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Entre vivências e sobrevivências: quem são os reais afetados pela pandemia do novo

coronavírus no contexto da educação brasileira?

Alessandra Maria da Silva Gomes1

Este texto configura-se como trabalho final tendo como ponto inicial reflexões suscitadas a partir
da incursão na disciplina: ERER: questões contemporâneas do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UFMG. A contar dos textos sugeridos e abordados, em um movimento propiciado
pela leitura de diferentes autores, se propõe a fazer uma reflexão ancorada no contexto étnico
racial da educação pública brasileira. Como principal referencial tem-se o trabalho de
Boaventura de Sousa Santos “A Cruel Pedagogia do Vírus” (2020) em contraponto com os
escritos de Klinger Scoralick (2020) a respeito do ambiente de ensino que foi gerado a partir da
pandemia do novo coronavírus. Ainda procurando pavimentar melhor uma possível análise,
ampliando e complementando uma ótica, este trabalho lança mão das reflexões advindas do
trabalho de Nilma Lino Gomes.

Palavras-chave: Pandemia; Educação; Relações Étnico-raciais.

1
Doutoranda em “Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas” pelo Programa de Pós Graduação
em Educação da UFMG. Possui Mestrado em Educação e Formação Humana pelo Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu da Universidade do Estado de Minas Gerais (2020). Pós-Graduada em História e Cultura Afro-
Brasileira pela Universidade Cândido Mendes (2014) e Graduada em Pedagogia pela Universidade Norte do
Paraná (2012).
Introdução

Dentro das reflexões propostas por esta disciplina, acerca da inserção de pautas éticno
raciais na educação pública brasileira na contemporaneidade, e partindo do texto de Boaventura
de Sousa Santos, “A Cruel Pedagogia do Vírus” (2020), esta resenha se propõe a discutir o
ambiente de ensino que foi gerado a partir da pandemia do novo coronavírus.
O começo da construção do argumento de Sousa Santos (2020) se embasa no princípio de
que vivemos, enquanto sociedade, num permanente estado de crise - o que ele chama de
‘elasticidade do social’. A eterna reinvenção provocada por esse estado social intangível, que
nos incapacita de projetar de forma linear algum tipo de progresso coletivo, é o foco central das
incursões que partem do texto.
O pressuposto é de que ainda que o estado de crise seja constante, a capacidade humana
de se reinventar nesses contextos se sobressai, atingindo sempre um novo equilíbrio através da
normalidade.
E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o tivessem sido. Torna-
se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais
tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos
centros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se
quer, mas que só se pode obter por outros meios que não a compra (SOUSA
SANTOS, p. 6, 2020).

A fim de estabelecer um diálogo entre os autores desta disciplina, o contraponto vem nos
escritos de Scoralick (2020). Ainda que os textos de Sousa Santos (2020) e Scoralick (2020)
tenham sido escritos no mesmo curto espaço de tempo do fatídico ano de 2020, eles trazem
recortes muito específicos do pensar o aprendizado, a educação e seus contextos num mundo
pandêmico.
Para Sousa Santos a ‘pandemia não é cega’, mas acaba por nivelar a humanidade em sua
própria finitude, restabelecendo os parâmetros para se pensar o coletivo; “sabemos que a
pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma
consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática” (SOUSA SANTOS, p. 6,
2020).
Já para Scoralick (2020), “no Brasil não basta morrer. Todavia, não basta também viver.
É preciso resistir - ou sobreviver - como os indígenas o fazem há 500 anos ressalta Ailton
Krenak (...) - como fazem os negros, as mulheres, os torturados, os desaparecidos…”
(SCORALICK, p. 18, 2020).
Na perspectiva do Coronavírus

Nos dois recortes apresentados, vemos a sobreposição do local sobre o global, da


perspectiva humanitária democrática de Sousa Santos para a localista antropológica de Scoralick.
É válido salientar que Sousa Santos observa a pandemia de Coimbra, Portugal; já Scoralick, do
centro da cidade do Rio de Janeiro, um dos epicentros de dispersão do novo coronavírus.
A fim de evidenciar os lugares sociais dos quais os pesquisadores aqui elencados
enunciam suas colocações, é válido ressaltar que Boaventura de Sousa Santos, português,
professor emérito da Universidade de Coimbra, é largamente conhecido nas academias de
Ciências Sociais e Direito, antes mesmo da publicação do estudo que o consagrou nas academias
europeias: “ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo
modo de partilhar as experiências do mundo” (2016). Parte do seu trabalho, na
contemporaneidade, visa indicar mecanismos sociais que possam reposicionar a Europa no
mundo - partindo de um lugar que não seja o locus enunciativo do sujeito hegemônico.
Ao passo que a trajetória de Klinger Scoralick, ainda que muito mais recente, quando
comparada com a de Boaventura, passa pela Universidade Federal de Juiz de Fora e a Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tendo sido formado em Filosofia no Brasil, a
abordagem humanista se encontra com o contexto social brasileiro e é possível perceber, em seus
escritos, uma tendência mais relativista e descentralizada com relação às estruturas de poder,
mantendo o foco na agência do indivíduo em sua ação social.
Ao contextualizar os dois autores, percebemos nitidamente as tendências globalistas de
Sousa Santos, não necessariamente contrapondo, mas decerto complementando, a dialética da
ação individual presente em Scoralick. Essa diferenciação pode ser observada na descrição dos
grupos afetados pela pandemia de covid-19, por exemplo.
Em sua descrição dos grupos afetados pela pandemia, Sousa Santos (2020) cita as
mulheres, os trabalhadores precários, informais e autônomos, os trabalhadores da rua, os sem-
abrigo ou populações de rua, os moradores nas periferias pobres das cidades, internados,
deficientes e idosos, mas não cita, em momento algum, a população que mais morreu - e ainda
morre - em função do novo coronavírus, no espaço-tempo político que o autor chama de ‘Sul’2: a
população negra3.

2
Segundo Sousa Santos, o Sul é: “na minha concepção, o Sul não designa um espaço geográfico. Designa um
espaço-tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração
capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual” (SOUSA SANTOS, p. 18, 2020).
3
Segundo um artigo publicado pela Universidade de Medicina da UFMG, no dia 24 de Novembro de 2020:
<https://www.medicina.ufmg.br/negros-morrem-mais-pela-covid-19/ >.
Ao fim do Capítulo 3, onde o autor esboça as categorias mais afetadas pela pandemia, ele
reitera que as assimetrias sociais “se tornam ainda mais invisíveis” (SOUSA SANTOS, p. 21,
2020) dados o contexto de urgência em que a pandemia colocou a população mundial: reclusos
em casa, cercados de estímulos parametrizados conforme sua classe social, gênero e etnia.
Ao pensar uma transformação social, do tamanho e da magnitude que tem sido a
pandemia do novo coronavírus, os autores elencados nesta resenha trazem proposições que
convergem no caráter transformador do processo e divergem quanto à perspectiva de como essa
transformação está sendo e será absorvida pelas pessoas, em distintas formas.
Partindo, contudo, do viés pedagógico introduzido por Sousa Santos (2020), e dos
aprendizados que internalizamos ao longo do processo de lida com a morte, a doença, as mazelas
sociais, o caos político e midiático, a crise sanitária, a reclusão e os abismos sociais que se
formaram e se aprofundaram ao longo dos últimos dezoito meses, é possível perceber alguns
cenários sendo traçados pelos dois autores de como esse aprendizado será absorvido pela
sociedade.
Ainda que o propósito de Boaventura seja ressaltar o que ele chama de “intensa
pedagogia do vírus” (SOUSA SANTOS, p. 22, 2020), utilizar-se-á de um provérbio iorubá para
termos um ponto de partida para contraposição dos argumentos, que é: “o ensinamento se dá de
boca perfumada a ouvidos dóceis e limpos”.
Tanto em Sousa Santos (2020), quanto em Scoralick (2020), as discussões sobre tempo,
espaço e as transformações causadas pela pandemia na forma como concebemos nossa agência
enquanto corpus social coletivo estão em evidência. Para Scoralick (2020), o “tempo-agora é o
tempo para aprender a viver enfim - (...) - a vida mais intensa possível, sem mistificação, nua”
(SCORALICK, p. 19, 2020). Já para Sousa Santos (2020), o tempo se tornou uma condição da
forma como ele é veiculado pelos meios políticos e pela mídia, implicando no “modo como à
sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre” (SOUSA SANTOS, p. 22, 2020).
No entanto, se “o ensinamento se dá de boca perfumada”, não podemos dizer que houve
perfumaria sequer no modo com o qual a pandemia assolou a população negra brasileira e seus
inúmeros recortes de gênero e classe; tampouco podemos dizer que o aprendizado de tempo
proposto tanto por Sousa Santos (2020), quanto por Scoralick (2020), será percebido de forma
majestosa, transformadora e evolutiva.
Em uma das lições elencadas por Sousa Santos (2020), que diz que “enquanto modelo
social, o capitalismo não tem futuro” (p. 24, 2020), ao questionar o modelo econômico de
produção vigente, o autor acaba por tangenciar a centralidade do argumento da desigualdade -
aqui, não há universalidade na forma como a desigualdade nos atinge, mas sim a desigualdade
como o universo-origem, o ponto de partida de todas as transformações sociais nos últimos
séculos.
Indo um pouco além do argumento da falência do modelo capitalista - que também é
questionável se o modelo está falido ou se reinventando constantemente em suas bases de
expropriação da classe trabalhadora - o espaço-tempo social provocado pela pandemia acabou
por desenhar uma linha mais rígida e profunda entre as classes sociais: segundo Banco Mundial 4,
houve um aprofundamento de 40% da pobreza no Brasil desde o começo da pandemia até agora.
É nesse contexto que Gomes (2020), coloca que “um olhar sobre o lugar da população
negra em tempos de novo coronavírus revela a alta taxa de letalidade que recai sobre os pobres e,
com maior contundência, sobre as pessoas negras (...) e pobres” (GOMES, p. 2, 2020).
Os três autores aqui dispostos convergem na crítica à Reforma Conservadora e as
consequências desse movimento para a sociedade como um todo. No entanto, apenas Gomes
(2020) tangibiliza os impactos da reforma conservadora para os grupos mais afetados, apontando
estatísticas e deficiências do sistema político brasileiro como um todo. O globalismo
institucional de Sousa Santos e o ensaio psicossocial de Scoralick dão lugar à uma visão mais
pujante da realidade social brasileira e seus recortes.
Ainda sim, e retomando o argumento de Scoralick (2021) acerca do modus operandi de
sobrevivência da população subalterna brasileira condiciona a forma como a pandemia foi
percebida - sob os destroços do caos social que impera no Brasil, é possível visualizar as mesmas
bases de desigualdade, opressão e desalinhamento entre o que poderíamos ser e o que de fato
somos.
Do ponto de vista da educação, a pandemia tirou um largo contingente de crianças das
escolas públicas, considerando que a virada para o digital ressaltou as assimetrias sociais e de
classe, a acessibilidade à Internet e o preparo dos lares brasileiros para compartilharem dos
estímulos educais em nossas crianças e adolescentes.
Segundo Gomes (2020), em relação ao acesso à internet e ao uso de microcomputadores,
existe uma disparidade significativa entre brancos e negros - entre pessoas de 15 e 29 anos,
92,5% dos jovens brancos tem acesso irrestrito à internet, quando comparado com 84,3% de
acesso por parte das pessoas pretas. Quando falamos de utilização de microcomputadores para
viabilizar o acesso à internet, a assimetria se aprofunda: 61,6% dos jovens brancos possuem
acesso a microcomputadores, comparado com 39,6% de jovens negros (GOMES, p. 2, 2020).

4
Segundo relatório do Banco Mundial, o Brasil apresenta o pior quadro de enfrentamento da pandemia na
América Latina, no que tange ao aumento da pobreza no país.
No contexto do ensino remoto e dos desafios impostos às crianças e adolescentes pretos e
pardos, não é difícil estabelecer uma relação de privilégios entre o grupo que conseguiu se
adaptar rapidamente às mudanças, como coloca, de forma universal, Boaventura de Sousa Santos
(2020) e o grupo que enfrenta desafios à própria sobrevivência ainda mais aterradores, como
sugere Scoralick (2020).
É possível inferir que o foco da preocupação dos grupos subalternizados no Brasil está
muito mais atrelado às interposições físicas do que ao acesso da educação; em linhas gerais,
considerando o aprofundamento da pobreza e o maior nível de letalidade da Covid-19 em
pessoas negras, é difícil que se tenha “ouvidos dóceis e limpos” para a absorção do
conhecimento, do ponto de vista pedagógico, no que tange à estrutura de alcance do ensino
público brasileiro.
Considerando os dados oficiais do INEP, no que tange a taxa de analfabetismo entre
pessoas pretas e pardas (11,5%) ainda é maior quando comparadas com pessoas brancas (5,2%).
Ademais, quando comparamos o tempo total de estudo entre essas mesmas amostras da
população, temos que pessoas brancas permanecem na escola cerca de 8,8 anos, enquanto as
pretos e pardos permanecem cerca de 7,2 anos.

Conclusão

Ao pensarmos a transversalidade do conceito de raça na permanência dos estudantes


pretos e pardos no ensino público brasileiro e, aliados à crítica presente nos textos que compõem
esta resenha, é possível alinhar as duas premissas bases aqui presentes na construção de um
cenário-crítico: (I) a pandemia do novo coronavírus acaba por aprofundar as assimetrias sociais
já existentes, ao arrefecer as condições sociais da população preta e pobre no Brasil; (II) no
contexto da educação, o movimento de isolamento social acabou por retirar da escola, de forma
majoritária, o contingente de estudantes que já se encontravam em vulnerabilidade social.
Por fim, é certo que os processos de retomada, num contexto de avanço da vacinação,
precisam considerar as condições postas e reforçadas pelo contexto da pandemia. É impossível
se pensar numa educação que se firma como inclusiva, resvalada numa série de ações afirmativas
que visam garantir os direitos para a população negra, que não assuma para si os retrocessos
educacionais que vivemos durante o período de isolamento social.
REFERÊNCIAS

CIASCHI, Matias; COSTA, Rita; RUBIÃO, Rafael; PAFFHAUSEN, Anna Luisa; SOUSA,
Liliana. A Reversão da Prosperidade Compartilhada no Brasil. In. Grupo Banco Mundial.
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https://cutt.ly/rbEbESo.

GOMES, Nilma. O movimento negro no Brasil: ausências, emergências e a produção dos


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PECHIN, Letícia. Negros morrem mais pela Covid-19. Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais. Publicado em 24 de novembro de 2020. Belo Horizonte, 2020.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedina,


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SCORALICK, Klinger. E daí? - Quando nada importa e a espessura das coisas. In. Filosofia
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https://cutt.ly/rbEbESo.

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