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Leandro Karnal
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Cultura

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A arte é um signo aberto e o cérebro de qualquer pessoa é ainda mais randômico

Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo


20 de junho de 2021 | 03h00

Amo arte. Eu era fascinado pelos quadros que encontrava em livros de arte. Ficava vendo e passando o
dedo muito antes de compreender qualquer conteúdo ali representado. Parece que havia nomes que eu
sempre soube, ou, pelo menos, nunca me lembro de ter visto pela primeira vez: Leonardo,
Michelangelo, Rafael. Há nomes que vieram depois: Mondrian, De Chirico, Lichtenstein. Por fim,
existem escolas que descobri muito tarde, como os Nazarenos Alemães. 

Da mesma forma, quase sempre sei quando vi uma obra-prima pela primeira vez. A Mona Lisa no
Louvre, a Capela Sistina no Vaticano, o Abaporu em Buenos Aires, A Tempestade em Veneza. Em
alguns casos, fui a um museu só para ver um quadro, exclusivamente um: foi o caso da pintura O
Balanço, de Fragonard, na Coleção Wallace, em Londres. Aliás, não consigo recordar de nenhuma outra
obra naquela mansão inglesa, ainda que seja um espaço muito agradável. 

Quero falar de outra coisa. Foi em algum ano da década de 1990. Eu tinha saído de horas no Museu do
Prado, em Madri, e ainda tinha uma hora para aproveitar a luz e um museu aberto. Caminhei até o
Museu Rainha Sofia, a poucos metros dali. Objetivo? A Guernica, de Picasso. Eu já era professor de
história e, claro, já tinha falado do Cubismo, da Guerra Civil Espanhola, o bombardeio de Guernica e,
por fim, a exposição de Paris na qual o quadro foi mostrado ao público. Era um quadro repleto de
história e de significado, uma das obras-primas do século 20. Cheguei ao museu e fui direto à sala da
obra. O tempo era curto. Naquela época, a gente olhava mais e fazia menos fotografias. Fiquei ali, por
uns 30 minutos, admirando o imenso painel em preto, branco e cinza. É uma obra, de fato,
impressionante. 
Saí já cansado de muitas horas de pé e refleti comigo: Picasso é um gênio, o quadro é extraordinário, a
obra tem significado artístico e histórico impactante e... eu não gosto. Sim, confesso: o cubismo é muito
importante, uma revolução que já expliquei inúmeras vezes para alunos e interessados. Já fui com
grupos ao MoMA, em NY, e ficava diante das Demoiselles d’Avignon, mostrando o que representa
aquela obra brilhante. E, mesmo assim, continuo não gostando de Picasso.

O pintor espanhol é um gênio e mudou os rumos da nossa percepção artística. Quem disser o contrário
pouco sabe de arte. Quando digo que não gosto, é que vejo no cubismo sintético e analítico um exercício
matemático, como vejo no chamado dodecafonismo musical. São experiências racionais muito boas e
necessárias. Jamais eu imaginaria ler um belo livro, ouvindo uma peça dodecafônica. Eu não teria um
Picasso no meu apartamento. Os motivos são óbvios: a) não se deve ter uma obra que exceda em valor o
total do imóvel que abriga a peça; b) eu não me emociono com Picasso. Quando eu digo não gosto,
significa que compreendo um pouco do quadro, reconheço a inteligência dele, vejo ali um olhar que
provocou uma ruptura de paradigma estético e, nada emotivo, intenso ou capaz de mover meu eu
interior para sair da zona racional. A diferença? Quando fiquei a primeira vez diante dos quadros sobre
São Mateus em Roma, na igreja de São Luís dos Franceses, comecei a chorar, a rir, a ficar mais bobo do
que o normal ao ver a Vocação de São Mateus, de Caravaggio. Não sabia bem o que dizer e, creio que,
vinte anos depois, ainda não sei. Tal como a Guernica, posso falar de detalhes técnicos brilhantes, como
a luz do pintor, a composição, o tema ou outra questão. Todavia, salta aos olhos, para mim, uma
diferença inexplicável: Picasso é uma genial equação matemática sobre o espaço; Caravaggio joga
minha consciência no chão e me obriga a sentir coisas fora do comum. 

Alguém dirá: “Leandro, você é conservador esteticamente e prefere o figurativo ao geométrico ou ao


abstrato”. Acho que até tenho traços de certo conservadorismo estético sim, porém outro autor que me
desconcerta de forma absoluta é Rothko. Na última vez em que fui até a sala dele na Tate de Londres,
pedi ao grupo que me acompanhava que seguisse um pouco sozinho para que eu parasse de chorar.
Aliás, choro ao escrever sobre ele, como agora. O que explica isso? Não sei. Também senti na Capela
Rothko, no Texas. O guarda teve de elevar a voz porque eu estava paralisado sentado, ouvindo uma
trilha minimalista e vendo as telas do pintor. A Guernica tem desenhos identificáveis e conta uma
história. Rothko é a experiência do esvaziamento extático. 

A arte é um signo aberto e o cérebro de qualquer pessoa é ainda mais randômico. Não existe uma
explicação causal. O plano cartesiano claudica no campo estético. Ocorre o mesmo com música e com
esculturas. Por vezes, leio um livro mediano e fico muito tocado. Já confessei, publicamente, que há
clássicos da literatura que comecei a descobrir porque eram aclamados como importantes e segui a
leitura por... birra. 

Escrevo para que as pessoas se sintam um pouco mais livres para dizerem o que pensam de quadros,
esculturas, músicas e textos que são incensados por muitos e que, por algum motivo, não fazem morada
no seu afeto. Sejamos todos sempre livres para nosso prazer e gosto. Apenas reconheçamos: meu gosto
individual não canoniza alguém e nem derruba um clássico. Meu gosto é, apenas, minha opinião
subjetiva. Os gênios não precisam de mim. Eu, por vezes, preciso de alguns para me sentir vivo e feliz.
Boa semana!

É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O


DILEMA DO PORCO-ESPINHO’, ENTRE OUTROS

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