer de toda a conversa, na orientação da conversa para
por alguém capaz de manter a sua distância frente à calamidade que que ela espante o pavor da morte.
está por vir, alguém capaz de permanecer quase razoável, prudente Prestes a iniciar a narração da história, Fédon recorda tam-
bém a condição mista em que todos os presentes se encontravam.
1. Vide John Sallis. Being e Logos: Reading the Platonic Dialogues. 3rd ed. (Bloomington: Indiana
Estavam, diz Fédon, “às vezes rindo, às vezes pranteando” (59a).
University Press, 1996), 371-78. Aquele era um páthos maravilhoso, não apenas o páthos da tragédia.

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No Fédon, também, o que conta é a distância. A narração suas causas e, em vez disto, refugia-se nos lovgoi, “busca neles a
de Fédon da conversa que ocorreu na cela de Sócrates na prisão, no verdade dos entes” (99e). Assim, a forma do Fédon, a de um lovgo"
dia da sua morte, é colocada a uma distância do evento em si. Fédon colocado a uma distância das coisas de que fala, se encaixa perfeita-
narra a história para Equécrates na cidade de Fliunte, uma cidade mente na figura da segunda partida que é desenhada no ponto alto
pequena e um tanto isolada no Peloponeso, uma cidade notória por do diálogo.
ter sido um centro do pitagorismo. Ademais, o lovgo" de Fédon – e O mesmo tipo de distanciamento, das coisas para o lovgo",
de fato o do próprio Fédon – é colocado a uma distância temporal é levado a cabo na cena retratada pela narrativa de Fédon, a cena do
dos eventos que narra. Já que Fédon estivera presente quando da último dia de Sócrates. É este distanciamento que efetua a diferen-
ocorrência destes eventos, terá passado pelo menos o tempo – sem ciação decisiva entre aquela cena e uma de tragédia.
dúvida, considerável – necessário para a sua viagem de Atenas ao No início do diálogo, tão logo Equécrates tenha averiguado
Peloponeso e para atravessar as altas montanhas que cercam a cida- que Fédon estivera presente no último dia de Sócrates, pergunta:
de de Fliunte. “Bem, então o que foi que o homem disse antes da sua morte? E como
Assim, Fédon fala destes eventos à distância. Além da con- morreu?” (57a). Assim, Fédon deve relatar dois aspectos da cena: o
versa inicial entre Fédon e Equécrates, praticamente o Fédon inteiro de Sócrates abordando e encontrando a sua morte, passando pelo
consiste da narrativa de Fédon acerca do último dia de Sócrates. As páthos de tal evento; e os discursos que Sócrates profere antes da sua
duas ocasiões, em que a narrativa é interrompida e o diálogo com morte, precisamente ao passar por aquele páthos. Depois de Fédon
Equécrates é retomado (88c-89a, l02a), servem precisamente como ter explicado a Equécrates como a execução fora adiada por causa da
lembretes de que a narrativa, o lovgo" de Fédon, está distanciada embaixada a Delos (outra das muitas partidas que povoam o Fédon),
dos eventos de que ele fala. Estas duas interrupções servem também Equécrates faz a mesma pergunta outra vez, antecipando-se à narra-
para delimitar o lovgo" com o qual o diálogo alcança, em termos do tiva de Fédon: “O que aconteceu na sua morte, Fédon? Que coisas
seu significado filosófico, o seu apogeu. No intervalo entre as inter- foram ditas e feitas?” (58c).
rupções, Sócrates apresenta dois lovgoi em prol do lovgo", primeira- Numa tragédia, também, como no Fédon, tanto há coisas
mente uma defesa contra a misologia, e então, de forma mais signi- feitas como coisas ditas. A figura trágica vive perpassada pelo con-
ficativa, um discurso sobre como veio a filosofar como faz, sobre flito e sofre a aproximação da morte efetuada pelo conflito. A figura
como veio a lançar – como ele o denomina – a sua segunda partida. trágica também – de fato e acima de tudo – fala e é principalmente
Ao lançar a sua segunda partida – como na ausência do vento os através do que é dito que o páthos se torna manifesto. Contudo, é
marinheiros lançam mão dos remos –, Sócrates executa a virada precisamente a expressividade do discurso trágico que torna tudo
decisiva através da qual um novo começo é inaugurado. Neste lance distinto. É o discurso que expressa o páthos trágico, um discurso
ele dá as costas às coisas, distancia-se delas, e faz isto precisamente que expõe o sofrimento de tal forma a emprestá-lo uma intensidade
voltando-se para os lovgoi, recorrendo a estes. Na sua segunda par- evidente e evocar, portanto, um páthos correspondente naqueles que
tida ele abre mão de investigar diretamente as coisas bem como as testemunham a cena trágica.

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