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A Revoada
Gabriel García Márquez
A REVOADA
romance
SERPENTE
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EMPLUMADA
QUETZAL EDITORES
A Revoada
SERPENTE
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EMPLUMADA
Gabriel García Márquez
A Revoada
Tradução de António Gonçalves
Quetzal Editores
Lisboa / 1989
(De Antígona)
De súbito, como se um remoinho se tivesse instalado no centro da
aldeia, chegou a companhia bananeira, perseguida pela revoada. Era
uma revoada tumultuosa, alvoroçada, formada pelos detritos humanos e
materiais das outras aldeias; resquícios de uma guerra civil que cada
vez mais parecia remota e inverosímil. A revoada era implacável.
Contaminava tudo com o seu revolto cheiro a gente, cheiro a secreções
à flor da pele e a morte recôndita. Em menos de um ano, arremessou
sobre a aldeia os escombros de numerosas catástrofes anteriores a ela
própria, espalhou pelas ruas a sua confusa carga de detritos. E esses
detritos, precipitadamente, ao ritmo convulso e imprevisto da
tormenta, iam-se seleccionando, individualizando, até converterem o
que foi uma ruela com um rio numa ponta e um recinto para os mortos na
outra, numa aldeia diferente e confusa, feita com os detritos das
outras aldeias.
Sempre julguei que os mortos deviam ter chapéu. Agora vejo que não.
Vejo que têm a cabeça rígida e um lenço amarrado ao maxilar. Vejo que
têm a boca um pouco aberta e que se vêem, por detrás dos lábios roxos,
os dentes manchados e irregulares. Vejo que têm a língua mordida de
lado, grossa e pastosa, um pouco mais escura do que a cor da cara, que
é como a dos dedos quando os apertamos com uma corda. Vejo que têm os
olhos abertos, muito mais do que os de um homem, ansiosos e
desorbitados, e que a pele parece ser de terra compacta e húmida.
Julguei que um morto parecia uma pessoa tranquila e adormecida, e
agora vejo que é precisamente o contrário. Vejo que parece uma pessoa
viva e irritada depois de uma discussão.
Desde então, por muito que me esforce por não olhar para ele, é como
se alguém me virasse a cara para aquele lado. E, apesar de fazer
esforços para olhar para outras partes da sala, continuo a vê-lo, em
todos os la-dos, com os olhos desorbita-dos e a cara verde e morta na
escuridão.
Não sei porque não veio ninguém ao enterro. Viemos nós, o meu avô, a
mamã e os quatro guajiros 1 que trabalham para o meu avô. Os homens
trouxeram um saco de cal e esvaziaram-no dentro do caixão. Se a minha
mãe não estivesse estranha e
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1 Índios da península de Gnajira, no nordeste da Colômbia (N' do
T')
distraída, perguntava-lhe porque é que fazem isso. Não entendo porque
é que têm que deitar cal dentro da urna. Quando o saco ficou vazio, um
dos homens sacudiu-o sobre o caixão e ainda caíram umas últimas
aparas, mais parecidas com serradura do que com cal. Levantaram o
morto pelos ombros e pelos pés. Tem umas calças ordinárias, presas à
cintura por uma correia larga e preta, e uma camisa cinzenta. Só tem
calçado o sapato esquerdo. Está, como diz Ada 2, com um pé rei e
outro escravo. O sapato direito está caído a uma ponta da cama.
Deitado, o morto parecia desconfortável. No caixão parece mais cómodo,
mais tranquilo, e o rosto, que
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2 Diminutivo de Adelaida (N' do T')
era o de um homem vivo e acordado depois de uma discussão, adquiriu
uma expressão repousada e firme. O perfil tornou-se suave; e é como se
ali, na urna, se sentisse já no lugar que lhe correspondia como morto.
Abraão, penso.
Não devia ter trazido a criança. Não lhe faz bem este espectáculo. A
mim própria, que vou fazer trinta anos, perturba-me este ambiente
rarefeito devido à presença do cadáver. Pode-ríamos sair agora.
Podería-mos dizer ao papá que não nos sentimos bem num quarto em que
se acumularam, durante dezassete anos, os resíduos de um homem
alheado de tudo o que possa ser considerado como afecto ou gratidão.
Talvez tenha sido o meu pai a única pessoa que sentiu por ele alguma
simpatia. Uma inexplicável simpatia que agora lhe vale para não
apodrecer dentro destas quatro paredes.
Também por isso devia ter deixado a criança em casa; para não a
comprometer nesta maquinação que agora se cevará em nós, como antes
fez com o médico durante dez anos. A criança devia ter permanecido à
margem deste compromisso. Nem sequer sabe porque está aqui, porque é
que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece
silenciosa, perplexa, como se esperasse que alguém lhe explique o
significado de tudo isto; como se aguardasse, sentada, baloiçando as
pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esta
espantosa charada. Quero ter a certeza de que ninguém o fará; de que
ninguém abrirá essa porta invisível que a impede de ultrapassar os
limites dos seus sentidos.
Olhou para mim várias vezes e sei que me achou estranha, desconhecida,
com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser
identificada, nem sequer pelos meus próprios pressentimentos.
Se Meme estivesse viva, aqui nesta casa, talvez fosse diferente.
Poderia julgar-se que vim por ela. Poderia julgar-se que vim para
partilhar uma dor que ela não teria sentido, mas que teria podido
aparentar, e que a aldeia teria podido compreender. Meme desapareceu
há cerca de onze anos. A morte do médico põe fim à possibilidade de
conhecer o seu paradeiro, ou, pelo me-nos, o paradeiro dos seus ossos.
Meme não está aqui, mas é provável que, se cá estivesse - se não
tivesse acontecido o que aconteceu, e que nunca se conseguiu
esclarecer -, se tivesse posto do lado da aldeia contra o homem que
durante seis anos lhe aqueceu a cama com tanto amor e tanta compaixão
como teria podido fazê-lo um jumento.
Ouço apitar o comboio na última curva. São duas e meia, penso; e não
consigo afastar a ideia de que a esta hora toda a Macondo está
suspensa do que fazemos nesta casa. Penso na senhora Rebeca, magra e
encarquilhada, com algo de fantasma doméstico no olhar e no vestir,
sentada ao pé da ventoinha eléctrica e com a sombra das redes das
suas janelas no rosto. Enquanto ouve o comboio que se perde na última
curva, a senhora Rebeca inclina a cabeça para a ventoinha,
atormenta-da pela temperatura e pelo ressentimento, com as velas do
seu coração girando como as pás da ventoinha (mas em sentido inverso),
e murmura: «Aqui anda a mão do diabo»; e estremece, ligada à vida
pelas minúsculas raízes do quotidiano. E Agueda, a tolhida, vendo
Solita que regressa da estação, onde foi despe-dir-se do noivo,
vendo-a abrir a sombrinha ao dobrar a esquina deserta, sentindo-a
aproximar-se com o regozijo sexual que ela própria sentira outrora e
que se transformou nessa paciente doença religiosa que a faz dizer:
«Hás-de chafurdar na cama como um porco no seu esterqueiro.»
Não consigo ver-me livre desta ideia. Não quero pensar que são duas e
meia; que passa a mula do correio envolta numa poeirada abrasadora,
seguida pelos homens que interromperam a sesta da quarta-feira para
receber o maço dos jornais. O padre Angel, sentado, dorme na
sacristia, com um breviário aberto sobre a barriga gordurosa, ouvindo
passar a mula do correio, sacudindo as moscas que lhe apoquentam o
sono, arrotando, dizendo: «Envenenas-me com as tuas almôndegas.»
O papá tem sangue-frio para isto tudo. Até para mandar destapar o
caixão e pôr lá dentro o sapato esquecido em cima da cama. Só ele era
capaz de se interessar pela grosseria deste homem. Não me
surpreenderia que, quando sairmos com o caixão, a multidão esteja à
porta à nossa espera com os excrementos acumulados durante a noite e
nos dê um banho de imundícies por ir-mos contra a vontade da aldeia.
Talvez não o façam por se tratar do papá. Talvez o façam por se tratar
de algo tão indigno como sonegar à aldeia um prazer prolongadamente
almejado, imaginado durante muitas tardes sufocantes, de cada vez que
os homens e as mulheres passavam por esta casa e diziam de si para si:
«Mais tarde ou mais cedo havemos de almoçar com esse cheiro.» Porque
era o que todos diziam, da primeira à última casa.
A verdade é que Meme não está nesta casa e ninguém seria capaz de
dizer com exactidão quando deixou de estar. Vi-a pela última vez há
onze anos. Ainda tinha nesta esquina a taberna que as exigências dos
aldeãos foram modificando insensivelmente até a converterem numa
miscelânea. Tudo muito ordenado, muito arrumado pela escrupulosa e
metódica aplicação de Meme, que passava os dias a costurar para os
aldeãos numa das quatro Domestic que havia então na aldeia, atrás do
balcão, atendendo a clientela com aquela simpatia que nunca deixou de
ter e que era ao mesmo tempo aberta e reservada: uma complexa mistura
de ingenuidade e des-confiança.
Eu deixara de ver Meme desde que saiu de nossa casa, mas a verdade é
que já não seria capaz de dizer com exactidão quando é que ela veio
viver para a casa de esquina com o médico, nem como pôde ser indigna
ao ponto de se transformar na mulher de um homem que lhe negou os seus
serviços, apesar de ambos partilharem a casa de meu pai, ela como
filha adoptiva e ele como hóspede permanente. Soube pela minha
madrasta que o médico era um homem de mau carácter, que tivera uma
longa discussão com o papá para o convencer de que o mal de Meme não
se revestia de qualquer gravidade. E disse-o sem a ter visto, sem
sequer ter saído do quarto. Fosse como fosse, mesmo que a guajira não
tivesse mais do que um achaque passageiro, devia tê-la assistido,
mais que não fosse pela consideração com que foi tratado em nossa casa
durante os oito anos em que nela viveu.
Não sei como se passaram as coisas. Sei que uma bela manhã Meme já não
estava em casa, e ele também não. Então a minha madrasta mandou
fechar o quarto e não voltou a falar dele até há doze anos, quando
costurávamos o meu vestido de noiva.
Passou algum tempo antes de eu saber que Meme tinha vindo viver como
concubina do médico. Nessa altura a taberna já estava aberta e ela
continuava a assistir à missa como uma perfeita senhora da melhor
sociedade, sem se importar com o que se dizia ou pensava, como se se
tivesse esquecido do que acontecera no primeiro domingo. Todavia,
passados dois meses não voltámos a vê-la na igreja.
Eu recordava o médico em nossa casa. Recordava o seu bigode preto e
retorcido e a sua maneira de olhar as mulheres com os seus lascivos e
ávidos olhos de cão. Mas lembro-me de que nunca me aproximei dele,
talvez porque o visse como um animal estranho que se sentava à mesa
depois de todos se terem levantado e que se alimentava com a mesma
erva que alimenta os burros. Até à doença do papá, há três anos, o
médico não saíra desta casa de esquina uma única vez, depois da noite
em que negou assistência aos feridos, da mesma maneira que seis anos
antes a negara à mulher que dois dias mais tarde seria sua concubina.
O tasco fechou antes de a aldeia ter ditado a sentença ao médico. Mas
sei que Meme continuou a viver aqui, vários meses ou anos depois de
ter fechado a loja. Foi com certeza muito mais tarde que desapareceu,
ou pelo menos que se soube que tinha desaparecido, porque assim o
dizia o panfleto que apareceu nesta porta. De acordo com esse
panfleto, o médico assassinara a sua amante e enterrara-a na horta por
recear que a aldeia se servisse dela para o envenenar. Mas eu tinha
visto Meme antes do meu casamento. Há onze anos, quando voltava do
terço, a guajira chegou à porta da loja e disse-me, com o seu arzinho
alegre e um tanto irónico: «Menina, vais-te casar e não me dizias
nada.»
«Pois», digo-lhe, «a coisa deve ter sido assim.» Então estico a corda,
onde numa das pontas se vê ainda a carne viva das suas fibras
recém-cortadas à faca. Dou outra vez o nó que os meus homens cortaram
para tirar o corpo e atiro uma das pontas por cima da viga, até deixar
a corda suspensa, firme, com força suficiente para proporcionar muitas
mortes iguais à deste homem. Enquanto se abana com o chapéu, o rosto
transtornado pela sufocação e pela aguar-dente, a olhar para a corda,
calculando a sua força, ele diz: «É impossível que uma corda tão
delgada tenha aguentado o corpo dele.» E eu digo-lhe: «Essa corda é a
mesma que aguentou com ele na rede durante muitos anos.» E ele puxa
uma cadeira, entrega-me o chapéu e pendura-se a pulso na corda, com o
rosto congestionado pelo esforço. Depois torna a ficar de pé em cima
da cadeira, a olhar para a ponta caída. Diz: «É impossível. Essa corda
não chega para me dar a volta ao pescoço.» E então compreendo que é
deliberadamente ilógico, que está a inventar pretextos para impedir o
enterro.
Tenho a certeza que foi assim. E ele sabe-o, mas pretende ganhar
tempo, com medo de criar compromissos. Vê-se-lhe a cobardia pelo modo
de andar de um lado para o outro, sem direcção precisa. Uma cobardia
dupla e contraditória: para impedir a cerimónia e para a autorizar.
Então, quando chega ao pé do caixão, roda sobre os calcanhares, olha
para mim e diz: «Tinha de o ver pendurado para me convencer.»
Eu tê-lo-ia feito. Te-ria autorizado os meus homens a abrirem o caixão
e a voltarem a pendurar o enforcado, como esteve até há pouco. Mas
seria de mais para a minha filha. Seria de mais para a criança, que
ela não devia ter trazido. Se não me repugnasse tratar assim um morto,
ultrajar a carne indefesa, perturbar o homem pela primeira vez
tranquilo dentro do seu casulo, se o facto de tocar num cadáver que
repousa se-rena e merecidamente no seu caixão não fosse contra os meus
princípios, mandá-lo-ia pendurar de novo, para saber até onde é que
este homem é capaz de chegar. Mas é impossível. E digo-lhe: «Pode
estar certo de que não darei essa ordem. Se quiser, pendure-o o
senhor mesmo e assuma a responsabilidade do que acontecer. Lembre-se
de que não sabemos há quanto tempo está morto.»
Ele não se mexeu. Está ainda ao pé do caixão, a olhar para mim; olha
depois para Isabel e depois para a criança e a seguir outra vez para o
caixão. De repente, a sua expressão torna-se sombria e ameaçadora.
Diz: «O senhor não ignora o que pode acontecer-lhe por isto.» E
compreendo então até que ponto a sua ameaça é verdadeira. Digo-lhe:
«Claro que não. Sou uma pessoa responsável.» E ele, agora com os
braços cruzados, suando, avançando para mim com movimentos estudados e
cómicos que pretendem ser ameaçadores, diz: «Poderia perguntar-lhe
como é que soube que este homem se tinha enforcado ontem à noite.»
Espero que chegue ao pé de mim. Permaneço imóvel, a olhar para ele,
até que a sua respiração quente e áspera me atinge no rosto; até que
ele se detém, ainda com os braços cruzados, abanando o chapéu por
detrás da axila. Então digo-lhe: «Quando me fizer essa pergunta
oficialmente, terei muito gosto em responder-lhe.» Continua à minha
frente, na mesma posição. Quando lhe falo, não há nele surpresa nem
perturbação. Diz: «Claro, coronel. Estou a perguntar-lho
oficialmente.» Estou disposto a dar-lhe a corda toda. Tenho a certeza
de que, por muitas voltas que ele tente dar-lhe, terá de ceder perante
uma atitude férrea, embora paciente e tranquila. Digo- -lhe: «Estes
homens tiraram o corpo porque eu não podia permitir que continuasse
ali, pendurado, até o senhor se decidir a vir cá. Há duas horas que
lhe disse que viesse e o senhor demorou todo este tempo para andar
dois quarteirões.»
Continua imóvel. Estou em frente dele, apoiado na bengala,
ligeiramente inclinado para a frente. Digo: «Além disso era meu
amigo.» Antes de eu acabar de falar, ele sorri ironicamente, mas sem
mudar de posição, atirando-me ao rosto o seu hálito espesso e ácido.
Diz: «É a coisa mais simples do mundo, não?» E subitamente deixa de
sorrir: «Portanto, o senhor sabia que este homem se ia enforcar.»
Meme trouxera um prato com bolos e dois pãezinhos salgados dos que
tinha aprendido a fazer com a minha mãe. O relógio dera as nove. Meme
estava sentada diante de mim, nas traseiras da loja, e comia sem
apetite, como se os bolos e os pãezinhos não passassem de uma maneira
de prolongar a visita. Eu assim o entendia, e deixava-a perder-se nos
seus labirintos, afundar-se no passado com aquele entusiasmo
nostálgico e triste que a fazia parecer, à luz do candeeiro que se
consumia em cima do balcão, muito mais enxovalhada e envelhecida do
que no dia em que entrou na igreja de chapéu e saltos altos. Era
evidente que naquela noite Meme desejava recordar. E, enquanto o
fazia, dava a impressão de que durante os anos anteriores tinha ficado
parada numa única idade estática e sem tempo, e que naquela noite, ao
recordar, punha de novo em marcha o seu tempo pessoal e começava a
sofrer o seu longamente diferido processo de envelhecimento.
«Cachorro, Cachorrito.»
Este homem chegou pois a nossa casa no mesmo dia e quase à mesma hora
que El Cachorro a Macondo. O primeiro pela estrada principal,
quando ninguém o esperava nem fazia a menor ideia do seu nome ou da
sua profissão; o pároco pelo atalho, quando toda a aldeia o aguardava
na estrada principal.
Eu voltei para casa a seguir à recepção. Acabáva-mos de nos sentar à
mesa - um pouco mais tarde que de costume - quando Meme se aproximou
para me dizer: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à
sua procura.» Eu disse-lhe: «Manda-o entrar.» E Meme disse: «Está no
escritório e diz que precisa de falar consigo com urgência.» Adelaida
parou de dar a sopa a Isabel (naquele tempo ela não tinha mais de
cinco anos) e foi receber o recém-chegado. Voltou daí a pouco,
visivelmente preocupada:
Saiu de trás das silvas, a abotoar as calças. Olhou para cima, para
onde a ando-rinha continuava a traçar círculos, e, ainda sem me
responder, disse:
Se este homem que saiu para ir conversar com o meu avô na outra sala
não demorar muito, pode ser que cheguemos a casa antes das quatro.
Então irei ao rio com Abraão.
Ficou a viver em nossa casa. Ocupou um dos quartos da galeria, o que
dá para a rua, porque eu assim achei conveniente; porque sabia que um
homem do seu carácter não arranjaria maneira de estar à vontade no
hotelzinho da aldeia. Pôs um aviso na porta (até há poucos anos,
quando caiaram a casa, ainda estava no seu lugar, escrito a lápis por
ele próprio, em letra cursiva), e na semana seguinte foi preciso
arranjar mais cadeiras, para satisfazer as exigências de uma numerosa
clientela.
Meme não se mexeu. Tentou rir, mas não pôde, e voltou-se para
Adelaida. Então ela, sorrindo também, mas visivelmente desconcertada,
perguntou-lhe: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua
parcimoniosa voz de ruminante:
Agora o caixão está fechado, mas recordo a cara do morto. Fixei-a com
tanta precisão que, se olho para a parede vejo os olhos abertos, as
bochechas caídas e cinzentas como a terra húmida, a língua mordida a
um lado da boca. Isto produz-me uma forte sensação de intranquilidade.
Talvez as calças nunca deixem de me apertar de um lado da perna.
O meu avô sentou-se ao pé da minha mãe. Quando voltou da sala ao lado
puxou uma cadeira, e agora permanece aqui, sentado ao pé de-la, sem
dizer nada, o queixo apoiado na bengala e a perna coxa esticada para a
frente. O meu avô espera. A minha mãe, como ele, espera. Os homens,
que deixaram de fumar na cama e permanecem quietos, compostos, sem
olhar para o caixão, também eles esperam.
Se me vendassem os olhos, se me pegassem na mão e me dessem vinte
voltas pela aldeia e me voltassem a trazer a este quarto,
reconhecê-lo-ia pelo cheiro. Nunca esquecerei que esta sala cheira a
detritos, a baús amontoados, apesar de só ter visto um baú, no qual eu
e Abraão nos poderíamos esconder e ainda sobraria espaço para Tobias.
Conheço as salas pelo cheiro.
O ano passado, Ada tinha-me sentado ao colo. Eu tinha os olhos
fechados e via-a através das pestanas. Via-a indistinta, como se não
fosse uma mulher mas apenas um rosto que olhava para mim e se
baloiçava e balia como uma ovelha. Estava a começar a adormecer
completamente, quando senti o cheiro.
Não há em casa um cheiro que eu não reconheça. Quando me deixam
sozinho na galeria, fecho os olhos, estendo os braços e ando. Penso:
Quando sentir um cheiro a rum canforado, estarei no quarto do meu
avô. Continuo a andar, com os olhos fechados e os braços estendidos.
Penso: Agora vou passar pelo quarto da minha mãe, porque cheira a
baralhos novos. A seguir há-de cheirar a alcatrão e a bolinhas de
naftalina. Continuo a andar e sinto o cheiro a baralhos novos no
preciso instante em que oiço a voz da minha mãe, cantando no quarto.
Então sinto o cheiro a alcatrão e a bolinhas de naftalina. Penso:
Agora continuará a cheirar a bolinhas de naftalina. Depois viro para
a esquerda do cheiro e hei-de sentir o outro cheiro, a roupa branca e
a janela fechada. Aí, paro. A seguir, depois de dar três passos,
sinto o no-vo cheiro e fico quieto, com os olhos fechados e os braços
estendidos, e oiço a voz de Ada, que grita: «Menino, lá estás tu a
andar de olhos fechados.»
Não seria preciso ter dezassete anos (como eu tinha então) para
reparar - desde que vi Meme aperaltada na igreja, e depois, quando
falei com ela na ta-berna - que em nossa casa o quartinho que dava
para a rua estava fechado. Mais tarde soube que a minha madrasta o
fechara a cadeado e não consentia que se tocasse nas coisas que lá
estavam dentro: a cama que o médico usou até comprar a rede; a
mesinha dos medicamentos, da qual não trouxe para a casa de esquina
senão o dinheiro acumulado durante os seus melhores anos (que devia
ser muito, porque nunca teve gastos em casa e chegou para Meme abrir
a taberna); e além disso, por entre um montão de detritos e jornais
velhos escritos no seu idioma, a bacia e algumas roupas pessoais
imprestáveis. Era como se todas aquelas coisas estivessem
contaminadas pelo que a minha madrasta considerava uma natureza
maléfica, completamente diabólica.
«Há cinco anos», disse, «ainda ali estava, fechado como um animal.
Porque não era só isso: um animal, mas qualquer coisa mais: um
animal herbívoro, um ruminante como qualquer boi de junta. Se se
tivesse casado com a filha do barbeiro, com a mosquinha morta que
fez a aldeia acreditar nessa grande mentira de que tinha concebido
depois de uma duvidosa lua-de-mel com os espíritos, é possível que
nada disto tivesse acontecido. Mas deixou de ir à barbearia
intempestivamente, e até apresentou uma transformação de última hora
que não passava de um novo capítulo na realização metódica do seu
espantoso plano. Só ao teu pai é que lhe pôde passar pela cabeça que
depois disso, sendo um homem de tão baixos costumes, pudesse
permanecer em nossa casa, vivendo como um animal, escandalizando a
aldeia, dando motivos para que se falasse de nós como de quem
pratica um permanente desafio à moral e aos bons costumes. O que
ele estava a planear ha-via de culminar com a mudança de Meme. Mas o
teu pai nem sequer reconheceu as alarmantes proporções do seu erro.»
«Não sabia nada disso», disse. As cigarras faziam uma barulheira no
pátio. A minha madrasta falava, sem deixar de coser, sem levantar a
vista do bastidor sobre o qual estava a gravar símbolos, a bordar
labirintos brancos. Dizia: «Nessa noite estávamos sentados à mesa
(todos menos ele, porque desde a tarde em que voltou pela última vez
da barbearia que não tomava a refeição da noite), quando Meme nos
veio servir. Estava alterada. \«Que tens, Meme?»', perguntei-lhe.
\«Nada, senhora. Porquê?»' Mas sabíamos que não estava bem, porque
vacilava junto do candeeiro e toda ela tinha um aspecto doentio.
\«Por amor de Deus, Meme, tu não estás bem»', disse eu. E ela lá se
aguentava nas pernas, como lhe era possível, até que se voltou na
direcção da cozinha, com a bandeja na mão. Então o teu pai, que não
parava de a observar, disse-lhe: \«Se não se sente bem, que se
deite.»' E ela não disse nada. Continuou com a bandeja na mão, de
costas para nós, até que sentimos o estrépito da louça a fazer-se em
cacos. Meme estava na varanda, agarrando-se à parede com as unhas.
Foi então que o teu pai o foi chamar a esse quarto, para que se
ocupasse de Meme.
Em oito anos de estadia em nossa casa», dizia a minha madrasta,
«nunca tínha-mos solicitado os seus serviços para nada de grave.
Nós, as mulheres, fomos ao quarto de Meme, friccioná-mo-la com
álcool, e esperámos que o teu pai voltasse. Mas não vieram, Isabel.
Não veio ver Meme, apesar de o homem que o alimentou durante oito
anos, que lhe deu cama e roupa lavada, o ter ido chamar
pessoalmente. Cada vez que me lembro disso, penso que a sua chegada
foi um castigo de Deus. Penso que toda essa erva que lhe demos
durante oito anos, todos esses cuidados, toda essa solicitude foram
uma prova de Deus para nos dar uma lição de prudência e desconfiança
do mundo. Era como se tivéssemos pegado em oito anos de
hospitalidade, de comida, de roupa limpa, e os tivéssemos atirado
aos porcos. Meme estava a morrer (pelo menos era o que nós
julgávamos) e ele, ali mesmo, continuava fechado, negando-se a
praticar o que já não era uma obra de caridade, mas de decência, de
gratidão, de simples consideração para com os seus protectores.
Só dois dias depois», dizia, «é que soube que o outro se tinha ido
embora de madrugada e nem sequer tivera a decência de se despedir.
Tinha entrado sem dizer água vem e oito anos depois saía sem dizer
água vai, sem se despedir, sem dizer nada. Tal qual como teria feito
um ladrão. Pensei que o teu pai o tinha mandado embora por se ter
negado a tratar Meme. Mas quando lho perguntei, nesse mesmo dia,
limitou-se a responder: \«Tu e eu temos muito que conversar sobre
isso.»' E já lá vão cinco anos, e até hoje não voltou a tocar-me no
assunto.
Só com o teu pai e numa casa desordenada como esta, em que cada qual
faz o que muito bem entende, é que podia acontecer uma coisa assim.
Em Macondo não se falava de outra coisa e ainda eu ignorava que
Meme se tinha apresentado na igreja, enfeitada como uma qualquer
armada em senhora, e que o teu pai tinha tido o descaramento de a
levar de braço dado pela praça. Foi então que soube que não estava
tão longe como eu julgava, e que vivia na casa da esquina com o
médico. Tinham ido viver juntos, como dois porcos, sem passarem
sequer pela porta da igreja, apesar de ela ser baptizada. Um dia
disse ao teu pai: \«Deus há-de castigar esta heresia.»' E ele não
disse nada. Continuava a ser o mesmo homem tranquilo de sempre,
depois de ter apadrinhado o concubinato público e o escândalo.
Ele olhou para mim. O cabelo caía-lhe sobre a testa e todo ele ardia
numa espécie de sufocação interior, mas o seu semblante não
apresentava qualquer sombra de emoção ou desordem. Disse,
inteiramente recuperada a sua parcimoniosa voz de ruminante:
«Mas não lhe provoca te-mor uma noite como esta? Não tem a sensação
de que há um homem maior do que todos caminhando pelas plantações,
enquanto tudo se imobiliza e todas as coisas parecem estáticas à
passagem do homem?»
«Creio que não sou ateu, coronel. O que acontece é que me perturba
tanto pensar que Deus existe como pensar que não existe. Por isso
prefiro não pensar nisso.»
«E o senhor, nunca pensou como seria bom para si ter uma filha?»
«Eu não, coronel», disse. E sorriu, mas tornou logo a pôr-se sério.
«Os meus filhos não seriam como os seus.»
Então não me restou a menor sombra de dúvida: ele falava a sério, e
aquela seriedade, aquela situação pareceram-me espantosas. Pensava:
É mais digno de lástima por isto do que por tudo o resto. Tinha de
ser protegido.
«O senhor ouviu falar de El Cachorro?», perguntei-lhe.
«Mas é que então ela estava disposta a tudo. Agora não. Há dois
meses disse-me que estava outra vez prenhe, e eu disse-lhe o mesmo
que da primeira vez: vem ter comigo logo à noite, para te preparar a
mesma coisa. Ela disse-me nesse dia que nessa altura não, que no dia
seguinte. Quando fui tomar o café à cozinha, disse-lhe que estava à
espera dela, mas ela disse que nunca mais voltaria.»
Tinha chegado ao pé do catre, mas não se sentou. Virou-me de novo as
costas e iniciou outra volta pelo quarto. Eu ouvia-o falar. Sentia a
sua voz ir e vir, como se falasse comigo enquanto se embalava na
rede. Dizia as coisas com calma, mas com segurança. Eu sabia que
teria sido inútil tentar interrompê-lo. Limitava-me a ouvi-lo. E ele
dizia:
E ele disse:
«Não quero provocar-lhe nenhum incómodo, coronel. Creia-me. O que
lhe ia dizer era isto: vou viver com a guajira para a casa que está
desocupada na esquina.»
«Em concubinato público, doutor», disse eu. «Sabe o que isso
significa para nós?»
Voltou ao catre. Sentou-se, inclinou-se para a frente e falou com
os coto-velos apoiados nas pernas. O seu tom tornou-se diferente. Ao
princípio era frio. Agora começava a ser cruel e desafiador. Disse:
«Pode ter a certeza absoluta de que Meme não o diria. Por ter a
certeza disso lhe digo que irei com ela para a casa da esquina, só
para lhe evitar complicações a si. Apenas por isso, coronel.»
Tal era a segurança com que se tinha atrevido a negar que Meme
pudesse atribuir-lhe a paternidade do seu filho, que me senti, então
sim, transtornado. Qualquer coisa me fazia pensar que a sua força
tinha raízes muito mais fundas do que as palavras. Disse:
E ele respondeu, mais uma vez com aquela amarga dureza na voz:
«Tenho. E quando lhe digo que ela não pode dizer que sou o pai do
seu filho, também tenho motivos para isso.»
«Se o senhor tivesse tempo para vigiar Meme quando ela sai de noite,
nem sequer me exigiria que a levasse comigo. Neste caso, quem corre
o risco sou eu, coronel. Carrego com as culpas para evitar
transtornos.»
Então compreendi que não entraria nunca com Meme pela porta da
igreja. Mas o grave é que, depois das suas últimas palavras, eu não
me teria arriscado a assumir o que mais tarde poderia vir a ser um
tremendo peso na consciência. Havia vários trunfos a meu favor. Mas o
único que ele tinha bastava-lhe para fazer uma aposta contra a minha
consciência.
Seis meses antes, uma manhã, apareceu um panfleto pregado nas portas
desta casa. Ninguém se interessou por ele e aqui esteve prega-do
durante muito tempo, até que os chuviscos finais la-varam as letras
ininteligíveis, e o papel desapareceu, arrastado pelos últimos
ventos de Fevereiro. Mas em fins de 1918, quando a proximidade das
eleições fez o governo pensar na necessidade de manter desperta ou
ex-citada a tensão dos seus eleitores, alguém falou às novas
autoridades deste médico solitário, de cuja existência há muito
ninguém poderia dar testemunho verídico. Devem ter-lhes dito que
durante os primeiros anos a índia que vivia com ele esteve à frente
de uma taberna que conheceu a mesma prosperidade que naqueles
tempos favoreceu até as mais insignificantes actividades de Macondo.
Um dia (ninguém se lembra em que data, nem sequer em que ano), a
porta da loja não se abriu. Supunha-se que Meme e o médico
continuavam a viver aqui, fechados, alimentando-se com os legumes
que eles próprios cultivavam no quintal. Mas no panfleto que
apareceu nesta esquina dizia-se que o médico assassinara a sua
amante e a sepultara na horta, por recear que a aldeia se servisse
de-la para o envenenar. O inexplicável é que se dissesse isso numa
época em que ninguém teria motivos para tramar a morte do médico.
Parece-me que as autoridades se tinham esquecido da sua existência,
até àquele ano em que o governo reforçou a polícia e a guarda-fiscal
com homens da sua confiança. Então desenterrou-se a remota lenda do
panfleto e as autoridades arrombaram estas portas, revistaram a
casa, cavaram o pátio e sondaram a fossa, tentando localizar o
cadáver de Meme. Mas não encontraram nem rasto dela.
ESTA tarde foi terrível em nossa casa. Ainda que para mim não
fosse uma surpresa a notícia da sua morte, pois desde há tempos que
a esperava, não podia imaginar que ela produzisse semelhantes
trans-tornos em minha casa. Alguém tinha de me acompanhar a este
enterro, e eu pensava que esse acompanhante seria a minha mulher,
sobretudo depois da minha doença, há três anos, e daquela tarde em
que ela encontrou a bengalinha com festão de prata e a
bailarinazinha de corda, quando revistava as gavetas da minha
secretária. Creio que por aquela época nos tínhamos esquecido do
brinquedo. Mas naquela tarde pusemos a funcionar o mecanismo e a
bailarinazinha dançou como noutros tempos, animada pela música que
antes era festiva e que depois do longo silêncio na gaveta soava
taciturna e nostálgica. Adelaida via-a dançar e recordava. A seguir
voltou-se para mim, com o olhar humedecido por uma tristeza simples:
«Está na casa da esquina», disse eu. «Um dia destes morre, e vamos
ter de o enterrar.»
E ela respondeu: «Era ele que nos devia a nós. Não fez mais, ao
salvar-te a vida, do que saldar uma dívida de oito anos de cama,
mesa e roupa lavada.»
Talvez a sua gratidão venha dessa altura. Desde que caiu de bruços
na varanda, dizendo que era como se o tivessem empurrado de uma
torre, os dois últimos médicos que restavam em Macondo
aconselharam-nos a que o preparássemos para uma boa morte. Recordo-o
no quinto dia de prostração, diminuído entre os lençóis; recordo o
seu corpo mirrado, como o corpo de El Cachorro, que no ano
anterior fora conduzido ao cemitério por todos os habitantes de
Macondo, numa densa e comovida procissão de flores. Dentro do
caixão, a sua imponência tinha o mesmo fundo de irremediável e
desconsolado abandono que eu via no rosto do meu pai naqueles dias
em que o quarto se encheu com a sua voz e falou daquele estranho
militar que apareceu uma noite, na guerra de 85, no acampamento do
coronel Aureliano Buendía, com o chapéu e as botas enfeitadas com
peles e dentes e unhas de tigre, e lhe perguntaram: «Quem é o
senhor?» E o estranho militar não respondeu. E disseram-lhe: «De
onde vem?» E mais uma vez não respondeu. E perguntaram-lhe: «De que
lado combate?» E mais uma vez não obtiveram resposta alguma do
militar desconhecido, até que a ordenança pegou num tição e lho
aproximou do rosto e o examinou por um instante e exclamou,
estupefacto: «Merda! É o duque de Marlborough!»
Ao dirigir-me para a cama, para dizer aos meus homens que abram a
porta, penso: Deve estar a chegar de um momento para o outro.
«Tudo isso é certo, coronel. Mas não se esqueça que um morto não
poderia enterrar-me.»
«Cataure», oiço'''
SERPENTE
,,,,,,,,,,,,,,
EMPLUMADA