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A Revoada

Gabriel García Márquez

A Revoada
Gabriel García Márquez

A REVOADA

romance
SERPENTE
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EMPLUMADA

QUETZAL EDITORES
A Revoada

SERPENTE
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EMPLUMADA
Gabriel García Márquez

A Revoada
Tradução de António Gonçalves

Quetzal Editores
Lisboa / 1989

Título da edição original:


«La Hojarasca»
A primeira edição desta obra foi publicada por Publicações
Europa-América com o título
O Enterro do Diabo

E quanto ao cadáver do infeliz Polinices, o édito proíbe que o


enterrem ou o chorem. Que o deixem insepulto, sem lágrimas, um
banquete de carne à mercê das ávidas aves de rapina. O bom Creonte!
Foi isto que mandou anunciar-nos, a ti e a mim; sim, também a mim. E
em breve ele próprio virá aqui, para o anunciar aos que ainda o não
saibam. A ameaça não é pequena: o castigo dos transgressores será a
morte por lapidação na praça pública.

(De Antígona)
De súbito, como se um remoinho se tivesse instalado no centro da
aldeia, chegou a companhia bananeira, perseguida pela revoada. Era
uma revoada tumultuosa, alvoroçada, formada pelos detritos humanos e
materiais das outras aldeias; resquícios de uma guerra civil que cada
vez mais parecia remota e inverosímil. A revoada era implacável.
Contaminava tudo com o seu revolto cheiro a gente, cheiro a secreções
à flor da pele e a morte recôndita. Em menos de um ano, arremessou
sobre a aldeia os escombros de numerosas catástrofes anteriores a ela
própria, espalhou pelas ruas a sua confusa carga de detritos. E esses
detritos, precipitadamente, ao ritmo convulso e imprevisto da
tormenta, iam-se seleccionando, individualizando, até converterem o
que foi uma ruela com um rio numa ponta e um recinto para os mortos na
outra, numa aldeia diferente e confusa, feita com os detritos das
outras aldeias.

A ela chegaram, confundidos com a revoada humana, arrastados pela sua


impetuosa força, os detritos dos armazéns, dos hospitais, dos salões
de festas, das centrais eléctricas; detritos de mulheres sozinhas e de
homens que amarravam a mula a um poste do hotel, trazendo como única
bagagem um baú de madeira ou uma trouxa de roupa, e daí a poucos meses
tinham casa própria, duas concubinas e o título militar que lhes
ficaram a dever por terem chegado tarde à guerra.
Até os detritos do amor triste das cidades nos chegaram na revoada, e
construíram pequenas casas de madeira, e fizeram primeiro um recanto
onde meio catre era o sombrio lar para uma noite, e depois uma ruidosa
rua clandestina, e depois toda uma aldeia de tolerância dentro da
aldeia.

No meio daquele venda-val, daquela tempestade de caras desconhecidas,


de tendas na via pública, de homens mudando de roupa na rua, de
mulheres sentadas nos baús com os chapéus-de-sol abertos, e de mulas e
mulas abandonadas, a morrerem à fome na cavalariça do hotel, nós, os
primeiros, éramos os últimos; éramos os forasteiros, os intrusos.

A seguir à guerra, quando chegámos a Macondo e apreciámos a qualidade


do seu solo, soubemos que alguma vez havia de chegar a revoada, mas
não contávamos com o seu ímpeto. Por isso, quando sentimos chegar a
avalancha, a única coisa que pudemos fazer foi pôr o pra-to com o
garfo e a faca atrás da porta e sentar-nos pacientemente à espera que
os recém-chegados nos conhecessem. Então, pela primeira vez, o
comboio apitou. A revoada alvoroçou-se e saiu para o receber e, com o
alvoroço, perdeu o balanço, mas adquiriu unidade e solidez; e sofreu
o natural pro-cesso de fermentação e incorporou-se aos gérmens da
terra.
(Macondo, 1909)
1.

PELA primeira vez vi um cadáver. É quarta-feira, mas é como se fosse


domingo, porque não fui à escola e vestiram-me este fato de bombazina
verde que me fica apertado. Pela mão da mamã, seguindo o meu avô, que
tacteia com a bengala a cada passo para não tropeçar nas coisas (não
vê bem na penumbra e coxeia), passei em frente do espelho da sala e
vime de corpo inteiro, vestido de verde e com este laço branco
engomado que me aperta de um lado do pescoço. Vi-me na redonda lua
manchada e pensei: Aquele sou eu, como se hoje fosse domingo.

Viemos à casa onde está o morto.


O calor é sufocante na sala fechada. Ouve-se o zumbido do sol pelas
ruas, mas nada mais. O ar é denso e concreto; dá a impressão de que
seria possível torcê-lo, como a uma lâmina de aço. Na sala onde
puseram o cadáver cheira a baús, mas não os vejo em parte nenhuma. Há
uma rede no canto, suspensa da argola por uma das pontas. Há um cheiro
a detritos. E creio que as coisas arruinadas e quase desfeitas que nos
rodeiam têm o aspecto das coisas que devem cheirar a detritos, embora
realmente tenham outro cheiro.

Sempre julguei que os mortos deviam ter chapéu. Agora vejo que não.
Vejo que têm a cabeça rígida e um lenço amarrado ao maxilar. Vejo que
têm a boca um pouco aberta e que se vêem, por detrás dos lábios roxos,
os dentes manchados e irregulares. Vejo que têm a língua mordida de
lado, grossa e pastosa, um pouco mais escura do que a cor da cara, que
é como a dos dedos quando os apertamos com uma corda. Vejo que têm os
olhos abertos, muito mais do que os de um homem, ansiosos e
desorbitados, e que a pele parece ser de terra compacta e húmida.
Julguei que um morto parecia uma pessoa tranquila e adormecida, e
agora vejo que é precisamente o contrário. Vejo que parece uma pessoa
viva e irritada depois de uma discussão.

A mamã também se vestiu como se fosse domingo. Pôs o antigo chapéu de


palha que lhe cobre as orelhas e um vestido preto, fechado em cima,
com mangas até aos punhos. Como hoje é quarta-feira, vejo-a distante,
desconhecida, e tenho a impressão de que me quer dizer alguma coisa
enquanto o meu avô se levanta para receber os homens que trouxeram o
caixão. A mamã está sentada a meu lado, de costas para a janela
fechada. Respira custosamente e a cada instante compõe os fios de
cabelo que lhe caem por baixo do chapéu posto à pressa. O meu avô
ordenou aos homens que pusessem o caixão ao pé da cama. Só então me
dei conta de que o morto cabe de facto dentro dele. Quando os homens
trouxeram a urna, tive a impressão de que era demasiado pequena para
um corpo que ocupa todo o comprimento da cama.
Não sei porque é que me trouxeram. Nunca tinha entrado nesta casa, e
até julguei que estava desabitada. É uma casa grande, de esquina,
cujas portas, creio, nunca foram abertas. Sempre julguei que a casa
estivesse desocupada. Só agora, depois de a mamã me dizer: «Esta tarde
não vais à escola», e eu não sentir alegria porque mo disse com voz
grave e reservada, e de a ver regressar com o meu fato de bombazina e
mo vestir sem falar e irmos até à porta ter com o meu avô, e de
passarmos pelas três casas que separam esta da nossa, só agora me dei
conta de que vivia alguém nesta casa de esquina. Alguém que morreu e
que deve ser o homem a quem a minha mãe se referiu quando me disse:
«Tens de estar com muito juízo no enterro do doutor.» Ao entrar não vi
o morto. Vi o meu avô à porta, a falar com os homens, e vi-o depois a
mandar-nos entrar. Julguei então que havia alguém na sala, mas ao
entrar senti-a escura e vazia. O calor atingiu-me o rosto desde o
primeiro momento, e senti este cheiro a detritos que a princípio era
sólido e permanente e que agora, como o calor, chega em ondas
espaçadas e desaparece. A mamã levou-me pela mão através da sala
escura e sentou-me a seu lado, a um canto. Só passado algum tempo
comecei a distinguir as coisas. Vi o meu avô tentando abrir uma janela
que parece ter os bordos colados, soldados ao aro, e vi-o às bengaladas
à aldraba, com o casaco cheio de pó que se soltava a cada pancada.
Virei a cara para onde o meu avô se dirigiu quando se declarou incapaz
de abrir a janela e só então vi que havia alguém na cama. Havia um
homem desconhecido, esticado, imóvel. Então virei a cabeça para o lado
da mamã, que permanecia distante e séria, a olhar para outra parte da
sala. Como os meus pés não chegam ao chão e ficam suspensos no ar, a
um palmo do soalho, pus as mãos debaixo das coxas, as palmas apoiadas
no assento, e comecei a baloiçar as pernas, sem pensar em nada, até
que me lembrei do que a mamã me tinha dito: «Tens de estar com muito
juízo no enterro do doutor.» Então senti uma coisa fria, atrás de mim,
voltei a olhar e apenas vi a parede de madeira seca e gretada. Mas foi
como se alguém me tivesse dito da parede: «Não mexas as pernas, que o
homem que está na cama é o médico e está morto.» E quando olhei para a
cama já não o vi como antes. Já não o vi deitado, mas sim morto.

Desde então, por muito que me esforce por não olhar para ele, é como
se alguém me virasse a cara para aquele lado. E, apesar de fazer
esforços para olhar para outras partes da sala, continuo a vê-lo, em
todos os la-dos, com os olhos desorbita-dos e a cara verde e morta na
escuridão.
Não sei porque não veio ninguém ao enterro. Viemos nós, o meu avô, a
mamã e os quatro guajiros 1 que trabalham para o meu avô. Os homens
trouxeram um saco de cal e esvaziaram-no dentro do caixão. Se a minha
mãe não estivesse estranha e
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1 Índios da península de Gnajira, no nordeste da Colômbia (N' do
T')
distraída, perguntava-lhe porque é que fazem isso. Não entendo porque
é que têm que deitar cal dentro da urna. Quando o saco ficou vazio, um
dos homens sacudiu-o sobre o caixão e ainda caíram umas últimas
aparas, mais parecidas com serradura do que com cal. Levantaram o
morto pelos ombros e pelos pés. Tem umas calças ordinárias, presas à
cintura por uma correia larga e preta, e uma camisa cinzenta. Só tem
calçado o sapato esquerdo. Está, como diz Ada 2, com um pé rei e
outro escravo. O sapato direito está caído a uma ponta da cama.
Deitado, o morto parecia desconfortável. No caixão parece mais cómodo,
mais tranquilo, e o rosto, que

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2 Diminutivo de Adelaida (N' do T')
era o de um homem vivo e acordado depois de uma discussão, adquiriu
uma expressão repousada e firme. O perfil tornou-se suave; e é como se
ali, na urna, se sentisse já no lugar que lhe correspondia como morto.

O meu avô andou de um lado para o outro na sala. Apanhou alguns


objectos e colocou-os na urna. Volto a olhar para a mamã com a
esperança de que me diga porque é que o meu avô está a deitar coisas
no caixão. Mas a minha mãe permanece imperturbável dentro do vestido
preto e parece esforçar-se por não olhar para o sítio onde está o
morto. Eu também quero não olhar, mas não consigo. Olho para ele
fixamente, examino-o. O meu avô põe um livro dentro do caixão, faz um
sinal aos homens, e três deles colocam a tampa sobre o cadáver. Só
então me sinto liberto das mãos que me viravam a cabeça para aquele
lado e começo a examinar a sala.
Volto a olhar para a minha mãe. Ela, pela primeira vez desde que aqui
chegámos, olha para mim e sorri com um sorriso forçado, sem nada
dentro; e oiço ao longe o apito do comboio que se per-de na última
curva. Sinto um ruído no canto onde está o cadáver. Vejo que um dos
homens levanta uma extremidade da tampa e que o meu avô introduz no
caixão o sapato do morto, o que estava esquecido em cima da cama. O
comboio volta a apitar, cada vez mais distante, e de repente penso:
São duas e meia. E lembro-me de que a esta hora (enquanto o comboio
apita na última curva da aldeia) os rapazes formam filas na escola
para assistirem à primeira aula da tarde.

Abraão, penso.

Não devia ter trazido a criança. Não lhe faz bem este espectáculo. A
mim própria, que vou fazer trinta anos, perturba-me este ambiente
rarefeito devido à presença do cadáver. Pode-ríamos sair agora.
Podería-mos dizer ao papá que não nos sentimos bem num quarto em que
se acumularam, durante dezassete anos, os resíduos de um homem
alheado de tudo o que possa ser considerado como afecto ou gratidão.
Talvez tenha sido o meu pai a única pessoa que sentiu por ele alguma
simpatia. Uma inexplicável simpatia que agora lhe vale para não
apodrecer dentro destas quatro paredes.

Preocupa-me o ridículo que há em tudo isto. Inquieta-me a ideia de


sairmos à rua, daqui a pouco, seguindo um caixão que a ninguém
inspirará um sentimento de compaixão. Imagino a expressão das mulheres
às janelas, vendo passar o meu pai, vendo-me passar com a criança
atrás de uma urna mortuária em cujo interior vai apodrecendo a única
pessoa a quem a aldeia tinha querido ver assim, conduzida ao cemitério
no meio de um implacável abandono, seguida pelas três pessoas que
decidiram fazer a obra de misericórdia que há-de ser o princípio da
sua própria vergonha. É possível que esta decisão do papá seja a causa
de que amanhã não se encontre ninguém disposto a seguir o nosso
enterro.

Talvez por isso tenha trazido a criança. Quando o papá me disse, há


pouco: «Tem de me acompanhar», a primeira coisa que me ocorreu foi
trazer também a criança, para me sentir protegida. Agora estamos
aqui, nesta sufocante tarde de Setembro, sentindo que as coisas que
nos rodeiam são os agentes impiedosos dos nossos inimigos. O papá não
tem com que se preocupar. Na realidade, passou a vida a fazer coisas
como esta; fazendo a aldeia morder o pó, cumprindo os seus mais
insignificantes compromissos de costas voltadas a todas as
conveniências. Há vinte e cinco anos, quando este homem chegou a nossa
casa, o papá devia ter suposto (ao dar-se conta dos modos absurdos do
visitante) que hoje não haveria na aldeia nem uma pessoa disposta
sequer a atirar o cadáver aos galináceos. Talvez o papá tivesse
previsto todos os obstáculos, medido e calculado os possíveis
inconvenientes. E agora, vinte e cinco anos depois, deve sentir que
isto é apenas o cumprimento de uma tarefa longamente premeditada, que
teria levado a cabo de qualquer modo, ainda que tivesse de arrastar
ele próprio o cadáver pelas ruas de Macondo.
Todavia, chegada a hora, não teve coragem para o fazer sozinho, e
obrigou-me a participar nesse intolerável compromisso que deve ter
as-sumido muito antes de eu ter chegado ao uso da razão. Quando me
disse: «Tem de me acompanhar», não me deu tempo para pensar nas
consequências das suas palavras; não pude calcular quanto há de
ridículo e impudico em enterrar um homem que toda a gente tinha
esperado ver transformado em pó dentro do seu covil. Porque o povo não
só tinha esperado isso, como se havia preparado para que as coisas
acontecessem desse modo, e tinham-no esperado de coração, sem
remorsos, e até com a satisfação antecipada de algum dia virem a
sentir o gostoso cheiro da sua decomposição flutuando na aldeia, sem
que ninguém se sentisse comovi-do, alarmado ou escandalizado, antes
satisfeito por ver chegar a hora almejada, desejando que a situação se
prolongasse até o tortuoso cheiro do morto saciar mesmo os mais
recônditos ressentimentos.

Agora privaremos Macondo de um prazer longamente esperado. É como se,


de certa maneira, esta nossa decisão fizesse nascer no coração do povo
não o melancólico sentimento de uma frustração mas o de um adiamento.

Também por isso devia ter deixado a criança em casa; para não a
comprometer nesta maquinação que agora se cevará em nós, como antes
fez com o médico durante dez anos. A criança devia ter permanecido à
margem deste compromisso. Nem sequer sabe porque está aqui, porque é
que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece
silenciosa, perplexa, como se esperasse que alguém lhe explique o
significado de tudo isto; como se aguardasse, sentada, baloiçando as
pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esta
espantosa charada. Quero ter a certeza de que ninguém o fará; de que
ninguém abrirá essa porta invisível que a impede de ultrapassar os
limites dos seus sentidos.
Olhou para mim várias vezes e sei que me achou estranha, desconhecida,
com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser
identificada, nem sequer pelos meus próprios pressentimentos.
Se Meme estivesse viva, aqui nesta casa, talvez fosse diferente.
Poderia julgar-se que vim por ela. Poderia julgar-se que vim para
partilhar uma dor que ela não teria sentido, mas que teria podido
aparentar, e que a aldeia teria podido compreender. Meme desapareceu
há cerca de onze anos. A morte do médico põe fim à possibilidade de
conhecer o seu paradeiro, ou, pelo me-nos, o paradeiro dos seus ossos.
Meme não está aqui, mas é provável que, se cá estivesse - se não
tivesse acontecido o que aconteceu, e que nunca se conseguiu
esclarecer -, se tivesse posto do lado da aldeia contra o homem que
durante seis anos lhe aqueceu a cama com tanto amor e tanta compaixão
como teria podido fazê-lo um jumento.

Ouço apitar o comboio na última curva. São duas e meia, penso; e não
consigo afastar a ideia de que a esta hora toda a Macondo está
suspensa do que fazemos nesta casa. Penso na senhora Rebeca, magra e
encarquilhada, com algo de fantasma doméstico no olhar e no vestir,
sentada ao pé da ventoinha eléctrica e com a sombra das redes das
suas janelas no rosto. Enquanto ouve o comboio que se perde na última
curva, a senhora Rebeca inclina a cabeça para a ventoinha,
atormenta-da pela temperatura e pelo ressentimento, com as velas do
seu coração girando como as pás da ventoinha (mas em sentido inverso),
e murmura: «Aqui anda a mão do diabo»; e estremece, ligada à vida
pelas minúsculas raízes do quotidiano. E Agueda, a tolhida, vendo
Solita que regressa da estação, onde foi despe-dir-se do noivo,
vendo-a abrir a sombrinha ao dobrar a esquina deserta, sentindo-a
aproximar-se com o regozijo sexual que ela própria sentira outrora e
que se transformou nessa paciente doença religiosa que a faz dizer:
«Hás-de chafurdar na cama como um porco no seu esterqueiro.»
Não consigo ver-me livre desta ideia. Não quero pensar que são duas e
meia; que passa a mula do correio envolta numa poeirada abrasadora,
seguida pelos homens que interromperam a sesta da quarta-feira para
receber o maço dos jornais. O padre Angel, sentado, dorme na
sacristia, com um breviário aberto sobre a barriga gordurosa, ouvindo
passar a mula do correio, sacudindo as moscas que lhe apoquentam o
sono, arrotando, dizendo: «Envenenas-me com as tuas almôndegas.»
O papá tem sangue-frio para isto tudo. Até para mandar destapar o
caixão e pôr lá dentro o sapato esquecido em cima da cama. Só ele era
capaz de se interessar pela grosseria deste homem. Não me
surpreenderia que, quando sairmos com o caixão, a multidão esteja à
porta à nossa espera com os excrementos acumulados durante a noite e
nos dê um banho de imundícies por ir-mos contra a vontade da aldeia.
Talvez não o façam por se tratar do papá. Talvez o façam por se tratar
de algo tão indigno como sonegar à aldeia um prazer prolongadamente
almejado, imaginado durante muitas tardes sufocantes, de cada vez que
os homens e as mulheres passavam por esta casa e diziam de si para si:
«Mais tarde ou mais cedo havemos de almoçar com esse cheiro.» Porque
era o que todos diziam, da primeira à última casa.

Daqui a pouco serão três da tarde. A Señorita já sabe. A senhora


Rebeca viu-a passar e chamou-a, invisível por detrás da rede, saiu por
um momento da órbita da ventoinha e disse-lhe: «Señorita, é o diabo,
a senhora sabe'''» E amanhã já não será o meu filho que irá à escola,
mas sim outra criança completamente diferente; uma criança que há-de
crescer, reproduzir-se e morrer, por fim, sem que ninguém tenha para
com ela uma dívida de gratidão que a torne merecedora de um enterro
cristão.

Eu estaria agora em casa, tranquila, se há vinte e cinco anos este


homem não tivesse vindo ter com o meu pai, com uma carta de
recomendação que nunca ninguém soube donde veio, e tivesse ficado
connosco, alimentando-se de erva e olhando para as mulheres com
aqueles olhos ávidos de cão que lhe saltaram das órbitas. Mas o meu
castigo já estava escrito quando nasci, e permanecera oculto,
reprimido, até este fatal ano bissexto em que havia de fazer trinta de
nascida e o meu pai me diria: «Tem de me acompanhar.» E depois, sem me
dar tempo de perguntar nada, batendo com a bengala no chão: «Temos de
sair disto seja como for, filha. O doutor enforcou-se esta madrugada.»

Os homens saíram e regressaram à sala com um martelo e uma caixa de


pregos. Mas não pregaram o caixão. Puseram as coisas em cima da mesa e
sentaram-se na cama onde estivera o morto. O meu avô parece tranquilo,
mas a sua tranquilidade é imperfeita e desesperada. Não é a
tranquilidade do cadáver no caixão, mas sim a do homem impaciente que
se esforça por não o parecer. É uma tranquilidade inquieta e ansiosa,
a do meu avô, que dá voltas pela sala, coxeando, removendo os
objectos amontoados.
Quando descubro que há moscas na sala, começa a torturar-me a ideia de
que o caixão ficou cheio de mos-cas. Ainda não o pregaram, mas
parece-me que este zumbido, que a princípio confundi com o rumor de
uma ventoinha eléctrica na vizinhança, é o tropel das moscas batendo,
cegas, contra as paredes do caixão e a cara do morto. Sacudo a cabeça,
fecho os olhos; vejo o meu avô abrir um baú e tirar de lá coisas que
não consigo distinguir; vejo em cima da cama as quatro brasas sem
ninguém dos cigarros acesos. Acossado pelo calor sufocante, pelos
minutos que não passam, pelo zumbido das moscas, é como se alguém me
dissesse: «Hás-de estar assim. Hás-de estar dentro de um caixão cheio
de moscas. Ainda não fizeste onze anos, mas um dia hás-de estar assim,
abandonado às moscas dentro de uma urna fechada.» E estico as pernas
juntas, e vejo as minhas próprias botas pretas e lustrosas. Tenho um
atacador solto, penso, e volto a olhar para a mamã. Ela também olha
para mim e inclina-se para me apertar o atacador da bota.

O bafo que se desprende da cabeça da mamã, quente e a cheirar a


armário fechado, a madeira adormecida, volta a recordar-me a clausura
do caixão. A respiração torna-se-me difícil, quero sair daqui; quero
respirar o ar abrasado da rua, e lanço mão ao meu último recurso.
Quando a mamã se endireita, digo-lhe em voz baixa: «Mamã!» Ela sorri,
diz: «Ah.» E eu, inclinando-me para ela, para o seu rosto austero e
brilhante, tremendo: «Preciso de ir lá atrás.»
A mamã chama o meu avô, diz-lhe qualquer coisa. Vejo os seus olhos
miúdos e imóveis por trás das lentes, quando se aproxima e me diz:
«Pois saiba que agora é impossível.» Estico-me e depois permaneço
quieto, indiferente ao meu fracasso. Mas as coisas acontecem de novo
com demasiada lentidão. Houve um movimento rápido, outro e outro. E
depois outra vez a mamã inclinada sobre o meu ombro, dizendo: «Já te
passou?» E di-lo com voz séria e concreta, como se, mais do que uma
pergunta, fosse uma recriminação. Tenho a barriga seca e dura, mas a
pergunta da mamã amolece-a, deixa-a cheia e relaxada, e então tudo,
até a sua seriedade, se me torna agressivo, desafiador. «Não»,
digo-lhe. «Ainda não passou.» Aperto o estômago e tento bater com os
pés no chão (outro recurso extremo), mas em baixo só encontro o
vazio, a distância que me separa do chão.
Entra alguém na sala. É um dos homens do meu avô, seguido por um
agente da polícia e por um homem que também veste calças de cotim
verde, usa revólver no cinto e segura na mão um chapéu de aba larga e
revirada. O meu avô avança para o receber. O homem das calças verdes
tosse na escuridão, diz qualquer coisa ao meu avô, volta a tossir e,
tossindo ainda, ordena ao agente que force a janela.

As paredes de madeira são de aparência frágil. Parecem construídas com


cinza fria e amassada. Quando o agente bate na aldraba com a coronha
da espingarda, tenho a impressão de que as portadas não se abrirão. A
casa virá abaixo, desmoronadas as paredes, mas sem estrépito, como
ruiria no ar um palácio de cinzas. Creio que a uma segunda pancada
ficaremos na rua, em pleno sol, sentados, com a cabeça coberta de
escombros. Mas à segunda pancada a janela abre-se e a luz penetra na
sala; irrompe violentamente, como quando se abre a porta a um animal
sem direcção, que corre e fareja, mudo; que se enfurece e arranha as
paredes, espumando, e volta depois a deitar-se, pacífico, no canto
mais fresco da jaula.
Quando a janela se abre, as coisas tornam-se visíveis, mas
consolidam-se na sua estranha irrealidade. Então a mamã respira fundo,
estende-me as mãos e diz-me: «Anda, vamos à janela ver a casa.» E, dos
seus braços, vejo outra vez a aldeia, como se a ela regressasse depois
de uma viagem. Vejo a nossa casa desbotada e arruinada, mas fresca
sob as amendoeiras; e, daqui, é como se nunca tivesse estado dentro
dessa frescura verde e cordial, como se a nossa casa fosse a perfeita
casa imaginária prometida pela minha mãe nas minhas noites de
pesadelos. E vejo Pepe passar sem nos ver, distraído. O rapazinho da
casa do lado, que passa a assobiar, transformado e desconhecido, como
se acabasse de cortar o cabelo.

Então o alcaide levanta-se, de camisa aberta, suado, a expressão


completamente transtornada. Aproxima-se de mim, congestionado pela
exaltação que o seu próprio argumento lhe produz. «Não podemos
garantir que esteja morto enquanto não começar a cheirar mal», diz, e
acaba de abotoar a camisa e acende um cigarro, o rosto de novo virado
para o caixão, pensando talvez: Agora não podem dizer que estou fora
da lei. Olho-o nos olhos e sinto que olhei para ele com a firmeza
necessária para lhe dar a entender que penetro até ao mais fundo dos
seus pensamentos. Digo-lhe: «O senhor está a pôr-se fora da lei para
agradar aos outros.» E ele, como se tivesse sido exactamente isso que
esperava ouvir, responde: «O senhor é um homem respeitável, coronel.
O senhor sabe que estou no meu direito.» E eu digo-lhe: «O senhor
sabe melhor do que ninguém que ele está morto.» E ele diz: «É certo,
mas afinal de contas eu não passo de um funcionário. A única coisa
legal seria a certidão de óbito.» E eu digo-lhe: «Se a lei está do seu
lado, aproveite-a para arranjar um médico que passe a certidão de
óbito.» E ele, com a cabeça levantada, mas sem arrogância, mas também
calmamente, mas sem o mais ligeiro assomo de fraqueza ou desconcerto,
diz: «O senhor é uma pessoa respeitável e sabe que, isso sim, seria
uma arbitrariedade.» Ao ouvi-lo, compreendo que não está tão
imbecilizado pela aguardente como pela cobardia.

Apercebo-me agora de que o alcaide partilha dos rancores da aldeia. É


um sentimento alimentado ao longo de dez anos, desde aquela noite
tormentosa em que trouxeram os feridos à porta e lhe gritaram (porque
não abriu; falou de dentro): «Doutor, trate estes feridos que os
outros médicos já não dão vazão», gritaram-lhe, ainda sem abrir
(por-que a porta permaneceu fechada, os feridos deitados em frente
dela): «O senhor é o único médico que nos resta. Tem de fazer uma obra
de caridade»; e ele respondeu (e tão-pouco então a porta se abriu),
imaginado pela multidão no meio da sala, de candeeiro levantado, os
duros olhos amarelos iluminados: «Esqueceu-me tudo o que sabia disso.
Levem-nos a outro lado», e continuou (porque desde então a porta
nunca mais se abriu) com a porta fechada, enquanto o rancor crescia,
se ramificava, se transformava numa virulência colectiva, que não
daria tréguas a Macondo até ao resto da sua vida, para que em cada
ouvi-do continuasse a ressoar a sentença - gritada nessa noite - que
condenou o médico a apodrecer por detrás destas paredes.
Passaram ainda dez anos sem que bebesse a água da aldeia, acossado
pelo temor de que estivesse envenenada, alimentando-se com os legumes
que ele e a sua concubina índia semeavam no pátio. Agora a aldeia
sente chegar a hora de lhe negar a piedade que ele há dez anos negou
à aldeia, e Macondo, que o sabe morto (porque todos de-vem ter
acordado esta manhã um pouco mais aliviados), prepara-se para
desfrutar este prazer esperado, que todos consideram merecido. Apenas
desejam sentir o cheiro a decomposição orgânica através das portas
que não se abriram daquela vez.

Agora começo a acreditar que o meu compromisso de nada valerá contra a


ferocidade de uma aldeia e que estou encurralado, cercado pelos ódios
e pela impenitência de um bando de ressentidos. Até a Igreja encontrou
maneira de estar contra a minha decisão. O padre Angel disse-me há
momentos: «Nem sequer permitirei que sepultem em terra sagrada um
homem que se enforca depois de ter vivido sessenta anos fora de Deus.
Até a si, o Senhor vê-lo-ia com bons olhos se desistisse de levar a
cabo o que não seria uma obra de misericórdia, mas antes um pecado de
rebeldia.» E eu disse-lhe: «Enterrar os mortos, como está escrito, é
uma obra de misericórdia.» E o padre Angel disse: «Está bem. Mas neste
caso não nos cabe a nós fazê-la, mas sim à Delegação de Saúde.»
Vim. Chamei os quatro guajiros que se criaram em minha casa. Obriguei
a minha filha Isabel a acompanhar-me. Assim, o acto transforma-se numa
coisa mais familiar, mais humana, menos pessoal e desafiadora do que
se eu próprio tivesse arrastado o cadáver pelas ruas da aldeia até ao
cemitério. Creio Macondo capaz de tudo, depois do que já vi desde o
princípio deste século. Mas, se não me respeitarem a mim nem sequer
por ser velho, coronel da República e para cúmulo coxo de corpo e
inteiro de consciência, espero que pelo menos respeitem a minha filha
por ser mulher. Não o faço por mim. Talvez também não seja pela
tranquilidade do morto. Apenas para cumprir um compromisso sagrado.
Se trouxe Isabel, não foi por cobardia, mas por caridade. Ela trouxe
a criança (e entendo que o fez por isso mesmo), e agora estamos aqui,
os três, suportando o peso desta dura ocorrência.
Chegámos há momentos. Pensei que iríamos encontrar o cadáver ainda
suspenso do tecto, mas os homens adiantaram-se, estenderam-no na cama
e quase o amor-talharam, com a secreta convicção de que a coisa não
duraria mais de uma hora. Quando chego, espero que tragam o caixão,
vejo a minha filha e a criança que se sentam ao canto, e examino a
sala pensando que o médico possa ter deixado alguma coisa que explique
a sua decisão. A escrivaninha está aberta, cheia de papéis confusos,
nenhum escrito por ele. Na escrivaninha está a pasta das receitas, a
mesma que trouxe para casa há vinte e cinco anos, quando abriu aquele
baú enorme dentro do qual poderia caber a roupa de toda a minha
família. Mas não tinha no baú senão duas camisas ordinárias, uma
dentadura postiça, que não podia ser sua simplesmente porque tinha a
sua dentadura natural, forte e completa, um retrato e um maço de
receitas. Abro as gavetas e em todas elas encontro papéis impressos;
apenas papéis antigos, poeirentos; e em baixo, na última gaveta,
ainda a dentadura postiça que trouxe há vinte e cinco anos, coberta de
pó, amarela do tempo e da falta de uso. Sobre a mesinha, ao pé do
candeeiro apagado, há vários maços de jornais por abrir. Examino-os.
Estão escritos em francês, os mais recentes de há três meses: Julho
de 1928. E há outros, também por abrir: Janeiro de 1927. Novembro
de 1926. E os mais antigos: Outubro de 1919. Penso: Há nove anos,
um depois de pronunciada a sentença, que não abria os jornais.
Renunciara desde então à última coisa que o ligava à sua terra e à sua
gente.

Os homens trazem o ataúde e põem lá dentro o cadáver. Então recordo o


dia de há vinte e cinco anos atrás em que chegou a minha casa e me
entregou a carta de recomendação, datada do Panamá e dirigida a mim
pelo intendente-geral do Litoral Atlântico, no final da guerra grande,
o coronel Aureliano Buendía. Procuro na obscuridade daquele baú sem
fundo as suas bugigangas dispersas. Está sem chave, no outro canto,
com as mesmas coisas que trouxe há vinte e cinco anos. Recordo: Tinha
duas camisas ordinárias, uma caixa com dentes, um retrato e esta velha
pasta de receitas. E vou recolhendo estas coisas antes que fechem o
caixão e ponho-as lá dentro. O retrato ainda está no fundo do baú,
quase no mesmo sítio em que estava daquela vez. É o daguerreótipo de
um militar condecorado. Ponho o retrato na urna. Ponho lá dentro a
dentadura postiça e por fim a pasta das receitas. Quando termino, faço
um sinal aos homens para que fechem o caixão. Penso: Agora está outra
vez de viagem. O mais natural é que na última leve consigo as coisas
que o acompanharam na penúltima. Pelo menos, isso é o mais natural. E
então parece-me vê-lo, pela primeira vez, comodamente morto.
Examino a sala e vejo que nos esquecemos de um sapato em cima da
cama. Faço novo sinal aos meus homens, com o sapato na mão, e eles
tornam a levantar a tampa no preciso instante em que apita o comboio,
perdendo-se na última curva da aldeia. São duas e meia, penso. Duas
e meia de 12 de Setembro de 1928; quase a mesma hora daquele dia de
1903 em que este homem se sentou pela primeira vez à nossa mesa e
pediu erva para comer. Adelaida disse-lhe, daquela vez: «Que espécie
de erva, doutor?» E ele, com a sua parcimoniosa voz de ruminante,
ainda para mais perturbada pela nasalidade: «Erva vulgar, senhora. Da
que comem os burros.»
2.

A verdade é que Meme não está nesta casa e ninguém seria capaz de
dizer com exactidão quando deixou de estar. Vi-a pela última vez há
onze anos. Ainda tinha nesta esquina a taberna que as exigências dos
aldeãos foram modificando insensivelmente até a converterem numa
miscelânea. Tudo muito ordenado, muito arrumado pela escrupulosa e
metódica aplicação de Meme, que passava os dias a costurar para os
aldeãos numa das quatro Domestic que havia então na aldeia, atrás do
balcão, atendendo a clientela com aquela simpatia que nunca deixou de
ter e que era ao mesmo tempo aberta e reservada: uma complexa mistura
de ingenuidade e des-confiança.

Eu deixara de ver Meme desde que saiu de nossa casa, mas a verdade é
que já não seria capaz de dizer com exactidão quando é que ela veio
viver para a casa de esquina com o médico, nem como pôde ser indigna
ao ponto de se transformar na mulher de um homem que lhe negou os seus
serviços, apesar de ambos partilharem a casa de meu pai, ela como
filha adoptiva e ele como hóspede permanente. Soube pela minha
madrasta que o médico era um homem de mau carácter, que tivera uma
longa discussão com o papá para o convencer de que o mal de Meme não
se revestia de qualquer gravidade. E disse-o sem a ter visto, sem
sequer ter saído do quarto. Fosse como fosse, mesmo que a guajira não
tivesse mais do que um achaque passageiro, devia tê-la assistido,
mais que não fosse pela consideração com que foi tratado em nossa casa
durante os oito anos em que nela viveu.

Não sei como se passaram as coisas. Sei que uma bela manhã Meme já não
estava em casa, e ele também não. Então a minha madrasta mandou
fechar o quarto e não voltou a falar dele até há doze anos, quando
costurávamos o meu vestido de noiva.

Três ou quatro domingos depois de ter abandonado a nossa casa, Meme


foi à igreja, à missa das oito, com um espampanante vestido de seda
estampada e um ridículo chapéu que rematava em cima com um ramo de
flores artificiais. Tinha-a visto sempre tão simples em nossa casa,
descalça a maior parte do dia, que nesse domingo, quando entrou na
igreja, me pareceu uma Meme diferente da nossa. Assistiu à missa à
frente, entre as senhoras, direita e afectada, sob aquele montão de
coisas que tinha vestido e que a tornavam complicadamente nova, com
uma novidade espectacular e cheia de ouropéis. Esteve ajoelhada, à
frente. E até a devoção com que ou-viu a missa era desconhecida nela;
até na maneira de se benzer havia algo daquela presunção florida e
resplandecente com que entrou na igreja, ante a perplexidade dos que
a conheceram como criada em nossa casa e a surpresa dos que nunca a
tinham visto.
Eu (por essa altura não teria mais de treze anos) perguntava a mim
própria a que se deveria aquela trans-formação; porque é que Meme
tinha desaparecido da nossa casa e reaparecia naquele domingo no
templo, vestida mais como uma árvore de Na-tal do que como uma
senhora, ou como três senhoras juntas para assistirem à missa pascal,
apesar de ainda sobrarem na guajira folhos e missangas para vestir
mais uma senhora. Quando a missa terminou, as mulheres e os homens
detiveram-se à porta para a verem sair; puseram-se no átrio, em dupla
fileira diante da porta principal, e creio que até houve algo de
secretamente premeditado naquela solenidade indolente e trocista com
que estiveram à espera, sem dizer palavra, até que Meme chegou à
porta, fechou os olhos, e a seguir abriu-os em perfeita harmonia com a
sua sombrinha de sete cores. Passou assim, por entre a dupla fila de
mulheres e homens, ridícula no seu disfarce de pavão real com tacões
altos, até que um dos homens começou a fechar o círculo e Meme ficou
no meio, aniquilada, confusa, tentando sorrir com um sorriso de
distinção tão apara-toso e falso como o seu aspecto. Mas quando Meme
saiu, abriu a sombrinha e começou a andar, o papá aproximou-se de mim
e arrastou-me para o grupo. Por isso, quando os homens começaram a
fechar o círculo, o meu pai tinha já aberto passagem até junto de
Meme, que, atarantada, tentava encontrar uma maneira de fugir. O
papá ofereceu-lhe o braço, sem se preocupar com a assistência, e
levou-a pelo meio da praça com aquela atitude soberba e desafiadora
que adopta quando faz alguma coisa com que os demais não estarão de
acordo.

Passou algum tempo antes de eu saber que Meme tinha vindo viver como
concubina do médico. Nessa altura a taberna já estava aberta e ela
continuava a assistir à missa como uma perfeita senhora da melhor
sociedade, sem se importar com o que se dizia ou pensava, como se se
tivesse esquecido do que acontecera no primeiro domingo. Todavia,
passados dois meses não voltámos a vê-la na igreja.
Eu recordava o médico em nossa casa. Recordava o seu bigode preto e
retorcido e a sua maneira de olhar as mulheres com os seus lascivos e
ávidos olhos de cão. Mas lembro-me de que nunca me aproximei dele,
talvez porque o visse como um animal estranho que se sentava à mesa
depois de todos se terem levantado e que se alimentava com a mesma
erva que alimenta os burros. Até à doença do papá, há três anos, o
médico não saíra desta casa de esquina uma única vez, depois da noite
em que negou assistência aos feridos, da mesma maneira que seis anos
antes a negara à mulher que dois dias mais tarde seria sua concubina.
O tasco fechou antes de a aldeia ter ditado a sentença ao médico. Mas
sei que Meme continuou a viver aqui, vários meses ou anos depois de
ter fechado a loja. Foi com certeza muito mais tarde que desapareceu,
ou pelo menos que se soube que tinha desaparecido, porque assim o
dizia o panfleto que apareceu nesta porta. De acordo com esse
panfleto, o médico assassinara a sua amante e enterrara-a na horta por
recear que a aldeia se servisse dela para o envenenar. Mas eu tinha
visto Meme antes do meu casamento. Há onze anos, quando voltava do
terço, a guajira chegou à porta da loja e disse-me, com o seu arzinho
alegre e um tanto irónico: «Menina, vais-te casar e não me dizias
nada.»

«Pois», digo-lhe, «a coisa deve ter sido assim.» Então estico a corda,
onde numa das pontas se vê ainda a carne viva das suas fibras
recém-cortadas à faca. Dou outra vez o nó que os meus homens cortaram
para tirar o corpo e atiro uma das pontas por cima da viga, até deixar
a corda suspensa, firme, com força suficiente para proporcionar muitas
mortes iguais à deste homem. Enquanto se abana com o chapéu, o rosto
transtornado pela sufocação e pela aguar-dente, a olhar para a corda,
calculando a sua força, ele diz: «É impossível que uma corda tão
delgada tenha aguentado o corpo dele.» E eu digo-lhe: «Essa corda é a
mesma que aguentou com ele na rede durante muitos anos.» E ele puxa
uma cadeira, entrega-me o chapéu e pendura-se a pulso na corda, com o
rosto congestionado pelo esforço. Depois torna a ficar de pé em cima
da cadeira, a olhar para a ponta caída. Diz: «É impossível. Essa corda
não chega para me dar a volta ao pescoço.» E então compreendo que é
deliberadamente ilógico, que está a inventar pretextos para impedir o
enterro.

Olho-o de frente, perscrutando-o. Digo-lhe: «Não reparou que você lhe


chegava, quando muito, ao ombro?» E ele volta-se, para olhar para o
caixão. Diz: «Mesmo assim, não tenho a certeza de que o tenha feito
com esta corda.»

Tenho a certeza que foi assim. E ele sabe-o, mas pretende ganhar
tempo, com medo de criar compromissos. Vê-se-lhe a cobardia pelo modo
de andar de um lado para o outro, sem direcção precisa. Uma cobardia
dupla e contraditória: para impedir a cerimónia e para a autorizar.
Então, quando chega ao pé do caixão, roda sobre os calcanhares, olha
para mim e diz: «Tinha de o ver pendurado para me convencer.»
Eu tê-lo-ia feito. Te-ria autorizado os meus homens a abrirem o caixão
e a voltarem a pendurar o enforcado, como esteve até há pouco. Mas
seria de mais para a minha filha. Seria de mais para a criança, que
ela não devia ter trazido. Se não me repugnasse tratar assim um morto,
ultrajar a carne indefesa, perturbar o homem pela primeira vez
tranquilo dentro do seu casulo, se o facto de tocar num cadáver que
repousa se-rena e merecidamente no seu caixão não fosse contra os meus
princípios, mandá-lo-ia pendurar de novo, para saber até onde é que
este homem é capaz de chegar. Mas é impossível. E digo-lhe: «Pode
estar certo de que não darei essa ordem. Se quiser, pendure-o o
senhor mesmo e assuma a responsabilidade do que acontecer. Lembre-se
de que não sabemos há quanto tempo está morto.»

Ele não se mexeu. Está ainda ao pé do caixão, a olhar para mim; olha
depois para Isabel e depois para a criança e a seguir outra vez para o
caixão. De repente, a sua expressão torna-se sombria e ameaçadora.
Diz: «O senhor não ignora o que pode acontecer-lhe por isto.» E
compreendo então até que ponto a sua ameaça é verdadeira. Digo-lhe:
«Claro que não. Sou uma pessoa responsável.» E ele, agora com os
braços cruzados, suando, avançando para mim com movimentos estudados e
cómicos que pretendem ser ameaçadores, diz: «Poderia perguntar-lhe
como é que soube que este homem se tinha enforcado ontem à noite.»
Espero que chegue ao pé de mim. Permaneço imóvel, a olhar para ele,
até que a sua respiração quente e áspera me atinge no rosto; até que
ele se detém, ainda com os braços cruzados, abanando o chapéu por
detrás da axila. Então digo-lhe: «Quando me fizer essa pergunta
oficialmente, terei muito gosto em responder-lhe.» Continua à minha
frente, na mesma posição. Quando lhe falo, não há nele surpresa nem
perturbação. Diz: «Claro, coronel. Estou a perguntar-lho
oficialmente.» Estou disposto a dar-lhe a corda toda. Tenho a certeza
de que, por muitas voltas que ele tente dar-lhe, terá de ceder perante
uma atitude férrea, embora paciente e tranquila. Digo- -lhe: «Estes
homens tiraram o corpo porque eu não podia permitir que continuasse
ali, pendurado, até o senhor se decidir a vir cá. Há duas horas que
lhe disse que viesse e o senhor demorou todo este tempo para andar
dois quarteirões.»
Continua imóvel. Estou em frente dele, apoiado na bengala,
ligeiramente inclinado para a frente. Digo: «Além disso era meu
amigo.» Antes de eu acabar de falar, ele sorri ironicamente, mas sem
mudar de posição, atirando-me ao rosto o seu hálito espesso e ácido.
Diz: «É a coisa mais simples do mundo, não?» E subitamente deixa de
sorrir: «Portanto, o senhor sabia que este homem se ia enforcar.»

Tranquilo, paciente, convencido de que só pretende enredar as coisas,


digo-lhe: «Repito-lhe que a primeira coisa que fiz quando soube que
se tinha enforcado foi ir ter consigo, e já lá vão mais de duas
horas.» E, como se eu lhe tivesse feito uma pergunta e não prestado um
esclarecimento, diz: «Eu estava a almoçar.» E eu digo-lhe: «Bem sei.
Parece-me que até teve tempo de dormir a sesta.»
Então não sabe que dizer. Recua. Olha para Isabel, sentada ao lado da
criança. Olha para os homens e, finalmente, para mim. Mas agora a sua
ex-pressão mudou. Parece decidir-se por algo que lhe ocupa o
pensamento desde há momentos. Vira-me as costas, caminha para o agente
e diz-lhe qualquer coisa. O agente faz um gesto e sai do quarto.

A seguir vira-se para mim e pega-me no braço. Diz: «Gostaria de falar


consigo na outra sala, coronel.» Agora a sua voz mudou por completo.
Agora está tensa e alterada. E, enquanto me dirijo para a sala ao
lado, sentindo a pressão insegura da sua mão no meu braço,
surpreende-me a ideia de que sei o que me vai dizer.

Esta sala, ao contrário da outra, é ampla e fresca. Invade-a a


claridade do pá-tio. Aqui vejo-lhe os olhos alterados, o sorriso que
não corresponde à expressão do seu olhar. Oiço a sua voz, que diz:
«Coronel, isto podia-se resolver de outra maneira.» E eu, sem lhe
dar tempo de acabar, digo-lhe: «Quanto?». E então trans-forma-se num
homem totalmente diferente.

Meme trouxera um prato com bolos e dois pãezinhos salgados dos que
tinha aprendido a fazer com a minha mãe. O relógio dera as nove. Meme
estava sentada diante de mim, nas traseiras da loja, e comia sem
apetite, como se os bolos e os pãezinhos não passassem de uma maneira
de prolongar a visita. Eu assim o entendia, e deixava-a perder-se nos
seus labirintos, afundar-se no passado com aquele entusiasmo
nostálgico e triste que a fazia parecer, à luz do candeeiro que se
consumia em cima do balcão, muito mais enxovalhada e envelhecida do
que no dia em que entrou na igreja de chapéu e saltos altos. Era
evidente que naquela noite Meme desejava recordar. E, enquanto o
fazia, dava a impressão de que durante os anos anteriores tinha ficado
parada numa única idade estática e sem tempo, e que naquela noite, ao
recordar, punha de novo em marcha o seu tempo pessoal e começava a
sofrer o seu longamente diferido processo de envelhecimento.

Meme estava direita e sombria, falando daquele pitoresco esplendor


feudal da nossa família nos últimos anos do século passado, antes da
guerra grande. Meme recordava a minha mãe. Recordou-a nessa noite em
que eu voltava da igreja e ela me disse, com o seu arzinho trocista e
um pouco irónico: «Menina, vais-te casar e não me dizias nada.» Foi
precisamente na época em que eu sentira a falta da minha mãe e
procurava fazê-la voltar com mais força à minha memória. «Era o teu
retrato vivo», disse. E eu acreditava realmente nela. Estava sentada
em frente da índia, que falava com uma inflexão mesclada de precisão e
incerteza, como se houvesse muito de lendário no que recordava, mas
como se o recordasse de boa-fé e até com a convicção de que a
passagem do tempo transformara a lenda numa realidade remota, mas
difícil de esquecer. Falou-me da viagem dos meus pais durante a
guerra, da dura peregrinação que haveria de terminar com o
estabelecimento deles em Macondo. Os meus pais fugiam dos percalços
da guerra e procuravam um recanto próspero e tranquilo onde
assentarem arraiais, quando ouviram falar do bezerro de ouro e o
vieram procurar no que era então uma aldeia em formação, fundada por
várias famílias refugiadas, cujos membros se esmeravam tanto na
conservação das suas tradições e nas práticas religiosas, como na
engorda dos seus porcos. Macondo foi para os meus pais a terra
prometida, a paz e o Velo de Ouro. Aqui encontraram o sítio apropriado
para reconstruírem a casa que poucos anos depois seria uma mansão
rural, com três cava-lariças e dois quartos para os hóspedes. Meme
recordava os pormenores sem amargura e falava das coisas mais
extravagantes com um irreprimível desejo de as viver de novo ou com
a dor que lhe provocava a evidência de que não as voltaria a viver.
Não houve sofrimento nem privações na viagem, dizia. Até os cavalos
dormiam com mosquiteiro, não porque o meu pai fosse um esbanjador ou
um louco, mas porque a minha mãe possuía um estranho sentido de
caridade, dos sentimentos humanitários, e considerava que, aos olhos
de Deus, produzia tanta satisfação o facto de proteger um homem dos
mosquitos como o de proteger um animal. Levaram para toda a parte o
seu extravagante e incómodo carregamento; os baús cheios com a roupa
dos mortos anteriores ao nascimento deles próprios, dos antepassados
que seria impossível encontrar vinte braças debaixo da terra;
caixotes cheios de utensílios de cozinha há muito postos de parte e
que tinham pertencido aos mais remotos parentes dos meus pais (eram
primos direitos entre si), e até um baú cheio de imagens, com que
reconstruíam o altar doméstico em cada lugar que visitavam. Era uma
curiosa trupe, com cavalos e galinhas e os quatro guajiros
(companheiros de Meme) que tinham crescido em casa e seguiam os meus
pais por toda a região, como animais amestrados num circo.
Meme recordava com tristeza. Dava a impressão de que considerava a
passagem do tempo como uma perda pessoal, como se pensasse, com o
coração dilacerado pelas recordações, que, se o tempo não tivesse
passado, ainda estaria naquela peregrinação que deve ter sido um
castigo para os meus pais mas que para as crianças tinha algo de
festa, com espectáculos insólitos como o dos cavalos debaixo dos
mosquiteiros.
Depois tudo começou a andar ao contrário, disse. A chegada à nova
aldeiazinha de Macondo, nos últimos dias do século, foi a de uma
família devastada, ainda apegada a um recente passado de esplendor,
desorganizada pela guerra. A guajira recordava a minha mãe quando
chegou à aldeia, sentada de lado numa mula, grávida, com o rosto
esverdeado e palúdico e os pés inutilizados pelo inchaço. Talvez no
espírito do meu pai germinasse a semente do ressentimento, mas vinha
disposto a lançar âncora contra ventos e marés, enquanto aguardava que
a minha mãe tivesse aquele filho que lhe cresceu no ventre durante a
travessia e que a ia matando progressivamente, à medida que se
aproximava a hora do parto.

A luz do candeeiro dava-lhe de perfil. Meme, com a sua dura expressão


de índia, o seu cabelo liso e grosso como crina de cavalo ou rabo de
cavalo, parecia um ídolo sentado, verde e espectral no quartinho
quente das traseiras, falando como o faria um ídolo que se tivesse
posto a recordar a sua antiga existência terrena. Nunca tinha privado
com ela de perto, mas nessa noite, depois daquela repentina e
espontânea manifestação de intimidade, sentia-me ligada a ela por
laços mais firmes que os do sangue.

De súbito, numa pausa de Meme, ouvi-o tossir no quarto, neste mesmo


aposento em que agora me encontro com a criança e o meu pai. Tossiu
com uma tosse seca e curta, a seguir pigarreou e depois ouviu-se o
ruído inconfundível que faz um homem quando se vira na cama. Me-me
calou-se instantaneamente, e uma nuvem sombria e silenciosa
toldou-lhe o rosto. Eu tinha-me esquecido dele. Durante o tempo que
permaneci ali (eram umas dez horas), era como se a guajira e eu
estivéssemos sozinhas em casa. A tensão do ambiente mudou logo. Senti
o cansaço do braço com que segurava, sem lhe tocar, o prato com os
bolos e os pãezinhos. Inclinei-me para a frente e disse: «Está
acordado.» Ela, agora impassível, fria e completamente indiferente,
disse: «Vai estar acordado até de madrugada.» E de repente percebi o
desencanto que se notava em Meme quando recordava o passado da nossa
casa. As nossas vidas tinham mudado, os tempos eram bons e Macondo
uma aldeia ruidosa em que o dinheiro chegava até para esbanjar ao
sábado à noite. Enquanto lá fora se tosquiava o bezerro de ouro, lá
dentro, no quarto das traseiras, a sua vida era estéril, anónima, todo
o dia ao balcão e à noite com um homem que só adormecia de madrugada,
que passava o tempo às voltas pela casa, de um lado para o outro,
olhando-a avidamente com aqueles lascivos olhos de cão que nunca pude
esquecer. Comovia-me imaginar Meme com este homem que uma noite lhe
negou os seus serviços e que continuava a ser um animal endurecido,
sem amargura nem compaixão, todo o dia numa interminável errância pela
casa, de pôr fora de si os mais equilibrados.
Recuperando o tom de voz, sabendo que ele estava aqui, acordado,
abrindo tal-vez os seus ávidos olhos de cão de cada vez que as nossas
palavras ressoavam nas traseiras, procurei dar uma volta à conversa.

«E que tal te corre o negócio?», perguntei. Meme sorriu. O seu sorriso


era triste e taciturno, como se não fosse o resultado de um sentimento
actual, como se o tivesse guardado na gaveta e só de lá o tirasse nos
momentos indispensáveis, mas usando-o sem nenhuma propriedade, como se
o uso pouco frequente do sorriso a tivesse feito esquecer a maneira
normal de o utilizar. «Assim assim», disse, mo-vendo a cabeça de uma
forma ambígua, e voltou a ficar silenciosa, abstracta. Então
compreendi que eram horas de me ir embora. Entreguei o prato a Meme,
sem dar nenhuma explicação pelo facto de o seu conteúdo estar intacto,
e via levantar-se e pô-lo em cima do balcão. De lá, olhou para mim e
repetiu: «És o retrato vivo dela.» Eu estava certamente sentada a
contra-luz, ofuscada pela claridade oposta, e Meme não me via a cara
enquanto falava. De-pois, quando se levantou para pôr o prato em cima
do balcão, por detrás do candeeiro, viu-me de frente, e foi por isso
que disse: «És o retrato vivo dela.» E veio sentar-se.
Então começou a recordar os dias em que a minha mãe chegou a Macondo.
Tinha ido directamente da mula para a cadeira de baloiço e ficara
sentada três meses a fio, sem se mexer, ingerindo os alimentos sem
apetite. Às vezes almoçava e ficava até ao meio da tarde com o prato
na mão, rígida, sem se baloiçar, com os pés apoia-dos numa cadeira,
sentindo crescer a morte dentro deles, até que alguém chegava e lhe
tirava o prato das mãos. Quando chegou o dia, as dores do parto
tiraram-na do seu esquecimento, e pôs-se ela própria de pé, mas foi
preciso ajudá-la a dar os vinte passos que separavam a varanda do
quarto de dormir, martirizada pela ocupação de uma morte que se tinha
identificado com ela em nove meses de silencioso sofrimento. A sua
travessia da cadeira de baloiço até ao leito teve toda a dor, a
amargura e as provações que a viagem realizada há poucos meses não
tivera, mas chegou até onde sabia que devia chegar antes de cumprir o
último acto da sua vida. O meu pai pareceu desesperado com a morte da
minha mãe, disse Meme. Mas, segundo ele próprio disse depois, quando
ficou sozinho em casa, «Ninguém pode confiar na honestidade de um lar
em que o homem não tem à mão uma mulher legítima.» Como tinha lido num
livro que quando morre uma pessoa amada devemos semear um jasmineiro
para a recordarmos todas as noites, plantou a trepadeira junto ao muro
do pátio e um ano depois casou em segundas núpcias com Adelaida, a
minha madrasta.
Às vezes julgava que Meme ia chorar enquanto falava. Mas manteve-se
firme, satisfeita por estar a expiar o pecado de ter sido feliz e de
ter deixado de o ser por sua livre vontade. A seguir estirou-se na
cadeira e humanizou-se por completo. Foi como se tivesse feito
mentalmente as contas à sua dor; inclinou-se para a frente e viu que
ainda lhe restava um saldo favorável de boas recordações, e então
sorriu com a sua antiga simpatia ampla e trocista. Disse que aquilo
tinha começado cinco anos mais tarde, quando chegou à sala onde o meu
pai estava a almoçar e lhe disse: «Coronel, coronel, está no
escritório um forasteiro à sua procura.»
3.

POR detrás da igreja, do outro lado da rua, havia um pátio sem


árvores. Isto era nos fins do século passado, quando chegámos a
Macondo e ainda não se iniciara a construção do templo. Eram terreiros
pelados, secos, onde os miúdos brincavam quando saíam da escola. Mais
tarde, quando se iniciou a construção do templo, cravaram quatro
postes de um dos lados do pátio e viu-se que o espaço cercado era bom
para fazer um quarto. E fizeram-no. E guardaram nele os materiais da
igreja em construção.

Quando deram por terminados os trabalhos do templo, alguém acabou de


rebocar as paredes do quartinho e abriu uma porta na parede
posterior, para o patiozinho pelado e pedregoso onde não medrava nem
uma piteira. Um ano depois o quartinho estava construído, capaz de
albergar duas pessoas. Lá dentro sentia-se um cheiro a cal viva. Era o
único cheiro agradável que se tinha sentido durante muito tempo
dentro daquele espaço e o único gratificante que alguma vez se
sentiria. Depois de terem caiado as paredes, a mesma mão que dera por
concluída a construção correu a tranca na porta de dentro e pôs um
cadeado na da rua.

O quarto não tinha dono. Ninguém se preocupou em tornar efectivos os


seus direitos sobre o terreno, nem sobre os materiais de construção.
Quando chegou o primeiro pároco, alojou-se em casa de uma das famílias
abastadas de Macondo. De-pois foi transferido para outra paróquia.
Mas, por essa altura (e possivelmente antes de o primeiro pároco se
ter ido embora), uma mulher com uma criança de peito tinha ocupado o
quartinho, sem que ninguém soubesse quando, nem como fez para abrir a
porta. Havia a um canto uma toalha negra e verde do musgo e um jarro
pendurado num prego. Mas já não restava cal nas paredes. No pátio,
sobre as pedras, formara-se uma crosta de terra endurecida pela chuva.
A mulher construiu um cara-manchão para se proteger do sol. E, como
não tinha recursos para lhe pôr tecto de palma, telha ou zinco,
plantou um pé de videira junto ao caramanchão e pendurou um ramo de
aloés e um pão na porta da rua, para se proteger dos malefícios.
Quando se anunciou a chegada do novo pároco, em 1903, a mulher
continuava a viver no quarto com a criança. Meia aldeia foi até à
estrada principal, esperar o sacerdote. A banda local tocou trechos
sentimentais, até que chegou um rapaz, ofegante, estoirado, a dizer
que a mula do pároco estava na última curva da estrada. Então os
músicos trocaram de posições e iniciaram uma marcha. O encarregado do
discurso de boas-vindas subiu à tribuna improvisada e aguardou a
chegada do pároco, para dar início à saudação. Mas daí a pouco o
trecho marcial cessou, o orador desceu da mesa e a multidão, atónita,
viu passar um forasteiro, montado numa mula em cujas ancas viajava o
maior baú que alguma vez se vira em Macondo. O homem passou ao largo
em direcção à aldeia, sem olhar para ninguém. Mesmo que o pároco se
tivesse vestido à civil para fazer a viagem, a ninguém passaria pela
cabeça que aquele viajante queimado do sol, com polainas de militar,
fosse um sacerdote vestido à civil.
E de facto não era, porque a essa mesma hora, pelo atalho, do outro
lado da aldeia, viram entrar um sacerdote estranho, espantosamente
magro, de rosto seco e esguio, escarranchado numa mula, a sotaina
arregaçada até aos joelhos e protegido do sol por um guarda-sol gasto
e desbotado. O pároco perguntou nas imediações do templo onde ficava a
casa paroquial, e deve tê-lo perguntado a alguém que não tinha a menor
ideia de nada, porque lhe responderam: «É o quartinho que fica atrás
da igreja, padre.» A mulher tinha saído, mas a criança brincava lá
dentro, por de-trás da porta entreaberta. O sacerdote apeou-se,
arrastou até ao quarto uma ma-la a rebentar, meio aberta e sem fechos,
apenas presa com um cinto de couro diferente do da própria mala e,
depois de examinar o quartinho, puxou a mula e amarrou-a no pátio, à
sombra das vides. A seguir abriu a mala, tirou de lá uma rede que
devia ter a mesma idade e o mesmo uso do guarda-sol, pendurou-a em
diagonal no quarto, de poste a poste, tirou as botas e deitou-se a
dormir, sem se preocupar com a criança, que olhava para ele com os
seus olhos redondos espantados.
Quando a mulher voltou, deve ter-se sentido desorientada com a
estranha presença do sacerdote, cujo rosto era tão inexpressivo que em
nada se distinguia de uma caveira de vaca. A mulher deve ter
atravessado a habitação nas pontas dos pés. Deve ter arrastado o catre
até à porta, feito uma trouxa com a sua roupa e com os trapos da
criança e abandonado a habitação, confusa, sem sequer se preocupar
com a toalha e o jarro, porque uma hora mais tarde, quando a comitiva
percorreu a aldeia em sentido inverso, precedida pela banda, que
tocava a ária marcial por entre um magote de rapazes fugidos à escola,
foram dar com o pároco sozinho no quarto, negligentemente estirado na
rede, com a sotaina desabotoada, e sem sapa-tos. Alguém deve ter
levado a notícia à estrada principal, mas ninguém se lembrou de
perguntar o que é que o pároco fazia naquele quarto. Devem ter pensado
que tinha algum parentesco com a mulher, tal como ela deve ter
deixado o quartinho por julgar que o pároco tivesse ordem para o
ocupar, ou que fosse propriedade da igreja, ou simplesmente por recear
que lhe perguntassem porque é que vivera mais de dois anos num quarto
que não lhe pertencia, sem pagar aluguer e sem autorização de ninguém.
Também não passou pela cabeça da comitiva pedir explicações, nem nesse
momento nem em nenhum dos seguintes, porque o pároco não aceitou os
discursos, pôs as ofertas no chão e limitou-se a saudar os homens e as
mulheres com frieza, apressadamente, pois, segundo disse, não pregara
olho durante toda a noite.

A comitiva dissolveu-se, perante aquele frio acolhimento por parte do


sacerdote mais estranho que alguma vez tinham visto. Comentava-se que
o seu rosto parecia uma caveira de vaca, que tinha cabelo grisalho,
cortado à escovinha, e que não tinha lábios, mas sim uma fenda
horizontal que não parecia estar no lugar da boca desde o nascimento,
mas antes feita posteriormente, com uma navalhada súbita e única.
Mas, nessa mesma tarde, acharam-no parecido com alguém. E antes de
amanhecer todos sabiam quem era. Lembravam-se de o ter visto com a
fisga e a pedra, nu, mas de sapatos e chapéu, nos tempos em que
Macondo era um humilde casario de refugiados. Os veteranos
lembravam-se das suas acções na guerra civil de 85. Lembraram-se de
que tinha sido coronel aos dezassete anos, e de que era intrépido,
tenaz e oposicionista. Só que em Macondo ninguém voltara a saber dele
até àquele dia em que regressava para tomar conta da paróquia. Muito
poucos se lembravam do seu nome de baptismo. Em contrapartida, a
maioria dos veteranos lembrava-se do que a mãe lhe pusera (porque era
voluntarioso e rebelde), e que foi o mesmo com que veio a ser
conhecido pelos seus companheiros de guerra. To-dos lhe chamavam El
Cachorro. E assim continuaram a chamar-lhe em Macondo, até à hora da
sua morte:

«Cachorro, Cachorrito.»

Este homem chegou pois a nossa casa no mesmo dia e quase à mesma hora
que El Cachorro a Macondo. O primeiro pela estrada principal,
quando ninguém o esperava nem fazia a menor ideia do seu nome ou da
sua profissão; o pároco pelo atalho, quando toda a aldeia o aguardava
na estrada principal.
Eu voltei para casa a seguir à recepção. Acabáva-mos de nos sentar à
mesa - um pouco mais tarde que de costume - quando Meme se aproximou
para me dizer: «Coronel, coronel, está no escritório um forasteiro à
sua procura.» Eu disse-lhe: «Manda-o entrar.» E Meme disse: «Está no
escritório e diz que precisa de falar consigo com urgência.» Adelaida
parou de dar a sopa a Isabel (naquele tempo ela não tinha mais de
cinco anos) e foi receber o recém-chegado. Voltou daí a pouco,
visivelmente preocupada:

«Estava a remexer no escritório», disse.


Vi-a caminhar por detrás dos candelabros. Depois voltou a dar a sopa a
Isa-bel. «Devias tê-lo mandado entrar», disse eu, sem parar de comer.
E ela disse: «Era o que eu ia fazer. Mas ele estava a remexer no
escritório quando cheguei e lhe dei as boas-tardes, e não respondeu
porque estava a olhar para a prateleira, para a bailarinazinha de
corda. E, quando eu lhe ia dar outra vez as boas-tardes, começou a dar
corda à bailarinazinha, pô-la em cima da secretária e ficou a vê-la
bailar. Não sei se foi a musiquinha que não o deixou ouvir-me quando
lhe dei de novo as boas-tardes e fiquei parada em frente da
secretária, sobre a qual estava inclinado, a ver a bailarinazinha, que
ainda tinha corda para um bocado.» Adelaida estava a dar a sopa a
Isabel. Eu disse-lhe: «Deve estar muito interessado no brinquedo.» E
ela, continuando a dar a sopa a Isabel: «Estava a remexer no
escritório, mas depois, quando viu a bailarinazinha, pegou nela como
se soubesse de antemão para que servia, como se conhecesse o seu
funcionamento. Estava a dar-lhe corda quando lhe dei as boas-tardes
pela primeira vez, antes de a musiquinha começar a soar. Então
pousou-a em cima da secretária e ficou a olhar para ela, mas sem
sorrir, como se não estivesse interessado no bailado, mas sim no
mecanismo.»

Nunca me anunciavam ninguém. Quase todos os dias chegavam visitas:


viajantes desconhecidos que deixavam os animais na cavalariça e se
abeiravam com total confiança, com a familiaridade de quem espera
encontrar sempre um lugar desocupado à nossa mesa. Disse a Adelaida:
«Deve trazer algum recado, ou qualquer coisa.» E ela disse: «Seja como
for, tem um comportamento estranho. Ele a olhar para a bailarinazinha
até se lhe acabar a corda e eu para ali parada, em frente da
secretária, sem saber que lhe dizer, porque sabia que não me
responderia enquanto a musiquinha não parasse de soar. Depois, quando
a bailarinazinha deu o saltinho que dá sempre quando se lhe acaba a
corda, ficou ainda a olhar para ela com curiosidade, inclinado sobre a
secretá-ria, mas sem se sentar. Então olhou para mim e vi que sabia
que eu estava no escritório, mas que não tinha feito caso de mim
porque queria saber quanto tempo a bailarinazinha estaria a dançar.
Mas já não voltei a dar-lhe as boas-tardes, sorri-lhe quando olhou
para mim porque vi que tinha os olhos enormes, com as pupilas
amarelas, que vêem de uma vez o corpo todo. Quando lhe sor-ri, ele
continuou sério, mas fez uma inclinação de cabeça muito formal e
disse: \«O coronel? É com o coronel que quero falar.»' Tinha a voz
funda, como se conseguisse falar com a boca fechada. É como se fosse
ventríloquo.»

Ela estava a dar a sopa a Isabel. Eu continuei a almoçar, porque


julguei que se tratava de um simples recado; porque não sabia que
naquela mesma tarde estavam a começar as coisas que hoje se concluem.

Adelaida continuou a dar a sopa a Isabel e disse: «Ao princípio estava


a remexer no escritório.» Então compreendi que o forasteiro a tinha
impressionado de uma maneira pouco comum e que tinha um interesse
especial em que eu o recebesse. Contudo, continuei a almoçar enquanto
ela dava a sopa a Isabel e falava. Disse: «Depois, quando disse que
queria falar com o coronel, foi quando eu lhe disse, tenha a bondade
de entrar para a sala de jantar, e ele empertigou-se onde estava, com
a bailarina na mão. Levantou a cabeça e pôs-se rígido e firme como um
soldado, parece-me, porque tinha botas altas e um fato ordinário com a
camisa abotoada até ao colarinho. Eu não sabia o que lhe havia de
dizer quando não respondeu nada e ficou quieto, com o brinquedo na
mão, como se estivesse à espera que eu saísse do escritório para lhe
dar corda outra vez. Foi então, de súbito, que me fez lembrar alguém,
que percebi ser um militar.»

Eu disse-lhe: «Então tu achas que é alguma coisa de grave.» Olhei para


ela por cima dos candelabros. Ela não olhava para mim. Estava a dar a
sopa a Isabel. Disse:

«É que quando cheguei ele estava a remexer no escritório, de modo que


não podia ver-lhe a cara. Mas depois, quando ficou parado ao fundo,
tinha a cabeça tão levantada e os olhos tão fixos que me pareceu ser
um militar, e disse-lhe: «O senhor quer falar com o coronel em
privado, não é verdade?» E ele disse que sim com a cabeça. Então vim
dizer-lhe que se parece com alguém, ou melhor, que é a própria pessoa
com quem se parece, embora não perceba como está aqui.»
Eu continuei a almoçar, mas olhava para ela por cima dos candelabros.
Ela parou de dar a sopa a Isabel. Disse:

«Tenho a certeza de que não é um recado. Tenho a certeza que não é


parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece. Tenho a certeza,
dizendo melhor, que é um militar. Tem um bigode preto e pontiagudo e a
cara como de cobre. Tem botas altas, e tenho a certeza que não é
parecido, que é mesmo o próprio com quem se parece.»
Falava num tom uniforme e monótono, insistente. Estava calor, e,
talvez por isso, comecei a sentir-me irritado. Disse-lhe: «Ah, com
quem é que se parece?» E ela disse: «Quando estava a remexer no
escritório não lhe vi a cara, só depois.» E eu, irritado com a
monotonia e a insistência das suas palavras: «Bom, bom, falo com ele
quando acabar de almoçar.» E ela, dando outra vez a sopa a Isabel: «Ao
princípio não lhe pude ver a cara porque estava a remexer no
escritório. Mas depois, quando lhe disse tenha a bondade de entrar,
ele ficou quieto, encostado à parede, com a bailarinazinha na mão. Foi
então que me lembrei com quem se parece, e vim avisar-te. Tem os olhos
enormes e indiscretos, e, quando me voltei para sair, senti que estava
a olhar directamente para as minhas pernas.»
Calou-se de repente. Na sala de jantar ficou a vibrar o tilintar
metálico da colher. Eu acabei de almoçar e dobrei o guardanapo debaixo
do prato.

Nisto ouviu-se, no escritório, a musiquinha festiva do brinquedo de


corda.
4.

LÁ em casa, na cozinha, há uma velha cadeira de madeira lavrada, sem


travessas, em cujo fundo o meu avô põe os sapatos a secar, ao pé do
fogão.
Tobias, Abraão, Gil-berto e eu saímos da escola, ontem por esta hora,
e fomos às plantações com uma fisga, um chapéu grande para afugentar
os pássaros e uma na-valha nova. Pelo caminho, eu ia-me lembrando da
cadeira partida, abandonada a um canto da cozinha, que em tempos
serviu para receber visitas e que agora é utilizada pelo morto que
todas as noites se senta, com o chapéu preto posto, a contemplar as
cinzas da lareira apagada.
Tobias e Gilberto estavam a chegar ao fim da passagem escura. Como
tinha chovido durante a manhã, os sapatos resvalavam-lhes na erva
enlameada. Um deles assobiava e o seu assobio duro e firme ressoava na
galeria vegetal, como quando nos pomos a cantar dentro de um tonel.
Abraão vinha atrás, comigo. Ele com a fisga e a pedra pronta para ser
disparada. Eu com a na-valha aberta.

De repente o sol rompeu o tecto de folhas apertadas e densas e um


corpo luminoso caiu esvoaçando na erva, como um pássaro vivo.
«Vis-te?», disse Abraão. Eu olhei para a frente e vi Gilberto e Tobias
no fim da passagem. «Não é um pás-saro», disse. «É o sol que entrou
com força.»

Quando chegaram à margem, começaram a despir-se e a atirar um ao outro


fortes chapinhadas daquela água crepuscular, que parecia não lhes
molhar a pele. «Não há um único pássaro, esta tarde», disse Abraão.
«Quando chove não há pássaros», disse eu. E eu próprio acreditei
nisso. Abraão desatou a rir. O seu riso é tonto e simples e faz um
ruído como o de um fio de água numa bacia. Despiu-se. «Vou meter-me na
água com a navalha e encher o chapéu de peixes», disse.

Abraão estava nu diante de mim, com a mão aberta, à espera da navalha.


Eu não respondi logo. Apertava a navalha com força e sentia na mão o
seu aço limpo e temperado. Não lhe vou dar a navalha, pensei. E
disse-lho: «Não te vou dar a navalha. Só ma deram ontem e vou ficar
com ela toda a tarde.» Abraão continuou com a mão estendida. Então
disse-lhe:
«Incomploruto.»

Abraão entendeu-me. Só ele entende as minhas palavras: «Está bem»,


disse, e caminhou para a água através do ar denso e ácido. Disse:
«Começa a despir-te e esperamos-te na pedra.» E disse-o enquanto
mergulhava e voltava a aparecer reluzente como um peixe prateado e
enorme, como se a água se tivesse tornado líquida em contacto com ele.

Eu permaneci na margem, deitado sobre a lama morna. Quando abri a


navalha de novo, deixei de olhar para Abraão e levantei os olhos, em
direcção ao outro lado, para cima das árvores, para o entardecer
furioso cujo céu tinha a monstruosa imponência de uma cavalariça
incendiada.
«Despacha-te», disse Abraão, do outro lado. Tobias estava a assobiar
no rebordo de pedra. Então pensei: Hoje não tomo banho. Amanhã.

Quando regressávamos, Abraão escondeu-se atrás das silvas. Eu ia


persegui-lo, mas ele disse-me: «Não venhas para aqui. Estou ocupado.»
Obedeci, sentado nas folhas mortas do caminho, a olhar para a única
andorinha que traçava uma curva no céu. Disse:

«Esta tarde só há uma andorinha.»


Abraão não respondeu logo. Estava silencioso, atrás das silvas, como
se não me pudesse ouvir, como se estivesse a ler. O seu silêncio era
profundo e concentrado, cheio de uma recôndita força. Só depois de um
longo silêncio suspirou. Então disse:
«Andorinhas.»

Tornei a dizer-lhe: «Há só uma, esta tarde.» Abraão continuava atrás


das silvas, mas não se sabia nada dele. Estava silencioso e
concentrado, mas a sua quietude não era estática. Era uma imobilidade
desesperada e impetuosa. Daí a pouco, disse:

«Só uma? Aaah. Pois, pois.»


Desta vez não disse nada. Foi ele que começou a mexer-se atrás das
silvas. Sentado nas folhas, eu ouvi perto dele o barulho de outras
folhas mortas debaixo dos seus pés. Depois tornou a ficar silencioso,
como se se tivesse ido embora. A seguir respirou profundamente e
perguntou:

«O que é que estás a dizer?»

Tornei a dizer-lhe: «Que esta tarde há só uma andorinha.» E, enquanto


lho dizia, olhava para a asa arqueada, traçando círculos no céu de um
azul incrível. «Está a voar alto», disse.

Abraão respondeu imediatamente:


«Ah, pois, claro. Deve então ser por isso.»

Saiu de trás das silvas, a abotoar as calças. Olhou para cima, para
onde a ando-rinha continuava a traçar círculos, e, ainda sem me
responder, disse:

«O que é que estavas a dizer há bocado sobre as andorinhas?»

Isto atrasou-nos. Quando chegámos, as luzes da aldeia estavam acesas.


Entrei em casa a correr e tropecei, no varandim, nas mulheres gordas e
cegas, as gémeas de San Jerónimo que todas as terças-feiras vêm cantar
para o meu avô, desde antes de eu nascer, segundo disse a minha mãe.
Passei a noite inteira a pensar que hoje voltaríamos a sair da escola
e que iria-mos ao rio, mas não com Gilberto e Tobias. Queria ir
sozinho com Abraão, para lhe ver o brilho da barriga quando mergulha e
torna a aparecer como um peixe metálico. Toda a noite desejei
regressar com ele, sozinho pela obscuridade do túnel verde, para lhe
roçar a coxa pelo caminho. Sempre que o faço, é como se alguém me
mordesse com uns mordiscos suaves, que me eriçam a pele.

Se este homem que saiu para ir conversar com o meu avô na outra sala
não demorar muito, pode ser que cheguemos a casa antes das quatro.
Então irei ao rio com Abraão.
Ficou a viver em nossa casa. Ocupou um dos quartos da galeria, o que
dá para a rua, porque eu assim achei conveniente; porque sabia que um
homem do seu carácter não arranjaria maneira de estar à vontade no
hotelzinho da aldeia. Pôs um aviso na porta (até há poucos anos,
quando caiaram a casa, ainda estava no seu lugar, escrito a lápis por
ele próprio, em letra cursiva), e na semana seguinte foi preciso
arranjar mais cadeiras, para satisfazer as exigências de uma numerosa
clientela.

Depois de me ter entregue a carta do coronel Aureliano Buendía, a


nossa conversa no escritório prolongou-se de tal maneira que Adelaida
não duvidou que se tratava de um funcionário militar em importante
missão, e dispôs a mesa como para uma festa. Falámos do coronel
Buendía, da sua filha nascida de sete meses e do primogénito meio
tolo. Ainda a conversa não ia longa quando percebi que aquele homem
conhecia bem o Intendente-Geral e que tinha suficiente estima por ele
para corresponder à sua confiança. Quando Meme nos veio dizer que a
refeição estava servida, pensei que a minha esposa tinha improvisado
umas coisitas para obsequiar o recém-chegado. Mas estava muito longe
da improvisação, aquela mesa esplêndida, posta com uma toalha nova,
com a louça de porcelana exclusivamente destinada aos jantares de
família do Natal e do Ano Novo.

Adelaida estava solene e altiva numa das extremidades da mesa, com o


vestido de veludo fechado até acima, aquele que usou antes do nosso
casamento para tratar dos assuntos da sua família na cidade. Adelaida
tinha hábitos mais refinados do que os nossos, certa experiência
social que, a partir do nosso casamento, começou a influenciar os
costumes da minha casa. Tinha posto o medalhão familiar, aquele que
ostentava em ocasiões de extrema importância, e toda ela, como a mesa,
como os móveis, como o ar que se respirava na sala de jantar, produzia
uma severa sensação de compostura e asseio. Quando chegámos ao salão,
até ele, que sempre foi tão descuidado no vestir e nas maneiras, se
deve ter sentido envergonhado e deslocado, porque levou a mão ao botão
do colarinho, como se tivesse gravata, e notou-se-lhe uma ligeira
hesitação no andar despreocupado e enérgico. Não há nada que recorde
com tanta precisão como aquele instante em que ir-rompemos na sala de
jantar e eu próprio me senti vestido demasiado caseiramente para uma
mesa como a preparada por Adelaida.

Nas travessas havia aves de criação e caça grossa. Exactamente como,


de resto, nas nossas refeições daquele tempo; mas a sua apresentação
na louça nova, por entre os candelabros recém-area-dos, era
espectacular e diferente do habitual. Embora a minha esposa soubesse
que se receberia um único visitante, pôs os oito talheres, e a
garrafa de vinho, ao centro, era uma exagerada manifestação da
diligência com que tinha preparado a homenagem para o homem que, desde
o primeiro momento, confundira com um distinto funcionário militar.
Nunca vi em minha casa um ambiente mais carregado de irrealidade.

A indumentária de Adelaida teria podido parecer ridícula se não


fossem as suas mãos (eram realmente bonitas, e demasiado brancas),
que equilibravam com a sua distinção o muito de falso e rebuscado que
tinha o seu aspecto. Foi quando ele levou a mão ao botão da camisa que
eu me apressei a dizer: «A minha esposa em segundas núpcias,
doutor.» Uma nuvem toldou o rosto de Adelaida e tornou-o diferente e
sombrio. Ela não se mexeu de onde estava, com a mão estendida,
sorrindo, mas já não com o ar de cerimoniosa altivez que tinha quando
entrámos na sala de jantar.

O recém-chegado bateu as botas, como um militar, levou a ponta dos


dedos esticados à fronte e a seguir dirigiu-se para ela.

«Senhora», disse. Mas não pronunciou nenhum nome.


Só quando o vi apertar a mão de Adelaida com uma sacudidela tosca me
apercebi da vulgaridade e da grosseria do seu comportamento.

Sentou-se na outra extremidade da mesa, entre os cristais novos,


entre os candelabros. A sua presença desleixada destacava-se como uma
nódoa de sopa na toalha.

Adelaida serviu o vinho. A sua emoção do princípio tinha-se


transformado num nervosismo passivo que parecia dizer: Está bem, tudo
se fará como estava previsto, mas deves-me uma explicação. E foi
depois de ela servir o vinho e se sentar no outro extremo da mesa,
enquanto Meme se preparava para servir os pratos, que ele se deitou
para trás na cadeira, apoiou as mãos na toalha e disse, sorrindo:

«Olhe, menina, ponha a ferver um pouco de erva e traga-me isso como se


fosse sopa.»

Meme não se mexeu. Tentou rir, mas não pôde, e voltou-se para
Adelaida. Então ela, sorrindo também, mas visivelmente desconcertada,
perguntou-lhe: «Que espécie de erva, doutor?» E ele, com a sua
parcimoniosa voz de ruminante:

«Erva vulgar, minha senhora; da que comem os burros.»


5.

HÁ um momento em que a sesta se esgota. Até a secreta, recôndita,


minúscula actividade dos insectos cessa nesse momento preciso; o
curso da natureza detém-se; a criação vacila à beira do caos e as
mulheres levantam-se, babadas, com a flor da almofada bordada na face,
sufocadas pela temperatura e pelo rancor; e pensam: «Ainda é
quarta-feira em Macondo.» E então tornam a aninhar-se a um canto,
entrelaçam o sono com a realidade e põem-se de acordo para urdir a
intriga, como se fosse um imenso lençol de linho tecido em comum por
todas as mulheres da aldeia.

Se o tempo de dentro tivesse o mesmo ritmo do de fora, agora


estaríamos em pleno sol, com o caixão no meio da rua. Lá fora seria
mais tarde: seria de noite. Seria uma pesada noite de Setembro com lua
e mulheres sentadas nos pátios, conversando sob a claridade verde, e
nós na rua, os três renegados, ao sol deste Setembro sedento. Ninguém
impedirá a cerimónia. Esperava que o alcaide fosse inflexível na sua
decisão de se lhe opor e que pudéssemos regressar a casa: a criança à
escola e o meu pai aos seus tamancos, à sua bacia debaixo da cabeça, a
gotejar de água fresca e com o seu jarro de limonada gelada ao lado
esquerdo. Mas agora é diferente. O meu pai foi outra vez
suficientemente persuasivo para impor o seu ponto de vista ao que a
princípio julguei ser uma decisão irrevogável do alcaide. Lá fora está
a aldeia em ebulição, entregue ao trabalho de uma longa, uniforme e
impiedosa intriga; e a rua limpa, sem uma sombra no pó limpo e virgem
desde que o último vento varreu as pegadas do último boi. E é uma
aldeia sem ninguém, com as casas fechadas, em cujas salas não se ouve
nada a não ser o surdo fervilhar da intriga e do ódio. E no quarto a
criança sentada, rígida, a olhar para os sapatos; tem um olho para o
candeeiro e outro para os jornais e outro para os sapatos e finalmente
dois para o enforcado, para a sua língua mordida, para os seus vítreos
olhos de cão agora sem avidez; de cão sem apetites, morto. A criança
olha para ele, pensa no enforcado que está deitado ao comprido debaixo
das tábuas; faz um trejeito triste e então tudo se transforma: sai um
tamborete à porta da barbearia e atrás dele o altarzinho com o
espelho, os pós e a água-de-colónia. A mão torna-se sardenta e grande,
deixa de ser a mão do meu filho, transforma-se numa mão grande e
destra que friamente, com calculada lentidão, começa a amolar a
navalha enquanto o ouvido ouve o zumbido metálico da folha temperada,
e a cabeça pensa: «Hoje virão mais cedo, porque é quarta-feira em
Macondo.» E então chegam, recostam-se nas cadeiras à sombra e na
frescura das ombreiras, torvos, estrábicos, as pernas cruzadas e as
mãos entrelaçadas sobre os joelhos, mordendo as pontas dos charutos;
olhando, falando da mesma coisa, vendo diante deles a janela fechada,
a casa silenciosa com a senhora Rebeca lá dentro. Ela também se
esqueceu de qualquer coisa: esqueceu-se de desligar a ventoinha e
percorre as salas com as redes nas janelas, nervosa, exaltada,
revolvendo os trastes da sua estéril e atormentada viuvez, para se
certificar até com o sentido do tacto de que não morrerá antes de
chegar a hora do enterro. Abre e fecha as portas das suas salas, à
espera que o relógio patriarcal se levante da sesta e lhe reconforte
os sentidos com a badalada das três. Tudo isto enquanto se perfaz o
trejeito da criança e torna a pôr-se dura, direita, sem demorar
se-quer metade do tempo que uma mulher leva a dar o último ponto à
máquina e a levantar a cabeça cheia de pinças. Antes da criança tornar
a ficar direita, pensativa, a mulher levou a máquina para o ângulo do
corredor e os homens morderam duas vezes os charutos, enquanto
observam uma ida e volta completa da navalha no assentador; e Agueda,
a tolhida, faz um último esforço para acordar os joelhos mortos; e a
senhora Rebeca dá mais uma volta à chave e pensa: «Quarta-feira em
Macondo. Bom dia para enterrar o diabo.» Mas então a criança torna a
mexer-se e há nova transformação no tempo. Enquanto alguma coisa se
mexer, pode saber-se que o tempo passou. De contrário, não. Se nada
se mexer é o tempo eterno, o suor, a camisa pegajosa sobre a pele e o
morto impávido e gelado por detrás da sua língua mordida. Por isso o
tempo não passa para o enforcado: porque, ainda que a mão da criança
se mexa, ele não o sabe. E enquanto o morto o ignora (porque a criança
continua a mexer a mão), Agueda deve ter passado mais uma conta no
rosário; a senhora Rebeca, estendida na cadeira de lona, está
perplexa, ao ver que o relógio permanece fixo à beira do minuto
iminente, e Agueda teve tempo (embora no relógio da senhora Rebeca
não tenha passado um segundo) de passar mais uma conta no rosário e
pensar: «Se pudesse, ia ter com o padre Angel.» Então a mão da criança
desce e a navalha aproveita o movimento no assentador e um dos homens,
sentado na frescura da ombreira, diz: «Devem ser umas três e meia,
não?» Então a mão detém-se. Outra vez o relógio morto à beira do
minuto seguinte, outra vez a navalha detida no espaço do seu próprio
aço; e Agueda ainda à espera do novo movimento da mão para esticar as
pernas e entrar na sacristia, de braços abertos, os joelhos de novo
despertos, dizendo: «Padre, padre.» E o padre Angel, prostrado na
quietude da criança, passando a língua pelos lábios para sentir o
viscoso sabor do pesadelo de almôndegas, ao ver Agueda, diria então:
«Isto deve ser um milagre, sem dúvida», e a seguir, revolvendo-se de
no-vo no torpor da sesta, gemendo na modorra líquida e pegajosa: «De
qualquer modo, Agueda, não são horas de dizer missa pelas almas do
purgatório.» Mas o novo movimento frustra-se, o meu pai entra na sala
e os dois tempos reconciliam-se; as duas metades ajustam-se,
consolidam-se, e o relógio da senhora Rebeca apercebe-se de que esteve
indeciso entre a lentidão da criança e a impaciência da viúva, e então
boceja, confuso, mergulha na prodigiosa quietude do momento e sai
escorrendo de tempo líquido, tempo exacto e rectificado, e inclina-se
para a frente e diz com cerimoniosa dignidade: «São duas e quarenta e
sete minutos, exactamente.» E o meu pai, que sem o saber quebrou a
paralisia do instante, diz: «Está nas nu-vens, filha.» E eu digo:
«Acha que pode acontecer alguma coisa?» E ele, suando, sorrindo:
«Tenho pelo menos a certeza de que em muitas casas se há-de queimar o
arroz e derramar o leite.»

Agora o caixão está fechado, mas recordo a cara do morto. Fixei-a com
tanta precisão que, se olho para a parede vejo os olhos abertos, as
bochechas caídas e cinzentas como a terra húmida, a língua mordida a
um lado da boca. Isto produz-me uma forte sensação de intranquilidade.
Talvez as calças nunca deixem de me apertar de um lado da perna.
O meu avô sentou-se ao pé da minha mãe. Quando voltou da sala ao lado
puxou uma cadeira, e agora permanece aqui, sentado ao pé de-la, sem
dizer nada, o queixo apoiado na bengala e a perna coxa esticada para a
frente. O meu avô espera. A minha mãe, como ele, espera. Os homens,
que deixaram de fumar na cama e permanecem quietos, compostos, sem
olhar para o caixão, também eles esperam.
Se me vendassem os olhos, se me pegassem na mão e me dessem vinte
voltas pela aldeia e me voltassem a trazer a este quarto,
reconhecê-lo-ia pelo cheiro. Nunca esquecerei que esta sala cheira a
detritos, a baús amontoados, apesar de só ter visto um baú, no qual eu
e Abraão nos poderíamos esconder e ainda sobraria espaço para Tobias.
Conheço as salas pelo cheiro.
O ano passado, Ada tinha-me sentado ao colo. Eu tinha os olhos
fechados e via-a através das pestanas. Via-a indistinta, como se não
fosse uma mulher mas apenas um rosto que olhava para mim e se
baloiçava e balia como uma ovelha. Estava a começar a adormecer
completamente, quando senti o cheiro.
Não há em casa um cheiro que eu não reconheça. Quando me deixam
sozinho na galeria, fecho os olhos, estendo os braços e ando. Penso:
Quando sentir um cheiro a rum canforado, estarei no quarto do meu
avô. Continuo a andar, com os olhos fechados e os braços estendidos.
Penso: Agora vou passar pelo quarto da minha mãe, porque cheira a
baralhos novos. A seguir há-de cheirar a alcatrão e a bolinhas de
naftalina. Continuo a andar e sinto o cheiro a baralhos novos no
preciso instante em que oiço a voz da minha mãe, cantando no quarto.
Então sinto o cheiro a alcatrão e a bolinhas de naftalina. Penso:
Agora continuará a cheirar a bolinhas de naftalina. Depois viro para
a esquerda do cheiro e hei-de sentir o outro cheiro, a roupa branca e
a janela fechada. Aí, paro. A seguir, depois de dar três passos,
sinto o no-vo cheiro e fico quieto, com os olhos fechados e os braços
estendidos, e oiço a voz de Ada, que grita: «Menino, lá estás tu a
andar de olhos fechados.»

Naquela noite, quando começava a adormecer, senti um cheiro que não


existe em nenhuma das salas da casa. Era um cheiro forte e tépido,
como se tivessem agitado um jasmineiro. Abri os olhos, cheirando o ar
espesso e carregado. Disse: «Sentes?» Ada estava a olhar para mim, mas
quando lhe falei fechou os olhos e olhou para o outro lado. Eu tornei
a dizer-lhe: «Não sentes? É como se houvesse jasmins nalgum sítio.»
Então ela disse:
«É o cheiro dos jasmins que estiveram junto ao muro há nove anos.»

Sentei-me ao colo dela. «Mas agora não há jasmins», disse. E ela


respondeu: «Agora não, mas há nove anos, quando tu nasceste, havia um
pé de jasmim junto à parede do pátio. À noite fazia calor e cheirava
como agora.» Reclinei-me no ombro dela. Olhava-lhe para a boca
enquanto ela falava. «Mas isso foi antes de eu nascer», disse. E ela
disse: «É que naquele tempo houve um longo Inverno e foi preciso
limpar o jardim.»

O cheiro continuava ali, tépido, quase palpável, agitando os outros


cheiros da noite. Eu disse a Ada: «Quero que me contes isso.» E ela
ficou calada um instante, olhou depois para o muro branco de cal com
lua e disse:
«Quando fores grande, hás-de saber que o jasmim é uma flor que
aparece.»
Eu não entendi, mas senti um arrepio estranho, como se uma pessoa me
tivesse tocado. Disse: «Está bem»; e ela disse: «Com os jasmins
acontece o mesmo que com as pessoas, que saem de noite a vaguear,
depois de mortas.»
Deixei-me estar recosta-do no seu ombro, sem dizer nada. Pensava
noutras coisas, na cadeira da cozinha em cujo fundo roto o meu avô põe
os sapatos a secar, quando chove. Já então sabia que na cozinha há um
morto que todas as noites se senta, sem tirar o chapéu, a contemplar
as cinzas do fogão apagado. Passado um momento, disse: «Isso deve ser
como o morto que se senta na cozinha.» Ada olhou para mim, abriu os
olhos e disse: «Qual morto?» E eu disse-lhe: «O que está todas as
noites na cadeira onde o avô põe os sapatos a secar.» E ela disse:
«Não há lá nenhum morto. A cadeira está ao pé do fogão porque já não
serve para mais nada, a não ser para secar sapatos.»

Isto foi no ano passado. Agora é diferente, agora vi um cadáver e


basta-me fechar os olhos para continuar a vê-lo por dentro, na
escuridão dos olhos. Ia dizê-lo à minha mãe, mas ela começou a
conversar com o meu avô. «Acha que pode acontecer alguma coisa?», diz.
E o meu avô, levantando o queixo da bengala, movendo a cabeça: «Tenho
pelo menos a certeza que em muitas casas se há-de queimar o arroz e
derramar o leite.»
6.

AO princípio dormia até às sete. Víamo-lo aparecer na cozinha,


com a camisa sem colarinho abotoada até cima, as mangas enrugadas e
sujas arregaçadas até aos cotovelos, as calças enxovalhadas à
altura do peito e o cinto amarrado por fora, muito mais abaixo do
cós. Dava a impressão de que as calças iam resvalar, cair, por falta
de um corpo sólido a que se agarrassem. Não tinha emagrecido, mas
notava-se-lhe no rosto, não já a ex-pressão militar e altaneira do
primeiro ano, mas antes o semblante abúlico e cansado do homem que
não sabe o que será da sua vida daí a um minuto, nem tem o menor
interesse em averiguá-lo. Tomava o seu café puro, depois das sete, e
a seguir voltava para o quarto, dando no regresso os seus
inexpressivos bons-dias.
Há quatro anos que vivia em nossa casa, e era considerado em Macondo
um profissional sério, apesar do seu carácter brusco e as suas
maneiras desordenadas terem criado à sua volta uma atmosfera mais
parecida com o temor do que com respeito.

Foi o único médico na aldeia até chegar a companhia bananeira e se


iniciarem os trabalhos do caminho-de-ferro. Então começaram a sobrar
cadeiras no quartinho. As pessoas que o foram consultar durante os
primeiros quatro anos da sua estada em Macondo começaram a deixar de
lá ir, depois de a companhia ter organizado o serviço médico para os
seus trabalhadores. Ele deve ter visto os novos rumos traçados pela
revoada, mas não disse nada. Continuou a abrir a porta da rua, a
sentar-se na sua cadeira de couro durante todo o dia, até que
passaram muitos anos sem voltar um doente. Então pôs o ferrolho na
porta, comprou uma rede e fechou-se no quarto.

Meme ganhou por essa altura o hábito de lhe ir levar um


pequeno-almoço composto por bananas e laranjas. Comia os frutos e
atirava as cascas para um canto, de onde a guajira as tirava ao
sábado, quando fazia a limpeza ao quarto. Mas, pela maneira como
procedia, não seria difícil suspeitar que pouco lhe importaria se um
sábado se deixasse de fazer a limpeza e o quarto se transformasse
num esterqueiro.

Agora não fazia absolutamente nada. Passava as horas na rede,


baloiçando-se. Pela porta entreaberta, víamo-lo na obscuridade, e o
seu rosto seco e inexpressivo, o seu cabelo revolto, a vitalidade
doentia dos seus duros olhos amarelos, davam-lhe o aspecto
inconfundível do homem que começou a sentir-se derrotado pelas
circunstâncias.
Durante os primeiros anos da sua estadia em nossa casa, Adelaida
mostrou-se aparentemente indiferente ou aparentemente conformada ou
realmente de acordo com a minha vontade de que ele permanecesse em
nossa casa. Mas quando fechou o consultório e só saía do quarto à
hora das refeições, vindo sentar-se à mesa com a mesma apatia
silenciosa e dolorida de sempre, a minha mulher rompeu os diques da
sua tolerância. Disse-me: «É uma heresia continuar a sustentá-lo. É
como se estivésse-mos a alimentar o diabo.» E eu, sempre a
defendê-lo, por um complexo sentimento de piedade, de admiração e de
pena (pois, ainda que queira encobri-lo agora, havia muito de pena
naquele sentimento), insistia: «Temos de o suportar. É um homem sem
ninguém no mundo e precisa que o compreendam.»

Pouco depois, o caminho-de-ferro começou a prestar os seus serviços.


Macondo era uma aldeia próspera, cheia de caras novas, com um salão
de cinema e numerosos lugares para toda a gente, menos para ele.
Continuou fechado, esquivo, até à manhã em que intempestivamente,
se apresentou na sala de jantar à hora do pequeno-almoço e falou
com espontaneidade e até com entusiasmo das magníficas perspectivas
da aldeia. Nessa manhã ouvi a palavra pela primeira vez. Disse-a
ele: «Tudo isto há-de passar quando nos acostumarmos à revoada.»

Meses mais tarde vimo-lo sair à rua com frequência, ao entardecer.


Ficava sentado na barbearia até às últimas horas do dia e
inter-vinha nas tertúlias que se formavam à porta, ao pé do rádio
portátil, ao pé do tamborete alto que o barbeiro punha na rua para
que a sua clientela desfrutasse do fresco do entardecer.
Os médicos da companhia não se contentaram com privá-lo de facto dos
seus meios de vida; em 1907, quando já não havia em Macondo um só
paciente que se lembrasse dele e quando ele próprio tinha desistido
de o esperar, um dos médicos das bananeiras sugeriu ao alcaide que
exigisse a todos os profissionais da aldeia o registo dos seus
títulos. Ele não se deve ter sentido incluído quando apareceu o
edital, uma segunda-feira, nos quatro cantos da praça. Fui eu que
lhe falei da conveniência de cumprir aquele requisito. Mas ele,
tranquilo, indiferente, limitou-se a responder: «Eu não, coronel.
Não voltarei a meter-me em nada disso.» Nunca consegui saber se
tinha realmente os seus títulos em ordem. Nem sequer soube se era
francês como se supunha, nem se conservava recordações de uma
família, que deve ter tido, mas sobre a qual nunca disse uma
palavra. Algumas semanas depois, quando o alcaide e o seu
secretário compareceram em minha casa para lhe exigirem a
apresentação do registo da sua licença, ele negou-se de maneira
rotunda a sair do quarto. Nesse dia, depois de cinco anos a vivermos
na mesma casa, a comermos à mesma mesa, apercebi-me de que nem
sequer sabíamos o seu nome.

Não seria preciso ter dezassete anos (como eu tinha então) para
reparar - desde que vi Meme aperaltada na igreja, e depois, quando
falei com ela na ta-berna - que em nossa casa o quartinho que dava
para a rua estava fechado. Mais tarde soube que a minha madrasta o
fechara a cadeado e não consentia que se tocasse nas coisas que lá
estavam dentro: a cama que o médico usou até comprar a rede; a
mesinha dos medicamentos, da qual não trouxe para a casa de esquina
senão o dinheiro acumulado durante os seus melhores anos (que devia
ser muito, porque nunca teve gastos em casa e chegou para Meme abrir
a taberna); e além disso, por entre um montão de detritos e jornais
velhos escritos no seu idioma, a bacia e algumas roupas pessoais
imprestáveis. Era como se todas aquelas coisas estivessem
contaminadas pelo que a minha madrasta considerava uma natureza
maléfica, completamente diabólica.

Eu devia ter-me apercebido de que o quartinho estava fechado em


Outubro ou Novembro (três anos depois de Meme e ele deixarem a
casa), porque no princípio do ano seguinte começara a alimentar
esperanças sobre a instalação de Martín nessa divisão. Desejava viver
nela depois do meu casamento; rondava-a; nas conversas com a minha
madrasta, chegava até a sugerir que já era tempo de se abrir o
cadeado e de levantar a inadmissível quarentena imposta a um dos
sítios mais íntimos e aprazíveis da casa. Mas, antes de começarmos a
fazer o meu vestido de noiva, ninguém me falou directamente do
médico, e muito menos do quartinho, que continuava a ser como que
algo seu, como que um fragmento da sua personalidade que não podia
ser desligado da nossa casa enquanto nela vivesse alguém que
pudesse recordá-lo.
Eu ia casar-me daí a me-nos de um ano. Não sei se seriam as
circunstâncias em que se desenrolou a minha vida durante a infância
e a adolescência que me davam por esta altura uma noção imprecisa
dos factos e das coisas. Mas o certo é que, naqueles meses em que se
faziam os preparativos para o meu casamento, ainda eu ignorava o
segredo de muitas coisas. Um ano antes de me casar com ele,
recordava Martín através de uma vaga atmosfera de irrealidade.
Talvez por isso, desejava tê-lo perto, no quartinho, para me
convencer de que se tratava de um homem concreto, e não de um noivo
conhecido em sonhos. Mas já não me sentia com forças para falar dos
meus projectos à minha madrasta. O natural teria sido dizer: «Vou
pôr a mesa ao pé da janela e a cama encostada à parede de dentro.
Vou pôr um vaso de cravos na prateleira e um ramo de aloés por cima
da porta.» Mas à minha cobardia, à minha absoluta falta de decisão,
juntava-se a nebulosidade do meu noivo. Recordava-o como uma figura
vaga, inacessível, cujos únicos elementos concretos pareciam ser o
bigode brilhante, a cabeça um pouco inclinada para a esquerda e o
eterno casaco de quatro botões.
Estivera em nossa casa nos fins de Julho. Passava o dia connosco e
conversava no escritório com o meu pai, dando voltas a um misterioso
negócio de que nunca consegui saber nada. À tarde, Martín e eu íamos
com a minha madrasta às plantações. Mas, quando o via regressar na
claridade malva do crepúsculo, quando estava mais perto de mim,
caminhando junto ao meu ombro, então era mais abstracto e irreal.
Sabia que nunca seria capaz de o imaginar humano, ou de encontrar
nele a solidez indispensável para que a sua recordação me desse
coragem, me fortalecesse no momento de dizer: «Vou arranjar o quarto
para Martín.»
Até a ideia de me ir casar com ele me parecia inverosímil um ano
antes do casamento. Conhecera-o em Fevereiro, no velório do menino
de Paloquemado. Havia várias raparigas a cantar e a bater palmas,
procurando esgotar até ao excesso a única diversão que nos era
permitida. Em Macondo havia um salão de cinema, ha-via um gramofone
público e outros locais de diversão, mas o meu pai e a minha
madrasta opunham-se a que as raparigas da minha idade os
frequentassem. «São divertimentos para a revoada», diziam.
Em Fevereiro fazia calor ao meio-dia. A minha madrasta e eu
sentávamo-nos na varanda, a passajar roupa branca, enquanto o meu
pai dormia a sesta. Cosíamos até ele passar, arrastando os socos,
para ir molhar a cabeça na bacia. Mas, à noite, Fevereiro era fresco
e profundo, e ouviam-se por toda a aldeia as vozes das mulheres
cantando nos velórios das crianças.

Na noite em que fomos ao velório do menino de Paloquemado, devia


ouvir-se melhor do que nunca a voz de Meme Orozco. Era magra,
desajeitada e rija como uma vassoura, mas sabia colocar a voz melhor
que ninguém. E, na primeira pausa, Genoveva García disse: «Está lá
fora sentado um forasteiro.» Creio que todas pará-mos de cantar,
menos Remédios Orozco. «Imagina que veio de casaco», disse Genoveva
García. «Tem estado toda a noite a falar, e os outros ouvem-no sem
tugir nem mugir. Tem um casaco de quatro botões e cruza a per-na e
usa meias com ligas e botas de ilhoses.» Ainda Meme Orozco não tinha
parado de cantar, já nós batíamos palmas e dizíamos: «Vamos
casar-nos com ele.»
Depois, quando em casa pensava nele, não encontrava nenhuma
correspondência entre aquelas palavras e a realidade. Era como se
tivessem sido ditas por um grupo de mulheres imaginá-rias que batiam
palmas e cantavam numa casa onde morrera uma criança irreal. Outras
mulheres fumavam ao nosso lado. Estavam sérias, vigilantes, os
longos pescoços de galináceo estendidos para nós. Atrás, na frescura
da ombreira, outra mulher, envolta até à cabeça num enorme lenço
preto, esperava que o café fervesse. De repente, uma voz masculina
tinha-se juntado às nossas. Ao princípio era desafinada e sem
direcção. Mas depois foi vibrante e metálica, como se o homem
estivesse a cantar na igreja. Veva García dera-me uma cotovelada nas
costelas. Então ergui os olhos e vi-o pela primeira vez. Era jovem e
limpo, com o colarinho engomado e o casaco abotoado nas quatro
casas. E estava a olhar para mim.

Eu ouvia falar do seu regresso em Dezembro e pensava que não havia


sítio mais apropriado para ele do que o quartinho fechado. Mas já
não o achava possível. Dizia a mim própria: «Martín, Martín,
Martín.» E o nome, examinado, saboreado, desmontado nas suas partes
essenciais, perdia todo o significado.

Ao sair do velório, ele agitara diante de mim uma chávena vazia.


Dissera: «Li a sua sina no café.» Eu ia a caminho da porta, entre as
outras raparigas, e ouvi a voz dele, funda, plácida, convincente:
«Conte sete estrelas e sonhará comigo.» Ao passar junto à porta,
vimos o menino de Paloquemado na urnazinha, a cara coberta de pó de
arroz, uma rosa na boca e os olhos abertos com palitos. Fevereiro
enviava-nos tépidas golfadas da sua morte, e no quarto flutuava o
bafo dos jasmins e das violetas queimadas pelo sol. Mas, no
silêncio do morto, a outra voz era constante e única: «Lembre-se
bem. Sete estrelas, só sete estrelas.»
Em Julho estava em nossa casa. Gostava de se encostar aos vasos do
varandim. Dizia: «Lembra-te de que nunca te olhava nos olhos. É o
segredo do homem que começou a sentir medo de se apaixonar.» E a
verdade é que não me lembrava dos seus olhos. Não teria sido capaz
de dizer, em Julho, de que cor tinha as pupilas o homem com quem me
ia casar em Dezembro. Todavia, seis meses antes, Fevereiro era
apenas um profundo silêncio ao meio-dia, um casal de centopeias,
macho e fêmea, enroscadas no chão da casa de banho; a mendiga das
terças-feiras pedindo um raminho de erva-cidreira, e ele,
empertigado, sorridente, com o casaco abotoado até cima, dizendo:
«Vou pô-la a pensar em mim a todas as horas. Pus um retrato seu
atrás da porta e espetei-lhe alfinetes nos olhos.» E Genoveva
García, morta de riso: «São palermices que os homens aprendem com os
guajiros.»

No fim de Março iria a nossa casa de passagem. Gastaria longas horas


no escritório com o meu pai, convencendo-o da importância de algo
que nunca consegui decifrar. Agora passaram onze anos desde o meu
casamento; nove desde que o vi dizendo-me adeus à janela do comboio,
fazendo-me prometer que trataria muito bem da criança enquanto não
regressasse. Haviam de passar estes nove anos sem que voltássemos a
saber nada dele, sem que o meu pai, que o ajudou a fazer os
preparativos dessa viagem sem fim, tenha voltado a dizer uma
palavra a respeito do seu regresso. Mas nem sequer nos três anos que
durou o nosso casamento foi mais concreto e palpável do que no
velório do menino de Paloquemado, ou naquele domingo de Março em que
o vi pela segunda vez, quando voltávamos da igreja, Veva García e
eu. Estava parado à porta do hotel, sozinho, com as mãos nos bolsos
do seu casaco de quatro botões. Disse: «Agora há-de pensar em mim
toda a vida, porque os alfinetes já caíram do retrato.» Disse-o com
a voz tão apagada e tensa que parecia verdade. Mas até aquela
verdade era diferente e estranha. Genoveva insistia: «São invenções
dos guajiros.» Três meses depois, Veva fugiu com o director de uma
companhia de saltimbancos, mas naquele domingo parecia ainda muito
escrupulosa e séria. Martín disse: «Tranquiliza-me saber que alguém
se lembrará de mim em Macondo.» E Genoveva García, olhando para
ele, com o rosto transtornado pela raiva, disse:

«Mafarificafá! Há-de apodrecer-lhe em cima esse casaco de quatro


botões.»
7.

EMBORA ele tivesse esperado o contrário, era um personagem


estranho na aldeia, apático apesar dos seus evidentes esforços por
parecer sociável e cordial. Vivia entre o povo de Macondo, mas
distanciado dele pela recordação de um passado contra o qual parecia
inútil qualquer tentativa de rectificação. Olhavam para ele com
curiosidade, como para um animal bisonho que tivesse permanecido
muito tempo à sombra e que reaparecesse com um comportamento que a
aldeia não podia deixar de considerar como postiço e, por isso
mesmo, suspeito.
Voltava da barbearia ao anoitecer e fechava-se no quarto. Desde há
algum tempo que suprimira a refeição da noite, e ao princípio
ti-vemos a impressão de que voltava cansado e ia directamente para
a rede, dormir até ao dia seguinte. Mas não tardou muito que me
apercebesse de que se passava algo extraordinário com as suas
noites. Ouvíamo-lo mexer-se no quarto com uma atormentada e
enlouquecedora insistência, como se nessas noites recebesse o
fantasma do homem que fora até então, e ambos, o homem passado e o
homem presente, se empenhassem numa surda batalha em que o homem
passado defendia a sua raivosa solidão, o seu invulnerável aprumo,
os seus hábitos intransigentes, e o homem presente, a sua terrível e
inalterável vontade de se libertar do seu homem anterior. Ouvia-o
dar voltas no quarto até de madrugada, até que o próprio cansaço
esgotava a força do seu adversário invisível.

Só me apercebi da verdadeira dimensão da sua mudança quando deixou


de usar as polainas e começou a tomar banho todos os dias e a
per-fumar a roupa com água-de-colónia. E, poucos meses depois, a sua
transformação tinha chegado ao limite em que o meu sentimento em
relação a ele deixou de ser uma simples tolerância compreensiva para
se transformar em compaixão. Não era o seu novo aspecto na rua que
me comovia. Era imaginá-lo durante a noite fechado no quarto,
raspando a lama das botas, molhando o trapo no lavatório, engraxando
os sapatos deteriorados por vários anos de uso contínuo. Comovia-me
pensar na escova e na caixinha da graxa guardadas debaixo da
esteira, subtraídas aos olhos do mundo, como se fossem os elementos
de um vício secreto e vergonhoso contraído numa idade em que a
maioria dos homens se tornam serenos e metódicos. Estava a viver, na
prática, uma tardia e estéril adolescência, e esmerava-se no vestir
como um adolescente, com a roupa todas as noites alisada com as
mãos, a frio, e sem ser suficientemente jovem para ter um amigo a
quem comunicasse as suas esperanças e os seus desencantos.

Também a aldeia se deve ter apercebido da sua mudança, porque pouco


tempo depois começou a dizer-se que estava apaixonado pela filha do
barbeiro. Não sei se haveria algum fundamento nesse rumor, mas o
certo é que me fez reparar na sua tremenda solidão sexual, na fúria
biológica que devia atormentá-lo naqueles anos de sordidez e
abandono.

Todas as tardes o víamos ir até à barbearia, cada vez mais esmerado


no vestir. A camisa de colarinho postiço, os punhos com botões
doura-dos e as calças limpas e engomadas, só que ainda com o cinto
por fora das presilhas. Parecia um noivo angustiadamente ataviado
envolto na exalação das loções baratas, o eterno noivo frustrado, o
amador crepuscular a quem faltaria sempre o ramo de flores para a
primeira visita.

Assim o surpreenderam os primeiros meses de 1909, sem que


continuasse a existir outro fundamento para os rumores da aldeia que
não fosse o facto de o verem todas as tardes sentado na barbearia,
mas sem que ninguém pudesse afirmar ter visto, uma vez sequer, a
filha do barbeiro. Descobri a crueldade desses boatos. Ninguém na
aldeia ignorava que a filha do barbeiro continuava solteira depois
de ter sofrido durante um ano inteiro a perseguição de um
espírito, um amante invisível que lhe deitava punhados de terra na
comida e turvava a água da talha e embaciava os espelhos da
barbearia e lhe batia até lhe pôr o rosto verde e desfigurado. Foram
os esforços de El Cachorro, os estolaços, a complexa terapêutica
da água benta, as relíquias sagradas e os salmos administrados com
dramática solicitude. Como último recurso, a mulher do barbeiro
fechou a filha enfeitiçada no quarto, espalhou punhados de arroz
pela sala e entregou-a ao amante invisível numa lua-de-mel solitária
e morta, depois da qual até os homens de Macondo disseram que a
filha do barbeiro tinha engravidado.

Ainda não passara um ano, deixou de esperar-se o monstruoso


acontecimento do seu parto, e a curiosidade popular orientou-se no
sentido de que o médico estava apaixonado pela filha do barbeiro,
apesar de toda a gente estar convencida de que a enfeitiçada se
fecharia no quarto, a esvair-se em vida muito antes de os seus
possíveis pretendentes se transformarem em homens casadoiros.
Por isso eu sabia que, mais do que uma fundamentada suposição, se
tratava de um rumor cruel, malevolamente premeditado. No fim de
1909, ele continuava a frequentar a barbearia e a aldeia continuava
a falar, organizando o casamento, sem que ninguém pudesse dizer que
a rapariga tenha alguma vez saído estando ele pre-sente, nem que
tivessem tido qualquer oportunidade de trocar uma palavra.

Num Setembro abrasador e morto como este, há treze anos, a minha


madrasta começou a fazer o meu vestido. Todas as tardes, enquanto o
meu pai dormia a sesta, sentávamo-nos a costurar ao pé dos vasos de
flores do varandim, junto da ardente exalação do alecrim. Setembro
foi assim toda a vida, desde há treze anos e muito mais. Como o meu
casamento havia de realizar-se em cerimónia íntima (pois assim o
decidira o meu pai), cosía-mos com lentidão, com a cuidadosa minúcia
de quem não tem pressa e encontrou no seu trabalho a melhor medida
para o seu tempo. Então falávamos. Eu continuava a pensar no
quartinho que dava para a rua, acumulando coragem para dizer à minha
madrasta que era o melhor sítio para instalar Martín. E nessa tarde
disse-lho.

A minha madrasta estava a coser a longa cauda de tule, e dava a


impressão, à luz ofuscante daquele Setembro intoleravelmente claro
e sonoro, de estar submersa até aos ombros numa nuvem desse mesmo
Setembro. «Não», disse a minha madrasta. E depois, voltando ao seu
trabalho, sentindo passarem-lhe diante dos olhos oito anos de
recordações amargas: «Não permita Deus que alguém torne a entrar
nesse aposento.»
Martín voltara em Julho, mas não se tinha hospedado lá em casa.
Gostava de se encostar aos vasos do varandim e de ficar a olhar
para o outro lado. Gostava de dizer: «Ficaria a viver em Macondo
para toda a vida.» De tarde íamos com a minha madrasta às
plantações. Regressávamos à hora do jantar, antes de se acenderem as
luzes da aldeia. Então dizia-me: «Mesmo que não fosse por ti, ainda
assim ficaria a viver em Macondo.» E também aquilo, da maneira como
o dizia, parecia verdade.
Por esse tempo fazia quatro anos que o médico tinha deixado a nossa
casa. E foi precisamente na tarde em que começámos a coser o vestido
de noiva - nessa tarde sufocante em que lhe falei no quartinho para
Martín - que a minha madrasta me falou pela primeira vez dos seus
estranhos costumes.

«Há cinco anos», disse, «ainda ali estava, fechado como um animal.
Porque não era só isso: um animal, mas qualquer coisa mais: um
animal herbívoro, um ruminante como qualquer boi de junta. Se se
tivesse casado com a filha do barbeiro, com a mosquinha morta que
fez a aldeia acreditar nessa grande mentira de que tinha concebido
depois de uma duvidosa lua-de-mel com os espíritos, é possível que
nada disto tivesse acontecido. Mas deixou de ir à barbearia
intempestivamente, e até apresentou uma transformação de última hora
que não passava de um novo capítulo na realização metódica do seu
espantoso plano. Só ao teu pai é que lhe pôde passar pela cabeça que
depois disso, sendo um homem de tão baixos costumes, pudesse
permanecer em nossa casa, vivendo como um animal, escandalizando a
aldeia, dando motivos para que se falasse de nós como de quem
pratica um permanente desafio à moral e aos bons costumes. O que
ele estava a planear ha-via de culminar com a mudança de Meme. Mas o
teu pai nem sequer reconheceu as alarmantes proporções do seu erro.»
«Não sabia nada disso», disse. As cigarras faziam uma barulheira no
pátio. A minha madrasta falava, sem deixar de coser, sem levantar a
vista do bastidor sobre o qual estava a gravar símbolos, a bordar
labirintos brancos. Dizia: «Nessa noite estávamos sentados à mesa
(todos menos ele, porque desde a tarde em que voltou pela última vez
da barbearia que não tomava a refeição da noite), quando Meme nos
veio servir. Estava alterada. \«Que tens, Meme?»', perguntei-lhe.
\«Nada, senhora. Porquê?»' Mas sabíamos que não estava bem, porque
vacilava junto do candeeiro e toda ela tinha um aspecto doentio.
\«Por amor de Deus, Meme, tu não estás bem»', disse eu. E ela lá se
aguentava nas pernas, como lhe era possível, até que se voltou na
direcção da cozinha, com a bandeja na mão. Então o teu pai, que não
parava de a observar, disse-lhe: \«Se não se sente bem, que se
deite.»' E ela não disse nada. Continuou com a bandeja na mão, de
costas para nós, até que sentimos o estrépito da louça a fazer-se em
cacos. Meme estava na varanda, agarrando-se à parede com as unhas.
Foi então que o teu pai o foi chamar a esse quarto, para que se
ocupasse de Meme.
Em oito anos de estadia em nossa casa», dizia a minha madrasta,
«nunca tínha-mos solicitado os seus serviços para nada de grave.
Nós, as mulheres, fomos ao quarto de Meme, friccioná-mo-la com
álcool, e esperámos que o teu pai voltasse. Mas não vieram, Isabel.
Não veio ver Meme, apesar de o homem que o alimentou durante oito
anos, que lhe deu cama e roupa lavada, o ter ido chamar
pessoalmente. Cada vez que me lembro disso, penso que a sua chegada
foi um castigo de Deus. Penso que toda essa erva que lhe demos
durante oito anos, todos esses cuidados, toda essa solicitude foram
uma prova de Deus para nos dar uma lição de prudência e desconfiança
do mundo. Era como se tivéssemos pegado em oito anos de
hospitalidade, de comida, de roupa limpa, e os tivéssemos atirado
aos porcos. Meme estava a morrer (pelo menos era o que nós
julgávamos) e ele, ali mesmo, continuava fechado, negando-se a
praticar o que já não era uma obra de caridade, mas de decência, de
gratidão, de simples consideração para com os seus protectores.

Só à meia-noite é que o teu pai chegou», continuava. «Disse


vagamente: \«Dêem-lhe fricções com álcool, mas não a purguem.»' E
para mim foi como se me tivesse esbofeteado. Meme tinha reagido com
as nossas fricções. Enfurecida, gritei: \«Álcool, pois claro. Já a
friccionámos e está melhor. Mas para fazer isso não precisámos de
viver oito anos à custa de ninguém.»' E o teu pai, ainda
condescendente, ainda com essa palermice conciliatória: \«Não é nada
de sério. Um dia hás-de perceber isso.»' Como se o outro fosse
adivinho.»
Nessa tarde, pela veemência da sua voz, pela exaltação das suas
palavras, era como se a minha madrasta estivesse a viver de novo os
episódios daquela noite remota em que o médico se recusou a tratar
Meme. O alecrim parecia asfixiado pela ofuscante claridade de
Setembro, pelo torpor das cigarras, pelo arfar dos homens que
tentavam desmontar uma porta na vizinhança.

«Mas um daqueles domingos, Meme foi à missa aperaltada como uma


senhora da alta», disse. «Lembro-me, como se fosse hoje, de que
tinha uma sombrinha de mui-tas cores.
Meme, Meme. Também foi um castigo de Deus. Nisso de a termos tirado
aos pais, que a matavam à fome, de nos termos encarregado dela,
dando-lhe tecto, alimentação e nome, nisso também interveio a mão da
Providência. Quando a vi à porta no dia seguinte, à espera que um
dos guajiros lhe levasse o baú, nem eu própria sabia para onde ia.
Estava transformada e séria, (parece-me que a estou a ver), parada
ao pé do baú, a falar com o teu pai. Tudo se fez sem me consultarem,
filha; como se eu fosse um boneco pintado na parede. Antes que eu
pudesse perguntar o que é que se estava a passar, porque é que
estavam a acontecer coisas estranhas na minha própria casa sem eu
saber, o teu pai tinha-me vindo dizer: \«Não tens nada que perguntar
a Meme. Ela vai-se embora, mas talvez volte daqui a algum tempo.»'
Perguntei-lhe para onde ia, e não me respondeu. Foi-se embora a
arrastar os socos, como se eu não fosse a mulher dele, mas sim um
fantoche pintado na parede.

Só dois dias depois», dizia, «é que soube que o outro se tinha ido
embora de madrugada e nem sequer tivera a decência de se despedir.
Tinha entrado sem dizer água vem e oito anos depois saía sem dizer
água vai, sem se despedir, sem dizer nada. Tal qual como teria feito
um ladrão. Pensei que o teu pai o tinha mandado embora por se ter
negado a tratar Meme. Mas quando lho perguntei, nesse mesmo dia,
limitou-se a responder: \«Tu e eu temos muito que conversar sobre
isso.»' E já lá vão cinco anos, e até hoje não voltou a tocar-me no
assunto.

Só com o teu pai e numa casa desordenada como esta, em que cada qual
faz o que muito bem entende, é que podia acontecer uma coisa assim.
Em Macondo não se falava de outra coisa e ainda eu ignorava que
Meme se tinha apresentado na igreja, enfeitada como uma qualquer
armada em senhora, e que o teu pai tinha tido o descaramento de a
levar de braço dado pela praça. Foi então que soube que não estava
tão longe como eu julgava, e que vivia na casa da esquina com o
médico. Tinham ido viver juntos, como dois porcos, sem passarem
sequer pela porta da igreja, apesar de ela ser baptizada. Um dia
disse ao teu pai: \«Deus há-de castigar esta heresia.»' E ele não
disse nada. Continuava a ser o mesmo homem tranquilo de sempre,
depois de ter apadrinhado o concubinato público e o escândalo.

Contudo, agora estou satisfeita por as coisas se terem passado


daquela maneira, em troca de o médico ter deixado a nossa casa. Se
aquilo não tivesse acontecido, ainda estaria ali no quartinho. Mas
quando soube que o tinha abandonado e que levava para a casa da
esquina os seus trastes e aquele baú que não cabia pela porta da
rua, senti-me mais tranquila. Era o meu triunfo, oito anos adiado.
Duas semanas depois, Meme tinha aberto a loja e até tinha máquina de
coser. Tinha comprado uma Domestic nova, com o dinheiro que ele
acumulou nesta casa. Eu considerava aquilo como uma afronta, e assim
o disse ao teu pai. Mas, embora ele não respondesse aos meus
protestos, via-se que, mais do que arrependido, estava satisfeito
com a sua obra, como se tivesse salvo a sua alma opondo às
conveniências e à honra desta casa a sua proverbial tolerância, a
sua compreensão, a sua liberalidade. E até um pouco de insensatez.
Disse-lhe: \«Deitaste aos porcos o melhor das tuas crenças.»' E ele,
como sempre: \«Também hás-de perceber isso, um dia»'.»
8.

DEZEMBRO chegou como uma Primavera imprevista, como foi escrito


num livro. E com ele chegou Martín. Apareceu em nossa casa a seguir
ao almoço, com uma mala de lona, sempre com o casaco de quatro
botões, agora limpo e engomado de fresco. Nada me disse, porque foi
directamente para o escritório do meu pai, conversar com ele. A data
do casamento fora fixada para Julho. Mas dois dias depois da chegada
de Martín, em Dezembro, o meu pai chamou a minha madrasta ao
escritório para lhe dizer que o casamento devia realizar-se
segunda-feira. Era sábado.

O meu vestido estava pronto. Martín estivera lá em casa todos os


dias, falava com o meu pai e este comunicava-nos as suas impressões
à hora das refeições. Eu não conhecia o meu noivo. Não estivera
sozinha com ele em nenhuma ocasião. No entanto, Martín parecia
ligado ao meu pai por uma profunda e sólida amizade, e este falava
dele como se fosse ele e não eu quem ia casar com Martín.
Eu não sentia nenhuma emoção perante a proximidade do meu casamento.
Continuava envolta naquela nuvem cinzenta através da qual Martín
chegava, direito e abstracto, gesticulando ao falar, abotoando e
desabo-toando o seu casaco de quatro botões. No domingo almoçou
connosco. A minha madrasta dispôs os lugares à mesa de maneira que
Martín ficasse ao pé do meu pai, três lugares separado de mim.
Durante o almoço, a minha madrasta e eu trocámos muito poucas
palavras. O meu pai e Martín conversavam sobre os seus negócios; e
eu, sentada a três lugares dele, olhava para o homem que daí a um
ano seria o pai do meu filho e a quem não me ligava sequer uma
amizade superficial.

No domingo à noite provei o vestido de noiva, no quarto da minha


madrasta. Via-me ao espelho pálida e pura, envolta na poalha de tule
que me fazia lembrar o fantasma da minha mãe. Dizia para mim, frente
ao espelho: :Aquela sou eu, Isabel. Estou vestida de noiva, para
me casar de madrugada. E desconhecia-me a mim própria; sentia-me
desdobrada no retrato da minha mãe morta. Meme falara-me dela, nesta
casa de esquina, poucos dias antes. Disse-me que depois do meu
nascimento vestiram a minha mãe com o seu vestido de noiva e
puseram-na no caixão. E agora, ao ver-me ao espelho, via os ossos da
minha mãe cobertos pelo verdete sepulcral, por entre um montão de
tule rasgado e uma massa de pó amarelo. Eu estava fora do espelho.
Lá dentro estava a minha mãe, de novo viva, a olhar para mim,
estendendo-me os braços do seu espaço gelado, tentando tocar a morte
que prendia os primeiros alfinetes da minha coroa de noiva. E atrás,
no meio do quarto, o meu pai, sério, perplexo: «Agora está
igualzinha a ela, com esse vestido.»
Nessa noite recebi a primeira, a última e a única carta de amor. Uma
mensagem de Martín escrita a lápis nas costas de um programa de
cinema. Dizia: :Como me será impossível chegar a tempo hoje à
noite, confessar-me-ei de madrugada. Diga ao coronel que o
combinado está quase conseguido e que por isso não posso ir agora.
Muito assustada? M. Fui para o quarto com o ácido sabor desta
carta e ainda tinha o céu da boca amargo quando acordei, poucas
horas depois, sacudida pela minha madrasta.
Mas na realidade passaram muitas horas até acordar por completo.
Sentia-me outra vez com o vestido de noiva, numa manhã fresca e
húmida, cheirando a almíscar. Sentia uma secura na boca, como quando
partimos de viagem e a saliva se recusa a humedecer o pão. Os
padrinhos estavam na sala desde as quatro. Eu conhecia-os a todos,
mas agora via-os diferentes e novos, os homens com fatos de lã e as
mulheres a falarem, com os chapéus postos, enchendo a casa com o
bafo denso e enervante das suas palavras.
A igreja estava vazia. Algumas mulheres voltaram-se para olhar para
mim quando atravessei a nave central, como um mancebo sagrado a
caminho da pedra dos sacrifícios. El Cachorro, magro e digno, a
única pessoa que tinha contornos de realidade naquele turbulento e
silencioso pesadelo, desceu pelo locutório e entregou-me a Martín
com quatro movimentos das suas mãos esquálidas. Martín estava a meu
lado, tranquilo e sorri-dente, como o vira no velório do menino de
Paloquemado, mas agora com o cabelo curto, como para me demonstrar
que no próprio dia do casamento se esmerara em ser ainda mais
abstracto do que já era naturalmente nos dias normais.

Nessa madrugada, já de regresso a casa, depois de os padrinhos terem


tomado o pequeno-almoço e proferido as frases habituais, o meu
marido saiu e só voltou a seguir à sesta. O meu pai e a minha
madrasta fingiram não se aperceber da minha situação. Deixaram
passar o dia sem alterar a ordem das coisas, de maneira que nada
permitisse sentir o soproextraordinário daquela segunda-feira. Tirei
o vestido de noiva, fiz com ele uma trouxa e guardei-o no fundo do
roupeiro, lembrando-me da minha mãe, pensando: Pelo menos estes
trapos hão-de servir-me de mortalha.

O marido irreal regres-sou às duas da tarde e disse que tinha


almoçado. Então pareceu-me, ao vê-lo chegar, com o cabelo cortado,
que Dezembro tinha deixado de ser um mês azul. Martín sentou-se a
meu lado e estivemos um momento sem falar. Pela primeira vez desde o
meu nascimento, senti medo de que começasse a anoitecer. Devo tê-lo
expressado de alguma maneira, porque de repente Martín pareceu
viver, inclinou-se sobre o meu ombro e disse: «Em que é que estás a
pensar?» Eu senti que alguma coisa se torcia no meu coração: o
desconhecido começava a tratar-me por tu. Olhei para cima, para onde
Dezembro era uma gigantesca bola brilhante, um luminoso mês de
vidro. Disse: «Estou a pensar que agora só faltava que começasse a
chover.»

Na última noite em que falámos na varanda, fazia mais calor que de


costume. Daí a poucos dias, ele regressaria para sempre da barbearia
e fechar-se-ia no quarto. Mas naquela última noite da varanda, uma
das mais cálidas e densas que a minha memória retém, mostrou-se
compreensivo, como em muito poucas ocasiões. A única coisa que
parecia viver, no meio daquele forno imenso, era a surda
reverberação dos grilos alvoroçados pela sede da natureza, e a
minúscula, insignificante e todavia desmedida actividade do alecrim
e do nardo, ardendo no tempo parado. Ambos permanecemos calados um
instante, suando essa substância gorda e viscosa que não é suor,
mas sim a baba solta da matéria viva em decomposição. Às vezes ele
olhava para as estrelas, para o céu desolado à força de esplendor
estival; depois permanecia silencioso, como inteiramente entregue à
azá-fama daquela noite monstruosamente viva. Permanecemos assim,
pensativos, frente a frente, ele na sua cadeira de couro, eu na de
baloiço. De repente, à passagem de uma asa branca, vi-o com a cabeça
triste inclinada sobre o ombro esquerdo. Recordei a sua vida, a sua
solidão, as suas espantosas perturbações espirituais. Recordei a
indiferença atormentada com que assistia ao espectáculo da vida.
Antes sentira-me ligado a ele por sentimentos complexos, por vezes
contraditórios e tão variáveis como a sua personalidade. Mas,
naquele momento, não tive a menor dúvida de que começara a estimá-lo
profundamente. Julguei descobrir dentro de mim essa misteriosa
força que desde o primeiro momento me induziu a protegê-lo, e senti
em carne viva a dor do seu quartinho sufocante e escuro. Vi-o
sombrio e derrotado, esmagado pelas circunstâncias. E subitamente, a
um novo relancear dos seus duros e penetrantes olhos amarelos, tive
a certeza de que o segredo da sua labiríntica solidão me tinha si-do
revelado pela tensa pulsação da noite. Antes de eu próprio ter tido
tempo de pensar porque o fazia, perguntei-lhe:
«Diga-me uma coisa, doutor: o senhor acredita em Deus?»

Ele olhou para mim. O cabelo caía-lhe sobre a testa e todo ele ardia
numa espécie de sufocação interior, mas o seu semblante não
apresentava qualquer sombra de emoção ou desordem. Disse,
inteiramente recuperada a sua parcimoniosa voz de ruminante:

«É a primeira vez que alguém me faz essa pergunta.»


«E o senhor, alguma vez a fez a si próprio?»

Não pareceu indiferente nem preocupado. Pareceu apenas interessado


na minha pessoa. Nem sequer na minha pergunta, e muito menos na sua
intenção.
«É difícil saber», disse.

«Mas não lhe provoca te-mor uma noite como esta? Não tem a sensação
de que há um homem maior do que todos caminhando pelas plantações,
enquanto tudo se imobiliza e todas as coisas parecem estáticas à
passagem do homem?»

Então ficou calado. Os grilos enchiam o espaço, para além do cheiro


tépido, vivo e quase humano que se desprendia do jasmineiro se-meado
em memória da minha primeira esposa. Um homem sem dimensões
caminhava, sozinho, através da noite.

«Pode crer que nada disso me perturba, coronel.» E agora parecia


estático, também ele, como as coisas, como o alecrim e o nardo sob o
calor ardente. «O que me desconcerta», disse, e ficou a olhar-me nos
olhos, concretamente, com dureza, «o que me desconcerta é que exista
uma pessoa como o senhor, capaz de afirmar com segurança que se
apercebe desse homem que caminha na noite.»
«Nós procuramos salvar a alma, doutor. A diferença é essa.» E então
fui mais longe do que me propunha. Disse: «O senhor não o ouve
porque é ateu.»
E ele, sereno, imperturbável:

«Creio que não sou ateu, coronel. O que acontece é que me perturba
tanto pensar que Deus existe como pensar que não existe. Por isso
prefiro não pensar nisso.»

Não sei porquê, tinha o pressentimento de que era exactamente aquilo


que me ia responder. É um desencontrado de Deus, pensei, ou-vindo
o que ele acabava de me dizer espontaneamente, com clareza, com
precisão, como se o tivesse lido num livro. Seguia-o embriagado pelo
torpor da noite. Sentia-me metido no coração de uma imensa galeria
de imagens proféticas.
Ali, do outro lado do varandim, estava o jardinzinho que Adelaida e
a minha filha cultivavam. Por isso o alecrim ardia, porque elas o
fortaleciam todas as manhãs com os seus cuidados, para que numa
noite como aquela o seu ardente vapor circulasse pela casa e
tornasse o sono mais repousado. O jasmineiro exalava o seu
insistente bafo e nós recebíamo-lo porque tinha a ida-de de Isabel,
porque de certa maneira aquele cheiro era um prolongamento da mãe
dela. Os grilos estavam no pátio, entre os arbustos, porque nos
esquecemos de limpar as ervas daninhas quando deixou de chover. A
única coisa incrível, fantástica, era que ele estava ali, com o seu
lenço enorme e ordinário, enxugando a testa brilhante de suor.

Depois de nova pausa, disse:


«Gostaria de saber porque me fez essa pergunta, coronel.»

«Ocorreu-me de repente», disse eu. «Talvez porque há sete anos que


queria saber o que pensa um homem como o senhor.»
Também eu enxugava o suor. Continuei: «Ou talvez porque me preocupo
com a sua solidão.» Esperei uma resposta que não veio. Vi-o diante
de mim, ainda triste e só. Recordei Macondo, a loucura da sua gente,
que queimava notas nas festas; a revoada sem direcção, que tudo
desprezava, que chafurdava no seu lameiro de instintos e encontrava
na dissipação o sabor desejado. Recordei a vida dele antes de chegar
a revoada. E a sua vida posterior, os seus perfumes baratos, os seus
velhos sapatos engraxados, o rumor que o perseguia como uma sombra
que ele próprio ignorava.
Disse-lhe: «Doutor, o senhor nunca pensou em ter uma mulher?»

E ainda eu não concluíra a pergunta, já ele estava a responder,


dando início a um dos seus longos e habituais rodeios:
«O senhor gosta muito da sua filha, coronel, não é assim?»

Respondi que isso era natural. Ele continuou a falar:


«Bom. Mas o senhor é diferente. Ninguém gosta mais do que o senhor
de pregar os seus próprios pregos. Eu vi-o a pôr dobradiças numa
porta, quando há vários homens ao seu serviço que o poderiam fazer.
Gosta disso. Creio que a sua felicidade consiste em andar por casa
com uma caixa de ferramentas, à procura de qualquer coisa para
arranjar. O senhor é capaz de agradecer que alguém lhe estrague as
dobradiças, coronel. Agradece porque vê nisso uma oportunidade para
ser feliz.»
«É um costume meu», disse, sem saber onde é que ele queria chegar.
«Dizem que a minha mãe era igual.»

Ele reagira. A sua atitude era pacífica, mas férrea.


«Muito bem», disse. «É um bom costume. E além disso é a felicidade
menos cara que conheci. Por essa razão tem uma casa como a que tem e
criou a sua filha dessa forma. Digo que deve ser bom ter uma filha
como a sua.»
Eu continuava a ignorar a finalidade daquele longo rodeio. Mas,
mesmo ignorando-a, perguntei:

«E o senhor, nunca pensou como seria bom para si ter uma filha?»
«Eu não, coronel», disse. E sorriu, mas tornou logo a pôr-se sério.
«Os meus filhos não seriam como os seus.»
Então não me restou a menor sombra de dúvida: ele falava a sério, e
aquela seriedade, aquela situação pareceram-me espantosas. Pensava:
É mais digno de lástima por isto do que por tudo o resto. Tinha de
ser protegido.
«O senhor ouviu falar de El Cachorro?», perguntei-lhe.

Respondeu que não. Eu disse: «El Cachorro é o pároco; mas, mais do


que isso, é um amigo de toda a gente. O senhor deve conhecê-lo.»
«Ah, sim, sim», disse ele. «Ele também tem filhos, não é?»

«Não é isso que me interessa agora», respondi. «O povo inventa


histórias sobre El Cachorro porque gosta muito dele. Mas ali tem o
senhor um caso, doutor. El Cachorro está muito longe de ser um
beato, um rato de sacristia, como se diz. É um homem completo, que
cum-pre os seus deveres como um homem.»

Agora ouvia com muita atenção. Permanecia silencioso, concentrado,


os seus duros olhos amarelos fixos nos meus. Disse: «Isso é bom,
não?»

«Creio que El Cachorro há-de ser santo», disse eu. E também


nisso era sincero. «Nunca tínhamos visto em Macondo nada igual. Ao
princípio desconfiaram dele por ser daqui, porque os velhos se
lembram dele quando ia apanhar pássaros como todos os rapazes.
Lutou na guerra, foi coronel, e isso era uma dificuldade. O senhor
sabe que não respeitam os veteranos pelas mesmas razões por que
respeitamos os sacerdotes. Além disso, não estávamos acostumados a
que nos lessem o almanaque Bristol, em vez dos Evangelhos.»

Sorriu. Aquilo devia parecer-lhe tão engraçado como a nós durante os


primeiros dias. Disse: «É curioso, não é?»
«El Cachorro é assim. Prefere orientar o povo para os fenómenos
atmosféricos. Tem uma preocupação quase teológica com as
tempestades. Todos os domingos fala delas. E por isso a sua prédica
não se baseia nos Evangelhos, mas sim nas previsões atmosféricas do
almanaque Bristol.»

Agora estava sorridente e escutava com uma atenção viva e


satisfeita. Eu também me sentia entusiasmado. Disse: «Há ainda uma
coisa que lhe interessa saber, doutor. Sabe desde quando está El
Cachorro em Macondo?»

Ele disse que não.


«Chegou por acaso no mesmo dia que o senhor», disse eu. «E uma coisa
ainda mais curiosa: se o senhor tivesse um irmão mais velho, tenho a
certeza de que seria igual a El Cachorro. Fisicamente, claro.»
Agora não parecia pensar noutra coisa. Notei pela sua seriedade,
pela sua atenção concentrada e tenaz, que tinha chegado o momento de
lhe dizer o que me propunha:

«Pois bem, doutor», disse. «Faça uma visita a El Cachorro e verá


que as coisas não são como o senhor as vê.»

E ele disse que sim, que iria visitar El Cachorro.


9.
FRIO, silencioso, dinâmico, o cadeado fabrica a sua ferrugem.
Adelaida pô-lo no quartinho quando soube que o médico veio viver
para aqui com Meme. A minha mulher considerou aquela mudança como um
triunfo seu, como o apogeu de um trabalho sistemático, tenaz,
iniciado por ela desde o exacto momento em que eu decidi que ele
viesse viver connosco. Dezassete anos depois, o cadeado continua a
guardar o quarto.

Se na minha atitude, inalterável durante oito anos, houve algo de


indigno aos olhos dos homens, ou de ingrato aos de Deus, o meu
castigo haveria de chegar muito antes da minha morte. Talvez me
coubesse expiar em vida o que considerei como um dever humanitário,
uma obrigação cristã. Porque ainda a ferrugem não tinha começado a
acumular-se no cadeado quando Martín chegou a minha casa com uma
pasta recheada de projectos, de cuja autenticidade nada consegui
saber, e a firme disposição de se casar com a minha filha. Chegou a
minha casa com um casaco de quatro botões, segregando juventude e
dinamismo por todos os poros, envolto numa luminosa aura de
simpatia. Casou com Isabel em Dezembro, faz agora onze anos.
Passaram nove desde que se foi embora, com a pasta cheia de
obrigações assinadas por mim, e prometendo voltar assim que
realizasse a operação que se propusera e para a qual contava com a
garantia dos meus bens. Passaram nove anos, mas isso não me dá o
direito de pensar que ele era um vigarista. Não tenho o direito de
pensar que o seu casamento não foi mais do que um ardil para me
convencer da sua boa-fé.
Mas oito anos de experiência tinham servido para alguma coisa.
Martín deve-ria ter ocupado o quartinho. Adelaida opôs-se. Dessa vez
a sua oposição fora férrea, decidida, inabalável. Eu sabia que a
minha mulher não teria hesitado em transformar a cavalariça num
quarto nupcial, tudo menos permitir que os recém-casados ocupassem o
quartinho. Dessa vez aceitei sem vacilar o seu ponto de vista. Era o
meu reconhecimento do seu triunfo, adiado durante oito anos. Se
ambos nos enganámos ao confiar em Martín, foi um erro partilhado.
Não há triunfo nem derrota para nenhum dos dois. Todavia, o que
viria a seguir estava para além das nossas forças, era como os
fenómenos atmosféricos anunciados no almanaque, que hão-de
cumprir-se fatalmente.

Quando disse a Meme que abandonasse a nossa casa, que seguisse o


rumo que considerasse mais conveniente para a sua vida; e mesmo
depois, embora Adelaida me tenha lançado à cara as minhas
debilidades e fraquezas, consegui rebelar-me, impor a minha vontade
a tudo e a todos (sempre assim fora) e organizar as coisas à minha
maneira. Mas algo me dizia que era impotente perante o curso que os
acontecimentos iam tomando. Não era eu quem decidia as coisas no meu
lar, mas sim outra força misteriosa, que organizava o curso da
nossa existência e da qual não passávamos de um dócil e
insignificante instrumento. Tudo parecia obedecer então ao natural
e escalonado cumprimento de uma profecia.
Pela maneira como Meme abriu a taberna (no fundo, toda a gente devia
saber que uma mulher laboriosa, que da noite para o dia passa a ser
concubina de um médico de província, mais tarde ou mais cedo acaba
atrás de um balcão), vi que ele tinha conseguido acumular em nossa
casa maior quantidade de dinheiro do que poderia imaginar-se, e que
o tinha na gaveta, em notas e moedas em que não tocava e que
atirava despreocupadamente para a caixa desde os tempos em que
começou a dar as consultas.
Quando Meme abriu a ta-berna, supunha-se que ele estivesse aqui, nas
traseiras, encurralado sabe-se lá por que implacáveis bestas
proféticas. Sabia-se que não comia nada da rua, que tinha plantado
uma horta e que, durante os primeiros meses, Meme comprava um pedaço
de carne para si, mas que um ano mais tarde tinha abandonado esse
costume, talvez porque o contacto directo com o seu homem tivesse
acabado por torná-la vegetariana. Então fecharam-se os dois, até que
as autoridades forçaram as portas, revistaram a casa e escavaram a
horta, tentando localizar o cadáver de Me-me.

Supunha-se que estivesse aqui, fechado, baloiçando-se na sua rede


velha e gasta. Mas eu sabia, mesmo nesses meses em que deixou de se
esperar o seu regresso ao mundo dos vivos, que a sua inflexível
clausura, a sua surda batalha com a ameaça de Deus havia de culminar
muito antes de lhe sobrevir a morte. Sabia que havia de sair mais
tarde ou mais cedo, porque não há homem que consiga viver metade da
vida em clausura, longe de Deus, sem sair de súbito para prestar ao
primeiro homem que encontre à esquina, sem o menor esforço, as
contas que nem as grilhetas e o cepo, nem o martírio do fogo e da
água, nem a tortura da cruz e do torno, nem a madeira e os ferros
incandescentes nos olhos e o sal eterno na língua e o potro da
tortura, nem os açoites e as grelhas e o amor lhe te-riam feito
prestar aos seus inquisidores. E essa hora chegaria para ele poucos
anos antes da sua morte.

Há muito que conhecia essa verdade, desde a última noite em que


conversámos na varanda, e depois, quando o fui chamar ao quartinho
para que tratasse Meme. Teria eu conseguido opor-me ao seu desejo de
viver com ela, na qualidade de marido e mulher? Antes talvez
tivesse conseguido. Nessa altura não, porque ia para três meses que
começara a cumprir-se novo capítulo da fatalidade.
Naquela noite não ocupava a rede. Estendera-se de costas no catre e
jazia com a cabeça deitada para trás, os olhos fixos no sítio onde
estaria o tecto se a luz da palmatória fosse mais intensa. Tinha
uma lâmpada eléctrica no quarto, mas nunca a usou. Preferia jazer na
penumbra, com os olhos fixos na escuridão. Não se mexeu quando
entrei, mas percebi que desde o momento em que pisei o limiar
começou a não se sentir sozinho. Então disse: «Se não é muito
incómodo, doutor. Parece que a guajira não se sente bem.»
Endireitou-se na cama. Um momento antes não se sentia sozinho no
quarto. Agora sabia que era eu que ali me encontrava. Eram sem
dúvida duas sensações inteiramente diferentes, porque sofreu uma
transformação imediata, alisou o cabelo e permaneceu sentado na
beira da cama, à espera.
«É Adelaida, doutor. Deseja que o senhor vá ver Meme», disse. E ele,
sentado, com a sua parcimoniosa voz de ruminante, respondeu-me de
chofre:
«Não é preciso. O que acontece é que ela está grávida.»
Depois inclinou-se para a frente, pareceu examinar o meu rosto e
disse: «Há anos que Meme se deita comigo.»

Devo confessar que não me surpreendi. Não senti perturbação,


perplexidade
ou cólera. Não senti nada. Talvez a sua confissão fosse demasiado
grave, no meu modo de ver, e saísse dos trilhos normais da minha
compreensão. Eu continuava quieto, de pé, impávido, tão frio como
ele, como a sua parcimoniosa voz de ruminante. Depois, quando
decorreu um longo silêncio e ele estava ainda sentado no catre, sem
se mexer, como esperando que eu tomasse a primeira decisão,
compreendi em toda a sua intensidade o que ele acabava de me dizer.
Mas nessa altura era demasiado tarde para me transtornar.
«É claro que o senhor se apercebe da situação, doutor.» Foi tudo o
que consegui dizer. Ele respondeu:
«Um indivíduo toma as suas precauções, coronel. Quando se corre um
risco, sabe-se como o corremos. Se alguma coisa falha, é porque
havia alguma coisa imprevista, fora do nosso alcance.»

Eu conhecia aquela espécie de rodeios. Como sempre, ignorava onde é


que ele queria chegar. Puxei uma cadeira e sentei-me em frente
dele. Então abandonou o catre, apertou a fivela do cinto,
levantou-se e ajustou as calças. Do fundo do quarto, continuou a
falar. Disse:
«Tão certo é que tomei as minhas precauções, que é a segunda vez que
está grávida. A primeira vez foi há ano e meio e ninguém deu por
nada.»
Continuava a falar sem emoção, andando outra vez em direcção ao
catre. Na escuridão, senti os seus passos lentos e firmes sobre a
tijoleira. Dizia:

«Mas é que então ela estava disposta a tudo. Agora não. Há dois
meses disse-me que estava outra vez prenhe, e eu disse-lhe o mesmo
que da primeira vez: vem ter comigo logo à noite, para te preparar a
mesma coisa. Ela disse-me nesse dia que nessa altura não, que no dia
seguinte. Quando fui tomar o café à cozinha, disse-lhe que estava à
espera dela, mas ela disse que nunca mais voltaria.»
Tinha chegado ao pé do catre, mas não se sentou. Virou-me de novo as
costas e iniciou outra volta pelo quarto. Eu ouvia-o falar. Sentia a
sua voz ir e vir, como se falasse comigo enquanto se embalava na
rede. Dizia as coisas com calma, mas com segurança. Eu sabia que
teria sido inútil tentar interrompê-lo. Limitava-me a ouvi-lo. E ele
dizia:

«Apesar disso, veio daí a dois dias. Eu tinha tudo preparado.


Disse-lhe que se sentasse aí e fui à mesa buscar o copo. Foi então,
quando lhe disse toma, que vi que daquela vez não o faria. Olhou
para mim a sorrir e disse com uma vozinha impiedosa: \«Este não o
vou perder, doutor. Este vou pari-lo para o criar»'.»
Senti-me exasperado pela serenidade dele. Disse-lhe: «Isso não
justifica nada, doutor. O que o senhor fez foi uma acção duas vezes
indigna; primeiro pelas relações dentro da minha própria casa,
depois pelo aborto.»
«Mas o senhor viu que fiz tudo o que podia, coronel. Era o mais que
podia fazer. Depois, quando vi que a coisa não tinha remédio,
dispus-me a falar consigo. Ia fazê-lo um destes dias.»
«Suponho que o senhor sabe que há um remédio para este tipo de
situações, quando realmente se quer lavar a afronta. O senhor sabe
quais são os princípios das pessoas que vivem nesta casa», disse.

E ele disse:
«Não quero provocar-lhe nenhum incómodo, coronel. Creia-me. O que
lhe ia dizer era isto: vou viver com a guajira para a casa que está
desocupada na esquina.»
«Em concubinato público, doutor», disse eu. «Sabe o que isso
significa para nós?»
Voltou ao catre. Sentou-se, inclinou-se para a frente e falou com
os coto-velos apoiados nas pernas. O seu tom tornou-se diferente. Ao
princípio era frio. Agora começava a ser cruel e desafiador. Disse:

«Estou a propor-lhe a única solução que não lhe causaria nenhum


transtorno, coronel. A outra seria dizer que o filho não é meu.»

«Mas Meme diria», disse eu. Começava a sentir-me indignado. A sua


maneira de se expressar era agora demasiado desafiadora e
agressiva para que eu a aceitasse com serenidade.
Mas ele, duro, implacável, afirmou:

«Pode ter a certeza absoluta de que Meme não o diria. Por ter a
certeza disso lhe digo que irei com ela para a casa da esquina, só
para lhe evitar complicações a si. Apenas por isso, coronel.»

Tal era a segurança com que se tinha atrevido a negar que Meme
pudesse atribuir-lhe a paternidade do seu filho, que me senti, então
sim, transtornado. Qualquer coisa me fazia pensar que a sua força
tinha raízes muito mais fundas do que as palavras. Disse:

«Confiamos em Meme como na nossa filha, doutor. Neste caso,


estaríamos do lado dela.»
«Se o senhor soubesse o que eu sei, não falaria dessa forma,
coronel. Perdoe-me que lho diga assim, mas se o senhor compara a
índia com a sua filha, ofende a sua filha.»
«O senhor não tem motivos para dizer isso», disse eu.

E ele respondeu, mais uma vez com aquela amarga dureza na voz:
«Tenho. E quando lhe digo que ela não pode dizer que sou o pai do
seu filho, também tenho motivos para isso.»

Deitou a cabeça para trás. Respirou fundo e disse:

«Se o senhor tivesse tempo para vigiar Meme quando ela sai de noite,
nem sequer me exigiria que a levasse comigo. Neste caso, quem corre
o risco sou eu, coronel. Carrego com as culpas para evitar
transtornos.»

Então compreendi que não entraria nunca com Meme pela porta da
igreja. Mas o grave é que, depois das suas últimas palavras, eu não
me teria arriscado a assumir o que mais tarde poderia vir a ser um
tremendo peso na consciência. Havia vários trunfos a meu favor. Mas o
único que ele tinha bastava-lhe para fazer uma aposta contra a minha
consciência.

«Muito bem, doutor», disse-lhe. «Ainda hoje à noite me encarregarei


de que lhes preparem a casa da esquina. Mas, de qualquer modo, quero
que conste que o ponho fora da minha casa, doutor. O senhor não sai
por sua própria vontade. O coronel Aureliano Buendía ter-lhe-ia
feito pagar bem caro a maneira como o senhor correspondeu à sua
confiança.»

E quando eu esperava ter atiçado os seus instintos e aguardava o


desencadear das suas obscuras forças primárias, ele descarregou-me
em cima todo o peso da dignidade.

«O senhor é um homem decente, coronel», disse. «Toda a gente o


sabe, e vivi nesta casa o tempo suficiente para que o senhor não
precise de mo recordar.»

Quando se pôs de pé, não parecia triunfante. Parecia apenas


satisfeito por ter podido corresponder às nossas atenções de oito
anos. Era eu que me sentia desorientado, culpado. Naquela noite, ao
ver os gérmens da morte que faziam visíveis progressos nos seus
duros olhos amarelos, compreendi que a minha atitude era egoísta e
que, por aquela única mácula na minha consciência, me caberia
sofrer para o resto da minha vida uma tremenda expiação. Ele, em
compensação, estava em paz consigo próprio. E disse:

«Quanto a Meme, dêem-lhe fricções com álcool. Mas não a purguem.»


10.

O avô voltou para ao pé da mamã. Ela está sentada, profundamente


absorta. O vestido e o chapéu estão aqui, na cadeira, mas a minha
mãe deixou de estar neles. O meu avô aproxima-se, vê-a absorta e
agita a bengala diante dos seus olhos, dizendo: «Acorde, menina». A
minha mãe pestanejou, sacudiu a cabeça. «Em que é que está a
pensar?», diz o meu avô. E ela, sorrindo com dificuldade:

«Estava a pensar em El Cachorro.»


O meu avô senta-se de novo ao pé dela, o queixo apoiado na bengala.
Diz: «Que coincidência. Eu estava a pensar no mesmo.»
Eles entendem-se um ao outro. Falam sem se olharem, a mamã
estendida na cadeira, dando palmadinhas no braço, e o meu avô
senta-do ao pé dela, ainda com o queixo apoiado na bengala. Mas
mesmo assim entendem-se um ao outro, como Abraão e eu nos entendemos
quando vamos ver Lucrecia.
Digo a Abraão: «Agora teco tacando.» Abraão caminha sempre à frente,
a uns três passos de mim. Sem se voltar para olhar, diz: «Ainda não,
daqui a pouco.» E eu digo-lhe: «Quando te-co alcutana vem rebenta.»
Abraão não vira a cara, mas oiço-o rir em voz baixa com um riso
tonto e simples que é como o fio de água que fica a tremer nos
beiços do boi quando acaba de beber. Diz: «Isso deve ser lá para as
cinco.» Corre um pouco mais e diz: «Se formos agora pode rebentar
alcutana.» Mas eu insisto: «De qualquer modo, sempre está teco
tacando.» E ele vira-se para mim e desata a correr, dizendo: «Bom,
então vamos.»

Para ver Lucrecia é preciso atravessar cinco pá-tios cheios de


árvores e valas. É preciso passar pelo murete verde com lagartos,
onde antes cantava o anão com voz de mulher. Abraão passa a correr,
brilhando como uma folha de metal sob a claridade forte, com o cão a
ladrar-lhe aos calcanhares. A seguir detém-se. Nesse momento
estamos di-ante da janela. Chamamos: «Lucrecia», baixinho, como se
Lucrecia estivesse a dormir. Mas está acordada, sentada na cama, sem
sapa-tos, com uma larga camisa de dormir branca e engomada que a
cobre até aos tornozelos.

Enquanto falamos, Lucrecia levanta os olhos e fá-los girar pelo


quarto e crava em nós um olho redondo e grande, como o de um
alcaravão. Então ri-se e começa a dirigir-se para o meio do quarto.
Tem a boca aberta e os dentes recortados e miúdos. Tem a cabeça
redonda, com o cabelo cortado como o de um homem. Quando chega ao
meio deixa de rir, agacha-se e olha para a porta, até que as mãos
lhe chegam aos tornozelos e, lentamente, começa a puxar a camisa de
dormir para cima, com uma lentidão calculada, ao mesmo tempo cruel e
desafiadora. Abraão e eu continuamos as-somados à janela, enquanto
Lucrecia puxa a camisa, os lábios esticados numa careta ofegante e
ansiosa, o enorme olho de alcaravão fixo e resplandecente. Então
vemos a barriga branca, que mais abaixo se transforma num azul
espesso, quando ela cobre a cara com a camisa de dormir e permanece
assim, esticada no meio do quarto, as pernas juntas e apertadas com
uma força trémula que lhe sobe dos calcanhares. De súbito descobre a
cara violentamente, aponta o indicador para nós e o olho luminoso
salta da sua órbita, no meio dos terríveis uivos que ressoam por
toda a casa. Então abre-se a porta do quarto e surge a mulher a
gritar: «Porque é que não vão moer a paciência à puta da vossa mãe?»
Há uns poucos de dias que não vamos ver Lucrecia. Agora vamos ao rio
pelo caminho das plantações. Se sairmos cedo disto, Abraão há-de
estar à minha espera. Mas o meu avô não se mexe. Está sentado ao pé
da mamã, com o queixo apoiado na ben-gala. Eu fico a olhar para ele,
examinando-lhe os olhos por detrás das lentes, e ele deve sentir que
olho para ele porque de súbito suspira com força, sacode-se e diz à
minha mãe, com a voz apagada e triste: «El Cachorro fazia-os vir à
chicotada.»
A seguir levanta-se da cadeira e vai até junto do morto.

É a segunda vez que venho a este quarto. Da primeira, há dez anos,


as coisas estavam como estão agora. É como se ele não tivesse
voltado a tocar em nada desde então, ou como se desde aquela remota
madrugada em que veio viver com Memme não tivesse voltado a
ocupar-se da sua vida. Os papéis estavam neste mesmo lugar. A mesa,
a roupa escassa e ordinária, tudo ocupava o mesmo lugar que ocupa
hoje. Como se tivesse sido ontem que el cachorro e eu viemos
ajustar a paz entre este homem e as autoridades.

Por essa altura, a companhia bananeira tinha acabado de nos


espremer e tinha-se ido embora de Macondo com os detritos dos
detritos que nos trouxera. E com eles fora-se a revoada, os últimos
vestígios do que foi a próspera Macondo de 1915. Aqui ficava uma
aldeia arruinada, com quatro armazéns pobres e esquecidos, ocupada
por gente desempregada e rancorosa, atormentada pela recordação de
um passado próspero e pela amargura de um presente angustiado e
estático. Nada havia então no porvir, a não ser um tenebroso e
ameaçador domingo eleitoral.

Seis meses antes, uma manhã, apareceu um panfleto pregado nas portas
desta casa. Ninguém se interessou por ele e aqui esteve prega-do
durante muito tempo, até que os chuviscos finais la-varam as letras
ininteligíveis, e o papel desapareceu, arrastado pelos últimos
ventos de Fevereiro. Mas em fins de 1918, quando a proximidade das
eleições fez o governo pensar na necessidade de manter desperta ou
ex-citada a tensão dos seus eleitores, alguém falou às novas
autoridades deste médico solitário, de cuja existência há muito
ninguém poderia dar testemunho verídico. Devem ter-lhes dito que
durante os primeiros anos a índia que vivia com ele esteve à frente
de uma taberna que conheceu a mesma prosperidade que naqueles
tempos favoreceu até as mais insignificantes actividades de Macondo.
Um dia (ninguém se lembra em que data, nem sequer em que ano), a
porta da loja não se abriu. Supunha-se que Meme e o médico
continuavam a viver aqui, fechados, alimentando-se com os legumes
que eles próprios cultivavam no quintal. Mas no panfleto que
apareceu nesta esquina dizia-se que o médico assassinara a sua
amante e a sepultara na horta, por recear que a aldeia se servisse
de-la para o envenenar. O inexplicável é que se dissesse isso numa
época em que ninguém teria motivos para tramar a morte do médico.
Parece-me que as autoridades se tinham esquecido da sua existência,
até àquele ano em que o governo reforçou a polícia e a guarda-fiscal
com homens da sua confiança. Então desenterrou-se a remota lenda do
panfleto e as autoridades arrombaram estas portas, revistaram a
casa, cavaram o pátio e sondaram a fossa, tentando localizar o
cadáver de Meme. Mas não encontraram nem rasto dela.

Nessa ocasião teriam arrastado o médico, tê-lo-iam espezinhado e


teria sido certamente mais um sacrifício na praça pública e em nome
da eficácia oficial. Mas el cachorro interveio, foi a minha casa e
incitou-me a visitar o médico, certo de que eu obteria dele uma
explicação satisfatória.

Ao entrar pelas traseiras, surpreendemos os despojos de um homem


abandonado na rede. Nada neste mundo deve ser mais tremendo do que
os despojos de um homem. E eram-no muito mais os deste cidadão de
parte nenhuma, que se endireitou na rede quando nos viu entrar, e
parecia ele próprio coberto pela crosta de pó que tapava todas as
coisas do quarto. Tinha a cabeça firme e os seus olhos duros e
amarelos ainda conservavam a poderosa força interior que lhes
conheci em minha casa. Eu tinha a impressão de que, se o tivéssemos
raspado com a unha, o corpo teria aberto rachas, se teria
transformado num montão de serradura humana. Tinha cortado o bigode,
mas não se barbeava ao rés da pele. Desfazia-se da barba com a
tesoura, por isso o queixo não parecia semeado de pêlos duros e
vigorosos, mas sim de uma penugem suave e branca. Ao vê-lo na rede,
pensava: Agora não parece um homem. Agora parece um cadáver no
qual os olhos ainda não morreram.
Quando falou, a sua voz foi a mesma parcimoniosa voz de ruminante
que trouxe para nossa casa. Disse que não tinha nada a dizer. Disse,
como se julgasse que o ignorávamos, que a polícia tinha arrombado
as portas e escavado o pátio sem o seu consentimento. Mas não era
um protesto. Era apenas uma confidência dolente e melancólica.

Quanto a Meme, deu-nos uma explicação que poderia parecer pueril,


mas que foi dita por ele com o mesmo tom com que teria dito uma
verdade incontestável. Disse que Meme se tinha ido embora, era
tudo. Quando a loja fechou, começou a aborrecer-se em casa. Não
falava com ninguém, não tinha comunicação nenhuma com o mundo
exterior. Disse que um dia a viu a fazer a mala e não lhe disse
nada. Acrescentou que também não lhe disse nada quando a viu com o
vestido de sair à rua, os sapatos altos e a mala de mão, parada no
vão da porta mas sem falar, apenas como se estivesse a mostrar-se
assim arranjada, para ele saber que se ia embora. «Então», disse,
«levantei-me e dei-lhe o dinheiro que restava na gaveta.»
Eu perguntei-lhe: «Há quanto tempo, doutor?»

E ele respondeu: «Calcule-o pelo meu cabelo. Era ela que mo


cortava.»
El Cachorro falou muito pouco, naquela visita.
Desde a sua entrada no quarto que parecia impressionado com a visão
do único homem que não conhecera em quinze anos de permanência em
Macondo. Daquela vez apercebi-me (e melhor do que nunca, talvez
porque o médico tinha cortado o bigode) da extraordinária semelhança
entre aqueles dois homens. Não eram iguaizinhos, mas pareciam
irmãos. Um era vá-rios anos mais velho, mais magro e sujo. Mas havia
entre eles a afinidade de traços que existe entre dois irmãos,
ainda que um se pareça com o pai e o outro com a mãe. Então
lembrei-me da última noite na varanda. Disse: «Este é El Cachorro,
doutor. Uma vez o senhor prometeu-me visitá-lo.»

Ele sorriu. Olhou para o sacerdote e disse: «É verdade, coronel. Não


sei porque não o fiz.» E continuou a olhar para ele, examinando-o,
até que El
Cachorro falou.

«Mais vale tarde do que nunca», disse. «Gostaria de


ser seu amigo.»

Apercebi-me imediatamente de que, face ao estranho, El Cachorro


tinha perdido a sua força habitual. Falava com timidez, sem a
inflexível segurança com que a sua voz troava no púlpito, lendo em
tom transcendental e ameaçador as previsões atmosféricas do
almanaque Bristol.

Foi essa a primeira vez que se viram. E foi também a última.


Contudo, a vida do médico prolongou-se até esta madrugada, porque
El Cachorro interveio de novo a seu favor na noite em que lhe
suplicaram que tratasse dos feridos e ele nem sequer abriu a porta,
e lhe gritaram aquela terrível sentença cujo cumprimento me
encarregarei agora de impedir.
Preparávamo-nos para abandonar a casa, quando me lembrei de uma
coisa que desejava perguntar-lhe há anos. Disse a El Ca-chorro que
ficaria aqui, com o médico, enquanto ele intercedia junto das
autoridades. Quando ficámos sozinhos, disse-lhe:
«Diga-me uma coisa, doutor: o que é que aconteceu à criança?»

Ele não modificou a sua expressão. «Qual criança, coronel?»,


perguntou. E eu disse-lhe: «A sua. Meme estava prenhe quando saiu de
minha casa.» E ele, tranquilo, imperturbável:

«Tem razão, coronel. Até me tinha esquecido disso.»

O meu pai permaneceu silencioso. A seguir disse: «El Cachorro


fazia-os vir à chicotada.» Os olhos do meu pai manifestam um
nervosismo contido. E enquanto se prolonga esta espera que já vai
para meia hora (pois devem ser umas três horas), preocupa-me a
perplexidade da criança, a sua expressão absorta que nada parece
perguntar, a sua indiferença abstracta e fria, que a torna idêntica
ao pai. O meu filho vai dissolver-se no ar abrasador desta
quarta-feira, como aconteceu com Martín há nove anos, enquanto
agitava a mão à janela do comboio e desaparecia para sempre. Todos
os meus sacrifícios por este filho serão vãos, se continuar a
parecer-se com o pai. Em vão rogarei a Deus que faça dele um homem
de carne e osso, que tenha volume e cor como os homens. Tudo será em
vão enquanto tiver no sangue os gérmens do pai.

Há cinco anos, a criança não tinha nada de Martín. Agora vai


ganhando tudo, desde que Genoveva García regressou a Macondo com os
seus seis filhos, entre os quais havia dois pares de gémeos.
Genoveva estava gorda e envelhecida. Tinham-lhe aparecido umas
veiazinhas azuis à volta dos olhos, que davam um certo ar de
sujidade ao seu rosto anteriormente claro e firme. Manifestava uma
ruidosa e desordenada felicidade no meio da sua ninhada de
sapatinhos brancos e folhos de organdi. Eu sabia que Genoveva
tinha fugido com o director de uma companhia de saltimbancos, e
sentia não sei que estranha sensação de repugnância ao ver aqueles
seus filhos, que pareciam ter movimentos automáticos, como regidos
por um único mecanismo central, pequenos e inquietantemente iguais
entre si, os seis com sapatos e folhos idênticos. Parecia-me
dolorosa e triste a desorganizada felicidade de Genoveva, a sua
presença carregada de acessórios urbanos numa aldeia arruinada,
aniquilada pelo pó. Havia qualquer coisa de amargo, como que uma
desolada troça, na sua maneira de se mover, de parecer afortunada e
de se condoer dos nossos sistemas de vida tão diferentes dos que
conhecera na companhia de saltimbancos.
Ao vê-la lembrava-me de outros tempos. Disse-lhe: «Estás lindíssima,
mulher.» E então ela pôs-se triste. Disse: «Se calhar são as
recordações que fazem engordar.» E ficou a olhar para a criança com
atenção. Disse: «E que é feito do bruxo dos quatro botões?» E eu
respondi-lhe, secamente, porque sabia que ela sabia: «Foi-se
embora.» E Genoveva disse: «E não te deixou senão este?» E eu
disse-lhe que não, que só me tinha deixado o garoto. Genoveva riu
com um riso des-cosido e vulgar: «É preciso ser muito mole, para não
fazer mais do que um filho em cinco anos», disse, e continuou, sem
deixar de se mexer, cacarejando por entre a ninhada revolta: «E eu
que estava louca por ele. Juro-te que to teria roubado, se não o
tivéssemos conhecido no velório de uma criança. Naquele tempo era
muito supersticiosa.»
Foi antes de se despedir que Genoveva ficou a contemplar a criança
e disse: «Realmente, é igualzinho a ele. Só lhe falta o casaco de
quatro botões.» E, desde esse instante, a criança começou a ficar
igual ao pai, como se Genoveva lhe tivesse trazido o malefício da
sua identidade. Em certas ocasiões, surpreendi-o com os cotovelos
apoiados na mesa, a cabeça inclinada sobre o ombro esquerdo e o
olhar enevoado dirigido para o vazio. É igual a Martín, quando se
encostava aos vasos de cravos do varandim e dizia: «Mesmo que não
fosse por ti, ficaria a viver em Macondo para toda a vida.» Às vezes
tenho a impressão de que o vai dizer, como poderia dizê-lo agora que
está sentado ao pé de mim, taciturno, levando a mão ao nariz
congestionado pelo calor. «Dói-te?», pergunto-lhe. E ele diz que
não, que estava a pensar que não seria capaz de suster os óculos.
«Não precisas de te preocupar com isso», digo-lhe, e desfaço-lhe o
laço do pescoço. Acrescento: «Quando chegarmos a casa vais
descansar, para depois te dar banho.» E a seguir olho para o meu
pai, que acaba de dizer: «Cataure», chamando o mais velho dos
guajiros. É um índio sólido e baixo, que estava a fumar na cama e
que, ao ouvir o seu nome, levanta a cabeça e procura o rosto do meu
pai com os seus pequenos olhos sombrios. Mas, quando o meu pai vai
falar de novo, ou-vem-se no quartinho de trás os passos do alcaide,
que entra no aposento a cambalear.
11.

ESTA tarde foi terrível em nossa casa. Ainda que para mim não
fosse uma surpresa a notícia da sua morte, pois desde há tempos que
a esperava, não podia imaginar que ela produzisse semelhantes
trans-tornos em minha casa. Alguém tinha de me acompanhar a este
enterro, e eu pensava que esse acompanhante seria a minha mulher,
sobretudo depois da minha doença, há três anos, e daquela tarde em
que ela encontrou a bengalinha com festão de prata e a
bailarinazinha de corda, quando revistava as gavetas da minha
secretária. Creio que por aquela época nos tínhamos esquecido do
brinquedo. Mas naquela tarde pusemos a funcionar o mecanismo e a
bailarinazinha dançou como noutros tempos, animada pela música que
antes era festiva e que depois do longo silêncio na gaveta soava
taciturna e nostálgica. Adelaida via-a dançar e recordava. A seguir
voltou-se para mim, com o olhar humedecido por uma tristeza simples:

«De quem é que te estás a lembrar?», perguntei.


E eu sabia em quem Adelaida estava a pensar, enquanto o brinquedo
entristecia o espaço com a sua musiquinha gasta.

«Que terá sido dele?», perguntou a minha mulher, recordando,


comovida talvez pela agitação daqueles tempos em que ele aparecia à
porta do quarto, às seis da tarde, e pendurava o candeeiro na
ombreira.

«Está na casa da esquina», disse eu. «Um dia destes morre, e vamos
ter de o enterrar.»

Adelaida ficou em silêncio, absorta na dança do brinquedo, e eu


senti-me contagiado pela sua nostalgia. Disse-lhe: «Sempre desejei
saber com quem o confundiste no dia em que chegou. Preparaste aquela
mesa porque te fez lembrar alguém.»

E Adelaida disse, com um sorriso apagado:

«Havias de te rir de mim, se te dissesse quem é que me fez lembrar


quando se pôs aí, ao canto, com a bailarinazinha na mão.» E apontou
com o dedo para o vazio onde o vira vinte e quatro anos atrás, com
as botas altas e o fato que parecia um uniforme militar.
Julguei que naquela tarde se tinham reconciliado na recordação, por
isso hoje disse à minha mulher que se vestisse de preto para me
acompanhar. Mas o brinquedo está outra vez na gaveta. A música
perdeu o seu efeito. Adelaida está agora desfeita. Está triste,
desalentada, e passa horas a fio a rezar no quarto. «Só tu é que te
podias lembrar de fazer esse enterro», disse-me. «Depois de todas
as desgraças que nos caíram em cima, a única coisa que nos faltava
era este maldito ano bis-sexto. E a seguir o dilúio.» Tentei
convencê-la de que tinha a minha palavra de honra empenhada nesta
acção.
«Não podemos negar que lhe devo a vida», disse.

E ela respondeu: «Era ele que nos devia a nós. Não fez mais, ao
salvar-te a vida, do que saldar uma dívida de oito anos de cama,
mesa e roupa lavada.»

A seguir puxou uma cadeira para o varandim. E ainda lá deve estar,


com os olhos toldados pelo desgosto e pela superstição. Tão
decidida me pareceu a sua atitude, que tentei tranquilizá-la.
«Está bem. Nesse caso vou com Isabel», disse. E ela não respondeu.
Continuou sentada, impenetrável, até que nos prepará-mos para sair,
e eu lhe disse, julgando ser-lhe agradável: «Enquanto estamos
fora, vai ao oratório e reza por nós.» Então virou a cabeça para a
porta, dizendo: «Nem sequer vou rezar. As minhas orações hão-de
continuar a ser inúteis enquanto todas as terças-feiras vier essa
mulher pedir um raminho de erva-cidreira.» E havia na sua voz uma
obscura e desconhecida rebeldia:
«Ficarei aqui, prostra-da, até à hora do Juízo. Se é que até lá o
caruncho não comeu já a cadeira.»

O meu pai detém-se, com o pescoço esticado, a ouvir os passos


conhecidos que avançam pelo quarto das traseiras. Então esquece-se
do que pensava dizer a Cataure e tenta dar uma volta sobre si
próprio, apoiado na bengala, mas a perna inútil falha-lhe e por
pouco não cai de bruços, como lhe aconteceu há três anos, quando
caiu no charco de limonada, por entre os ruídos do jarro que rolou
pelo chão e a cadeira de baloiço e o choro da criança, que foi a
única pessoa que o viu cair.

Desde então coxeia, des-de então arrasta a perna, que se lhe


inteiriçou depois daquela semana de amargos sofrimentos, de que
julgámos nunca mais o ver refeito. Agora, ao vê-lo assim,
recuperando o equilíbrio com o apoio que lhe presta o alcaide, penso
que está naquela perna diminuída o segredo do compromisso que se
dispõe a cumprir contra a vontade da aldeia.

Talvez a sua gratidão venha dessa altura. Desde que caiu de bruços
na varanda, dizendo que era como se o tivessem empurrado de uma
torre, os dois últimos médicos que restavam em Macondo
aconselharam-nos a que o preparássemos para uma boa morte. Recordo-o
no quinto dia de prostração, diminuído entre os lençóis; recordo o
seu corpo mirrado, como o corpo de El Cachorro, que no ano
anterior fora conduzido ao cemitério por todos os habitantes de
Macondo, numa densa e comovida procissão de flores. Dentro do
caixão, a sua imponência tinha o mesmo fundo de irremediável e
desconsolado abandono que eu via no rosto do meu pai naqueles dias
em que o quarto se encheu com a sua voz e falou daquele estranho
militar que apareceu uma noite, na guerra de 85, no acampamento do
coronel Aureliano Buendía, com o chapéu e as botas enfeitadas com
peles e dentes e unhas de tigre, e lhe perguntaram: «Quem é o
senhor?» E o estranho militar não respondeu. E disseram-lhe: «De
onde vem?» E mais uma vez não respondeu. E perguntaram-lhe: «De que
lado combate?» E mais uma vez não obtiveram resposta alguma do
militar desconhecido, até que a ordenança pegou num tição e lho
aproximou do rosto e o examinou por um instante e exclamou,
estupefacto: «Merda! É o duque de Marlborough!»

No meio daquele terrível delírio, os médicos deram ordem para que o


lavassem. Assim se fez. Mas no dia seguinte mal se conseguia notar
uma imperceptível alteração no seu ventre. Então os médicos
abandonaram a casa e disseram que a única coisa aconselhável era
pre-pará-lo para uma boa morte.
O quarto ficou submerso numa atmosfera silenciosa, dentro da qual
não se ouvia nada a não ser o lento e se-reno esvoaçar da morte,
esse recôndito esvoaçar que nos aposentos dos moribundos cheira a
bafo de homem. De-pois de o padre Angel lhe administrar a
extrema-unção, passaram muitas horas sem que ninguém se mexesse,
contemplando o perfil anguloso do condenado. Depois soou a badalada
do relógio e a minha madrasta preparou-se para lhe dar o caldo.
Levantámo-lo pela cabeça, tentando separar os dentes para que a
minha madrasta introduzisse a colher. Foi então que se ouviram os
passos pausados e afirmativos na varanda. A minha madrasta deteve a
colher no ar, deixou de murmurar a sua oração e virou-se para a
porta, paralisada por uma repentina palidez. «Até no purgatório era
capaz de reconhecer esses passos», conseguiu dizer, no preciso
instante em que olhámos para a porta e vimos o doutor. Estava ali,
na soleira, a olhar para nós.

Digo à minha filha: «El Cachorro fazia-os vir à chicotada», e


dirijo-me para o caixão, pensando: Desde que o doutor abandonou a
nossa casa, estava convencido de que os nossos actos eram orientados
por uma vontade superior, contra a qual não poderíamos rebelar-nos
mesmo que tivéssemos tentado fazê-lo com todas as nossas forças, ou
que tivéssemos adoptado a atitude estéril de Adelaida, que se
fechou a rezar.

E, enquanto transponho a distância que me separa do caixão, vendo os


meus homens impassíveis, sentados na cama, parece-me que respiro, na
primeira golfada do ar que fervilha sobre o morto, toda a amarga
fatalidade que destruiu Macondo. Creio que o alcaide não tardará com
a autorização para o enterro. Sei que lá fora, nas ruas
atormentadas pelo calor, o povo está à espera. Sei que há mulheres
assoma-das às janelas, ávidas de espectáculo, e que permanecem ali,
assomadas, sem se lembrarem de que nos fogões está o leite a ferver
e o arroz seco. Mas creio que mesmo esta última manifestação de
rebeldia é superior às possibilidades deste exangue e destroçado
grupo de homens. A sua capacidade de luta estava diminuída já antes
desse domingo de eleições em que se mexeram, traçaram os seus planos
e foram derrotados, e ficaram depois convencidos de que eram eles
que determinavam os seus próprios actos. Mas tudo aquilo parecia
determinado, ordenado para encadear os acontecimentos que, passo a
passo, os haveriam fatalmente de conduzir a esta quarta-feira.
Há dez anos, quando sobreveio a ruína, o esforço colectivo dos que
aspiravam reerguer-se teria sido suficiente para a reconstrução.
Teria bastado ir para os campos destroçados pela companhia
bananeira, limpá-los e começar outra vez do princípio. Mas à
revoada tinham-lhe ensinado a ser impaciente, a não acreditar no
passado nem no futuro. Tinham-lhe ensinado a acreditar no momento
presente e a saciar nele a voracidade dos seus apetites. Não foi
preciso muito tempo para nos darmos conta de que a revoa-da se tinha
ido embora e de que, sem ela, era impossível a reconstrução. Tinha
trazido tudo, a revoada, e tudo levara consigo. Depois dela só
restava um domingo nos escombros de uma aldeia, e o eterno
trapaceiro eleitoral, na última noite de Macondo, pondo na praça
pública quatro garrafões de aguardente à disposição da polícia e
dos guardas.
Se naquela noite El Cachorro conseguiu contê-los, apesar de estar
ainda viva a sua rebeldia, hoje poderia ir de casa em casa,
escorraçando-os como a cães vadios, e havia de os obrigar a enterrar
este homem. El Cachorro tinha-os submetido a uma disciplina
férrea. Mesmo depois de o sacerdote ter morrido, há quatro anos - um
ano antes da minha doença -, essa disciplina manifestou-se na
maneira apaixonada como toda a gente arrancou as flores e os
arbustos das suas hortas e os levou para a campa, prestando a El
Cachorro a homenagem final.

Este homem foi o único que não assistiu a esse enterro.


Precisamente o único que devia a vida àquela inquebrantável e
contraditória subordinação da aldeia ao sacerdote. Porque, na noite
em que puseram os quatro garrafões de aguardente na praça e Macondo
foi uma aldeia espezinhada por um grupo de bárbaros armados, uma
aldeia aterrorizada que enterrava os seus mortos na vala comum,
alguém se deve ter lembrado de que nesta casa de esquina havia um
médico. Foi nessa altura que puseram as macas ao pé da porta e lhe
gritaram (porque não abriu, falou de dentro): «Doutor, trate estes
feri-dos, que os outros médicos já não dão vazão», e ele lhes
respondeu: «Levem-nos a outro lado, eu não sei nada disso.» E
disseram-lhe: «O senhor é o único médico que nos resta. Tem de fazer
uma obra de caridade.» E ele respondeu (mas não abriu a porta),
imaginado pela multidão no meio da sala, de candeeiro ao alto, os
olhos duros e amarelos iluminados: «Esqueci tudo o que sabia disso.
Levem-nos a outro lado», e continuou (porque a porta nunca mais se
abriu) com a porta fechada, enquanto homens e mulheres de Macondo
agonizavam diante de-la. A multidão teria sido capaz de tudo,
naquela noite. Preparavam-se para incendiar a casa e reduzir a
cinzas o seu único habitante. Mas então apareceu El Cachorro.
Dizem que foi como se tivesse estado aqui, invisível, montando
guarda para evitar a destruição da casa e do homem. «Ninguém toca
nesta porta», dizem que ordenou El Cachorro. E dizem que foi tudo
o que disse, os braços abertos em cruz, o seu inexpressivo e frio
rosto de caveira de vaca iluminado pelo esplendor da fúria popular.
E então o impulso refreou-se, mudou de curso, mas teve ainda força
suficiente para que gritassem aquela sentença que havia de fixar,
para todos os séculos, o advento desta quarta-feira.

Ao dirigir-me para a cama, para dizer aos meus homens que abram a
porta, penso: Deve estar a chegar de um momento para o outro.

E penso que, se daqui a cinco minutos não tiver chegado, levaremos


o caixão sem a autorização e poremos o morto na rua, nem que tenha
de lhe dar sepultura mesmo em frente da casa. «Cataure», digo,
chamando o mais velho dos meus homens, e ele mal teve tempo de
levantar a cabeça, quando oiço os passos do alcaide avançando pela
sala ao lado.

Sei que vem direito a mim, e tento rodar rapidamente sobre os


calcanhares, apoiado na bengala, mas falha-me a perna doente e vou
para a frente, certo de ir cair e dar com a cara na borda do caixão,
quando tropeço no seu braço e me agarro solidamente a ele, e oiço
a sua voz de estupidez pacífica, dizendo: «Não se pre-ocupe,
coronel. Garanto-lhe que não acontecerá nada.» E sei que assim é,
mas sei que o diz para se dar importância. «Não creio que possa
acontecer nada», digo-lhe, pensando o contrário, e ele diz qualquer
coisa das ceibas do cemitério e entrega-me a autorização para o
enterro. Sem a ler, dobro-a, guardo-a no bolso do colete e digo-lhe:
«Seja como for, há-de acontecer o que tiver de acontecer. É como se
o almanaque o tivesse anunciado.»

O alcaide dirige-se aos guajiros. Manda-lhes pregar o caixão e abrir


a porta. E vejo-os mexerem-se à procura do martelo e dos pregos que
hão-de apagar para sempre a visão deste homem, deste desamparado
senhor de parte nenhuma que vi pela última vez há três anos, diante
do meu leito de convalescente, com a cabeça e o rosto marcados por
uma decrepitude prematura. Acabava então de me salvar da morte. A
mesma força que o tinha levado ali, que lhe tinha comunicado a
notícia da minha doença, parecia ser a que o mantinha diante do meu
leito de convalescente, dizendo:
«Só precisa de exercitar um pouco essa perna. É possível que tenha
de usar ben-gala, de agora em diante.»

Havia de perguntar-lhe, daí a dois dias, quanto lhe devia, e ele


havia de me responder: «O senhor não me deve nada, coronel. Mas se
quer fazer-me um favor, dei-te-me em cima um pouco de terra, quando
um dia esticar o pernil. É a única coisa que preciso, para as
galinhas não me comerem.»

No próprio compromisso que me fazia contrair, na maneira de o


propor, no ritmo dos seus passos sobre os mosaicos do quarto,
notava-se que aquele homem há muito que começara a morrer, apesar de
faltarem ainda três anos para que essa mor-te adiada e incompleta se
viesse a concretizar. Esse dia foi o de hoje. E creio que nem sequer
teria precisado da corda. Um ligeiro sopro teria bastado para
extinguir a última centelha de vida que lhe restava nos olhos duros
e amarelos. Eu pressentira tudo isto desde a noite em que falei com
ele no quartinho, antes de ele vir viver com Meme. Por isso, quando
me fez contrair o compromisso que agora vou cumprir, não me
surpreendi. Disse-lhe simplesmente:

«É um pedido desnecessário, doutor. O senhor conhece-me, e deveria


saber que eu o teria enterrado contra tudo e contra todos, mesmo que
não lhe devesse a vida.»
E ele, sorridente, pela primeira vez apaziguados os seus olhos duros
e amarelos:

«Tudo isso é certo, coronel. Mas não se esqueça que um morto não
poderia enterrar-me.»

Agora ninguém poderá remediar esta vergonha. O alcaide entregou ao


meu pai a ordem para o enterro, e o meu pai disse: «Seja como for,
há-de acontecer o que tiver de acontecer. É como se o almanaque o
tivesse anunciado.» E disse-o com a mesma indolência com que se
entregou à sorte de Macondo, fiel aos baús onde está guardada a
roupa de todos os mortos anteriores ao meu nascimento. Desde então
tudo começou a declinar. Até a energia da minha madrasta, o seu
carácter férreo e do-minador, se transformaram numa fadiga amarga.
Parece cada vez mais distante e taciturna, e é tal o seu desespero
que esta tarde se sentou ao pé do varandim e disse: «Vou ficar aqui,
prostrada, até à hora do Juízo.»
O meu pai não voltara a impor em nada a sua vontade. Só hoje se
impôs para cumprir este vergonhoso compromisso. Está aqui, certo
de que tudo há-de decorrer sem consequências graves, a olhar para os
guajiros que se puseram em movimento para abrir a porta e pregar o
caixão. Vejo-os aproximarem-se, ponho-me de pé, pego na mão da
criança e puxo a cadeira para a janela, para não estar à vista da
aldeia quando abrirem a porta.

A criança está suspensa. Quando me levantei, olhou para a minha cara


com uma expressão indescritível, um pouco aturdida. Mas agora está
suspensa, a meu lado, a olhar para os guajiros, que suam por causa
do esforço que fazem para puxar as ar-golas. E, com um penetrante e
prolongado queixume de me-tal oxidado, a porta abre-se de par em
par. Então vejo de novo a rua, o pó lumino-so, branco e abrasador,
que cobre as casas e dá à aldeia um lamentável aspecto de móvel
arruinado. É como se Deus tivesse declarado Macondo desnecessária e
a tivesse atirado para o canto onde estão as aldeias que deixaram
de prestar serviços à criação.
A criança, que no primeiro momento deve ter fica-do ofuscada com a
claridade repentina (a mão tremeu-lhe na minha quando a porta se
abriu), levanta de repente a cabeça, concentrada, atenta, e
pergunta-me: «Ouves?» Só então reparo que num dos pá-tios vizinhos
um alcaravão está a dar as horas. «Oiço. Já devem ser três», digo,
quase no preciso momento em que soa a primeira pancada do martelo no
prego.

Tentando não escutar esse som dilacerante que me eriça a pele,


procurando que a criança não se aperceba da minha perturbação, volto
o rosto para a janela e vejo, no outro quarteirão, as melancólicas
e poeirentas amendoeiras com a nossa casa ao fundo. Sacudida pelo
sopro invisível da destruição, também ela está em vésperas de uma
derrocada silenciosa e definitiva. Toda a Macondo está assim desde
que a companhia bananeira a espremeu. A hera invade as casas, a erva
cresce pelas ruelas, racham-se os muros e deparamos em pleno dia com
um lagarto no quarto. Tudo parece destruído desde que deixámos de
cultivar o alecrim e o nardo, desde que uma mão invisível
escaqueirou a louça de Natal no armário e pôs traças a engordar na
roupa que ninguém voltou a usar. Quando uma porta se solta, não há
uma mão solícita disposta a repará-la. O meu pai não tem energia
para se mexer como o fazia antes daquela prostração que o deixou a
coxear para sempre. A senhora Rebeca, por detrás da sua eterna
ventoinha, não se ocupa de nada que possa contrariar a fome de
malevolência que a sua estéril e atormentada viuvez lhe provoca.
Agueda está tolhida, atormentada por uma paciente enfermidade
religiosa; e o padre Angel não parece ter outra satisfação que não
seja a de saborear na sesta de todos os dias a sua perseverante
indigestão de almôndegas. A única coisa que permanece invariável é
a canção das gémeas de San Jerónimo, e aquela misteriosa mendiga
que não parece envelhecer e que há vinte anos que todas as
terças-feiras vem a nossa casa pedir um raminho de erva-cidreira.
Só o apito de um comboio amarelo e poeirento, que não leva ninguém,
inter-rompe o silêncio duas vezes por dia. E, de noite, o zum-zum da
pequena central eléctrica deixada pela companhia bananeira quando se
foi embora de Macondo.
Vejo a nossa casa pela janela e penso que a minha madrasta está ali,
imóvel na sua cadeira, pensando talvez que antes de regressarmos
terá passado o vento final que há-de apagar esta aldeia. Todos se
terão ido, então, menos nós, porque estamos ligados a este solo por
um quarto cheio de baús nos quais se conservam ainda os utensílios
domésticos e a roupa dos avós, dos meus avós, e os toldos que
cobriam os cavalos dos meus pais quando vieram para Macondo a fugir
da guerra. Estamos arreigados a este solo pela recordação dos mortos
remotos cujos ossos já não seria possível encontrar a vinte braças
debaixo da terra. Os baús estão no quarto desde os últimos dias da
guerra; e ali estarão esta tarde, quando regressar-mos do enterro,
se entretanto não tiver passado já esse vento final que há-de
varrer Macondo, os seus quartos cheios de lagartos e a sua gente
taciturna, arrasada pelas recordações.

De repente o meu avô levanta-se, apoia-se na bengala e estica a sua


cabeça de pássaro à qual os óculos parecem agarrados, como se
fizessem parte do seu rosto. Creio que me custaria muito usar
óculos. A qualquer movimento, haviam de se soltar das orelhas. E, a
pensar nisso, dou pancadinhas no nariz. A mamã olha para mim e
pergunta-me: «Dói-te?» E eu digo-lhe que não, que estava
simplesmente a pensar que não seria capaz de usar óculos. E ela
sorri, respira profundamente e diz-me: «Deves estar ensopado.» E é
verdade, a roupa arde-me na pele, a bombazina verde e grossa,
fechada até acima, agarra-se-me ao corpo com o suor e provoca-me uma
sensação insuportável. «Estou», respondo. E a minha mãe inclina-se
para mim, desaperta-me o laço e abana-me o pescoço, dizendo: «Quando
chegarmos a casa vais des-cansar, para depois te dar banho.»

«Cataure», oiço'''

Nisto entra outra vez, pela porta de trás, o homem do revólver. Ao


aparecer no vão da porta tira o chapéu e caminha com cautela, como
se receasse acordar o cadáver. Mas fê-lo para assustar o meu avô,
que cai para a frente empurrado pelo homem, e cambaleia, e consegue
agarrar-se ao braço do mesmo homem que tentou deitá-lo ao chão. Os
outros deixaram de fumar e permanecem sentados na cama, alinhados
como quatro corvos na cumeeira de um telhado. Quando entra o do
revólver, os corvos inclinam-se, falam em segredo e um deles
levanta-se, vai até à mesa e pega na caixinha dos pregos e no
martelo.
O meu avô está a conversar com o homem, ao pé do caixão. O homem
diz: «Não se preocupe, coronel. Garanto-lhe que não acontecerá
nada.» E o meu avô diz: «Não creio que possa acontecer nada.» E o
homem diz: «Podem enterrá-lo do lado de fora, junto ao muro esquerdo
do cemitério, onde as ceibas são mais altas.» A seguir entrega um
papel ao meu avô, dizendo: «Verá que tudo há-de correr bem.» O meu
avô apoia-se na bengala com uma mão e com a outra pega no papel e
guarda-o no bolso do colete, onde tem o relógio de ouro pequenino e
quadrado, preso com uma corrente. Depois diz: «Seja como for, há-de
acontecer o que tiver de acontecer. É como se o almanaque o tivesse
anunciado.»

O homem diz: «Há algumas pessoas à janela, mas é pura curiosidade.


As mulheres aparecem sempre seja pelo que for.» Mas não creio que o
meu avô o tenha ouvi-do, porque está a olhar para a rua, pela
janela. Então o homem move-se, vai até à cama e diz aos outros
homens, enquanto se abana com o chapéu: «Agora podem pregá-lo.
Entretanto, abram a porta para entrar um pouco de ar fresco.»
Os homens põem-se em movimento. Um deles inclina-se sobre a urna
com o martelo e os pregos e os outros dirigem-se para a porta. A
minha mãe levanta-se. Está suada e pálida. Puxa a cadeira, pega-me
na mão e afasta-me para o lado, para que os homens que vierem abrir
a porta possam passar.

A princípio tentam fazer correr a tranca, que parece soldada às


argolas oxidadas, mas não conseguem movê-la. É como se alguém
estivesse encostado com força do lado da rua. Mas, quando um dos
homens se apoia contra a porta e lhe bate, levanta-se no quarto um
ruído de madeira, de gonzos oxidados, de fechos soldados pelo tempo,
chapa contra chapa, e a porta abre-se, enorme, capaz de dar passagem
a dois homens, um em cima do outro, e há um rangido longo da madeira
e dos ferros acordados. E, antes de termos tempo de saber o que se
passa, a luz irrompe no quarto, vale costas, poderosa e perfeita,
porque lhe tiraram o apoio que a conteve no quarto, arrastando a
sombra das coisas na sua turbulenta queda. Os homens tornam-se
brutalmente visíveis, como um relâmpago ao meio-dia, e cambaleiam,
e é como se tivessem precisado de se apoiar para que a claridade
não os deitasse ao chão.

Quando se abre a porta, um alcaravão começa a cantar algures na


aldeia. Agora vejo a rua. Vejo o pó brilhante e ardente. Vejo
vá-rios homens encostados às casas do outro lado da rua, de braços
cruzados, a olharem para o quarto. Oiço de novo o alcaravão e digo
à mamã: «Ouves?» E ela diz que sim, que devem ser três. Mas Ada
disse-me que os alcaravões cantam quando sentem o cheiro a morte.
Vou a dizê-lo à minha mãe no preciso instante em que oiço o barulho
intenso do martelo na cabeça do primeiro prego. O martelo bate,
bate, e enche tudo; descansa um segundo e bate de novo, ferindo a
madeira por seis vezes consecutivas, acordando o prolongado e triste
clamor das tábuas adormecidas, enquanto a minha mãe, com a cara
voltada para o outro lado, olha para a rua pela janela.

Quando acabam de pregar, ouve-se o canto de vários alcaravões. O meu


avô faz um sinal aos seus homens. Estes inclinam-se, ladeiam o
caixão, enquanto o que permanece ao canto com o chapéu diz ao meu
avô: «Não se preocupe, coronel.» E então o meu avô volta-se para o
canto, agitado e com o pescoço inchado e violáceo, como o de um
galo de combate. Mas não diz nada. É o homem que volta a falar, lá
do fundo. Diz: «Creio que já nem há ninguém na aldeia que se lembre
disso.»

Neste instante sinto verdadeiramente a barriga a estremecer. Agora


sim, tenho vontade de ir lá atrás, penso, mas vejo que é tarde de
mais. Os homens fazem um último esforço, esticam-se, com os
calcanhares cravados no chão, e o caixão fica a flutuar na
claridade, como se levassem a sepultar um navio morto.

Penso: Agora hão-de sentir o cheiro. Agora todos os alcaravões


hão-de pôr-se a cantar.

SERPENTE

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EMPLUMADA

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