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UMA CHAMA EM HALI

Trilogia Fogo ADERENTE (Clingfire)


Livro III

Tradução: Rubi Elhalyn


DAW LIVROS, INC.
Donald A. Wollheim, fundador
375 Hudson Street, New York, NY 10014
ELIZABETH R. Wollheim
SHEILA E. GILBERT
EDITORIAIS
http://www.dawboolts.com

Copyright © 2004 por The Marion Zimmer Bradley Obras literárias Trust

Todos os direitos reservados.


Arte da capa por Romas Kukalis.
Coletores DAW livro nº 1299.
DAW Books são distribuídos pelo Grupo Penguin (EUA).

DAW marca registrada


USPAT. FORA. E de países estrangeiros
--MARCA TEGISTRADA
HECHO EN EUA
AGRADECIMENTOS

Um agradecimento especial, mais uma vez, ao meu editor, Betsy Wollheim, a Ann Sharp
do The Marion Zimmer Bradley Literary Trust, a Sherwood Smith e a várias pessoas que me
mostraram como a vida pode ser vivida com dignidade, respeito e serenidade.

AVISO LEGAL

O leitor atento pode notar discrepâncias em alguns detalhes de mais contos


contemporâneos. Este é, sem dúvida, devido às histórias fragmentárias que sobrevivem até
os dias atuais. Muitos registros foram perdidos durante os anos seguintes a Era do Caos e
Cem Reinos e outros distorcidas pela tradição oral.
NOTA DO AUTOR
Imensamente generosa com “seu mundo especial” de Darkover, Marion adora encorajar
novos escritores. Já éramos amigas quando ela começou a editar as antologias de
DARKOVER e SWORD & SORCERESS. A combinação entre minha “voz” natural literária e o
que ela estava procurando foi extraordinária. Ela amou ler o que eu adorei escrever, e
frequentemente citou “A Morte de Brendan Ensolare” (QUATRO LUAS de DARKOVER, DAW,
1988) como uma de suas favoritas.
Quando a saúde de Marion piorou, fui convidada a trabalhar com ela em um ou mais
romances de Darkover. Decidimos que melhor do que estender a história da “moderna”
Darkover, nós retornaríamos à Era do Caos. Marion avistou uma trilogia começando com a
Rebelião Hastur e Forja de Zandru, a duradoura amizade entre Varzil o Bom e Carolin
Hastur, e ampliando a explosão de Hali e a assinatura da Aliança. Enquanto eu escrevia
notas o mais rápido de podia, ela sentava-se com olhos atentos e começava uma história
com, “Agora, os Hasturs tentariam controlar os piores excessos das armas de laran, mas
eles estavam sempre com outras em desenvolvimento...” ou “É claro, Varzil e Carolin foram
mencionados nos contos de amantes prometidos que pereceram na destruição de
Neskaya...”.
Aqui está aquele conto.

Deborah J. Ross
PRÓLOGO

Rumail Deslucido tinha enganado a morte antes, mas agora ela finalmente tinha
chegado a ele. Deitou-se em uma cama como se estivesse caindo e rangendo, seu
corpo falhando, na sala suja que havia sido seu refúgio e sua prisão, e apenas
esperou. Cada respiração era uma batalha para sugar o ar para seus pulmões
cansados. A cada momento que se passava, seu coração fraquejava como se também
tremesse em exaustão por ter vivido tanto tempo.
A porta se abriu e a moça da aldeia entrou carregando um cesto de pão e uma jarra de
barro. Ele tomou um gole do caldo enquanto ela o ajudava e depois se deitou. Ela falou
com ele, coisas de pouca importância, não valia o esforço de dar atenção. Sua voz se
apagou, misturando-se com as memórias de outras vozes. Às vezes ele falava com homens
há muito já falecidos, como seu irmão...
Ah! Até podia ver os olhos cheios de fogo e vitória. Mais uma vez, eles estavam juntos em
uma varanda, enquanto abaixo deles, as bandeiras com os símbolos dos Deslucidos, em
forma de diamante branco e preto, ondulavam ao vento. O sol da manhã brilhava nos
cabelos do rei como uma coroa natural. Ele falou e suas palavras pintaram visões na mente
de Rumail, a esperança de um tempo em que esses Cem Reinos pudessem ser unidos em
um único reino harmonioso. Não mais em incessantes guerras, não mais com brigas
mesquinhas enquanto os homens sangravam e perdiam suas vidas sobre os campos em
ruínas. Os talentos de laran de Rumail seriam celebrados, o seu lugar como Guardião de sua
própria Torre, por tanto tempo negado por esses puristas cegos-mentais, estaria em suas
mãos...
O céu brilhante escureceu, a visão explodiu como folhas secas no inverno, e agora Rumail
estava no campo de batalha em Drycreek, onde o exército de seu irmão tinha entrado em
confronto com o do rei Rafael Hastur. Os soldados de seu irmão pararam para olhar para o
céu. Pairando acima do inimigo, as aves mecânicas de Rumail lançavam chuvas de
partículas verdes brilhantes, tão estranhamente bonitas quanto mortíferas: pó de ossos,
forjada pelo poder concentrado das mentes dotadas com poderosos larans compradas a
um grande preço e formando um círculo renegado.
Enquanto Rumail observava o veneno luminoso ir em direção ao inimigo desavisado,
desejou ter havido outra maneira de deter o rei Hastur e sua sobrinha bruxa, Taniquel
Hastur-Acosta. Mas traição dos seus próprios servos dotados com laran, tinham virado a
maré da batalha.
Eu não tinha escolha. Nenhum de nós tinha uma escolha.
Rumail havia revivido a cena mil vezes, desde o primeiro momento em que a vitória
escapou com a súbita mudança do vento que soprou a poeira de osso para trás sobre suas
próprias forças. Como se fosse ontem, lembrou-se daquela luta louca em retirada, homens
e animais morrendo rápido como um batimento cardíaco, com milhares mais condenados a
uma morte prolongada. Ele próprio escapara por pouco. Ferido, mal capaz de manter um
escudo psíquico contra a poeira tóxica, ele se agarrou ao mais ínfimo pedaço de esperança.
Ele deveria ter morrido lá, imobilizado e impotente. Mas não. Ele tinha escapado da
morte então, como tinha feito antes, e como faria novamente várias vezes. Os deuses
tinham outro destino para ele, não como mais um corpo sem nome em um campo que
ninguém ousava atravessar por uma geração ou mais.
Agora, em sua memória, ele estava no alto de uma varanda da Torre, envolto nas vestes
carmesim de um Guardião. Por fim, ele comandou um círculo próprio, e não importava
quanto seus trabalhadores o desprezassem, eles o obedeceriam. Sua Torre foi juramentada
a seu irmão, o Rei, e por suas ordens eles agora montavam um ataque sobre uma Torre
Hastur.
Gritos ecoaram pelas cavernas da mente de Rumail. Ao redor dele, os muros
estremeceram sob explosões de raios psíquicos à medida que cada Torre soltava suas
terríveis armas sobre a outra. Pedras explodiram em chamas não naturais. Ele sentia as
mentes moribundas de seus próprios operários e, ecoando longe, as de seus inimigos.
Chamas azuis dispararam para o céu, balançando as fundações.
Rumail se lembrava de tropeçar na Torre em ruínas, vagando em um deslumbramento,
agora como um espírito desencarnado no Mundo Superior, agora esfarrapado e meio
faminto, através das terras selvagens onde ninguém o conhecia.
Agora as lembranças cintilavam através de sua mente como velas que gotejam em um
vento de inverno. Ele olhou para a mulher da aldeia que ele tinha tomado como esposa,
olhou para baixo sobre o rosto arredondado de um filho recém-nascido, em seguida, outro
e outro. Os anos passaram. Ele olhou para os olhos brilhantes de seus filhos e sua própria
vingança espelhada neles. Sentiu uma dor distante quando a mente de seu filho mais velho
gritou e depois caiu em silêncio. Viu o rosto franzido de um funileiro itinerante, trazendo
notícias de que o rei Rafael Hastur tinha morrido em circunstâncias misteriosas.
Ouviu a voz de seu segundo filho: Pai, Felix Hastur de Carcosa reivindicou o trono, e ele
tem um herdeiro saudável, seu sobrinho Carolin.
Então Carolin, também, deve morrer, de modo que sua linhagem seja extinta. Mandarei o
meu filho mais novo, meu Eduin, para a Torre Arilinn para treinar como um laranzu, a arma
perfeita contra este príncipe Hastur. Rumail havia dito
Eduin...
-Olá! Olá! -Disse a moça da vila, afastando os cabelos da testa de Rumail. - Estamos nos
sentindo melhor?
Ele não tinha energia para favorecer a ela com uma resposta, pois o passado pressionava
ainda mais agora.
O rosto de seu filho mais novo flutuava na mente de Rumail.
Fechou as pálpebras e parecia que mais uma vez ele vagava em delírio, seu corpo
atormentado com a febre do pulmão, seus pulmões enfraquecidos por sua provação no
campo de batalha. Quando a notícia de sua doença chegou a Arilinn, Eduin tinha corrido
para seu lado. Rumail sentiu o toque do laran treinado de seu filho.
Pai, por favor! Você deve viver, mesmo que seja apenas para se ver vingado sobre os
Hasturs!
Viver... ele ouviu sua própria voz mental, fraca e distante. Sim, preciso viver. E certifique-
se que da próxima vez você não falhe.
Eduin se encolheu sob o ataque mental. Sua fraqueza, sua culpa brilharam. Rumail
invadiu cada lembrança, cada momento de traição. Quando Carolin passou uma temporada
treinando na Torre Arilinn, Eduin teve uma dúzia de chances de atacar... um deslizar da
ponta de uma faca, a queda de uma varanda, um coração de repente parando quando seus
dedos se fecharam em torno da pedra da estrela de Carolin... Em cada momento crucial, no
entanto, algo tinha parado sua mão.
Não foi culpa minha! Eduin tinha chorado. Varzil Ridenow sempre interferiu, sempre
suspeitou de mim e protegeu Carolin...
Sem desculpas! Com toda a força de sua mente treinada pela Torre, Rumail o atingiu.
Eduin, preso entre o desespero e a esperança, estava sem defesa. Rumail penetrou na
mente de seu filho, profundamente no núcleo de seu talento laran, agarrou e retorceu...
Você não terá nenhum descanso ou alegria até Carolin Hastur e todos que o ajudam
estarem mortos.
Quando a estrutura foi executada, Rumail tinha aberto os olhos para ver seus dois filhos
restantes, Eduin, o laranzu, e Gwynn, o assassino. Eduin se tornara seu instrumento, casado
com seu propósito.
Rumail enviou seus filhos de volta ao mundo.
-Encontre o filho de Taniquel, mate Carolin Hastur e qualquer um que se interponha no
seu caminho!
Fragmentos de memórias de laran emergiram na memória de Rumail, coisas que ele
tinha percebido de longe, ligada às mentes de seus filhos. Gwynn lutando em uma margem
lamacenta de rio com Carolin, depois preso em uma batalha psíquica com Varzil Ridenow,
que tinha frustrado a tentativa de assassinato. A mente de Varzil pressionando contra a
dele: Quem te mandou? Quem?
Mesmo agora, Rumail ouvia os ecos dos pensamentos finais e angustiados de Gwynn:
Nós seremos vingados!
De longe, Eduin exultava com triunfo ao descobrir a identidade de Felicia Hastur-Acosta,
a filha de Taniquel. Suas mãos se moviam criando uma armadilha mortal. Depois, sua fuga
das ruínas da Torre Hestral, caçado... fora da lei... Rumail não podia mais dizer se essas
lembranças eram as de Eduin ou as dele... o frio, o medo, a necessidade constante de se
esconder, de se mover...
Pai, estou aqui ... esperando por você ...
Rumail piscou, enquanto uma visão se sobrepunha a outra. Gwynn acenando para ele, e
por trás dessa forma fantasmagórica haviam outros, os filhos que ele perdera em sua busca
de vingança. Em cada face, ele via a luz do reconhecimento e da acolhida. Lá seu irmão
estava de pé, dourado e rei, ao lado de seu próprio filho e herdeiro... lá estava o general
que os tinha conduzido... Lá estavam os homens caídos sob a poeira da água de osso.
Esperando, todos esperando por ele para se juntar a eles.
Eu não posso morrer, ainda não, não enquanto Carolin Hastur ainda se sentar em seu
trono! Que maldita bruxaria o protege?
A forma sombria de Eduin brilhou na visão do velho.
Você estava certo, meu filho. Sem Varzil Ridenow, você teria conseguido.
Com o resto de sua força, Rumail lutou para falar, mas não pôde formar as palavras. Suas
cordas vocais, assim como seu corpo, tinham ficado entorpecidos.
Estamos esperando por você...
-Senhor, você deve descansar. –Disse uma voz leve de menina.
Descanse... Logo... Em breve... Rumail fechou os olhos, convocando o laran que uma vez
tinha sido seu tão grande poder. Ele havia treinado na Torre Neskaya antes de sua queda,
antes de Varzil, o Bom reconstruí-la com a ajuda de Carolin Hastur. Ele poderia ter sido um
Guardião como era seu direito. Deveria ter sido.
Não há tempo para isso agora. Seus pensamentos estavam se tornando desarticulados,
atrofiados.
Os Hasturs deviam ser destruído. Ele enviou o pensamento. Mate-os... mate todos! Ao
longo das distâncias, sentiu a resposta de Eduin.
Varzil Ridenow. Rumail insistiu, mesmo com seus pensamentos desgastados em farrapos.
Ele é a chave do poder de Carolin. Sem a sua força... Hastur vai cair...
Sim. Eduin respondeu com um ódio que espelhava o próprio ódio de Rumail.
Vingue-nos... As figuras fantasmagóricas pressionavam ainda mais perto agora com suas
vozes aumentando tão fortemente como se elas estivessem diante dele. Junte-se a nós...
-Jure! -Rumail não podia ter certeza se ele projetou o comando mentalmente ou se falou
em voz alta. Sua respiração sussurrou através de sua garganta o mais débil dos suspiros. -
Jure que será feito!
A cinza subiu ao seu redor e os rostos ficaram mais claros, suas peles e roupas tão
incolores como a paisagem além. O Mundo Superior fechou suas mandíbulas sobre ele e
desta vez não haveria retorno.
Eu... juro...
______ ______

LIVRO I

______ ______
CAPÍTULO 01

Naquele ano o longo inverno darkovano parecia que ia durar para sempre. Mês após
mês, nuvens de gelo mascaravam o sol sangrento inchado. A neve caiu dura como o vidro, e
então caiu outra vez, até que as camadas compactadas encaixaram a terra num tipo de
armadura gélida. As passagens pelas colinas Venza, acima de Thendara, ficaram
bloqueadas. Até mesmo os comerciantes, cujo sustendo dependia das viagens, perderam
todo o desejo de se aventurar além das muralhas da cidade. Senhores comyn e plebeus
igualmente se abrigaram por trás de suas portas, entrincheirando-se na difícil temporada.
O Festival do Solstício de Inverno chegou e com ele uma onda de agitação e festa.
O Rei Carolin Hastur abriu as portas do seu grande salão para a festa com música e
banquetes suficientes para levantar o coração do mendigo mais pobre das ruas. Ele tinha se
mudado recentemente de Hali, onde seu avô tinha governado, para a maior metrópole de
Thendara. Os Reis Hasturs também tinham morado aqui anteriormente, sendo o último
deles o Rei Rafael II, na época da Rebelião de Hastur. Movendo sua corte para Thendara,
Carolin deixou o povo saber que ele queria governar todos os Hasturs. Ele não era mais
Hastur de Carcosa ou Hastur de Hali, mas o Alto Rei em Thendara. Para celebrar seu novo
trono, ele demonstrou a generosidade do feriado com a generosidade que inspirou ação de
graças em alguns e a suspeita em outros. Quando ele apareceu em público, falando com
lordes do Comyn e plebeus, ele falou do Pacto que traria uma nova era de paz e honra para
todos em Darkover.
O tráfego de carrinhos e vagões através dos portões dos comerciantes diminuiu.
Comerciantes de grãos aumentaram seus preços, acumulando seus suprimentos. Um
calcário cinza sombrio seguia outro e as festividades borraram-se na memória, pálidas
contra o frio implacável. O rei Carolin estabeleceu uma série de abrigos, muito parecidos
com aqueles mantidos ao longo das trilhas das montanha para os viajantes, onde os pobres
poderiam encontrar refúgio nas noites amargas.
As distribuições dos celeiros reais para os pobres continuou por um tempo. Naqueles
dias, as pessoas se reuniam na escuridão antes do amanhecer, tremendo em suas camadas
de casacos e xales de lã, jaquetas e cobertores remendados, agarrando seus jarros e cestas.
A respiração deles subia como névoas. Em algumas manhãs, a cada um foi dada uma porção
de grãos, feijão e uma medida de óleo de cozinha ou, por vezes, de mel. Ultimamente, não
havia o suficiente para todos.
Nuvens escuras e grossas pendiam sobre a cidade, como se o próprio céu estivesse
franzindo a testa. Os guardas do rei, calorosamente revestidos do azul e prata dos Hasturs,
limpavam a área em frente às portas e encaminhavam o povo para a frente, um a um.
Davam preferência aos mais fracos, às mulheres e aos idosos. Mais de um homem foi
afastado, especialmente aqueles que usavam lã grossa, forrada de pele sobre suas barrigas
amplas.
-Por que jogar fora boa comida no paladar deles? -Gritou um homem que tinha sido
empurrado para o lado. Ele apontou para uma mulher agarrando um frasco de cerâmica
agora cheio de grãos. Suas saias e xales estavam tão surrados que várias camadas
mostravam remendos. Parecia uma boneca enfeitada, exceto pela fina magreza de suas
bochechas. Claramente, usava todas as roupas esfarrapadas que possuía.
-Ela só vai desperdiçar...
-E você só vai vendê-lo para algum infeliz que é ainda mais pobre ou mais desesperado. -
O guarda respondeu acotovelando ele. -O Rei designou que esse alimento é para aqueles
que realmente precisam. Você não olha para mim como se tivesse passado fome.
-Que todos os escorpiões de Zandru caiam sobre você! -Amaldiçoando, o homem sacudiu
o braço livre do aperto do guarda.
-Não há muito tempo atrás, -resmungou um deles, fazendo referência ao reinado do
primo do rei Carolin, Rakhal -as coisas eram diferentes. Haviam avenidas abertas para um
homem suficientemente criativo fazer pechinchas e trocas de favores. Mais de um de nós
tinha um amigo no castelo... Mas esses tempos se foram, não há negócios com o bando de
Carolin. -Ele encolheu os ombros filosoficamente.- Assim que as estradas se abrirem na
primavera, vou para Temora, não há nada para gente como nós aqui.
-Você quer dizer que nós vamos ter que virar honestos para ganhar nosso pão!? -Um
terceiro homem brincou. Acenando para os outros, desaparecendo em uma das ruas
laterais.
-Eles não passam fome, ou frio, ou vivem na falta de qualquer conforto. -Um estranho
que se encontrava um pouco afastado dos outros avançou. Ele olhou para o Castelo Hastur
e, em seguida, para as ricas residências dos lordes do Comyn. O sol ainda não estava a pino
e as sombras cobriam rotas frias ao longo das ruas. Torre e Castelo brilhavam com luz,
alimentados por baterias carregadas de laran.
-Eles nos jogam um pedaço de pão e esperam que sejamos gratos... Enquanto eles se
sentam lá com suas almofadas de cetim, suas salas aquecidas e suas telas de matriz...
Venenos, pragas e feitiços como armas... eles não se importam com nada... nada...
-Venha, amigo. -Disse o homem que ameaçava ir para Temora, estendendo o braço.-
Venha, vou comprar uma bebida para você.
-Uma bebida não vai curar o que aflige esta cidade. -O homem encapuzado afastou-se, os
lábios contraídos em um grunhido. O capuz de seu manto gasto encobriu parcialmente seu
rosto, revelando apenas a linha de um queixo angular, frio e áspero.
O outro homem fez uma pausa, os olhos se estreitando em avaliação. As roupas do
estranho, embora manchadas e rasgadas, haviam sido no passado de boa qualidade e ele
não tinha o perfil de um homem acostumado com migalhas.
-Então deixe-me vê-lo em casa, longe de...
-Casa? -A voz do homem encapuzado raspou, obscura e amarga. -Eles fizeram com que
eu não tenha nenhums. Mas a hora chegará em que serão eles que vão implorar por pão e
dormir em pedras frias...
-Segure sua língua, homem! -O homem Temora vociferou. -Ou, se não puder, fale
sozinho, pois não vou ser parte de sua conversa sediciosa... Uma coisa é conquistar a
generosidade do rei ou negociar com seus homens, e outra muito diferente é estar aqui ao
ar livre planejando a traição com tais palavras. Qualquer um desses guardas poderia nos
ouvir e eles são devotos a Carolin como se ele fosse o próprio Aldones. Afastou-se sem
olhar para trás, como se quisesse distanciar-se de qualquer associação com aquele agitador.
O primeiro homem, que estava tão zangado, deu uma moeda ao homem do capuz.
-É melhor você sair do frio. -Então ele também partiu sem esperar agradecimentos.
O homem encapuzado olhava a moeda na palma da mão, enquanto as pessoas que
haviam recebido comida se apressavam e aqueles que tinham chegado tarde voltavam com
os ombros caídos. Seu capuz ocultava sua expressão, mas algo em sua postura mantinha os
curiosos à distância.
-Você aí! -Gritou um dos guardas, trancando as portas do celeiro. –Acabamos por hoje. -
Ele acrescentou, num tom mais gentil:- Volte amanhã, mais cedo de preferência, e
tentaremos dar-lhe algo.
-Eu não preciso de nada de gente como você! -O homem rosnou.- Você e seus malditos
mestres feiticeiros...
O rosto do guarda endureceu e ele deu um passo adiante. O homem encapuzado girou
com surpreendente rapidez, cuspiu uma maldição e correu para longe. O guarda voltou-se
para seu parceiro, que ainda usava a faixa de um cadete.
-Fique de olho nesse ai. Já vi seu tipo antes. Eles causam problemas onde quer que vão.
-Já temos problemas o suficiente neste inverno sem precisar de um louco causando mais.
-O menino respondeu, balançando a cabeça. -Deveríamos contar ao capitão?
-O que devemos dizer? Que há ainda outro descontente nas ruas? Nós também
informaremos que o sol nasceu ou que há um excesso de ratos no celeiro! -O primeiro
guarda soltou um riso estridente. -Vamos, vamos voltar para o quartel. Um pouco de vinho
quente e temperado soa bem para mim agora.

-Amigo!
O som em forma de palavra, agora repetindo, junto com um suave aperto nos ombros.
Eduin sentia sua cabeça como se houvesse inchado várias vezes o seu tamanho normal, e
com cada batimento de seu pulso, uma resposta de choque irrompia atrás de seus olhos.
Mãos deslizaram sob seus braços, levantando-o. Ele abriu a boca para protestar, pois o
menor movimento só intensificava sua dor de cabeça. Ele percebeu que seus olhos ainda
estavam fechados e uma luz ofuscante brilhava diretamente em seu rosto.
Já era dia.
Ele murmurou uma maldição. Tinha passado um dia com ele caindo em esquecimento
sob o banco da taberna, e agora era dia de novo. Provavelmente não era o mesmo, mas ele
não sabia nem se importava.
-Venha e sente-se. Por aqui. –Surgiu a voz novamente.
Vá embora. Deixe-me.
O pensamento surgiu lentamente, como se a cerveja barata ainda inundasse suas veias.
De alguma forma, ele conseguiu ficar de pé, com seus olhos doendo contra a luz. Ele
percebeu a forma turva de um homem... uma cabeça, dois braços, duas pernas mal
percebidos... o suficiente para convencê-lo de que ele era real e não de outra alucinação da
embriaguez.
-Por Aldones! Você está fedendo! -Disse o estranho. -Mas você está molhado e não posso
deixar você ficar aqui fora. A noite está chegando e vai ser fria o suficiente para congelar até
os ossos de Zandru.
Congelar. Ele gostaria de ter uma morte indolor. Dormir e nunca acordar. Parecia
maravilhoso.
Não mais engoliria a cerveja tão ruim que nem um cão a tocaria, não vomitaria tudo em
seu estômago até que o nó em sua barriga finalmente aliviasse, a voz em sua cabeça
silenciaria, não teria mais pequenos e degradantes empregos ou roubaria mízeras moedas
para implorar por mais bebidas. Fazia muito tempo que deixara de se importar com cama
ou comida, ou com os sarcasmos de estranhos. A única coisa que importava era a próxima
bebida, e a próxima, e a próxima... E quietude no dia seguinte... a abençoada quietude.
Seu corpo estava se movendo agora, em parte por seus próprios reflexos, e parcialmente
impulsionado pelas mãos suaves e intransigentes que o guiavam. Um beco entrou em no
foco de sua visão. Ele não o reconheceu. Ele poderia estar em qualquer lugar nas áreas mais
pobres de Thendara. Ou Dalereuth, ou Arilinn...
Não, não Arilinn. Pois nesse lugar, ele não poderia se esconder. Eles o reconheceriam, por
mais sujo ou bêbado que estivesse. O leronyn da Torre sentiria sua mente. Mesmo com os
escudos psíquicos que há muito tempo se tornaram tão automáticos como fôlego, eles o
reconheceriam porque ele tinha sido um deles.
Aqui, na miséria anônima da maior cidade de Darkover, ninguém pensaria em procurá-lo.
Aqui ele poderia afogar-se em um rio de cerveja. Ninguém saberia se ele vivia ou morria.
Ninguém se importaria. Somente num inverno tão amargo algum transeunte ou dono de
uma cervejaria abrigaria um bêbado sem nome para fora da neve, porque ninguém poderia
sobreviver tais noites.
-Estamos quase lá -Disse a voz.
-Onde...? -Sua voz saiu em um chiar.
Sentiu mais do que viu o sorriso do estranho.
-Em um lugar seguro.
Eles passaram entre dois edifícios sob enormes sombras. Um vento, como ponta de gelo,
corria pelo estreito espaço. Haveria neve novamente esta noite. Seu corpo tremia e ele
pensou como ele poderia rastejar e fazer sua mente ficar à deriva, como se isso fosse um
cobertor de lã dispendiosa sobre ele. Tudo seria um sonho quente. Ele teria que estar
completamente bêbado para fazer isso, quase em um estado de estupor, ou a pressão da
consciência em sua cabeça iria impedi-lo. Ele tentara várias vezes buscar o esquecimento
permanente, mas cada vez, sua segunda consciência, como uma velha e má companheira,
manteve-o vivo, acorrentado aos seus próprios propósitos.
Uma porta se abriu e um ar mais quente o rodeou. Ele estendeu uma mão para se
equilibrar e tocou as tábuas rachadas e estilhaçadas. Dentro, uma luz se acendeu. Ele
cambaleou livre do aperto do estranho e caiu em uma cadeira toscamente trabalhada.
Ele estava em algum tipo de quarto de empregados, talvez uma velha copa, embora não
conseguisse distinguir nada além de uma mesa abandonada ao longo de uma parede. Um
jarro, com a borda rachada e quebrada, estava ao lado de uma tigela igualmente decrépita.
Não conseguia distinguir o resto do conteúdo do quarto sem virar a cabeça e isso significava
arriscar outra onda de dor nauseante.
-Beba. –O estranho implorou, gesticulando com uma mão.
O estranho inclinou-se sobre ele e parecia que um manto de luz azul repousava sobre
seus ombros. O capuz do manto ocultava o rosto. Colocou uma mão na testa de Eduin.
Descanse. Descanse agora e esqueça. Conversaremos amanhã.
Eduin voltou a acordar com uma luz fraca e aquosa. Ele estava entrando e saindo de
estranhos e inquietos sonhos em que homens sem rosto o perseguiam e cada vez que ele
tentava se esconder, era descoberto. Agora ele estava deitado em uma esteira grosseira no
chão de uma sala que deveria ter ser-lhe estranha, mas me sentia-a muito familiar.
Além de seus desconfortos físicos, da urgência de sua bexiga e da saliva grossa como
algodão na boca, não conseguia se lembrar de um momento em que se sentisse mais à
vontade. Mais interiormente ainda era como se uma voz que o estivesse mantendo furioso,
noite e dia, tivesse caído em silêncio de repente.
Ele se sentou, sua espinha estalando, os músculos rígidos. A luz surgiu através de uma
janela com camadas de tecido oleados em vez de vidro. Uma vela, grossa e irregular,
brilhava do outro lado da sala. No chão ao lado de sua esteira, ele viu uma caneca. Ela
continha água, em vez de vinho ou de cerveja rústica, mas ele bebeu avidamente. Sentiu
um ligeiro sabor de limão que limpou sua mente e aliviou a náusea seca de sua garganta.
Deu-lhe a força para se levantar e ir para a porta e para fora. A neve derretida queimou
seus pés descalços. O beco estava deserto e ele descobriu com alguma surpresa que isso
importava para ele. Ele se aliviou contra a lateral do edifício.
Voltou para dentro o mais rápido que pôde. Não havia lareira, apenas um pequeno
braseiro de pedra cheio de cinzas. Ainda assim, as paredes impediam o pior do vento.
Entusiasmado, ele explorou o lugar. O jarro continha mais da água de limão e ao lado
havia pão, apenas um pouco mofado de um lado, e queijo duro. Ele não se lembrava
quando tinha comido pela última vez. Mastigando devagar, comeu tudo, exceto pela parte
mofada. A algum tempo ele teria comido o mofo também, mas agora o cheiro dele o
enojava.
Várias observações da sala não revelaram nenhum vestígio dos toques pessoais de seu
dono. O chão era de madeira nua, manchado com lama seca. A esteira de dormir era do
tipo mais pobre, camadas de palha e cobertores esfarrapados demais para qualquer outro
uso, colocados sobre um quadro de ripas de madeira para mantê-lo fora do chão. Na parte
de trás da porta havia uma fileira de cavilhas de madeira, algumas quebradas como dentes
podres onde sua própria jaqueta pendia. O pior da sujeira da superfície tinha sido limpo
com escovadas e o preenchimento preso em remendos surrados. Ele encontrou suas botas
empurradas em um canto. Enquanto as puxava, refletiu que, por todas as aparências, a sala
era sua, e ainda assim ele não tinha lembrança de estar aqui antes. Certamente, se ele tinha
vindo com poucos réis para alugar, ele a muito que não visitava aquele lugar.
Novamente, ele percebeu a clareza e o silêncio inesperado em sua mente. Ele não sentia
desejo por bebida, embora ele possuísse todas as razões possíveis para deseja-la. Sua
memória o enchia com inúmeras manhãs em que seu primeiro e único pensamento era
como ele iria ficar bêbado novamente. Em seu tempo em Thendara, e antes disso na
estrada, ele tinha conhecido muitos homens que viviam como ele, tropeçando de um
estupor para o outro. Eles juravam que a única cura para a náusea e as dores de cabeça,
parar a bebedeira, não valia o custo de ser atormentados pelas visões de pesadelos
constantes por diversas razões.
Eduin nunca tinha parado com a bebedeira para escapar das consequências de beber.
Isso era o que ele havia procurado, essa abençoada quietude. Era alguma propriedade
deste quarto, embora parecesse ordinário e gasto? Ele não viu nenhum traço de um
amortecedor telepático. Por experiência, ele sabia quão inútil era um amortecedor contra
seu tormento interior. Adequadamente sintonizado, manteria a energia psíquica entrando
ou emanando da sala. Não podia protegê-lo do que já estava dentro de sua própria mente.
Ele usara um quando viveu em uma Torre, primeiro em Arilinn, onde foi treinado, depois
em Hali por um breve tempo, e depois Hestral até sua destruição.
Hali. Apenas a uma curta viagem de meio dia partindo de Thendara... Na extremidade da
cidade, ao pé do misterioso lago cheio de nuvens, uma Torre erguia-se em direção ao céu,
um dedo de gracioso alabastro. Nela, como em qualquer outra Torre, homens e mulheres
dotados de dons psíquicos juntavam a suas mentes para trabalhar com proezas
inimagináveis, desde a criação de armas até a cura de dores e males. As Hellers enviavam
mensagens através dos limites da planície e da montanha. As baterias alimentadas por
laran, carros aéreos, palácios iluminados que guardavam os segredos de reis.
Hali. Ela já tinha estado lá. Ainda poderia estar de acordo com o que ele sabia.
Uma dor o atravessou, mas não de qualquer causa física.
Eduin afundou na prateleira e enterrou o rosto nas mãos. Sua respiração ficou irregular
enquanto ele lutava para conseguir se controlar como tinha aprendido em seus anos como
um laranzu, um mestre da força psíquica chamada laran. Imagens brilharam atrás de seus
olhos fechados, pedaços de memórias que ele tinha lavado com as garrafas de bebidas. As
paredes de pedras translúcidas e pálidas que criavam a sensação de luz e espaço sem fim...
As névoas sempre inquietas do Lago Hali... Dyannis quente e flexível em seus braços.
Doce e amargo, sentimentos que ele pensava que haviam morrido há muito tempo
agitaram-se nele... saudade e perda doíam de modo que ele não poderia dar nomear.
Deitou-se de novo na esteira. Um choro sem som o atormentava. Algum tempo depois,
parecia que alguém o segurava, o balançava, acariciava seu cabelo emaranhado.
Para esta dor, também, haverá uma cura.
Mais uma vez, ele dormiu.
Ele perambulou através de uma paisagem sonhadora de suaves colinas e uma colina com
vista para um rio. Embora ele não se lembrasse de ter estado aqui antes, algo sobre o lugar
tocou seu coração. O ar era quase luminoso, o calor hipnótico. O próprio tempo parecia
estar prendendo a respiração. Os ramos de árvore agitaram-se e um brilho dançou através
de seu rosto. Ao seu redor flutuavam formas transparentes, como figuras do Mundo
Superior. Elas entraram e saíram de sua vista. Não sentiu nenhum tipo de ameaça nelas.
Ele pensou ter ouvido alguém cantar em tons semelhantes a um doce sino, tão fraco que
poderia ter sido apenas a brisa através das folhas. As formas adquiriram substância. Do
canto dos olhos, vislumbrava corpos esguios e cascatas de cabelos prateados. Olhos e peles
brilhavam com um brilho incolor, como se esculpidas ao luar.
Nenhum ser humano se movia com tanta graça, pois essas pessoas eram Chieris, da raça
que era tão antiga que vinham dos tempos perdidos na memória do mundo, quando os
humanos chegaram primeiro em Darkover. Foi dito que na loucura do Vento Fantasma, eles
deixavam suas florestas para levar as mulheres humanas como suas amantes, aparecendo
como senhores elfos, justos e orgulhosos, e desde então, o sangue chieri, e seu laran,
fluíram nas veias dos Comyns.
Suas vozes se tornaram mais claras agora, enquanto cantavam através dos lentos
movimentos majestosos de sua dança. Quatro luas atravessaram o céu límpido,
encharcando-o em uma luz pastel multicolorida.
Parte lamento, parte alegria, as palavras ressoaram por Eduin. Sentia o corpo
estranhamente leve, como se a canção chieri transmutasse sua carne mortal em vidro. Ele
percebeu que estava movendo-se entre eles, essas pessoas que ninguém tinha visto por
centenas de anos, conhecidos apenas por lendas. Seu sangue corria em suas veias, cantava
em seu laran, em sua própria alma. Eles se voltaram para ele com aqueles olhos luminosos
e conhecedores, e estenderam suas mãos em boas-vindas.
A floresta amarelo e o branco, o lento, de virada lenta das estrelas... a dor do exílio, as
estações do seu ciclo como o bater de um imenso coração vivo...
E acima de tudo, a dança sem fim do céu e da árvore, das mãos e vozes entrelaçadas, tão
calmo, triste e alegre como se quebrasse seu coração, desaparecendo agora.
Desbotando...
O estado de vigília de Eduin aumentou. Seus sentidos tinham ficados ainda mais
acentuados, assim como sua fome. Em momentos ele dormia profundamente, vagando em
sonhos que pareciam seguir o ritmo das batidas de seu coração. Um cheiro surgiu de seu
corpo, um miasma de suor velho, sujeira de sarjeta e o fedor de cerveja. A intensidade do
odor era tanta que ficou enjoado.
Não havia comida, apenas o jarro cheio. Com esforço, ele engoliu a água, que ele agora
reconhecida como uma fórmula diluída de kirian, um destilado psicoativo utilizado nas
Torres para o tratamento da doença do limiar e outras doenças psíquicas.
Eduin franziu a testa quando ele terminou o último gole. Só alguém com formação
saberia como fazer as coisas e ainda mais administrá-las corretamente. Era claramente
benéfico no seu caso. Ele não poderia ter caído nas mãos de qualquer pessoa com formação
da Torre. Se ele tivesse, ele não estaria em tal casebre, nem ainda estaria em liberdade.
Não. Sua transgressão não seria logo esquecida.
Seu benfeitor desconhecido tinha feito mais do que encher o jarro. Carvão brilhava no
pequeno braseiro, exalando um calor reconfortante. A pilha no final da mesa era roupa,
uma túnica pesada e calças de cordão, gasta e remendada grosseiramente, mas limpas.
No topo havia um disco de barro cozido, uma ficha, um token, de um dos balneários
locais. Recolhendo as roupas, Eduin vestiu o casaco e entrou na rua. Ele reconheceu o
estabelecimento pelo coelho-de-chifre estilizado em seu sinal, idêntico ao que estava
carimbado no verso do token.
A mulher que guardava a porta inspecionou o token.
-Este inclui sabonete, toalhas e um barbear. Um corte de cabelo é extra. -Ela olhou para
ele avaliando-o.
Ele pensou em dizer-lhe que não tinha roubado o token, como ela tão claramente
suspeitava. Tinha passado muito de sua vida criando problemas onde não havia nenhum. A
última coisa que ele queria era ser expulso antes dos cortes por tentar roubar um banho.
-Isso vai me cair bem. -Disse ele humildemente.
A banheira tinha apenas um braço de diâmetro. Suas paredes de madeira tinham ficado
aveludadas com a idade e cheiravam a enxofre, mas ele não se importou. A água era
profunda o suficiente para cobrir seus ombros. Olhando para baixo, ele mal reconheceu o
corpo como sendo o seu. Quando tinha se tornado tão perdido, sua pele tão doentia e
pálida e com as pequenas mordidas vermelhas do piolho do corpo? Tinha tantas cicatrizes,
mais do que costelas, algumas resultado de brigas com um homem que tinha ainda menos
razões para viver do que ele tinha...
Suspirando, ele descansou a cabeça contra a borda da banheira enquanto o calor entrava
profundamente em seus músculos. Seu cabelo arrastou-se para dentro da água.
Quanto tempo ele ficou ali, entrando e saindo da consciência, ele não poderia dizer. A
água ficou fria. Ele ergueu-se, notando a pele enrugada em suas mãos, e pegou o sabão. Até
o momento ele tinha ensaboado seu corpo duas vezes e seu cabelo três vezes, a água ficou
escura com sujeira. Um balde de água estava no canto. Ele se arrastou para fora e
encharcou-se, embora isso o tenha deixado tremendo. Ele enxugou-se sob as toalhas
grossas deixadas para seu uso e amassou suas roupas velhas em um pacote. Sujas como
estavam, eles poderiam valer apenas um ou dois réis para panos de limpeza.
Vestido agora nas roupas limpas, dobrou a pequena trouxa na cintura de suas calças.
Seus dedos pousaram sobre ela por um momento. Dentro de seu invólucro de seda havia a
posse que ele nunca poderia vender, não importava quão desesperado estivesse. Apesar de
que se fosse descoberta certamente o entregaria como um laranzu fora da lei, mesmo
assim ele não se atrevia a se desfazer dela. A azul pálida pedra-da-estrela tinha sido dada a
ele após a sua chegada na Torre Arilinn. Ao longo de sua formação, ele a tinha usado para
se concentrar e amplificar seu laran, tornando-a uma extensão cristalina de sua própria
mente. Caso viesse a ser perdida, roubada ou caísse nas mãos de alguém, o choque poderia
muito bem parar seu coração.
Eduin não conseguia se lembrar da última vez que tinha sido tocada por outra pessoa...
O barbeiro, um velho magro, com mais cabelos pendendo de suas verrugas no queixo do
que na sua cabeça, cantarolava enquanto trabalhava. Quando cuidou do cabelo ainda
úmido de Eduin, Eduin avisou que ele não tinha pago por um corte de cabelo.
-Ah, mas seria um crime deixá-lo ir, tão limpo e bem vestido, com esse cabelo. Você não
poderia arrumar esses emaranhados nem mesmo com um pente de cavalo. Além disso, um
homem gosta de ter orgulho de seu trabalho.
Eduin murmurou sua gratidão, pois não era apenas o corte de cabelo que merecia
gratidão, mas sim a bondade do homem. Tinha se passado um longo tempo desde que a
tinha tido tais luxos.
Ele passou as horas seguintes vagando pelas ruas. O bairro era familiar, mas parecia que
ele nunca tinha visto nada acima das calhas. Quando voltou para a sala, encontrou a porta
entreaberta.
Um homem, alto e magro, olhou para cima de onde ele estava debruçado sobre a mesa.
Ele usava uma capa curta com um capuz puxado confortavelmente sobre sua face. Eduin
não tinha dúvida: ele era o seu misterioso salvador.
-Fico feliz que tenha vindo, -disse ele -para que eu possa agradecer-lhe por tudo o que
fez por mim.
-Não, agradecimentos não são necessários. -Foi a resposta. A voz soava familiar, como se
a tivesse ouvido em seus sonhos. -Pois, você chamou a mente e a mente respondeu. Os
iguais acabam por se atrair.
-Eu... eu não sei do que você está falando. -Eduin gaguejou repentinamente alarmado.
-Mas você devia fazer. Pois, quem mais, além de um companheiro laranzu iria reconhecer
o que você realmente é?
O homem estendeu a mão e puxou o capuz para trás, revelando um rosto angular e forte
e uma cabeça cercada por um cabelo vermelho brilhante dotada psiquicamente pelo dom e
os traços do Comyn.
CAPÍTULO 02

A adrenalina percorreu os nervos de Eduin causada pelo terror cultivado nos anos de
esconderijo. Apenas um membro do Comyn, a casta telepática de Darkover, teria um cabelo
vermelho flamejante ou seria capaz de captar o laran de Eduin. Eduin mal conseguia se
lembrar de metade das coisas que tinha feito durante o ano anterior, no entanto, ele teria
apostado sua vida, o pouco dela que ainda valia a pena, de que seus escudos psíquicos não
tinham falhado. Eles eram tão parte dele quanto sua própria respiração ou o som de seu
coração no silêncio antes do amanhecer. Desde os primeiros sinais de seus poderes, ele
havia sido eficaz em esconder seus segredos mais íntimos. Até mesmo conseguiu isso com
seus próprios Guardiões em Arilinn e Hali. Se esses homens, os telepatas mais poderosos e
altamente treinados em Darkover, não tinham sido capazes de penetrar suas barreiras,
então certamente esse estranho sujo não o poderia, independentemente de suas palavras
de poder ou a simples cor de seu cabelo.
-Eu não sei do que você está falando. -Repetiu Eduin.
-Não vamos continuar com jogos mesquinhos. -Disse o estranho. –Consideremos que
seguramos o destino um do outro nos trazendo até aqui. Eu sou chamado de Saravio.
O olhar de Eduin piscou incrédulo uma vez mais para o homem do flamejante cabelo
ruivo e para a capa agora sobre seus ombros.
“Eu sou chamado”, ele disse.Eduin avaliou. Não “eu sou” ou “meu nome é”.
O que ele estava escondendo? Poderia também ser um renegado de uma Torre com um
preço por sua cabeça? Será que ele adivinhaou que Eduin estava em uma posição similar?
-Você pode me chamar Eduin. -Ele disse, mantendo sua voz calma.
Saravio não tinha dito seu nome de família, o que em si não significava ter qualquer
intenção desonesta. Muitos filhos ilegítimos de grandes senhores Comyn encontrou um lar
nos círculos de laran. Há, pelo menos, o costume de que a capacidade do homem conta
mais de que seus títulos.
Depois de uma pausa, Eduin perguntou:
-A propósito, em que Torre você foi treinado?
-A verdade pela verdade, meu amigo. Vou citar minha Torre se você citar a sua.
-O que faz você pensar que eu sou treinado em uma Torre? -Eduin disse. -Você me
encontrou em uma sarjeta, um lugar nada apropriado para um poderoso laranzu.
Saravio riu.
-E o cabelo é a cor de barro e não de fogo, mas e daí? Mantenha seus segredos, então, e
beba até a morte ou até congelar, porque você não tem mais a sagacidade para entrar
numa tempestade. Se, por outro lado... -Em uma mudança rápida de humor, seus olhos se
estreitaram. -...se você foi enviado para me espionar, você vai desejar ter sido abandonado
na neve.
Sem aviso, Eduin sentiu uma explosão de poder psíquico da mente do outro homem. Ele
recuou. O contato telepático significava descoberta, e a descoberta significava a morte.
Instintivamente, ele aparou a onda, usando as habilidades que ele não tinha usado desde
que ele deixou Torre Hestral.
Ah! Então você é um exilado, como eu.
O toque mental de Saravio ficou mais suave desta vez, mais compassivo.
Isto não é seguro... Eduin murmurou silenciosamente. Não havia escapatória. Ele já havia
se revelado. Contudo, o que quis dizer o outro homem quando falou sobre cada um deles
segurando o destino do outro? Sua curiosidade ficou agitada.
-Você também é um fugitivo? -Ele falou em voz alta, porque o temor arraigado da
comunicação mental ainda era forte.
Se Saravio tinha captado seu pensamento, ele não demonstrou nenhum sinal.
-Em certo sentido. -Saravio respondeu. -Não há um preço em minha cabeça, se é isso que
você quer dizer. Eu sou um pária por minha própria consciência. -Ele olhou para as janelas
cobertas de papel e a cidade além.
-Minha Torre, Cedestri, me expulsou. -Acrescentou em voz baixa e pungente. -Eles se
tornaram agentes do mal.
Eduin franziu a testa. A Torre Cedestri era, ele acreditava, uma jornada de cerca de dois
ou três dias de Thendara na direção das Cidades Secas. Durante o breve tempo que ele
esteve em Hali, tinha ouvido sobre ela como fonte de pesquisa a extração de minerais a
partir de areia, perigosa e controversa.
Os olhos de Saravio ficaram desfocados.
-Quando as Torres reconstruídas de Neskaya e Tramontana assinaram a maldita União
com os Hastur’s, muitos que não poderiam cumpri-la encontraram uma acolhida na Torre
Cedestri. Mas, no final, Cedestri provou não ser mais iluminada do que qualquer outra. Eles
me dispensaram.
-O alcance do Hasturs é longo. -Disse Eduin, escolhendo as palavras com cuidado,
sondando por uma resposta. -Temo que vai chegar um momento em que todos Darkover se
curvarão sob o jugo do seu governo e as Torres se tornarão seus peões. -Ele abaixou-se para
a esteira. -Eu não sou amigo do Hasturs ou de seu Pacto.
Uma vez ele poderia ter sido, pois ele havia conhecido Carolin Hastur quando eram
meninos juntos na Torre Arilinn, onde o jovem príncipe passou uma temporada durante o
tempo que Eduin recebeu sua primeira formação. Apesar de si mesmo, ele tinha gostado de
Carolin, com suas maneiras generosas. Ele se perguntou se era por isso que ele nunca tinha
conseguido acabar com a vida de Carolin, ou se tinha sido uma combinação de má sorte e
da intromissão infernal de outro amigo de Carolin, Varzil Ridenow.
Saravio sentou-se.
-Qual é a sua história, amigo? Por que você odeia os Hasturs?
Por onde ele poderia começar?
Melhor ocultar o último incidente... Eduin decidiu. Sua proscrição era razão mais do que
suficiente para abrigar um rancor contra a família Hastur.
-Nos dias de exílio do Rei Carolin, -Eduin começou, -Rakhal, o Usurpador enviou um
exército para forçar a Torre Hestral, onde eu estava na época, a fazer fogo aderente para
suas guerras.
Resumidamente, Eduin contou o que aconteceu em seguida. O Guardião da Torre Hestral
tinha recusado, dizendo que os antigos estoques do incendiário cáustico tinha sido
destruído e que ele não fabricaria mais. Nem que ele precisasse usar toda a força psíquica
imensa de seus círculos treinados para defender ativamente a Torre. Ele estava contente
em simplesmente anular cada ataque e esperar que, com o tempo, os homens de Rakhal
desistissem. Com a lembrança, Eduin sentiu um eco da sua indignação.
Os dias de cerco se seguiram e a fome aumentava cada vez mais dentro da Torre já com
os estoques baixos de alimento. Finalmente, desesperados pela inação do Guardião, Eduin
aproveitou a oportunidade para derrotar o exército de Rakhal. Em segredo, ele reuniu um
círculo com os trabalhadores mais fortes. Juntos, eles enviaram momentos de terror e
loucura nas mentes do inimigo. Ele teria conseguido se não tivesse sido descoberto e preso
por Varzil Ridenow.
Eduin não fez nenhum esforço para ocultar a amargura em sua voz quando ele contava
essa parte da história. Em retaliação, Rakhal Hastur tinha designado a Torre Hali para a
batalha. Com as próprias bases da Torre Hestral desmoronando debaixo dele, Eduin tinha
escapado de sua prisão.
Quando Eduin concluiu sua história, Saravio assentiu, seus lábios apertados. Nesse
momento, Eduin reconheu uma espécie de parentesco.
Somos como irmãos, pensou, impróprios para o mundo comum por nossos talentos e
formação, expulsos por essas mesmas Torres que nos fizeram, forçados a uma vida de
esconderijos.
Fazia muito tempo que outro ser humano tinha entendido o que ele era. Nem mesmo
seu pai...
Eduin interrompeu o pensamento. Uma mão inconscientemente o segurou.
-Eu agradeço a sua ajuda na noite passada. Agora eu vou seguir o meu caminho.
Ele não se atrevia a ficar. O risco de ser descoberto era muito grande, mesmo um outro
fugitivo poderia ser tentado pelas recompensas de tal traição. Só Zandru sabia que não
tinham sido poucos os momentos em que Eduin teria se vendido pelo preço de outra
bebida.
Mantenha-se secreta, sempre em movimento, fique fora de vista... Esses tinham sido seus
lemas desde a fuga desesperada da Torre Hestral.
Ele fechou a porta atrás de si. Com alguma sorte, eles nunca se encontrariam novamente.
Lá fora, a claridade do dia feiria os olhos de Eduin. Fora isso, ele se sentia muito bem.
Quanto tempo isso duraria, ele não saberia dizer. Ele iria usar o tempo para tentar juntar
algum dinheiro, talvez alugar um quarto como este, ficar quieto por tanto tempo quanto
pudesse.
Nos dois dias seguintes, ele encontrou trabalho transportando água e carvão vegetal para
um ferreiro, cujo aprendiz estava com a febre do pulmão, ganhando uma refeição e um
quarto para a noite. O desejo de beber o corroía de vez em quando, mas ele se forçou a
ignorá-lo. Em vez disso, ele enrolava o colchão de palha no galpão atrás da ferraria,
abraçando-se, segurando-o. Enquanto a pressão em sua cabeça não retornasse, ele repetia
para si mesmo, ele ficaria bem. Ele poderia pensar e começar a planejar.
As horas rastejavam. À noite, ele despertou e engoliu a água do balde com crosta de gelo
e rastejou tremendo para a cama. Deitado ali, esperando o sono voltar, ele pensou no
sonho de luz e música já desaparecendo da memória. Ele não conseguia se lembrar de onde
tinha sido ou com quem tinha dançado, só que ele tinha sentido tanta alegria subindo em
seu íntimo. Seu coração doía com um desejo que ele não tinha vontade nem de se afogar
na bebida. Em vez disso, ele se apegou a uma coisa preciosa, bela.
No meio do terceiro dia, o ferreiro não tinha mais nenhuma necessidade dele. Eduin
decidiu tentar uma das cavalariças, onde tinha encontrado o trabalho de remoção de
esterco das baias quando ele não estava muito bêbado. Um par deles ainda poderiam
contratá-lo. Quando ele seguiu o caminho para aquele distrito, algo mudou dentro dele,
como uma nuvem que passa antes do sol. Uma pressão atingiu-o e sua barriga apertou-se.
Mate os Hasturs ... mata todos...
Não, não podia ser. Não depois de tantos dias.
Falhou... Sussurrou a voz familiar e implacável. Você falhou.
Seu estômago deu um nó. A bile encheu sua boca. Ele cambaleou como um homem
paralítico. Deuses, como ele queria uma bebida. Ele precisava de uma bebida.
Antes que ele pudesse chegar a taberna mais próxima, a compulsão atacou novamente
com força total. Ele cambaleou caindo contra a lateral do edifício. As bordas de pedra e
argamassa feriram-no através das camadas de sua roupa. Seus pensamentos focalizaram
com a dor superando o desejo por um instante. O desejo de bebida recuou uma fração e
um desejo ainda mais profundo veio rugindo em sua barriga, a urgência esmagadora em
causar a destruição.
Matar... ma-tar... A palavra perfurava sua mente como as pinças de um escorpião-
formiga das Cidades Secas.
Chorando, ele caiu contra a parede. Embora ele ferisse seu rosto com suas mãos, ou
tampasse os ouvidos, ou engolisse um oceano de cerveja, ele não poderia calar a insistente
ordem silenciosa.
Fugir era impossível. Sempre foi. Que idiota ele tinha sido ao pensar que poderia ser
diferente.
Um desespero correu por ele, onda após onda tão profunda que ele não conseguia contê-
las. Quanto tempo ele ficou ali, meio encostado na parede bruta e fria, parcialmente na
lama da sarjeta, ele não poderia dizer.
Eventualmente, seus pensamentos começaram a se mover juntamente com renovada
sede.
Beber....
A bebida iria facilitar e acalmar sua alma. Só desta vez. Não o suficiente para ficar bêbado
e fedorento, só para afastar a voz para que ele pudesse pensar direito.
Um par de horas limpeza das barracas em um dos estábulos mais pobres e da venda de
sua trouxa de roupas sujas rendeu o suficiente para comprar um jarro de cerveja, o mais
barato que pudesse encontrar.
Eduin encontrou uma mesa bamba prensado contra um canto que cheirava a mofo. No
bar, os homens esvaziavam num único trago suas bebidas e riam contando histórias
grosseiras. Ele ficou contente em ser deixado sozinho.
Ele bebeu rapidamente no início, como sempre fazia. Os primeiros goles refrescaram sua
garganta quando desceram. Ele fechou os olhos, esperando pelo calor familiar infiltrar-se
em sua barriga. Outro gole... e depois outro. Logo ele já não saboreava o material. Sua
garganta parecia se abrir e propagar um forte alívio através dele, um abrandamento da
necessidade de condução. Suspirando, ele despejou o último gole do jarro em sua caneca e
bebeu.
Ele cambaleou apenas um pouco enquanto subia de um bar para outro. Um dos homens
estava contando uma história sobre um fazendeiro bêbado e sua longanima chervine. Eduin
percebeu-se rindo, uma risada que sacudiu seu corpo, rolando através dele. Alguém lhe deu
um tapa nas costas.
-Outra rodada para este bom sujeito.
Eduin aceitou outra jarra cheia e levantou-o em saudação. Ela descia pela garganta como
mel. Alguém começou uma canção, outros fizeram coro ou usaram palmas para seguir a
batida.
Aqui está o homem
que bebe boa cerveja
e trata seus amigos bem.
Oooooh! Aqui está o homem que bebe boa cerveja
Pois ele é um sujeito despreocupado...

Eduin pegou o último de seus ganhos para comprar um outro jarro. Uma canção
começou. Ele recuou para seu canto, levando sua bebida, para cantarolar junto das
sombras. Encostado contra a parede, ele embalou o jarro. Ele suspirou
tranquilizadoramente e depois não se preocupou. Ele pensou sobre isso. Em sua visão de
duplicada, parecia estar vazio por dentro.
Isso não importa. Era suficiente simplesmente sentar-se aqui... ficar aqui, no chão,
esmagado entre a perna da mesa e a parede, com o corpo enrolado em torno de um pouco
de silêncio feliz.
Vozes chegaram a seu ouvido, mas ele afastou-as.
Deixe-me dormir.
Eles foram embora por um tempo, depois voltaram, mais irritantes e insistentes do que
antes.
-Amigo... -A voz, ou vozes, tinha um eco peculiar. –É tempo de fechar. Você tem um lugar
para ir?
Em seguida, ele estava de pé, mãos duras de frio, via o mundo inclinar e girar sobre ele.
Suas pernas se moviam debaixo dele como se pertencessem a outra pessoa.
-Deixa-me em paz...
-Eu vou cuidar dele. -A voz era áspera-ale, mas familiar. Era o homem que tinha
comprado a rodada de bebida.
-Que tal o outro? -Eduin perguntou.
-É melhor levá-lo para os abrigos do Rei. -Disse o homem, colocando uma mão no ombro
de Eduin. -Fora do frio, o lugar...
Não! Haveria jovens Comyn servindo como cadetes, guardas da cidade em toda parte. Ele
seria reconhecido.
Eduin se afastou.
-Não preciso de caridade. Não de você, não de nenhum... nenhum rei!
-Calma aí, amigo. Estamos apenas tentando ajudar...
-Eu posso chegar em casa... bem... por minha própria conta. -Eduin correu para a porta
antes que pudessem detê-lo.
Uma rajada de ar frio e úmido bateu em seu rosto. Ele lutou para se manter de pé,
cambaleou um punhado de passos, em seguida entrou em colapso. Ele arrastou-se de pé,
torcendo para voltar à casa de cervejas. Um homem estava com a silhueta contra a luz
interior.
Em seguida, o retângulo de luz amarela piscou na sombra.
Eduin viu apenas algumas luzes, a cintilação fraca de velas das janelas no alto, uma única
tocha acesa baixa no próximo bloco. As luas não brilhavam, nem quaisquer estrelas. Um
vento que pareciam gelos pontudos, surgiram, ameaçando que o pior estava por vir.
Encontrar um lugar seco e fora do vento. Ele disse a si mesmo. Depois dormir, apenas
dormir...
Meio arrastando-se, meio tropeçando, ele seguiu seu caminho em direção às tochas de
caleiros. As poucas portas que tinham foram fechados. Ele procurou um arco, uma alcova,
qualquer coisa que pudesse proporcionar um pouco de abrigo. Nenhuma apareceu, mas
agora ele não realmente se importava. A noite não estava muito fria. O vento não era mais
que um pouco de brisa. Seu corpo pedia para descansar sob um beiral saliente. Pelo canto
de sua visão, ele viu o tochas e passos.
A escuridão o tomou.
-Você aí! -Mãos cravaram em seus braços, puxando-o para a posição vertical.
Ele olhou para o brilho inesperado. As tochas... não eram várias... uma tocha iluminou a
noite. Um homem segurava-a enquanto outro aproximou-se de seus pés. Ele engasgou
inalando o fedor ácido de vômito. O vento soprava em rajadas cruéis, cortando sua roupa,
queimando em sua pele.
-Argh! -O homem que se aproximou dele bufou em desgosto. -Ele fede demais!
-Ele não é um rato de sarjeta. -O segundo homem se aproximou. -Olhe para suas roupas.
Eduin notou os emblemas em suas capas, as espadas à mão, as botas polidas, o cabelo
precisamente aparado.
Guardas da cidade. Ao sétimo inferno de Zandru!
-Ele é só um pobre diabo que bebeu mais do que ele poderia aguentar. –Disse o segundo
homem, levantando a tocha ainda mais alto. -Vamos levá-lo para dentro até que ele fique
sóbrio.
-Sim. -Respondeu o primeiro. Ele ergueu Eduin e o empurrou na direção da sede da
Guarda.
Em um instante de terror reflexivo, os músculos de Eduin paralisaram.
A guarda não estava à espera dessa resistência.
-Venha aqui agora. Você não pode vaguear do lado de fora em uma noite como esta.
Você vai congelar até a morte!
Eduin virou e correu. De alguma forma as pernas lhe obedeceram. Ele explodiu em uma
corrida desesperada, indo para as ruas sombreadas. Sua única esperança era fugir e ele
agarrou-se a isso como uma tábua de salvação. Anos de experiência em encontrar
cobertura, se escondendo cada vez mais, o guiaram. Os guardas gritaram para ele parar,
mas ele continuou, cambaleando, quase sentindo a mordida do vento ou o impacto quando
ele se chocou contra uma parede.
Por fim, ele descansou no final de uma série de pistas e becos, alguns enterrados a altura
do joelho no lixo e neve suja. Inclinou-se contra uma parede fria com os pulmões arfando,
ouvidos atentos. Momentos se passaram marcados pela desaceleração do seu pulso. Ele
ouviu apenas os sons normais da noite, o ranger da madeira, a confusão de um cão
cheirando no lixo desastradamente, o ronco e o movimento de um cavalo despertando do
sono.
Em apenas alguns minutos, o calor de seu corpo gerado durante essa breve corrida
sumiu. Ele começou a tremer e não tinha casaco ou qualquer proteção. O vento uivava no
beco, estranhamente como o grito de um pássaro banshee gigante das alturas. Parecia
estar caçando-o.
Os guardas estavam certos. Ele morreria aqui em uma noite como esta.
Ele ainda estava bêbado o suficiente para manter longe o pior da compulsão, mas não o
suficiente para confundir completamente o juízo. Deixando o frio sepulcral do beco, ele
avaliou onde estava. Ele não estava muito longe dos estábulos onde ele havia trabalhado.
Com um pouco de sorte, ele seria capaz de esgueirar-se para dentro.
A porta ao lado rangeu quando ele a abriu, mas nenhum alarme soou. O ar estava
quente, carregado com os cheiros de forragem e animais. Um dos cavalos assustou-se e
acordou, e outros dois mexeram-se inquietos quando ele passou. Sentindo o seu caminho
através da escuridão, ele localizou uma das barracas que ele tinha limpado antes. O cavalo
era uma égua branca velha e dócil. Ela relinchou suavemente enquanto ele empilhava a
palha limpa em um canto e jogou-se nela.
Uma luz cinzenta se fez presente no interior do celeiro iluminando os cavalos e os baldes
disposto no chão. A cabeça de Eduin latejava e sua boca estava grossa e azeda. Sua camisa
estava quase seca, mas ainda fedia a cerveja e vômito. Limpou-se o melhor que pôde com
alguns punhados de palha limpa. A égua branca observava-o com seus olhos escuros e
suaves quando ele arrastou-se e foi para fora.
Tremendo, ele se virou para olhar para trás em direção ao centro da cidade, observando
os edifícios altos e torres imponentes, a cidadela do Castelo Hastur, e as habitações mais
humildes. Pensou na vida que ele tinha perdido, de quartos quentes, brilhantes, a alegria
apurada ao usar seu laran, a intimidade e camaradagem do círculo... Tudo havia ido
embora, ido para sempre.
A compulsão despertou, roendo-o como um animal selvagem. Logo não haveria mais
nada dele mesmo. Esse mal iria devorar seu coração, seus sonhos e sua vontade. Como se
em resposta, a sede agarrou sua garganta.
Beber... Ah, sim... Murmurou o pensamento sedutor. ...Beber e esquecer.
E acordar para mais uma manhã com dor de cabeça e bílis na boca, depois beber
novamente com a compulsão o pressionando, cada dia mais e mais doente, cada vez com
menos esperança, uma criatura mal-humorada, suja e encharcada que ele tinha feito de si
mesmo. Desta vez não haveria nenhum estranho para tirá-lo da tempestade, nenhum
sonho...
Nenhum sonho.
Ele não queria morrer. Especialmente, ele não queria morrer sozinho. Ele não sabia o que
fazer. Ele só sabia que não podia continuar do jeito que ele estava.
O sonho em si tinha desaparecido, varrido pela pulsação de dor. Mas ele tinha sonhado.
Ou aquilo foi mesmo uma visão ou ele estava enlouquecendo mesmo.
Nem por um instante ele acreditara que a visão tinha sido verdade. Foi simplesmente
uma ilusão nascida de seu próprio desejo interior. Saravio deve ter induzido nele um estado
de euforia ou sugestão extraordinária, tendo aprendido a técnica durante a sua formação
na Torre Cedestri. Talvez o kirian tenha desempenhado um papel.
O sonho... um espaço abençoado de liberdade. Ele deveria descobrir o que aconteceu.
CAPÍTULO 03

Eduin parou na frente da porta com uma mão levantada. Era loucura voltar, como uma
mariposa em uma vela, mas algum profundo impulso, sem palavras, havia derrotado toda
razão, substituindo tudo por um instinto de sobrevivência. Talvez, depois de tantos anos
sem esperança, somente a longa queda obscura e em desespero, ele não pudesse se afastar
da única memória luminosa de uma dança sob as luas dos chieris, de si mesmo como um
deles.
No entanto, antes que Eduin pudesse bater, a porta se abriu. Saravio ficou ali com a capa
ligeiramente torta sobre seu cabelo vermelho, como se ele tivesse apenas jogado-a sobre
ele. Ele agarrou a jaqueta de Eduin, ainda salpicada com pedaços de palha, e puxou-o para
dentro.
-Será que alguém o seguiu?
-Ninguém me segue.
-Você tem certeza?
-Sim, eu tenho certeza. -Recuando, Eduin afastou as mãos de Saravio. -Você acha que eu
não saberia se alguém me seguisse?
-Sim, é claro. Você saberia. -A postura de Saravio suavizou. -Está com fome? -Ele
perguntou, como se Eduin tivesse saído apenas por um momento, em vez dos quatro dias.
Saravio dividiu o pedaço de um pão e gesticulou para Eduin sentar-se ao lado dele na
esteira. Eduin mordeu o pão. Nozes moídas e algum tipo de sementes agradavelmente
amargas tinham sido misturadas na massa de pão. Ele sabia por experiência que tal mistura
poderia manter um homem por um longo tempo.
Por trás de seus olhos, a pressão cutucou.
Falhou... Você falhou...
Os dois começaram a falar, Eduin cautelosamente, procurando uma abertura. Eles
falavam de coisas superficiais, a grossura do pão de nozes, o clima naquele dia, o preço do
sal. Eduin aprendeu que Saravio tinha sobrevivido com sua voz. Embora a voz de Saravio
fosse bastante comum, ele tinha sobrevivido ganhando algumas moedas aqui e ali,
cantando para os doentes. A esposa companheira livre do homem que dirigia a pousada
Pena Branca tinha uma filha que estava morrendo de uma doença debilitante. A criança
não conseguia dormir por causa da dor. Não havia nada a ser feito, por que não podiam
pagar as taxas cobradas pelos médicos da cidade, e muito menos os encargos ainda mais
caros dos poucos leronyns dispostos a aceitar esse trabalho.
-Não havia nada que você pudesse fazer por ela? -Eduin perguntou. Certamente Saravio,
como todos os outros laranzu, devia ter treinado como um monitor. Talvez ele tivesse
usado até mesmo aquelas habilidades, embora de uma maneira incomum, para diminuir
temporariamente o feitiço de compulsão de Eduin.
Saravio sacudiu a cabeça.
-Naotalba não queria isso. Eu não sei a sua vontade sobre a criança, a razão pela qual ela
entregou-a para os braços de Avarra, a Dama Negra. No entanto, em sua misericórdia,
Naotalba me permitiu aliviar sua dor.
Naotalba? Eduin piscou, momentaneamente atordoado. De todas as possíveis
explicações para o comportamento misterioso de Saravio, este foi o menos esperado.
Como qualquer outro darkovano educado, Eduin conhecia as lendas de Naotalba, A
condenada, a Noiva de Zandru. Ela poderia ter sido humana uma vez, um sacrifício ao
Senhor dos Sete Infernos Congelados. Seu nome era invocado como uma maldição e é
considerado azar uma mulher solteira se vestir como ela fez de preto à meia-noite, a cor de
um céu sem estrelas. Em outra versão, mais esperançosa, tão grande era a sua beleza e sua
tristeza em deixar o mundo que Zandru lhe permitiu voltar na metade do ano, trazendo
assim a primavera e o verão.
Eduin nunca tinha prestado atenção especial a qualquer uma dessas histórias. Eles eram
uma bobagem supersticiosa. O que poderia uma semi-deusa mítica ter a ver com a cura de
uma criança doente?
-Ela veio até mim. -Disse Saravio, agora fechando os olhos e inclinando a cabeça para
trás, balançando ligeiramente com a memória. -Ela falou para mim. Eu vi o mundo inteiro
definido como uma tapeçaria. Era para ser minha, ela prometeu, se eu fielmente cuidasse
de tudo. Acordei na manhã seguinte com seu beijo na minha testa.
Uma mão roçou a testa pálida.
-Eu, de todos os homens, fui escolhido para ser o seu campeão. A mim foi dada a missão
de curar a dor do mundo. Só eu recebi seu presente. Fui para o meu Guardião com a
notícia, pois naquela época eu ainda acreditava que era a esperança para as Torres.
Eduin recuou inconscientemente. Ele podia imaginar a reação de Auster de Arilinn, ou do
Guardião de Hestral, Loryn Ardais, ou mesmo de Varzil Ridenow, que agora governava em
Neskaya, ante tal anúncio. A estabilidade da mente era essencial ao trabalho de matriz e
nenhum homem são alegaria ter comunhão com os deuses.
Por que não? Ele pensou. O escorpião-espírito de meu falecido pai sussurra seu veneno
todas as noites em meus ouvidos.
Saravio abriu os olhos, enrolando as mãos em punhos.
-Sabe o que eles disseram? Eles proibiu-me de usar o dom de Naotalba! Eles me
expulsaram! E por quê? Por causa de alguma regra idiota por não poder mexer com a
mente de outro homem! Como se a Noiva de Zandru estivesse ligada a sua tirania
mesquinha!
Eduin sabia disso em pânico, pois a lei mais fundamental do trabalho com laran era
nunca entrar nos pensamentos de outrem, a não ser que o outro espontaneamente
permitisse. Ele tinha jurado isso em seu primeiro dia de treinamento em Arilinn.
E no cerco à Torre Hestral eu usei isso. Ele se lembrou.
Mas isso era tão ruim? Ele tinha levantado o cerco e salvo a Torre. Foi só por causa do
ressentimento implacável de Varzil Ridenow que ele não havia sido aclamado como um
herói e feito Guardião permanentemente. O que Eduin tinha feito seria duplamente ilegal
nos termos do Pacto de Carolin, que proibia qualquer uso da força psíquica, ou qualquer
arma que matasse sem expor seu portador à igualdade de perigo. Eduin achou a idéia
ridícula. Homens sempre aproveitariam tudo o que estivesse ao seu alcance, mesmo se eles
tivessem que invocar alguma figura imaginária para justificá-la.
E ainda assim...
Ele lembrou que Auster, o Guardião que o treinou, tinha dito que os mitos e lendas
tinham sido inventadas pelos homens para explicar o que eles não podiam entender.
Quando sentia o feitiço que seu pai tinha colocado nele, ele às vezes imaginava como uma
rocha congelada presa em torno de seu interior, outras vezes como uma ponta de faca
lentamente sendo enfiada em sua barriga. Talvez, Saravio imaginava-se agir de acordo com
a vontade da semi-deusa, quando ele fazia seu trabalho de cura. Certamente aliviar a dor
de uma criança que fosse morrer era uma coisa boa.
Eduin, com seu interesse despertado, perguntou:
-O que exatamente é um dom de Naotalba? Como você o usa para ajudar essa criança?
Em resposta, Saravio fechou os olhos e começou a cantarolar. Seu senso de canto não
era muito bom, mas Eduin reconhecia uma canção de rua comum. A melodia teria sido
familiar e reconfortante para o filho de um estalajadeiro. Talvez sua própria mãe tivesse
cantado para ela como uma canção de ninar.

Oh a cotovia da manhã,
Ela nasce no oeste
e chega em casa à noite
com o orvalho sobre o peito.

Enquanto ouvia, Eduin sentiu seus próprios músculos amaciar e relaxar. A dor do
trabalho duro sumindo, sendo substituída por um calor que logo se espalhou ao longo de
seus membros. Sentiu sua barriga tão cheia como se ele tivesse acabado de vir de uma
festa num feriado com um enorme banquete. A pressão maçante em sua cabeça sumiu, e
dentro dos limites de seu crânio, ouviu somente a melodia cadenciada.
Seus lábios se curvaram espontaneamente em um sorriso. Certamente não poderia haver
nada tão maravilhoso como sentar aqui, cercado e cheio por esta música. Ele não conseguia
se lembrar de se sentir tão seguro, tão contente, tão feliz. O gelo amarrado em sua barriga
sumiu como a névoa nos campos de verão. A voz de escorpião silvando em sua cabeça caiu
completamente imóvel. Uma onda de alívio inexprimível passou por ele. Lágrimas subiram
aos seus olhos. A partir de sua virilha surgiu um calor e o aumento do prazer.
Prazer...
O que, em nome de todos os deuses Saravio estava fazendo?
Eduin entrou em alerta, suas barreiras psíquicas fixando-se no lugar. As sensações físicas
de excitação diminuíram. Ele prendeu a respiração em um suspiro e percebeu que estava
chorando em silêncio. Saravio ainda estava meio cantando, meio zumbindo, suas palavras
mal sendo compreendidas.
-O que... -Eduin gaguejou, -...o que você fez comigo?
Saravio encontrou seu olhar com um olhar inocente inexpressivo, desprovido de
qualquer traço de dissimulação.
-Com você? Eu te trouxe da tempestade.
-Você cantou para mim, não é? Assim como você fez com a criança, assim você fez agora?
-Você estava delirante e poderia ter feito ferimentos a si mesmo. Eu cantei para acalmá-
lo. Não havia nenhum mal nisso, mais do que quando eu cantava para a filha do
estalajadeiro.
-E isso é tudo? Você só... cantou para mim?
Mais uma vez, aquele olhar inocente, como de uma criança.
-Porque, sim, a menos que... Você prefira o kirian. Eu acho que resta um pouco. Você
está com raiva porque eu dei a você sem a sua permissão? Não somos nem vinculados pelas
regras da Torre.
-Não, eu não estou com raiva. -Eduin admitiu.
O kirian por si só não poderia ter facilitado o feitiço. Ou Saravio era um mentiroso
consumado com a melhor blindagem de laran em Darkover, ou então ele realmente não
sabia o que tinha feito.
Saravio deu de ombros.
-Como você já percebeu, não sou um menestrel. Ainda assim, foi um trabalho honesto e
me ajudou a pagar por este quarto, comida e um pouco de calor. Minhas necessidades são
poucas. No final, Avarra levou a criança ao peito e eu não o tinha coração para cantar para
outro. No dia em que eu te encontrei, um homem no celeiro do Rei me deu uma moeda. Eu
me pergunto se ele achava que eu era um mendigo. Ele deveria ter pensado melhor, pois
ele compreendeu os males que afligem esta cidade, que apenas Naotalba pode salvar. Mas,
infelizmente, Naotalba não tinha tocado seus olhos, como ela tocou o meu.
Antes que Eduin pudesse fazer mais perguntas, Saravio se inclinou para mais perto. Seus
olhos ardiam, como se estivessem iluminados com um fogo negro. Ele baixou a voz, agora
tremendo em alerta.
-Eu posso confiar em você. Você sabe o que é o risco de ser executado, ter que se
esconder, ser perseguido por falar a verdade.
Eduin assentiu, embora ele não tivesse certeza do que Saravio queria. Sua cabeça
poderia estar mais estável do que tinha estado em muitas estações, mas ele ainda tinha
dificuldade em pensar claramente. A música e seus efeitos prolongavam-se, envolvendo-o
em uma lassidão sonhadora.
-Eu acredito que Naotalba tem falado com você, também. -Saravio sussurrou, sua áspera
respiração entre os lábios. -Até agora, eu era o único que ficava contra seus inimigos, e você
vê ao que eu fui reduzido. Eu vivo nesta choupana, objeto da caridade, sem um único
seguidor para ouvir a sua verdade. Digo-vos , meu amigo, que mais de uma vez cheguei
perto de desespero. Mas Naotalba manteve a confiança em seu servo. Ela trouxe você para
mim. -Saravio agarrou os ombros de Eduin, trazendo seu rosto próximo algumas polegadas
do seu. O suor irrompeu sobre a testa de Saravio e seus olhos se arregalaram, de modo que
o rendilhado de pequenos vasos vermelhos de seus olhos se destacou.
-Ela te trouxe para mim, não foi? Ou... você foi enviado para destruir o seu trabalho?
Responda rápido!
Ondas de tremor sacudiam ele e Saravio que estava com as bochechas coradas, um
vermelho congestionado e escuro. Seus dedos cravaram na carne de Eduin como garras.
Junto com as palavras gritadas, Eduin sentiu uma renovação da pressão contra seus
escudos psíquicos. Se ele não conseguisse dar uma resposta adequada, Saravio poderia
estrangulá-lo ali mesmo.
Você está certo. Ela enviou-me a ti.
Ele respondeu, de mente para mente, para que não pudesse haver nenhuma suspeita de
engano. Usando a força do dom Deslucido como seu pai havia lhe ensinado, o mesmo que
ele havia usado para mentir sob o encantamento da verdade, ele moldou o pensamento
para que ele soasse com sinceridade.
Por um longo momento, Saravio não respondeu. Eduin se perguntou se ele tinha dito
algo errado. Talvez Saravio estivesse tão envolvido em seu próprio frenesi que não tinha
recebido a mensagem mental. A pressão sobre a garganta de Eduin estava apertada.
-Você passou em seu teste quando você me curou. -Eduin disse em voz alta. -E agora eu
estou aqui para guiá-lo na sua grande obra.
-Eu sabia! -Saravio cantou, liberando Eduin. -Eu sabia que ela não iria abandonar seu
escolhido!
Bem... Naotalba é uma deusa tão boa como qualquer outra nos dias de hoje. Eduin disse
a si mesmo enquanto esfregava seu pescoço, certificando-se de que qualquer vestígio do
pensamento não vazava por suas barreiras.
Por muito tempo, o seu único objetivo foi a ausência de uma missão que ele não poderia
cumprir. Como um fugitivo sem dinheiro, sem qualquer forma de ganhar a vida, salva com
suas habilidades que poderiam traí-lo, ele não tinha esperanças de dar fim ao Rei Carolin.
Agora, pela primeira vez, ele tinha tanto alívio e esperança, a esperança de que, com a
ajuda deste estranho, por mais estranho que fosse, Eduin poderia livrar-se para sempre da
maldição de seu pai.
-Eu sabia que... Eu sabia que ela... -Saravio gritava saltando para cima e para baixo sobre
o esteira frágil como uma criança pequena. -Eu sabia! Eu sabia! Eu sabia!
Obscura Avarra, o homem não é estranho, ele é delirante!
Eduin ficou de pé, pensando que seria mais seguro se retirar por um momento. Ele já
tinha visto o suficiente dos humores inconstantes de Saravio, o quão perigoso seu
temperamento podia ser.
No entanto, antes que ele pudesse voltar-se para a porta, o corpo de Saravio ficou rígido.
Seus olhos se arregalaram, os brancos olhos arregalados contrastavam contra o rubor
obscuro de suas bochechas. Ele arqueou para trás e caiu sobre a esteira com um baque
alto. Por um momento, ele ficou ali, imóvel como um cadáver.
A porta estava apenas a um ou dois passos de distância. Eduin poderia saído em um
momento voltando para as ruas e seu anonimato familiar. Cada instinto gritava para que
ele corresse, se escondesse. Ele podia ter algumas horas ou dias antes da compulsão
retornar. No entanto, ele hesitou.
A respiração de Saravio surgiu como um suspiro rouco. Sua coluna se curvou para cima,
de modo que ele descansou na parte de trás de seu crânio e seus quadris.
Eduin tinha treinado como um monitor em Arilinn, uma das mais antigas e mais
prestigiada de todas as Torres em Darkover. Embora ele não tivesse feito o delicado
trabalho de diagnóstico e cura por laran em muitos anos, ele não tinha esquecido as
técnicas.
Não faça nada para chamar a atenção para si mesmo. Esconda quem você é e o que você
pode fazer. Disse a si mesmo lembrando seus anos de vida como um fora da lei.
Arrepios percorria o corpo de Saravio, cada um levando a ondas de espasmo. Os globos
oculares afundavam em suas órbitas, suas pálpebras se erguiam revelando crescentes
esbranquiçados. Braços e pernas se agitavam freneticamente, cedendo por um momento, e
em seguida, começando a contrair-se novamente. Os dentes cerravam-se juntos. Sem
fôlego seus lábios estavam puxados para trás em um ricto.
Mesmo através de suas barreiras psíquicas, Eduin sentiu o caos selvagem do sistema
nervoso do outro homem, a agonia de seus músculos tensos, os pulmões gritando por ar, a
batida frenética de seu coração.
Eduin respirou fundo. Este homem o tinha salvado da morte certa na neve, tinha-lhe
dado um presente além da imaginação. Ele não podia ir embora agora.
Ele atirou-se ao lado do homem e pegou em seu cinto uma pedra da estrela na sua
embalagem. O cristal aqueceu instantaneamente ao entrar em contato com a mão nua.
O mundo mudou. Ele tinha vivendo sem usar o seu laran por tanto tempo que ele tinha
se sentido cego. Agora cada detalhe, cada nuance radiante de cor e textura, do som e
cheiro e sensoriamento interior brilhavam incandescentes em sua mente consciente. Ele
fechou os olhos, ignorando a picada de lágrimas com a renovação.
Sem visão física, usando sua pedra da estrela para amplificar seus sentidos de laran,
Eduin estreitou o foco de sua concentração. O corpo de energia de Saravio ardia como uma
chama. Os canais e os nós que conduziam as forças psíquicas apareceram como um
espectro de cores vermelhas e laranjas, queimando em branco e marrom. O brilho indicava
a força laran do homem que era consideravelmente poderosa.
Raramente Eduin tinha visto tal desordem, tal composição anormal de energias. As cores
colidiam, especialmente nos centros na base do cérebro. O nó na parte inferior do crânio
pulsava descontroladamente, jogando faíscas que tinha uma semelhança incrível com o
fogo aderente. Onde quer que elas tocassem, elas deixavam buracos abertos repletos de
trevas no corpo de energia de Saravio.
Eduin procurou em sua memória por um padrão semelhante. Uma vez em seu primeiro
ano como técnico de matriz totalmente qualificado ele havia assistido o tratamento de uma
mulher com a doença- queda. Em intervalos imprevisíveis, ela iria ficava inconsciente e seu
corpo começava a se sacudir incontrolavelmente, deixando-a ferida e exausta, mas sem
nenhuma memória do que tinha acontecido com ela. Fora isso, ela parecia normal, exceto
pelos ímpares circuitos neurais cruzados.
Eduin abriu os olhos. A pele de Saravio tinha ficado azul em torno de sua boca. Ele não
iria sobreviver muito mais tempo sem ar, nem seu coração poderia suportar a tensão.
Eduin estendeu a mão livre para tocar o outro homem mais profundamente.
Normalmente, ele teria evitado o contato real com o paciente que estava examinando. Era
muito fácil ser enganado pelo toque físico direto.
Só então, o torso de Saravio soltou para cima, contorcendo de modo que seus braços
ficaram em volta do pescoço de Eduin. As mãos escavaram na parte de trás dos ombros de
Eduin com força de ferro, puxando-o para baixo. Desesperadamente, Eduin o empurrou.
Não adiantava. Ele era muito rápido. O pânico o cauterizou. Ele lutava para respirar. O odor
de suor e terror encheu suas narinas.
De alguma forma, Eduin conseguiu deslizar a mão livre na frente de seus próprios
ombros. Ofegante, ele empurrou o mais forte que pôde. Suas mãos deslizaram para cima ao
longo da inclinação da caixa torácica de Saravio. Sob seus dedos, ele sentiu a linha dura do
maxilar. Ele fechou os dedos em torno da face inferior de Saravio. Só ele poderia fazer
contato com os centros cerebrais que controlam os músculos do outro homem. Mesmo um
momento de relaxamento lhe permitiria libertá-lo...
Ele moldou seu laran como uma ponta de lança para perfurar o tumulto.
Quase sem esforço, Eduin varreu as barreiras caóticas do outro homem. Imagens
inundaram, áusteras e vívidas. Ele captou um flash de uma torre iluminada por um
relâmpago contra um céu noturno, em seguida, uma tempestade cinza e branca, um rio em
sua época de cheia, uma figura em um longo manto escuro. Os turbilhões sumiram,
deixando apenas uma névoa girando lentamente em direção a ele.
Com as mãos pálidas como a neve, afastou a névoa e viu que era uma mulher. Ela ergueu
o rosto. Emoldurado por cabelos cor de jato mergulhado em um pico entre as sobrancelhas
perfeitas, sua pele brilhava como pérola. O rendilhado menor de rosa nas bochechas e
lábios eram a única cor de sua face. Seus olhos cinzentos procurou os dele, mas ele sabia
que ela não podia vê-lo.
Ela tinha uma beleza de quebrar os corações dos homens, mas quando Eduin olhou para
ela naquele momento ele sentiu só pena. Pena que uma mulher tão bela não ande mais
sobre a terra, mas apenas descer aos Sete Infernos Congelados.
Ela formou uma palavra, talvez Adelandeyo, "caminhe com os deuses", uma frase formal
da separação entre os Comyn.
Caminhe com os deuses...
Naotalba!
Eduin repetiu o nome dela para si mesmo. Ele pensou que se ela lhe respondesse, se
chamasse o seu próprio nome, em seguida, seu coração iria quebrar.
Uma rajada surgiu naquele momento, chicoteando a capa cinza de Naotalba, agitando a
neve a seus pés em reluzentes ondas. Primeiro seu corpo desapareceu, então o pálido oval
de seu rosto. O contorno escuro de sua capa armou-se para fora, aumentando de tamanho
como uma boca gigante, abrindo-se para engolir o mundo inteiro. Em torno dele, o vento
rugia, fluxos de granizo e escuridão, muito pior do que qualquer tempestade de neve nas
Hellers. Ele olhou para a tempestade contra a qual nenhum homem deveria estar, um
turbilhão direto do inferno mais frio de Zandru. E estava vindo para ele...
NAOTALBA! NAOTALBA!
Garras como escuridão congelada o perfuraram. Em um espasmo de terror, ele se atirou
para trás. A substância psíquica de seu corpo esticado se rasgou. Uma onda estrondossa
reverberou através dele.
Eduin encontrou-se de volta em seu corpo físico, esparramado no chão de madeira. Suas
pernas estendidas convulsionaram por um instante. Então ele ficou de pé, passou os dedos
trêmulos sobre o rosto, sentindo a pele úmida e quente, como se estivesse com febre. Ele
pegou o pedaço imundo de seda e enfiou a pedra da estrela. Com o peito arfante, ele olhou
para baixo em cima do homem sobre a esteira.
Saravio deitou-se na cama, sua respiração estava profunda e regular. A coloração azul se
desvaneceu de seus lábios e Eduin observou que a tensão de ferro havia desaparecido de
seus músculos. Seu rosto relaxou, dando-lhe o aspecto de uma criança dormindo.
O coração de Eduin bateu em seus ouvidos e o suor corria livremente pelas laterais do
pescoço, no peito e nas costas. Aos poucos, seu terror deu lugar a pena. Ele sabia muito
bem o gosto e o peso de obsessão, a amargura da escravidão. O que devia ser e como viver,
diariamente, com essas visões, expulso pela própria Torre que era sua melhor esperança de
cura?
Se Eduin tivesse alguma chance de acabar com a maldição de seu pai, ele deveria
encontrar alguma maneira de ajudar este pobre homem enlouquecido. Murmurando uma
oração que ele pensava há muito esquecida, Eduin saiu pela porta.
Eduin retornou aos aposentos de Saravio no final do dia, quando o crepúsculo precoce
engolfou os canyons da cidade. Saravio estava deitado de lado, com os joelhos dobrados
em direção ao seu peito, cabeça apoiada em seu braço estendido, respiração profunda e
regular. Eduin sentiu mais do que viu tudo isso. A lanterna maltratada que ele havia
comprado com parte dos ganhos de seu dia, lançou uma luz incerta no outro lado da sala.
Na outra mão, ele segurava um pacote de pão de nozes, o mais barato que pôde encontrar,
e um odre de água. Usou toda a sua determinação irregular para não preenchê-lo com
bebida.
Suspirando de cansaço, ele colocou a lanterna na mesa bruta e abaixou-se para a esteira.
Ele colocou uma mão no ombro de Saravio. O contato físico inundou seu laran com
sensações. Enquanto Saravio dormia, seu cérebro tinha continuado a sua recuperação.
Ondas de energia percorreram os sistemas sobrepostos de canais de tecidos e energon
nervoso, lento, mas constante.
Eduin enviou uma sonda mental, um pensamento telepático simples. Ela deveria ser tão
clara quanto uma palavra falada, para a mente do homem despertar, mas não houve
resposta, nem mesmo um lampejo de consciência. Ele não esperava que funcionasse tão
rápido mesmo.
Ele sacudiu o ombro suavemente. Os olhos de Saravio abriram-se.
-É você. Eu sonhei... Naotalba...
-Sim, você está bem agora. Aqui, você deve comer alguma coisa. -Gentilmente, Eduin
ajudou o outro homem a sentar-se.
Como uma criança obediente, Saravio aceitou os pedaços de pão e goles de água. Ele deu
as primeiras mordidas timidamente, como se tivesse esquecido como mastigar e engolir.
Quando Eduin enviou uma mensagem telepática suave, Saravio não deu nenhum sinal,
ostensivo ou mental, de que ele havia sentido.
A pequena experiência confirmou as suspeitas de Eduin.
Durante todo o dia, quando ele havia trabalhado na limpeza das baias no estábulo de
libré na borda da cidade, ele refletira sobre os eventos da manhã.
Quaisquer que fossem os talentos de Saravio enquanto ele ainda estava na Torre
Cedestri, antes que Naotalba houvesse o "visitado", ele agora haviam se tornado um cego-
mental para o contato telepático como qualquer plebeu. Seus delírios e temperamento
imprevisível certamente o tornavam inapto para o trabalho em um círculo de matriz.
Eduin achava provável que o que causou as convulsões também havia danificado a parte
do cérebro de Saravio responsável pela telepatia receptiva. Saravio parecia não ter ideia de
sua extraordinária empatia projetiva, a sua capacidade de substituir temporariamente o
feitiço de compulsão.
Nós somos dois somos semelhantes, Eduin pensou com um toque desconhecido de
compaixão, cada um aleijado, porém não por culpa nossa. Talvez juntos possamos formar
um homem remendado e mancar pelo mundo. Ele percebeu que já não precisaria se
contentar com uma meia-existência nas sombras. Vida prometia muito mais.
A emoção, quente e brilhante, surgiu cantando por trás da garganta de Eduin. Pela
primeira vez em seus últimos anos de clandestinidade, ele tinha um amigo, um aliado. Ele
teria momentos de liberdade de seus surtos, e neles, a chance de pensar, planejar, para
chegar além das calhas. Talvez, também, ele pudesse ajudar Saravio a encontrar a paz e
uma utilidade para seu talento incomum. Seria um acordo justo.
CAPÍTULO 04

A última da neve se agarrava aos becos e ruas secundárias de Thendara muito depois
de já ter derretido em qualquer outro lugar. Aqui nas camadas mais pobres, as sombras se
agarravam, frias e reservadas, nas paredes quebradas. A sujeira espumava nas piscinas
deixando a água lamacenta, crianças carentes pegavam pedaços de pão bolorento das
pilhas de lixo.
Eduin, agora amigo íntimo de Saravio, mudou-se para um bairro mais espaçoso. Saravio
cantava para ele sempre que ele não podia suportar a pressão interna da maldição de seu
pai, e ele sabia que haveria alguns dias que liberdade antes do ciclo, implacável e
inexorável, começasse novamente. Saravio várias vezes caía em convulsões após um
episódio, embora os ataques nunca fossem tão graves como o primeiro. Eduin não se
atrevia a deixá-lo por medo de que Saravio pudesse parar de respirar novamente. Isso só
aumentou a exposição de Eduin para a euforia da música. Seu desejo de beber diminuiu,
mas, ao mesmo tempo, ele encontrou-se desejando os momentos de prazer físico que
acompanhavam as manipulações com laran de Saravio, encontrando maneiras de atraí-las.
O fascínio assustava, pois era, em seu poder e sua pureza, muito mais sedutora do que a
cerveja.
Com a suspensão dos efeitos entorpecentes da bebida, Eduin experimentou a renovação
de outras emoções também.
Sempre que Saravio sofria seus ataques, Eduin sentia uma mistura de pena, nojo e culpa.
A culpa porque ele mesmo tinha trazido este mal sobre o amigo que o procurou apenas
para ajudá-lo. Ele nunca perguntou sobre a disposição de Saravio em pagar esse preço. Na
verdade, Saravio sempre respondia alegremente ao seu pedido e depois parecia nem saber
o que tinha acontecido. Então Eduin sentia vergonha, como se ele estivesse se
aproveitando da confiança inocente de uma criança. Ele afugentou os sentimentos
desagradáveis de sua mente. Que escolha ele tinha? Silenciosamente, ele prometeu a si
mesmo que usaria a trégua da compulsão para uma boa causa. Ele jurou que iria encontrar
uma maneira de fazer sem o efeito soporífero. Normalmente ele iria se sentir melhor por
um tempo, até que ele fosse forçado a pedir para Saravio cantar novamente.
Dez dias se passaram e o sol girou mais alto no céu, anunciando o fim do inverno. Eduin
começou a se perguntar se ele tinha trocado uma forma de prisão por outra. Até onde ele
podia dizer a manipulação com o laran de Saravio não colocava sua vida e saúde em risco
da mesma maneira que a bebida, mas ele não estava menos acorrentado a uma
dependência. Cedo ou tarde, a compulsão dentro de sua própria mente voltava, o escorpião
despertava para espalhar seu veneno em sua mente e o levava a implorar por outra canção.
Eduin começou a ressentir-se por sua dependência. Só seu pensamento rápido em
representar a si mesmo como o mensageiro de Naotalba impediu a deterioração de Saravio
em escravo, disposto a fazer qualquer coisa por mais um momento de êxtase.
Pelo menos havia momentos, apesar de breves, quando seus pensamentos eram claros.
Deveria haver uma maneira de livrar-se de ambas as escravizações, o comando de seu pai e
o vício entorpecente em qualquer bebida ou no toque eufórico de Saravio. Ele andava nos
arredores da cidade, durante as folgas de seus trabalhos, e considerava sua situação.
Aos poucos, a consciência de Eduin mudou. Ele precisava de uma solução permanente,
não uma trégua temporária que exigia um pedágio ainda maior. Talvez a resposta não fosse
amortecer o problema, mas sim cumprir o que lhe era exigido. Por muito tempo ele havia
considerado sua missão como impossível. Como ele poderia atacar Carolin Hastur,
enquanto ele mesmo estava reduzido a se esconder nas sombras, dificilmente capaz de
ganhar o pão por medo de revelar a si mesmo? Ele nunca tinha conseguido antes, quando
era companheiro do Príncipe, e Zandru sabia, ele tinha tido oportunidades suficientes.
Carolin Hastur parecia levar uma vida encantada. Ele tinha sobrevivido a cada atentado
contra sua vida, não só por Eduin e seu irmão, mas por seu próprio primo, Rakhal, que
tomou o trono e mandou Carolin para o exílio. Como o homem fazia isso?
Em uma estranha clareza transcendente, Eduin compreendeu. Não era culpa dele que ele
não tivesse sido capaz de derrotar Carolin Hastur tantos anos atrás. Algo sempre tinha
ficado no caminho.
Algo não. Alguém.
Uma voz sussurrou através das cavidades de sua mente, não o comando brutal que Eduin
conhecia tão bem, mas mesmo assim familiar, sutil e astuto:
Varzil Ridenow é o poder por trás dos Hasturs. Sem seu conselho... Carolin vai cair...
Eduin não seria um pária sem dinheiro se não fosse por causa de Varzil Ridenow. Ele
estaria seguro em sua posição como Guardião, aclamado como o salvador do cerco a
Hestral, e Carolin a muito tempo já estaria em sua sepultura.
Varzil!
Em cada virada na vida de Eduin, Varzil Ridenow tinha conseguido impedi-lo. Foi Varzil
quem manteve Carolin a salvo dos planos cuidadosos de Eduin; Varzil que tinha tentado
evitar o primeiro romance de Eduin com sua irmã mais nova, Dyannis; Varzil que frustrou a
tentativa de Gwynn assassinar Carolin; Varzil que secretamente ajudou Carolin durante o
longo exílio do Príncipe; Varzil que desmascarou o papel de Eduin no assassinato da filha da
Rainha Taniquel; Varzil que traiu Eduin durante a batalha para salvar a Torre Hestral.
A fim de cumprir o mandamento de seu pai, ele devia matar Carolin Hastur, a quem ele
amou uma vez, mas, a fim de conseguir isso, ele deveria primeiro eliminar Varzil Ridenow, a
quem ele ainda odiava com todas as suas forças.
Com os pensamentos dominando a mente de Eduin, o nó gelado em sua barriga relaxou.
O triunfo estremeceu através dele. Pela primeira vez, ele não precisava mais lutar contra a
compulsão. Em vez disso, ele iria usá-la para disparar sua própria sede de vingança.
Vingança... e com o fim de Varzil Ridenow. Ele teria que agir com cuidado. Ele não tinha
acesso direto a qualquer Torre, muito menos ao mais famoso Guardião em Darkover. Um
Guardião com a capacidade de Varzil não poderia ser tomado de surpresa ou morto por
meios ordinários. Varzil podia ter os recursos de sua posição e a Torre atrás dele, mas
mesmo o mais poderoso tenerezu era feito de carne mortal e sangue. Eduin precisava de
uma maneira para levar Varzil para baixo de Neskaya, colocá-lo ao alcance... distraí-lo...
E nessa busca, Saravio seria seu aliado, seu ajudante, sua ferramenta.
Comerciantes retornavam com a abertura das estradas e um grupo de ricos senhores
Comyn andavam pelas largas avenidas em suas capas de peles, a cabeça erguida para o sol
de primavera. O riso das mulheres se elevava acima da música. Um bando de malabaristas e
trovadores de rua os acompanhavam. Dois meninos novos, gêmeos pelo olhar deles,
gritavam em delírio quando eles jogaram uma bola reluzente. Sua enfermeira, suas amplas
saias de roda de lã de tecido fino em torno dela, correu atrás deles.
-Olhe para eles. –Eduin disse para Saravio. Eles estavam de pé em uma esquina ao lado
da porta da pousada onde eles ganharam algumas moedas cortando madeira e lavando
pratos.
Ao longo da rua, uma multidão em trapos esfarrapados, muitos com feridas em sua pele
exposta, pressionavam contra os guardas da cidade. Apesar do céu claro, o ar dava um leve
formigamento como o primeiro sinal de um relâmpago, perceptível apenas para queles
com laran treinado ainda pairando no limite dos sentidos.
Saravio estava camuflado. Com o tempo e o treinamento de Eduin, ele foi rapidamente
perdendo os traços de um trabalhador da Torre. Ninguém iria confundi-lo com um
camponês, mas ele se misturava bem entre a subclasse. Ele poderia se passar por um
comerciante ou um soldado num momento de baixa em sua sorte e vivendo nas ruas muito
tempo, sobrevivendo duramente dia a dia. Agora, ele não tinha dificuldade em encontrar
trabalho como um trabalhador comum.
Os lábios de Saravio se curvaram em um sorriso de escárnio que Eduin sentiu mais do
que viu.
-Eles jogam enquanto nosso povo sofre.
Nosso povo. Eduin se perguntou se ele poderia usar a amargura de Saravio e os
ressentimentos crescentes das pessoas para gerar um ataque contra Varzil Ridenow.
-O Comyn não é nada, apenas parasitas. -Ressaltou. -Mas são as Torres corruptas que
sustentam a sua posição. Sem esse poder, eles não seriam nada.
Uma vez Eduin acreditou que as Torres não deveriam receber ordens de reis, como se
fossem uma raça superior de servos. Aqueles que criaram as armas de laran eram os únicos
com o direito de decidir como elas deviam ser utilizadas. Esse poder deveria governar e não
servir. Mas os Guardiões eram muito cegos pela lei e pela tradição, impedindo-os de ver a
verdade, tal como tinham feito com o dom notável de Saravio. Embora suas razões
diferissem, Eduin e Saravio tinham uma causa comum em seu ódio contra as Torres.
-Para trás! -Um dos guardas gritou. Ele mal segurava um bastão de madeira robusta em
vez de sua espada, e apertou-a contra as fileiras da multidão.
-Tenha piedade! -Um homem gritou. Sua camisa estava pendurada e frouxa nos ombros
que aparentavam ter sido amplos e fortes. Agora, os ossos se projetavam em sua pele,
como paredes de uma casa em ruínas. -Meus filhos estão morrendo de fome!
-Então você deveria ficar no local de onde você pertence e não vir a Thendara. -Um dos
Comyn disse, um homem cerca de vinte anos, deu um passo em direção a eles.
Ele tinha jogado sua capa para trás revelando uma túnica de veludo modelada
elaboradamente, ornamentada com uma corrente de ouro, cujo preço teria alimentado
uma vila inteira por um ano. O sol brilhava em seu cabelo claro cor de palha com apenas
um ligeiro toque de vermelho. Eduin pegou apenas um fragmento do laran do menino, nem
de perto forte o suficiente para valer a pena o treinamento.
-Meu bom amigo, -o jovem fidalgo começou, -você achou que iria encontrar as ruas
repletas de barracas de comida? Não temos nada para você aqui. Volte para casa.
-Casa? -O homem falou com um forte sotaque. A angústia marcou seu grito, repetido nos
acenos e olhares das pessoas ao seu redor. -Que casa? Para uma pilha de cinzas, tudo o que
restou depois que o fogo aderente caiu. -Com uma mão ele empurrou sua camisa aberta.
Suspiros se elevaram.
O estômago de Eduin deu uma guinada com a visão do peito do homem, marcado sobre
onde ele tinha sido cortado a cerca de meia de distância, deixando seu braço numa ruína
esquelética. Ele tinha já visto o que o fogo aderente podia fazer. Uma vez inflamado, ele iria
queimar qualquer coisa, mesmo carne humana e osso, até não sobrar nada. A única
maneira de pará-lo era cavar fisicamente a cada fragmento. Alguém tinha salvado a vida
deste homem, mas à custa de sua subsistência.
-Que escolha ele tem? -Eduin murmurou para Saravio. -Ele não pode trabalhar numa
fazenda com o braço assim. Ele veio aqui para pedir ajuda e este filhote de cachorro
arrogante diz-lhe para ir para casa!
-Eu não vim por caridade, -o homem continuou, -mas para encontrar trabalho.
-Trabalhos! -Outro homem, igualmente irritado, gritou. -Trabalho e justiça!
-Sinto muito por todos vocês, -disse o menino, claramente abalado, -mas não é nossa
culpa...
-Seu tipo enviou os carros aéreos que causaram isso! -Alguém atrás do fazendeiro
aleijado chorou.
-Sim, e a praga de raiz que arruinou dois anos de culturas de trigo até que não sobrasse
mais terra para plantar! –Gritou outra voz. Mais se juntaram a ele quando eles avançaram,
empurrando com força contra os guardas da cidade. A tensão elétrica incipiente do dia
alimentou sua raiva.
Os Comyn, mulheres e crianças saíram correndo, com o rosto branco de medo. Os
guardas da cidade derrotaram qualquer um que tentou segui-los.
Eduin sorriu severamente. O legado do antecessor de Carolin, o brutal Rakhal Hastur,
deixou tudo de ruim sobre eles: a injustiça, a fome, a doença, a devastação da terríveis
armas movidos de laran.
O tempo dos Cem Reinos estava chegando ao fim, se não nesta geração, então
certamente na próxima. Até um tolo podia ver isso. Estas guerras eram os espasmos que
sinalizam a morte de uma época. Mesmo agora, algumas famílias poderosas estendiam seu
domínio sobre os reinos mais fracos.
Rei Carolin Hastur havia se tornado o mais importante entre eles. Ele podia ter sido um
bom homem uma vez, mas o mundo, com todo o fascínio do poder, se ainda não o havia
deslumbrado na situação de que em breve não haveria ninguém para detê-lo, então o
deslumbraria cedo ou tarde.
As palavras de seu pai ecoaram em sua memória:
Varzil Ridenow é a chave. Sem seu conselho, Hastur vai cair...
O agricultor aleijado ficou de pé, olhando para onde os senhores ricos tinham ido. Seu
peito arfava de emoção e o rosto corado. O desespero irradiava de seu corpo moldando sua
energia como o calor de uma fornalha. Algumas pessoas da multidão se dispersaram, mas
alguns deles, especialmente os homens, permaneceram. Eles pareciam ser atraídos por sua
intensidade, como se ele tivesse contado sua história como se fossem a própria de cada um.
Uma ideia formou-se na mente de Eduin. Gesticulando para Saravio o seguir, ele se
dirigiu ao agricultor aleijado.
-Isso foi corajoso de sua parte, falar assim a um senhor Comyn. -Ele disse, lançando a voz
para que todos pudessem ouvi-lo.
O agricultor estreitou os olhos. A adrenalina drenou a cor de suas feições. Seu único
ombro bom curvado como se fosse fugir.
Eduin o deteve com um toque suave no braço.
-É um dia negro para todos nós quando um homem não pode falar a verdade ou a
necessidade de justiça.
-Se eles vão ouvir ou não é outra questão. -Acrescentou Saravio.
Eduin entrou na área aberta no meio da rua. Com um simples toque da energia psíquica
ambiente, ele lançou um encanto sobre si mesmo, atraindo todos os olhares para ele. Ele
poderia falar em um sussurro e cada palavra seria lembrada sempre.
-Se vão ou não tomar o que lhes é devido, é outra. -Disse Eduin. Os homens ao seu redor
eram tão claro para o seu laran como se tivessem gritado seus sentimentos em voz alta.
Raiva e curiosidade se elevavam acima do medo arraigado.
O agricultor esfregou seu ombro seco com a mão boa, como se medisse o seu próprio
poder humano contra a feitiçaria que poderia criar tal arma como fogo aderente.
-Qual é a utilidade? O que qualquer um de nós pode fazer contra os senhores poderosos?
E o que vai acontecer a meus filhos se eu estiver preso, sem sequer levar para casa os
poucos e pobres reis que eu ganho agora?
Um dos homens murmurou:
-O que devemos fazer? Eles festejam enquanto os nossos filhos morrem de fome. -Em
torno dele, os outros homens e mulheres assentiram. Seus olhos brilhavam com
entusiasmo.
-E por que isso? -Eduin perguntou. -O que lhes dá o direito de tirar o melhor de tudo para
si? Eles são deuses para decidir quem deve viver e quem deve morrer? Será que eles
queimam com o fogo aderente que comandam?
-Não! -Uma mulher com uma cara marcada por picadas de insetos chorou. -Nós é que
temos fome! Nós é que queimamos! -Sua raiva latente inflamou de repente.
-Eu não vou ouvir mais nada desta traição! -Um sujeito grisalho com um olho remendado
disse, recuando. Embora sua capa fosse tão suja e maltrapilha como qualquer outra ali, ele
tinha a postura de um soldado. -Eu lutei pelo Rei Carolin, que trouxe um fim ao reinado de
terror de Rakhal. Agora, ele e Varzil, o que eles chamam de O Bom, têm este Pacto, dizem
eles, que vai acabar com essas guerras terríveis para sempre. Soldados lutarão com
métodos mais honrosos e deixarão essas armas de lado.
-Você realmente acredita que os altos senhores vão desistir de suas melhores armas? -A
mulher se virou para ele. -Que eles se preocupam conosco?
-Segure sua língua, mulher. -O homem grisalho rugiu, apontando para Saravio e Eduin. –
Acredito no rei e não nesses desconhecidos, e se ele diz que vai trazer a paz a todas estas
terras, é isso que ele vai fazer.
-Vamos falar mais disso. -Eduin disse rapidamente. -Mas não aqui ao ar livre, pois seus
espiões estão em toda parte. Nos encontraremos hoje à noite em um lugar seguro. Na
estalagem chamada Pena Branca.
-Sim, nós sabemos onde fica. -Um dos outros homens, um fazendeiro por suas vestes,
disse. -O povo não é tolo o suficiente ou tanto quanto qualquer um pode ser nestes
tempos.
Rapidamente Eduin marcou uma hora. Ele examinou o grupo dispersando com sua
mente. A esperança brilhava neles, uma excitação além do que ele esperava. Alguém tinha
gentilmente atiçado as brasas de ressentimento em euforia.
Saravio.
O homem ruivo estava com olhos desfocados. Eduin captou a onda de laran que
emanava de sua mente e monitorou o suficiente para sentir a resposta quase eufórica no
meio da multidão.
Eduin falou com Saravio várias vezes antes que o outro homem o ouvisse. Saravio piscou,
como se despertando de um sono, e não mostrou nenhum sinal de que houvesse ocorrido
nada fora do comum.
-Devemos fazer os preparativos na Pena Branca. -Disse Eduin. -A esposa do estalajadeiro
certamente vai lembrar de você com carinho.
-Como ela não lembraria? -Saravio disse quando eles fizeram o seu caminho de volta
através do labirinto de ruas estreitas. -No entanto, não vejo a que propósito um encontro
secreto servirá. Estas pessoas são pobres, gente ignorante. Inúteis.
-Inúteis aos grandes senhores em seus palácios, com certeza. Talvez até mesmo para
você ou para mim... -Eduin fez uma pausa para um efeito dramático. -Mas não para
Naotalba.
Como esperava, Saravio entrou em alerta ao ouvir o nome e Eduin se apressou em
continuar:
-Ela me trouxe até você, não foi ela que, da mesma maneira, nos trouxe esses homens?
Este exército?
-O exército de Naotalba, Eduin? Eles não são soldados. Eles se vestem com trapos. Eles
não têm armas nem nenhum treinamento. O que eles poderiam realmente fazer...?
-Essa é a pergunta errada, meu amigo. A pergunta correta é o que Naotalba pode fazer
com eles. Você duvida de seu poder?
Eles se voltaram para a rua, um pouco mais ampla do que o resto, a que os levaria para
Pena Branca. Saravio tropeçou em uma calçada que tinha sido destruída pela lama e agora
se projetava para cima. Eduin pegou seu cotovelo, firmando-o.
-Eu sou seu servo, sempre. -Saravio declarou. -Não é meu trabalho questionar os seus
caminhos.
-É glorioso andar no caminho do Naotalba. -Eduin entoou. Desprezava-se por fingir uma
devoção que não sentia, por alimentar as ilusões de Saravio.
Uma vez, Eduin havia orado a Zandru, Senhor dos Sete Infernos Congelados. A maioria
dos Comyn honrava Aldones, Senhor da Luz, a justa Evanda ou a Dama Negra, Avarra. O que
importava quem ele invocava se a causa estava certa? Lembrou-se da mulher da visão de
Saravio e estremeceu interiormente. Ela podia ser clara ou obscura, esperança ou
desespero, dependendo de qual aspecto do mito ele usasse para interpretar. Ela era
imaginária, uma imagem de sonho, nada mais. Certamente ele não precisava temer uma
coisa dessas...
À menção de Naotalba, Eduin sentiu uma ondulação de atendimento da energia psíquica
de Saravio. Por um momento, ele se permitiu aproveitar. Seria uma coisa simples o
suficiente bloquear os envios, para manter-se inalterado, enquanto aqueles em torno deles
sentisse o que Saravio enviasse. Prazer... dor... euforia... fúria...
-O exército de Naotalba... -Saravio murmurou. Ele parou no limiar da pousada e inclinou
a cabeça respeitosamente. -Aqui começa o trabalho dela.
O exército de Naotalba...
Eduin repetiu para si mesmo. Alguns refugiados desesperados esta noite... talvez, mais
amanhã... O número iria aumentar. Se tornariam um exército, de fato. Um exército para
derrubar até mesmo o protetor da Torre de Neskaya.
CAPÍTULO 05

O rubor de prazer na face da mulher do estalajadeiro ao ver Saravio desapareceu


quando Eduin explicou o que queriam.
-A sala? Para uma reunião privada? -Ela olhou de um para o outro. O medo se escondia
atrás das cavidades escuras ao redor de seus olhos. A pele de seu pescoço pendia em
dobras soltas e seu avental, embora limpo, tinha sido usado tantas vezes que estava quase
farrapos e grande demais para ela.
Eduin captou um fragmento de seus pensamentos, a preocupação sobre o quanto ele
poderia beber e quanto pão poderia comer, o quanto ela podia cobrar sem ultrapassar os
limites da gratidão.
-Nós não podemos pagar-lhe por um quarto, -Eduin disse usando o tom mais suave de
sua voz -apenas pela comida e bebida, mas se isso não for o suficiente...
Saravio cutucou a mente da mulher.
-Não, não! -Ela gritou, claramente angustiada. -O que você pensa de mim? Como eu
poderia aceitar o pagamento do homem que tanto fez pela minha Nance?
Antes que Saravio pudesse mencionar as glórias do serviço de Naotalba, Eduin puxou-o
para longe. Saravio era muito ansioso para parar o que estava fazendo e elogiar sua deusa,
sem qualquer relação com prioridades.
-Temos que fazer planos para esta noite. –Ele disse a Saravio quando eles faziam seu
caminho de volta para seu pequeno quarto alugado. -Essas pessoas estão frustradas e com
raiva. Elas carecem de direção ou liderança. Abandonadas à própria sorte, elas vão gastar
sua força inutilmente e, em seguida, espalhar-se e sumir como a palha ao vento.
Saravio foi para o pequeno braseiro e cutucou o leito de brasas frias para qualquer
fagulha reacender.
-Os inimigos de Naotalba são muitos e nós somos poucos. No entanto, ela prevalecerá.
Isso ela me prometeu.
Eduin escolheu suas palavras com cuidado.
-Ouça-me, meu amigo. Há mais em jogo do que apenas exaltar o nome de Naotalba. Ela
enviou-nos para transformar o mundo.
-Ela enviou?
-Você mesmo disse quando nos conhecemos. São as Torres que mantêm o poder dos
senhores Comyn, são as Torres que lhes fornecem armas terríveis, como o fogo aderente
que destruiu braço daquele fazendeiro. Se matar um rei, mesmo o próprio Hastur, o que
acontecerá então? Eles apenas irão escolher outro. Mas se mesmo uma única Torre caísse...
-O que? -Saravio disse com uma onda de sua antiga arrogância de filho de uma Torre. -
Plebeus se erguendo contra os treinados leronyn’s?
Se Eduin quisesse ter sucesso com seu plano em alistar Saravio contra Varzil Ridenow,
então ele devia encontrar uma maneira melhor para convencê-lo.
-Você os está defendendo? -Eduin rosnou, deliberadamente provocando um confronto. -
Você tem mentido para mim sobre como os Guardiões o trataram, empurrado-o para fora,
você virou as costas para a convocação de Naotalba?
Saravio virou com os olhos brilhando. O ar zumbia, firme e seco. Eduin sentiu os
minúsculos pêlos ao longo das costas e de sua espinha enrijecerem. Seus sentidos laran
tremeram com a mudança na atmosfera. Com essa visão interna, ele viu o céu baixo, sentiu
a aglomeração de energia elétrica. Isso não era nenhuma tempestade natural, disso ele
estava certo. Ele levantou a cabeça, as narinas dilatadas, como se para sentir um perfume
distante. A qualquer momento, a tensão iria quebrar.
Antes que Saravio pudesse falar, Eduin levantou os braços, espalhando a energia para os
céus invisíveis.
-Naotalba! -Ele gritou, sua voz enchendo o pouco espaço. -Ouve nossas orações. Venha
até nós, nos guie, nos envie sua ajuda. Somos seus!
Saravio recuou com os olhos arregalados. Eduin respirou repetindo o encantamento, mas
só então, o próprio ar fender em um som estrondoso e ensurdecedor. Seus ouvidos
zumbiam, mesmo depois que o som tinha desvanecido em burburinhos. Através das janelas
forradas, um brilho branco e frio explodiu em toda a sala.
-Naotalba! Naotalba! -Saravio caiu de joelhos, com as mãos estendidas, palmas para
cima, a cabeça arremessada para trás. Ele sacudiu tão violentamente que Eduin temia que
ele pudesse estar à beira de outra crise. Seus olhos estavam brancos. Uma e outra vez, ele
gritou. Cada vez, as sílabas tornaram-se menos compreensíveis, até que se fundiram em um
único grito de emoção pura.
Eduin ergueu suas barreiras de laran para que nenhum traço do frenesi de Saravio
infiltrasse nele. Deliberadamente, ele caminhou até a porta e abriu-a. Apenas uma parte do
céu mostrou-se entre os contornos escuros dos edifícios, ainda assim as tiras dos
relâmpagos podiam ser vistas. O trovão rugiu novamente, luz e som tão misturados que a
tempestade devia estar diretamente acima deles. O ar brilhava com o poder.
Ele provou o ozônio forte da atmosfera... e poder cru do laran junto. Em seu trabalho na
Torre em que tinha manipulado nuvens e correntes de ar para levar chuva a uma região
árida ou atenuar uma torrente. Ele tinha certeza de que algum artifício alimentou a
tempestade, mas os traços eram muito profundos e sutis demais para identificar. Apenas
algumas gerações atrás, os feiticeiros de Aldaran manipulavam padrões climáticos além do
poder das Torres comuns. Alguns diziam que eles eram capazes de explorar os campos
magnéticos do planeta. Ele nunca tinha acreditado que isso era possível, e ele não
acreditava nisso agora, mas havia alguma qualidade na sobrecarga de turbulência, a tensão
entre o céu e a terra, que o fez pensar em exércitos enormes preparando-se para um
ataque, com armas sendo preparadas.
Na Torre Hestral Eduin tinha projetado e construído uma matriz artificial para concentrar
e direcionar o talento natural de detecção do tempo de um jovem laranzu. O que
aconteceu com o menino, Eduin nunca soube, pois, logo depois, o exército de Rakhal tinha
atacado e todos tinham entrado no caos. Agora, ele estendia a sua mente para a
tempestade buscando a fonte e voltou mais confuso do que antes. Ele não conhecia o traço
pessoal de nenhum jovem trabalhador das Torres, ou de qualquer outro indivíduo, para
esse rastreamento.
Eduin afastou-se da porta repentinamente cansado. Nos dez dias anteriores ele havia
usado seu laran mais do que nos últimos dez anos. Seus músculos tremeram, e ele sabia
que ele devia comer, apesar de sua falta de apetite. E devia lembrar isso a Saravio também
que raramente pensava nessas questões. O trabalho laran tinha consumido grandes
quantidades de energia que precisavam ser substituídas. Os pensamentos de Eduin
vagaram para seus primeiros dias em Arilinn, onde Lunilla, que agiu como mãe para todos
os novatos, importunando-os até que eles tivessem comido o suficiente para satisfazê-la.
Ela sempre tinha uma palavra amável para ele e nunca adivinhou os segredos por trás de
seus sorrisos. O que ela pensaria se pudesse vê-lo agora?
Reflexões inúteis!
Disse a si mesmo. Onde quer que ela estivesse, se é que ela estava viva, eles nunca se
encontrariam novamente.
No chão, Saravio tinha caído para frente, com o rosto escondido sob seu cabelo jogado
para frente. Ele balançava-se para frente e para trás, cantando para si mesmo. Tremores
percorriam os músculos dos ombros e pernas. Mesmo através de sua camisa, Eduin viu os
sinais das costelas de Saravio.
Você precisa de comida e descanso, meu amigo.
Ele pensou com um tom inesperado de compaixão. Ele colocou uma mão nas costas do
outro homem.
Mais uma vez, a imagem da mulher com o rosto de gelo, vestida com um vestido preto
sem luas, levantou-se atrás de seus olhos, um envio da mente de Saravio.
Naotalba... Naotalba...
Os pensamentos de Saravio o golpearam como o ritmo incessante de um tambor.
Desta vez, porém, a visão não pegou Eduin de surpresa. Suas confianças em suas próprias
habilidades mentais tinham retornado juntamente com a força das memórias de quem ele
tinha sido em Arilinn, em Hali, e, especialmente, em Hestral, quando ele tinha acabado com
o exército de Rakhal.
Por que não usar próprias visões para garantir a cooperação de Saravio? Saravio
precisava claramente de uma causa a que se dedicar. Por que não deixar Naotalba lhe
fornecer uma?
Ele teria que agir com cautela, tecendo suas próprias intenções nas alucinações do outro
homem. Fechando os olhos, ele sentou no chão e tirou a pedra da estrela de sua proteção.
Tão cuidadosamente quanto pôde, Eduin começou a moldar as imagens visuais. Saravio
foi apanhado no frenesi de sua crença, sem dúvida. Eduin imaginou a mulher, Naotalba,
levantando os braços em convocação. Mostrou-lhe um exército de homens e mulheres,
todos olhando para ela com arrebatada adoração nos olhos, prontos para matar ou morrer
sob seu comando. Ela apontou para Saravio e de sua boca vieram as palavras que Eduin
teceu.
Você vai ser o meu campeão. Você vai levar o meu exército. Você vai jogar para baixo os
meus inimigos e trazer o alvorecer de uma nova Era!
Naotalba! Naotalba!
O corpo físico de Saravio abaixou ainda mais. Na visão, ele se prostrou diante dela.
Eu estou às suas ordens!
Lentamente, a mulher de pele clara sorriu. Eduin preparou o momento para aumentar a
lealdade desesperada de Saravio.
Diga-me, peço-te! Como posso servi-la?
Eduin pintou uma paisagem com energia mental. Naotalba e seu exército desorganizado
estavam sobre uma planície arruinada. Vapor subia de fendas na terra seca. O céu estava
reduzido, vermelho e congestionado, acima deles. Um vento, tingido com o gelo do inferno
mais frio de Zandru, balançava seus cabelos e roupas. Saravio gemeu e pressionou o rosto
contra seu pé.
Levanta-te, meu general. Levante e veja!
Ela se virou, apontando. Eduin formou um tor rochoso e, sobre o seu pico, uma Torre.
Imaginou-a branca e suave, como Hali. Ele mostrou as pessoas chorando em desespero.
Então relâmpagos voaram da mão de Naotalba, entrelaçando o ar. Quando tocou os lados
da Torre, as explosões resultantes deixaram fissuras irregulares. Fragmentos da parede
caíram e a Torre balançou sobre suas fundações. As pessoas festejaram intensamente. Eles
acenavam os punhos e batiam os pés. Frenesi iluminava seus rostos.
Leve-nos, Saravio! Leve-nos à vitória!
Eduin moldou a cena com as pessoas correndo para a frente, mas teve o cuidado de não
dirigir qualquer ação sobre a figura de Saravio. Isto não foi por qualquer escrúpulo em não
impor sua vontade sobre o outro homem. Ele havia capturado as visões de Saravio com
bastante facilidade e em as formava para seu próprio propósito. Não. A fim de que o plano
de Eduin tivesse sucesso, o compromisso da Saravio deveria surgir a partir dos próprios
desejos mais profundos do homem. Ele seria a ponta de lança visível. Eduin não podia
arriscar a exposição pública. Saravio levaria o peso de quaisquer represálias, caso os seus
planos dessem errado. Nesse caso, ele, Eduin, estaria livre para tentar novamente e isso
significava que não deveria se apresentar como o líder.
Na visão compartilhada, a figura de Saravio levantou a cabeça. Eduin viu o reluzir de
lágrimas imaginárias sobre suas bochechas. Saravio parecia um homem paralisado. O temor
tinha dado lugar à aceitação e, em seguida, à alegria. Uma luz brilhou em seus olhos, uma
luz não da carne, mas de algo mais além. Uma inveja agitou em Eduin, embora ele mal a
reconhecesse.
Eduin levou a figura de Naotalba para mais perto. Ela estendeu os braços
fantasmagóricos e levantou Saravio a seus pés. Em seguida, dobrando-se mais perto, ela
sussurrou em seu ouvido.
Seja fiel, óh meu campeão. Sê fiel e forte. Meus inimigos se escondem em todos os
lugares e aqueles que uma vez me traíram estão prontos para se levantar novamente. Você
vai me servir?
Os olhos de Saravio nunca deixou seu rosto, mas o seu assentimento foi rápido e
inequívoco, sua obediência completa.
Então vá e salvar o meu povo. Leve-os aos caminhos da justiça e verdade. Derrubem as
Torres e todos os malfeitores que nelas habitam!
Quando Eduin voltou a si, ele estava sentado no chão, seus músculos das costas à beira
do espasmo, com as mãos fechadas em punhos, mandíbula apertada. Saravio estava
deitado na esteira, engolindo ar e gemendo baixinho.
Eduin pôs-se de pé. Seu corpo clamava por alimento. Ele foi até a prateleira onde os
restos do jantar de ontem estava envoltos, pão e queijo velhos e um par de maçãs
amassadas, junto com uma garrafa meio cheia de cerveja azeda. Ele comeu as maçãs e
metade do queijo, em seguida, forçou-se a deixar o resto para Saravio. Ele teria que
retomar seus exercícios da Torre se fosse fazer mais trabalho laran.
Eduin abaixou-se na esteira, curvando o corpo para o canto vazio. Saravio tinha
começado a roncar suavemente e Eduin caiu em um sono exausto. Seu último pensamento
de vigília foi que a tempestade havia diminuído.
Eles escaparam por entre as sombras ao longo da rua que levava à Pena Branca. A última
luz tinha desaparecido do céu e havia poucas lâmpadas ali. Até mesmo as pousadas e outros
locais que faziam negócios após o anoitecer, esperavam tanto tempo quanto possível, a fim
de economizar combustível. Eduin alcançava os lados dos edifícios. Saravio era mais sem
jeito, mas ele estava aprendendo rápido.
Mesmo um plebeu poderia ter sentido o medo nas ruas, retendo-se após o último dos
relâmpagos terem cessado. Incêndios ainda ardiam em várias áreas da cidade, embora
aqueles nos bairros mais ricos já houvessem sido extintos. Fumaça e ozônio tomavam o ar.
Eles não eram os únicos homens no exterior a esta hora. Em seu caminho, eles passaram
vários outros, às vezes isoladamente, outras vezes em grupos de dois ou três.
-Eles estão assustados, -Eduin murmurou para Saravio -embora eles nem saibam o
porquê. -Ele ergueu a voz e adotou um sotaque grosseiro. -Sim, é feitiçaria, com certeza. O
primo da minha esposa fala de tempestades como esta, e pior, até Arilinn.
Ele sentiu a onda de interesse no grupo de homens que se aproximavam. Em um
momento, eles passaram e as sementes haviam sido plantadas. Como haviam ensaiado,
Saravio cutucou as mentes dos homens, lançando um medo afiado beirando a dor. Eduin
sorriu.
... o inverno durou tanto tempo... é antinatural... Maldição de Zandru...
Sim, deixá-os pensar assim. Deixe-os sussurrar. Deixe os sussurros crescerem e
alimentar-se a si mesmos.
... Torre... bruxara... não podemos confiar em nenhum deles...
Dentro da pousada, eles encontraram luz e calor, a alegria da bebida que recobre o
ressentimento como combustível à espera de uma faísca. A mulher do estalajadeiro trouxe
bebida e carne ensopada, que era o que todos os refugiados podiam pagar. Ela recolheu
seu dinheiro antes de trazer a bebida, mas ficou pouco fora da porta para escutar.
A partir do momento em que ele jogou para trás o capuz de seu manto, Saravio ardia
com um fervor que atraía todos os olhares. Os doze homens já no quarto estavam em
silêncio, assim como um punhado de outros que entraram depois deles.
As primeiras palavras de Saravio os apanharam tão facilmente como um bom pescador
apanha peixes em um córrego. A compreensão surgiu em seus rostos, junto com uma
crescente raiva. Em seu discurso, eles viram o padrão e a razão para tudo, não só os
horrores óbvios do fogo aderente e o pó derrete-osso, como também os impostos e as
devastações da guerra, e a forma como os próprios céus se voltavam contra eles. O frio e
mortes deste último inverno, o fracasso de suas culturas, as crianças natimortas e agora a
turbulência misteriosa nos céus, tudo tinham uma causa, uma origem.
Saravio anunciou que a culpa era, como Eduin e ele tinham ensaiado, o trabalho dos
malditos leronyn’s em suas Torres. A raiva emanou quente e clara, sem hesitação ou
dúvida. Todo o tempo, os toques mentais hábeis de Saravio despertaram adrenalina,
pensamentos próprios amortecidos e aumentava o desespero.
-Mas o que nós podemos fazer? -O agricultor aleijado foi o primeiro a falar. -Nós não
temos poderes mágicos, nem mesmo se soubéssemos como usá-las, nem espadas. Somos
homens da terra... Agricultores, pastores, simples, pessoas comuns...
-É fácil para você dizer essas coisas. -Um homem de cabelos negros com enormes mãos
calejadas confrontou Saravio. -Ao primeiro sinal de problemas, você fugirá correndo. Por
que você se importaria com o que acontece com a gente?
Cutucado, Saravio ia começar a responder, mas Eduin silenciou-o com um gesto.
-Se o amigo ali não acredita no que ele fala, então porque ele estaria aqui com você
agora? -Eduin exigiu.
-Se fosse para ir contra eles, -outro homem murmurou: -que chance nós teríamos? Não
somos mais do que um animal nos campos!
-Como sabemos que você não é um dos seus espiões? -Carrancudo, o homem de cabelos
negros chegou a seus pés.
Eduin sentiu o humor do grupo, a rapidez com que sua fúria poderia ser voltada para um
alvo mais fácil, mais imediato. Ele levou uma mão para a pedra da estrela guardada em seu
pescoço, embora ele temesse não poder controlar tantas pessoas estando sozinho. No
entanto, ele deveria proteger Saravio a qualquer custo.
-Porque eu digo isso. -A mulher do estalajadeiro se afastou do umbral da porta com as
mãos nos quadris. -E todos vocês me conhecem. Digo-vos que este homem é de confiança.
Todo o tempo em que Nance estava morrendo, qualquer um desses senhores feiticeiros
levantou um dedo por ela? Não! Foi este homem que está diante de vocês, Saravio, que
veio todos os dias para facilitar sua passagem. Será que ele tinha obrigação de fazer isso?
Eu digo que vocês estariam jogando fora a melhor coisa que já aconteceu com o povo de
Thendara se vocês não o ouvissem agora.
O homem de cabelos negros afundou-se em sua cadeira.
-Você quer saber o que podemos fazer contra as Torres? -Disse Saravio. De sua mente,
Eduin lançou a imagem de Naotalba de pé atrás dele, infundindo cada palavra com
segurança. -Se formos pacientes, se formos fiéis, então não iremos falhar. Mas o tempo
certo ainda não chegou. Vocês devem ser meus arautos e levar a mensagem a todos os que
ainda sofrem.
Os homens olharam de um para o outro em dúvida. Eduin interrompeu o silêncio.
-Como já foi dito, somos muito poucos para ir contra a força de uma Torre. Seria como
atacar uma fortaleza com apenas uma faca de cozinha. Temos de esperar nossa hora e
reunir mais homens para a nossa causa. Vamos esperar e observar. Mais cedo ou mais
tarde, os feiticeiros malditos de Hali vão sair de trás de suas paredes. Então, veremos que
mesmo um homem armado por magia pode ser derrubado.
E então Varzil vai ouvir sobre nosso ataque. Carolin vai chamá-lo, mesmo que os
Guardiões não queiram. E isso irá levá-lo ao meu alcance... e depois o exército de Naotalba
cairá sobre ele. Nenhum poder em Darkover pode salvá-lo contra homens dispostos a
morrer por uma causa.
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LIVRO II

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CAPÍTULO 06

Dyannis Ridenow afrouxou o cachecol que cobria seu cabelo cor de cobre e olhou para
fora sobre o lago de Hali. A brisa da primavera, fria e carregada de umidade, percorreu sua
capa. Ela inalou, sentindo o arrepio reflexivo.
Aldones, como era bom estar do lado de fora novamente. O inverno parecia
interminável, cada dez dias de confinamento eram mais tediosos e insuportáveis do que os
dez anteriores. Ela esticou os braços. Os mais velhos, de ambos os sexos, ficariam a beira de
um ataque cerebral se soubessem que ela estava ali, desacompanhada e vestida com capa
emprestada da copeira e uma saia.
Deixe-os cacarejar sobre ela... não seria a primeira ou a última vez. Ela só poderia passar
o resto do dia no exterior e dar-lhes ainda mais o que falar.
Dyannis não estava disposta a fazer um sacrifício para o bem de seu disfarce
abandonando nem suas botas de couro fino usadas para suavizar seus pés e feitas sob
encomenda para seus pequenos pés, que agora descansavam na areia dourada. Um pouco
além, a nuvem-água do lago ondulado e recuou. Em vez das ondas suaves habituais, a
superfície parecia irregular, inconstante.
Acima, o céu estava coberto por nuvens. Por um instante, sua visão àcima do lago alterou
e ela viu não só a si mesma, mas todos em Darkover, pressionadas como flores secas.
Pressionados.
Sim, a analogia estava certa. Seus nervos formigavam com a tensão elétrica que vinha
crescendo diariamente. Ela quase podia ver o relâmpago por nascer, saborear a sua trilha
metálica.
As tempestades foram piorando desde o final do inverno, tanto em frequência quanto
em intensidade. As brigadas de incêndio em Hali e nas proximidades de Thendara tinham
trabalhado a ponto da exaustão, nas tempestades que nunca trouxeram chuvas. Nem o
relâmpago descarregava a tensão elétrica. Em vez disso, cada um parecia alimentar-se do
anterior.
Alguma coisa tinha que ser feita. Mesmo com o máximo de blindagem, os círculos nas
Torres foram atingidos de forma que passaram a lutar pela concentração que normalmente
vinha tão prontamente. Às vezes, a metade dos trabalhadores ficavam incapacitados
devido a sobrecarga de seus canais de energia.
Até agora, a cidade de Hali estava pacífica, mas os relatórios diários chegavam
anunciando conflitos crescentes em Thendara. O que começava como uma mera faísca de
mal humor ou briga entre bêbados irrompiam em um motim lotando as ruas. Às vezes, os
guardas da cidade não podiam restaurar a ordem e precisavam deixar o desabafo seguir seu
curso. Dyannis, que não tinha trabalhado como um monitora a muito tempo, foi posta em
serviço junto com outro leronyn, no atendimento aos feridos.
Muitas vezes, ao longo dos anos, desde Dyannis tinha chegado pela primeira vez na Torre
Hali como uma novata adolescente confusa, ela tinha ido ao lago para a encontrar a calma
que o ar fresco e o movimento rítmico das ondas sempre evocavam. Agora ela encontrava
a irritação da possibilidade de que alguma coisa, pior aqui a céu aberto do que dentro dos
limites da Torre, pudesse acontecer. Parecia permear o ar e a terra, escaldante sob sua
pele. Ela queria bater em algo para colocar sua frustração reprimida em ação. Mesmo
quando suas mãos se fecharam em punhos, ela sabia como aquilo era irracional. Como uma
leronis treinada, ela reconheceu o seu próprio temperamento cada vez mais volátil
reagindo à perturbação atmosférica, mas como uma mulher humana ela ainda estava
sujeita ao seu sistema nervoso natural.
Impaciente, ela chutou com um pé, espalhando grãos de areia para a nuvem-onda. A
ponta da bota alcançou uma pedra enterrada e ela tropeçou. Ela amaldiçoou, apoiando-se
na areia úmida e, em seguida, se inclinou para lavar as mãos.
No instante em que sua pele nua tocou a névoa, um choque de energia psíquica surgiu
através dela. Ofegante, ela tropeçou nas saias que eram dois tamanhos maiores que seu
tamanho natural e sentou-se pesadamente na areia. Ela respirou fundo, tentando acalmar-
se, olhando para o lago que uma vez tinha sido tão familiar e calmante.
O que em nome dos Sete Infernos Congelados de Zandru foi isso?
Ela sentiu como se tivesse moldado um enorme banco de baterias de laran, do tipo
usado para alimentar um carro aéreo ou iluminar uma cidade inteira, única e instável, de
modo que o mero contato lançava uma explosão de descarga.
Impossível!
Ela tinha tocado a nuvem-água muitas vezes, até tinha mergulhado uma curta distância
abaixo da lago, mas nunca viu nada isso. Jamais tinha ouvido qualquer relatório de qualquer
coisa desagradável ou incomum no lago. Mas, também tinha sido um inverno longo e frio e
poucos se aventuraram ao ar livre sem necessidade.
O lago era preenchido com uma névoa que não era nem líquida, nem gasosa. Era algo no
meio caminho disso, sempre em movimento, e podia ser inalado como o ar, apesar de que
fazê-lo tinha seus perigos. Ao mesmo tempo, a nuvem-água conduzia som e luz muito bem
como a água normal.
Dyannis, ainda com seu coração batendo descontroladamente, forçou-se a pensar,
raciocinar sobre as coisas. A água também conduzia eletricidade, e assim devia fazer
também a substância do lago. Mas qual era a fonte? Por que as névoas ondulantes eram
sentidas como uma bateria de laran sobrecarregada?
Ela inclinou a cabeça para olhar o céu nublado, taciturno e cinzento. Seus nervos
formigavam. Embora ela não pudesse colocar em palavras, ela sentia uma conexão entre a
tensão elétrica do céu e o que ela sentiu naquele breve momento de contato com as águas
do lago. Ela não acreditava que as tempestades incomuns eram a fonte, mas sim o efeito.
Se o lago foi a geração de energia psíquica que atingiu o ar e se manifestou como
tempestades elétricas, por que ninguém percebeu antes?
Dyannis franziu a testa considerando o problema. O fundo do lago era amplamente
inexplorado, é verdade, e por boas razões. A nuvem-água sustentava vida, mas algo nele
suprimia o reflexo natural de respiração depois de um tempo, de modo que não era seguro
ficar submerso por mais do que um breve período em excursão. Talvez, também, este
fenômeno fosse novo, começando durante um inverno particularmente duro e crescendo
lentamente em força. Ela poderia muito bem ser a primeira pessoa a caminhar na margem
do lago por prazer desde o Outono passado.
Momentos se passaram. As ondas-nuvens moviam-se gentilmente. A luz difusa nublada
continuou intacta. Em algum lugar atrás de Dyannis, um pássaro gritou uma música de três
notas e depois calou-se.
Dyannis ergueu-se sobre seus pés. Um ou dois passos foram até a metade do percurso a
beira da água. Ela tirou um medalhão de cobre filigranado de sua corrente em volta do
pescoço. Em seu interior com isolamento de seda estava uma pedra da estrela azul-branca
brilhante. Sem tirá-la do seu fecho que a mantinha firme, ela pressionou com a ponta dos
dedos e sentiu a onda de poder em resposta.
Dyannis colocou a palma esquerda na areia úmida onde uma onda acabara de recuar.
Mais uma vez ela sentiu a estranha energia psíquica. Cada nervo gritou para se afastar, mas
ela mudou sua postura, empurrando seus dedos através dos grãos de areia. Tremendo, ela
se forçou a ficar parada enquanto a onda voltava. Mais quente do que a água, a nuvem
atingiu sua mão.
Sua visão ficou branca, como se tivesse mergulhado através do gelo em um rio no
inverno. Em seguida, a disciplina de seus anos de treinamento na Torre assumiu. Mesmo
com parte de sua mente consciente cambaleando com a sobrecarga, ela restaurou a
integridade de seus próprios sistemas laran.
Ela percebeu que sua primeira impressão tinha sido correta. A nuvem-água agia como
um meio de condução. A água normal apenas evaporava essa energia da superfície de um
lago ou rio, mas essa energia aqui escoava com potências elétricas manifestando-se como
tempestades violentas.
Dyannis percebeu que era menos difícil ainda se segurar para a próxima onda. O poder
vinha em ondas, como as ondas do lago em si, cada uma crescendo e depois diminuindo. Os
pulsos eram usados para coletar e direcionar a energia. Com um tremor, ela percebeu que
este não poderia ser um fenômeno natural.
Dyannis voltou seu foco para o padrão rítmico. Seu primeiro Guardião tinha chamado
essa técnica de "usar a porta traseira de sua mente," ela sentia o resíduo revelador de uma
estrutura de matriz. Era fraco demais de modo que, não importa o quanto ela tentasse, não
conseguiria ter mais do que uma impressão geral.
Uma descoberta inevitável surgiu em sua mente. Dentro das profundezas do lago havia
uma fonte de imenso poder psíquico artificial que irradiava através da nuvem-água. Quanto
tempo tinha estado lá, ela não podia adivinhar. Ali oculto em repouso, podia ter sido criado
no início do mundo, só para despertar nestes tempos perigosos.
Apesar de sua formação, Dyannis estremeceu fortemente ao contato com o objeto. Os
músculos de sua barriga tremeram e a bílis subiu em sua garganta, puxando-a de volta ao
seu corpo físico. Até agora, o dreno em seu corpo e mente que acompanhava o intenso
trabalho com laran começou a fragmentar sua concentração. Ela não tinha um monitor
para protegê-la.
Eu não tinha planejado fazer um trabalho não autorizado com laran aqui!
Com um esforço, ela ergueu as barreiras de laran e se arrastou para trás, além do alcance
da nuvem-água. Ela só tocou a superfície do que estava acontecendo no lago, mas ela não
estava nem perto de resolver todos os seus mistérios por ela mesma. Ela não se atrevia a
atrasar. Reunindo suas forças, ergueu-se.
Quando Dyannis correu de volta para a Torre Hali, ela enviou um sinal mental para
alertar seus companheiros leronyn’s. A esta hora, depois de uma noite de intenso trabalho,
muitos estavam dormindo ou descansando, suas barreiras laran estavam erguidas. Com a
sensibilidade que era necessária para se unir com outros telepatas treinados em um círculo,
vinha também uma vulnerabilidade requintada para a intrusão de pensamentos e paixões
aleatórias. A experiência tinha mostrado que isso poderia ser não só perturbador, mas
destrutivo quando se lidava com sistemas de matriz imensamente poderosos. Muitos
leronyn’s aprenderam a se proteger com técnicas especiais. Por essa razão, também, a
Torre tinha sido construída na extremidade do lago, bem longe da cidade de Hali.
Ela encontrou uma mente acordada e receptiva à sua chamada, de um jovem e brilhante
laranzu de Carcosa. Ele era alguns anos mais jovem do que ela, em seus vinte e poucos
anos, e de todos os trabalhadores de matriz em Hali, eles compartilhavam uma união
especial de espírito.
Rorie!
Dyannis! Ele respondeu em saudação. O que aconteceu?
Atrás dos pensamentos de Rorie, ela ouviu o medo de que suas aventuras impetuosas
finalmente pudessem tê-la feito se prejudicar.
Eu estou bem. Ela rapidamente o tranquilizou. Eu descobri algo no lago e temo que saja
um mau presságio para mais do que apenas para a Torre. Devo dizer ao Guardião!
Com um reconhecimento sem palavras, Rorie levantou para se preparar para sua
chegada.
Raimon Lindir, Guardião da Torre de Hali, estava esperando por ela ao lado dos portões
externos, juntamente com Rorie e Lewis-Mikhail. Sua aparência, alto e magro,
inconscientemente graciosa, sugeria que ele possuía sangue chieri. Às vezes, seus olhos
tinham um tom quase prateado. O vermelho profundo de seu manto formal de Guardião e
seu cabelo vermelho-fogo contrastavam com a palidez de sua pele, mas não havia nada de
anêmico sobre sua personalidade ou poderes. Ele podia ser um dos Guardiões mais jovens a
deter o poder exclusivo sobre uma grande Torre, mas sua proficiência estava fora de
questão.
Ele estendeu as mãos e Dyannis colocou as dela sobre as dele, as palmas das mãos
arrefecidas sob a ponta dos dedos. O toque físico foi catalisado com o contato mental. Ela
não precisava de palavras para descrever, nenhuma explicação, nenhuma interpretação do
que tinha acontecido. Ela lançou a memória de sua experiência no lago, sabendo que ele
sentia cada detalhe tão vividamente como se ele tivesse estado lá.
A partilha levou apenas um instante. Raimon estremeceu quando ele quebrou a ligação
física.
-O que você viu é realmente de grande importância. -Disse ele em voz alta. -Temos de
descobrir o que está acontecendo lá embaixo. Eu vou reagendar o trabalho de hoje à noite.
Dyannis assentiu. A curta distância da Torre ao lago não significava nada para um círculo
completo de trabalho sob a orientação de um Guardião, especialmente um tão forte quanto
Raimon. Juntos, eles haviam extraído metais preciosos das profundezas da terra e mudado
padrões de nuvens nos céus. Além disso, cada um deles estava familiarizado com o lago em
condições normais. Certamente, seus talentos mentais combinados iriam desvendar este
enigma.
Naquela noite, Raimon convocou o círculo da Torre Hali. No meio da escada que
conduzia à sala comum, Dyannis respirado calma e suavemente. Tinha tropeçado na bainha
de seu manto e ela quase tinha tropeçado e quebrado a cabeça como uma tola.
Ela se inclinou para inspecionar os pontos frouxos.
Depois de todo esse tempo, eu deveria poder fazer uma costura decente. Pensou com
tristeza. Ela sabia que deveria aprender a fazer esses repares, mas ela não se dava ao
trabalho de aprender corretamente. Havia sempre algo para fazer que parecesse mais
interessante ou importante do que a costura. Algumas das mulheres mais velhas na Torre
tinham servas para fazer essas tarefas, mas Dyannis em sua constante agitação era um
fardo maior qualquer serva. Como ela tinha feito tantas vezes antes, ela simplesmente
enfiou uma dobra extra sob seu cinto e continuou.
Dyannis já tinha esquecido a bainha rasgada quando ela passou pelo corredor que levava
à ala dos Guardiões. Apenas uma das três suítes era ocupada atualmente e, desde a morte
de Dougal DiAsturien, ninguém teve coragem de sequer abordar o assunto de transformar
seus aposentos para outros usos.
Uma escada estreita levou-a até a sala de trabalho menor e mais fortemente blindada na
Torre. Pela porta aberta, ela ouviu o murmúrio de vozes. Ela parou um momento para se
recompor. Subindo as escadas estava Ellimara, usando um xale grosso sobre robe seu longo
e branco de monitora. Aos treze anos, ela era o mais novo membro em pleno exercício na
Torre Hali, pura e fortemente dotada do laran Aillard.
Raimon olhou para cima quando elas entraram.
-Ah, aí está você.
Dyannis olhou Ellimara para dar-lhe um sorriso rápido.
Graças a você, docinho, eu não sou a última a chegar.
Seu desrespeito pela pontualidade tinha sido fonte de piadas.
Ellimara corou lindamente e foi tomar seu lugar nos bancos ao longo da parede oposta.
Como monitora, ela permaneceria além do próprio círculo. Imersos na unidade mental, os
trabalhadores perdiam o controle de suas próprias funções fisiológicas. Era sua
responsabilidade mantê-los saudáveis e seus canais naturais funcionando corretamente,
deixando-os livres para focar toda sua concentração e energia na união de mentes e seus
trabalhos. Sem músculos tensos ou batimentos cardíacos vacilantes, sem queda no oxigênio
ou variação nos níveis hormonais não deviam interromper a unidade, pois a reação disso
colocaria todos eles em perigo.
Dyannis tomou seu lugar em torno da mesa oval. No centro estava a rede da matriz, uma
matriz de pedras-estrela ligadas, o que focava e ampliava seu laran natural. Ela brilhava
como se estivesse iluminada por dentro, um conjunto cristalino de pequenas pedras da
estrela, ligadas e sintonizadas com o seu propósito.
O círculo estava com força total esta noite, seis trabalhadores além de Raimon como
Guardião. Mais dois membros da comunidade de Hali poderiam participar, mas um círculo
de nove estava além de sua habilidade atual, e eles não tinham o suficiente para dois
círculos, mesmo que tivessem um segundo Guardião. Eles muitas vezes trabalharam com
apenas cinco membros, quando os outros eram necessários para as Hellers ou eram
impedidos do trabalho ativo devido a doença, cansaço, ou, no caso das mulheres, o início
de seus ciclos mensais.
Hali não é a única Torre a ser reduzido a um único círculo de trabalho. Dyannis refletiu.
Seu olhar encontrou o de Alderic, que tinha vindo para Hali recentemente. Ele tinha
montado com o Rei Carolin em sua luta para recuperar o trono, e em seus pensamentos, às
vezes ela ouvia os ecos das mentes dos leronyn que lutaram de ambos os lados.
Muitos foram perdidos e muitas exigências foram feitas àqueles de nós que estavam
deste lado da luta.
Hali já tinha abrigado uma dúzia ou mais novatos jovens, bem como aqueles Comyn
jovens que necessitam de formação além do que o seu agregado familiar de leronis podem
proporcionar. Agora que Ellimara tinha terminado a sua formação, a ala dos noviços estava
vazia.
Todas as coisas vêm e vão a seu tempo. –Seu irmão Varzil havia dito. -Nada dura para
sempre, nem os bons tempos, nem os maus.
Dyannis estremeceu e rapidamente espantou qualquer indício de melancolia. Tais
divagações vaporosas eram perigosas para se ter em um círculo de trabalho.
Após uma breve introdução, Dyannis repetiu para o círculo o que havia acontecido com
ela no lago, tanto em palavras quanto telepaticamente. Eles já estavam com a luz da
harmonia de seu intenso trabalho em conjunto em suas mentes. Enquanto ela falava,
sentiu os membros individuais mudando em direção a uma unidade de trabalho.
-Agora, vamos dar uma olhada mais de perto nessa coisa. -Disse Raimon e deu o sinal
para começar.
Dyannis colocou a pedra da estrela à frente dela, fechou os olhos e baixou suas barreiras
mentais. Já sentiu a força de Rorie como um calor constante, como o sol do alto verão nas
rochas pelo rio em Sweetwater, onde ela tinha vivido quando era menina. A mente de
Raimon tocou a dela e ela se acomodou ainda mais profundamente.
Focou o olhar nas camadas de cor azuis enfraquecendo em tons de ouro verde
mostradas por ela. Sempre se sentiu assim quando Raimon estava mantendo os membros
individuais do círculo em um conjunto único. Uma vez, ela perguntou a Lewis-Mikhail sobre
as cores e sensações ali, e ficou perplexa.
-Para mim, é como cantar em um coro de Nevarsin, -ele disse –com muitas vozes,
algumas altas, algumas baixas, todas misturando-se até que eu não consiga mais ouvi-las
separadamente.
Uma dica com lembrança de flores silvestres mudou sua consciência e ela sentiu os
músculos do ombro amolecerem e sua barriga relaxar quando ela respirou fundo. Ellimara
foi ajudava todos naquela longa sessão. Dyannis flutuava na sensação de alívio e
contentamento. Ela já não era uma pessoa solitária diante do mistério assustador do lago,
mas unida à um todo maior, com força e sabedoria além da sua própria. Naquele momento,
nenhum desafio parecia além de suas habilidades combinadas.
Raimon começou seu trabalho, tendo uma impressão do padrão na sua mente e
canalizando-o para o círculo. Memórias subiram à superfície, coisas que ela tinha sentido e
pensado naquele dia na margem do lago. Desta vez, elas pareciam distantes, como se
vislumbrasse através de um vidro fosco. Sentiu-o refinar, deixando de lado suas próprias
reações fisiológicas, suas emoções e tirando suas percepções diretas.
Uma onda passou ao redor do círculo e Dyannis sabia que cada um deles tinha
compartilhado essa sensação, como se todos tivessem estado lá com ela, colocando suas
próprias mãos para a nuvem-água, sentindo o choque de energia elétrica.
Um zumbido fraco, pouco mais do que uma vibração, a invadiu. Ele estava familiarizada
com esse som artificial, a rede matriz de ressonância para o padrão do círculo que Raimon
alimentava através dele. Neste ponto, todo o seu trabalho seria concentrar-se na estrutura,
para alimentar com seu próprio laran energia para ela. De todos eles, apenas o Guardião
controlava essas energias.
Quando ela veio primeiro a Hali, o velho Dougal DiAsturien era o Guardião, e, mais do
que isso, ele foi um mistério para ela. Mais de uma vez, ela tinha sido castigada por resistir
a seu comando. O toque de Raimon era muito mais sutil e sua mente tinha uma qualidade
pura, quase transparente. Ela manteve um certo grau de consciência separada, quando ele
estabeleceu um ponto de ancoragem na Torre física e começou a criar uma ponte de
ressonância para o lago abaixo.
Havia muitas funções realizadas por um Guardião que Dyannis entendia e poderia muito
bem imaginar-se fazendo, mas esta não era uma delas. Para um salto tão espacial da
consciência trabalhando com precisão e segurança, o Guardião deveria estar extremamente
confiante de seu destino. Ele deveria manter a imagem em sua mente tão claramente como
se ele estivesse olhando para sua própria mão. Raimon nunca hesitou.
No instante seguinte, ela sentiu uma rajada de ar frio, assim como ela tinha sentido
naquela manhã, embora agora fosse noite e seu corpo físico estivesse aquecido com
segurança por trás das paredes da Torre. Através do poder do círculo, ela ouviu o barulho
suave das ondas e sentiu os odores misturados de areia molhada, das ervas daninhas e do
rio.
Ela flutuou acima do lago, embalada pelo movimento das ondas, sentiu sua umidade
enevoada peculiar. Em um canto da sua mente, ela preparou-se para a onda misteriosa de
poder.
Mas ela nunca veio. Ela permaneceu suspensa, intocada, fora do alcance das cristas de
nível superior. Seguindo o fluxo de energia laran a partir de sua própria mente através de
Raimon e, em seguida, a rede, ela tocou uma barreira densa na superfície da água.
Tentando se mover através dela era como forçar seu caminho através de uma moita de
juncos entrelaçados, resilientes e ainda intransitáveis. Mesmo as mentes unidas do círculo
não podiam penetrar na camada de energia. Claramente, quem tinha criado a fonte de
alimentação artificial não queria ninguém investigando o caso.
Mais uma razão para fazê-lo, ela pensou.
A maneira direta estava bloqueada para eles. A determinação e a curiosidade se
acenderam em Dyannis, apesar do contato suave de Ellimara. Ela sentiu o movimento de
Raimon para se retirar.
Simplesmente desistir e ir embora? Não se tenho algo a dizer sobre isso!
Dyannis! Recupere o seu foco! Não quebre a unidade!
Com um esforço, Dyannis acalmou seus pensamentos áridos submergindo sua
consciência mais uma vez no círculo. Suas emoções não eram tão fáceis de controlar, mas
ela conseguiu com esforço. Ela tinha anos de experiência em lutar com seu temperamento
incontrolável.
A ressonância do círculo continuou intacta. Seu lapso não tinha causado nenhum dano
sério. Por um longo momento, a consciência entrelaçada do círculo pairou acima da
superfície do lago. Então, com a suavidade de seda, Raimon levantou-os para o mundo
superior.
Dyannis encontrou-se de pé sobre uma planície de cinzas ininterruptas embaixo de um
céu igualmente com traços característicos. Em torno dela levantou-se a manifestação
fantasmagórica da Torre Hali, tão insubstancial como se tivesse sido feita de água. Olhando
para baixo, ela se viu como ela tinha aparecido aqui muitas vezes antes, em um corpo
muito parecido com o seu, vestido com uma túnica cinza suave que mal alcançava os
tornozelos. As mãos dela pairou perto de seus vizinhos no círculo. Alguns deles parecia mais
jovem ou mais velho... Ellimara apareceu como uma mulher na casa dos quarenta anos, e
suas roupas não eram o branco de uma monitora, mas rosada, como o carmesim do
Guardião.
Raimon apareceu como sempre fazia, quase andrógino, brilhando como um semblante
sem idade, não-humano, chieri. Seus olhos se encontraram e sua boca se curvou em um
sorriso.
Com um movimento de sua mente, ele chamou o lago para eles. Aqui no mundo
superior, a distância e o tempo perdiam seu significado, tornando-se meros produtos da
mente. Mesmo a Torre em torno deles tinha sido moldada pelos pensamentos dos
trabalhadores de Hali ao longo dos séculos, simplesmente porque eles estavam
acostumados a trabalhar dentro de paredes e sentiam-se mais confortáveis com um marco
familiar.
O lago, também, mantinha muito de sua aparência física, uma depressão preenchida com
névoas turvas. Quando Dyannis olhou, parecia não só bastante reduzido de diâmetro, mas
muito mais profundo. Ela não podia ver o fundo, assim Raimon mexeu as águas-nuvens
transparentes, camada após camada. As estranhas criaturas que viviam nas águas do lago,
metade peixe e metade pássaro, passaram como formas brilhantemente coloridas e
rapidamente desapareceram.
Em uma inspeção casual o lago do Mundo Superior pareceu como o de sempre. Em
outras circunstâncias, Dyannis teria aceitado como normal e se virado. Agora essa
suavidade aprofundou ainda mais sua curiosidade. Raimon levou o foco do círculo para algo
mais profundo.
Uma camada de energia psíquica estava sobre o lago. Ela havia sido moldada para refletir
as expectativas de qualquer pessoa que se aproximasse do Mundo Superior. Um
trabalhador iria ver apenas o que ele pensava que devia estar lá. Parecia tão normal que só
alguém com motivo para ser suspeitar seria capaz de dizer a diferença.
Dyannis percebeu o padrão semelhante a um espelho também repelindo qualquer
energia recebida. Ela havia estudado dispositivos como esse antes e tinha até mesmo
construído alguns. A barreira usaria a própria energia de um atacante, de modo que o mais
duro ele empurraria de volta e o mais difícil ele jogaria para trás. Apenas um círculo
formado numa Torre poderia ter o criado.
Quem? Quem faria uma coisa dessas? E porque?
Raimon também não desconhecia e estranhou tal estratégia. Ele moldou a energia do
círculo em um ponto de lança, longo e fino. Então, em vez de apontar de forma
perpendicular na barreira, mandou-os deslizá-la através dela, mergulhando no ângulo mais
estreito. A ponta deslizou por baixo da borda exterior. Não havia quase nenhuma
resistência. Ele aumentou o seu ângulo de descida. Poucos minutos depois, a barreira de
repente cedeu. Eles a haviam rompido.
O lago estava abaixo deles. Reunindo as forças do círculo, Raimon mudou o foco deles no
Mundo Superior. Cinzas escuras intensificaram o contraste. As névoas cresceram mais
espessas, lambendo as margens do lago. Ao mesmo tempo, formas apareceram na parte
inferior. Eram formas borradas e indistintas, mas com forte presença.
Dyannis sentiu uma onda de euforia.
Não havia mais dúvidas. Havia mesmo algo lá!
Sem palavras, Raimon atraiu a atenção deles por mais poder. Ela deu-lo livremente e
sentiu os outros fazendo o mesmo. Eles se moviam através das águas etéreas, cada vez mais
e mais profundas.
Abaixo, Dyannis vislumbrou uma vasta forma irregular. Instintivamente ela recuou. Cada
fibra de seu ser pedindo a ela para fugir. Ela manteve-se firme. Embora tenha usado cada
partícula da disciplina que possuía, ela se forçou a examinar a forma estranha.
Não tinha forma física, nem escuridão, nem luz. Com seus sentidos laran, Dyannis sentiu-
a como um rasgo, uma interrupção na continuidade do tempo.
A coisa a puxou, a repugnava. Ela cheirava a puro laran.
CAPÍTULO 07

Depois de terem descansado e reabastecido as energias drenadas pela longa sessão,


Raimon trouxe o círculo de volta e reuniu-os em conselho. Eles deviam entender o que
tinham visto, reunir suas informações e decidir o que fazer a seguir. A decisão final
pertencia a Raimon, como Guardião, mas nada parecido com essa situação tinha surgido
dentro das memórias da história conhecida. Todos estavam conscientes da importância de
suas próximas ações.
Quando eles discutiam o que tinham visto, Dyannis de repente reconheceu uma corrente
subterrânea de memória, como uma coceira na parte de trás de seu crânio, que tinha a
incomodado o dia todo.
-Eu não sei se isso tem alguma relevância para nossa situação atual, -ela disse em voz alta
-mas esta não é a primeira vez que eu sei de algo estranho aconteceu no lago. Anos atrás,
meu irmão, Varzil, e eu passamos uma temporada no Solstício de Inverno na corte do velho
rei Felix, em Hali.
Em sua mente, ela voltou para aquela época, e os outros, ainda em ligação profunda após
a sua longa sessão juntos, seguiram seus pensamentos. Ela era muito jovem, recém-
chegada na Torre Hali e em um estado de constante euforia e excitação. A memória
invocada por ela ondulava através do círculo, a textura da parede de pedra que ela tinha
cansado de ver quando se concentrava na prática de seus exercícios de respiração, o ruído
dissonante e baixo, vozes erguidas, pessoas correndo. Ela correu para fora e viu dois
homens carregando o corpo inerte de seu irmão na parte de trás de um cavalo. Uma vez
que a comoção havia amenizado, a história surgiu.
E foi isso que aconteceu. Ela falou com o círculo por sua mente.
Entre os dois homens estavam o príncipe Carolin, seu amigo, Orain, e o encharcado, sujo,
miserável, meio afogado que era seu próprio irmão. Os curandeiros cuidaram dele durante
horas, enquanto Carolin andava de um lado pro outro pelos corredores, deixando todo
mundo meio louco com sua preocupação. Primeiro, Dyannis presumiu, assim como todos
os outros, que Varzil esteve nas profundezas do lago e ficou muito tempo. Ela tinha sido
avisada sobre as consequências disso quando era uma novata.
Mas algo aconteceu com Varzil, algo além de exposição ao frio e falta de ar. Ela disse.
Ela sabia no momento em que o viu. Havia uma estranheza em seus olhos que a
surpreendeu. Afinal, esse era seu irmão mais velho, Varzil, que podia ouvir os homens-ya
cantando sob as quatro luas e outras coisas que lhe mandou correndo para baixo das
cobertas assustado.
Dyannis retirou-se para a privacidade de seus próprios pensamentos por um momento.
Logo após o incidente no lago, Varzil tentara interferir com o seu primeiro caso de amor,
com um jovem laranzu de Arilinn. Ela tinha levado um longo tempo para perdoá-lo.
Dyannis achou estranho que ela pensasse em Eduin agora, pois ele não tinha cruzado sua
mente há anos, não desde que o desastre na Torre Hestral. Ela ainda acreditava que toda
aquela história nunca poderia ser conhecida plenamente. Uma coisa era certa, Eduin tinha
sido injustamente culpado. Ele não tinha amigos poderosos entre os Comyn, além de
Carolin Hastur, e, naquele tempo, Carolin era um exilado, correndo por sua vida nas terras
selvagens além do Kadarin.
O lago...
Dyannis voltou seus pensamentos mais uma vez para o problema atual.
-O que exatamente Varzil encontrou? -Raimon perguntou.
Varzil não tinha dito explicitamente, Dyannis explicou, mas ela acreditava que ele tinha
topado com alguma relíquia do Cataclismo, o antigo desastre que tinha criado um lago
incomum que era a maravilha misteriosa de hoje. Talvez o resíduo psíquico desse evento
ainda permanecesse nas brumas, perceptíveis apenas nas profundezas. Varzil com seu
extraordinário laran poderia ter percebido o que os outros homens, mesmo os treinados na
Torre, não notaram.
Os outros se entreolharam com expressões apreensivas e até mesmo Raimon parecia
sombrio. Ela não podia culpá-los. Varzil era geralmente considerado como o mais poderoso
laranzu deste tempo. Como eles poderiam lidar com algo que quase tinha dominado ele?
-É claro, -Dyannis disse em voz alta para tranquilizar-se, bem como os outros, -Varzil era
muito jovem nessa época. Eu não acho que ele tinha sido mestre em Arilinn por um ano
inteiro. Ele não estava esperando pelo que ele encontrou.
Estaremos preparados. Ela acrescentou mentalmente, com uma confiança que ela não
sentia inteiramente.
Raimon pegou seu tom de bravata.
Nós ainda não estão preparados. Primeiro temos de reunir informações e recursos. Se
essa coisa está ligada ao evento do Cataclismo, não será simples nem fácil de lidar.
É isso mesmo. Pensou Dyannis. Ele havia colocado em palavras não ditas o medo que
agitou dentro de todos eles.
-Temos de fazer duas coisas. -Raimon disse. -Primeiro, temos de descobrir o máximo que
pudermos sobre a fonte de energia e, em especial, se está causando as perturbações
atmosféricas, como suspeitamos.
-Qualquer coisa tão poderosa não pode ser deixado para qualquer um usar
indevidamente. -Disse Lewis-Mikhail.
-Exatamente. -Disse Raimon. -Portanto, a segunda coisa é descobrir o que criou o escudo
de energia e com que finalidade. Temos de ir com cuidado aqui.
Raimon mandou dizer à noite, através das Hellers, o que haviam descoberto. Ele fez
planos para conversar com o Rei Carolin, porque o lago de Hali estava dentro do reino
Hastur. Seja o que fosse, mal chegou ao seu povo ou às terras, tal fonte poderosa de
energia e não regulamentada era finalmente sua responsabilidade. Se outra Torre fosse
envolvida isso podia muito bem ser uma ocasião apropriada para estender o Pacto.
A Torre Hali já tinha jurado respeitar o Pacto, o juramento de honra que proibia o uso de
todas as armas que matavam à distância. Por ser uma das mais antigas Torres em Darkover,
muito do seu prestígio derivava da fead rhu, local das antigas coisas sagradas, e sua
proximidade com a sede real. Ele não tinha poder para obrigar qualquer outra Torre. Nestes
tempos de incerteza, com o conflito armado sempre sendo uma possibilidade, nenhuma
Torre mantinha verdadeira neutralidade. O Conselho Comyn exerceu grande influência, mas
sua temporada de reunião ainda demoraria. Como em todas as instituições, tudo se movia
lentamente.
Alguns dias mais tarde, as nuvens de tempestade se reuniram e derramaram uma
torrente de primavera. O trovão estalava como ondas de um raio do céu e da terra em uma
ponte. A chuva já tinha encharcado cada árvore e cabana, casa e campo, impedido uma
onda de incêndios. As paredes de pedra da Torre de Hali vibravam com a ferocidade dos
ventos.
Quando as chuvas diminuíram e o grande sol vermelho apareceu mais uma vez, a
comunidade da Torre imediatamente percebeu uma grande diminuição da tensão elétrica.
Raimon decidiu aproveitar a trégua, pois ninguém sabia quanto tempo isso podia durar. Ele
enviou Dyannis até o lago, junto com Rorie e Alderic, para dar uma olhada mais de perto. O
dia estava ensolarado e surpreendentemente suave para a temporada, como se a
primavera mandasse um arauto perfumado para provocá-los. Não havia nuvens no céu.
Mesmo assim, ela se aproximou da nuvem-água com um pouco de tremor.
Os três estavam em perfeita harmonia, ligados desta forma, os dois homens iriam
procurar o objeto, enquanto ela iria observar os dois, monitorando-os.
Dyannis encontrou um lugar para sentar-se em um amontoado de pedras alisadas pelo
tempo. Ela recolheu suas saias em torno dela e se recompôs, usando sua prática de
respiração profunda para acalmar todo seu corpo. O sol aquecia seu rosto e formava
padrões através de suas pálpebras fechadas. Ela sentia o cheiro da areia molhada e o odor
levemente pungente das ervas daninhas do rio. Pequenas aves chilreavam.
Sua mente desceu com os homens, como se eles estivessem carregando ela, silenciosa e
invisível, junto com eles. Névoa, como teias de aranha brancas, rodopiavam por ela. o
próprio tempo parecia lento. A luz enchia as folhas de brilho. Bolas de coloridas, como uma
padronização de listras amarelas e laranja-branco brilhante, atravessavam sua visão. Ela
exclamou em voz alta, encantada com as criaturas estranhamente iluminadas que não eram
nem pássaro nem peixe. Elas agrupavam-se em torno dos exploradores, benignas e belas,
sempre fora de alcance.
À medida que os homens iam para mais fundo, as cores mudavam. O amarelo deu lugar
aos tons de azul escuro. A temperatura caiu. Dyannis estremeceu sob o sol, em seguida,
percebeu-se com falta de ar.
Respire... você deve se lembrar de respirar! -Ela enviou. Ela disse. – Inspire... dois, três...
expire... dois, três... inale... -Sabendo que seus amigos abaixo se espalhariam em sua
disciplina.
Uma ou duas vezes, momentaneamente cega, ela perdeu o contato com eles. Cada vez,
ela reforçava a ligação com maior dificuldade. Parecia que algo mais do que a distância os
separava. A nuvem-água, que antes parecia transmitir impressões psíquicas, passou a atuar
como uma barreira cada vez mais resistente.
Rorie? Alderic? O que está acontecendo?
Nós já chegamos ao fundo. A voz mental geralmente clara de Alderic pareceu turva. Pelo
menos, não estamos indo mais para baixo. Eu não posso ver agora, mas não parece ser
muito fundo ou ter algo aqui, exceto pedra e areia.
Dyannis franziu a testa. O objeto irregular no mundo superior poderia ser semelhante a
qualquer coisa, ou a nada, para os sentidos. Continuem procurando. Ela disse a eles. E
lembrem-se de respirar.
Se esquecermos, podemos confiar em você para nos lembrar. Disse Rorie.
Atrasado.
Peste. Ele respondeu com bom humor.
Há algo em frente. -Alderic interrompeu.
Dyannis vislumbrou uma forma pálida que emergia dos redemoinhos de névoa. Os dois
homens se aproximaram, uma marcha quase flutuante de tão lenta, meio suspensa na
nuvem-água. O esboço permaneceu irritantemente indistinto, apesar de suas tentativas de
se concentrar. Ela tornou-se convencida de que o efeito não era apenas a distância ou
isolamento da nuvem-água. Isso resultava de alguma qualidade do próprio objeto.
O que você pode ver? Ela perguntou.
Pedras. Rorie respondeu. Talhadas por ferramentas e não naturais. Elas são enormes,
como pilares derrubados e quebrados, mas ainda, mais ou menos, em linha.
Dyannis sentiu Alderic correr as mãos sobre a superfície curva. Por um lado, ela sentiu a
dureza da pedra, o deslizamento de incontáveis anos de lodo, a rugosidade, onde uma
criatura tinha anexado a sua concha e depois morrido com a passagem do tempo. Outra
parte de sua mente gritou em advertência.
Energias discordantes estranhas moviam-se ao redor deles através das pedras. A nuvem-
água se acelerou, agitando os cabelos dos homens. No entanto, esta não era uma corrente
comum. Ela sentiu um desenho, como uma atração magnética.
Dyannis lançou seus pensamentos largamente como uma rede de pescador, procurando
a direção do...
Mundo Superior!
De alguma forma, as pedras no leito do lago estavam ligadas a esse reino cinza e de lá
para algum outro destino misterioso. Claramente, um imenso poder estava se deslocando
de um lugar para outro.
A única forma de descobrir o que estava acontecendo era seguir o fluxo de energia. Ela
parou de resistir à força, permitindo-lhe levá-la.
Momentos se passaram e Dyannis encontrou sua consciência movendo-se mais
profundamente no lago, em direção à fileira de pedras caídas. Os dois homens
desapareceram, deixando apenas a rocha pálida.
O fluxo trouxe ela para cada vez mais perto, até que ela se perguntou se iria ser arrastada
para a própria substância da pedra. Com a disciplina de seus anos de treinamento na Torre,
ela suprimiu o pânico.
Relaxe... Disse a si mesma. Ela não era sólida neste lugar e não poderia ser prejudicada.
Ela devia deixar o fluxo levá-la...
Em sua mente, ela sentiu a dureza dos grãos finos que formavam as colunas, os traços
quase obliterados das ferramentas que lhes haviam moldado sob as camadas de algas. Em
outro momento, ela penetraria na dureza, assim como ela tinha feito como parte de um
laran voltado à mineração de minerais preciosos nas profundezas da terra.
Com uma sacudida, ela passou para a direita através da coluna caída e para o excesso de
trabalho! Por um momento, ela não reconheceu os arredores. Ela não se reconheceu a
planície cinzenta, sem traços característicos, mas flutuava em uma piscina de névoas
gentilmente afluentes. A corrente diminuiu por um instante e ela viu algo que a
surpreendeu. A nuvem-água, ou algum equivalente astral, estava drenando a partir do
fundo do lago e em seu homólogo Mundo Superior. Tinha certeza de que o excesso de fluxo
do lago, na porta da Torre Hali, devia ter surgido apenas recentemente. Tinha a sensação
de algo novo.
Agora Dyannis estava se movendo novamente, pressa mais uma vez em uma tração
constante. As águas do lago do Mundo Superior estavam sendo desviadas. Obrigou-se a
relaxar e flutuar. Por um momento, ela não sentiu nada, apenas a corrente. Lembrou-se de
uma corrente pequena, onde a água corria rapidamente entre os bancos estreitos. Aqui não
havia turbilhões, nem bancos de areia, sem ramos ou afluentes, apenas uma única direção
implacável. Energias surgiram em torno dela. Ela recuou um pouco com a força bruta.
O que poderia uma Torre poderia ter a ver com a criação desta fonte de energia? Quase
nada! Cada círculo trabalhava com uma quantidade limitada de energia laran que poderia
ser gerada. Mas aqui havia uma oferta aparentemente ilimitada. Tudo o que faltava
necessário era um meio para controlá-lo.
E para isso, uma Torre seria extremamente útil.
Ela estendeu os sentidos laran, lançando à frente, através do vazio. Para receber o fluxo
de energia, para dar forma e se encontrar com ele, um círculo seria necessário, um ponto
de ancoragem. Às vezes, um círculo poderia recriar a sua própria Torre familiar, apesar das
imagens alteradas com o tempo e o propósito. Quando as hostilidades entre os reinos
estendido para suas respectivas Torres, edifícios bélicos tomou o lugar de edifícios abertos,
por exemplo.
No começo Dyannis não reconheceu a estrutura à frente. Assemelhava-se a um moinho
de água mais do que à Torre que ela esperara. Energia emanava por ela girando a enorme
roda.
Ela ousou permitir que a corrente a trouxesse tão perto. Com uma explosão de
concentração, ela se separou da nuvem-água e tomou a forma que usava no Mundo
Superior. Ela sabia que se parecia muito com ela mesma no mundo físico, estava mais
confortável em uma saia de montaria dividida na frente, botas atadas e camisa de gola
aberta.
Agora que ela tinha uma forma corpórea astral um som a atingiu. A roda rangeu em seu
eixo, as nuvens-água ergueram-se e espirraram. Dentro das paredes cinzentas, máquinas
escondidas retumbaram. Ela se aproximou em busca de uma entrada ou qualquer sinal de
presença humana. Não havia nada o que a deixou perplexa por um momento. Era como se
o moinho e seu aparato tivesse sido construído e, em seguida, deixado de cumprir sua
finalidade.
Ela ficou ao lado do riacho observando. A usina, como qualquer outra estrutura no
Mundo Superior, tinha uma forma criada em algum pensamento, mas a nuvem-água
pareceria tal como no reino físico. Parecia... Ela se ajoelhou e mergulhou os dedos na névoa
ondulante. Uma descarga elétrica a atingiu. Puxou seu braço de volta reflexivamente com
os nervos formigando dolorosamente.
Enxugando as mãos na saia, se voltou para o moinho. Ela focou na parede de pedra na
frente dela, mudando sua aparência sólida para uma transparência. No início, ela resistiu,
em seguida, deu lugar a uma ondulação como uma miragem de calor. Ela entrou.
Deslocando seu foco mental, Dyannis era capaz de discernir seus arredores mais
claramente. As máquinas, como a nuvem-água e o próprio moinho, era apenas uma
representação, uma metáfora. Ele visualizou uma porta de entrada, a uma pequena
distância, um atalho do Mundo Superior ao real... Para uma Torre.
Ela sentiu mais do que viu o círculo na outra extremidade do fluxo de energia. Um flash
de reconhecimento subiu em sua mente. Não era um grupo que conhecia bem. Ela esperou,
pois cada momento trazia um novo fragmento de informação, um toque de personalidade,
a assinatura de uma estrutura de matriz de alta potência, a textura dos pensamentos do
Guardião, a rede intrincada de poder que passou pelo círculo.
Dyannis sentiu um gosto amargo fraco com a atmosfera psíquica. Instintivamente ela
recuou, mas se forçou a permanecer passiva, receptiva. Ela podia ter apenas um curto
período de tempo antes que o Guardião sentisse sua presença.
Não era um verdadeiro sabor, pois ela não tinha um corpo verdadeiro, nem era um
cheiro. Sua mente, ela sabia, sugeria esses sentidos em alguma experiência primitiva,
elementar. A sensação passou de repugnante a venenosa. Algo se unia, contida e moldada
pela vontade combinada do círculo.
Eles estavam fazendo alguma coisa. Devia ser uma arma de laran. Mas o que? Náuseas
tocavam a parte de trás de sua garganta, mas ela se segurou. Ela precisava ter certeza.
Energia brilhou nas paredes em torno de uma fonte verde levemente brilhante.
Pó pó derrete-osso?
Era a mais terrível de todas as armas de laran conhecidas, pois não só trazia a morte a
qualquer um que a tacava ou respirava, mas permanecia por uma geração ou mais,
envenenando todos os seres vivos. Ainda haviam terras que nenhum homem ousava
atravessar ou comer qualquer planta ou animal crescido lá, que sobraram da Era do Caos.
Tão longe quanto Dyannis sabia, nenhuma Torre moderna possuía pó pó derrete-osso ou
estava disposta a fabricá-lo.
Com esforço, Dyannis voltou seu foco para a arma. Sim, era muito semelhante ao pó pó
derrete-osso em seu padrão de vibração. Mas não era exatamente igual. Sentiu este menos
virulento, mas também parecia ter uma configuração física diferente, mais como grânulos
ou cristais do que partículas em pó fino. Seria mais difícil de dispersar, cairia direto para a
terra em vez de ser levado pelo vento.
De fato, era uma arma. Uma que poderia ser entregue de forma mais precisa, com
menos riscos de que uma brisa errante pudesse levá-la de volta sobre as forças de ataque.
Algo que foi dito ter acontecido há uma geração em Drycreek, onde o bandido laranzu
Rumail Deslucido tinha soltado pó pó derrete-osso sobre o exército do Rei Rafael Hastur,
apenas para o vento mudar sua direção, condenando seus próprios homens também. Foi
dito que Rumail havia perecido desta forma por sua própria mão, mas seu corpo nunca
tinha sido identificado. Mesmo agora, nenhum homem que valorizava sua própria vida
ousava aventurar-se no terreno baldio que tinha se tornado Drycreek.
Ela devia dizer a Varzil. O Conselho Comyn devia ser alertado...
Dyannis dominou o impulso de se retirar imediatamente. Não adiantaria saber pouco
sobre os cristais pó derrete-osso se eles também não soubessem quem os fez. Obrigou-se a
se concentrar por mais difícil que fosse, e captar a mudança nas camadas sobrenaturais do
Mundo Superior. Ela era uma forte telepata, mas o esforço exigiu cada partícula de seu
talento e treinamento.
Apenas por um instante, ela vislumbrou a sala em que o círculo se encontrava. O círculo
se sentava ao redor de uma grande mesa oval. Uma luz branco-azulada surgia a partir da
matriz artificial em uma extremidade e era lançada tornando branca com a absorção. A
maior parte da tabela, no entanto, era dominada por um aparato... recipientes de vidro,
destiladores, separadores, outros tão especializados que ela não os reconheceu. Alguns
estavam parcialmente cheios, os seus conteúdos desprendendo uma luminescência verde
fraca. O quarto e os seus contornos não eram familiares, mas um aumento súbito na luz
mostrou as características do Guardião em um relevo gritante.
Ela sabia, porque ele tinha começado a sua formação em Hali e ainda estava lá quando
ela veio a primeiro vez.
Francisco Gervais. Guardião da Torre Cedestri!
Dyannis ... A voz mental de Rorie parecia vazia agora, estranhamente distorcida.
Maldição de Zandru!
Enquanto ela estava fora seguindo seus próprios impulsos, ela tinha esquecido de
monitorar seus amigos. Sem os gases do ar normais para respirar, eles não tinham notado o
desaparecimento de seu próprio estado de alerta. Ela estendeu a mão com sua mente e
tocou a deles instantaneamente. Ela podia vê-los com sua visão interior. Alderic estava
prostado de joelhos, capturado pelos padrões de sedimentos nas águas turbulentas. A
letargia dominando seus braços e pernas. Uma forma prateada longa e fina ondulava
através da água escura, um minúsculo grão de luminescência pairando acima do seu nariz.
Ele seguiu seu movimento sonhador.
Você tem que... mexa-se... Rorie disse, mas sem convicção.
Apenas descansar um pouco... tão agradável e acolhedor... caloroso...
Caloroso? As profundezas do lago eram frias...
-Depende de você! Respire! Mova-se! Dyannis gritou silenciosamente.
Dyannis... não faça escândalo... nós estamos bem...
Bem? Use seu raciocínio! Você está meio afogado! Qual é a utilidade de argumentar com
você? Estou a caminho!
Dyannis correu da rocha para a beira do lago. A nuvem-água espirrou sobre suas botas
molhando a barra de suas saias largas. A névoa úmida enrolou ao redor de suas pernas,
mesmo através das camadas de suas roupas. Ela engasgou com o frio repentino.
Quando eu estiver encharcada estas saias estúpidas vão pesar mais do que o burro de
Durraman!
Dyannis parou onde estava, com as ondas na altura do joelho, e alcançou os laços de seu
overskirt. Ela ofereceu uma silenciosa prece para Cassilda ou quem quer que protegesse as
mulheres por ela ter vestido saias e corpete mais separadas de sua camisa até os tornozelos
esta manhã. Ela tirou o overskirt de lã grossa empurrando-a para baixo em torno de seus
tornozelos e depois chutando-a de lado. A saia de baixo era mais leve para enfrentar o
desgaste interior, mas rapidamente sua borda inferior encharcou. Tirou o casaco e jogou-o
de volta para a areia. Ela já estava tremendo, mas, pelo menos, ela seria capaz de andar, ou
nadar, como necessário.
Dyannis! Pare! Estou voltando! Os pensamentos de Rorie eram claros o suficiente para
convencê-la de que ele emergira parcialmente de sua letargia.
Sorrindo, Dyannis nadou de volta à costa e colocou o casaco novamente.A overskirt
estava molhada demais para usar, mas pelo menos ela evitaria o escândalo de uma leronis
da Torre Hali correndo semi-nua em público, mesmo que fosse uma agradável manhã.
Rorie surgiu do lago apoiando Alderic. Suas roupas estavam úmidas e seu cabelo
pendurado em gavinhas flácidas como ervas daninhas de rio. Alderic tossiu e cuspiu
enquanto seus pulmões se acostumavam novamente com o ar normal. Dyannis entregou-
lhes os mantos secos que haviam trazido, mas um momento antes Alderic parou de tremer.
-Quanto mais aprendemos sobre o que está acontecendo lá, -disse Rorie quando eles
fizeram o seu caminho de volta para a Torre, - mais confuso tudo isso é.
Dyannis compartilhou de sua frustração, mas sentiu que era melhor não dizer em voz
alta.
Eles fizeram o seu caminho de volta para a Torre, loucos por banhos quentes e roupas
secas. Raimon ouviu gravemente quando eles relataram, tanto telepaticamente quanto em
voz alta, o que tinham visto. Ele estava particularmente preocupado com a descoberta de
um novo tipo de pó pó derrete-osso.
Naquela noite, Raimon falou diretamente com o Guardião da Torre Cedestri através das
Hellers. Francisco tinha firmemente rejeitado as tentativas de Raimon sobre uma
caonversa. Embora Raimon estivesse tão seguro como sempre quando ele surgiu da câmara
de contato, Dyannis suspeitou de que a resposta não tinha sido tão educada como ele
relatou.
-O que eles esperam? -Ela disse para Rorie, exasperada. Eles sentaram-se juntos na sala
comum, bebendo vinho quente com mel que agia como um restaurador. -Que eles
poderiam explorar essa fonte de energia mesmo à nossa porta e para tal finalidade sem
serem descobertos? Será que eles pensam que nós deixaríamos isso passar ou eles estão
esperando por Carolin para enviar um exército à eles e colocá-los abaixo?
Rorie sacudiu a cabeça.
-Tente ver as coisas do ponto de vista da Torre Cedestri. Eles não estão sob o comando
de Carolin, como você sabe perfeitamente bem, então eles dificilmente são responsáveis
perante ele. Se os relatórios mais recentes são verdadeiros, eles estarão muito em breve
numa guerra.
Dyannis franziu a testa. Cedestri era uma Torre legítima, mas havia se recusado a assinar
o Pacto. Na verdade, eles tinham acolhido os trabalhadores que não aceitaram respeitar as
restrições. A Torre havia sido aliada do pequeno reino de Isoldir. Os relatórios a que Rorie
se referira descreviam hostilidades crescentes com o seu vizinho, um ramo dos Aillard.
Ellimara tinha recebido a notícia de que os inimigos da sua família poderiam ter alguma
variante mais eficaz do pó pó derrete-osso quase em pânico e ainda era incapaz de se
concentrar o suficiente para trabalhar.
-Eles devem estar com medo de que todo o clã de Aillard se volte contra eles. -Rorie
disse. -Dada uma ameaça, você não faria todo o possível para reforçar a sua posição?
-Incluindo com a fabricação de pó pó derrete-osso cristalino? -Ela se irritou. -Rorie, eu
não posso ver qualquer uso legítimo para tal arma que mata até mesmo bebezinhos e deixa
os sobreviventes tão mal que a morte viria como uma misericórdia.
-Você fala como se você assumisse a causa do Pacto do seu irmão. Eu não tinha percebido
que você era tão partidária.
Dyannis prendeu a respiração. A Torre Hali tinha assinado o Pacto logo após o Rei Carolin
e Varzil terem o apresentado formalmente. A discussão tinha sido breve, com pouca
dissensão. Hali, apesar de tudo, estava ligada aos Hastur.
Ela não tinha pensado profundamente sobre o Pacto, mas se considerava vinculada a ele
pelas ações de seu Guardião. Mas ela também estava ciente de que ela só tinha absorvido
as opiniões daqueles ao seu redor. Ela mesma nunca tinha sido testada nesse tema. Ela
tinha usado seu laran para curar a devastação causada pela espada e pelo fogo aderente,
mas ela mesma nunca tinha estado sangrando em um campo de batalha ou sentido a
queimadura cáustica insaciável por sua carne e osso. Sua infância em Sweetwater tinha sido
preenchida com contos de guerra, mas nunca pela visão real desses assuntos.
Varzil, por outro lado, tinha conhecido a traição e a perda, tinha visto as pessoas que
amava sob um bombardeio psíquico, as próprias pedras abaixo deles em ruínas em pó, suas
mentes se recuperando da loucura. Seu melhor amigo, Carolin Hastur, havia fugido para o
exílio e tinha lutado com seu caminho para a vitória tendo um custo terrível. Durante esses
anos, quando Hali tinha sido comandada pelo primo usurpador de Carolin, Rakhal, Dyannis
temia que ela pudesse ser chamada à guerra contra o seu amigo de infância, talvez contra
sua própria família.
-Eu não sei... -Disse ela lentamente. Um arrepio passou por ela quando ela percebeu que
seus próprios turbilhões, fossem quais fossem, ainda estavam à sua frente, ainda por vir.
CAPÍTULO 08

Chegou na Torre Hali a informação de que o Rei Carolin, profundamente preocupado


com o desenvolvimento de uma nova arma de laran, pediu a ajuda de Varzil Ridenow.
Varzil, por sua vez, enviou uma mensagem a Raimon avisando que deixaria Neskaya em
direção à Hali o mais rapidamente possível.
Com a notícia de que Varzil estava chegando, algo semelhante a euforia varreu Hali.
Silenciosamente, Dyannis evitava ser confiante. Para eles, seu irmão tinha um status quase
lendário: o Guardião que tinha aparecido envolvido na glória de Aldones durante o assalto
de Hali sobre a Torre Hestral, cuja visão e poder de persuasão tinham impedido uma
catástrofe com magnitude de destruição semelhante a ocorrida entre as Torres Tramontana
e Neskaya a apenas uma geração atrás.
No entanto, haviam outros que o viam como um fraco, pacificador apenas porque ele
não tinha força para travar uma guerra. Eles suspeitavam de seus motivos e consideravam o
Pacto como um ardil, uma loucura que conduz à ruína, criada por um covarde.
Ela conhecia o temperamento de seu irmão, sabia que possuía muito mais coragem para
andar desarmado pelas terras governadas pelo ódio, como ele tinha feito e faria de novo se
fosse preciso, do que para liderar a existência segura e confortável de um Guardião comum
atrás das muralhas reconstruídas de Neskaya.
Ele virá porque precisamos dele, porque Carolin precisa dele. Pensou. Ele não vai
considerar o risco.
O que ela se perguntava é o que ela faria em seu lugar?
Os dez dias seguintes passaram rapidamente cheios de ansiedade pela chegada de Varzil.
O derretimento das neves e as chuvas de primavera aconteciam lentamente. Ele teve que
viajar a cavalo pelas Hellers e abaixo para Acosta, onde Carolin iria enviar um carro aéreo.
As correntes de vento traiçoeiras tornavam a navegação aérea impossível nas montanhas,
mesmo nas estações mais suaves.
Enquanto isso, Dyannis preparou-se para assumir a sua vez no Mundo Superior, vigiando
a estrutura que a Torre Cedestri tinha estabelecido lá, a fim de observar e analisar a energia
da fenda no fundo do lago. Ela não tinha encontrado qualquer presença humana em
qualquer uma de suas visitas anteriores, embora Cedestri devesse saber que estava sendo
observada. Uma ou duas vezes, ela tinha captado uma perturbação fraca na atmosfera, um
redemoinho de energia invisível ou uma sombra fugaz no limite de sua visão.
Com sua respiração treinada, ela lançou sua mente para o Mundo Superior. Durante os
primeiros momentos, ela vasculhou a desorientação habitual para encontrar seus
movimentos. Acima dela estendia-se algo nublado, imutável e inexpressivo, cinzenta em
todas as direções.
Isso está ficando muito familiar. Disse a si mesma. Eu tenho passado muito tempo aqui. A
parte mais difícil era a disciplina contínua sobre seus pensamentos, pois aqui, no Mundo
Superior, um impulso imprudente ou momento de irritação poderia levar a consequências
terríveis.
Uma vez que ela se sentiu estável, ela formou uma imagem mental do moinho de água
de Cedestri e esperou que ele se materializasse. Normalmente, era condensada para fora
da substância amorfa e incolor do Mundo Superior apenas a uma curta distância dela.
Desta vez, nada aconteceu.
Dyannis virou-se em um círculo completo analisando o horizonte. Talvez ela tivesse
formado uma imagem imperfeita, ou os trabalhadores em Cedestri houvessem alterado seu
formato além do seu conhecimento. Tentou de novo, procurando o fluxo de energia do
lago.
Lá estava, aquele leve toque de maldade. Como antes, ela sangrou para o Mundo
Superior, só que desta vez não havia nenhum vestígio do moinho ou qualquer outro
dispositivo para aproveitar sua força. Em vez disso, ela se espalhou como um rio ao longo
apartamentos enlameados, perdendo um pouco do seu ímpeto, mas não inteiramente
dissipando. A tensão-lavagem foi apenas redistribuída.
Embora sua pele estivesse toda arrepiada, Dyannis focou-se novamente em observar
qualquer sinal de moinho de água de Cedestri. Ela encontrou imagens fragmentadas na
parte central da câmara de poder onde a corrente ainda corria. Somente contornos
fragmentados, como um vidro quebrado, sugeria a forma da estrutura desaparecida.
Dyannis franziu a testa. Esta não era uma mera erosão com tempo e desuso. Quase nada
restou do esculpido pensamento da roda e da torre, exceto este resíduo vibracional
decadente. Quem quer que tivesse construído devia ter tido um grande esforço para
desmontá-lo.
Não havia mais nada a ser observado persistentemente aqui. Dyannis caiu de volta em
seu corpo físico e foi informar ao Guardião sobre o que havia encontrado.
No momento em que Varzil chegou em Thendara, apenas os mais fracos vestígios do
córrego e do moinho permaneciam, e eram detectáveis apenas após uma observação mais
de perto. Talvez, como Alderic sugeriu, a Torre Cedestri temia que tivesse sido descoberta,
ou seus inimigos pudesse usar a rota do Mundo Superior como um meio de sabotagem ou
ataque furtivo. Fosse qual fosse a razão, a notícia foi bem recebida por todos, exceto por
Raimon que observou que Cedestri já tinha um estoque de pó derrete-osso cristalino, ou,
eventualmente, outras armas das quais eles não sabiam ainda, e agora tinha sido alertada
de sua descoberta.
Raimon, Dyannis, Rorie e um par de servos, cavalgavam para o castelo do rei em
Thendara. Embora o dia estivesse leve, a primavera tinha tomado seu lugar, eles montaram
camuflados e encapuzados. A estrada em torno do lago e passando pela cidade de Hali era
seca e eles fizeram o percurso em bom tempo, mas Dyannis sentiu a pontada de carga
elétrica no ar. Após uma breve pausa, foi aumentando gradativamente.
Fazia algum tempo desde que Dyannis tinha ido a Thendara e agora, com os nervos já
atiçados pela tensão entre o céu e a terra, ela se perguntou se tinha ocorrido algum golpe,
um segundo usurpador do trono de Carolin para o ar da cidade estar tão alterado.
Ao contrário de Hali, Thendara era uma cidade murada, construída para a defesa. Em
tempos passados, ela tinha entrado através de um ou outro dos seus portões com apenas
um sinal de saudação dos guardas. As passagens para a cidade em si tinham sido abertas, o
fluxo de viajantes e comerciantes se tornado fluido e fácil. Ora, havia na verdade um grupo
de pessoas e animais de carga à espera no portão. Em vez de um ou dois guardas em cores
da cidade, haviam quatro, e eles se ocupavam em questionar cada pessoa e inspecionar
cada vagão e alforje.
Raimon cutucou seu cavalo à frente da linha. Ele e seu grupo estavam acima de qualquer
suspeita. Não havia necessidade para eles esperarem Mesmo se os guardas não os
reconhecessem pessoalmente, uma página poderia mostrar-lhes como Comyn.
-Alto lá! -Um dos guardas gritou, assim como vários viajantes gritaram: -Espere a sua vez!
Um homem em trajes comuns de fazendeiro correu para agarrar as rédeas da montaria
de Raimon. O cavalo, assustado, jogou a cabeça para cima e dançou para os lados. Raimon
manteve seu assento com um esforço, pois ele não era um cavaleiro habilidoso. O capuz de
seu manto escorregou, revelando seu cabelo vermelho brilhante.
Laranzu! O pensamento disparou no meio da multidão.
Rorie, que era um cavaleiro habilidoso, gritou e empurrou o cavalo para a frente,
colocando-se entre a multidão e seu Guardião. O agricultor tropeçou para trás, mas não
antes de Dyannis captar a distorção da emoção. Ela leu surpresa, o que certamente era
esperado, mas também...
...ódio? Por quê? Ela imaginou. Que mal nós fizemos para o povo comum? Nós nunca lhes
desejamos o mal. Talvez seja a doença, o cansaço da alma que vem de alguma dor grande
demais para suportar.
Antes que ela pudesse reagir, no entanto, o grupo avançou. Um dos guardas acalmou o
cavalo de Raimon, enquanto os outros quatro avançavam por eles para passar.
Dentro de minutos, eles foram levados através dos mercados periféricos ao longo das
avenidas mais amplas que levavam ao palácio de Carolin. Dyannis viu muita coisa que lhe
era familiar, mas também mudanças em todos os lugares. O inverno tinha sido cruel, ela
tinha feito a sua parte atendendo os doentes em Hali e, às vezes, em Thendara. Alguns
tinham caído com as febres pulmonares habituais do inverno, agravada pelo frio e a fome,
mas haviam também várias ondas de camponeses de uma área ou de outra afetados pelos
guerras entre agricultores cujas terras haviam sido devastadas por batalhas comuns, os
moradores com cicatrizes causadas pelas queimaduras do fogo aderente, as crianças que
tinham sido perdidas por sua proximidade com as terras ainda sob o veneno brilhante do
pó pó derrete-osso. Sempre seus esforços haviam sido recebidos com gratidão, mesmo
quando tinha sido tarde demais. Ela nunca tinha encontrado tais olhares escuros, tais
punhos rapidamente escondidos.
Certa vez, ouviu Dyannis um amargo e mal disfarçado pensamento: Feiticeiros! Ninhada
de bruxos tiranos!
O que, em nome de Aldones estava acontecendo?
-Raimon... -ela começou, mas o Guardião a silenciou com um gesto. Outro
acompanhante, desta vez vestido com as cores azul e pratados Hastur, em vez das cores da
Guarda Municipal, tinha chegado para conhecê-los. Dyannis nunca tinha gostado de estar
rodeada por estranhos cegos-mentais, mas conseguiu se manter em silêncio enquanto eles
passavam em um pátio fechado. Cavalariços levaram seus cavalos e um dignitário, mais
provavelmento algum funcionário próximo ao coridom, cumprimentou-os com uma
profunda reverência formal antes de os conduzirem para dentro.
Varzil e Carolin estavam esperando por eles na câmara formal. Varzil se levantou de sua
cadeira quando Dyannis entrou. Ela sentiu a onda de alegria ao vê-la, sua mente tão clara
como um lago na montanha em um dia sem vento. Fisicamente, ele parecia mais magro do
que se lembrava, com o rosto desenhado pelo tempo com aspereza.
Dyannis diminuiu o passo, fazendo uma reverência para Carolin. Os anos de exílio e
realeza tinham caído pesadamente sobre ele, a juventude, uma vez enérgico agora se
transformara no homem marcado pelas preocupações do seu gabinete. Ele cumprimentou-
a com calor e graça afetado, colocando-a imediatamente à vontade.
Olhando de Carolin a seu irmão, Dyannis sentiu a harmonia entre eles, a simpatia de
espírito. Eles eram extremamente unidos, pensou ela, embora muito diferentes na
aparência e temperamento. Uma paixão compartilhada os unia, cada um alimentando o
outro. Ela sentiu um pouco de inveja, pois ela não tinha esse tipo de amigo do peito.
Ellimara era a mais próxima e, mesmo assim, a diferença de idade tornava uma verdadeira
intimidade difícil.
Raimon e os outros do grupo de Hali mostraram a Varzil tanta deferência que por um
instante Dyannis se perguntou se ela deveria se curvar a ele também, antes que ela
percebesse que era uma ideia ridícula. Quando ele estendeu a mão para ela, ela a colocou
de lado, entrou no círculo de seus braços e deu um beijo em sua bochecha.
-Eu cresci, irmão, ou você encolheu? -Ela perguntou. -Devo estar quase tão alta quanto
você!
-Tão pequeno, você quer dizer! -Varzil respondeu com uma pitada de sua "auto-ironia
habitual.
-Não és tão pequeno, espero, que você não possa desvendar este enigma para nós.
-Eu estou contente em vê-la, também. -Disse Varzil, ignorando a expressão escandalizada
do outro Guardião. -Também tamanho nunca foi o fator determinante no laran, ou não
haveria esperança para qualquer um de nós.
Ela riu, feliz por ver que por mais honras o mundo empilhasse em cima dele, Varzil
mantinha seu senso de humor. Com essa mesma maneira fácil de ser, ele se virou para
Raimon, e dentro de um curto espaço de tempo, todos se acomodaram em seus assentos.
Carolin ouviu gravemente quando Raimon apresentou as últimas informações que eles
haviam reunido. Após Dyannis repetir a história sob seu ponto de vista, ele sentou-se por
um longo momento com cotovelo apoiado no braço da cadeira e o queixo apoiado nas
mãos. Seus olhos escuros pareciam com os de um falcão. Um núcleo de força, brilhante e
duro como aço, brilhou. Embora Dyannis mantivesse seus escudos de laran
respeitosamente erguidos, sentiu o quão profundamente esta notícia o perturbara.
Por fim, Carolin disse:
-Não há esperança de outra alternativa. Temos de enviar uma delegação para a Torre
Cedestri e convencê-los por todos os meios necessários a assinar o Pacto. Embora eles já
tenham drenado seu reservatório de energia, eles já possuem um estoque da nova arma de
pó derrete-osso e pouca razão para contentamento.
Varzil assentiu. Ele tinha agido muitas vezes como emissário de Carolin em tais assuntos,
de modo que agora a maioria das pessoas pensavam que o Pacto era apenas sua ideia.
-Você está certo, Carlo, mas nem estratégia, nem diplomacia vão resolver o problema a
longo prazo. Mesmo se Cedestri concordar, não há nada para parar outra Torre no futuro,
ou um círculo ilegal com a ideia de fazer a mesma coisa.
-Mas com certeza agora que Hali foi alertada, tal coisa não será mais possível de
esconder. -Disse Carolin.
Raimon sacudiu a cabeça.
-Isso so foi possível porque o lago físico estava envolvido. No mundo superior, não é
possível colocar um cão para proteger um portão. O tempo e a distância são bastante
diferentes e uma laranzu treinada pode esculpir qualquer coisa com um pensamento.
Mesmo que montássemos uma vigilância contínua de energia, ela nunca seria totalmente
segura, e isso presumindo que pudéssemos poupar os trabalhadores para tal tarefa.
Ninguém discordou dele, a Torre Hali, como tantas outras, mal tinha o número suficiente
para fazer o trabalho que era incumbido a eles. Seu atual Rei Hastur proibira o uso das
armas de laran, mas não poderia garantir uma paz duradoura.
O próximo conflito armado poderia deixar os seus recursos de cura e comunicações ainda
mais escassos.
-Temos que agir para eliminar a fonte desse poder. -Disse Varzil. -Quanto mais
demorarmos, temo, mais energia psíquica irá drenar através da fenda para o Mundo
Superior e mais instável ele se tornará.
Varzil passou a residir na Torre Hali enquanto ele e Raimon estudavam a situação, tanto
na margem do lago quanto no Mundo Superior. A notícia da presença de Varzil se espalhou
rapidamente por toda Thendara, bem como em Hali. Grupos de pessoas, moradores da
cidade e viajantes, montaram acampamento fora do castelo esperando vê-lo, antes de
serem dispersos pelos homens de Carolin.
As tempestades elétricas ficaram cada vez piores em frequência e intensidade. Várias
vezes, um raio atingia os edifícios em Thendara e Hali.
A opinião de Varzil era que as colunas em ruínas eram os restos de um enorme
dispositivo de laran, um dos primeiros da Era do Caos. Quando ele colocou suas mãos sobre
ele, há tantos anos, ele tinha recebido impressões psíquicas de seu uso. O próprio
dispositivo agiu como um ímã atraindo-o de volta para os eventos que levaram ao
Cataclismo. Ele tinha captado apenas fragmentos dessa história, duas Torres poderosas
presas num conflito mortal, cada uma usando poderes muito além de qualquer laran
conhecido hoje. Talvez suas próprias ações tivessem criado uma abertura entre um tempo e
outro, entre o mundo físico e o Mundo Superior. De alguma forma, os trabalhadores da
Torre Cedestri tinham descoberto a piscina de energia pura, instável no Mundo Superior e
tinha feito o uso que podiam dela.
-Ninguém, muito menos eu, poderia ter previsto o que viria de uma manhã num passeio
impulsivo. -Disse ele. Seus olhos tinham um foco de quem olhava para dentro de si, como
se estivesse vendo um outro tempo, outras pessoas. Dyannis sentiu uma tristeza enorme,
mas talvez isso fosse saudade do menino que ele havia sido uma vez, cheio de esperanças e
sonhos sob a luz das luas.
Todos nós já perdemos nossa inocência. Pensou.
Ele olhou para ela, um lampejo de compreensão tão rapidamente esquecido, de que sua
própria impetuosidade poderia ser uma tentativa de permanecer como ela fora uma vez,
jovem, impetuosa e talentosa, com todo o mundo antes era e nenhuma tragédia ainda
podia escurecer seus passos.
Por fim, Varzil e Raimon formularam uma estratégia. Para selar o escoamento da energia
a partir do lago, eles deveriam reparar a fenda, o portal para o Mundo Superior. Ao fazê-lo,
havia uma boa chance de que eles pudessem ser capazes de reparar o dano ao próprio lago,
para reverter o Cataclismo. Uma excitação percorreu a Torre com esta notícia. O lago,
restaurado, se tornaria um símbolo de esperança, de cura, ainda mais potente do que a
reconstrução da Torre Neskaya tinha sido.
O preparativos foram rapidamente concluídos e um círculo montado. Embora o trabalho
laran fosse geralmente feito à noite, para minimizar a distração de pensamentos dispersos
e conversas psíquicas, este círculo se reuniria à luz do dia na costa do lago.
Dyannis levantou-se cedo naquela manhã, animada demais para conseguir dormir. Junto
com Varzil, Rorie e os outros, ela fez seu caminho ao longo da margem do lago. Varzil
liderou o caminho à procura de um lugar que fosse plano o suficiente para ser um local
confortável e, ao mesmo tempo, um condutor de energia claro através das correntes da
nuvem-água para o fundo do lago. Por fim, ele os parou.
O plano de Varzil era começar o trabalho como um círculo unido, com Raimon na posição
centripolar como Guardião. Uma vez que uma ressonância adequada de espírito fosse
criada, Varzil iria descer para o lago com Alderic como seu assessor. Então ele iria
estabelecer uma ligação física com as colunas e seria capaz de receber o poder e
concentração do círculo.
Dyannis tomou sua posição, com Raimon de um lado e Rorie do outro. Ela ficou a oeste,
com o sol quente na parte de trás de sua jaqueta. Houve apenas um pouco de brisa, mas
carregava o cheiro do pequeno roxo e flores que arraigavam nas dunas. Algumas mechas de
seu cabelo se soltara do fecho de borboleta na nuca, roçando sua bochecha. Tal dia com tal
círculo e tal visual seria parte de ações que bardos que cantam por uma época.
Dez dias se passaram e Thendara crepitava com uma escalada de tensão. O ar cheirava
com relâmpagos não expressos. Eduin sentiu medo e suspeita quando ele foi para as ruas.
Murmúrios de "reis bruxos!" e "feitiçaria que se dane!" o enchiam de alegria. Pela primeira
vez em mais anos do que ele podia se lembrar, ele tinha esperança... esperança de justiça,
esperança de vingança, a esperança de que, finalmente, o fantasma de seu pai iria
descansar.
Quando Saravio falou, usando palavras que tinham cuidadosamente ensaiado em
conjunto, as multidões se tornaram maiores e mais inquietas. O número de pessoas
doentes que faziam o seu caminho para a Torre Hali diminuiu, e aqueles que tentaram a
viagem agora suportavam os olhares tensos de desespero misturado com terror.
Dia a dia, com o inverno derretendo na primavera, a cidade fervia. Eduin podia senti-la
como um animal enjaulado, chegando cada vez mais perto do ponto de ruptura.
As tempestades elétricas, depois de uma breve pausa, continuaram a aumentar em
gravidade. Dizia-se que o círculo na Torre Hali estava trabalhando para controlá-los, mas
Eduin não ligava para isso, apenas usava isso para incentivar as pessoas a culpar as Torres.
Se o tempo estranho distraiu o Hali'imyn da fabricação de cerveja revolta sob seus narizes,
tanto melhor. Quanto mais tempo eles se concentrassem em seus próprios assuntos, mais
bravo e mais imparável seria o levante. No entanto, nada, nem mesmo seu notável sucesso
no aproveitamento dos ressentimentos chiando da população, poderia ter preparado Eduin
para a próxima notícia.
Uma noite, Eduin e Saravio estavam sentados trabalhando nos próximos discursos no
quarto dos fundos de Pena Branca.
A noite era suave e eles tinham deixado a estreita janela aberta, permitindo um fio de ar
fresco. Os restos de uma refeição simples, bandeja de madeira ainda úmida com sucos e
guisado, migalhas de um grosseiro pão de nozes e um copo vazio, cobriam a mesa
maltratada. A única lanterna encheu a sala com luz amarelada.
Uma batida soou na porta. Os músculos de Eduin se contraíram e ele hesitou antes de
falar...
-Quem é?
Um de seus seguidores mais dedicados, o agricultor cujo braço tinha sido mutilado por
fogo aderente, do lado de fora. Curvou-se como se fossem da nobreza.
Eduin indicou para que entrasse. A excitação trouxe um resplendor ao rosto do homem e
ele gaguejou um pouco.
-Mestres, me desculpem incomodá-los a esta hora. Estive preocupado todos os dias
desde que eu ouvi tal coisa e eu não tinha certeza se deveria esperar, mas então eu disse a
mim mesmo, é melhor fazer papel de bobo do que deixar escapar.
Eduin estava prestes a dar uma resposta, quando Saravio disse em sua voz mais suave:
-Se você veio a negócios, amigo de Naotalba, então você não precisa ter medo. Nós
somos todos os seus servos.
Os olhos do homem brilharam à luz da lanterna.
-Não sei sobre Naotalba, mas eu sei sobre a maldade das Torres. É por conta deles que
eu vim.
-Você tem notícias sobre algumas novas obras da Torre? -Eduin perguntou, sua irritação
dando lugar à curiosidade. -Diga-nos, homem!
-Eu só venho no lugar de Moran. O primo de sua irmã conhece um dos ajudantes de
cozinha da Torre e ele diz que o maior feiticeiro de todos eles, Varzil, o que eles chamam de
bom, chegou a Hali. Agora toda Torre estará com ele. Mas ele não pode ser bom se ele é um
deles, não é? Nenhum deles pode ser confiável!
Por um instante, Eduin não podia acreditar no que tinha ouvido. Varzil, que ele tinha
pensado estar além de seu alcance, estava aqui!
-Por que Varzil viria aqui? -As palavras caíram da boca de Eduin. -O que ele pretende
fazer? Existe alguma palavra sobre o motivo?
-O primo da irmã de Moran diz que ele vem para se encontrar com o outro demônio em
Hali para trabalhar algumas feitiçarias no lago, mas eu não sei o quê. Eu ouvi dizer que as
águas estão enfeitiçadas. -O agricultor tremia visivelmente. –Não... gente importante não
poderia ir vir sem uma causa.
-O leronyn de Hali não pode fazer qualquer dano maior ao lago do que já foi feito, -
Saravio disse severamente -nem mesmo com tão poderoso Guardião como Varzil.
-Você tem certeza... certeza de que é Varzil? -Disse Eduin. -E eles irão trabalhar fora, no
lago?
-Sim, eu não estou enganado nisso. É por isso que eu vim para vê-los, para ver se há
alguma coisa que devemos fazer para impedi-lo. Quem sabe o que irão fazer a seguir?
Puxar para baixo as luas sobre nossas cabeças?
-Não com Naotalba para protegê-lo. -Disse Saravio. -Disso você pode estar certo. Você lhe
serviu bem em todas as coisas. Vá agora em paz.
O fazendeiro saiu coberto de elogios com o rosto erguido de orgulho pelo feito.
Eduin abaixou-se no banco frágil com sua mente girando. Varzil, a céu aberto, sem as
defesas das paredes ou a imensamente poderosa blindagem de uma tela de matriz!
Varzil ... aqui!
Isso não era certo ainda, é claro, as fontes do agricultor poderiam ter-se enganado. No
entanto, a menção do lago concedeu-lhe credibilidade. Se a notícia fosse verdadeira...
Varzil vindo para cá?
Ao seu alcance... ao alcance do exército do povo comum que tinha sido moldado no
exército de Naotalba!
Naotalba, trazendo seu inimigo, sem saber, a sua porta...
Uma forte sensação de temor varreu o íntimo de Eduin. Ele nunca se considerou um
homem religioso. Porque os deuses permitiriam as atrocidades causadas à sua família e a
tragédia de seu próprio exílio? Aldones, o chamado Senhor da Luz, foi uma bênção para os
crédulos, mas foi Zandru que concedeu-lhe um entorpecimento temporário à dor. Ele tinha
pensado que a devoção de Saravio para Naotalba era uma ilusão, o reflexo de uma mente
doente. O sopro da noiva de Zandru agora arrepiava sua pele, causando arrepios gelados
que se espalharam até para o núcleo de seus ossos.
-Meu amigo, você está se sentindo mal? -Saravio perguntou. Ele devia ter demonstrado
algo, pois há muito tempo Eduin tinha se convencido que Saravio não poderia receber a
telepatia. Mas, em compensação, suas habilidades empáticas eram extraordinárias. Ele
podia "ler" uma multidão melhor do que o Guardião mais altamente treinado.
Eduin ergueu-se.
-Não, mal não. Estou mudo, pela glória da nossa deusa.
-Naotalba falou novamente com você? -Os olhos de Saravio brilhavam com avidez.
-Você não pôde vê-la? Ela nos trouxe juntos e colocou-nos à frente de seu exército,
pronto para atacar a seu comando. E agora ela trouxe seu inimigo ao nosso alcance. Tudo
está a caminho.
-Seu inimigo? Quem é o inimigo Naotalba que devemos derrubar?
-Quem mais? Varzil Ridenow, protetor de Neskaya e Senhor de Hali. -Eduin não poderia
ocultar a amargura de sua voz e ele não tentou. –O traidor, bajulador dos Hasturs,
personificação de tudo o que está podre entre os Comyn.
-Então, se é a vontade de Naotalba, iremos triunfar. -A voz de Saravio tremiam quase
num riso. -Mesmo que eles se reúnam no lago para fazer seu trabalho profano, vamos cair
sobre eles. Vamos limpar a terra desta ameaça maldita. Com o nosso triunfo, as pessoas em
toda parte se levantarão contra os bruxos reis. Um novo tempo começará!
Saravio continuou, mas Eduin ignorou suas palavras. Em vez disso, Eduin estava
pensando que ele teria de se mover com cuidado, mantendo as barreiras de laran mais
fortes do que nunca. Varzil era astuto e um telepata forte. Varzil não deveria ter nenhum
indício de sua presença, nenhum aviso. Eduin não tinha planos de revelar-se. Seu exército
sem rosto, o exército irresistível de Naotalba, liderado pelo desavisado Saravio, iriam fazer
o seu trabalho.
CAPÍTULO 09

Durante toda a noite a multidão ficou no edifício. A cada algumas horas, os guardas de
Carolin ordenavam a sua dispersão, mas ela se reagrupava como uma besta com várias
cabeças, em alguma outra parte da cidade, cada vez mais irritada e inflexível do que antes.
Eduin observava a cena a partir do telhado da casa de um simpatizante. Ao longo das vias
sinuosas e praças, os mercados abertos, ele via homens carregando tochas como faixas de
brilho contra a noite manchada de tinta, mas para cada um que era visível ele sabia que
haviam dezenas ou mais ainda escondidos, sombra nas sombras.
Desde o anoitecer Saravio tinha trabalhado incansavelmente entre eles. Ele tinha ficado
rouco repetindo as frases como Eduin o havia instruído, até que as palavras voltavam
amplificadas cem vezes pela frustração fervendo na sarjeta. Muitas dessas pessoas foram
arrancadas de suas casas e famílias por guerras entre os Hastur’s, mas muito mais deles
simplesmente tiveram suas vidas levada a um interminável desespero sem sentido. Agora,
quando olhavam para os palácios cintilantes do Comyn, as Torres de contos de fadas
brilhando com luz e calor, viam a razão da sua miséria.
Eles permanecem ociosos enquanto nós passamos fome... sua feitiçaria tem arruinado
nossas fazendas, feito de nossos animais estéreis, aleijado nossos filhos, trazido nossos
bebês deformados para o mundo...
Os céus clamam contra o seu mal...
Todo o tempo Saravio dava forma a sua raiva como um padeiro dá forma a um pedaço de
massa, empurrando-a aqui, puxando-a para lá, fermentando com levedura e lágrimas até
que finalmente a sua hora havia chegado.
Com o nascer do sol, os portões para Thendara abriram. O exército de Naotalba deixou a
cidade em pequenos grupos. O local de encontro designado, numa encruzilhada, era
suficientemente além do portão de Hali, estando além do fácil alcance dos homens de
Carolin. Os guardas da cidade não fizeram nenhum movimento para impedi-los quando eles
saíram. Eles queriam mesmo os encrenqueiros fora da cidade.
Eduin os seguiu movendo-se no anonimato da multidão. Tinha dormido pouco naquela
noite e Saravio nem um pouco, mas essa irritação não era nada comparado aos olhos
injetados de loucura que ele viu nos olhos da multidão. Ele sentiu sua raiva como um pavio
à espera de uma faísca.
-Não haverá mais bruxos reis! -Eles exclamavam.
Na longa madrugada eles uniram forcados, aduelas, toras de madeira... Outros
trouxeram armas, arcos e flechas, facas, e pareciam saber como usá-las.
-Fim das Torres! Fim da perversão da natureza!
Saravio estava numa pequena elevação acima das encruzilhadas. Como eles tinham
planejado, ele usava uma túnica branca com cinto de segurança com um capuz. Eduin
lançou um débil glamour de modo que a forma de Saravio brilhava quando ele levantou os
braços.
-Abaixo os demônios das Torres! Não haverá mais tiranos!
Por conta própria um punhado de homens tinham feito uma figura de palha suja em cima
de um poste e a envolveram em tiras de pano vermelho. O saco em torno de sua cabeça
tinha sido pintado com um olhar bruto, quase obsceno, e um pedaço de vidro quebrado foi
pendurado em uma corda em volta de seu pescoço.
Eduin recuou. Saravio tinha conseguido além de suas expectativas. Ele tinha
transformado essas pessoas em uma arma mais potente do que qualquer fogo aderente.
Suas mentes, visto através o espaço psíquico, alcançaram os padrões frenéticos, virando em
direção a loucura. Eles tinham ido além do pensamento racional. Nada iria detê-los, não
haveria argumento, nem fome, nem feridas físicas para detê-los, pois, quando um caísse,
dez tomariam seu lugar. Eles não iriam parar até que eles tivessem derrubado as pedras da
Torre Hali, não enquanto eles tivessem vida e respiração.
Por um momento os homens se voltaram à paródia de um Guardião que tinham feito.
Eduin apertou sua estrela-pedra para manter o foco e usou seu laran para inflamar a palha
seca que explodiu em chamas. A multidão gritou em um instante de terror.
Vários dos homens mais fortes aproveitaram e levantaram-na bem alto, levando-o para a
frente. Por insistência mental de Saravio, eles começaram a gritar...
-Abaixo Hali! Abaixo Hali!
Em momentos toda a multidão se precipitava para baixo na estrada que levava à Torre.
Para chegar lá, eles teriam que passar pelo lago onde, se os últimos relatórios fossem
verdadeiros, Varzil estaria esperando.

A energia do círculo já era familiar para Dyannis, eles estavam de pé ao ar livre ao invés
de sentados em uma câmara de matriz protegida. Raimon e Varzil tinham escolhido um
trecho de areia a poucos passos do alcance das ondas superiores. Ela respirava o ar úmido
com orvalho, com o aroma da relva e flores de pouco crescimento que tinham se
estabelecido sobre as dunas. A manhã estava calma ao redor deles e ela descobriu que o
grito ocasional de um pássaro, em vez de oferecer uma distração, só aumentou a sua
disponibilidade e concentração.
Dyannis fechou os olhos para concentrar melhor sua mente. Como os outros, ela usava
sua pedra-da-estrela contra sua pele nua. Raimon deu o sinal para começar. Ele os uniu
juntamente com o seu toque fresco mental, como uma luz. Ela reprimiu sua excitação,
estendeu a mão para as pessoas com as quais tinha trabalhado por tanto tempo, tão
intimamente, e mergulhou nessa relação. Sua respiração se aprofundou. O mundo físico
diminuiu, de modo que ela não sabia mais se estava em pé ou sentada, se era dia ou noite,
inverno ou verão, ao ar livre ou enclausurada dentro da Torre.
Quando Varzil e Alderic se afastaram do círculo, foi apenas como uma ondulação
perturbado a unidade. Raimon os tinha unido de tal forma que a separação física poderia
afetar pequenos fragmentos da consciência, mas não iria alterar o elo essencial. Dyannis
estava na margem do lago, unida com os outros do círculo, e, ao mesmo tempo, ela viajava
com seu irmão e amigo através das camadas da nuvem-água.
Dyannis se sentiu flutuando, como se o universo prendesse sua respiração. A única
realidade era o ritmo e textura do pulso psíquico do círculo.
Através da lente dos pensamentos de seu guardião, ela sentiu o progresso. O poder
brilhou através da rede que os unia. Tão intensa era a sua concentração que ela perdeu
toda a noção da passagem do tempo.
Varzil alcançou as colunas e, através delas, a fissura de energia. Dyannis sentiu como uma
laceração, um rasgamento da carne do mundo. As águas tinham sua forma estranhamente
alteradas, parecida com lágrimas, como se a própria Darkover chorasse pelo que tinha sido
feito aqui.
Estamos aqui para curar essa ferida.
A esperança a atingiu como uma oração silenciosa para que tal cura fosse possível, de
que pudesse ser concedido a ela o poder de fazê-lo. Ela ansiava por ver o brilho do lago com
a verdadeira água sob o grande sol rubi, e além dele, a Torre Hali se erguendo ao céu, para
unir o céu e a terra.
Ele surgiu para ela em um entendimento sem palavras que era a característica de seu
laran de ver o invisível, compreender o imaterial, reparar as agonias do próprio mundo. A
própria palavra donas indicava algo concedido em um estado de graça. Hastur, filho do
Senhor da Luz, de quem os dons fluíram, não tinha sido tanto Deus quanto mortal?
O vínculo do círculo se aprofundou com suas mentes unidas focalizadas através de um
Guardião e ligadas a outro Guardião abaixo. Como um único ser, eles respiravam o ar e a
nuvem-água. Como um, a vida e o tempo fluíam através deles. Como um, eles deixavam
toda a diferença e injustiça em um lugar além do Mundo Superior.
Imagens giravam através da consciência compartilhada, pálidas como o vidro, fluidas
como a água. Dyannis viu outra dobra no círculo sobre uma matriz maior do que qualquer
coisa conhecida inundando o ambiente com uma estranha luz azul. Relâmpagos dançaram
sobre eles, acima de picos nevados.
Nessa visão águas se elevaram e uma tempestade chicoteou. Algo escuro movia-se
abaixo da superfície. Dyannis tentou olhar mais de perto, mas não tinha poder para retirar-
se já que ela estava em seu círculo no nível mais elementar de seu ser. Sua forte
determinação rígida como granito varreu através dela e ela reconheceu o toque da mente
de seu irmão. Com ele, ela desceu ainda mais, não só através do lago físico, mas nas visões
do passado.
Com apenas um momento de hesitação, Varzil aproximou-se da escuridão disforme.
Santa Mãe, Abençoada Cassilda, Aldones Senhor da Luz, estejam com ele agora!
Embora Dyannis não estivesse acostumada com a oração formal, o pensamento explodiu
nela. Ela se agarrou a ele como um talismã contra o terror.
Na pulsação seguinte, a escuridão se fechou em torno dele. Todo o senso da realidade
física, o chão rochoso, a forma pálida das colunas caídas, o frio da nuvem-água
desapareceu.
Ela sentiu um vazio absoluto e desumano. Nem mesmo uma pulsação perturbava o vazio.
Ela flutuou através dela, paralisada, impotente.
Respirar ...
Sussurrou através de sua mente, talvez a partir dos recantos mais profundos de sua
natureza ou da consciência resultante da fusão do círculo.
Respire por Varzil.
O menor indício de um tremor passou pelo círculo e no momento seguinte a escuridão
mudou, ficando mais fina. Ela se deixou levar e sentiu à parte o que separa as trevas deste
mundo e do tempo da escuridão do outro.
Respirar...
Com cada inalação, o círculo desenhava em energia e a cada expiração, dividia o vazio.
Como Varzil havia feito isso, ela não poderia dizer, separando algo tão insubstancial e
essencial como a escuridão, cada porção no seu devido lugar.
Respire...
A escuridão recuou a cada respiração. A corrente de energia que vazava para o Mundo
Superior reduziu-se a um fio e depois a nada. A violação foi selada, os mundos mais uma
vez estavam separados.
Eles haviam feito isso. Ele tinha feito isso.
No entanto, Varzil não fez nenhum movimento para se retirar. Ele manteve sua posição,
ouvindo e sentindo. O círculo se tornou como uma rede de pescador, tênue, fina e forte
como a teia de uma aranha, bem aberta para apegarem-se as águas.
Houve uma excitação... Ele estava tentando mudar as águas de volta à sua forma natural!
A rede ficou tensa quando a pressão no interior foi formada. A névoa agitou, correntes
de afluência voltavam sobre si mesmas. O poder livremente fluiu a partir do círculo e
através dos Guardiões unidos. Em vez de espuma, bolhas transparentes se formaram,
assumindo a clareza de água pura.
-Morte! Morte! Morte!
Um arco irregular de dor disparou através do círculo, quebrando a unidade entrelaçada.
Os desgastados fios líquidos de poder laran decapitados chicotearam livres. Corações
dispararam, pulmões engasgaram com o ar.
Dyannis balançou sobre seus pés. A luz ofuscava, o céu ficou esbranquiçado, formas a
rodeavam que dançam em uma visão presas entre os reinos psíquicos e materiais. As cores
estavam distorcidas e formas fundidas, areia e plantas em crescimento, o carmesim de
peças de vestuário de uma Guardiã. Um som de um choro tão distorcido que parecia não
humano a golpeava ela.
Ela captou apenas por um instante uma pitada de laran treinado, um lampejo de
reconhecimento.
Eduin! Como poderia ser?... depois de todos esses anos...
-Matem a descendência do demônio!
-Não haverá mais feitiçaria!
-Abaixo Hali!
Novamente veio o estrondo, como um tambor ressoando...
-Morte! Morte! Morte!
...sobrepondo tudo, uma sombra pairando como uma mulher velando de preto. Olhos
como cacos de gelo luminoso brilhou com pálida malícia desumana.
-Morte! Morte! Morte!
Dyannis girou, cambaleante, para enfrentar uma parede de homens, rostos vermelhor,
olhos selvagens, erguendo diversos tipos de armas. Ela tinha deixado cair suas barreiras
completamente quando fundiram-se em círculo e agora sua mente estava totalmente
aberta. Um caos fervente de emoção invadiu seus sentidos interiores: o calor metálico de
ódio corria livremente, manchas de amargura erguiam-se, desespero por anos ocultado e o
emocionante choque da vitória.
-NA-O-TAL-BA! Morte! Morte! Morte!
Por um momento terrível, Dyannis foi esmagada, varrida, rasgada em pedaços. Cada
fragmento foi um choque de agonia e raiva, o gosto e o cheiro de uma vida separada. Ela
não sabia quem eram esses homens e, no entanto, naquele instante, ela tornou-se cada um
deles. A maioria era um borrão, uma ressonância de histórias contadas ou mentes tocadas
em seu trabalho de cura ou de sua infância no rancho de Sweetwater. Alguns ela não tinha
nenhuma referência de suas aparências, eles poderiam ter sido Homens-ya pela estranheza
com que se pareciam a ela. Por um instante, algo brilhou em sua mente confusa como a
alta nota pura de uma flauta...
Laran!
Treinado como aço temperado... familiar, infestando-se...
Aguarde! O comando mental de Raimon chocou em sua mente através do círculo.
Aguarde? Segurar o quê? Ela captou a resposta atordoada.
Mãos agarraram-na. Dedos cravaram em seu braço. Seus músculos pareceram pó nesse
contato físico repentino, pele contra a sua própria calejada.
Ela engasgou. O ar queimou em sua garganta.
Seu instinto assumiu. O laran que correra por ela durante o trabalho do círculo irrompeu
em energia coruscante. Arabescos branco-azulados atravessaram a pele exposta do braço
com o aperto do seu agressor.
Com um grito, o homem atirou-se para trás, soltando-a. No lugar de uma mão, ele
segurava uma garra enegrecida ao peito.
-Bruxa maldita! -Alguém gritou.
-Abaixo os feiticeiros! Matem todos eles!
A sombra escura de uma mulher inclinou-se sobre a multidão, a capa esvoaçando ao
vento para abranger todos eles.
Mesmo quando a multidão gritava seu ódio eles hesitavam. Olhando para cada lado,
Dyannis viu que o círculo de Hali tinha se reformado depois de um tempo, desta vez
voltados para fora. Ela estendeu as mãos para cada lado na criação de uma esfera de
proteção de energia em torno de si mesma e de seus amigos. Eles ainda estavam unidos em
harmonia, ainda parcialmente na esfera psíquica.
Varzil caiu no lago, cortado de seu suporte de ancoragem. Ela enviou uma chamada
mental, embora isso significasse deslocar seu foco de rostos irados e punhos levantados
diante dela.
Saia daí!
Devo... acabar...
Sua resposta tropeçou, distante, como se o próprio ato de formar um diálogo mental mal
fosse possível.
Varzil sempre foi teimoso desde suas mais antigas memórias sobre ele. Uma vez que ele
decidia uma coisa, nem mesmo seu pai, com o forte temperamento que tinha, poderia
dissuadi-lo. Quanta confusão tinha havido sobre seu treinamento em Arilinn! O velho Dom
Felix tinha feito uma oposição tão feroz que só vontade tenaz de Varzil poderia superá-lo.
Desta vez ele deve ouvir! Ele não deve arriscar-se.
Não haveria outra chance... Pedras, algumas delas do tamanho de punhos, outros
punhados de pedras e torrões de terra, caíram em cima do círculo. Um acertou Dyannis na
lateral da testa. Ela sentiu o impacto num instante de dormência, em seguida, o avanço de
calor como se tivesse sido atingida por um carvão em chamas. Algumas gotas úmidas
caíram. Um instante depois, uma segunda leva de ataque foi lançada.
Ela sentiu a seta cortar o ar antes mesmo de ouvir o som de seu lançamento a partir da
corda. A dor explodiu atrás de seus olhos. Ela cambaleou ofegante. A multidão correu para
frente, toda a cautela sumiu, e um segundo voo de flechas caiu sobre o círculo.
O instinto mantinha Dyannis sobre seus pés, quando a primeira dor e agonia
desapareceram e percebeu que ela mesma não era a única atingida pela seta.
RORIE!
A visão interior e exterior moveu-se para um único foco. Rorie tombou sobre si mesmo,
com o tórax trêmulo, num movimento lento, caindo sobre suas pernas dobradas. Dyannis
correu para o lado dele mais rápido do que havia se movido em qualquer época de sua vida
e segurou-o assim que ele bateu no chão.
Não!!! Não Rorie!
Seu peso era demais para ela, mas conseguiu manter ele em uma posição quase sentada.
Em seus braços, Rorie lutava para respirar. Com uma mão, ela acariciou a pele de sua
garganta. Ela sentiu a ferida como se fosse nela mesma. Sentiu o caminho da flecha, a
ponta entre as costelas, o pulmão perfurado entrando em colapso, a hemorragia dos vasos
rompidos... Não houve grande corte de artérias, graças à abençoada Cassilda!
Alguém atrás dela gritou de forma tão distorcida que Dyannis não poderia dizer qual de
seus amigos era.
A multidão avançou. Um miasma aumentou a partir deles, cheirando a sede de sangue e
loucura. Um metal brilhava... crescente... mortal... a lâmina fina de uma faca.
Outra seta acertou na terra ao lado de Dyannis. Um tom carmesim inundou sua vista,
deixando um vazio... Raimon! Sem seu Guardião o círculo foi fraturado. Um frio a
atravessou como se a figura fantasmática gerada pela multidão tivesse tocado sua pele com
o hálito congelado dos infernos de Zandru.
A adrenalina correu pelo corpo de Dyannis. O ultraje foi demais para ela. Como se
atrevem a levantar a mão contra um círculo lutando para salvar seu mundo? Como eles
ousam prejudicar seu amigo, um laranzu a quem eles deveriam reverenciar? Como eles
ousam?
Zandru amaldiçoe a todos!
O céu pairava sobre ela, o planeta abaixo dela, e entre eles estava o resíduo de imenso
poder psíquico. Varzil poderia ter cortado a sua fonte no fundo do lago, mas o suficiente
dela permanecia ali para seu propósito.
Com um rugido, como uma avalanche nas Hellers, a multidão correu para a frente.
Dyannis jogou seu corpo todo sobre Rorie para protegê-lo. Pela lateral de sua visão, ela
vislumbrou Lewis-Mikhail lidando com um homem empunhando um martelo de madeira.
Os outros tombaram ou tombariam em breve. Ela não conseguia sentir a mente de Raimon.
Como eles ousam?
Dyannis fechou os dedos em torno de sua pedra da estrela e estendeu a mão para a
energia acima dela. Em um espasmo de fúria, ela inspirou-se em imagens no fundo de sua
mente, os piores pesadelos de infância que ela pudesse se lembrar. Quando ela tinha
quatro anos, seu irmão Harald assustou-a com histórias de animais horríveis, e ela tinha
despertado gritando a cada noite por um mês depois.
Contra a figura sombria da mulher acima da multidão ela convocou um dragão saído das
lendas que conhecia... um enorme réptil, sinuoso e alado... e projetou-o para as mentes da
multidão. Seu laran treinado atingiu-os sem nenhuma resistência quando alcançou suas
mentes com seus escudos fracos.
Ela acrescentou mais detalhes, cada um com cores mais vivas e horríveis. Uma cabeça
afilada no dragão e olhos de fenda com pupilas brilhantes. Asas agitaram o ar com poeira
de uma chicoteada da cauda com seus espinhos farpados. De suas presas pingavam gotas
de veneno incandescente.
Como se fossem um só, a multidão parou seu ataque e recuou com os olhos levantados e
os braços erguidos. Seus gritos de raiva se transformaram em gritos de terror. A partir de
um único movimento para frente do dragão, alguns correram em círculos, outros
dispararam a esmo, e alguns caíram de joelhos ou agacharam com as mãos cobrindo o
rosto. Alguns, que ainda confiavam em suas armas, ficaram. Um ou dois prepararam seus
arcos visando novamente o círculo.
Dyannis agarrou a pura energia da confusão de emoções... e medo... e a utilizou para
aumentar a força da imagem saída de um pesadelo. As garras do dragão afiadas, sua forma
sinuosa curvando-se para baixo... Ela acrescentou sons como o silvo da asa e das garras no
ar, o ruído de seus movimentos, um surdo trovão...
A multidão falava sem parar num pânico irracional e então a multidão perdeu força.
Forcados e arcos caíram no chão. Homens empurravam-se, pisando nos corpos caídos de
seus companheiros em sua pressa.
Dyannis enviou o dragão atrás deles soltando faíscas congeladas das garras. Sua
consciência estava no alto com este monstro de sua própria criação, olhando para os
homens tolos. Vingança emanava dela como chicotes congelados de Zandru marcando
também seu coração.
Os deixarei fugir, os tolos patéticos que pensavam que podiam levantar a mão contra um
leronyn das Torres! Vê-los rastejar no pó, arranhando, tropeçando, balbuciando de medo,
não é mais do que merecido!
Ela abriu a boca de seu dragão e um hálito como um fluxo incandescente, mas frio, frio
como a respiração do próprio inferno, ficou à mostra. Os homens que permaneceram
espalhados abaixo balbuciavam espantados com a criatura fantasmagórica. Aqueles que
ainda possuíam qualquer vestígio de racionalidade fugiram. Com outra explosão de
maldade do dragão, ela permitiu a fuga deles e voltou sua atenção para aqueles que ainda
estavam no chão. Alguns estavam espalhados ou enrolados, de joelhos dobrados e os
braços cobrindo seus rostos.
Presa indefesa, pronta para a captura.
Sombria, cruel e exultante, ela mergulhou em direção a eles.
Dyannis!
O nome explodiu em sua mente, um som tão estranho que, por um momento, ela não
poderia dizer o seu significado. Um nome... o dela? E uma voz que ela sabia que devia
reconhecer...
Dyannis! Desfaça-o! Agora!
As palavras passaram através dela estrondando, como se ela estivesse subitamente
dentro de um enorme sino de ressonância. Ela fez uma pausa no vôo. A cacofonia de horror
e fúria do campo abaixo a atingiu. Através deles, ela sentiu a dor de uma flecha prateada,
garras metálicas cravando profundamente na carne...
...convulsão de um coração, peito tomado por uma pressão invisível, pele pegajosa com
forte suor...
Lady Obscura, o que eu fiz?
A forma de dragão se desintegrou como se nunca tivesse existido, deixando apenas o
céu.
Dyannis piscou, olhando ao seu redor. Rorie estava inconsciente em seu colo. Sua
respiração era lenta, sua pele fria, mas não estava morto ainda. Ela tocou sua mente, sentiu
a quietude do transe de cura. O sangramento havia quase parado. Lewis-Mikhail, intocado,
estava ajudando Raimon. O sangue emaranhava o cabelo sobre a testa do Guardião e
escorria na lateral de seu rosto, mas seus olhos estavam claros e focados. Ele estava
atordoado, nada pior, e ela sabia por sua formação como monitora que as feridas no couro
cabeludo sangraria livremente por um tempo, apenas isso. Os outros membros do círculo
pareciam ilesos.
Tudo ao redor, homens, alguns em trajes de agricultores, usavando trapos esfarrapados,
estavam como se tivessem sido derrubados por uma mão gigante. Ela viu agora que havia
mulheres entre eles. Uma mulher se agachou ao lado de uma figura de cabelos brancos
caído que gemia.
Isso era a guerra? Dyannis nunca tinha montado para a batalha junto com os exércitos de
Carolin. Suas mãos foram automaticamente para seu rosto e ainda assim ela não poderia
cobrir os olhos ou desviar o olhar.
Em toda parte ela viu corpos enrolados em agonia ou amassados e desconexos como
brinquedos descartados. Havia pouco sangue, e só o fedor ocasional onde um homem na
sujeira. Havia um miasma, uma mau cheiro, pendurado como um véu cinza ao longo da
margem do lago. Debaixo havia um silêncio terrível, o silêncio após a batida final do
coração, o último suspiro estremecido.
Eu fiz essa coisa.
CAPÍTULO 10

O frio atingiu Dyannis, náuseas e tremores através de seus ossos e um entorpecimento


da pele ao redor da boca. Se ela não agisse rapidamente, ela iria desmaiar. Ela não merecia
esse luxo, ela, cuja raiva tinha causado a devastação à sua frente. Baseando-se em seu
treinamento na Torre, ela firmou seus nervos. Ela sugou o ar profundamente para seus
pulmões. Sua pulsação martelava em seu crânio, mas sua visão clareou.
Rapidamente, ela avaliou a situação. Não havia nada que ela pudesse fazer para Rorie.
Ele já havia entrado em um estado de função corporal reduzida que iria sustentá-lo até que
o cuidado adequado chegasse. Raimon, com a ferida do couro cabeludo escorrendo,
segurou sua pedra da estrela entre as duas mãos, olhando para suas profundezas, usando
seu laran para entrar em contato com a Torre Hali em busca de ajuda.
E Varzil, abaixo da nuvem-água turbulenta, isolado de todos eles...
Eu estou bem, irmã! Veio a voz mental, clara e forte. Ela percebeu que tinha sido ele
quem a chamou de volta e quebrou sua raiva assassina. Não há tempo a perder. Você deve
ver o que pode fazer por aqueles que estão feridos.
Sim, devia haver algo que pudesse fazer para esses pobres coitados. Ela correu para o
mais próximo e se ajoelhou. Pela contração de seus membros ele ainda estava vivo. Os
arredores dos olhos estavam brancos e suas pupilas dilataram quando uma sombra passou
por seu rosto. Ele era surpreendentemente jovem, ainda rapazinho, seus dedos marcados
por calos e a mão rachada e cinza com o solo. Ela tocou uma lateral, usando o contato físico
para alcançar a sua mente.
Você está seguro. Nada pode prejudicá-lo.
Após um longo momento, o rapaz fechou os olhos. Seus tremores diminuíram e as mãos
relaxaram. Ela pensou que ele iria cair num sono de exaustão, mas ele preparou-se para
ficar sentado. Sacudindo-se como um cão, ele olhou ao redor.
-Domna, vos agradeço. - Quando falou ele parecia ainda mais jovem do que antes, com a
sua voz, um leve tenor e sotaque.
Dyannis descobriu que não podia olhar em seus olhos.
-Você está bem o suficiente para me ajudar os outros?
-Claro e eu sou forte. Sempre assumi minha parte de trabalho na fazenda toda vez que os
homens do rei passavam. Meu irmão foi embora para ser um soldado. – A amargura correu
como um contraponto através das palavras do menino. Um soldado, seu silêncio disse, na
guerra de entre reis, tombado sob a espada, feitiço ou fogo aderente, e nunca voltou para
casa.
Com o barulho e a corrida, um grupo de pessoas de Hali veio correndo. Servos, novatos e
até mesmo a pálida Ellimara. Um dos homens no terreno recuperou o suficiente de sua
inteligência para alcançar um forcado e estocar em Lewis-Mikhail. O laranzu olhou para o
homem que caiu de joelhos chorando. Dyannis não viu mais do confronto, pois Ellimara
correu até ela.
-Temos de ajuda-los ou dar-lhes uma morte rápida... aquele homem está tendo um
ataque de coração!- A voz feminina de Ellimara parecia aço em tamanho terror.
Dyannis percebeu que o homem era velho devido a seus cabelos claros pelo tempo. Ele
era o único que ela tinha visto a partir do alto, inclinado sobre a mulher morta, lamentando
sua perda. Tudo parecia tão diferente agora quando ela olhava através da multidão caída.
Vozes se elevavam sobre ela, gemendo, chorando, clamando nomes que ela não conhecia.
Sua mente ainda estava aberta e os farrapos de seu medo estremeciam através de seus
pensamentos.
Quando Dyannis se aproximou, a mulher ficou mais visível. Sua expressão era
irreconhecível, como se o horror houvesse destruído todo o sentimento humano. Os lábios,
rachados e pálidos do homem moveram-se por um momento antes que ele forçasse um
som.
-Demônio... Mantenham longe...
-Eu estou aqui para ajudar. - Dyannis disse passando pela mulher e ajoelhou-se ao lado
do homem.
-Você ... nunca...
Por baixo da barba branca e grossa a pele do velho estava um cinza farináceo. Dyannis
colocou seus dedos ao longo do pulso e sentiu a pulsação. No entanto, naquele breve
momento de contato a pele tornou-se mais densa ainda. Ela pegou sua pedra da estrela
com uma mão, colocou a outra contra o peito do homem e concentrou seus sentidos de
laran. Através das camadas do tecido grosseiro, os músculos antes fortes e a costela já
arqueada, ela mergulhou num resquício de consciência. No calor sem luz de seu corpo seu
coração lutava, fibras musculares alongavam-se, apertavam-se, como ratos na sombra de
um falcão, cada uma movendo-se em seu próprio ritmo díspare.
Ela sabia o suficiente para reconhecer o que estava acontecendo e saber quão pouco
tempo ela tinha para agir. Como qualquer outro novato em Hali, ela tinha treinado pela
primeira vez como monitora. Ao longo dos anos, ela tinha servido como curadora muitas
vezes, mas nunca em um caso tão grave e complexo como este. Ela podia limpar um vaso
sanguíneo bloqueado, poderia aliviar a falta de oxigênio dos tecidos, mas isso estava além
de seu poder e, ao mesmo tempo, restaurar o ritmo normal do coração. Mas, não fosse
tratado, isso iria tirar sua vida.
Ellimara! Ela gritou mentalmente, esperando descontroladamente que a mulher mais
jovem fosse capaz de responder e já não estivesse concentrada no relacionamento de cura
com a outra vítima. Ellimara, me ajude!
Ela não pode deixar o doente, veio voz mental calma de Varzil. Eu vai dar-lhe a ajuda que
puder.
Dyannis viu sem olhar para cima que, embora Varzil só estivesse subindo os bancos de
areia do lago, em sua mente ele estava ao seu lado em todos os sentidos que importavam.
Ela baixou as barreiras, para que ele pudesse ver e sentir tudo o que ela fazia.
Temos de parar seu coração, Varzil disse, e iniciá-lo novamente.
Sim, isso fazia sentido. Ela reuniu o poder psíquico que a atravessa, ainda forte mesmo
depois dela ter recolhido o resíduo de tensão elétrica no ar, e enviou para percorrer o
coração do velho homem. O empurrão aleatório e a contração das fibras musculares foi
interrompida, minuciosamente aliviando a mancha escura das células moribundas. Ela
esperou um momento, até ter certeza de que todo o movimento cessara, que o coração
estava completamente em repouso.
Desse jeito mesmo. O poder de Varzil estava levemente sobre ela, como se ele
gentilmente pousasse as mãos em cima dela. Ela lançou um raio de energia através do
coração do velho, começando no pólo superior, onde normalmente a contração começaria.
Varzil veio e debaixo dela, varreu através dela, levando-a como uma das ondas do lago
durante uma tempestade.
Ela esperou por um longo momento e depois outro, ouvindo e esperando. Nem um som
ou uma sugestão de movimento surgiu. Ela aprofundou o contato mental, dolorosamente
ciente de que a cada segundo a força de vida do homem diminuía. Com sua visão interior,
ela viu o coração não como um objeto sólido do tamanho de seu punho, um músculo-
vermelho e afilado, mas como uma camada de luz. Luz que agora desaparecera de sua
vista. Uma ou duas vezes, ela pensou ter visto um brilho fraco, como o rastro de uma
estrela cadente, mas não mais do que isso.
De novo! Varzil disse.
Embora parte de sua mente já lamentasse a partida do velho, que tudo seria inútil, ela
convocou todas as suas forças para outra tentativa. Ela não poderia ter feito isso sem a
insistência de Varzil a sua força e poder. Mesmo com sua mente unida à dela, ela sentiu seu
próprio desespero. Por um instante, ela parecia estar no Mundo Superior, observando a
figura de uma mulher de cabelos vermelhos diminuir na distância, desejando correr atrás
dela ainda sabendo que ela nunca iria alcançá-la, nunca chegaria a ela, nunca tocaria ela.
Com o segundo choque, um tremor percorreu o corpo envelhecido. Nervos e fibras
musculares se iluminaram num rendilhado de fogo. Dyannis ouviu uma única batida como
de um tambor, fazendo um eco profundo e de uma grande distância. Se foi o último golpe
de coração do velho, ela nunca poderia dizer, mas depois veio um silêncio mais escuro e
mais profundo do que jamais imaginou. Ela sentiu-se caindo para ele, acolhendo-o,
amparando-o...
Quando algo como uma mão enorme estendeu-se e agarrou-a, ela voltou a si mesma
com um suspiro. O brilho e o ruído a atingiram. Com voz rouca uma mulher gritou:
- Ele se foi! Ele se foi!
- Você fez tudo o que podia. - Disse uma voz familiar.
Dyannis olhou para o rosto de seu irmão. Ele estava um pouco além do homem morto,
suas roupas encharcadas, cheias de mato e o rosto contraído, desgastado além de seus
anos. A compaixão brilhava em seus olhos.
Algo dentro dela cedeu. Ela caiu sobre o corpo do velho. A culpa levou a espasmos que
agiam através dela.
Tudo o que eu podia? EU causei isto em primeiro lugar... a morte e o tormento! Como eu
pude? Posso dar a vida desse homem velho de volta ou limpar as memórias deste dia das
mentes dessas pessoas?
Varzil também não sabia como ajudar, não havia nenhuma informação prévia para isso.
Não havia teinado seu laran nas torres para uma situação como essa que tinha causado
tanto mal a tanta gente. Palavras vazias de conforto não ajudariam.
É tudo obra minha, minha! MINHA!
- Dyannis Ridenow, leronis e comynara, não se comporta com tanta histeria e auto
indulgência! - A voz de seu irmão atacou como sal em seus nervos execrado. - Há trabalho a
ser feito em homens e mulheres que ainda não estão além de nossa ajuda!
Suas bochechas pinicaram vermelhas de vergonha e Dyannis se endireitou. Não havia
necessidade de responder por que qualquer coisa que ela dissesse em sua defesa só iria
condená-la ainda mais. Ela aprumou-se e foi executar as pequenas medidas de restituição
que podia. O julgamento certamente viria, mas neste momento, ela teria que esperar.
Dyannis perdeu a noção do tempo, monitoramento, auxiliando os curandeiros, fazendo
curativos de feridas, e oferecendo as palavras de conforto que podia dragar de sua mente
cada vez mais insensível. Mais ajuda chegou depois do que pareceu uma eternidade,
homens e carrinhos do Rei Carolin. O rei também enviou seus próprios médicos de uso
doméstico e leronyn’s.
Varzil assumiu o comando da operação atribuindo recursos, conferindo com os
monitores a respeito de que homens e mulheres estavam em maior necessidade e
deveriam ir para a Torre, ou voltar para a cidade, e quais estavam bem o suficiente para ir
sobre por conta própria depois de uma noite de descanso e uma refeição quente.
- Você deve avisá-los que, por algum tempo, eles podem ter pesadelos ou ver coisas que
não estão realmente lá. - Ele disse a Dyannis e aos outros. - Isso não será simples,
impulsionado pela fome e injustiça. Essas pessoas foram ofuscadas por uma força além da
minha compreensão. Eu posso sentir um laran estrangeiro por trás de seus pensamentos,
como se um laranzu renegado os tivesse estimulado a este ataque, mas há algo mais,
alguma influência maléfica que eu nunca encontrei antes.
Dyannis notou que ele não disse nada sobre seu contra-ataque, sobre como ela havia
abusado de sua formação e seu laran. A essa altura ela estava cansada demais para se
importar. Ela se arrastou de volta para a Torre, recusando a oferta de uma montaria e
engolindo de volta uma resposta quando Lewis-Mikhail sugeriu que ela fosse em uma
maca, como Rorie tinha ido. Varzil já tinha castigado ela, e com razão, por se entregar a sua
própria auto-recriminação pessoal. Ela não tinha o direito de exigir atenção especial ou
consideração.
Na manhã seguinte, embora ela mal tivesse dormido e forçado apenas alguns bocados de
comida, ela desceu para a enfermaria para trabalhar. Ellimara, que estava no comando
naquela manhã, pediu para ela ir de volta para a cama.
- O que você acha que está fazendo? – A mulher mais jovem perguntou. - Como você
acha que vai servir alguém se você ficar doente pela desatenção aos princípios mais
elementares de cuidado? E não me diga que a sua saúde é sua para abusar da forma que
quiser, Dyannis Ridenow, pois somos todos nós necessários aqui.
Muda e infeliz, Dyannis fez o que lhe foi dito.
Dias se passaram. Dyannis dormiu e comeu, como tinha sido ensinada, escapando ainda
mais da censura de Ellimara, e esperou o que viria a seguir.
Durante esse tempo, ela acordou muitas vezes de sonhos fragmentados, revivendo o
ataque. Às vezes, ela era enterrada em uma avalanche de urros, rostos distorcidos, todos
clamando suas acusações. Ela caia em corredores onde cada porta se abria e hordas de
escorpiões-demônios corriam para fora, apunhalando-a com pinça e ferrão. Outras vezes,
ela tornava-se a perseguidora, buscando esse lampejo de laran’s treinados na massa de
mentes em fuga. Uma vez que, quando ela se esforçou para tocá-lo, uma respiração fora de
seu alcance, ela se viu de volta em uma memória real, encontrando-se nos braços de Eduin
na noite do Festival de Inverno. Ela acordou tremendo, confusa, excitada. Sua mente, sob o
ataque de recriminação e exaustão, retirou-se um pouco para um momento mais feliz, ou
Eduin tinha estado lá, em meio à turba?
Não havia nenhum vestígio de Eduin a tanto tempo. Ela deve ter imaginado esse
momento de reconhecimento. Quando ela mencionou isso para Varzil, ele pareceu
pensativo, mas não fez nenhum comentário.
Finalmente, o pior dos casos, os homens e mulheres que tinham se retirado para os
pesadelos dentro de suas próprias mentes, cujos corpos haviam sido presos em espasmo
catatônico, havia sido julgado que estavam bem o suficiente para retomar suas vidas
novamente, ou outras soluções foram dadas para aqueles poucos que nunca iriam se
recuperar. O velho era um dos três mortos. Uma mulher pulou de uma janela alta na Torre,
embora nunca tenha ficado claro como ela teve acesso a tal janela saindo da enfermaria;
uma jovem dolorosamente magra, mal saída da adolescência, escapuliu para a morte
silenciosamente em seu sono, seu corpo crivado de tumores. Era um mistério como havia
sobrevivido tanto tempo.
Eu cometi um erro que nunca poderia ter sido cometido por qualquer homem ou mulher
de bem. Dyannis repetiu para si mesma e se jogou de volta para o esquecimento do
trabalho.
Ela sabia racionalmente que a morte do garoto não era culpa do que havia feito, mas as
três vidas pesavam em seus ombros como se fossem de chumbo. Ela sentou-se com cada
um desses corpos antes que eles fossem levados para o enterro, gravando suas
características em sua mente, a folga das mandíbulas e olhos encovados, a pele com
aspecto da morte, repetindo para si mesma que este foi o resultado de seu desafio
intencional de todas as regras de ética na utilização do laran. Contra todos os treinos,
contra toda a decência, ela usou seus poderes sobre as mentes dos homens comuns e estas
mortes, e toda a angústia que os outros tinham sofrido, eram o resultado.
Eu NUNCA deverei esquecer nem por um instante que essas pessoas pagaram o preço por
minha imprudência.
Mais do que isso, ela tinha violado o Pacto, ao qual todos os membros da Torre Hali
tinham aderido. Ela tinha usado seu dom como uma arma para matar homens indefesos à
distância, enquanto ela permanecia imune a qualquer contra-ataque.
Quando um servo veio à sua câmara com uma convocação de Raimon, Dyannis soube
que o momento do julgamento havia chegado. Ela encontrou-se estranhamente iluminada
pelo pensamento de que em breve a espera acabaria. Ela saberia o pior, seria submeter-se
voluntariamente a sua punição.
A voz de Raimon era gentil quando ele convidou-a para entrar. O sol estava bem depois
do meio-dia e a câmara agradavelmente iluminada. Um pequeno fogo cintilava na lareira.
Três cadeiras tinham sido colocadas em torno da lareira. Raimon ocupava sua favorita que
era de madeira tão antiga que parecia preta. Suas mãos pálidas descansavam nos braços.
Varzil, na segunda cadeira, tinha um sorriso de boas-vindas. Dyannis sentou-se na
terceira, pensando que era um arranjo muito confortável para uma audiência tão grave.
Talvez eles quisessem colocá-la à vontade, para receber melhor a sua confissão de culpa.
- Chiya, você parece tão sombria. - Disse Varzil em um tom suave, depois que as cortesias
habituais tinham sido trocadas. - Você ainda está cansada depois de trabalhar tão duro?
- Por favor, não brinque comigo, vai tenerezu! Eu espero que você seja misericordioso a
este respeito, embora eu não mereça isso mais do que qualquer outro nesta posição.
Ela sentiu a cintilação quando Varzil e Raimon trocaram uma dúvida mental. Eles deviam
estar cientes de que ela tinha murado-se contra todo contato telepático. Ela decidiu fazer
isso muito cedo após o desastre, quando a plena realização de seus crimes ainda estava
fresca. Ela tinha abusado de seu laran e, portanto, deveria ficar distante sem nenhum dos
seus privilégios de seu dom por ser indigna.
Varzil ergueu as sobrancelhas e ela se perguntou se ele tinha captado um pouco de seu
pensamento, mesmo através de suas barreiras. Ele era talvez o mais poderoso telepata de
seu tempo, e certamente o mais desconcertante. Nesses tempos ele conseguiu dividir o
Comyn entre os que o apoiavam com entusiasmo selvagem e aqueles que queriam vê-lo
morto. Agora, ele se acomodou em sua cadeira e voltou sua atenção para Raimon, como
Guardião residente.
- Dyannis, não temos a intenção de atormentar você. Disse Raimon em sua voz calma,
tranquila. Houve um silêncio sobre ele, uma clareza de espírito, que lembrou Dyannis das
histórias que tinha ouvido sobre seu sangue chieri. - Nos foi pedido para rever os
acontecimentos do ataque no Lago Hali.
Ela prendeu a respiração, inconscientemente, preparando-se.
- Não há necessidade de elaborar as acusações contra mim. Eu vivi com elas a cada hora,
acordada ou dormindo, desde então. Confesso que eu usei meu laran contra o meu
juramento e todos os princípios de integridade da Torre, invadindo e oprimindo as mentes
de pessoas comuns. - Ela fez uma pausa, preparando-se. - Como resultado três pessoas
perderam a vida e outras incontáveis sofreram danos que vão levar pelo resto de seus dias.
- Você se condena, então? - Disse Raimon.
- Eu não posso pensar de outra forma. - Embora ela quisesse mais do que qualquer coisa
esconder a cabeça com vergonha, ela manteve seu olhar firme, inabalável. - Varzil, eu não
tinha certeza sobre seu Pacto antes disso. Agora eu vejo que é o melhor. Eu sei... o que eu
fiz e o que significa, eu... – A voz dela falhou. - Eu traí nossos mais altos ideais. Eu...
perdoem-me, eu não mereço, mas...
- Já é o bastante. - Raimon interrompeu em um tom que lembrava Dyannis de como
Ellimara a tinha repreendido. - Esta é uma situação única, com o juiz tentando persuadir o
acusado da possibilidade de sua inocência. Entendemos que você sente remorso por suas
ações. Isso é natural e lhe concede um crédito. Uma pessoa de escrúpulos inferiores teria
deixado o incidente de lado, alegando toda a glória e nenhuma responsabilidade. Mas é
igualmente errado fazer o contrário.
Dyannis levou alguns momentos para compreender o significado do que Raimon disse.
Ele estava dizendo que havia glória no que ela tinha feito? A honra do açougueiro? Ela seria
elogiada com o heroísmo de uma fada caçadora?!
- O que você acha que teria acontecido se você não tivesse agido como agiu? - Raimon
prosseguiu, imperturbável. - Indefesos, vulneráveis, em menor número, o círculo tinha
pouca chance de sobrevivência. Em vez de três mortes, nenhuma delas deliberada, não
teria sido uma dúzia. - Ele fez uma pausa, olhando para Varzil dizendo mentalmente: e mais
um, que é vital para o futuro de Darkover.
- Eu... eu não pensei...
- É claro que não. Como você poderia pensar nisso tudo no meio do ataque de todas
aquelas pessoas? Ou se você tivesse pensado, por algum feito sobre-humano, conseguido
raciocinar, o que mais você teria feito? Seu instinto era teria agido assim? Sua ação rápida
salvaria a todos nós?
Dyannis ficou em silêncio, mas suavizou suas barreiras de laran para permitir o contato
telepático.
O que você diz pode ser verdade, mas não pode absolver a minha culpa.
Não, - o Guardião respondeu mentalmente - não pode. Ele disse em voz alta: - Você veio
ouvir meu julgamento?
Este era o momento Dyannis estava esperando.
- Então ouça meu veredito, Dyannis Ridenow. Você, de fato, fez uso indevido de seu
laran, contra seu juramento, o Pacto e os princípios mais fundamentais da Torre. Você
violou as mentes das pessoas para os seus próprios fins, causando, assim, grande dano
duradouro . Você traiu uma sagrada.
Dyannis tremia, cada palavra cortando mais profundamente do que um chicote de
navalhas. Suas bochechas queimavam e ela queria desesperadamente levantar as mãos
para cobri-las, mas se manteve imóvel. Ela não tinha previsto a profundidade de sua
vergonha. Era uma coisa enumerar seus erros dentro da privacidade de sua própria mente,
e outra bem diferente era ouvi-los ditos em voz alta com tal franqueza intransigente.
Todavia não era mais do que ela merecia. Através da picada de lágrimas, ela manteve o
rosto erguido e lábios pressionados firmemente juntos.
- Embora você seja culpada desse ato, - Raimon continuou - você também cometeu um
ato heróico que salvou muitas vidas, e você têm lutado incansavelmente para ajudar essas
mesmas pessoas que foram atacadas sem ser obrigada por ninguém. Na verdade, se o
monitor não exagerou , você esteve perto de colocar sua própria vida e saúde em risco. É
meu veredito como seu Guardião que você compensou e pagou sua dívida. Você está livre
de qualquer obrigação adicional neste assunto.
Dyannis olhou para ele com os olhos borrados quando suas palavras cessaram. Tinha
certeza de que ela não poderia ter ouvido corretamente. Como ele poderia absolvê-la de tal
coisa? Como depois do que ela tinha feito... Algo que nenhuma leronis de qualquer Torre
faria...
Raimon não deve ter entendido a enormidade de sua transgressão. Talvez o golpe na
cabeça tinha lhe prejudicado de alguma forma. E ainda assim ele era o seu detentor, o
laranzu a quem tinha feito seu juramento. Ela tinha concordado em submeter-se a seu
juízo, nunca pensando que poderia ser muito mais brando do que o de seu próprio pai.
- Será que você deseja dizer algo sobre isso? - Raimon perguntou.
Dyannis de repente ficou ciente de quanto tempo tinha se passado. As lágrimas que
encheram seus olhos agora estavam secando em cima suas bochechas. Ela balançou a
cabeça.
Não é suficiente, nunca será suficiente. Mas não há nada que eu possa fazer sobre isso
agora.
- Chiya. - Disse Varzil. A ternura em sua voz era evidente. - Você julga-se muito
duramente.
- Eu sei o que eu fiz. - Ela respondeu. Suas palavras saíram baixas e roucas, embargadas
pela imensidão de suas emoções.
Não, - ele respondeu telepaticamente - eu acho que não. Escute-me. Existem forças em
ação aqui, poderosas e ocultas. Nem todas elas podem ser humanas. Nós, que somos
dotados com laran muitas vezes erramos ao acreditar que somos nos elevados em visão e
entendimento acima dos homens comuns, mas não é assim. Há destinos que moldam
nossas vidas às vezes até mesmo o mais sábio de nós não pode conhecê-los todos. Eu
certamente não, e eu sei mais desta história que qualquer um de nós. Mas uma coisa eu sei.
Muitas coisas foram postas em movimento há muito tempo e ainda não entraram para
descansar. A fenda debaixo do lago é apenas uma delas, e sua resolução ainda não está
completa, não enquanto a Torre Cedestri ainda possuir as terríveis armas que ela criou com
esse poder.
Ela assentiu com a cabeça. Isso era verdade. O pó derrete-osso de Cedestri deveria ser
destruído.
Nós vemos o mundo através de um buraco de uma fechadura, - Varzil continuou - e
mesmo quando nós nos esforçamos para vê-lo de outra forma, ele muda diante de nossos
olhos. Nós só podemos fazer o nosso melhor com essa pequena parte que podemos ver. Sua
história ainda não está terminada. Seu trabalho deverá continuar. Você pode aceitar isso?
Com um esforço, ela encontrou sua voz.
- Vou servir em qualquer coisa que eu puder. - Não seria suficiente, mas era tudo o que
podia fazer.
Varzil sorriu, sua expressão repetida por Raimon.
- Então, quando você se recuperar um pouco mais, você vai andar comigo para Cedestri,
e lá nós faremos o nosso melhor para acabar com este mal antes que se espalhe ainda mais.
CAPÍTULO 11

Passos soavam na rua, o grupo da Guarda da Cidade Thendara movimentava-se


apressadamente. Eduin encostou-se na parede de pedra bruta de uma rua lateral, mal
ousando respirar. A escória Hastur estava buscando algo com todo vigor, vasculhando a
cidade por qualquer vestígio dos manifestantes da costa do lago. Ele e Saravio haviam
fugido, junto com a multidão, de Hali todo pelo longo caminho de volta a Thendara, apenas
para serem caçados aqui também.
Os ecos da Guarda sumiram na distância e uma lassidão doentia desceu mais uma vez no
beco, uma mistura de lixo e desespero. Acima, uma janela se abriu e uma mulher feia com
um lenço sujo na cabeça jogou um balde de lixo no beco. Eduin desviou para evitar o
respingo nocivo, mas não rápido o suficiente. Ele estava desacelerando, seus reflexos e
laran estavam desgastados pelo dia de catástrofe.
Ele tinha voltado do lago firmemente temeroso que alguém do círculo, especialmente
Varzil, o reconheceriam. Era impossível disfarçar o laran incomum de Saravio, assim Eduin
esperava que a turbulência psíquica da multidão mascarasse qualquer traço de
personalidade individual. Saravio tinha sido tão recoberto pela imagem mental de Naotalba
que Eduin duvidou que ele seria reconhecido como humano, de qualquer maneira.
Mesmo agora, quando todos os seus planos tinha dado em nada e ele se escondia como
um coelho-de-chifres caçado, Eduin lembrou-se da onda de alegria quando ouviu falar que
Varzil estava vindo. Como ele tinha contado as horas, os batimentos cardíacos.
Cuidadosamente, ele havia preparado suas forças. Individualmente os mendigos não
tinham chances contra um círculo da Torre. Mas jogar um número suficiente deles contra
os leronyn’s, distraído em sua tarefa, e até mesmo o círculo de Guardiões poderia ser
vencido.
Lembrou-se de pensar como ele iria pisotear Varzil abaixo dos mil pés do exército de
Naotalba. Ele sonhava em contemplar os restos esmagados e sangrentos de um homem
que estava entre ele e a liberdade, o único homem que havia roubado seus sonhos, a sua
felicidade.
No fundo do seu ser o triunfo se erguia. O sussurro em sua mente tinha cantado como
prata.
Tudo tinha seguido de acordo com o plano. A multidão tinha até improvisado uma efígie
de um Guardião e a incendiado. Uivando, eles correram para o lago. Eduin, seguindo atrás,
pegou apenas um vislumbre dos trabalhadores da Torre ali reunidos. Como eles eram
presunçosos, seguros em seu privilégio. Eles não tinham sequer se preocupado em definir
um vigia, apenas se preocupando com seu trabalho. Era típico de sua arrogância presumir
que seu trabalho era tão importante e eles próprios tão reverenciados que ninguém ousaria
perturbá-los!
Quando a concentração do círculo foi quebrada, quando temor arraigou na ralé da Torre
dissolvendo-se na torrente da raiva popular, quando a vitória era quase certa... só então
Eduin percebeu que Varzil não estava na praia.
Impossível! Eduin tinha pensado. Ele devia ter vindo para baixo com o círculo!
Então Eduin baixou as barreiras de laran, lançando-se sobre a sua presa. Ele tinha
captado a energia de Varzil embora a turbulência da nuvem-água estivesse carregada de
energia.
Mas como chegar até ele? Eduin se perguntava. Seria melhor esperar Varzil vir ao auxílio
de seus semelhantes? Ou ele deveria se arriscar descendo para o lago atrás dele? Naquele
momento, ele tinha se tornado vulnerável ao contra-ataque do círculo. Ele tinha julgado
que não haveria nenhum perigo real devido a estarem desorientados. Pelo menos dois
deles, incluindo o seu Guardião, tinham sido derrubados sob ataque de pedras e flechas.
Ele estava errado.
Imagens tinha explodido em sua mente, um dragão ardente, brilhante e em cores vivas.
O choque de suas escamas e o cheiro nocivo do veneno pingando de suas presas encheram
o ar. Instantaneamente, ele reconheceu-o como uma alucinação causada por laran. Seu
poder e fúria roubou seu fôlego. A multidão, sujas mentes eram débeis e indefesas,
tagarelavam, gritavam de terror. Eles jogaram as armas ao chão. Alguns entraram em
colapso e convulsões.
Eduin tinha erguido firmemente suas barreiras psíquicas. Alguns feitiços ultrapassaram,
como padrões brilhantes vistos através das pálpebras fechadas. Ele tinha ficado muito
tempo longe de uma torre, mas poucos telepatas em sua memória poderiam ter criado, e
mantido, tal projeção.
Então, ele tinha captado uma marca inconfundível de personalidade, uma mente que ele
jamais teria conseguido bloquear-se totalmente contra ela.
Dyannis Ridenow.
Quando eles tinham sido amantes, há tantos anos, ela era apenas um aprendiz.
Talentosa, sem qualquer dúvida, mas ainda não formada com a disciplina necessária para
levar os dons a um nível mais poderoso. Na época, ele não se preocupou com o seu
potencial como uma leronis. Tudo o que importava era a ligação de coração entre eles.
Ele havia lutado muito contra si mesmo, mas acabou caindo de amor por Dyannis
Ridenow, irmã mais nova de Varzil o Bom que agora era conselheiro, defensor e apoio
fundamental de seus inimigos jurados. Ele havia conhecido Dyannis em no Festival do
Solstício de Inverno, em Hali, onde ambos eram convidados de Carolin Hastur, então ainda
um jovem príncipe. Ela era muito jovem, generosa de coração e ela o amava sem se
preocupar com sua falta de linhagem ou conexões poderosas. De todas as pessoas que
conheceu durante seu tempo nas Torres, só ela tinha oferecido uma aceitação tão pura e
pouco exigente.
Mesmo após uma separação de anos, Eduin lembrou como a esperança aumentou
dentro dele naquela época, a visão de si mesmo como algo que não fosse um instrumento
da vingança de seu pai.
Tudo tinha resultado em nada, como devia ser. Não havia espaço em seu coração ou em
sua vida para qualquer coisa além da vingança. Em desespero, ele orou para ter esse amor,
essa doçura mortal, amor traiçoeiro, tirado dele.
Eles tinham estado juntos de novo, brevemente, durante o seu período em Hali, quando
ele secretamente procurou a genealogia dos Hastur atrás de qualquer vestígio da prole da
rainha Taniquel. O encontro tinha sido uma mistura desconfortável de desejo antigo e
novas ocultações. Ela tinha deixado ele seguir seu próprio caminho em investigar sua
mudança. Claramente ela havia se tornado uma poderosa leronis, igual a qualquer outra
que ele tinha conhecido, capaz de explodir imagens horríveis nas mentes de muitos.
No momento em que a tinha reconhecido no lago, ele havia se retirado quase em pânico,
submergindo-se na tempestade de emoções comuns, esperando desesperadamente que
ela não o notasse. Se fosse conhecido, ou mesmo surgisse uma suspeita de que a multidão
foi liderada por um laranzu renegado...
Não. Mesmo pensar na possibilidade de tal coisa era cortejar o desastre. Era muito
melhor deixá-los acreditar que os anos de pobreza, os detritos de tanto conflito civil,
tinham levado homens comuns à uma revolta. Enquanto isso, ele e Saravio deveriam
encontrar uma maneira de sair da cidade. E logo, antes que os caçadores fechassem ainda
mais o cerco.
Mais uma vez, ele está além do meu alcance.
Eduin seguiu seu caminho pelo beco, em uma rua estreita, dobrando ao longo de um
caminho tortuoso. Não havia avenidas aqui, nenhuma passagem direta a partir de uma
extremidade dos viveiros para o outro. Esta parte da cidade era mais maltrapilha do que o
lugar onde Saravio já havia alugado o quarto, parecendo ter crescido como um tumor,
camada sobre camada desalinhadas.
Eduin encontrou Saravio sentado em torno de um fogo feito com lixo, junto com um
punhado de estranhos. Em vez de sua habitual capa com capuz, Saravio usava uma jaqueta
muito remendada e um tampão feito malha que cobria seu cabelo brilhante. Ele balançava
para trás e para a frente, os braços em torno de si mesmo, murmurando baixinho. Desde o
dia do motim, ele tinha passado horas a cada dia assim, despertando apenas quando Eduin
o obrigava a alguma ação. Pelo menos, as suas palavras faziam tão pouco sentido, sendo
mais balbucias do que um verdadeiro discurso, que havia pouca chance de traição.
O ar da noite era úmido e frio. Homens e mulheres usavam panos escuros com a sujeira,
seus rostos avermelhados da exposição à bebida. O cheiro doce agitou os seus desejos, mas
Eduin afastou-os. Ele poderia se esconder, mas ele não podia desaparecer. Seus recém-
despertados sentidos laran sentiu o aumento do prazer de suas mentes, o resquício das
manipulações de Saravio.
Ele faz isso sem pensar, como um reflexo, porque eles estão com dor. Eduin pensou.
Como fez comigo. Ele não considera as consequências.
Saravio, com as mãos estendidas para as chamas, olhou para cima. Ele afastou-se da luz
do fogo e inclinou a cabeça para perto de Eduin.
- Temos que deixar a cidade de madrugada. - Disse Eduin em voz baixa. – No portão da
cidade o tráfego de comerciantes que viajam nesta época é tão denso que poucos são
questionados.
Saravio assentiu e Eduin pensou se ele tinha entendido. Seus amigos lhes tinham dado o
que poderiam poupar. Um pouco de dinheiro, comida, um cobertor ou dois... Eles iriam a
pé, indistinguíveis de quaisquer outros refugiados, mancando de volta para onde quer que
eles tivessem vindo depois de não encontrar nenhuma esperança em Thendara.
- Venha. - Disse Eduin. - Devemos estar prontos antes do amanhecer se queremos nos
colocar no meio da multidão.
Ele captou a ponta do pensamento meio formado de Saravio.
Thendara estava perdida para eles. Naotalba havia abandonado os seus servos. Apenas o
vínculo entre os dois impedia Saravio de se render totalmente ao desespero. O próprio
instinto de Eduin para a sobrevivência o estimulou, pensando em correr e se esconder,
esperando que a caçada afrouxasse o cerco, e acima de tudo, suportando mesmo quando
não havia esperança.
Mas havia esperança. Eduin podia sentir o cheiro no ar, mesmo em meio à fumaça
gordurosa, o fedor de lixo e seco, carne ensopada e cerveja. Movia-se nas sombras sob a
lua em um sonho a meses, a força de seu coração quando ouviu que Varzil tinha descido de
sua fortaleza em Neskaya.
Ele esteve quase ao meu alcance. E o que aconteceu uma vez pode voltar a acontecer.
O escorpião em sua mente sacudiu suas pinças...
Morte... e Eduin estremeceu.
Uma ideia agitou. Eduin virou-se para Saravio, caminhando ao seu lado.
- Nós não prevalecemos agora, mas aprendemos algo de vital importância para a causa
de Naotalba. Você não quer saber o que é?
O queixo de Saravio ergueu-se.
- Que os homens não podem ser confiáveis.
- Nada disso. Estes homens teriam morrido por ela. Alguns morreram, se os relatórios de
Hali são verdadeiros. Não. Agora sabemos a identidade do chefe dos seus inimigos. A única
pessoa com o poder de ficar contra ela.
- Quem é esse homem? - Saravio piscou, pálido. - Não vi ninguém nesse círculo capaz de
uma coisa dessas.
Ele parecia ter esquecido sua discussão anterior sobre Varzil.
Eduin queria sacudir Saravio.
- Você não se lembra? - Disse ele com os dentes cerrados. - Ele estava dentro do lago,
usando seus poderes arcanos contra nós, aproveitando a energia do próprio Zandru,
tormento de Naotalba, para desafiá-la.
Saravio deu uma guinada, travando rapidamente o equilíbrio. Ele encostou-se em um
nicho sombreado entre dois edifícios em ruínas e baixou a voz para um sussurro.
- Varzil, o Bom? É verdade que alguma força profana foi levantada contra nós. Será que
ele serve ao Senhor dos Infernos Congelados? Eu pensava que ele servia a Aldones.
Eduin agora lamentou trazer os deuses para a conversa.
- As aparências podem induzir todos nós ao erro. Talvez a gente aprenda a superar este
Varzil. Temos que aprender mais. Por hoje, devemos agarrar-nos a nossa sobrevivência,
mas está claro que para a vitória de Naotalba e morte de Varzil é necessária.
- Vitória para Naotalba. – Saravio rosnou.
- E morte de Varzil. - Eduin respondeu.
- Como Naotalba deseja.
Eduin teve de se contentar com a conversa, pois ele não conseguiria mais conversar com
Saravio naquela noite.
Na manhã seguinte, Eduin e Saravio passaram pelo Portal dos comerciantes, rodeados
por animais de carga carregados, famílias em carroças puxadas por pares de chervines,
vendedores ambulantes a pé curvados sob o peso de suas embalagens de brinquedos e fitas
para os compradores do país, um vagão de barris de cerveja vazias, uma trupe de músicos
em sua caravana alegremente pintados, e um grupo de crianças, algumas delas prováveis
fugitivas.
Nos primeiros dias havia muita gente na estrada. Eles viajavam sem um destino claro, seu
único objetivo era ficar fora do alcance dos Hastur.
Ao falar com os seus companheiros de viagem, Eduin percebeu que tinha pouca
necessidade de disfarçar o seu interesse em Varzil. Os comerciantes, que levavam notícias,
bem como produtos de venda, tinham muito a dizer. Alguns até falavam sobre monstros no
lago Hali. Varzil tinha ido até o lago em Hali, pensou Eduin, mas não para lutar com
monstros das profundezas. Nem tinha convocado qualquer um, embora o dragão ilusório
realmente parecesse vir do sétimo inferno de Zandru. Com algumas imaginações, o motim
no lago seria transformado em algum outro evento totalmente diferente. A missão de Varzil
agora parecia ser restaurar o lago e ele era o arauto de uma nova era.
As crianças começaram a se agrupar em torno de Saravio. Algo em sua simplicidade
gentil os atraiu. Os mais jovens, em particular, eram fascinados por seus cabelos e barba e
brincavam com ele sobre o que havia por baixo.
Depois disso, Eduin raspou o couro cabeludo de Saravio e enterrou o cabelo. Era apenas
uma medida temporária, mas diminuía as chances de serem descobertos.
Ruidosamente uma companhia de soldados vestidos com o azul e prata dos Hastur surgiu
na estrada. Os viajantes mexeram-se abrindo caminho para eles. Por um momento Eduin
entrou em pânico e mergulhou em uma cerca viva. Ficou amontoado ali, tremendo, até que
o barulho dos cascos desapareceram. Só então ele notou os arranhões em seus braços,
rosto e no tecido do seu já gasto vestuário.
Quando ele se juntou aos outros, Saravio olhou para ele, mas não disse nada. Pela
aparência dele seus companheiros de viagem perceberiam que ele era um fugitivo. Seu
próprio instinto de se esconder o havia traído. Felizmente, eles voltaram para seus próprios
assuntos e não fizeram perguntas. No entanto, eles poderiam muito bem se lembrar de seu
comportamento dias próximos dias e poderiam querer tirar qualquer proveito nisso.
Eu estive na cidade por tempo demais, pensou Eduin. A maior parte de sua vida, ele havia
sido enclausurado em uma torre ou outra, ou então em fuga pelos becos de Thendara,
mantendo-se fora da luz. Eu devia encontrar um lugar para se esconder, pelo menos até que
eu possa planejar o que farei a seguir.
Não seria seguro voltar a Thendara por um longo tempo, e Hali ainda era um caso
incerto. Varzil agora seria colocado em guarda rodeado por leronyn’s dedicados à sua
proteção.
Eduin passara a infância em uma pequena aldeia pobre, pouco mais do que alguns
casebres ao longo de uma estrada de terra, perto do Rio Kadarin, onde seu pai tinha
encontrado segurança e anonimato. Apesar de ter sido enviado para Torre Arilinn em uma
idade muito jovem, lembrava-se o suficiente da vida rural para saber o quão difícil seria
para dois homens viver no campo. Eles não tinham competências de um agricultor ou
pastor. Até mesmo suas roupas destacavam-se ao lado dos trajes grosseiros da gente do
campo. Depois de alguns dias na estrada desgastante, estava muito claro que eles não
poderiam chegar a qualquer cidade grande por conta própria.
Eles conheceram um grupo de comerciantes de sal vindos na direção oposta na estrada,
que tinham vindo através do Forte de Robardin. Eduin lembrava-se que passara por ele em
seu caminho para a Torre Hali. Era uma cidade de tamanho médio, pouco mais que uma vila
de mercado enorme com um chefe, mas não um senhor Comyn ou membro de Torre.
Haviam lugares abertos espaçosos, comércio de gado e campos para os carros e tendas de
viajantes. Duas estradas importantes atravessavam o rio Greenstone em uma série de
pontes, trazendo um fluxo constante de pessoas, animais e seus bens. Os dois certamente
encontrariam algum tipo de trabalho, transportando água para cavalos, varrendo tabernas,
desengordurando cascos de barcos. O melhor de tudo era que em um lugar como aquele,
ninguém faria perguntas.
CAPÍTULO 12

Carolin não permitira a Varzil viajar para fora dos limites de terras dos Hastur sem uma
guarda, mesmo em missão diplomática. Os homens que o acompanhavam, portanto,
estavam fortemente armados. Varzil pareceu conhecer todos os homens dentro de poucas
horas, rapidamente colocando-os à vontade. Claramente, ele não era um estranho que
jamais caminharam com um exército, pois adaptou-se à sua rotina sem se queixar.
Dyannis, por sua vez, tinha viajado pouco além da propriedade de sua família em
Sweetwater a Hali, então a viagem para Cedestri era uma aventura inesperada. Apesar de
seus persistentes momentos de dúvida, seu espírito regozijava-se com sua curiosidade,
agora que estavam na estrada. Mesmo a necessidade de um acompanhante adequado,
uma senhora de retidão impecável da corte do próprio Carolin, não iria diminuir seu prazer
em ver um novo território. Tudo, desde os campos e colinas até as tendas e linhas de
piquete, eram uma novidade. Cevada e trigo agitavam com a brisa. Dyannis passou por
pomares de nogueiras e maçãs, encantou-se ao ver coelhos-de-chifres correndo para o
abrigo nas sebes. Ela passou por muros baixos de pedras caídas, tanques de peixes e
córregos. Aqui, sob a proteção do Rei Carolin, a terra parecia sonhar com as suas próprias
riquezas. Ela captou o pensamento de Varzil de que algum dia todos em Darkover poderiam
viver com tanta paz.
Desde a primeira noite na estrada, ela e Varzil jantaram juntos, sentados dentro do
conforto de sua tenda conversando boa parte da noite. Lentamente eles retomaram a fácil
intimidade da infância. Vendo-o fazer uma pausa com a colher no ar, os olhos iluminados
com alguma fantasia interior, ela reconheceu o menino estranho, sonhador que ele tinha
sido, ainda escondido dentro do lendário Guardião. Em sua missão, a culpa que a tinha
corroído diminuiu e ela se viu rindo de suas próprias piadas. Lady Helaina olhou para cima
de onde estava sentada, uma distância adequada, em seu banquinho sem encosto, com seu
corpo reto e equilibrado como se uma haste de madeira tivesse sido colocada através de
sua espinha, e sorriu.
Assim eles passaram dez dias, quando fazendas ficaram mais escassas e pastagens deram
lugar a encostas rochosas. Dyannis percebeu que Varzil estava esperando o momento certo
para tocar no assunto sério que os levara até ali. Ela sentou-se com ele em sua tenda, as
abas levantadas para permitir a brisa da noite, enquanto, no campo além deles, homens e
cavalos se organizavam para a noite.
O crepúsculo ainda pairava no ar, uma faixa leitosa no horizonte ocidental. Além do
acampamento, colinas erguiam-se como dentes irregulares. O amanhã traria uma subida
difícil, mas por agora, sentavam-se à vontade, tomando o último de seu vinho medido. Lady
Helaina tinha abandonado seu bordado e apertou suas mãos firmemente em seu colo, com
os olhos fixos no horizonte.
No campo externo, cavalos relincharam na linha de piquete, homens brincavam um com
o outro e alguém começou a cantar uma balada em uma voz baixa, acompanhada por uma
flauta de cana.
Varzil tinha sido sensato em esperar, Dyannis pensou, e manter seus pensamentos
distantes dela. Se tivesse sido mais cedo e ela teria aproveitado qualquer indício de uma
conversa séria para mais auto-recriminação. Agora, ela sentou-se, sentindo as tiras de
couro de sua cadeira de acampamento flexível sob o movimento, e gentilmente perguntou
o que o estava incomodando.
Varzil sorriu.
- Não é nenhum problema para mim, irmã mais nova, embora hajam muitos que iriam
achá-lo extremamente irritante.
- Oh meu irmão! - Ela riu com a imagem em sua mente, um bando de homens e mulheres
idosos, tentando esconder suas expressões escandalizadas e para manter sua dignidade.
Lady Helaina aproveitou a ocasião para desculpar-se. Pegando seu banquinho, ela
retirou-se para junto do grupo externo à luz das lanternas da tenda.
- Não é nenhum segredo, - Varzil disse, inclinando-se para Dyannis - embora muitos
gostariam de tê-lo assim. Nos últimos cinco anos, tenho discretamente procurado uma
maneira de começar a formação das mulheres como Guardiãs.
- Oh, certamente que não é possível! - Irrompeu de seus lábios.
- Sim, isso é o que me foi ensinado, assim como a você. Mas por que deveria ser assim?
Com um pouco de cuidado de seus ciclos, uma leronis pode fazer qualquer trabalho, bem
como um laranzu. Ellimara não é tão competente monitora como qualquer homem? você
não é uma telepata tão forte como Alderic ou Lewis-Mikhail?
- Certamente somos, - Dyannis protestou em um sussurro orgulhoso - mas Varzil, você
está falando sobre como se tornar um Guardiã!
- Como é que alguém não poderia assumir esse trabalho se é qualificado para isso? - Ele
perguntou. - Eu não assumir o manto da divindade quando eu completei minha formação,
nem Raimon, nem qualquer um de nós! É uma habilidade que qualquer Comyn, homem ou
mulher, pode saber, se tiverem aptidão e dedicação. Para isso, qualquer um com o talento,
independentemente da linhagem, seria qualificado.
Dyannis bebeu o resto de seu vinho em um único gole.
- Agora sim você encontrou algo que realmente vai agitar os guardiões do decoro?!
Treinando plebeus, Varzil, você vai virar o mundo inteiro em cima de sua cabeça
- Quero dizer, - ele respondeu com o sorriso travesso ela se lembrava tão bem - não tudo
de uma vez. O tempo para novas idéias está se aproximando rapidamente. Nossas Torres
estão com uma fração de sua antiga força em outra geração, muitos vão ficar vazias se não
superarmos nossos preconceitos. Você sabe tão bem quanto eu que muitos nedestros
carregam uma boa parcela de talento laran. Como podemos nos dar ao luxo de deixar isso
ir para o lixo só porque seu portador nunca foi legitimado ou sua linhagem perdeu-se em
uma geração? Nunca poderíamos deixá-los desperdiçar seus talentos. A questão mais
urgente é uma substituir os Guardiões que estão envelhecendo ou perderam-se por outras
razões.
Ela assentiu com a cabeça, pensando nos quartos vazios dos Guardiãos em Hali. Apenas
uma geração atrás, haviam três Guardiões, com aprendizes em formação. Após a morte de
Dougal DiAsturien, apenas a Raimon permaneceu. Ele era de uma família de longa duração
e era relativamente jovem. Ele poderia servir Hali pelas próximas décadas. Mas ele era
humano, de carne mortal e osso. Ele poderia ter sido morto no motim como qualquer outro
homem. Se a pedra tivesse batido a cabeça apenas uma fração mais baixa...
Varzil tinha captado seu pensamento.
- Não há sub-Guardião para substituir Raimon em Hali. E por que isso?
- Porque... - ela franziu a testa - porque não há ninguém que consideremos adequado
para ensinar.
- Porque não há nenhum homem adequado.
Dyannis olhou de boca aberta para o irmão. Os ruídos do acampamento haviam
silenciado, de repente distantes. Um vento frio sussurrou através da tenda. Quando ela
encontrou sua voz, disse:
- Você está dizendo que existe alguma mulher em Hali a quem deveríamos treinar?
- Não exatamente. - Varzil girou o resto do vinho em seu copo. - Uma das minhas razões
para vir a Hali foi para discutir este mesmo assunto com ele. Raimon está solidário com o
conceito geral, mas ele ainda não está pronto para realizar essa formação sozinho. Ele não
vai, no entanto, opor-se a minha oferta de trazer uma mulher, uma candidata adequada,
para Neskaya.
Senhor da Luz, o que ele quer dizer? Dyannis pensou.
- Você. Ou Ellimara.
- Ellimara?
- Ela é uma telepata poderosa e jovem o suficiente para suportar os rigores da disciplina.
Esse é um fator contra você, embora você não só tenha força, mas também iniciativa e auto-
suficiência, como você tão habilmente demonstrou no motim na costa do lago.
- Ellimara não pode ser uma Guardiã. Ela tem muita histeria, é muito emotiva, ela...
- Nunca foi dada a ela a chance de usar suas paixões em vez de estar à sua mercê. - Disse
Varzil, agora sério. - E você está fugindo da questão. Ambos, Raimon e eu, acreditamos que
você tem capacidade de se tornar uma Guardiã. O trabalho não é fácil, mas eu não acredito
que alguém com tanto talento possa ser verdadeiramente feliz com nada menos. Isso lhe
permitiria usar todas as suas habilidades ao máximo, bem como servir Darkover de uma
forma que poucos podem. Você teria que sair de Hali e vir para Neskaya. Você aceitaria?
- Varzil, você deve estar brincando! - Dyannis ficou de pé, tremendo com as emoções que
não podia nomear. No fundo da tenda, Lady Helaina olhou para cima.
- Tudo o que peço neste momento é que você pense. - Varzil disse calmamente. - Nada
precisa ser decidido agora, certamente não no final de um longo dia de viagem. Só peço
que você pense sobre isso na privacidade de sua própria consciência.
- Você está completamente louco! - Dyannis chorou. Ela continuou com uma voz mais
calma - Por respeito, vou pensar sobre o que nós discutimos antes de lhe dizer isso
novamente. Minha resposta deve permanecer a mesma. Enquanto isso, desejo-lhe boa
noite, e sonhos de sanidade.
Dyannis foi para sua própria tenda, com Lady Helaina logo atrás, com uma expressão
confusa e lábios bem fechados.
- Vá embora! - Gritou Dyannis. Ela não podia suportar a companhia da outra mulher, tão
calma e segura de si.
Helaina murmurou que ela iria ficar lá fora por um tempo para aproveitar a noite
tranquila, mas permaneceria ao alcance caso Dyannis precisasse dela.
Dyannis observou todo o espaço estreito da tenda.
Emoções sem nome ferviam dentro dela, um tumulto de pensamentos confusos.
Varzil estava louco. A experiência no lago, o contato com os pilares repletos de laran, a
turbulência do dia, deviam ter atrapalhado seu julgamento. Não havia outra explicação.
Formar plebeus nedestros era uma coisa. Houve um número considerável de brilhantes
leronyns sem sobrenomes familiares no passado, e talvez, talvez algum dia, pudesse existir
uma mulher com temperamento e força para fazer o trabalho de... de uma Guardiã.
Mas ela? Depois do que ela tinha feito?
Ela era tão capaz de dirigir um círculo, segurando as mentes e a sanidade dos seus
trabalhadores ao seu comando, quanto era capaz de se sentar no trono de Carolin! Ela não
tinha nenhuma duvidava de sua capacidade. O talento estava lá, firme e poderoso. Sabia
que era uma telepata poderosa ou nunca poderia ter controlado as mentes de tantos.
Acima de tudo, um Guardião necessitava de auto-controle, julgamento e disciplina. Ela
nunca tinha tido aquelas características em abundância. Sempre que pensava ter
finalmente dominado a si mesma, algum impulso selvagem a dominava e ela falava
impensadamente, ou corria para o lago, ou se deixava levar em um momento de fúria, sem
se importar com as consequências, e criava a ilusão de um dragão.
Não importa o que Raimon disse, ela nunca estaria livre da culpa dessas três mortes e os
pesadelos que assombravam os sobreviventes. Ela, só ela, tinha feito isso. Se o Guardião
insistiu que ela devia continuar a trabalhar e ir nesta missão com Varzil, para só depois
cumprir seu castigo, então é o que ela iria fazer da melhor forma. Mas ela nunca deveria
permitir ser colocada em uma posição onde ela poderia fazer tanto mal novamente.
Fiel à sua palavra, Varzil não tocou no assunto de treinar as mulheres como Guardiãs
novamente. Em vez disso, eles falaram sobre sua missão em Cedestri e o que eles sabiam
de seu povo e que estratégias poderiam ser usadas para conseguir sua cooperação. Varzil
nunca conhecera nenhum deles, mas Dyannis conhecia o Guardião, Francisco Gervais, pois
ele tinha começado a sua formação em Hali e ainda estava lá quando ela foi a primeira vez
para Hali.
- Atrevo-me a dizer que vou me lembrar dele melhor do que ele se lembra de mim. - Ela
disse com um sorriso irônico.
- Mesmo assim, você dificilmente é discreta. - Disse ele.
Ela riu e a tensão da conversa anterior surgiu.
Havia pouco motivo para rir. Cedestri certamente tinha sido alertada sobre a chegada
deles, depois de ter ocultado seu trabalho, a construção para drenar a energia na fenda no
lago. Eles já deviam estar esperando alguma reação. Varzil não era, estritamente falando,
um emissário da Torre Hali, mas sim do Rei Carolin. Seu objetivo era convencer Cedestri a
assinar o Pacto ou, pelo menos, abster-se de utilizar o pó derrete-osso e quaisquer outras
armas de laran. Dyannis não acreditava que a chance de sucesso de Varzil fosse muito
grande, mesmo com os antigos laços de Francisco com a Torre Hali. Mas Varzil era
incansavelmente otimista.
- Se o Pacto não atingir todos em Darkover durante minha vida, - ele disse a ela - então
outros vão assumir a causa depois de mim, e outros depois deles, até que não haja lugar
dos confins das Hellers às costas de Temora, em que um homem honrado irá usar qualquer
arma que não o exponha a igual risco.
Ele não vai desistir, ela pensou, não até que ele esteja morto ou todos nós façamos parte
do Pacto.
A crença inabalável de Varzil no Pacto trouxe um consolo inesperado a Dyannis. Os
eventos do motim tinha-na feito tremer de medo até os ossos. Isso nunca deverá acontecer
novamente. O laran era demasiado perigoso para ser usado, a não ser em circunstâncias
mais cuidadosamente controladas.
Quanto mais pensava sobre isso, mais convencida ela estava de que o Pacto era
necessário. Não só necessário, mas uma salvação. Se não podia confiar em seu próprio auto-
controle, ela poderia ajudar a mudar o mundo para que tais abusos se tornassem
impossíveis. As vezes, a paciência de Varzil exasperava ela. Ele pensava só em termos de
armas para serem usadas em guerra, como fogo aderente e pó derrete-osso, praga de raiz
que tornava a terra estéril. Ele se recusava a ver que qualquer trabalho desenvolvido com
laran tinha potencial de dano. Às vezes, ela pensava que mesmo trabalhar em um círculo
monitorado, sob a supervisão de um Guardião, era muito arriscado.
Eles desceram das colinas irregulares em direção ao campo em torno da Torre Cedestri e,
além dele, estava o pequeno reino de Isoldir. As colinas estavam nuas e algo em sua nudez,
sem árvores, davam um acorde de tristeza em Dyannis. Ela sentiu uma espécie de luto, a
miséria nas gramas acinzentadas e as tudo no alto das colinas estavam ressecados pelo sol.
A terra está endurecida, ela pensou, e não dá qualquer esperança ao espírito de seus
habitantes.
Ela esperava que o povo de Cedestri estivessem imunes à essa influência
desesperançosa.
A estrada levou-os para baixo das colinas e através de uma planície de terra bem
ressecada com rachaduras tão profunda quanto seu antebraço. Não havia água além da que
eles carregavam. Os cascos dos seus cavalos elevavam poeira à medida que diminuiram de
um trote suave para um passeio mais acelerado. Uma vez, eles avistaram um par de
kyorebni circulando nas alturas.
Dyannis cutucou sua montaria para alcançar Varzil.
- Eu não sei a história deste lugar, mas temo que algo terrível aconteceu aqui. Ou vai
acontecer.
- Sim, eu sinto isso também.
Uma geração antes, Isoldir estava em guerra com um braço da poderosa família Aillard.
Talvez batalhas tenham sido travadas no terreno sobre o qual eles agora montavam. Armas
terríveis podem ter transformado exuberantes pastos ou campos com grãos plantados
neste deserto.
Isso deve acabar. Isso precisa terminar agora.
Varzil mudou seu peso sobre seus estribos, meio-crescente na sela, e apontou para a
frente.
- Cedestri está além. Mais um dia e devemos estar lá.
Dyannis protegeu os olhos com uma mão, como se ela pudesse ver além da poeira que
camuflava o horizonte. Ela olhou o alto em busca das grandes aves de rapina que eles
tinham visto antes. Dois pontos pairavam contra um céu brilhante. Ela apertou os olhos,
lacrimejando.
Varzil...
Dyannis inconscientemente caiu no contato mental. Ela sentiu seu irmão abrir sua
mente, chegar com seus sentidos laran. A terra se estendia em torno deles, cinzenta,
perfurada por partículas brilhantes, as sementes que permaneciam adormecidas até agora,
aguardando o retorno da chuva. Acima, o movimento do vento no céu trazia um beijo de
umidade refrescando.
Os dois primeiros pontos tinham ficado visivelmente maiores agora e não voavam
circundando como normalmente as aves faziam. Enquanto Dyannis observava um trio se
juntou a eles. Ela sentiu algo como metal, o calor concentrado de baterias carregadas por
laran e mentes humanas blindadas. No fundo, dentro deles, mergulhado num isolamento e
em recipientes frágeis de vidro, bolas brilhavam num tom verde.
Pó derrete-osso cristalino!
Varzil sinalizou em silencioso reconhecimento.
Carros aéreos indo para fora de Isoldir. Eles devem ser enviados para Aillard.
Chegamos tarde demais! Ela lamentou.
Varzil não respondeu, e ela sentiu seu estado de atenção, indo na frente com o piloto do
carro, acima de todos. Dyannis tinha montado em um carro aéreo apenas uma vez, mas,
naquele tempo, o custo da sua construção e funcionamento tornou-se proibitivo, exceto
para usos militares. O piloto, um laranzu treinado, estava curvado sobre seus instrumentos,
usando seu talento para guiar a nave em forma de lágrima.
Ela sentiu o piloto em alerta e sua concentração. Num instante, Varzil estabeleceu a
conexão, Dyannis entendeu apenas um fragmento do contato, um flash do temperamento
do piloto, o desespero da prisão para ele.
Nós de Isoldir somos pobres e poucos. A cada época a poderosa Aillard nos oprime, nos
aproxima da ruína. Os campos em que crescem nossa comida, os rios que matam nossa
sede, as árvores que nos protegem contra o frio do inverno, eles nos deixam sem nada.
Agora, até mesmo os nossos filhos crescem doentes ou morrem sob suas magias. Temos
apenas uma chance, com o elemento surpresa como nosso aliado.
Os carros aéreos pareciam se mover mais rápido quando eles se aproximaram. Dyannis
tinha dúvida de que os sentimentos do piloto fossem compartilhados por todos. Em pouco
tempo, eles iriam passar acima deles e estariam fora de alcance. Se Varzil pudesse
convencê-los a tempo!
De repente, e com uma força que abalou Dyannis na sela, o piloto rompeu o contato com
Varzil.
Espiões! Espiões inimigos! Espiões de Aillard!
O ódio nu do grito mental do homem apertou seu coração por um momento terrível. Ela
engasgou, e só o fato de que ela já estava segurando o pomo da sela a impediu de cair.
Mas não somos...
Ela interrompeu o pensamento, percebendo como seu partido devia parecer para os
pilotos de Isoldir. Cercados por homens armados, ao longo da estrada com aparência
militar, o que mais poderia parecer senão uma pequena força de ataque de elite, viajando
rapidamente com o mínimo possível para evitar ser detectada?
O leronyn da Torre Cedestri poderia reconhecer Varzil ou Dyannis pelas mensagens
trocadas pelas Hellers telepáticas, mas para esses pilotos, eles eram estranhos. O
cumprimento de Varzil, ou sua tentativa de um cumprimento de paz, seria visto como uma
armadilha para baixarem a guarda.
O carro aéreo, quase em cima deles agora, começou a descer. Dyannis colocou uma mão
sobre sua boca, com seu estômago revirado.
Eles não querem passar por nós.
Ao lado dela, o capitão de Carolin gritou dando ordens para seus homens. Rapidamente,
eles entraram em formação defensiva, levantando seus escudos.
Que tipo de proteção deveriam usar contra o pó derrete-osso, perguntou-se, que
envenena a própria terra, se usassem contra eles?
Por um instante, surgiu uma esperança dentro deles. Se os carros aéreos de Isoldir
descarregassem sua carga mortal aqui, em suas próprias terras, então nada, ou menos do
que o planejado, chegaria à Aillard. Mas ela não iria sobreviver para ver o resultado.
- Aqui resolveremos isso! - Gritou um dos homens.
Num piscar de olhos, um punhado de minúsculas esferas de vidro, não mais do que
pontos de luz a essa distância, caíram da barriga do carro aéreo mais próximo.
Una-se comigo! Varzil chamou. Na borda de sua visão, ela o viu, sentado ereto na sela,
rédeas soltas sobre o pescoço do cavalo, olhos fechados, mãos cobrindo sua pedra-da-
estrela. Ela fechou o campo de visão do mundo físico e lançou-se no relacionamento com
ele, como se fossem dois membros de um círculo completo.
Varzil usou a força mental de ambos unido-a para formar uma barreira como uma cúpula
invisível entre as esferas brilhantes e os homens montados. Dyannis sentiu o primeiro
impacto da esfera ao se abrir após o contato, como se fossem feitas para manter-se inteiras
apenas por um breve momento. Seu conteúdo espirrou para fora, acre e familiar.
Fogo aderente!
Em seus primeiros anos em Hali, Dyannis trabalhou em um círculo para separar cada
elemento componente do fogo aderente, combinando e destilando a mistura, em seguida,
coloca-lo em vasos de vidro sem nenhuma falha, pois caso houvesse a mínima rachadura o
fogo aderente iria corroer tudo. Ela sabia sua cor que era como uma chama coagulada, seu
cheiro, os gritos quando uma única gota respingavam sobre a pele nua de um trabalhador,
como um corte de faca através da carne viva, cortando todas as fibras afetadas, queimando
ossos e tendões, nervo e órgão, até que nada restasse para ser consumido.
Ela jogou toda a força de seu laran para o escudo, derramando toda a energia psíquica
ao seu comando. A torrente de laran queimava na força que percorria seus canais, a uma
velocidade e intensidade que ela uma antes teria considerado suicida. Ela não deu
nenhuma atenção à dor, apenas focada na determinação absoluta em manter o escudo, em
aguentar firme, contra o ataque.
A primeira leva foi lançada, bateu no escudo e caiu na terra estéril. Homens e cavalos
escaparam intocados. Uma onda de tristeza e alívio a invadiu. Sem suas barreiras erguidas,
como estava agora, ela captou a profundidade das próprias emoções.
Dentro de seu próprio corpo, nervos e canais laran doíam com a pressão. A mente de
Varzil era como uma rocha. Ela se controlou, com medo de que se ela afrouxasse seu foco
por um instante, ela quebraria como um galho seco em uma inundação.
Ela sentiu o primeiro carro aéreo desviar, um segundo entrar em posição para inicar o
ataque. Varzil mantinha o escudo firme, como se ele comandasse todo um círculo de
trabalho. Ela não podia imaginar o quão enorme era seu talento pra ele conseguir fazer
uma coisa dessas. Ela só pensava em enviar-lhe força e mais força, esvaziando-se na ligação
psíquica entre eles. Ela tinha que ser seu círculo.
O segundo carro aéreo descarregou sua carga. Desta vez, o ângulo de ataque fez o fogo
aderente ser dispersado em um padrão diferente. A maioria das partículas líquidas
seguiram o curso do primeiro ataque, mas algumas foram mais selvagens. Eles pousaram
sobre a borda externa de um dos carrinhos de bagagem. Tecido e couro explodiram em
chamas. Dyannis sentiu isso muito antes que seus sentidos físicos fossem abalados pelos
gritos de um cavalo em pânico e os gritos dos homens. Ela não podia dizer se algum deles
tinha sido tocado pelo fogo cáustico, só que a disciplina que todos eles tinham mantido sob
o escudo psíquico tinha quebrado.
Na fração de um instante em que sua própria concentração tinha vacilado, todo o peso
do escudo caiu sobre Varzil. Dyannis piscou, vendo os mundos psíquicos e materiais como
imagens sobrepostas. Homens correram para apagar o fogo, alguns deles usando suas mãos
ou mantos, sem se importar com o perigo, pois o fogo aderente iria se espalhar para
qualquer coisa que pudesse queimar. Um veterano grisalho lutou com um soldado mais
jovem, tentando forçá-lo para longe do carro de suprimentos. Outro, agarrado às rédeas de
um cavalo, foi erguido uma vez que o arrastaram para fora do abrigo do escudo de Varzil.
Abaixo dela, a própria montaria deslizou, puxando o freio. Apenas o cavalo de Varzil
permaneceu imóvel, embora seus olhos se movessem nervosamente. Sua vontade
mantinha o cavalo sob controle.
Com este segundo ataque, sua concentração foi demasiadamente pressionada.
Dyannis jogou a cabeça para trás e viu o terceiro carro aéreo voando sobre eles.
NÃO!
Ela tremia com o poder correndo ela. A memória foi agitada e levada para o âmago de
seu laran. Um dragão, uma criatura de fogo profano, inclinou-se sobre uma multidão de
homens fora da lei e transformou a sua vontade em um terror rastejante. O dragão estava
dentro dela... era ela...
Era sua única chance. Mas também a única coisa que ela jurou que nunca faria
novamente.
Oh, doce mãe, bendita Cassilda, ajude-me!
Como que em resposta à sua oração, Dyannis sentiu a presença constante de seu irmão,
a força e a complexidade de seu laran treinado, e algo além dele, uma pressão luminosa.
Por um instante fora do tempo, o medo desapareceu. Ela subiu em uma corrente de luz
mais pura, completamente em paz.
Varzil deixou cair o escudo.
CAPÍTULO 13

- Não! – Dyannis chorou. – Nós ficaremos indefesos...


Ela parou quando a verdade aflorou, inexorável como a noite. Eles já estavam indefesos.
Varzil poderia segurar o escudo apenas mais alguns instantes, mas não suportaria outro
ataque. Os homens e animais já tinham se dispersado para fora do perímetro de segurança.
Mesmo que a próxima rodada de fogo aderente não conseguisse exterminá -los, ainda havia
o pó derrete-osso.
Mas com relação a seu irmão, ela não captou nenhum indício de medo ou mesmo um
pensamento de fuga. Em vez disso, ele demonstrou uma reação física, finalmente.
Devemos alcançar as mentes daqueles que comandam os carros aéreos sim, mas não
com um monstro terrível, golpeando com terror e causando o caos.
Varzil lançou sua consciência como um pescador lançando uma rede. Dyannis entrou em
posição de âncora, enviando-lhe poder. Os pilotos reagiram com surpresa ao contato
telepático. Mãos pararam sobre os mecanismos de controle, mas não com qualquer
paralisia imposta. Varzil tinha atraído a atenção deles como talvez nenhum outro homem
vivo pudesse fazer.
Você não deve continuar com esta missão. Há outro caminho, um caminho para a paz.
Suas palavras soaram como o mais profundo sino em Thendara. Como poderia alguém, ela
se perguntou, duvidar que ele falava a verdade?
Nós não temos escolha. É atacar ou morrer, matar ou ser morto.
E isso é o que vocês farão com o mundo!
A voz mental de Varzil trovejou, cada sílaba, como camadas de nuvens de tempestade
uma sobre a outra, até o próprio tecido do reino psíquico reverberou com o seu poder.
Então, através da visão do mais poderoso Guardião em Darkover, Dyannis captou a visão
particular de cada homem. Ela viu as famílias, os pais, as barbas grisalhas de pessoas idosas,
crianças, amantes, mães com bebês em seus braços, vislumbres de uma lareira com o fogo
acesso, a varredura de um chão, trechos de uma canção de ninar e um emocionante coro,
olhos carinhosos de um cão de caça, sentiu a pele sedosa de um cavalo, provou uma amora
silvestre e um pão duro.
Sobre todas essas impressões a miríade de um véu de poeira flutuava, cada partícula
luminescente ligeiramente verde. A substância começara a agira. Ela se agarrou a uma
folha, uma rock e depois um telhado, foi lavada em um córrego e um barril, uma película
incolor, uma pitada de sombra.
Quando Dyannis observava através de três pares de olhos horrorizados, o riso das
crianças ficou em silêncio, os sorrisos das mães tornaram-se lamentos quando olharam para
os rostos encovados e barrigas inchadas de seus bebês. O trigo maduro e a cevada
desapareceram em cinzas. Folhas enrolaram e cairam de ramos enegrecidos. Um cavalo
esquelético tropeçou, com costelas à mostra sob a pele coberta de chagas purulentas, caiu
de joelhos ao lado da carcaça de um cão sendo roída por um rato, e depois ficou imóvel.
Um idosa, feia e seca, se agachou diante de uma lareira fria e sem vida, mastigando um
pedaço de couro, ainda usando as roupas de noiva de uma jovem. Na pulsação seguinte, ela
não era mais que uma pilha de ossos esbranquiçados, não sepultados e desalinhados, sob a
luz estéril de uma única lua.
Por trás da visão, Dyannis sentiu uma sombra ainda mais profunda, uma que nenhum dos
pilotos e nem Varzil tinham imaginado. Uma mulher, seu rosto não mais do que um
vislumbre pálido, com capuz e vestidos de noite, observava. . . esperava faminta...
O silêncio se seguiu ecoando. Então Varzil falou, com suas palavras gentis, incansáveis e
infinitamente tristes.
Isso é o que lhe traria, não só para Ailiard, mas também para Isoldir. Para todas as terras
de Darkover. Peço-lhe, deixe-nos passar. Voltem para suas casas em paz. Não espalhem
essa loucura adiante.
Por um longo momento, não houve resposta. Os carros aéreos continuaram em sua
formação, mas pareciam diminuir seu ritmo. De repente, interromperam seu caminho e
circularam de volta.
Mesmo em Isoldir, ouvimos contos de Varzil, o Bom, que prega o Pacto do Rei Carolin
Hastur. Acreditávamos que tal coisa era loucura, desistir de nossa única vantagem e ir
desarmado contra os nossos inimigos. Mas algumas coisas são mais horríveis do que a
derrota, mais definitivas do que a morte. Eu não posso falar por qualquer outro homem,
mas eu não vou ser um contribuinte do que você nos mostrou.
Estou disposto a morrer pelo meu país, o segundo disse, suas palavras mentais pesadas
com a relutância, mas eu não estou disposto a causar esse destino a qualquer terreno, nem
mesmo os dos Aillards.
Dyannis cobriu o rosto com as mãos, sentindo as lágrimas quentes escorrerem. Contra
toda a razão, contra toda a esperança, eles estavam voltando! Não havia nada para impedi-
los de continuar a sua missão, e eles ainda tinham escutado seu irmão, tinham acreditado
no seu Pacto!
Acima, o carro aéreo que liderava os outros já estava voltando para Isoldir, o segundo
apenas começando a se virar. Lady Helaina explodiu em lágrimas. Os soldados Hastur se
abraçaram e dançaram. Dyannis quase desceu e se juntou a eles. Ela queria rir, gritar. Ela
olhou para seu irmão, pensando em compartilhar o triunfo.
Varzil manteve o olhar no alto, seguindo o caminho do terceiro carro aéreo, a partir do
qual só havia silêncio. Ele continuou em seu curso mortal, por eles e em direção a Ailiard.
Rowland, você está louco? Pense no que você está fazendo! - Veio o contato do primeiro
carro aéreo.
Enquanto eu viver, Isoldir ainda tem um filho leal! - Foi a resposta.
Dyannis, observando o terceiro carro aéreo aumentar a sua velocidade, desaparecendo
na distância, gritou:
- Não podemos fazer nada para impedi-lo?
- Mesmo se pudéssemos enviar uma mensagem aos Aillards na sua fortaleza em Valeron
para explodi-lo no céu, eu não faria isso. - Varzil respondeu em voz baixa. - Para eles, isso só
iria provar a necessidade de tais armas.
Nós não vamos trair o nosso camarada. - Disse o piloto.
Eu não pediria isso a você. - Varzil respondeu. - Com sua licença, agora eu vou falar com o
povo na Torre Cedestri.
Vamos voltar e nos preparar para sua visita. - Disse o piloto.
Obrigado por sua cortesia. - Varzil respondeu.
Que você possa caminhar na graça dos deuses, então, Varzil de Neskaya. E você, Dyannis
de Hali.
Que a Luz de Aldones brilhe sobre nós todos. - Ela responde, pois ela tinha certeza de que
todos eles precisariam de muitas bênçãos nos dias seguintes.
Eles viram a Torre Cedestri brilhando quando eles ainda estava a uma hora de distância.
No final do dia anterior e durante toda aquela manhã, Dyannis sentiu a mudança no campo
psíquico e tremia. Embora ela estendesse a mão com seu laran ela não conseguia obter
nenhuma leitura clara, nada específico a partir de Cedestri ou o povo na capital Aillard,
Valeron. Apenas os telepatas mais talentosos poderiam transcender essas distâncias, e só
então ao fazer contato com alguém que conhecia intimamente, e que não era o caso com
qualquer Torre ali. Ela só sabia que algo terrível estava acontecendo, e um olhar para o
rosto esbranquiçado de Varzil dizia a ela que ele sentiu isso também. Não conseguiam nem
falar de seus medos em voz alta. Eles agitaram seus cavalos para ganhar mais velocidade e
seus guardas mantiveram o ritmo.
Eles tinham descido ao longo da última fileira de colinas levemente erodidas, onde
rebanhos de cabras pastavam, entre pomares de pêra e marmelo falso, e fazendas com
celeiros de galinhas e plantações de ervas floridas. A terra aqui não estava tão estéril, os
jardins, árvores e cercas arrumadas indicavam um certo nível de prosperidade. Claramente,
as terras circundantes foram bem capaz de suportar a Torre e não havia sinais da pobreza e
o crescente desespero de Thendara.
Diante deles estendia-se um amplo vale dominado por uma grande quantidade de
rochas. Pelo tamanho e configuração, Dyannis entendeu que devia haver alguma formação
vulcânica nelas. Ela não poderia ver quaisquer meios de acesso às alturas, onde havia um
castelo, aparentemente esculpido na mesma rocha, com vista para os campos circundantes.
Esta deveria ser a sede de Isoldir. A uma curta distância, a Torre Cedestri estava no meio de
uma aldeia.
A fumaça do carvão vegetal erguia-se, tanto do castelo quanto da torre, principalmente
desta última.
Abençoada Cassilda! Valeron deve ter contra-atacado.
O soldado mais próximo mudou de posição na sela, seu rosto rígido com a preocupação.
- Capitão, vamos nos apressar! - Disse Varzil. - Nossa ajuda é necessária em Cedestri!
Eles correram pelos arredores da aldeia, seus cavalos soprando espuma com o galope
frenético. Habitantes da cidade e soldados em cores de Isoldir, cinzentos unidos a brigadas
de vermelho e amarelo, tinham formado uma fileira para levar água a partir do conjunto de
poços. Os telhados de colmo das casas de aldeia já haviam sido completamente
encharcados.
A fuligem enegrecera as paredes superiores da Torre Cedestri, mas as partes inferiores
pareciam intactas. Tinha sido um edifício gracioso, três grupos de pedra prateada,
trabalhada com laran que ficavam acima do jardins de paredes baixas que agora eram
pouco mais do que lama remexida e talos destruidos. A entrada principal era um arco
cônico com um design esculpido de videiras de entrelaçadas. Através dele, dois
trabalhadores em vestes carbonizados lutavam para arrastar um corpo inerte. Outras
vítimas, algumas delas terrivelmente queimadas, estavam em choque deitadas ou sentadas
encolhidas um pouco além dos muros do jardim. Aqueles que podiam, olharam para cima
como o destacamento de Hali parou, e gritaram em surpresa e medo.
Nós somos amigos.
Varzil enviou a mensagem telepática, de modo claro e forte para que qualquer pessoa
com um fragmento de laran não pudesse deixar de compreendê-lo. Ele acrescentou, com a
voz física... - Estamos aqui para ajudar!
A um sinal de Varzil, o capitão Hastur deu uma série de comandos a seus homens,
enviando-os onde eles eram mais necessários. Dyannis pulou de seu cavalo e correu para as
portas da Torre. Os dois laranzu'in ainda estavam vestidos para o trabalho no círculo e o
homem, que claramente tinha retirado dos destroços acima, usava o escarlate de um
Guardião. A fumaça gordurosa estava grudada em seus rostos, e o braço de um estava
pendurado frouxamente, o jugo da sua túnica estava rasgada revelando uma laceração com
sangue ainda escorrendo. Seu rosto estava pálido em choque e ele parecia à beira do
colapso. Tropeçando, eles conseguiram arrastar seu Guardião abaixo da ampla escada, que
dava para o jardim, onde um dos soldados de Carolin pegou o Guardião, como se ele não
pesasse mais do que uma criança.
O homem ferido balançou sobre seus pés. Seus olhos viraram na direção de seu crânio e
Dyannis conseguiu escapar de seu ombro e pegá-lo antes que caísse. Cambaleou com seu
peso, mas ela de alguma forma conseguiu sustentá-lo e se movendo na direção da área dos
curadores. Seu companheiro os seguia, tossindo e vomitando.
Assim que Dyannis tocou o homem ferido, ela o reconheceu a partir das Hellers. Seu
nome era Earnan Gervais, parente de Francisco, Guardião da Torre Cedestri.
Veja ele... Earnan implorou silenciosamente.
Dyannis colocou-o no chão e foi procurar Francisco. Uma das monitoras de Cedestri
estava dobrada sobre ele, sua túnica branca estava rasgada e lamacenta. Havia sangue
coagulado e pedaços de esteiras em seu cabelo acobreado. Ela olhou para cima quando
Dyannis agachou ao lado dela. Sardas enfeitavam um rosto pálido como leite. Ela era muito
jovem. Dyannis imaginou que ela devia ter acabado de terminar seu treinamento como
monitora.
- Esses monstros Aillards... eles fizeram isso! – A moça bradou. – Você... você pode ajudá-
lo?
Pobre criança. Pensou Dyannis. Ela provavelmente nunca tinha visto um homem tão
seriamente ferido.
O ataque, por mais horrível que fosse, poderia ter sido muito pior. Os Aillards de Valeron
tinham retaliado moderadamente, usando apenas fogo comum, ou a Torre ainda estaria
em chamas e todos os seus trabalhadores mortos. Mas não seria nada bom dizer isso em
voz alta agora.
Dyannis fechou os olhos e deslizou suas mãos sobre o corpo do Guardião. Ela passou em
cima de sua pedra da estrela para concentrar seu laran. Ela não sentiu nenhum osso
quebrado, sem sangramento interno, nenhuma interrupção da medula espinhal...
Ah!
A fumaça obstruíra os tecidos delicados dos pulmões. Sem oxigênio os nervos estalavam
e falhavam. A mente do Guardião, com todo o seu talento e força treinada, estava em
espiral na escuridão, fora do seu alcance.
Você tem que me ajudar. Dyannis disse, unindo sua mente com a da menina.
Depois de um instante de pânico com o contato inesperado, a disciplina da menina se fez
presente. As duas deram as mãos invisíveis através do corpo do moribundo. Os dedos
alongados uniram-se como uma rede tornando-se uma peneira para pegar as partículas de
carbono e partículas ainda menores de gases tóxicos. Graças aos deuses, a capacidade de
telecinese da menina era forte, porque Dyannis não poderia ter feito isso sozinha. Juntas,
eles ergueram a fumaça dos pulmões retirando-a e trazendo ar fresco em cada respiração
ofegante. Por fim, o peito do Guardião soltou e um acesso de tosse tomou conta de seu
corpo.
Dyannis, quebrando o vínculo com a jovem monitora, rolou o Guardião para o lado. A
força de seus espasmos animou ela. A partir daqui, seu corpo seria capaz de limpar o resto.
Ele ficou apenas um pouco surpreso quando seus olhos se abriram, cinzas, claros e focados.
Dyannis de Hali! - A voz de tenor, como um sino, tocou em sua mente, um sino tenor. -
Sua vinda não poderia ser mais oportuna.
Ela suprimiu uma resposta rude sobre as pessoas que precisavam ser resgatadas da
loucura dele que criara armas como o pó derrete-osso cristalino, forjado na fábrica no
Mundo Superior na fenda de energia do lago Hali, isso sem mencionar o lançamento de um
ataque contra um inimigo tão poderoso quanto Valeron. Ela não era, afinal, sua própri]a
Guardiã e ela não queria arriscar a missão de Varzil com palavras impensadas. Raimon tinha
advertido muitas vezes, mais que o suficiente, sobre seu próprio comportamento
imprudente antes. Em vez disso, ela formulou uma resposta devidamente educada de que
ela estava feliz por estar a seu serviço, e foi ver quem mais precisava de sua ajuda.
No momento em que o grande Sol Sangrento afundou sob o horizonte, a maior parte da
fumaça tinha desaparecido e os feridos foram acomodados para a noite. Mesmo Lady
Helaina tinha dobrado sua saia e trabalhava tão duro como qualquer um deles. A noite
estava bonita, por isso muitos dos soldados Hastur, incluindo o seu capitão, acamparam sob
duas das quatro luas, deixando suas tendas para os feridos.
Soldado vestindo as cores de Isoldir atravessadas por faixa de um oficial manchado de
sangue aproximou-se de Varzil e dirigiu-se ao capitão Hastur para iniciar os seus próprios
arranjos de dormir. O homem de Isoldir curvou-se ao seu homólogo Hastur e começou a
falar sobre um conselho na manhã seguinte.
- Eu temo que você tenha me confundido, - disse o capitão Hastur, sua boca curvando em
um meio sorriso - porque eu não sou quem comanda aqui. Estou sob o comando de Dom
Varzil de Neskaya, que fala pelo Rei Carolin. - Ele deu um curto sinal na direção de Varzil.
- Vai dom, perdoe-me, - disse o homem Isoldir, ruborizando com a confusão - eu não
sabia. Fui enviado pelo meu mestre, Lord Ronal de Isoldir, para encontrar o senhor Hastur
que nos ajudaram e buscar-mos conselho.
Varzil manteve seus ombros para trás, mas Dyannis leu o cansaço em cada fibra do seu
corpo.
- Eu não sou um grande senhor, mas sim um Guardião, e vim como emissário de Carolin
Hastur. Como você pode ver pelo tamanho da nossa equipe, estamos aqui para conversar e
não para lutar. Esta é a minha irmã, Dyannis, uma leronis da Torre Hali. Pela graça de
Aldones, chegamos a tempo de ajudar os feridos. Já é muito tarde e ainda há muito a ser
feito, mas se a necessidade é urgente, que seja então.
Nós vamos, Varzil? Dyannis perguntou silenciosamente.
Varzil levou-a de lado e disse em voz baixa.
- Valeron acaba de colocar um fim brutal nesta disputa. Senhor Ronal deve estar
plenamente consciente de sua impotência, e tal é fonte de desespero, suspeitas e ações
precipitadas. Somos estranhos, viemos sem aviso e logo após o ataque. Que melhor
maneira de convencê-lo de nossas intenções pacíficas do que irmos à sua presença?
- Varzil, não acredito que seja uma boa ideia. Não estou apresentável, mesmo para um
tribunal provincial pequeno! - Dyannis apontou para sua roupa manchada com pó da
viagem, fumaça e sangue. Seu cabelo e rosto estavama igualmente sujos.
- Exatamente.
- O que quer dizer?
- O que significa que você, uma bem-nascida leronis, esteve trabalhando lado a lado com
o seu próprio povo durante todo o dia e em condições terríveis. Um inimigo faria isso?
Dyannis suspirou, sabendo a futilidade de outro argumento, e seguiu o mensageiro de
Isoldir. Ela decidiu deixar Lady Helaina em seu merecido descanso e lidar com as
repercussões no dia seguinte.
Quando eles se aproximaram do castelo Isoldir, a última luz oblíqua do Sol Sangrento
lançou um tom lúgubre sobre as pedras escarpadas. A trilha torcia ao longo do penhasco
até o cume. Dyannis, sem se atrever a olhar para baixo, deixou as rédeas frouxas no
pescoço de seu cavalo e confiou na natureza do animal e sua familiaridade com a rota.
A última parte da trilha tinha sido levantada e os lados cortados para que apenas uma
calçada estreita existisse, levando aos portões do castelo. Alguns homens poderiam
facilmente defendê-la, já que os atacantes deveriam vir à eles individualmente, sem espaço
para manobrar em combate.
Do pouco que Dyannis podia ver das paredes exteriores, o castelo havia sofrido muito
menos danos do que a Torre. Valeron não tinha a intenção de conquistá-los ou deixá-los
indefesos contra bandidos e catadores, apenas evitar outro ataque como aquele que
Cedestri havia lançado. A torre tinha sido completamente destruída, mas Isoldir ainda
mantinha seu Senhor intacto e, tanto quanto ela podia dizer, a maior parte de seus homens
de combate também. Ela perguntou-se Isoldir, estaria ainda mais desesperada e
enraivecida humilhação a ponto de tentar atacar novamente.
Se o fizerem, eles são mais tolos do que pensávamos. Varzil respondeu ela. Eles
perderiam toda a pretensão de uma causa justa. Seus vizinhos, pequenos e grandes, os
veriam como os agressores. Se eles desejam preservar o que resta para eles, eles não vão
contra atacar.
Passaram através de portas duplas maciças e em um hall de entrada, onde um punhado
de guardas cautelosos seguiam seus passos ao redor deles. Fuligem e poeira marcavam
suas roupas e um tinha uma queimadura desagradável em um rosto sem barba. Um homem
de cabelos brancos com vestes compridas de um cortesão mancou em direção a eles.
Quando o mensageiro de Isoldir curvou-se e sussurrou, os olhos do velho arregalaram-se.
- Você vem para Isoldir em um momento triste e perigoso, vai tenerezu. - Ele disse em
uma voz rouca. - Meu senhor estende as boas-vindas que pudermos oferecer ao senhor.
- Agradeço-lhe, no momento, a intenção é de maior valor do que a pompa. - Disse Varzil,
inclinando a cabeça em cumprimento. - Há muito a ser feito aos feridos abaixo para nos
preocuparmos com a troca de cortesias. Se o seu mestre deseja falar conosco, nos leve a
ele rapidamente.
Alguns momentos depois, Dyannis seguiu seu irmão para uma sala menor, claramente,
uma câmara do conselho. Mapas e listas cobriam uma mesa central, juntamente com um
prato contendo os restos de uma refeição apressada. Algumas das janelas, que ela
adivinhou estar voltada para um pátio interior, haviam sido quebrada e o vidro quebrado
ainda estava no chão de pedra. No entanto, as tapeçarias da parede com cenas
convencionais de batalha e caça, eram de boa qualidade, se não é que eram novas. Tochas
queimavam de forma constante a partir de suas arandelas na parede.
Na outra extremidade da mesa, um homem de meia-idade, sua barriga apenas
começando a inchar com a gordura, curvado sobre vários papeis, endireitou-se.
Sua aparência denunciava pouco de seu caráter, mas algo nas linhas de seu rosto
lembrou a Dyannis de Rakhal Hastur, o primo traidor de Carolin, quando ela o conheceu há
muitos anos no Festival do Solstício do Inverno em Hali. Então Rakhal era um assessor de
confiança do rei doente e ninguém adivinhou a traição que estava em seu coração. Ela
lembrou a si mesma que ela não deveria julgar este homem por uma semelhança física
superficial. Ela não captou nenhum indício de seus pensamentos, mas seu desespero a
atingia, sua luta para encontrar uma maneira de salvar seu reino.
O conselheiro idoso fez as apresentações. Ronal de Isoldir reconheceu Varzil com um
ligeiro aceno e, em seguida, ordenou a seus servos para trazer cadeiras para seus
convidados. Varzil recusou comida, mas aceitou jaco para ambos.
Dyannis relaxou em seu assento como uma caneca da bebida fumegante que foi
entregue para ela. A cozinha devia estar funcionando bem o suficiente para fornecer
bebidas quentes.
Após uma breve troca de cortesias, Ronal falou.
- Varzil de Neskaya, você diz que veio aqui como emissário do Rei Carolin Hastur. Qual é o
seu interesse aqui?
- Eu não posso falar por ele no que diz respeito ao ataque de Aillard sobre você, - Varzil
respondeu com a mesma franqueza - nem de vocês sobre eles. As minhas preocupações
nesta missão são outras. Uma que foi ultrapassada por essas circunstâncias terríveis. Eu fui
enviado para persuadir a Torre Cedestri e você, o seu Senhor, para se juntar a nós em um
Pacto de Honra, abandonando o uso de laran na guerra. sabemos que a Torre Cedestri
desenvolveu uma nova variante do pó derrete-osso...
O Senhor Ronal apertou a boca, mas não recuou.
- ...e procuro evitar seu uso, bem como a escalada de hostilidades que certamente
devem se seguir.
A maioria dos homens responderia com raiva, Dyannis pensou, mas Ronal de Isoldir
apenas assentiu. Varzil tinha lido ele corretamente.
- Você veio tarde demais. - Ronal disse com o cansaço soando em sua voz. - Eu duvido
que teria escutado antes, quando estávamos cheios de arrogância e orgulho. Você pode
retornar ao seu mestre e dizer que a nossa própria loucura tem feito mais do que suas
palavras jamais poderiam fazer. Aqui estamos nós sentados, como pode ver, desarmados
pelos próprios eventos que colocamos em movimento.
Ele sabe que Aillard poderia tê-lo destruído totalmente e não o fez. Varzil falou
mentalmente para Dyannis. No momento o choque derrubou seu orgulho, mas ele vai se
reerguer, e com ele, uma enorme sede de vingança. Devemos oferecer-lhe algo melhor.
- Com sua licença, - Varzil disse - minha irmã e eu vou ficaremos aqui por um tempo. Há
muitos feridos, aqui e abaixo na torre, que precisam de nossas habilidades. Cedestri deve
ser reconstruída, pelo menos até que suas telas de Hellers e círculos de cura possam
funcionar novamente. Não... – Varzil interrompeu a tentativa de Ronal em dizer algo – não
pedimos nenhuma recompensa por isso. Eu ofereço livremente, sem condições, pois como
Guardião meu juramento me guia a ajudar meus companheiros leronyn’s, e minha
consciência diz para semear a cura em vez do luto, para que a esperança e a amizade
possam eventualmente substituir inimizade.
- Pelos deuses - um dos conselheiros murmurou baixinho - as Torres formaram uma
aliança contra nós?
- Segure sua língua! - Seu companheiro sussurrou - O homem está se oferecendo para
nos ajudar. Sem ele, não teremos nenhuma chance de reconstruir Cedestri, não em nossa
geração.
- Silêncio! – Dom Ronal falou. - Eu humildemente peço perdão por essa conduta tola,
Dom Varzil.
- Não é necessário. - Varzil respondeu calmamente. - Você tem meu perdão e qualquer
outra coisa que eu possa dar para dissipar suas suspeitas. Eu vim para por fim às mais
terríveis armas de guerra e se não posso prevenir, minha missão é remediar. Muitas vezes
não há como escolher de que forma podemos cumprir nosso propósito, só podemos
aproveitar as chances que os deuses nos apresentam.
O rosto do senhor de Isoldir adquiriu alguma coloração, saindo do cinza pálido de
exaustão. Mais uma vez ele cumprimentou Varzil e Dyannis, desta vez com cordialidade. Ele
lhes ofereceu abrigo para a noite em abrigos mais confortáveis do que poderiam ser
encontrados abaixo, mas Varzil recusou, dizendo que não estavam feridos e não deviam ter
essas regalias.
Lentamente, eles fizeram o seu caminho de volta para baixo. Dyannis teria preferido
tentar não fazê-lo na luz incerta das luas e tochas, mas sua pequena égua isoldirana baixou
a cabeça e manteve seu trote firme sem nenhum tropeço.
Ela deve, Dyannis pensou, saber o caminho de cor.
Abaixo deles, os incêndios ainda ardiam, mostrando ao longe a Torre arruinada. Ela
perguntou-se se alguma vez funcionaria perfeitamente de novo. A reparação da estrutura
física era bastante fácil, mas o círculo, se algum sobreviveu, seria muito reduzido. Ela não
tinha certeza se Francisco iria viver, mesmo com seus esforços concentrados.
- Se eu fosse o Senhor de Isoldir, - disse ela de modo que apenas Varzil podia ouvir - eu
teria medo de ser deixado nu sob a espada de Valeron.
- Ronal pode buscar a proteção de um rei mais poderoso, mas não posso imaginá-lo
dobrando seu joelho como vassalo. - Disse ele. - No entanto, se ele for o único a propor
uma aliança, ele irá preferir manter sua dignidade. Ele não precisa aceitar o que termos são
oferecidos, como restos obsoletos de um banquete da última temporada.
- Por que Valeron o deixou assim, então? Por que não destruí-lo totalmente e colocar um
ponto final ao conflito?
Por um momento, Varzil não respondeu.
- Talvez os Aillards entendam, como outros não, quão precário é o equilíbrio entre os
poderes do nosso mundo. Isoldir nunca foi tão poderosa, mas sua ausência deixaria uma
ferida aberta, uma brecha para a ilegalidade que poderia se espalhar como um incêndio
florestal.
- Isso é verdade. - Dyannis concordou. - É melhor o adversário que conhecemos, cujo
temperamento é moldado pela realeza, do que alguns bandidos que não entendem de
honra nem se detém por ninguém.
Ela sentiu seu sorriso, embora não pudesse vê-lo na escuridão.
- Melhor ter cuidado, chiya, ou você vai se tornar uma diplomata formidável.
- Que os deuses me livrem! - Ela riu.
Nos dias que se seguiram, vários dos trabalhadores mais seriamente feridos morreram,
apesar de todos os esforços de Dyannis e Varzil. Por um triste acaso, a parte da Torre que
foi atingida primeiro abrigava a maioria dos monitores de Cedestri. A jovem que tinha
trabalhado com Dyannis era sua única curandeira sobrevivente. As pessoas da aldeia
fizeram o que puderam com o resto das ervas e cataplasmas calmantes.
Francisco recuperava-se lentamente. Em cerca de dez dias ele estava bem o suficiente
para retomar a quaisquer trabalhos. O chefe da aldeia insistiu em dar-lhe a sua própria
cama, onde o Guardião estava sentado, apoiado em travesseiros para facilitar a respiração,
e discutia o Pacto com Varzil.
A energia de Varzil surpreendeu Dyannis. Durante o dia, eles trabalharam juntos, usando
seus laran’s unidos para a cura e supervisionava o povo aldeia e os homens de Carolin.
Normalmente, o trabalho laran teria ocorrido quando as pessoas comuns estivessem
dormindo, para minimizar as distrações psíquicas, mas com a perda ou incapacidade de
tantos do leronyn de Cedestri, eles estavam fortemente dependentes da ajuda das pessoas
comuns.
Quando o trabalho do dia estava feito, uma refeição à noite havia sido engolida e as
tarefas pessoais estavam terminadas, Dyannis não queria nada mais do que rastejar para
sua própria tenda compartilhada com várias das mulheres de Cedestri. Às vezes, ela via
velas acesas na casa onde Francisco se hospedara e sabia que Varzil estava sentado com
ele. Outras vezes, ela sentia sua assinatura mental de longe e encontrava-o sentado sozinho
na pequena elevação além de um campo de cevada.
Ela temia que algo estava perturbando sua mente. Ele era a rocha sobre a qual todos eles
descansavam. Se ele falhasse, não haveria esperança para qualquer um deles. Ela sabia que
ele carregava algum sofrimento secreto. Ela viu nas sombras de seus olhos quando ele
virou-se para a solidão. Ela sentiu a forma como ele segurava o anel que usava na mão
direita com tristeza... Um anel que ela não reconheceu, do qual ele nunca falou.
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LIVRO IIi

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CAPÍTULO 14

A cidade de Forte de Robardin estava à beira das vastas planícies de Valeron. Aqui o rio
Greenstone cruzava duas estradas comerciais principais, ligando o reino dos Aillards com
Isoldir, bem como as Planícies Hastur. Era um município independente, ferozmente neutro,
devido a lealdade não dada a nenhum reino.
A parte central de Forte estava cercada atrás por paliçadas robustas que tinham sido
reforçadas e reparadas ao longo dos anos, algumas partes pintadas numa brancura quase
espectral, outras visivelmente haviam sido recém-cortadas ou brilhavam com uso de óleo.
No dia de sua chegada, Eduin e Saravio estavam embaralhados junto com um comboio
de comerciantes de lã que haviam seguido para a última parte de sua viagem.
Eduin reconheceu o rio com seu cais movimentado, os pendões brilhantes nas cores da
cidade. Quando ele tinha passado através de Forte de Robardin muitos anos antes, ele tinha
sido um viajante privilegiado, um laranzu treinado em Arilinn. Sua barriga estava cheia, suas
roupas ricas e quentes, e apesar de ter passado por uma pequena trilha de poeira, ele
estava tão limpo e bem arrumado quanto qualquer senhor do Comyn.
Agora ele usava farrapos, repletos de sujeira e não tinha comido a dias. Ele carregava um
pacote áspero feito com pedaços de couro caseiros que ele tinha colocado uma bolsa de
água e o cobertor que tinha sido sua única fonte de calor ao longo da estrada. Sua
alimentação foi a dias quando havia gasto o resto de suas poucas moedas. O pacote estava
vazio, exceto por uma camisa em condição ainda pior do que a que ele usava e algumas
miudezas, um copo de madeira, uma colher do tipo mais barato e uma vara para limpar os
dentes.
A saúde de Saravio tinha se deteriorado durante a fuga, embora ele não fizesse nenhuma
reclamação. Com seu laran Eduin sentiu a retirada do outro homem em si mesmo, o
desespero se transformando em uma resistência muda. Saravio não sofreu quaisquer
desajustes ao longo da estrada, pelo menos nenhum que Eduin reconhecesse, mas ele
parecia estar entrando em um mundo de sonhos. Ele comia quando Eduin dava-lhe comida
e deitava-se quando era mandado descansar, embora ele raramente dormisse de uma
maneira normal. Em vez disso, ele enrolava-se sobre si mesmo com os olhos abertos e os
lábios se movendo silenciosamente.
Apesar de o fardo de cuidar de Saravio, Eduin recusou-se a abandoná-lo. Se Saravio tinha
se esgotado ao controlar a multidão em Hali, tinha sido por culpa de Eduin. Eduin não
estava acostumado a sentir-se responsável por outro ser humano. Ele se convenceu que
Saravio ainda seria útil para ele. Mesmo nos momentos em que Saravio parecia pouco
consciente do mundo ao seu redor, ele despertava a pedido de Eduin e cantarolava sua
canção especial. O alívio era suficiente para manter os demônios interiores de Eduin
calmos. Embora Eduin odiasse ser dependente de Saravio, ele também sentia uma pena
estranha pela alma desse pobre, torturado com seu próprio tormento particular. Talvez
quando eles encontrassem um lugar para viver e trabalhar, talvez mesmo em Forte de
Robardin, Saravio poderia recuperar alguma medida de sua sanidade. Até então, Eduin
estava determinado a permanecer com ele e cuidar dele da melhor maneira possível.
Ao longo da estrada, Eduin procurava escutar qualquer notícia de Hali, especialmente
qualquer indício de que ele pudesse estar sendo caçado. Mas não ouviu nada significativo a
esse respeito. Talvez porque ele e Saravio tinham deixado Thendara tão rapidamente e
nunca mais fixaram-se em um só lugar.
Ocasionalmente, havia algum comentário sobre uma perturbação em Hali, mas Eduin não
falava nada com seus companheiros de viagem, fingindo ignorância para não arriscar
demonstrar ter maior conhecimento do que um homem inocente deveria ter sobre o
assunto.
Na entrada para Forte de Robardin, membros importantes das Cidades Secas eram
levados pesadamente em meio a cavalos, mulas, chervines, vagões e carrinhos. Lacaios de
librés corriam à frente de liteiras, gritando para os peões abrirem caminho. Uma pequena
companhia de soldados, aparentemente mercenários por suas armaduras marcadas e a
falta de cores símbolos de qualquer senhor, forçaram seu caminho através da multidão.
Era o final do dia, o grande sol vermelho lançava longas sombras do outro lado da
estrada poeirenta e suavizava o desgaste da paliçada. Eles se aproximaram do portão. Havia
um ponto de controle com guardas armados e um funcionário com função desconhecida,
um homem cheio de ervas daninhas nas roupas que olhava para baixo em seu livro
enquanto escrevia o de cada pessoa. Ele acenou para os comerciantes de lã para que
descarregassem seus animais de carga e saíssem da cidade antes do toque de recolher.
Ele olhou para Eduin e Saravio.
- Nomes? Assuntos?
Eduin inventou um par de nomes e complementou.
- Procuramos trabalho.
- Você e metade do campo. - O funcionário fungou e esfregou o longo afinado nariz. - Eu
suponho que você não tenha o dinheiro para uma pousada também. - Ele apontou com a
ponta de sua pena na direção geral do grupo heterogêneo fora dos portões. - Vê essas
pessoas? Estão dispostas a contratar pessoas para trabalhar como vocês, mesmo que o
empregador exija que o trabalho comece uma hora antes do amanhecer, apenas pelo
pagamento de um dia de trabalho. Pode unir-se a elas e conseguir um trabalho para entrar
na cidade.
Eles se dirigiram para os currais, uma vez que Eduin tinha frequentemente encontrado
trabalho nos estábulos de Thendara. Ele conhecia o bastante sobre cavalos e também
poderia cuidar de chervines. Não demorou muito e começaram a se sujar na poeira em
meio as barracas. No entanto, os tropeiros haviam contratado a algum tempo qualquer
trabalho ocasional que precisassem. Por seus olhares afiados, Eduin percebeu que ele e
Saravio não eram bem-vindos ali.
A luz estava desaparecendo rapidamente e com isso qualquer esperança de entrar na
cidade. Fogueiras pequenas com algo cozinhando pontilhava os aglomerados onde os
comerciantes acampavam com seus vagões. A esta altura, Eduin tremia de cansaço e de
fome e Saravio havia retornado ao silêncio, movendo-se apenas quando Eduin o puxava
para perto.
Eles se aproximaram de várias fogueiras e toda vez eram afastados, às vezes com
carrancas, às vezes com um pedido de desculpas de que não havia nada mais para
compartilhar. Quando Eduin temia cair de joelhos e implorar, dois homens grisalhos
agachados em torno de um fogo onde cozinhavam, ao lado de um barraco trôpego,
ofereceram-lhes sopa e pão. Eduin tinha visto semelhantes a eles uma centena de vezes em
Thendara. Ele sabia que a cor da sua pele, prematuramente envelhecida pela exposição e a
fome, conhecia o olhar calculista em seus olhos. Com estes homens ele poderia negociar.
A sopa era simples grãos cozidos num mingau ralo, talvez com um pouco de cebola
selvagem, mas aqueceu o estômago de Eduin. Ele segurou a tigela de madeira e levou até a
boca de Saravio para ele beber.
Um dos homens observou-o partir os pedaços de pão e mandar Saravio comer.
- Isso mesmo, vocês tem que cuidar de si mesmos, meu caro. - Disse o homem as
palavras distorcidas pelas lacunas em seus dentes. Seu companheiro grunhiu e atiçou o
fogo com uma vara.
- Como você encontrou trabalho aqui? - Eduin manteve o tom casual.
Enquanto os dois homens explicavam o processo de contratação e os melhores lugares
para encontrar vários tipos de trabalho, um deles tirou um cantil de couro. Quando ele
tirou a rolha, Eduin sentiu o cheiro de cidra pura. O homem tomou um gole e ofereceu-o.
Saravio não deu nenhum sinal de que tinha visto algo, mas Eduin sacudiu a cabeça. Uma
bebida iria certamente levar a outra e conhecia-se bem o suficiente para ter certeza de que
ele iria encontrar uma maneira de ficar completamente bêbado. O comando de seu pai
pulsava entre suas têmporas, a barriga vazia doía e ele recuou aos cheiros de corpos sujos e
desesperados, a luz dura nos olhos dos homens... Já estava difícil o suficiente.
- Não é aguenta? - Um dos homens riu, mas o outro estreitou os olhos.
- A erva do vento fantas está mais a seu gosto, hein?
Mais uma vez, Eduin sacudiu a cabeça. Como a maioria das pessoas dotadas com laran,
ele tinha um horror à ervas que alteravam a mente.
- Não, eu só preciso manter meu juízo em perfeito estado.
- Se você tivesse juízo, - o segundo homem disse com uma careta desagradável - você não
estaria aqui, para começar, não é?
Com isso, a conversa virou-se para a vida nos acampamentos distantes. A coleção de
tendas e barracas fora dos muros de Forte de Robardin proporcionou abrigo para uma
sucessão de viajantes a cada verão. A maioria destes eram andarilhos como os dois
homens, soldados quebrados, agricultores ou pastores deslocados pela guerra. Uma vez
que havia apenas alguns vagabundos e o clima estava mais ameno, eles haviam sido
alojados dentro do Forte. Nos últimos anos, no entanto, o seu número tinha aumentado a
tal ponto que não havia bastante trabalho ou habitação. Aqueles que podiam, seguiam em
frente. Outros acabavam de cabeça no rio abaixo.
- Eh, mas você vai fazer tudo certo, logo que você começar a trabalhar. - Disse o primeiro
homem. - Aqui agora, você vai para a cama junto ao fogo e vamos sair amanhã de manhã
para o local de contratação.
Cansado demais para pensar em um argumento, Eduin desenrolou o cobertor e ajudou
Saravio a fazer o mesmo. Envolvido na lã grossa, perto o suficiente das brasas para pegar
um pouco de calor, adormeceu.
Em seus sonhos ele desviou e correu para baixo num labirinto e becos. Eles pareciam
familiar, mas ele não poderia prever seu caminho. Ele procurou pontos de referência, mas
não encontrou nenhum, becos sem saída, únicos e inesperados, paredes barrando o seu
caminho... Quanto mais rápido ele corria, maior era a sensação de pavor.
Mate! Veio a voz de seu pai, não um sussurro, mas uma voz forte como o som de um
chicote. KKK! Mate-os... Mate todos!
Atrás dele havia uma forma escura semelhante uma mulher em uma capa com capuz que
parecia ser feito pelo próprio céu ondulante como nuvens. Eduin não ousava tirar os olhos
do caminho estreito à frente. Fez um grande esforço para ter mais velocidade,
distanciando-se dessa forma misteriosa. Com um assobio, uma corda caiu sobre os ombros.
No instante seguinte, ela apertou em torno de seu pescoço. Ele parou com um solavanco,
apertando mais a corda com o impacto. Ele começou a se debater, lutando por ar...
Mate!
Os olhos de Eduin tornaram-se esbugalhados, acorda prensava cada vez mais sua
garganta. Qualquer movimento iria cravá-la mais profundamente na sua carne. Pela fraca
luz de uma única lua, ele vislumbrou um dos homens curvando-se sobre ele. Seu instinto o
paralisou.
- Não há nada aqui. - Veio a voz do segundo homem e o som abafado de um pacote a
sendo abalado. - Não vale a pena, não dá um único reis.
O primeiro homem praguejou. Ele parecia não perceber que Eduin estava acordado.
- Nós vamos ter que acabar com ele, de qualquer maneira.
Eduin preparou-se. Ele não era um bom lutador, mesmo se ele não tivesse enfraquecido
pela fome nos longos dias na estrada. Mas ele não era indefeso. Ninguém treinado em
Arilinn era. Ele concentrou seus pensamentos alcançando a mente do outro homem,
focando nos nervos dele...
Mate!
A dor o atingiu como se a pele tivesse sido arrancada de seu corpo e estivessem
esfregando sal na carne que escorria sangue. Sua visão ficou branca e os músculos de seu
tórax inflaram em espasmo, de modo que ele não conseguia respirar.
Com um grito, o homem atirou-se para trás. A faca foi deslizando até o chão. A uma curta
distância, o outro homem uivou como um animal.
Ataque de laran!
Saravio, talvez despertado pelo pesadelo de Eduin, tinha atacado com todo o poder de
seu dom. A projeção psíquica do feitiço da compulsão para matar de Rumail tinha sido
sentido em todo o pequeno acampamento.
Eduin ergueu suas barreiras novamente, o mais firme que pôde. Desde o dia em que
chegou em Arilinn, ele protegeu seus pensamentos mais íntimos do mais poderoso leronyn
em Darkover. Os anos escondendo-se no exílio só tinham aumentado a sua capacidade para
criar uma barreira intransponível em torno de sua própria mente.
A dor desapareceu instantaneamente. Ele prendeu a respiração. Na penumbra da lua e
das brasas do fogo, viu Saravio sentado com um olhar de triunfo misturado a uma
perplexidade no rosto.
Um dos seus agressores, o homem com a faca, estava inconsciente. O outro tinha se
enrolado em posição fetal e gemia.
Em nome de todos os deuses, o que Saravio tinha feito?
Eduin sabia muito bem como o laran poderia afetar os vulneráveis. Durante o cerco à
Torre Hestral ele havia projetado ilusões nas mentes dos soldados inimigos. Enlouquecidos,
cada um tinha caído preso a terríveis visões extraídas de seus piores pesadelos. Alguns,
acreditando-se possuídos ou sendo atacados por demônios de Zandru, tinham lançado-se
em suas espadas ou cortado fora suas próprias pernas. Pela primeira vez, Eduin começara a
perceber o que tinha feito.
Timidamente, Eduin baixou as barreiras mentais. Saravio tinha quebrado o seu ataque.
Devia estar seguro o suficiente para monitorar as duas vítimas. Eduin fez uma verificação
rápida de seus corpos, procurando danos físicos. Como esperava, ele não encontrou
nenhum. Saravio não tinha feito seu coração parar ou levado seus órgãos internos à
ruptura.
Eduin procurou por danos em seus cérebros. Lá, nas estruturas primitivas profundas que
governavam emoções primitivas, ele avistou campos áuricos vermelhos disformes com
listras pretas e roxas.
Senhor da Luz, Senhora da Escuridão! Sem querer, Eduin chamou Aldones e Avarra.
Saravio tinha explodido os centros de dor do cérebro de cada homem com força
suficiente para criar um doloroso cataclisma em suas energias vitais. O tumulto de fúrias
em cores ampliadas, indo em direção a outras áreas, dos centros nervosos para a regulação
da respiração e batimento cardíaco, até mesmo para o simples ato de dormir e acordar.
- O que é que você fez? - Eduin chorou.
- Eu... eu não sei o que quer dizer Eduin. O que há de errado com esses homens? Será
que caíram doentes pela comida que estaria ruim? Ou será que eles carregam uma
praga??? - Saravio parecia genuinamente confuso. Seus pensamentos, os que Eduin
conseguia entender, refletiam apenas preocupação.
- Você que fez isso tudo com eles. Você deve reverter isso. - Disse Eduin. – Agora! Antes
que seja tarde demais!
Saravio balançou a cabeça, seu rosto era uma face pálida contra a sombra da noite.
- O que devo fazer? Isto está além até mesmo da habilidade de um monitor.
Uma bola de fogo branca avermelhada inflamou-se na mente do homem ferindo-o como
uma faca afiada e depois entrou em colapso sobre si mesma. No espaço entre um
batimento cardíaco e o seguinte, as energias mentais do homem caíram no silêncio. Nem
todos os ferreiros na forja de Zandru poderiam trazê-lo de volta.
Eduin observou entorpecidamente como um processo semelhante consumia o cérebro
do segundo homem. Por longos minutos, ele sentou-se ao lado das últimas brasas fracas do
fogo. Saravio balançava-se para trás e para frente, cantarolando baixinho. Eduin preparou-
se, mas não sentiu nada do outro homem que não fosse o seu medo e tristeza. Ele não
podia esperar conseguir alguma ajuda de Saravio. Ele deveria decidir o que devia ser feito
por ambos.
Os dois supostos assassinos não teriam ajuda de ninguém. Eduin não acho que eles
seriam indispensáveis em seus serviços, especialmente se eles tivessem assaltado outros
estranhos. Certamente, ninguém na autoridade no Fort viria procurá-los. Se eles
simplesmente desaparecessem, seus vizinhos de acampamento poderiam muito bem supor
que tinham se mudado ou escolhido suas próximas vítimas imprudentemente.
O que foi, ele pensou ironicamente, exatamente o que aconteceu.
Depois de um tempo, Saravio despertou o suficiente para ajudar Eduin a transportar os
corpos para o rio. A margem estava inclinada e barrenta, misturada com água e
samambaias. Os corpos sumiram abaixo da superfície espumosa.
Mesmo que algum pescador ou limpador do rio os encontre na manhã seguinte, Eduin
pensou, não há nada para denunciar como eles morreram.
No caso improvável de que ele e Saravio fossem questionados, eles poderiam dizer que
os dois homens lhes tinham oferecido mingau e um local para dormir, em seguida,
desapareceram na noite. Que também, à sua maneira, foi a verdade.
Eles subiram escorregando várias vezes de volta para a margem, Eduin chegou antes do
amanhecer, pelo menos para uma outra parte da favela. No final, as vantagens do abrigo
rudes e as posses que os dois homens haviam deixado para trás seriam úteis. O pote de
cozinheiro, embora fosse de metal fino e desgastado, era muito valioso naquelas
circunstâncias para ser abandonado.
Na manhã seguinte, Eduin acordou com os primeiros sons de movimento do
acampamento, sentindo seus nervos cansados e seus olhos areados pela falta de sono. Os
dedos de Eduin fecharam-se ao redor do cabo da faca que agora era sua. Uma forte neblina
tomava o céu do leste, mas as pessoas já estavam se mexendo. O cheiro de cebolas
fervendo surgiu vindo do acampamento próximo.
Ninguém se aproximou ou perturbou eles, nem ninguém deu qualquer atenção à ele e
Saravio, além de um olhar e um aceno de cabeça, quando eles fizeram o seu caminho para
os pólos listrados em busca de trabalho.
CAPÍTULO 15

Uma tarde, com a primavera já se tornando verão, Eduin terminou seu dia de trabalho
e voltou para o casebre que agora era sua casa. Ele apertou metade de um naco de pão
embrulhado em um pedaço de pano contra seu peito. Sua outra mão formava um punho
fechado ao seu lado, com unhas cravando as palmas das mãos com força suficiente para
tirar sangue. Ele congratulou-se com a dor física em sua pele. Só ela era real, não a fadiga,
ossos cansados, nem a fome, nem as fileiras de tendas e casebres em ruínas. Não os cheiros
azedos, a luz plana e dura nos olhos dos transeuntes. Nem os sussurros em sua cabeça. Dor.
Apenas a dor.
Ele estava quase lá. À frente, perto do final da estrada caindo aos pedaços estava o
galpão que ele e Saravio compartilharam com uma sucessão de funileiros e pastores que
não podiam pagar nada melhor. As poucas moedas ou pedaços de comida aliviaram sua
situação, especialmente nos dias por demais frequentes quando Saravio não conseguia sair
da cama. Eduin concentrou-se no familiar contorno flácido, o pólo central, os painéis
irregulares. Saravio estaria lá. Esta noite ou na próxima, chegaria o momento em que Eduin
não poderia sair, quando ele não teria mais nenhuma vontade ou resistência, e então ele
iria pediria Saravio para cantar mais uma vez. Com o pensamento sua barriga tremia e sua
boca encheu-se com um gosto amargo, obsoleto.
Ele havia encontrado refúgio neste lugar, nos sedimentos e restos do comércio que
existiam ao longo da estrada e do rio. Passados os dez dias desde sua chegada ele tinha
afundado ainda mais nessa pobreza, até que após alguns dias, ele não conseguia mais se
lembrar por que ele estava ali e que devia se esconder. Ele não tinha nada que alguém
pudesse querer, apenas esses momentos secretos de vergonhoso prazer na fuga das vozes
em sua mente.
Esse maldito e incessante sussurro em sua mente.
Matar... mate todos eles...
Matar? Ele não tinha poder para matar nem a si mesmo. Seu único poder era assegurar
mais um dia de sobrevivência, e mais um dia depois disso.
Eduin estava tão cansado de lutar contra os sussurros, tão concentrado em ocultar seus
passos, que ele já estava perto da cabana antes de notar a caravana pintadas com cores
vivas no campo além. Uma jovem esbelta estava em um carro com um cavalo forte, cuja
oscilação para trás e o focinho fosco denunciava sua idade, mas seu corpo era brilhante e
sua juba estava trançada com fitas coloridas. Uma linha de mulheres e crianças do Fort,
alguns deles bem vestidos, observava atentamente.
Misturado com o tilintar dos sinos, ele ouviu uma melodia cadenciada e o som de um
violino. Os espectadores se separaram e ele viu o que eles estavam assistindo. Duas
mulheres cantando uma velha balada. A cantora era muito jovem, embora de nenhuma
beleza marcante, mas com um rosto novo, agradável. Ela usava um corpete verde brilhante
bordado com lírios, blusa de gola aberta e saia alegremente listrada. Um lenço de franjas
com pequenos sinos amarrados para trás em seu cabelo castanho escuro. Seu corpo
resistente balançava ao som do violino de sua companheira mais velha, uma velha murcha
em um vestido preto e xale.
A música entrou até nos poros de Eduin. Ela não tinha o efeito soporífero do canto de
Saravio, sendo apenas uma melodia comum, docemente cantada e animada o suficiente
para fazer os dedos tamborilarem no ritmo inconscienteme. As crianças riam e os sorrisos
iluminavam os rostos do público. Eduin fechou os olhos e quase podia ver a sala comum em
Arilinn, onde tinha ouvido pela primeira vez esta balada.
Em vez de uma favela e um campo poeirento, paredes de pedras pálidas arqueavam
graciosamente em torno dele. Lembrou-se da sensação de tapetes sob seus pés, cadeiras
estofadas dispostas para o conforto e intimidade diante de uma lareira de pedra enorme.
Uma menina com cabelo cor de fogo sentou-se em um banquinho baixo, as mãos de seis
dedos dedilhavam as cordas de uma rryl, sua voz subindo e descendo de tom. O cansaço de
seu corpo sumiu. Ele quase podia sentir o cheiro do incenso adicionado ao fogo.
Eduin assustou-se e viu-se de volta ao presente. Seus olhos ardiam. A música terminou
com um floreio de saias da menina e uma profusão de aplausos. Algumas das mulheres
jogaram uma ou duas moedas aos pés dos artistas. Rindo, a menina recolheu elas e colocou
em sua faixa. A velha já tinha largado a seu violino e subido na carroça.
- Eu estou indo agora, Tin! - O menino tinha terminado de desatrelar o cavalo. Uma voz
abafada respondeu-lhe da carroça.
- Espere. - Disse a menina. Ela inclinou-se para a porta do vagão, abriu-a e tirou um frasco
graciosamente afilado.
- Encha este, certo? E não se atreva a usá-lo para a prática. - Disse a menina, abanando
um dedo em advertência. - Encontrar algo inquebrável até que você aprenda a fazer
malabarismos corretamente.
Rindo, o menino levou o cavalo em direção ao rio. Eduin observou ele ir.
As duas mulheres começaram a pegar uma tenda dobrada na parte de trás da carroça. Os
pólos eram longos e desajeitados, a própria tenda pesada demais para elas. A velha perdeu
a firmeza e a tenda deslizou para o chão, levantando poeira.
Eduin colocou o pacote de alimentos dentro do galpão e foi até elas. Desde sua chegada
ao Fort de Robardin, ele havia montado muitas dessas tendas, tanto sendo pago para isso
como também para si próprio e Saravio.
- Deixe-me ajudar.
Trabalhando em conjunto, as duas mulheres conseguiram erguer um lado e ele levantou
o outro. Alguns comerciantes tinham lhe ensinado usar as alavancas e a quantidade
excessiva de trabalho braçal tinha reforçado os músculos de seu corpo. Ele ainda era
magro, mas seu peito estava mais largo e seus ombros e braços mais musculosos do que
nunca.
A tenda tinha apenas um teto e uma borda de tecido funcionando como uma parede,
sendo apenas um recinto. Estava desbotada e habilmente remendada, mas tinha sido
arrumada com muito cuidado. Ele notou que ela também funcionava como ambiente de
ensino e de apresentações. Havia também uma série de plataformas prontas para
montagem, que elevavam os artistas acima do público. Ele deu um passo para trás para
admirar a disposição final, imaginando uma multidão de viajantes e populares do Fort.
- Isto é pelo seu trabalho. - A menina tirou uma pequena moeda de prata de sua faixa
dobrada. Nota-se que ela o fazia com certa relutância.
Sem pensar, Eduin sacudiu a cabeça.
- Eu não ofereci meus serviços...
- Você ganhou. Sem você, nós ficaríamos a noite toda armando essa coisa miserável.
- Eu não tinha nada para lhe pagar por sua música. – Ele disse. - E eu não combinei
nenhum acordo por minha ajuda. Também não sou um mendigo.
- Está certo então. - Disse ela com sarcasmo, guardando a moeda. Seus olhos cinzentos
observava-o, as roupas usadas e manchadas com a poeira. Ela voltou para a carroça, em
seguida, fez uma pausa, pensando. - Você aceitaria no lugar do salário, uma refeição
quente?
Ele baixou os olhos, sabendo o que ela viu: um homem que não poderia encontrar um
lugar entre as pessoas decentes, um bêbado, um perdulário, um homem que tinha uma boa
razão para se esconder.
- Pense nisso como uma proposta de negócio. - Ela disse. - Claro, se você estiver
interessado. Estou Raynita e é a minha avó que administra esta trupe. Estivemos em apuros
desde que meu pai morreu há dois anos e nós só perdemos nosso comércio. Tia, Jorge e eu,
podemos fazer boas artes, como está organizado agora, mas precisamos de um outro
homem para a estrada.
Trabalhos? E um jeito de sair daqui... e música? Eduin não tinha certeza se tinha
entendido ou se essa memória nostálgica tinha confundido seu juízo.
- Talvez, - Raynita continuou - você não esteja interessado em um trabalho, não é?
- Eu pego qualquer trabalho que eu possa encontrar, - admitiu - e um homem não pode
viver só de música. Embora ele possa tentar.
- Um homem não pode viver sem ela. - Ela riu.
- Eu... Eu tenho um amigo. Ele vai para onde eu for.
- Traga-o também. Com Tia cozinhando há sempre o suficiente para mais um. Sem
promessas, no entanto. Apenas uma refeição e conversas. Nós não podemos atender o
outro. - Claramente terminando a conversa, Raynita voltou-se para o vagão.
Através do longo crepúsculo, Eduin e Saravio sentaram-se ao redor da fogueira dos
músicos. Na beira da luz do fogo, o velho cavalo cochilava ao lado do vagão. Pássaros
noturnos cantavam e depois ficavam em silêncio. Ao longe, rãs formavam seu coro ao longo
do rio.
A velha, chamada Tia, ou era mesmo tia de alguém, havia surgido com uma mistura de
grãos tostados, folhas verdes do verão e cebolas. Eduin não conseguiu identificar os
temperos. Ele pensou que algumas especiarias podiam ter vindo de tão longe quanto
Ardcarran ou Shainsa, nas Cidades Secas. A comida era o tipo de pratos simples, nutritivo
que as pessoas do campo comiam quando a carne era escassa. Era saborosa e nutritiva em
comparação com o refugo que ele provou em Thendara. Mesmo a tisana, uma mistura
delicada de ervas em água fervida, tinha um gosto limpo que deixou seu estômago quente e
sua língua satisfeita.
Eduin disse o mínimo possível sobre sua própria história, mas Raynita respondeu
livremente suas perguntas sobre a trupe. Eles haviam se apresentado no campo em torno
de Isoldir no último ano.
- Pensamos que seria uma boa, que seríamos bem-vindos em Cedestri, a Torre. Nós
tinhamos ouvido que havia um grande senhor do Comyn ali, um tenerezu de renome, e isso
sempre significa uma necessidade disse música. - Disse ela.
Comyn... um grande Guardião...
Eduin mascarava uma onda de excitação. Poderia ser verdade? Ele poderia ter tropeçado
mais uma vez em um fragmento boa sorte?
- Era Varzil Ridenow, que é Guardião em Neskaya? - Ele perguntou.
- Eu não sei. Antes que chegasse aos resíduos mais próximos, toda a área foi colocada em
isolamento. Isoldir e as grandes terras dos Aillards têm estado em guerra desde que me
lembro, mas nunca foi tão ruim.
Eduin assentiu. Os rumores se espalharam como pulgas através da favela quando os
homens estiveram com muito tempo ocioso em suas mãos.
- Houve uma grande batalha, com bombardeios de fogo e grande desolação. É claro, não
adiantaria nada irmos até lá, pois eles agora tem outras prioridades, não poderiam gastar
com entretenimento. Pensamos em nos apresentar novamente para aquele povo pobre,
para iluminar seus corações, mas, como o homem sábio disse, alegria não enche de
ninguém barriga vazia.
Eduin franziu a testa. Varzil provavelmente nunca iria para Cedestri. Era perigoso demais.
Melhor acreditar que Varzil, assim como Carolin, estaria sempre fora do seu alcance e que a
vida que ele conhecia agora que era tudo o que restava.
Você jurou... O sussurro ecoou em sua mente.
- À medida que viajamos para Valeron, - Raynita continuou - nós vimos mais da guerra.
Oh, foi terrível! Um carro aéreo tinha sido explodido no céu e lá estava enegrecida terra ao
redor. Você podia ver pequenos pedaços dele, até mesmo pedaços de metal.
- Maldita bruxaria. - Disse Saravio.
Raynita parou e olhou de modo estranho para ele.
– Sim, isso é o que Tia disse. Ela nos proibiu de chegar perto, nem mesmo para colher o
metal.
A velha balançou-se, sugando o ar através do espaço entre os dentes.
- Nesses lugares a morte paira no próprio ar que você respira. Você não pode vê-lo ou
tocá-lo, mas ele está lá, tudo misturado no ar formando uma coisa só.
- Ela assustou Liam, o nosso comerciante. - Disse Raynita a Eduin em um sussurro.
Após a refeição, o jovem Jorge, que mal tinha dito uma palavra, pegou um pequeno
alaúde e começou a dedilhar uma melodia. Cantarolando, Raynita lançou um contraponto.
Em poucas notas Eduin reconheceu a canção.
Oh, não, não agora...

Oh, a cotovia da manhã,


Ela nasce no oeste...

Balançando suavemente, Saravio começou a cantar. Não havia nada que Eduin poderia
dizer para impedi-lo. Eduin preparou-se para a vibração subjacente de laran que era um
sinal da manipulação de seus centros de prazer. Então, ele estaria perdido, preso entre o
esquecimento doentio e a raiva de culpa e tormento, mesmo sem o abrigo das trevas para
escondê-lo. Essas pessoas, Raynita, Jorge e Tia, cujos olhos negros tinham boa percepção,
iriam ver o que ele passava...
O que isso deveria importar? Naqueles anos nas ruas de Thendara, ele nunca tinha
voltado um único pensamento para a opinião de ninguém, só que eles lhe deram tão pouco
antecedência possível. A multidão no lago era apenas um meio para um fim, um exército
sem rosto de Naotalba. Antes disso, em Arilinn, ele valorizava seus professores pela
aprendizagem fornecida que iria comprar o seu lugar, a sua chance. Varzil tinha sido um
obstáculo, e Carolin...
Carolin o amava como um irmão, tinha tomado sua parte, Carolin... Carolin deveria
morrer, Carolin ainda devia morrer... ele devia destruir essa fraqueza de seu coração, agora
e para sempre...
Em um flash, Eduin reviveu aquele momento em que Saravio tirou-o da sarjeta em
Thendara, a rachadura na armadura negra de sua solidão. Carolin tinha perfurado primeiro,
e depois Dyannis, e agora a fraqueza estava dentro dele, esperando por mais um momento
como esse.
Em qualquer outro momento, ele poderia ter tentado bloquear os envios mentais de
Saravio para manter suas barreiras, mas não esta noite. Não com a pressão insistente quase
até ao ponto de ruptura nestes últimos dias. Não com a memória da amizade de Carolin tão
fresca em seus pensamentos.

E chega em casa à noite com o orvalho sobre o peito.

Com sua voz clara como um sino de prata, Raynita respondeu a Saravio. Ela sorriu,
observando seu rosto, mas ele não deu nenhuma resposta, nem mesmo quando ela teceu
uma harmonia acima de sua voz.

...Ela assobia e canta,


e chega em casa à noite
com o orvalho sobre as suas asas.

Eduin preparou-se, mas nenhum toque mental surgiu em sua mente. Nenhuma onda de
êxtase o levou em suas garras sem remorsos. Havia apenas a música, doce e simples, a voz
treinada da menina que alçou acima da de Saravio, o menino tocando junto, a velha
balançando com a batida.
Claro, ele percebeu. Essas pessoas não nutriam nenhuma dor profunda para acionar o
dom de Saravio. Ele próprio não tinha perguntado, tinha mascarado sua própria
necessidade.
Jorge terminou a música com uma cascata de arpejos. Raynita bateu palmas.
- O que você acha, Tia? Vamos levar os dois? Eduin para transportar as coisas pesadas e
Saravio para me apoiar em uma balada ou duas?
A velha arrumou o xale mais apertado sobre os ombros, embora a noite estivesse amena.
- Minha neta tem toda a pressa da juventude. - Ela falou olhando entre Eduin e Saravio. É
bem verdade que precisamos de um par de braços fortes, e a voz de um segundo homem
não vai ser uma coisa ruim. Mas não há necessidade de apressar as coisas. Se quiser,
podemos pagar-lhe a cada dia, enquanto nós estamos aqui. Então, quando estivermos
prontos para sair, vamos falar de novo sobre isso.
Durante todo o verão, os músicos mantiveram-se em Fort de Robardin. Eduin levava água
e lenha e Saravio cantava com Raynita. Eles tocaram para os comerciantes de Fort e a
sucessão de viajantes e comerciantes que passavam. Tia decidiu diminuir sua estadia e
seguir em frente antes que a temporada acabasse para Isoldir que tinha fechado suas
fronteiras e havia rumores de guerra. Ela iria para Valeron no inverno. O clima mais ameno
e a força do poderoso clã Aillard iria fornecer abrigo contra mais de um tipo de tempestade.
Quando Raynita convidou ambos para irem junto com eles Saravio parecia singularmente
sem entusiasmo. Eduin sentou-se com ele em seu pequeno casebre, que tornara-se ainda
mais pobre e confinado com o avanço verão. Agora a cada dia passado ao ar livre, em meio
a risos e músicas, deixava-o menos capaz de suportar a miséria e o isolamento. As cabanas
e barracas foram desmontadas após a primeira queda de neve e Eduin não achava que
poderia suportar um inverno atrás das muralhas da cidade, supondo que por algum milagre
ele pudesse encontrar um lugar para os dois lá. A oferta dos músicos tinha vindo como uma
tábua de salvação.
Quando ele perguntou a Saravio qual era o problema apenas respondeu:
- Eles não são fiéis a Naotalba.
- O que você quer dizer? - Eduin perguntou.
Saravio deu de ombros. Ele tinha estado dócil desde a fuga de Thendara, mas ele podia
ser muito obstinado, especialmente se ele acreditasse que se tratava da vontade de
Naotalba. No entanto, ele tinha estado mais ágil e alerta, às vezes quase alegre, desde que
ele começou a cantar com Raynita. Os guisados de Tia guisados tinham melhorado seu peso
e a leveza em sua alma, e algumas vezes ele sorria das palhaçadas de Jorge.
- Eles são boas pessoas, - disse Saravio - mas eles não têm nada a ver com Naotalba, ou
ela com eles. Não importa se vamos com eles ou permanecer aqui. Mas... mas eu não posso
ouvir sua voz ou vê-la desde que chegamos a este lugar. Ela não nos abandonou... ela não
abandonaria... Ela nos prometeu... Não abandonamos ela. Não voltar no lago poderia ter
feito ela se desviar de nós por causa disso???
-Não, não. - Eduin respondeu com toda a tranquilidade que conseguiu reunir. - Naotalba
mantém a fé quando todos os outros se desviam. Você sabe disso e é por isso que ela
escolheu você para ser seu herói. - As palavras brotaram de sua boca espontaneamente,
sem intenção ou planejamento. Pensou na facilidade com que ele e Saravio se uniram com
os músicos, e pela primeira vez parecia mais do que um feliz acaso.
Outro pensamento veio a ele e apoderou-se dele.
- Talvez haja algo aqui que nos impeça de sentir a presença de Naotalba. – Ele sugeriu. -
Ela deve ter enviado os músicos para nós a fim de nos levar para longe deste lugar. Só
quando sairmos daqui poderemos saber qual a sua vontade para nós.
O rosto de Saravio se iluminou.
- Sim, isso deve ser o plano dela. Naotalba tem muitos servos e nem todos eles são
sensíveis da sua glória.
Depois disso, Saravio dedicou-se na preparação para a jornada com grande entusiasmo.
Eles deixaram Fort de Robardin andando ao lado da carroça junto com Raynita e o jovem
Jorge, enquanto Tia guiava. Era como se tivessem sempre trabalhado juntos.
CAPÍTULO 16

A trupe parou no lado da estrada em uma área aberta entre duas cadeias de
montanhas para descansar o cavalo idade avançada. Nuvens formavam-se no céu,
difundindo a luz no início da tarde. Pedras, algumas delas do tamanho do vagão,
pontilhavam na pista, mas o terreno plano era principalmente formado por cascalho fino.
Gramíneas tinham criado raízes e, em seguida secado nas bordas acinzentadas do terreno.
Jorge perguntou se havia algum perigo de inundações repentinas, mas Tia disse que não, o
rio que fluiu uma vez aqui tinha secado há muito tempo.
A velha logo acendeu uma pequena fogueira acesa e colocou a água para ferver. Ela fazia
refeições para todos, incluindo Eduin e Saravio, em alguma programação própria, por vezes,
servindo refeições quentes na parte da manhã e fria à noite. Agora, ela se inclinava sobre a
panela, mexendo em rodelas verdes de cebola selvagem.
Raynita passeou para onde Eduin estava. Seus olhos seguiram Saravio, que se afastou.
Ele se levantou, com cabeça jogada para trás, olhando para leste ao longo do leito do rio.
- Ele é estranho. - Disse ela. - Ele fica bem comigo quando cantamos juntos, mas o resto
do tempo eu não tenho certeza se ele sabe que existo.
Jorge veio até eles, sorrindo.
- Eu encontrei o local perfeito por ali. É grande o suficiente.
Raynita suspirou.
- Vá na frente, então, e comece o aquecimento. Eu estarei lá em breve.
Quando Jorge se afastou feliz, ela virou-se para Eduin.
- Eu estava esperando Jorge cair no sono, mas ele está determinado a praticar sempre
que pode. Ele está certo, é claro. De volta ao Fort, as performances foram suficientes para
mantê-lo feliz, mas quando estamos viajando, ele sempre quer tentar algo novo.
Eduin confessou que não sabia nada de acrobacias.
- Então venha e aprenda. Seria bom se alguém mais pudesse acompanhar ele. Eu me
senti tão cansado nesses últimos dez dias, tudo que eu quero fazer é dormir. - Bocejando,
Raynita dirigiu-se para o vagão. Ela saiu pouco tempo depois com calças de menino em vez
da saia de costume.
Eduin assistiu a uma distância como Jorge fez seus exercícios preliminares, alongamento
e rolamento, como flexionava seus músculos. Tais proezas de habilidade física nunca
tinham atraído muito o interesse de Eduin. Seus anos em Arilinn o deixaram convencido da
superioridade dos poderes mentais. Ele sentiu a concentração de Jorge quando ele se
preparou para um movimento com a mão, endireitou as pernas e depois eles se separaram,
balançando tanto que ele quase caiu, os uniu novamente e rolou para a frente. O menino
subiu sem parar e formando uma estrela várias vezes. Ele estava claramente se divertindo.
Raynita o seguia de perto, rindo.
Raynita gesticulou quando comentou sobre a técnica de Jorge. Para surpresa de Eduin,
ela então passou a repetir os mesmos movimentos, só que com uma leveza e graça
surpreendentes.
- Eu não consigo manter a firmeza sobre as divisões como você. – Jorge resmungou.
- Você conseguirá. - Ela respondeu. - Experimente desta maneira.
Eduin olhou de volta para o acampamento onde ele tinha visto Saravio pela última vez,
mas o outro homem já não estava lá. O que ele tinha visto, olhando ao longo do leito do
rio? Outra visão de Naotalba? A impressão passada de água corrente, talvez uma
tempestade por vir? Eduin estendeu a mão com seu laran, além das nuvens, sentindo a
corrente do ar...
Ele ouviu uma série de baques abafados e, em seguida, Raynita, gritando. Eduin virou-se
para ver os dois artistas que estavam em um emaranhado no chão. Ele correu para eles.
Raynita estava lutando para subir, mas Jorge ficou imóvel. O sangue brilhou no emaranhado
de seu cabelo.
- Ele simplesmente entrou em cola... co... colapso. - Raynita gaguejou. - Ele deve ter
colocado a sua errado mão. Eu não pude segurá-lo... Oh, deuses, é tudo minha culpa! Eu
nunca deveria ter... Eu estava muito cansada...
Eduin ajoelhou-se para examinar o menino. Os anos de formação assumiram o comando.
Sem pensar, ele baixou as barreiras e começou a procura, usando seu laran para rastrear o
fluxo de nervo e sangue, sentindo a integridade do osso, a proteção arqueada e lisa do
crânio, o trabalho das membranas amortecendo o cérebro, o padrão delicado de sangue em
seu fluxo. O sangramento do couro cabeludo do menino era superficial, o osso estava
intacto. Mas havia dentro do círculo dos vasos comunicantes na base do cérebro algo...
Jorge não tinha ferido a cabeça quando ele caiu. Ele caiu por causa do que já estava
dentro de sua cabeça. Embora Eduin não houvesse trabalhado muito como monitor, ele
sabia o básico. Ele podia sentir a integridade dos músculos e nervos, vasos sanguíneos e
canal de energia, os nós que transportam força da vida e o laran, os gânglios de nervos, o
pulso e fluxo da linfa, as lentas secreções das glândulas. A coisa dentro do cérebro do
garoto pulsava com o seu próprio ritmo arcano. Não era um câncer, nem qualquer
formação anormal da artéria, mas um núcleo de escuridão não natural. Que o rodiava,
tecidos lutaram e morreram, diminuindo em uma concha necrosada. Fedia a laran.
Não só isso, Eduin reconheceu o padrão de energia característico de pó derrete-osso. Ele
nunca tinha feito a poeira tóxica, mas cada laranzu treinado na Torre conhecia sua
assinatura. Ele nunca tinha ouvido falar de um caso como este, um único, relativamente
grande de partículas como um cristal, em vez de partículas de pó. O menino ainda estava
vivo porque o pó derrete-osso não dispersou por todo o seu corpo, mas iria, no entanto,
tirar sua vida.
Eduin foi para trás, puxando as costas da mão na boca. Nunca em todos os seus anos de
treinamento na Torre, nem em seu exílio, havia encontrado uma coisa dessas. Ele não podia
imaginar como tinha sido introduzido no corpo do menino, só isso agora minando sua
vitalidade como um câncer, cercando-se com um terreno baldio que se espalhava cada vez
mais para fora com cada dia que passava.
Então ele se lembrou do que Raynita tinha dito sobre o campo de batalha que já tinha
passado: um carro aéreo explodiu do céu... terra toda enegrecida... a proibição de recolher
o metal precioso. A velha tinha dado uma descrição surpreendentemente precisa dos
efeitos prolongados da pó derrete-osso.
"A morte paira no próprio ar que você respira. Você não pode vê-lo ou tocá-lo, mas ele
está lá tudo formando a mesma coisa."
O carro aéreo deve ter vindo a desenvolver esta nova forma de pó derrete-osso quando
foi atacado, e mesmo que os músicos não tivessem mexido nos destroços, eles poderiam
ter sido expostos. Jorge, com a impulsividade da juventude, pode ter se aventurado perto
demais e alguns cristais de alguma forma fizeram o seu caminho em seu corpo.
Como Eduin considerou essa possibilidade, uma onda de dor passou pelo garoto já com
sua mente quase inconsciente. Eduin viu isso como uma cortina de vermelho cintilante,
cobrindo tudo, mas quando se tocou seus próprios pensamentos, ele recuou.
A partícula mortal agia não apenas sobre centros de equilíbrio do menino, mas sobre as
áreas do cérebro que registram a dor.
O corpo de Eduin vibrava com um tremor fino, como em resposta. Não adiantava. Ele não
podia penetrar as ondas de agonia para anular a energia produzida pela partícula, mesmo
admitindo que isso fosse possível.
Com um esforço, Eduin calou os ecos ressonantes dentro de seu próprio corpo. Seus
dedos moveram-se automaticamente para a sua pedra da estrela guardada em seu cinto. A
sujeira já havia endureceu a bolsa de seda isolante.
Ele hesitou. Um medo reflexivo por tantos anos de clandestinidade despertou nele. O
único caminho seguro seria sacudir a cabeça e as costas para deixar o curso natural das
lesões do menino prevalecer. Ele não devia nada a estas pessoas.
No entanto, algo ainda mais profundo do que o medo estimulou-o, a parte dele que
ainda mantinha o juramento que ele tinha feito quando abriu sua mente para um círculo na
Torre em Arilinn. Que parte dele se abria como uma flor ao sol para a música e amizade
fácil de Raynita. Parte dele não poderia deixar Jorge morrer ali ao longo da trilha.
Uma sombra caiu sobre ele e, em seguida, uma figura se ajoelhou do outro lado do
menino. Era Saravio, seu constrangimento transformado em graça sobrenatural. A dor de
Jorge devia tê-lo despertado para a ação. Saravio tocou o pulso do menino com uma mão e
colocou a outra na testa óssea e pálida.
- Descanse agora, é fácil. - Saravio murmurou. - Nenhum dano alcaçará você. - As palavras
eram mais cantadas do que faladas, com uma calma suave que Eduin sentiu em sua
medula.
- Vamos cuidar do menino. - Disse Raynita. - Vá e prepare uma cama para ele no vagão.
Peça a Tia para preparar uma de suas tisanas. - Quando ela hesitou, ele disse com maior
intensidade e uma cutucada de seu laran: - Deixe-nos agora. Nós não devemos ser
perturbados.
Quando teve certeza de Raynita não podia ver, Eduin pegou a pedra da estrela e apertou-
a na mão. Ela estava fria e depois ficou quente contra a palma da mão. Ele fechou os olhos,
olhando para dentro.
Focando sua mente através de sua pedra da estrela, Eduin inclinou-se mais uma vez
sobre o menino. O poder surgiu através dele, seu próprio e poderoso laran amplificado pela
matriz de cristal. Quando Saravio continuou seu canto hipnótico, a dor do garoto
iluminado-se com uma coloração suave como o amanhecer. Embora o laran das partículas
ainda pulsasse, agora com uma luminescência estranha, uma sensação de total bem-estar
impregnou o corpo do menino. Sua mente vagava de agonia para a calma sonhadora.
Então foi isso que Saravio fez com a menina que morrendo em Thendara, pensou Eduin.
Saravio não poderia salvar a filha do gerente, mas ele poderia trazer conforto para a sua
passagem. Seu dom parecia agir como um espelho para a necessidade de cada pessoa.
A euforia roçou a mente de Eduin. Seu tormento interior recuou. Surgiu uma forte
tentação em afogar-se no que Saravio oferecia. Por mais que ele desejasse isso para si, ele
sabia o que isso significava, uma armadilha mais mortal do que a bebida. Ele se concentrou
mais uma vez para a tarefa de cura.
Havia um pequeno monte e, embora houvesse muitos mais nos pulmões do menino, só
este que tinha causado um grau considerável de dano e só devido à sua localização.
Eduin nunca foi sido ensinado a como neutralizar pó derrete-osso, mas não viu nenhuma
razão para não tentar. O que tinha sido criado por laran poderia facilmente ser destruído
por laran. Na Torre Hestral Varzil e Loryn Ardais tinham desmontado as antigas fontes de
fogo aderente, em vez de entregá-los a Rakhal Hastur.
Levou alguns momentos para encontrar a assinatura vibracional. Sob o olhar de sua
mente treinada, o cristal se desintegrou. Em poucos instantes, a circulação natural dos
tecidos começou a remover os restos celulares e drenar o excesso de líquido. Felizmente,
houve pouco dano permanente.
No momento em que Eduin já tinha quase erradicado as partículas restantes, o menino
estava saindo de seu transe.
- Você vê, - Saravio murmurou - é como eu disse a você. Tudo está bem com você, não é?
O menino sentou-se. Seus olhos não estavam muito focados, mas a exclusão repentina
de sua dor acalmou suas feições, dando-lhe o aspecto de uma criança acordando de um
sono longo.
- Eu temo que eu tenha praticado em demasia hoje. O calor... Eu preciso ver Tia para
uma de suas tisanas.
Eduin e Saravio ajudaram-no a voltar para o acampamento. Eduin sabia bem o que tinha
acontecido e sabia ser inútil tentar conversar com Saravio sobre isso, embora este tenha
sido o momento mais alerta e responsável de Saravio em dez dias. O homem ruivo só iria
alegar que tinha sido a vontade de Naotalba.
Várias vezes, Raynita tentou falar com Eduin sobre o que tinha acontecido. Ele alegou
apenas que em suas viagens, ele e Saravio tinham aprendido a tratar lesões simples.
- Eu não sou tão tola assim. - Ela o encarou com seus olhos cinza tempestuosos. - Eu vi
como ele caiu. Eu ouvi sua cabeça bater no chão. Eu vi o sangue. Eu sei que não foram
meras palavras e olhares que o curaram.
Quando Eduin começou a protestar, ela se apressou em.
- Não, não diga-me mentiras como ‘Jorge não estava tão ferido’ ou ‘você estava muito
emocionada para ver claramente’ porque eu sei que Saravio usou alguma magia com ele.
Diga-me!
- Jorge está bem. - Eduin disse. - Você não pode se contentar com isso?
- Ah! - Disse por fim. - Vejo que você não vai mesmo responder.
Eduin viu nos olhos de Raynita o custo de sua resposta. A amizade fácil e leve havia sido
abalada, drenada. Algo frio e cinza tomou o seu lugar. Ela queria respostas e ele ofereceu
evasivas. Depois de uma vida mantendo segredos por que este iria incomodá-lo agora?
Eles viajaram entre as colinas, seguindo o curso natural ao longo do leito do rio seco. Aos
poucos, o terreno mudou, ficando menos rochoso. Bosques surgiram. Passaram por uma
aldeia com lago e muita pesca, onde eles se apresentaram algumas vezes, tomaram banho
e se abasteceram com água e peixe seco. A partir daí a estrada se alargou. Eles viram outros
viajantes, comerciantes com seus vagões carregados, um rebanho de ovelhas, uma escolta
de um carro coberto.
Eles acamparam em um bosque de carvalhos antigos ao lado de um córrego. O local era
fora da estrada e parecia bem cuidado, pois havia vários círculos de pedra para fogueiras de
cozinheiro.
Raynita continuou a observar Saravio. Ao crepúsculo, Eduin a viu atrás da linha de
piquete do cavalo. Ela tinha encurralado Saravio contra uma árvore morta. Sua voz foi
levantada em suplica.
- É apenas uma pequena coisa que eu peço, e nem mesmo é para mim. - Disse ela. -
Depois da maneira que você curou Jorge...
Eduin hesitou. Eles não o tinham visto ainda. Não era tarde demais para recuar.
- Naotalba não me disse nada a respeito de bênção a crianças. - Disse Saravio. Algo na
ansiedade da menina devia tê-lo despertado, pois ele parecia extraordinariamente alerta.
- É cedo ainda... - A voz da menina diminuiu. Eduin ouviu o medo puro em sua voz.
Ele avançou, quebrando o silêncio constrangedor entre eles. Raynita girou e fugiu para as
sombras das árvores enormes. Seus pés chutando pilhas de folhas murchas.
- Não bebês. - Saravio murmurou. - Nada de bebês.
- Por que não? - Disse Eduin. A recusa de Saravio o irritou irracionalmente. - Você não
teria nenhum problema em ajudar o menino. Certamente você pode dar uma bênção por
misericórdia.
Assim que Eduin pronunciou essas palavras ele percebeu que a misericórdia não tinha
nada a ver com as intervenções de Saravio. Por acaso houve misericórdia ao conduzir a
multidão no lago Hali em um frenesi de matar ou infligir dor letal sobre os dois ladrões? Ele
olhou para Saravio e se perguntou se esse era o mesmo homem que o havia tirado das
calhas de Thendara, alimentado-o, feito amizade com ele, dado-lhe um vislumbre de
esperança. Como a própria Naotalba, Saravio parecia ter duas faces. Eduin esperava que ele
nunca perdesse o amigo ficando apenas o fanático.
- Venha, meu amigo. - Disse ele. - É hora de descansar. Temos um longo caminho a
percorrer amanhã. Temos que estar descansados para servir a Naotalba.
- Descansados. - Repetiu Saravio. - Sim, o descanso será bom.
Saravio adormeceu assim que ele deitou-se sob o cobertor ao lado do fogo cozinheiro
apagando. Eduin sentou-se olhando para as brasas alaranjandas, tentando ainda acalmar
seus pensamentos. O sono não viria.
Acima, Idriel e a pálida Mormallor seguiam seu curso leitoso através do céu na abertura
entre as sombras das árvores. O leve cheiro das ervas daninhas na margem do rio atingiu
suas narinas. Os ecos do feitiço de Saravio ressoavam debilmente em Eduin. A pressão
dentro de sua cabeça diminuiu.
Nada de bebês Saravio tinha dito. Certamente que não faria mal se certificar que Raynita
carregava uma criança saudável. Ele poderia monitorá-la ele mesmo e, em seguida,
oferecer garantias em nome de Saravio. Era um favor suficientemente pequeno e
significaria muito para ela. Ele se perguntou quem seria o pai. Raynita nunca tinha
mostrado qualquer interesse particular em um amante, mas depois, como ele poderia
saber? Se Tia não se opôs, ele também não o faria.
Amarrada em um cabo entre o vagão e uma árvore, a tenda de Raynita mal era grande o
suficiente para uma pessoa dormir. Ele agachou-se ao lado do pano grosseiro e remendado
que não significava nenhuma barreira para seus pensamentos. Ali nas sombras ele não
tinha medo de ser descoberto. Ele retirou sua pedra da estrela e segurou-a entre as mãos.
Uma torção de fogo azul pálido brilhou em suas profundezas.
A mente de Raynita apareceu em sonhos como os de uma vítima de febre, lançando uma
distorção estranha sobre seus canais de energia.
Tão facilmente como deslizar entre camadas de seda, Eduin passou através das defesas
da menina. Embora ele sondasse através de camadas de músculo e tecido conjuntivo, ele
não sentiu nenhum brilho dourado emanando de seu ventre. Com uma sacudida
nauseante, ele percebeu que Saravio tinha razão em seus murmúrios sobre o silêncio de
Naotalba quanto ao assunto dos bebês.
Raynita não estava grávida. Em vez disso, ela carregava um poço profundo de
luminescência verde doentio dentro de sua barriga.
Essa partícula era maior do que a que havia no corpo do menino, ou talvez houvesse
várias delas agregadas, juntas. Eles estavam num dos tubos principais que iam ao útero,
onde uma bolsa cheia de sangue tinha se formado num mimetismo grotesco de uma
verdadeira gravidez. Muito em breve iria se romper, levando a vida da menina.
Eduin não parou para considerar. Ele moldou seu laran em uma ponta de lança e enfiou
na bolsa. Antes, em no cérebro de Jorge, as partículas tinham piscado e depois ficado
inertes. Estas se transformaram fundindo-se por um terrível momento antes de se
desintegrar em cinzas. Uma dor lancinante como um raio surgiu através dos sonhos de
Raynita. Vagamente, ouviu-a num gemido. O flash de calor desapareceu deixando uma
cicatriz espessa. Eduin não achou que conseguiria abrir o bloqueio em tais tecidos delicados
e ele já estava sentindo o tremor da exaustão.
Era o suficiente para que a menina vivesse. Então ele retirou-se.
Som trouxe Eduin de volta ao mundo físico. Um farfalhar das folhas secas, o crepitar de
um galho. Uma figura apareceu, por um instante a figura não pôde ser identificada, pois
estava contra o brilho fraco das brasas fogo onde havia sido cozido os alimentos horas
antes. Eduin reconheceu as saias da velha curvada sob o peso dos anos. Enquanto ele
movia seus pés para se levantar, ele procurou uma desculpa plausível para a sua presença
aqui.
Ele limpou a garganta, mas ela falou primeiro.
- Você não é um homem tão mal como você acredita ser, nem seu amigo é um simplório.
Guardarei seus segredos. Eu não me importo com os segredos de qualquer homem. Ouça-
me, Eduin. Isoldir tem assistentes do seu povo em grande quantidade e sem necessidade.
Em vez de ir até lá, eu o aconselho a voltar o seu caminho em direção às planícies de
Valeron e da cidade de Kirella, onde a filha mais nova do Senhor vagueia dentro da prisão
de seus próprios sonhos loucos e ninguém pode alcançá-la. Você poderia ajudar e ganhar a
gratidão daquela família.
Com essas palavras, ela recuou para as sombras.
Eduin sentou-se no chão. Kirella foi o lar de um pequeno, mas poderoso ramo do clã
Aillard, e o clã Aillard era inimigo jurado de Isoldir. Se ele pudesse ganhar a confiança do
Senhor de lá ele poderia muito bem ser capaz de usar esse grande clã como arma contra
Varzil. Mesmo se ele falhasse ele ainda teria Saravio. Juntos, eles iriam encontrar refúgio
em Kirella. Isto é, desde que fossem capazes de curar a moça cuja doença tinha se tornado
uma história bem conhecida.
Capítulo 17
Eduin e Saravio viajaram com os músicos até que chegaram Carskadon, a próxima grande
cidade comercial. Apenas uma paliçada desorganizada defendia o lugar, mas as tripulações
dos homens trabalhavam na sua reparação e guardas ficavam inquietos ao lado dos
portões. Nenhuma coleção de casebres estava prejudicada na paisagem circundante. Casas
com jardins e cooperativas de galinheiros ordenadamente se alinhavam na estrada. A
cidade em si tinha crescido em torno de uma praça central, uma vez que um campo de
terra batida onde os comerciantes se reuniam para negociar, agora estava limitado com
edifícios de madeira, estábulos, estalagens, armazéns e salas de artesanato. Após a sua
chegada, um menino que conduzia um rebanho de gordos chervines dirigiu-os a um lugar
na periferia eles poderiam sair com segurança de sua carroça e encontrar alimentação
barata para o cavalo.
O grupo fez apresentações na praça do mercado e, em seguida, mudou-se, mas Eduin e
Saravio permaneceram. Eduin usou a sua parte dos lucros obtidos para conseguir um
quarto em uma das pousadas mais pobres. Ele tinha formulado um plano.
- Naotalba falou comigo de novo. - Eduin disse a Saravio. - Ela me mandou procurar
aqueles que necessitam de seus poderes miraculosos. Através de nós, ela vai restaurá-los à
alegria.
- O que devemos fazer?
- Devemos assumir novos nomes. Temos de nos afastar da raiva e semear a cura. Através
de nós, Naotalba vai curar os doentes e alegrar o coração de todos que atenderem a seu
chamado.
Eduin então cuidou da publicidade de Saravio como um curandeiro com inspiração
divina. Como não havia uma Torre nas proximidades, algumas pessoas do povo não tinham
acesso a qualquer medicamento além de ervas tradicionais. Eduin vestiu Saravio em vestes
pretas e uma capa de malha da mesma cor. Negro como um capitão de Naotalba, pensou. A
vestimenta incomum reforçaria o carisma de Saravio.
Saravio cantava enquanto Eduin aplicava suas habilidades de laran. Juntos, eles eram
capazes de lidar com várias doenças do corpo e da mente. Depois de alguns tratamentos
gratuitos, eles conseguiram bastante trabalho entre os habitantes da cidade e os
comerciantes, para pagar melhores alojamentos. As notícias de seu sucesso se espalharam
rapidamente por toda a paisagem circundante. Pessoas de fazendas e aldeias próximas
viajaram para a cidade com seus entes queridos enfermos ou, às vezes, apenas por
curiosidade.
Logo chegou a hora de seguir em frente, enquanto o tempo estava bom. Eles não deviam
arriscar passar o inverno ali. Eles tinham conseguido moedas suficientes para comprar
roupas decentes, dois cavalos e um animal de carga.
De Carskadon, desceram as planícies de Valeron. Eduin nunca tinha visto nada tão vasto.
O céu acima das planícies era maior do que ele tinha imaginado possível. Ele passou a
maior parte de sua vida de forma limitada, quer fosse por montanhas, os limites de uma
torre de trabalho, ou os muros de uma cidade. Algo dentro dele se expandiu, como se em
resposta ao horizonte sem fim. Em raras ocasiões, ele teve um vislumbre de um carro aéreo
à distância ou um kyorebni pairando sobre as correntes térmicas. Gramíneas inclinaram-se
com o vento, enchendo o ar com doçura almiscarada. Os cavalos arrebataram bocados
enquanto andavam.
Os dias se seguiram. À noite, Saravio olhava sem piscar para o céu e se perdia em longos
diálogos com Naotalba, cuja forma ele decifrava nos padrões das estrelas.
Às vezes, Eduin estava deitado de costas observando as luas girar em suas danças
complexas, cada uma no seu próprio ritmo, às vezes unidas num ritmo, mas nunca tocando-
se, sempre distantes. Ele sentiu uma afinidade estranha com essas esferas de luz colorida.
Sua própria vida parecia ser uma série de quase colisões com Varzil e com Carolin... e com
Dyannis. E agora sendo essa pobre alma ignorante que era, para o bem ou para o mal,
dependendo de um guardião para manter sua sanidade.
As planícies não eram nem totalmente planas, nem com traços característicos. O Rio
Valeron cortava toda a extensão, proporcionando uma floresta exuberante em qualquer
direção. Eles avistaram-no à distância como uma linha verde escura. Longe à oeste, o rio
alargava-se numa área pantanosa onde estava a cidade de Valeron e o castelo Aillard.
Valentina Aillard, que tinha servido com Eduin em Arilinn há muito tempo, pertencia àquela
região. Ele não sabia o que tinha acontecido com ela, se ela ainda servia em uma torre, se
suas doenças recorrentes haviam superado ela a muito tempo ou se sua família tinha
considerado que um casamento arranjado era mais importante em seu futuro.
Voltando-se ao sul ao longo do rio eles chegariam na cidade murada de Kirella. Quando
Eduin e Saravio se aproximaram, a estrada ampliou com uma série de aldeias ao seu redor
que haviam crescido devido aos trabalhadores de casas e o abastecimento de diversos para
a própria cidadela.
Kirella era muito menor do que Thendara, mas também fortificada. Soldados montados
estavam em formação por um bom trecho plano de terra. Passaram por torres de vigia,
situadas no interior do cerco, e outros soldados em um perímetro. Um profundo canal foi
aberto para abrigar arqueiros com o rio correndo ao lado das paredes. Quando eles se
aproximaram, um carro aéreo ergueu-se e seguiu na direção da cidade de Valeron.
Guardas armados os pararam logo antes de chegarem as pontes e perguntaram sobre
suas pretensões na cidade. Os guardas olharam para suas roupas e o animal de carga,
observando claramente sobre a sua riqueza e posição, e os deixou passar.
Uma vez dentro da cidade, não tiveram dificuldade em encontrar uma hospedagem
respeitável. Eduin passou vários dias andando pelas ruas, familiarizando-se com os seus
vários distritos, ouvindo as queixas das pessoas, medindo o temperamento do lugar. Seus
anos se escondendo em Thendara o tinham sintonizado com a energia e o ritmo das ruas.
Apenas com o uso leve de seu laran, ele podia sentir as sombras do medo, a pontada de
fome, a sede roendo o organismo. Ele concluiu rapidamente que esta era uma cidade tensa,
mas as preocupações das pessoas estavam além preparativos para a batalha. Poucos
tinham visto um combate real e menos deles temiam um ataque imediato sobre sua
própria cidade. As tensões estavam aqui, em seu próprio país, centradas na cidadela.
Lord Brynon usava seu título como uma cortesia, pois na verdade ele era Regente para
sua única filha. Era o final de Lady Aillard, cuja linhagem dominava a regência da cidade e
terras circundantes. Apenas uma filha poderia herdar e era ela quem Eduin tinha vindo
curar.
O castelo situava-se em cima de uma pequena elevação, a única colina em toda a área.
Na luz do dia, parecia moldado pela luz com sua murada branca-acinzentada. É, Eduin
pensou, um lugar que não abaixou sua guarda, que manteve seus segredos. Ele não podia
ter desejado um melhor palco para seu pequeno drama.
Primeiro, ele devia preparar a cena. Alguns inquéritos cuidadosamente preparados
trouxeram a informação de que precisava. Em vez de reunir uma multidão em algum lugar
público, ele procurou um meio de entrar nos círculos sociais mais elevados. Não demorou
muito para conseguir. Alguns de seus milagres de cura ao longo da estrada haviam
alcançado Kirella. Com seu jeito estranho e vestes negras, Saravio era inconfundível. Eduin
brevemente conseguiu se aproximar de um comerciante de ricos tecidos que havia ficado
viúvo recentemente.
Na noite que Eduin e Saravio apresentaram-se na residência do comerciante, o vento
soprava frio e úmido com os primeiros sinais do outono. Saravio, como de costume, vestiu
as vestes negras doe servo de Naotalba. A casa com os seus jardins murados localizava-se
na esfera de protegida da cidade, à vista das residências da nobreza.
O coridom os saudou na porta, segurando o belo candelabro, e levou-os para a sala onde
seu mestre esperava. O lugar tinha um ar profundamente fúnebre, parecendo mais um
túmulo do que uma sala. O comerciante olhou para cima do assento ao lado da lareira
vazia. Uma única vela estava sobre uma mesa de pedra mármore escura. Linhas verticais
profundas marcavam o rosto do homem, como se lágrimas tivessem formado canais lá.
Eduin sentiu a dor do homem como um rio represado, estagnado e cheio.
O servo perguntou se ele deveria trazer mais luz. Eduin aproveitou a abertura e
respondeu no lugar do senhor:
- Em nenhuma circunstância deve incomodar-se, caro senhor. Somos nós que estamos a
seu serviço.
- Não há nada que você possa fazer por mim. - Disse o comerciante com uma voz pesada.
- Não, a menos que você possa ressuscitar os mortos. Eu devo estar louco para concordar
com esta reunião.
- Às vezes nossos instintos mais profundos falam através de nós de uma maneira mais
verdadeira do que nós mesmos pensamos. - Eduin respondeu. - Eu não acredito que seja
necessário levantar os mortos para atravessar o abismo da separação.
- Você fala bobagens. - Apesar de suas palavras, o interesse havia sido despertado.
- Se o senso comum pode ser visto em um dos lados, - disse Eduin, estendendo a mão
direita com a palma para cima - então os desejos mais profundos do nosso coração mentem
sobre o outro. - Ele ergueu a mão esquerda e estendeu-o para o comerciante.
- Os mais profundos desejos do coração... - A dor brotou em seu íntimo.
Quase como um reflexo, Saravio se posicionou. Ele ficou atrás de Eduin, na borda do
cone formado pela luz da vela, onde as suas vestes pretas misturavam-se com as sombras.
Eduin sentiu ele chegar na mente do comerciante.
O coridom saiu, mas sua presença não teria feito nenhuma diferença. Não havia nada
fora do comum para ser visto, ou encantamentos a serem ouvidos, não havia rituais
arcanos para serem testemunhados. Só alguém dotado de laran e treinado na sua utilização
poderia ter detectado o que aconteceu.
Quando Saravio deslocou correntes de energia dentro do cérebro do comerciante, Eduin
usou seu laran para chegar atrás das barreiras emocionais do homem. O comerciante tinha
um toque de laran, mas não o suficiente para evitar uma sonda telepática treinada. Eduin
encontrou um emaranhado de pesar, de indelicadas mesquinharias, de esperanças
frustradas, de todas as irritações comuns de um casamento longo. Entrelaçadas a essas
características haviam momentos de ternura, de confiança, de conforto sem palavras.
Preso entre o bom e o mau, o pobre homem não poderia liberar nenhum dos dois.
A canção de Saravio provocou uma crescente sensação de bem-estar no comerciante. Era
exatamente o que Eduin precisava para romper o desânimo. As emoções positivas
aumentaram. Amor e até mesmo alívio surgiram. Lágrimas escorriam pelo rosto do
comerciante. Seu corpo tremia quando ele soluçou.
Agora que ambos estão em paz. Eduin falou mentalmente enquanto Saravio lançou um
véu de euforia sobre a dor. Paz...
Sim... Paz... O comerciante repetiu silenciosamente.
Eduin alimentou os pensamentos com palavras.
Haja um fim ao luto, a dor em si... Acalente a esperança... Volte para a saúde... Alegria...
Você deve contar a história... Deve chegar aos ouvidos do Lord Brynon... Sua filha...
Eles deixaram a casa algumas horas mais tarde com uma bolsa cheia. O comerciante
cantarolava quando ele foi para sua cama, com a cabeça repletas de visões alegres e a
promessa de escrever na manhã seguinte para o mordomo do castelo que comprou os seus
bens.
- Os irmãos Eduardo e Sandoval Hernandez. - O arauto gritou os nomes que Eduin
apresentou, ambos concebidos durante a sua estadia em Carskadon. A voz do arauto
encheu a câmara de Lord Brynon Aillard. O quarto era longo e de teto baixo, as suas
paredes de pedra cobertas de tapeçarias, o chão já desgastado com muitas limpezas, ainda
algum truque na construção dava uma acústica excelente. Se o Senhor sussurrasse todos na
câmara poderiam ouvir.
Lord Brynon estava largado em sua pesada cadeira colocada sobre uma plataforma
elevada. A cadeira era coberta com o padrão de penas brancas e o vermelho de Aillard. Ele
apoiava um cotovelo no braço da cadeira, o queixo repousando sobre o punho. Ao seu lado
estava um punhado de homens sombrios, de aspecto polido.
Uma mulher solitária, com seus cabelos castanhos enrolados baixos na altura do pescoço
em um estilo que Eduin nunca tinha visto fora de uma Torre, estava um pouco afastada dos
outros. Pela simplicidade de seu vestido e da assinatura característica de laran, Eduin
entendeu que ela era uma leronis a serviço da família. Ele não achava que ela poderia
penetrar suas barreiras, mas ele teria que ter cuidado ao usar seus poderes para que ela
não detectasse o seu laran treinado.
O resto dos cortesãos usava cores escuras e Eduin se perguntou se alguém importante
havia acabado de morrer. Viu muitas expressões cautelosas, quase abatidas.
Eduin deu um passo à frente da linha de suplicantes e fez uma reverência. Em um
murmúrio dos cortesãos, ele olhou para trás. Saravio não se curvou, apenas ficou
balançando. Seu manto preto rodou em torno de sua estrutura angular como se pego em
um vento invisível. Acima dele, as feições brilharam com uma palidez sobrenatural, os olhos
brilhando em órbitas ocas.
- Deve se descobrir perante Sua Senhoria. - Um cortesão gaguejou.
Eduin percebeu que, embora tivesse tirado o chapéu quando ele se curvou, Saravio ainda
usava o capuz em sua cabeça. Antes que ele pudesse agir, um guarda deu um passo
adiante, a mão estendida para tirar o capuz da cabeça de Saravio. Eduin prendeu a
respiração, pois ele não tinha raspado Saravio desde a sua chegada Kirella.
Saravio não se moveu quando as cordas que prendiam a peça sobre sua cabeça foram
soltas. O guarda deu um passo para trás com a peça ofensiva na mão. Um murmúrio
percorreu a assembleia. Em vez do vermelho característico, um branco cintilante puro
cobria a cabeça de Saravio. Era pouco mais de uma penugem, mas brilhava como se
estivesse sob a luz de cem tochas.
Eduin sentiu o repentino interesse por parte dos leronis domésticos, como se tivessem
percebido os poderes mentais de Saravio. Eduin ficou tenso. Ele era claramente o único no
ambiente sem nenhum treinamento formal, mas a impressão tinha era a de um menor grau
de talento, o suficiente para ensinar às crianças os rudimentos do controle, diagnosticar a
doença do limiar, aliviar uma febre ou lançar o encantamento da verdade. E isso, pensou
com um traço de exultação, eu não preciso temer.
Lord Brynon colocou-se de pé e, pela primeira vez, Eduin notou seis dedos em suas mãos.
Muitos Aillards tinham essa característica que diziam ser um produto de seu sangue chieri.
Mas certamente este homem não se parecia com os animais não-humanos, até um pouco
míticos, em qualquer outra característica. Seu cabelo, onde não estava grisalho pela idade,
era tão um vermelho tão escuro vermelho que parecia quase preto, e os ombros sob o
manto rico eram largos. Seu rosto parecia como se tivesse resistido anos nos campos de
guerra.
- Então você é o curandeiro que toda a cidade está falando. - Ele disse. - Alguns
histericamente afirmam ter sido curados e todo mundo está surpreso. Eu não sou tão
facilmente enganado.
Eduin curvou-se novamente. - Vai dom, se você fosse, então você estaria aqui e eu em
seu lugar. Uma vez que é o contrário, é evidente que você não é nenhum tolo e eu sou
apenas o seu pobre servo.
O tribunal ficou em silêncio atordoado. Lord Brynon jogou a cabeça para trás e deu uma
gargalhada.
- Um homem de espírito, bem como descaramento! Eu já gostei de você. Mas seu
companheiro lá, o que eles afirmam fez esses milagres, ele não pode falar por si mesmo?
- Ele fala, mas raramente, e só para Naotalba ou para mim.
- Naotalba? A noiva de Zandru? Eu nunca ouvi falar de tal coisa. Ele deve estar louco.
- Alguns dissem que sim, - Eduin respondeu, - mas é essa mesma loucura que muitas
vezes vem com o dom de cura. Talvez o resto de nós, que não falam com os deuses, não
sejam tão frequentemente respondidos por eles.
- De fato. E é seu amigo um desses?
- Eu sou um homem simples, vai dom. Os deuses não se preocupam com os meus gostos.
No entanto, desde que Naotalba falou com meu irmão, Sandoval, o Abençoado, eu vi que
foram quebrados em corpo e mente devolvidos para a saúde quando tudo mais falhou. Se
isso não é um milagre, eu não sei o que é. Você deve julgar se ele pode fazer o mesmo para
qualquer um nesta casa.
- Isso veremos. - Disse o Lord Aillard. - Venha, vocês vão jantar conosco esta noite.
A organização do jantar colocou Eduin e Saravio no final de uma das longas mesas, bem
longe do Lord Aillard. Os homens que estavam sentados na mesa principal eram cortesãos
importantes, identificados por suas ricas vestes e insígnias. Alguns deles olhavam com
curiosidade para os estrangeiros, mas a maioria ignorava as mesas mais baixas. Eles
focavam em sua comida, apenas conversando com seus vizinhos.
Eduin aceitou a situação sem reclamar, pois ele tinha realizado o seu primeiro triunfo. Ele
não era tão tolo para desprezar uma refeição decente depois de viver nas sarjetas de
Thendara, mas as memórias de sua vida anterior voltou com força. Lembrou-se de jantar
em Hali com Carolin, então ainda um príncipe, à mesa do rei Felix.
Ele nunca tinha visto tanta elegância como na corte Hastur, como se ele estivesse
vivendo em um sonho. Velas em castiçais de ouro polido, tapeçarias com jóias, a curva do
braço de uma dama, o brilho do seu olhar.
Agora, sentado em uma sala de fumo, lotada, amontoados entre os homens que ele
antes teria desprezado, Eduin lembrava a suavidade da sua camisa de seda emprestada
contra a sua pele, sentiu o cheiro da fragrância dos ramos verdes e o pão de especiarias,
ouviu a cadência de um cantor soberbo , a luz refletida na riqueza, o corpo flexível e belo de
sua parceira de dança...
Dyannis.
Eu devo, ele sabia, tomar cuidado para não idealizar sobre ela. Ela era humana, tão capaz
de loucura como qualquer outro, e mais do que isso, ela era a irmã do homem que ele
deveria destruir. Mesmo com todo o seu desejo, Eduin não conseguia arrancar o brilho de
sua imagem. Ela tinha sido a mais doce das jovens donzelas, brilhando com vida e alegria, e
imensamente, generosa em transmitir sua luz a todos que ela tocava, num momento em
que o seu coração estava faminto.
Ela só existia no passado, aquela menina radiante. Agora não existia mais, exceto em um
lembrete nostálgico, e o mesmo deve ser verdade para ela. Ele não podia suportar tal
sentimentalismo, especialmente aqui na corte de aliados incertos.
No momento seguinte, ele acordou de seu devaneio. Dois dos cães do Lord, enormes
cães esguios, tinha se lançado ao mesmo tempo para um osso jogado de cima da mesa. O
mais jovem e maior, do sexo masculino, pegou o fim da articulação entre as suas
mandíbulas. O outro, mais velho, estava pronto para desafiar seu oponente. Com os pelos
eriçados, lábios moldados para trás exibindo os dentes amarelados, ele avançou rosnando
sobre o outro. Eduin observava a cena de seu assento.
No instante seguinte, os dois cães irromperam um sobre o outro, rosnando e rolando no
chão. Alguém gritou para que ficar para trás, outra ordenou que alguém buscasse um balde
de água para jogar sobre eles. Vários homens aproximaram-se para separá-los. Uma
senhora gritou. Um dos jovens pagens, um menino de seis ou sete anos, ficou imóvel, com a
boca aberta e os olhos congelados, quando um cão levou a outra, agarrando e gritando, em
sua direção. Antes de qualquer um deles pudesse reagir, os animais tinham levado o
menino para baixo. Seu grito atravessou o ar.
Lord Brynon atravessou a sala, jogando uma mesa para longe de seu caminho com um
golpe. Ele agarrou o cão mais próximo pela parte de trás do pescoço e rasgou-o, em um
movimento atirando-o contra a próxima mesa. O outro cão recuou, ganindo de terror.
Eduin empurrou os espectadores. Lord Brynon ajoelhou-se, suas costas largas cortando
vista do rapaz caído. O sangue jorrava. Eduin podia sentir o cheiro. A adrenalina e o choque
subia como a fumaça de um incêndio. Em torno dele, os homens recuaram em silêncio.
Uma das mulheres começou a soluçar.
No entanto, o menino vivia. De todas as energias detectadas no turbilhão Eduin, a morte
não estava entre elas. Ainda não. O sangue jorrava de um corte profundo, áspero ao longo
do lado do pescoço para sendo absorvido pelo tecido de sua túnica.
Eduin sabia que ele tinha uma chance desesperada, usando seus poderes na presença de
uma leronis que, por menor que seu próprio talento fosse, poderia muito bem reconhecer o
seu. Ela iria perguntar por que um treinado laranzu na Torre mascarava-se como o servo de
um curandeiro itinerante. Mas ele nunca poderia ter uma melhor oportunidade para
ganhar a confiança do Lord Brynon.
Se ele usasse o laran de Saravio como um escudo, ele poderia ainda escapar à detecção.
A leronis veria Saravio como um talento selvagem, treinado, mas falho e errático. Ela não
iria pensar em olhar mais fundo. E, se o fizesse, então ele teria que lidar com ela.
- Vai dom. - Eduin chamou. - Não é esta a razão pela qual o senhor nos manteve aqui,
para ajudar em tal situação?
Lord Brynon virou-se, levantando-se com a velocidade mortal de um espadachim. Seu
rosto se contorceu por um instante e Eduin percebeu que o pagem não era um filho mais
novo de um primo distante insignificante, mas o seu próprio. Nedestro e incapaz de herdar,
mas profundamente amado. Mesmo se Eduin não possuísse laran ele teria sido capaz de ler
os pensamentos do homem mais velho, que para tal ferida, não havia nenhuma
possibilidade de cura.
- Faça ... o que você puder...
Eduin não tinha necessidade de chamar Saravio, pois o outro homem o seguiu como uma
sombra. Ele empurrou Saravio para ajudar o menino que não deveria morrer, ciente de que
eles tinham apenas momentos para agir. Era vital que Saravio fosse visto como aquele que
salvou a criança, e não Eduin.
Saravio respondeu instantaneamente para a torrente de dor emitida pelo rapaz. Ele
colocou-se de joelhos, ignorando o sangue jorrando, pegou a mão do rapaz e começou a
cantar em voz alta.
- Naotalba, convocamos você, salve este garoto...
Eduin recuou para as sombras, confiante de que todos os olhos estariam sobre Saravio e
o menino ferido. Deslizando uma mão entre as dobras de seu cinto, ele agarrou su pedra da
estrela.
- Ouve minha súplica, ó grande Naotalba, venha a nós agora, curá-lo rapidamente...
A atenção de todos estava firmemente fixada sobre Saravio, cuja voz subiu de tom e
intensidade. Estendendo a mão com o seu peculiar laran, ele impulsionou o menino em um
estado de sonolência agradável, amortecendo de todas as sensações de dor. O efeito
percorreu a plateia.
Eduin mergulhou na massa de correntes de energia, a efusão de força de vida. Ele
trabalhou rapidamente, com toda a habilidade de um laranzu treinado na melhor Torre de
Darkover. O corte parecia desalinhado, as bordas mutiladas pela torção do cão.
Com sua mente, Eduin estendeu a lacuna do corte da artéria, criando um manguito de
força psíquica sobre o local. Nada, nem as gotas do líquido ou as forças que os unia,
penetrou na barreira. O conserto físico levaria mais tempo, mas a vida do menino já não era
medida a cada batimento cardíaco.
Atrás do curativo temporário, Eduin começou tecendo os minúsculos fios fibrosos que
formavam a parede do vaso sanguíneo. Pedaços de sangue coagulado presos nos fios,
foram unidos. Eventualmente, o selo poderia se transformar em uma cicatriz e o próprio
corpo completaria a cura.
- Eu estou aqui! Tudo bem! - Um homem idoso com as vestes de um médico correu para
frente. Seu rosto empalideceu visivelmente quando ele tocou na extensão da hemorragia. -
Meu ... meu senhor, você deve preparar-se, eu ... - Ele apontou para Saravio. - O que este
homem está fazendo aqui? Limpem a área! Eu devo atender ao meu paciente!
- Eu acredito que você vai descobrir - Lord Brynon disse sombriamente - que este
paciente não tem mais necessidade de seus cuidados.
- Mas... - O olhar do médico saltava do menino manchado de sangue ao seu mestre. O
menino, ainda sob a influência de Saravio, estava em silêncio. Sua respiração era suave, seu
rosto relaxado, lábios suavemente sorrindo.
A expressão do médico mudou de confusão para medo. Ele teve o bom senso, Eduin
pensou, para perceber que algo aconteceu além de suas habilidades médicas.
Os cortesãos murmuraram. A leronis ficou de lado, seu laran enfrentou barreiras fortes,
pálidas e indecifráveis. Seu olhar deslocou-se do médico para Saravio e de volta,
descansando apenas um breve momento sobre Eduin.
Lord Brynon se voltou para Saravio, mas Saravio já estava afundando no estopor que
muitas vezes surgia após o esforço no uso de seus poderes.
Eduin moveu-se rapidamente entre Saravio e Lord Brynon. - Sandoval, o Abençoado, -
disse ele - deve descansar depois da comunhão com os deuses.
- Faça isso, - Lord Brynon disse - e não mais longe do que as minhas próprias paredes!
Esses bandidos em Cedestri podem ter o próprio Varzil o Bom para ajudá-los, mas eu
duvido que mesmo ele pudesse ter realizado tal feito!
Lord Brynon gritou para o coridom e o ordenou a organizar as melhores câmaras de
hóspedes para eles.
Varzil verdadeiramente está na Torre Cedestri? Desta vez, Eduin não tinha dificuldade em
acreditar a notícia. Varzil, dentro dos muros do amargo inimigo de Aillard!
Os sussurros do comando do seu pai surgiram em sua mente. A esperança aumentou,
quente e ecoando em seu coração.
Eu vou poder vinga-lo agora! Eduin jurou.
- Você fez bem esta noite. - Eduin disse a Saravio uma vez que estavam sozinhos em seus
novos aposentos. Os quartos, dois quartos de dormir ligados por uma sala de estar, eram
confortáveis mesmo em comparação com o castelo Hastur. Um pequeno fogo ardia na
lareira da sala de estar. Edredons de penas cobriam as camas e bacias de água morna e
perfumadas tinham sido colocadas em cada um dos quartos.
- Naotalba estava conosco. - Saravio suspirou.
O primeiro pensamento de Eduin foi que Naotalba não tinha nada a ver com isso. Não
estava acostumado a pensar em seu próprio trabalho como alguma intervenção divina. No
entanto, ele sentia um parentesco com a semi-deusa, condenada, como ele próprio era, a
um destino que não tinha escolhido. O que teria acontecido se ele não tivesse nascido ao
seu pai? O que ele poderia ter se tornado?
Eu poderia ter sido um Guardião. Ao longo dos anos, ele tinha trabalhado com vários dos
mais talentosos tenerezus em Darkover e ele sabia que o que ele tinha realizado uma hora
atrás teria sido digno de qualquer um deles. O pensamento encheu-o com uma amargura
estranhamente doce. Ele nunca tinha tido a oportunidade de usar o seu potencial. Ele havia
sido formado como uma arma de seu pai quando ele era jovem demais para escolher por si
mesmo. Ele o tinha deixado inapto para qualquer outra coisa.
Quanto a Naotalba, tudo o que ela tinha sido, lenda humana ou semi-deusa, ela era
agora a ferramenta que iria moldar Saravio à sua vontade e cumprir o destino que seu pai
tinha colocado sobre dele.
Capítulo 18
Na manhã seguinte, um servo bateu à porta e levou em uma bandeja de pequeno-
almoço com uma variedade de doces, uma urna a vapor de Jaco, montes de manteiga e
queijo de pasta mole e uma taça de frutas com mel. Eduin comeu vorazmente. O intenso
trabalho com laran na noite anterior tinha o esgotado, mas ele temia que, se ele pedisse
por este tipo de alimentos rico e fortemente adoçado, ele pudesse chamar atenção
indevida para si mesmo. Kirella podia não estar mais em Thendara, onde ainda era caçado,
mas o velho hábito de se esconder ainda era forte como a corrente de escuridão por trás de
seus pensamentos.
Para Saravio tinha sido enviado um luxuoso pequeno almoço, adequado para um
convidado nobre, em reconhecimento por sua cura do filho nedestro de Lord Brynon, isso
era evidente. Só a paranoia entranhada em Eduin o fez questionar o presente. Ele teria que
parar de pensar dessa maneira, para que as suas próprias ações não o traíssem. Ele devia
pensar e agir como um homem que não tinha nada a esconder.
Apesar da insistência de Eduin, Saravio nem mesmo mordiscou a comida. Ele estava
acordado há algumas horas, perdido em seus próprios pensamentos, balançando-se e
murmurando frases ininteligíveis. Apenas o nome Naotalba era distinguido repetidas vezes.
Horas se passaram e o grande Sol Sangrento, visto através das janelas estreitas, se movia
para o meio-dia. Eduin, para acalmar sua inquietação, praticou os exercícios básicos de
monitorização que ele tinha sido ensinado desde que era um menino na Torre Arilinn. Ele
tomou sobre si a disciplina de concentração traçando os canais de energia em seu próprio
corpo como se nada mais existisse.
Sua mente estava consideravelmente mais clara quando uma batida na porta trouxe
outro servo, um menino vestindo o tabardo de arauto com as cores dos Aillards, o escarlate
e cinza, com o emblema da Kirella. A criança trouxe a intimação que Eduin estava
esperando. Lord Brynon queria ver os dois.
O aposento privado da família, embora muito bem arrumados, parecia ainda mais
sombrio do que o salão de audiências. Cortinas pesadas bloqueavam a maior parte da luz
natural, lançando o interior em sombras tão profundas que cores suaves se moldavam em
tons de cinza. As tapeçarias e tapetes grossos abafavam todo o som. Um pequeno fogo e
tochas colocadas em arandelas na parede lançavam uma luz incerta sobre os rostos de Lord
Brynon e da menina no divã. A leronis da família, Domna Mhari, ficava posicionada como
um servo ao longo da parede oposta.
Com suas barreiras de laran firmes no lugar, Eduin curvou-se para cada um deles, tendo
o cuidado de incluir Domna Mhari. Sua expressão permaneceu impassível, mas ele sentiu
sua surpresa. Ele supôs que ela recebeu como um pouco de gentileza, quase como de um
servo ou acompanhante comum a outro servo. Ela deve ter tentado de tudo para curar o
que afligia a herdeira e falhou. Assim, ela tinha perdido seu status anterior. Talvez o médico
tivesse tomado seu lugar na confiança do Lord Aillard. Eduin pensou que se ele lidasse com
a situação de forma correta, ela poderia revelar-se uma boa aliada.
Eduin voltou sua atenção para Romilla Aillard, herdeira de Kirella. A princípio, ele pensou
que a jovem parecia mais um fantasma, mas ainda tinha forças para sentar-se. Seu peito
quase não se movia sob suas camadas de vestido leve. Ela parecia ter uns dezesseis anos,
possivelmente mais jovem. Na luz incerta e com a sua extrema magreza, era difícil dizer.
Seu rosto, que deveria ter sido belo com qualquer sinal de vitalidade, se assemelhava agora
a um alabastro. Seu cabelo escuro tinha sido puxado para trás em um estilo severo e
simples. Apenas seus olhos enormes revelaram sua sensibilização quando Eduin e Saravio
entraram na sala.
Ele baixou as barreiras de laran apenas o suficiente para tocar as bordas exteriores de
sua mente. Ao contrário de seu pai, cujo talento era mínimo, ela possuía o pleno dom
Comyn. Nesse instante, ele a viu como um emaranhado de fios coloridos, uma tapeçaria
tecida meio tensas quase até ao ponto de ruptura. Ela não estava louca, ainda não, mas ela
oscilava perigosamente perto da loucura.
Eduin pensou em sua prima, Valentina, que tinha sido enviada para Arilinn para o bem da
sua saúde e não tinha, até onde ele sabia, se afastado. Lá ela tinha encontrado uma medida
de equilíbrio em sua vida, bem como o trabalho útil, quando ela estava bem o suficiente
para fazê-lo. Esta menina deveria ter tido o benefício de tal treinamento. Ela
provavelmente estava muito velha agora, mesmo se seu pai fosse permitir isso.
- Minha filha Romilla quis conhecer o homem que realizou um feito tão notável na noite
passada. - Disse Lord Brynon.
Eduin curvou-se novamente, desta vez diretamente para a menina. - Meu irmão é o ser
mais honrado, damisela. Como você pode ver, ele é um homem de poucas palavras.
A mãos pálidas agitaram e Eduin viu o comprimento do cachecol que ela torcia em um
padrão complicado de nós em torno de seus pulsos. Ela focou sua atenção e relaxou suas
mãos. Ao fazê-lo as pontas das suas longas mangas esvoaçavam para trás para revelar
ataduras em ambos os pulsos.
- Eu ouvi, - disse a menina com uma voz mais parecida com um sussurro, - que as maiores
verdades são aquelas ditas em silêncio. Não foi um poeta que disse, papai?
- Sim, minha querida, ou algo muito parecido com isso. - Disse Lord Brynon.
Com um esforço visível, Romilla levantou-se e deu um passo na direção de Saravio. -
Você sabe o que é desejar o silêncio.
Eduin sentiu as palavras não ditas. Você sabe o que é a desejar nada mais do que dormir e
nunca mais acordar, o silêncio sem fim.
A dor atravessou Eduin, perfurando-o até seu íntimo. Seu próprio desespero se ergueu
como uma onda engolindo tudo no caminho. Presa em seu poder, não podia falar, não
podia se mover. Sua agonia era a dele. Uma imagem passou por sua mente, os dois
deitados em uma cama, de um branco imaculado, olhando nos olhos um do outro com
perfeito entendimento. Em torno deles, a sala ficou nebulosa e fim. Seu coração bateu mais
devagar e suavemente a cada momento. Sem ar movendo em seus pulmões. A única coisa
que ele podia ver ou sentir era o olhar da menina em cima dele. Com um sentimento de
satisfação além de qualquer coisa que ele tinha conhecido, ele fechou os olhos e viu
absolutamente nada. Naquele momento, ele sabia que iria dar tudo o que tinha, tudo o que
ele era, para que isso acontecesse.
Com uma sacudida, ele voltou a si. Lord Brynon havia dito algo a ele, mas ele não tinha
ideia do que. Sem palavras, Eduin curvou-se novamente. O movimento ajudou a
desbloquear algo dentro dele. Talvez o próprio desespero de Romilla o tenha afetado tão
profundamente porque ela tocou algum anseio interior que ele tinha jogado ao
esquecimento, mas os sentimentos que tinham chegado tão perto de sobrecarregá-lo não
eram inteiramente seus. Qualquer um com um toque de laran também podia ser afetado.
Os leronis haviam se ficado brancos e pareciam à beira do desmaio. A melancolia do castelo
era mais do que um acidente de arquitetura e negligência.
No entanto, sua tarefa ia ser mais fácil do que ele havia imaginado. Saravio certamente
aliviaria a depressão da menina. Ela deveria seguir seu controle calmo e isso permaneceria
com ela. Ao mesmo tempo, o pai e todos os funcionários importantes iriam experimentar
um sentimento de esperança, de bem-estar em sua presença. A partir daí não seria difícil
induzir dependência e usar isso para convencer Kirella a lançar um ataque contra a Torre
Cedestri enquanto Varzil ainda estivesse lá. Não demoraria muito. Varzil tinha criado a
oportunidade por suas próprias ações, e Eduin tinha uma potente arma: persuasão. Ele
sabia muito bem o poder de qualquer coisa que tirasse tamanha dor.
Eduin gesticulou para Saravio vir para a frente. O outro homem permaneceu como
estava, balançando em seus pés, rosto relaxado e olhos desfocados, como se ele estivesse
totalmente inconsciente do que acabara de acontecer. Eduin franziu a testa. Certamente
Saravio sentia a agonia da menina. Por que ele não respondeu, como ele fez com Jorge, ou
o menino na noite anterior, ou até mesmo com o velho e gordo comerciante?
- Qual é o problema? - Ele falou baixinho, mas não viu nem mesmo um lampejo de
reconhecimento nos olhos de Saravio.
Saravio! Ele pegou-se num grito mental, inútil. Inútil e perigoso, pois mesmo Lord Brynon
que tinha pouco laran, devia ter escutado, assim como Domna Mhari certamente o fez e a
menina. Podia haver outros dentro das muralhas do castelo com talento para ouvi-lo.
- Eu rezo para que você, nos desculpe, vai dom. - Ele disse com outra reverência. -
Sandoval o Santíssimo ainda está, como se vê, drenado de seus esforços na noite passada.
Como está o menino?
- Ele está bem. - Lord Brynon respondeu, com uma felicidade considerável em sua
expressão.
Eles conversaram por vários minutos sobre a recuperação do menino, tempo suficiente
para Eduin conseguir uma retirada graciosa e arranjar uma segunda audiência no dia
seguinte.
Quando eles tinham alcançado seus quartos e Eduin colocou uma cadeira entalada no
trinco da porta, ele agarrou Saravio pelos ombros. Ele empurrou o outro homem em um
dos aposentos, fechou a porta e sacudiu-o.
- Pelo Sétimo Inferno Congelado de Zandru, o que aconteceu com você? Você perdeu sua
mente? Você não pôde sentir a dor da menina? Por que não fez algo sobre isso?
E como é que eu vou induzir Lord Brynon a atacar a Torre Cedestri enquanto Varzil ainda
estiver lá se você não fizer a sua parte?
Saravio caiu das mãos de Eduin, a cabeça rolando de um lado a outro. Seus lábios se
moviam, ele gemeu, e, em seguida, as palavras vieram claras.
-Ela é... Naotalba, vindo a nós. Eu já estive em sua presença. Ah, meu amigo, você não
pode sentir o seu toque em sua alma? Ela trouxe-nos a ela no passado. Aqui vamos fazer
sua vingança e trazer seu reino.
- Que absurdo é esse! - Eduin gritou, sacudindo Saravio ainda mais forte. - Você é
estúpido! Ela é nada mais do que uma menina potencialmente suicida com mais laran do
que é útil para ela! Você não pode ver?! Ela transformou todo o castelo em um túmulo!
Estamos aqui para ajudá-la, não nos juntar a ela em seus delírios!
- Junte-se a ela sim! Junte-se a ela... Junte-se a... Aaah!
Com um grito inarticulado, Saravio soltou-se do aperto de Eduin. Sem apoio, ele caiu no
chão, mas não antes das primeiras convulsões sacudirem seu corpo. Sua espinha arqueou,
golpeando a parte de trás de seu crânio contra o chão. O tapete amorteceu o impacto. Sua
respiração saiu em suspiros irregulares entre os dentes cerrados. Entre suas pálpebras
estreitas, seus olhos estavam brancos. Por um instante, ele relaxava e uivava uma única
sílaba, irreconhecível.
Eduin manteve-se de pé, respirando pesadamente, observando como seu amigo se
contraía no tapete. Ele estava tão irritado, ele não conseguia nem ir colocar uma almofada
sob a cabeça de Saravio.
Deixe ele permanecer nessa loucura e açoitar seu corpo e encher-se de contusões. Ele
pensou furiosamente. Assim, quem sabe ele lance essa loucura fora e volte à razão.
Mas e se Saravio não sair dela? E se ele persistisse em ver a pobre Romilla como a
encarnação de Naotalba? E se ele obedecesse sua ideia para se juntar a ela? E então o que
farei?
Então, decidido Eduin saiu da sala. Ele mesmo teria que encontrar uma maneira de
controlar a menina. Mas sem a influência mediadora de Saravio, ele estaria mais uma vez
nu contra suas antigas compulsões.
Ah, qual era o seu problema? Ele havia passado a maior parte de sua vida tentando
antecipar o que pode acontecer a seguir. O velho provérbio surgiu em seus pensamentos.
Quando os homens fazem planos, os deuses riem.
Estariam rindo agora?
Eduin afundou-se contra a parede e cobriu o rosto com as mãos. É claro que os deuses
estavam rindo dele. A verdade que ele estava se escondendo de si mesmo era que seu
controle sobre Saravio era uma piada, uma invenção. Saravio estava diariamente entrando
em seu próprio mundo delirante, vendo somente o que ele queria ver. O homem que tinha
resgatado Eduin das calhas de Thendara, que tinha sido um treinado laranzu em uma torre,
estava muito longe. Uma vez Eduin tinha alcançado Saravio nas profundezas de sua
loucura, entrando na mente do outro homem. Ele ainda se encolheu ante a memória desse
contato, as tempestades psíquicas, as visões de pesadelo, a primeira reunião com Naotalba.
Ele nunca quis fazê-lo novamente e agora o medo se enraizava em sua mente de que, no
final, ele poderia ter de penetrar na mente de Saravio para restaurá-lo à sanidade suficiente
para controlar o seu talento.
Eduin ainda não estava pronto para dar esse passo. Pode não ser necessário, disse a si
mesmo. Saravio pode melhorar por conta própria na segurança e no conforto de Kirella.
Com refeições regulares, uma cama quente à noite, todo o resto podem fazer muito para
curar um cérebro ferido. E se não...
Eduin iria lidar com essa necessidade quando chegasse o momento. Na primeira vez, ele
tinha sido pego de surpresa, despreparado. Da próxima vez, se houvesse uma próxima vez,
ele saberia o que esperar. Ele estaria pronto.
Quando a crise passou, Saravio caiu em um sono tão profundo que ele não despertou
nem mesmo quando Eduin levantou-o e colocou-o suavemente sobre a cama. Eduin
caminhou pelas câmaras antes de começar seus exercícios novamente. Ele praticou um
pouco sobre Saravio, monitorando seus canais.
Saravio ainda estava inconsciente quando, no final da tarde, eles receberam outro
visitante. Chamando por Eduin, a porta se abriu para admitir o médico da corte. Em seus
calcanhares veio um jovem criado carregando uma grande sacola de couro, material
presumivelmente médico. Um par de guardas estavam apenas do lado de fora da porta.
- Rodrigo Halloran, ao seu serviço. - Disse o médico, inclinando a cabeça para mostrar
que ele não precisava ceder a qualquer homem comum, muito menos a alguns rufiões sem
nome pelos quais o Lord tinha adquirido um gosto momentâneo.
- Posso lhe ser útil? - Eduin perguntou.
- Na verdade eu é que fui enviado para prestar assistência a você. Sua Senhoria está
muito preocupado a respeito da saúde de seus hóspedes e é por sua ordem que eu estou
aqui para examinar o paciente. Eu entendo que o seu irmão não tenha comido ou saído de
seu quarto durante todo o dia.
Não havia nenhuma chance de protesto, não com os guardas ali. Eduin recuou,
gesticulando com um braço para a câmara onde Saravio dormia.
- Ele está dormindo lá dentro. Olhe, mas não perturbe seu descanso.
- Eu vou determinar o que é melhor para o paciente. - Disse o médico.
Eduin ficou na porta enquanto o médico realizou o exame. Para um homem sem
formação numa Torre, ele era extremamente experiente na maneira como ele estudava a
respiração de Saravio, moveu para trás suas pálpebras, testou a firmeza da sua pele e seus
reflexos, bem como as suas respostas à estimulação. Ele até afrouxou os fechos no manto
de Saravio e colocou uma orelha contra seu peito, em seguida, endireitou-se e voltou-se
para a pulsação em seu pescoço e pulso.
- Muito bem. - O médico murmurou, balançando a cabeça. Então ele disse para Eduin: -
Seu amigo tem esforçado-se imprudentemente além das suas capacidades. Eu suspeito que
seja uma apoplexia do cérebro, embora eu não possa determinar a sua extensão até que ele
recupere a consciência. Você deve preparar-se para um período de convalescença
prolongada. O mais prudente é trazê-lo para meus próprios aposentos, onde eu possa
fornecer uma melhor supervisão. - Ele virou-se para a porta, o que significava claramente
que iria chamar os guardas para levar Saravio naquele momento.
- Ele está muito bem onde está, eu lhe asseguro. - Eduin interrompeu. - Eu sou
perfeitamente capaz de cuidar dele, e eu...
- Você não pode perceber a gravidade da situação! Você não tem formação médica!
Você é um ignorante arrogante! Eu fui treinado na Torre Arilinn!
Com esforço, Eduin falou calmamente. - Eu tenho sido seu companheiro em muitos
meses e eu estou familiarizado com a sua condição. Este não é o primeiro episódio desse
tipo, nem será o último. Um pouco de descanso vai trazê-lo novamente à normalidade.
- Eu não vou ser responsável!
- Claro, você não será, e eu vou ser feliz em informar à Sua Senhoria que você fez todo o
possível. Somos gratos por sua atenção, mas realmente não há necessidade de incomodá-lo
ainda mais. - Eduin moveu-se para a porta e abriu-a. Ele levou o médico ainda protestando
e seu assistente para o corredor.
Eduin esperou até que os sons passos dos guardas tivessem sumido antes de retornar ao
quarto de Saravio. Inclinou-se sobre o homem inconsciente e por um momento, não pôde
reconhecê-lo como o mesmo que o havia ajudado nas ruas de Thendara. Ele não tinha
certeza se a própria mãe de Saravio o teria reconhecido, com a cabeleira prateada cobrindo
o crânio, as depressões profundas ao redor dos olhos, as linhas magras na maçã do rosto e
da mandíbula e os lábios corroídos. E este era o homem sobre cuja sanidade mental frágil
tudo dependia.
Onde, por todos os deuses que os homens conhecem e aqueles que já esqueceram, eu me
meti?
Capítulo 19
Saravio ainda não tinha acordado naquela noite. Eduin resolveu se aventurar nas áreas
públicas enquanto esperava Saravio acordar. A sorte estava com ele, pois não havia jantar
formal naquela noite. Lord Brynon estava em seus aposentos.
Na manhã seguinte, Eduin foi na cozinha, assim como ele tinha feito em seus anos em
Arilinn. Aqui ele se sentia mais à vontade do que em qualquer momento desde que chegou
à Kirella. A cozinheira, uma mulher de rosto agradável, com um sotaque de Dalereuth,
ofereceu-lhe um Jaco que tinha acabado de fazer e o último de pão do dia anterior com um
pouco de mel.
A cozinheira se movimentava na cozinha, ordenando as refeições do dia e
supervisionando as empregadas da copa para ter certeza que elas haviam cortado a cebola
fina o bastante e deixado todos os pratos bem limpos. Eduin sentou em um canto, tomando
o Jaco quente e ouvindo as empregadas da copa falar. Uma menina falou de seus medos
por dois de seus irmãos, recrutados para soldados de infantaria. Outra respondeu com a
história de invasões de fronteira por forças Isoldir disfarçadas de bandidos, outra do
noivado rompido entre Romilla e o herdeiro de Isoldir, que a cozinheira insistiu que nunca
tinha acontecido e se tivesse, teria envolvido sua avó e não a própria menina e, portanto,
não poderia ser a causa de todo esse problema, não importa o que fofocas ignorantes
dissessem. Eduin voltou para seu quarto com a notícia que Lord Brynon iria jantar naquela
noite com um grupo seleto do tribunal, incluindo Sandoval o milagroso.
A cozinheira ficou feliz em separar uma refeição para Eduin levar até Saravio com pacotes
de tortas de carne e um ramequin de creme cozido, ainda quente e perfumado.
- Por tudo que ele fez. Salvar a vida do jovem rapaz como ouvimos.... Ele merece um
descanso. Metade dos visitantes em Kirella só se acalmará depois de uma visão dele. E há a
jovem damisela. – A mulher ficou sombria e ela mordeu o lábio inferior. - Não, eu já falei
demais. Se você já acabou de comer esse pudim vá até seu amigo e tente fazê-lo comer.
Eduin duvidava que Saravio estaria desperto o suficiente para comer e ele estava certo.
No momento, Eduin deixaria seu amigo descansar na esperança de que um pouco de calma
o restaurasse.
A tarde avançava e Saravio ainda dormia. O momento do jantar se aproximava mais a
cada hora que passava. Eduin estava cada vez mais ansioso. Ele não se atrevia a aparecer
sozinho na mesa de Lord Brynon.
No fim, Eduin decidiu que ele deveria enfrentar o desagrado de Lord Brynon aparecendo
sem Saravio. Esta noite, apenas um pequeno grupo de cortesãos jantariam com seu senhor.
Eduin foi colocado na mesa principal, dois assentos abaixo do próprio Lord Brynon e em
frente ao médico da corte, que fez pouco esforço em uma saudação educada. Romilla
sentou-se ao lado do pai. Usava o branco de costume, o vestido de uma jovem nobre, mas
fúnebre, em vez de colorido contra o vazio de suas características. Apenas quando seu
olhar encontrou o de Eduin sua expressão assumiu uma pitada de animação. Ela colocou
uma mão pálida em seu pai e ele se inclinou para ouvir seu sussurro.
- Onde está seu irmão? - Lord Brynon perguntou, uma vez que o pernil assado de carne
de bovina tinha sido posto junto com o pão e as raízes cozidas. - Espero que ele não esteja
doente. Tínhamos a esperança de lhe agradecer adequadamente por seus serviços. Minha
filha, em particular, tem uma série de perguntas para ele.
Poderia ter sido pior, pensou Eduin. Pelo menos o tom de Lord Brynon ainda era cordial.
Ele ainda não tinha perdido a paciência. O melhor de tudo, a menina estava claramente
interessada.
- Sandoval Santíssimo seria extremamente grato por sua preocupação, se ele fosse capaz
de recebê-lo. - Disse Eduin. Ele manteve sua voz baixa e mansa. - Ele tornou-se ciente de
um perigo terrível que agora mesmo se aproxima sobre esta terra justa. Ele está em
comunhão com os deuses, pois sem a sua intervenção, um grande dano em breve estará
sobre nós.
A testa do Lord Aillard franziu, escurecendo seus olhos. Ele não se parecia com um
homem que normalmente daria crédito a ‘comunhão com os deuses’. No entanto, seu filho
certamente teria morrido sem a intervenção de Saravio. Lord Aillard serviu como soldado o
suficiente para saber que nenhum medicamento meramente humano poderia ter salvo
qualquer pessoa com tal ferimento. Ao lado dele, seus conselheiros trocaram olhares.
- É exatamente como eu disse a você, não é, papai? - Romilla falou. - Na noite passada, os
meus sonhos... O tempo de fogo está chegando e logo ele vai engolir tudo. Então a
escuridão se estenderá por toda a terra. O que vai acontecer em seguida, eu não posso
prever, mas os pensamentos me trazem muitos arrepios à alma.
- Minha querida filha: - Lord Brynon respondeu, colocando a mão sobre a dela, - a sua
preocupação com o bem-estar dos Kirella faz-lhe crédito. Estes são tempos de desespero,
de fato. O mundo está cheio de maldade e nós temos a nossa quota de inimigos. Não se
incomode. Guerra e a arte de governar é melhor deixar para... para aqueles mais velhos e
mais sábios que são hábeis em tais assuntos.
Eduin captou o que ele não disse: deixe aos homens. Mas em terras Aillards, as mulheres
ocupavam posição plena e igualitária. Algum dia Romilla iria tomar essas decisões, se ela
vivesse tempo suficiente para isso. Lord Aillard estava sobre uma linha delicada entre suas
responsabilidades como regente e a necessidade de treinar a sua filha, eventualmente,
para assumir o poder.
Romilla estava claramente ciente disso, pois ela levantou o queixo. Sua voz saiu de tal
forma que ela soou como a de uma mulher madura, em vez de uma criança impetuosa.
- Certamente, Kirella está necessitando de todos os sábios conselhos que podem ser
recolhidos. Mas algum dia este será o meu reino. Eu tenho o direito de ouvir este conselho
e julgar por mim mesma.
Quando ela terminou, o médico da corte interrompeu.
- Damisela, você não deve excitar os seus nervos com tais preocupações! Talvez quando
você estiver mais forte ou as questões de Estado menos onerosas. - Ele olhou para Lord
Brynon. - A saúde de Lady Romilla não pode suportar tais encargos desnecessários. Ela vai
ficar ainda mais doente se ela continuar dessa maneira. Ela deve se retirar sem demora. Na
verdade, a coisa mais benéfica para ela agora é uma sala escura, como já prescrito e música
suave para desviar sua mente de pensamentos preocupantes.
Um dos cortesãos suspirou de alívio e Lord Brynon parecia perturbado com esse
lembrete da fragilidade de sua filha. Romilla se sentou como uma estátua, um pouco de cor
subindo para suas bochechas. Eduin sentiu um súbito desejo de saltar para cima do médico
e o estrangular ou explodi-lo com laran. Ele sabia que era imprudente e irracional, mas sua
pele se arrepiou e uma dor latejante atingiu suas têmporas.
- Eu acho que Dom Rodrigo tem razão, chiya. - Disse o Lord Aillard. - Podemos gerenciar
por um tempo sem você e quanto mais cedo você recuperar a sua força, mais cedo você
poderá voltar ao seu posto.
Lentamente, a menina levantou-se.
- Vou me retirar para meus aposentos, se você acha que é melhor, papai. Mas eu não
quero mais medicamentos, pois não preciso deles. Eu... - Ela forçou um sorriso - Eu estarei
melhor daqui a pouco, com certeza. Especialmente se ... se o Abençoado Sandoval puder vir
a mim, sob a supervisão de Domna Mhari, é claro.
Então, a menina não era uma geléia completa, pensou Eduin. Ela pode ser atormentada à
beira da loucura, mas ela tem força de caráter. Se ela sobreviver para governar este
pequeno reino, ela pode se tornar uma força a ser reconhecida.
- Vou pedir a Sandoval para fazê-lo, assim que puder. - Lord Brynon respondeu. Ele olhou
para Eduin com uma expressão que dizia claramente, E é melhor que seja em breve.
Uma das senhoras tomou Romilla pelo braço e conduziu-a para o quarto.
A refeição terminou, com momentos de tristeza quebrados por explosões de riso
seguidas de momentos de tensão. Eduin não podia comer mais. A comida transformava-se
em pedra em sua barriga. Ele sentiu uma tensão sobre sua pele, ouvindo o distante
sussurro familiar:
Mate...
Ele estava ciente da cadeira vazia ao lado de Lord Aillard e de como essa oportunidade
estava escapando, momento a momento, indo para longe dele. Quando o conselho se
separou, Lord Brynon convocou Eduin para o seu lado.
- Venha comigo para longe dos outros porque eu quero ouvir mais sobre essa ameaça à
qual aludiu, esse “perigo terrível" que exige do seu irmão... comungar com os deuses.
Entraram em uma alcova, bem longe do guarda mais próximo. Lord Brynon era alto e
corpulento, sua postura era a de um soldado. Ele agarrou o ombro de Eduin em uma
demonstração de sua força física.
- Por que você está aqui em Kirella? Para me avisar? Ou entrar em meu conselho e depois
me trair?
Eduin, impulsionado por um instinto desconhecido, caiu de joelhos e levantou as mãos
como um vassalo fiel ao seu soberano.
- Vai dom, juro-te que não trago nenhum dano a você ou qualquer outra pessoa sob seu
lar. Zandru me castigue se eu estiver mentindo!
Por um longo momento, Lord Brynon olhou para o rosto de Eduin. Eduin sentiu apenas o
olhar normal de um homem acostumado a lidar com aliados incertos em tempos perigosos,
mas nenhum traço de uma sondagem psíquica. Sentia-se confiante de que nem mesmo a
Guardiã da Torre Arilinn não poderia ler nada além de sinceridade em seus pensamentos.
- Eu acredito que você não tenha qualquer má vontade a nós. - Disse o Lord Aillard. - Mas
também acredito que nenhum homem age, exceto em seu próprio interesse. Seja honesto
comigo e você terá sua recompensa. Use de falsidade e eu vou forçar a sua coragem mais
do que as cordas de um alaúde. Agora, o que é este perigo que você falou?
Eduin pôs-se de pé.
- Pelo que o senhor disse sobre o Guardião de Neskaya, Varzil Ridenow. Porque se é
verdade que Varzil está ajudando a Torre Cedestri ele deve ter ordens para colocá-los sob
sua influência Por que mais ele iria se importar com tais problemas e usar tanto laran para
o benefício de estranhos? Isoldir por si só é um pequeno reino e não é páreo para poder de
Kirella, mas Isoldir aliado aos Hastur’s...
- Eu vejo que você tem aspirações para se tornar um conselheiro. - Lord Brynon disse,
sorrindo.
Eduin inclinou-se.
- Eu sou servo de Vossa Senhoria.
- Você não é nada disso!
Eduin empalideceu, perguntando-se o que o tinha entregado. Antes que ele pudesse
gaguejar uma resposta, Lord Brynon continuou.
- Você é o guardião do homem mais extraordinário que já conheci. Eu não vou deixar
qualquer um de vocês escorregar tão facilmente pelos meus dedos. Se ele puder fazer um
décimo do milagre da outra noite em minha filha... Bem, nós veremos. Enquanto isso, não
tenham medo com problemas imaginários. As paredes de Kirella são fortes e bem
defendidas. O inverno em breve estará sobre nós e irá colocar uma pausa a qualquer
ameaça imediata. Vá agora para o seu próprio trabalho e veja se o Santíssimo Sandoval está
pronto para encontrar Lady Romilla o mais rapidamente possível.
Eduin, ouvindo a dispensa nas palavras de Lord Brynon, retirou-se. Pouco importava que
ele tivesse descartado a hipótese de Varzil interferir na contenda com Isoldir de forma tão
rápida. Ele havia plantado uma semente, que era tudo o que ele queria.
Agora, iria criar o jardim em que essa semente se tornaria uma árvore imponente.
Capítulo 20
Quando Eduin acordou ainda com sono na manhã seguinte, os olhos turvos do despertar
inquietos viram que Saravio estava exatamente como ele tinha visto pela última vez.
Apenas os movimentos lentos e pouco profundos de sua caixa torácica indicava que ele
ainda vivia.
Eduin, lavado e vestido, sentou-se para o momento que ele orava para que não fosse seu
último momento de vida. Ele não sabia o que diria a Lord Brynon e achava que já tinha
esgotado suas desculpas aceitáveis. Ele se perguntou o que ele faria se Saravio continuasse
assim. Mesmo que Saravio não morresse imediatamente, ele não poderia continuar por
muito mais tempo com qualquer esperança de recuperação razoável.
O momento que ele designou para se encontrar com Lord Brynon havia chegado. Ele
sabia que deveria se apressar, mas ele não tinha energia. Ele caiu no chão ao lado da cama
de Saravio. Sua cabeça caiu sobre os braços cruzados, o rosto apenas algumas polegadas do
de Saravio. Nesse momento de descuido, ele não tinha defesa contra o desespero insidioso
que emanava do poderoso, mas totalmente indisciplinado, laran de Romilla.
Pensamentos surgiam descontroladamente. De que serviu isso tudo? O que havia para
qualquer um deles, mas mais segredos e uma luta inútil? Sonhos atormentados
intermináveis separados por dias de crescente exaustão?
Por que ele havia imaginado uma medida de segurança e um propósito aqui? A miséria e
o desespero se escondiam em todos os cantos. O brilho do salão com toda a sua grandeza e
conforto era apenas uma farsa, uma ilusão. Uma sombra caiu sobre Kirella e seus
habitantes. Eles foram condenados, todos eles.
Ele sabia que os pensamentos não eram dele e ainda assim ele não conseguia pará-los.
Eles percorriam sua mente, enraizando-se em cada memória de seu próprio desespero.
Logo as luzes se apagarão. Nada poderia ficar contra a vinda escuridão. Ela iria se
espalhar como um câncer em todas as terras Aillards, todos os Cem Reinos até as Hellers e
para o Mar de Dalereuth. Apenas cinzas congeladas permaneceriam.
Mesmo o pensamento de que Varzil também pereceria trouxe apenas o tom mais leve de
satisfação. O que importava? Ele próprio não estaria vivo para ver isso.
Melhor... é muito melhor se entregar agora e encontrar um fim para o sofrimento
incessante.
Eduin lembrou seus breves vislumbres da fronteira no mundo superior entre os vivos e os
mortos. Em ocasiões raras, tinha ouvido, um viajante podia encontrar a forma de uma
pessoa morta, geralmente um ente querido, visto a uma distância longe. Era perigoso
tentar falar com eles.
No Mundo Superior, o pensamento tinha o poder de transportar, construir ou destruir.
Embora ele não estivesse consciente de como, Eduin agora encontra-se em pé sobre aquela
vasta planície, ininterrupta sob o céu familiar com ar cinzento. Parecia mais frio do que ele
se lembrava.
Girando lentamente em um círculo completo, não viu nada, apenas o horizonte de linha
quase incolor. Ele olhou para baixo e viu que, em vez de estar vestido com as vestes de um
laranzu de sua posição como tinha estado antes, ele estava nu.
Esta, então, deve ser a morte. Cinza eterno, frio eterno, silêncio eterno. Solidão eterna.
Não era nem o esquecimento que ele ansiava, nem qualquer aparência de paz. Ele só tinha
que esperar aqui até que seu corpo físico, como uma casca abandonada, morresse de sede
e fome.
Ele abaixou-se no chão e cruzou as pernas, colocando as mãos em atitude de meditação.
O tempo no Mundo Superior passava de forma diferente do que no mundo exterior, mas
ele pensou que seria necessário um longo tempo. Seu corpo podia ser descoberto e
tentativas para reanimá-lo podiam ser feitas. O médico charlatão poderia muito bem ser
chamado para tentar algumas misturas de ervas. No fim das contas, não serviria de nada.
Privados do espírito que a anima, a carne seria um fracasso. Sua fuga estaria completa.
O pensamento carregava um lapso inesperado de desespero. Ele tinha finalmente fugido
para longe de qualquer perseguição. Ninguém iria encontrá-lo aqui ou se o fizessem, não
teriam o poder de obrigar o seu retorno. Ele estava, pela primeira vez, seguro.
Seguro...
Mas não só.
Eduin não ouviu nenhum passo, não sentiu nenhum sussurro perturbar o ar, nenhum
aroma. Ele sentiu só uma ligeira queda na temperatura, um frio da mente, não do corpo.
Ele afundou em sua medula e com ele veio um choque nauseante de reconhecimento.
Seu pai, Rumail Deslucido, apareceu tão grande para ele como quando ele era um
menino pequeno. Eduin poderia ver apenas as características mais fracas, pois a forma era
quase transparente. O rosto com suas linhas profundamente incisas estava sem a barba de
seus últimos anos, e o corpo, o que ele poderia fazer fora dele, apareceu reto e forte. Esta
não era a imagem de seu pai na morte, mas sim no vigor de sua juventude.
Eduin encolheu longe do fogo pálido daqueles olhos.
A boca fantasmagórica abriu. Não foi emitido nenhum som, nem qualquer indício de
respiração. Com lábios curvos se movendo, as palavras foram formadas. Aquelas palavras
que Eduin conhecia intimamente como a palma da sua própria mão.
O mal do Hasturs e seu defensor Ridenow ficarão impunes... Você jurou... Você jurou...
Eduin forçou-se à surdez. No entanto, ele não conseguia desviar ou levantar um braço
para cobrir os olhos.
Rumail continuou falando e suas feições se tornaram mais severas, mais inflexíveis. Eduin
lembrava dessas expressões dolorosaa. Seu pai raramente parecia bem, de qualquer forma.
Foi só quando ele foi para Arilinn que ele viu que os homens adultos eram capazes de
gentilezas ou incentivos. A primeira vez que seu Guardião tinha falado com ele
benignamente, sua resposta tinha sido a incredulidade. Muitas temporadas se passaram
antes que ele percebesse que Auster falava dessa maneira a todos os jovens estudantes,
que se importavam com eles e queria que eles tivessem sucesso.
Vá embora, velho tolo! Eduin pensou com raiva. Eu tive o suficiente de sua crítica! Você
está morto agora. Você não tem nenhum poder sobre mim.
Tenho um laço em sua mente...
Mas não por muito tempo!
Eduin ficou de pé e virou as costas para o fantasma de seu pai. O fantasma apareceu na
frente dele. Ele se esquivou de várias maneiras e ele sempre estava em sua frente. Não
importava o caminho que fizesse, o mesmo semblante o confrontava, a boca se movia em
frases silenciosas que ecoavam pelos corredores de sua memória.
Falhou comigo... Você jurou... Vingança...
MORTE!
Ele sentiu um puxão dentro de seu próprio corpo, como uma corda ligada à seu espírito.
Em um momento de terror, ele olhou para suas mãos, esperando ver algemas inquebráveis
o ligando ao espectro de seu pai. Não importava se eram invisíveis, mesmo neste reino
misterioso da mente, elas existiam.
Eu nunca ficarei livre dele e, quando eu morrer, vou passar a eternidade como neste
momento.
- Maldito seja! - Ele gritou. As sílabas ressoaram de um horizonte a outro. – Maldito! Que
você seja lançado no Sétimo Inferno Congelado de Zandru pelo que você tem feito comigo!
Aqueles lábios fizeram uma pausa em sua ladainha implacável e a luz forte nos olhos
fantasmagóricos diminuíram. Ele ainda tinha algum poder, então, sobre o fantasma de seu
pai morto e, talvez, sobre o seu próprio destino.
Ele não iria morrer. Ele se recusava a permanecer no Mundo Superior, acorrentado para
sempre a esse espectro de vingança sem sentido. Ele viveria e criaria seu próprio destino.
Quando Eduin abriu os olhos novamente, o quarto parecia igual ao que tinha visto pela
última vez. Ele poderia ter apenas descansado do excesso de trabalho! Por um dia, uma
hora, um piscar de olhos? Não saberia dizer. A fome rugia em sua barriga. O cheiro do pão
recém assado pairava no ar. Seguindo o aroma ele descobriu que uma bandeja com um
pequeno almoço simples, ainda quente, tinha sido deixado na sala de estar central.
A massa do pão era fina e macia, havia também queijo cremoso e um jaco
agradavelmente amargo. Eduin comeu tudo, usando pedaços de pão para limpar os
vestígios de queijo da bandeja. Olhando para a borra do Jaco ele pensava sobre seu
próximo passo.
Por mais que tentasse, ele não via nenhuma forma de continuar em Kirella sem a ajuda
de Saravio. Ele não tinha conseguido matar Varzil no Lago Hali. Desta vez, ele não iria
depender dos caprichos do acaso e de uma multidão enfurecida. Ele precisava de recursos
sólidos, soldados treinados, carros aéreos, armamento laran. O que faltava em Kirella,
Valeron, o centro do clã, iria fornecer.
Ele precisava de uma maneira de conquistar a confiança de Lord Brynon. Para isso, ele
precisava ter controle sobre a herdeira, Romilla.
E para isso preciso de Saravio.
Não havia nenhuma ajuda para ele. Ele sabia o que deveria fazer agora e, embora não
gostasse da ideia, ele preparou-se para executá-la.
Ele devia entrar na mente adormecida de Saravio, estabelecer o controle e arrastá-lo de
volta ao mundo desperto.
A primeira relação telepática de Eduin com Saravio não tinha sido intencional. Ele tinha a
intenção apenas de tirar ele de seu ataque para não penetrar nas profundezas de sua
consciência. Certamente, ele não tinha ideia da extensão da loucura ou possessão de
Saravio, seja lá o que fosse. Agora a situação era diferente. Ele não estava mais ignorante
no assunto. Ele sabia o que ele enfrentava.
Ele sentou-se na cama ao lado Saravio e estendeu a mão para tocar a mão do outro
homem. O contato físico era necessário para a profundidade do relacionamento que ele
precisava. Eduin preparou-se, repetindo para si mesmo que ele não tinha escolha a não
violar a ética mais fundamental do trabalho nas Torres sobre nunca entrar na mente de
outra pessoa sem sua permissão. Era tudo hipocrisia, no fim das contas. Os círculos das
Torres quebravam essa regra sempre quando iam para o campo de batalha usar
encantamentos de ilusões. Mesmo um encantamento da verdade simples envolvia uma
certa quantidade de coerção.
Mesmo quando ele justificava suas ações para si mesmo, Eduin sabia que o que ele
estava fazendo era diferente. Ele não estava moldando os pensamentos de um louco de
volta à sanidade para qualquer finalidade altruísta. Pelo contrário, ele precisava da
obediência de Saravio e ele ia conseguir de qualquer maneira com todos os recursos que
pudesse. Por que outra razão os deuses lhe deram seu laran se não foi para esse fim?
Ele leu rapidamente a superfície dos pensamentos de Saravio, encontrando apenas um
vazio com som uivante que o lembrava uma planície varrida por uma tempestade. Não
haviam imagens de coisas cotidianas, da luz, da comida, dos lugares que ele tinha passado,
das pessoas com as quais ele tinha falado. A própria textura da paisagem mental parecia
estéril, abandonada. Saravio havia de fato abandonado a vida.
Eduin pressionou mais profundamente. Ele vagou por uma área que tinha ficado vaga por
muito tempo. As impressões deixadas por todas as atividades da vida diária tinham
desaparecido e o selo exclusivo da personalidade praticamente desapareceu.
Ele tinha tocado a mente dos homens quando morriam. Ele conhecia bem os traços
psíquicos. Saravio ainda vivia, mas havia se retirado para um nível que imitava o da morte.
Eduin esperava encontrar, em algum lugar dentro do emaranhado de inconsciência alguns
núcleos do homem que ele conhecera. Ele tinha pensado que ele seria capaz de manipular
a forma de pensamentos de Saravio como tinha feito antes, para entrar em delírios do
outro homem e dominá-los em proveito próprio.
Mas não havia nada ali. Nenhuma mulher vestida de negro, com olhos ardentes e um
rosto lívido como o gelo. Sem Torre atingida por um raio. Não haviam multidões
implorando por salvação, pela a libertação do sofrimento.
Saravio tinha dito que Romilla Aillard lhe apareceu como a encarnação de Naotalba. Foi
por isso que a Noiva de Zandru agora estava ausente de sua mente? Tinha Saravio
entendido seu propósito fora cumprido e que ele não tinha nenhuma razão para continuar
vivendo?
Eu ainda tenho um propósito para ele. Eduin pensou selvagemente. Eu não posso deixá-lo
escapar.
Se ele não poderia rastrear o núcleo de personalidade de Saravio por meio da ilusão que
uma vez tinham compartilhado, então ele devia usar outra coisa. Eduin parou e preparou-
se, procurando qualquer coisa, qualquer impressão de ressonância que ele pudesse usar.
Lembrou-se da voz gentil de Saravio dizendo: - Eu te trouxe da tempestade. Saravio
falando da filha do estalajadeiro e de como ele tinha cantado para livrar a menina de sua
dor. Saravio dobrava-se sobre um músico caído, murmurando: - Descanse agora, será fácil,
nenhum dano virá a você.
Algo dentro de Eduin, algumas memória da infância, vieram as palavras como um
bálsamo em seu coração devastado. Saravio, por toda a sua loucura divina, tinha-lhe
oferecido uma bondade pura. Uma generosidade enorme. Ame. Ele havia dado livremente
estas coisas não só para Eduin, o homem que ele tinha arrastado da destruição, encharcado
e patético, das vielas de Thendara, mas também para outros. O despojados, desesperados,
machucados.
E agora, a filha de Lord Brynon. Mas só se Eduin pudesse arrastar Saravio de volta à vida.
Usar a compaixão do próprio Saravio para controlá-lo parecia ser a única esperança, e
mesmo assim Eduin não sabia se funcionaria. Esse momento de bondade brilhava fora de
todos os anos de sujeira e degradação. Agora ele devia o erguer e moldar para usá-lo em
seus próprios fins.
Eduin disse a si mesmo que Romilla Aillard tinha realmente grande necessidade dos dons
de Saravio, não era indigno. Saravio faria essas coisas de qualquer forma, ele nunca saberia
a diferença, ele daria seu consentimento se pudesse.
Por um longo momento, de gelar o coração, Eduin pairou na indecisão. Nenhum desses
argumentos mudava o que ele pretendia fazer. Saravio podia curar a menina e o levante do
miasma de desespero de toda a cidade. Todas as terras Aillards, não apenas Kirella, mas
também a própria Valeron, podiam curvar-se diante dele. Todas essas ações, não importa
quão bom elas pareciam, seriam para sempre maculadas. A obra de notável capacidade de
Saravio deixaria de ser um dom concedido livremente.
Nada no mundo permanecia puro, como Lord Brynon tinha dito. Nenhum homem agia
senão sob seu próprio interesse. Nem Saravio, nem ele próprio, nem Carolin Hastur em seu
alto trono, ou mesmo Varzil, o Bom. No final, o que movia os homens era o egoísmo. No
entanto, mesmo sob esses pensamentos Eduin ele sentiu um lampejo de vergonha pelo que
ele estava prestes a fazer.
Ele encontrou o que procurava, um núcleo de energia mental firmemente entrelaçado,
uma luz da personalidade consumida e tombada sobre si mesma. Ela lembrava-lhe um nó,
um imenso congestionamento, uma das estruturas que canalizam e armazenam o laran no
corpo humano. Ele usou seus próprios pensamentos para moldar uma rede em torno do
núcleo.
No início Eduin não encontrou resistência. Mas quando ele apertou os fios e começou a
moldá-los em direção a si mesmo, a consciência despertou. Não houve pensamentos
coerentes, apenas uma agitação, uma expansão. Lentamente, e depois com crescente
velocidade, as faculdades mentais do Saravio retornaram.
Rapidamente, antes que Saravio recuperasse a consciência o suficiente, Eduin trabalhou.
Ele não pensou muito no que ele estava fazendo. Ele só sabia que esta oportunidade
poderia nunca mais se repetir de novo. Agora era a hora de trabalhar enquanto Saravio
ainda estava confuso e só parcialmente consciente, antes que seu senso de auto-
preservação retornasse. Ele ainda estava vulnerável.
Eduin fala com a ordem de Naotalba. Siga suas ordens como se fosse dela.
Naotalba...
A imagem estava à deriva, espectral e distorcida, por meio da expansão da mente de
Saravio. Eduin moldou as figuras sobrepostas de duas mulheres. Naotalba como ele tinha
visto pela primeira vez, bela e trágica, mas com uma espécie de nobreza, e Romilla. Por um
momento, elas não pareciam iguais. Então Eduin entendeu por que Saravio havia as
confundido. O sentimento de desesperança, de desgraça, unia ambas. Mas, para o seu
plano funcionar, Romilla devia ter um futuro e coragem de enfrentá-lo.
Com toda a habilidade em seu comando, Eduin começou separar as duas figuras. Ele
drenou a cor da imagem de Naotalba, de modo que ela brilhasse como uma estátua de
gelo, uma verdadeira noiva para o Senhor dos Sete Infernos Congelados. A de Romilla ele
moldou com brilho, imaginou ela levantando a cabeça, bochechas ruborizadas e lábios
rosados. Então ele fez Romilla cair de joelhos diante Naotalba.
A surpresa percorreu a mente sonhadora de Saravio quando Eduin levantou as mãos de
Romilla em súplica.
Cura-me, ó grande Naotalba. Me dê força! Me de esperança!
Sem comando consciente de Eduin, a semi-deusa respondeu. Ela colocou uma mão no
cabelo da menina e sorriu. Eduin se encolheu ante aquele sorriso, pois era apenas
parcialmente uma bênção. Sob a superfície benigna havia uma forte corrente de crueldade.
Haveria um preço a pagar por tal cura e ele não achava que seria barato. Ele cutucou a
figura de Romilla a seus pés e viu como ela diminuiu a distância. O teste para saber se ele
tinha destacado com sucesso a menina perante Naotalba na mente de Saravio viria na
próxima vez que ele a visse.
Eduin esperou enquanto Saravio preparava-se para acordar. Os pensamentos de Saravio
estavam reforçados e sua mente mais uma vez assumia seus complexos padrões familiares.
Eduin viu as áreas dos danos como manchas escuras de uma floresta após um incêndio. Ele
sabia algo melhor do que tentar falar telepaticamente. Em vez disso, ele colocou as mãos
sobre os ombros de Saravio e o balançou suavemente.
- Saravio, meu amigo. É hora de acordar.
Os olhos de Saravio moveram atrás as pálpebras fechadas. Seu peito arfava e seus
pulmões moviam saudavelmente. Ele esticou as pernas. As articulações de sua espinha
estalaram.
- Eduin. - A voz de Saravio estava rouca, suas palavras saíram com dificuldade. - Eu me
sinto tão estranho. Devo ter dormido por muito tempo.
- Na verdade sim. - Eduin respondeu com um sorriso. Ele ajudou Saravio a sentar-se. -
Vou pedir comida e um banho para você. É preciso recuperar suas forças.
- Tenho estado doente? O que aconteceu? - Havia algo quase pateticamente infantil
nessas perguntas.
- Há muito trabalho para você fazer.
- Sim... - Saravio inclinou a cabeça numa atitude de atenção às palavras de Eduin. - Eu
posso sentir... Há muitas pessoas com dor.
- É desejo de Naotalba que você os ajude. Vou guiá-lo neste processo.
A expressão de Saravio ficou ansiosa.
- Diga-me, então, o que devo fazer.
- Depois que você tiver se alimentado e lavado, vamos organizar uma audiência com
damisela Romilla...
Eduin observou esperando qualquer reação em Saravio, mas a expressão do outro
homem continuou tão ansiosa e inocente como antes.
Bom. Agora podemos começar a trabalhar. Pensou Eduin.
Capítulo 21
No castelo todo corria rumores com relatos diários do declínio de Romilla Aillard. A
menina não tinha sido incapaz de comer ou dormir, tornando-se agitada sempre que
alguém se aproximava dela. Lord Brynon enviou um segundo convite desesperado por uma
intercessão do Bem-Aventurado Sandoval. Saravio tinha se recuperado o suficiente quando
o convite chegou.
Lord Brynon guiou eles no caminho para a câmara de sua filha, seguido por Mhari, a
leronis da família, a enfermeira de Romilla e o médico. Dom Rodrigo mantinha sua forma
robusta perto de seu Senhor o quanto era permitido, colocando-se efetivamente como uma
barreira entre Lord Brynon e Eduin e Saravio. Ele dirigia totalmente sua atenção para seu
patrono nobre. Em momentos de descuido, no entanto, as linhas ao redor da boca se
aprofundavam. Mhari falava pouco, embora seu olhar seguisse cada um dos outros quando
eles entraram na câmara de sua jovem protegida.
Eduin observou a cena por um instante. O quarto era menor do que ele esperava para
uma jovem da posição de Romilla. Talvez tivesse sido dela quando era criança. Era
ricamente decorado. A mobília esculpida parecia dominar a delicadeza das proporções da
câmara. Poderia ser um quarto agradável, se fosse menos lotado e se as cortinas fossem
puxadas para trás das belas janelas gradeadas. Ele vislumbrou essas janelas, com a sua vista
para o jardim, apenas quando Lord Brynon ordenou a um servo que abrisse as cortinas.
- Não! Não! - Romilla gritou, sua voz como o grito de uma pomba atingida por uma
flecha. Ela se debatia na cama.
Dom Rodrigo correu para seu lado e Eduin viu que os braços e o corpo da menina haviam
sido amarrados à cama com tiras de pano branco. O médico verificou e apertou os laços.
- Ela deve descansar! Deve ter repouso completo. Por que essas restrições foram
relaxadas? Não dei nenhuma ordem nesse sentido!
- A luz... Estou queimando! - Romilla chorou. - O fogo está chegando! Ele vai destruir a
todos nós!
- Feche as cortinas! Rapidamente homem! - Gritou Lord Brynon, mesmo quando o servo
apressou-se a obedecer.
Eduin parou do lado de dentro da porta. Na verdade, quase não havia espaço para a
adição de qualquer outra pessoa com servos, médico, enfermeira, leronis e o pai, todos
correndo sobre ela. Ele mal podia ver Romilla.
Ele tocou o braço de Saravio e sentiu a resposta instantânea.
- Vá. Ela precisa de você.
De alguma forma Saravio conseguiu seguir seu caminho e chegar ao lado da cama.
Ninguém prestou atenção a ele e ele tinha há muito tempo desenvolvido a capacidade de se
mover de forma discreta por meio de uma multidão. Para alívio de Eduin, Saravio não deu
nenhum sinal de que ele já tinha confundido a menina com Naotalba novamente.
Através das vozes, Eduin chamou a em um murmúrio familiar.
- Não incomode-se, doce senhora, a ajuda chegou. Logo tudo estará bem. Fique
tranquila, pois estou aqui com você. Não há nada a temer.
Eduin deu um passo ou dois na sala, perto o suficiente para ver Saravio agachar ao lado
da cama. Os dedos brancos e delgados da moça estavam na mão de Saravio. Seu rosto se
virou para ele, extasiada.
Sim, isso é bom. Eduin pensou, embora Saravio não pudesse ouvi-lo. Estabelecer contato
físico é muito bom.
Não havia necessidade de incentivar ainda mais Saravio. Ele estava fazendo o que ele
fazia instintivamente, talvez fosse o que ele tinha nascido para fazer.
Os traços faciais perturbados de Romilla relaxaram. Eduin, com seu sentido laran focado
sentiu o momento em que Saravio tocou a mente da menina. Eduin sentiu uma mudança
de cores invisíveis, um calor se espalhando. O prazer surgiu através dele e, com ele, a
retirada súbita da dor, da tristeza e da luta. Ele permitiu-se sentir esse momento, sabendo
que não iria durar, mas faltava-lhe a força de vontade para rompê-lo.
Os olhos de Romilla abriram com uma expressão de alívio incrédulo.
- Afaste-se dela, seu bárbaro! Como ousa impor suas mãos sobre a senhora! - Dom
Rodrigo agarrou a nuca do manto negro de Saravio e tentou puxá-lo para longe.
Saravio não deu a menor atenção ao médico. Sua atenção manteve-se focada na menina.
Seus olhares se encontraram e uma felicidade desprendida de seu consciente iluminava
seus rostos.
Eu sabia que você tinha vindo para me salvar. Seus lábios em formaram as palavras
inaudíveis, mas facilmente discerníveis com o laran de Eduin.
- Guardas! Chamem os guardas! - Com um impulso prodigioso, Dom Rodrigo puxou
Saravio fora de seu equilíbrio.
Sua concentração quebrou, a menina começou a gritar novamente. Lord Brynon, que
tinha ido supervisionar o movimento com as cortinas, virou-se em direção a eles. Eduin
entrou em ação. Ele cortou a sala lotada para interceptar o senhor.
- Vai dom. - Eduin clamou. - Rogo-vos que ponha fim a essa interferência. Não foi o
senhor que pediu a nossa ajuda? Então deixe o Santíssimo Sandoval fazer o seu trabalho!
Com essas palavras, o médico virou-se. O rubor impregnou suas feições. Ele parecia estar
pronto para atacar Eduin, mas voltou-se para seu mestre.
- A damisela está sob meus cuidados profissionais. - Dom disse Rodrigo disse com ares de
dignidade rígida. - Eu não preciso lembrá-lo que sua recuperação contínua é devido às
minhas ministrações! Ela é muito frágil para este tipo de... de superestimulação, esse....
melodrama barato. Isso é altamente prejudicial para o seu progresso. Na verdade, eu
classificaria como franco abuso!
- Nós estamos vendo o quão bem ela tem prosperado com suas ministrações! - Eduin
disse inflamado. - Do que você tem medo? Que alguém possa ter sucesso onde você falhou?
- Parem com isso! - Romilla lamentou. - Quero Sandoval!
- É o suficiente! - Lord Brynon gritou. – Levante-se! Eu não vou tolerar esse tipo de
comportamento! Isso é para rinhas de galo, não para o quarto de minha filha! Levante-se e
largue Sandoval, eu digo, ou eu você será levado preso!
Eduin lamentou instantaneamente suas palavras precipitadas. Seu auto-controle não
estava como deveria, ou tal tolo tagarelando nunca teria o levado a perder a paciência.
- Eu não posso acreditar que o senhor está considerando seriamente estes charlatões de
quem sabe onde! - Dom Rodrigo disse. - Eles não são mais qualificados nessas questões do
que o burro de Durraman!
- No entanto, eles, ou melhor, Dom Sandoval, foram capazes de ajudar Kevan quando o
cão cortou sua garganta. - Mhari deslizou para estar à mão direita do seu Senhor. Embora
sua expressão se mantivesse neutra, seus olhos brilhavam perante Dom Rodrigo.
Agora Eduin tinha certeza da rivalidade entre a leronis e o médico. Claramente, Rodrigo
tinha pisado em Mhari quando ela não conseguiu resolver a depressão de Romilla e tinha
usurpado sua posição de influência com Lord Brynon. Mhari não era uma mulher de
esquecer ou perdoar facilmente.
- Um feliz acidente! - Rodrigo atirou de volta. - O menino devera estar ferido com menos
gravidade do que aparentava. O sangue fluía livremente a partir de certos tipos de feridas
superficiais, dando-lhes a aparência de maior gravidade. Claramente, esse foi o caso. Ele
teria se recuperado tão bem com as atenções de... de uma mão firme!
A voz de Mhari permaneceu serena, um contraponto ao crescente frenesi do médico.
- Houve outras histórias sobre as habilidades de Sandoval. Curas para a mente e o
espírito além do poder de qualquer medicamento. Eles não podem ter sido todos meros
acidentes.
- Meros rumores! Já os ouvi também na aldeia. Contos de iludem os crédulos não têm
lugar em uma sociedade educada. Eu não serei responsável pelas consequências nem
mesmo da menor perturbação no tratamento de Lady Romilla! Exijo que esses homens
sejam removidos daqui imediatamente e...
- Papai, por favor! Faça-os parar! - Romilla soluçou. - O barulho... dói minha cabeça!
- Eu já disse que é o suficiente. - Lord Brynon disse em uma voz mortalmente tranquila.
Ele acenou para os guardas parados ao lado da porta.
Antes que o médico pudesse protestar mais, cada um dos guardas pegou um de seus
braços e o levaram, com o rosto branco, para fora do quarto. Eduin permitiu-se um
momento para assistir, embora ele tenha tido o cuidado de não permitir que qualquer
indício de exultação vazasse através de suas barreiras psíquicas.
Mhari, ele notou, absteve-se de forçar a sua própria vantagem. Em vez disso, ela pegou
um banco baixo e, ajudando Saravio a levantar, levou-o ao banco. Com essa ação, ela
reafirmou sua própria posição. Ela não era uma humilde serva, facilmente descartável. Ela
podia servir ao Senhor e à sua família, mas seu status como uma leronis treinada era
suficiente para garantir sua dignidade e posição.
- Minha querida, - Mhari murmurou - aqui está Dom Sandoval para cuidar de você, assim
como você pediu.
- Vai dom, eu imploro seu perdão por meu descontrole. - Eduin curvou-se para o Senhor
Aillard. - Eu só falava impulsionado em minha preocupação com Lady Romilla, embora não
fosse minha obrigação fazê-lo.
Lord Brynon concedeu seu perdão a esse descontrole com uma ligeira inclinação de
cabeça. Sua atenção voltou-se para sua filha, com Saravio mais uma vez com a mão na da
menina.
Murmurando em seus tons suaves e hipnóticos, Saravio restabeleceu o contato com os
centros de prazer do cérebro dela. Eduin sentiu o pulso de recuo do desespero, como se
uma onda de luz viva inundasse os corredores escuros de sua mente. Desta vez, porém, ele
preparou-se contra a sua própria influência. Ele teve que agir rapidamente, pensar com
clareza, ser racional. Ele não podia se dar ao luxo de entrar em um momento de paz sequer.
O médico tolo quase tinha arruinado tudo. Eduin jurou a si mesmo que nunca seria pego de
surpresa novamente. Se ele fosse quisesse mesmo atingir seu objetivo, sua eventual
libertação da compulsão do feitiço de seu pai, então ele devia afastar toda a satisfação
pessoal imediata. Ele deve tornar-se um instrumento de sua própria vontade.
Mhari ficou atrás de Saravio, balançando levemente, quase perto o suficiente para sua
saia tocar o ombro dele. Ela tinha fechado os olhos, os lábios curvado em um meio sorriso.
O talento de Saravio era forte o suficiente para superar suas defesas.
Claro, pensou Eduin. Com seu laran sensível, ela não podia evitar ser afetada também.
Além disso agora ela havia perdido seu posto, talvez tivesse até sido humilhada
publicamente. Diariamente ela era obrigada a conviver com o resultado de sua falha, sendo
obrigada a ver o tempo todo a herdeira doente e a exultação de seu rival. A explosão de
prazer devia ser um bálsamo para seus nervos desgastados.
Depois de um tempo, Eduin falou a Lord Brynon. - Não devemos sobrecarregar a força de
Sandoval. Seria aconselhável fazer outra sessão de tratamento em outro momento. Talvez
nesta tarde? Há um solário ou algum outro quarto iluminado e alegre? Será que Lady Mhari
estaria disponível para servir como ajudante e acompanhante já que ela conhece bem a
jovem damisela?
Lord Brynon respondeu que era uma excelente ideia. Com um olhar na expressão
sonhadora de Mhari, Eduin disse a si mesmo que ela seria uma aliada dócil e entusiástica.
O solário tinha sido o quarto favorito de Lady Aillard e era voltado para o sul e próximo
ao leste para receber o sol da manhã. As janelas eram grossas e quase sem marcas, uma
maravilha da arte de algum vidraceiro, e ficava entre pedras brancas finamente esculpidas
com flores desenhadas. O quarto tinha sido pouco utilizado nos últimos anos, por isso
Eduin, agindo em nome de Saravio, ordenou que novas plantas fossem trazidas para
substituir as amareladas e antigas. Almofadas claras deram nova vida para as cadeiras e o
sofá.
A primeira vez que Romilla entrou na câmara rejuvenescida, ela bateu palmas e
exclamou em surpresa. Até mesmo Mhari sorriu ante a visão colorida e iluminada.
Romilla ainda tinha uma palidez cadavérica e as olheiras escuras em torno de seus olhos
denunciavam mais uma noite de pesadelos. Pela primeira vez, Eduin se perguntou se a
canção de Saravio por si só seria suficiente para tirar a menina de sua desolação. Ele não se
atrevia a deixar o resultado ao acaso. Ele devia agir e rezar para que ele não fosse
descoberto. Ele esperava que o efeito soporífero do canto de Saravio mascarasse seus
próprios esforços.
Eduin colocou as senhoras em ambos os lados de Saravio. Tinha providenciado o assento
de modo que Saravio ocupasse uma posição distante e ligeiramente elevada acima dos
outros.
- Não fale de Naotalba. - Eduin tinha advertido Saravio. - Eles devem primeiro entrar em
sintonia com a sua sabedoria.
Saravio não teve dificuldade para entender isso. Ele tomou o seu lugar no divã,
aparentemente alheio ao luxo ao seu redor. Eduin tinha colocado um banco baixo em uma
diagonal em frente.
Eduin sinalizou a um servo para trazer o vinho aquecido e os bolos. A cozinheira tinha
preparado de acordo com suas especificações. Uma erva com qualidades ligeiramente
soporíferas tinha sido adicionada ao vinho, seu sabor sendo mascarado pela dose extra de
mel.
- Senhoras, temos algo especial para vocês hoje. – Eduin disse curvando-se. - Sandoval o
Santíssima irá cantar para vocês. Se você, damisela, desejar irá acompanhá-lo com o rryl.
- Com prazer. - Romilla respondeu. - Apesar de eu não tocar nada bem.
- Juntos vocês vão tocar uma bela música. - Disse Eduin.
Romilla pegou o instrumento da mão de Eduin e foi para sua cadeira. Dedilhou alguns
acordes, seus seis dedos movendo-se com alguma hesitação sobre as cordas.
Saravio começou a cantar a mesma canção de ninar que ele tinha usado na morte da
filha do estalajadeiro em Thendara. Depois de algumas notas erradas, Romilla focou numa
sequência de acordes simples.
Eduin deixou seus olhos saírem de foco e suavizou seus escudos psíquicos. A voz de
Saravio, tecendo através das notas doces da harpa, evocou uma sensação de relaxamento
profundo. Embora soubesse que era arriscado na presença da leronis, Eduin abriu seus
sentidos laran. Ele tinha uma ideia de como poderia vencer a depressão de Romilla, que
envolvia a imagem que a visão de Saravio já havia evocado em sua própria mente.
As cores do quarto mudaram sutilmente, como se uma espessa névoa quente tivesse
tomado o ambiente. A música pairava no ar, enormes pedaços redondos de som
soporífero. Eduin movia-se com eles. Emoções suaves espalharam por seu corpo. Ele sentiu
a pressão do talento de Saravio o manipulando, estimulando.
A visão de Eduin estava turva. A luz dourada difusa do solário virou cinza e, em seguida,
prateada. Árvores, delgadas e graciosas, erguiam-se na névoa. Ao longe, crescendo mais a
cada batimento cardíaco, surgiram sons de vozes distantes como o soar de sinos. Ele se
moveu na direção deles. Figuras se moviam no interior da névoa entre as árvores, passando
uns aos outros, dando as mãos...
Ele estendeu a mão para eles, sentiu a sua resposta e, ao mesmo tempo, estendeu a mão
para a mente de Romilla. Ela estava aberta, quase em sinal de expectativa, ainda vestida de
negro. Só seu rosto resplandecia como uma máscara pálida. Não é de admirar que Saravio
tinha confundido ela com Naotalba. Ela esticou os dedos finos em direção a Eduin,
convidando-o para se juntar a ela na escuridão crescente.
Venha vez para a luz, ele pediu.
Ele apertou a mão dela e puxou-a para mais perto. As sombras se afastaram e ela ficou
ao lado dele. Em volta deles estendia-se a floresta. As vozes estavam mais perto agora,
aumentando e diminuindo, doces e tristes. Cabelos prateados brilharam, eram magros. As
mãos de seis dedos gesticularam em um gesto de boas-vindas. Uma fragrância se erguia de
seus corpos, era como uma manhã cheia de esperança, de danças intermináveis sob as
estrelas...
Ele deixou o momento o relaxar e, em seguida, dissolver-se lentamente.
No solário real, a cor tinha subido para bochechas e o pescoço da menina. Seus lábios se
separaram, com respiração profunda, a cabeça inclinada para trás e os olhos semicerrados.
Mhari recostou-se na cadeira com as mãos no colo. Seu olhar encontrou o de Eduin. Sua
expressão revelava apenas o contentamento sonhador. Atrás dela, as jovens damas da
corte da comitiva de Romilla balançavam-se no ritmo da música.
Saravio terminou a canção, passou para outra e, em seguida, uma terceira, todas as
melodias lentas e rítmicas, destinados a acalmar um bebê inquieto. Quando chegou ao fim
da última, ninguém se moveu. Por sua respiração lenta e cadenciada, as mulheres podiam
estar dormido ou estavam em transe profundo. No momento em que abriram os olhos,
uma por uma, levantaram a cabeça.
Romilla levantou-se, espreguiçou-se e deu um par de passos dançando. - Lembro-me o
quanto minha mãe adorava esta sala. É tão cheia de luz. Eu me sinto tão calma aqui. Eu...
Eu quase poderia ser feliz de novo. Sandoval, você vai cantar para mim amanhã?
- Sim, damisela, - Eduin respondeu - se esse for o seu desejo.
- Venha minha querida. - Disse Mhari. - É hora de descansar.
Enquanto Romilla e suas damas se preparavam para partir, Mhari chamou Eduin lado.
- Seu amigo é verdadeiramente... Talentoso. - Ela disse.
Eduin manteve o rosto impassível, a máscara polida de um subordinado a uma pessoa de
sua posição modesta.
- Assim como você também é. - Ela acrescentou.
- Você é perceptiva. - Ele respondeu. - O seu treinamento faz-lhe crédito.
- Infelizmente, eu não tenho sido capaz de realizar o que você... – uma hesitação tênue
surgiu novamente, mas desta vez acompanhada por um contato com uso do laran – e seu
irmão tem realizado tão bem.
Então Mhari tinha visto através de seu disfarce, mas não tinha feito nenhum movimento
para expô-los. Ela estava esperando e olhando para ver como os eventos se desenrolariam.
- Você restaurou a saúde da minha jovem menina ou certamente irá fazê-lo com o tempo.
- Ela prosseguiu. - Não creia que tenho inveja ou lhe deseje mal por causa disso. Mas
acredite que há aqueles que não compartilham da minha alegria em sua recuperação. Há os
que preferem mantê-la na escuridão.
Ela levantou uma sobrancelha. Você me entende?
- É um aviso? - Ele perguntou, mantendo seu tom leve. O médico é um bufão, não precisa
ser levado a sério.
O sorriso de Mhari tristemente.
- Eu poderia ter feito bem à ela se eu tivesse sido autorizada a trabalhar sem
interferências. Eu não tive a boa sorte inicial do seu amigo de cair nas graças do Lord e ter
liberdade de trabalho. Mesmo um bufão é capaz de grandes intrigas.
Eduin curvou-se novamente para a pequena corte e Romilla quando esta terminou sua
despedida de Saravio. Mhari seguiu em seu devido lugar sem olhar para trás.
Saravio e Eduin encontraram Romilla no solário todos os dias. Cada vez mais a vitalidade
da menina crescia. Ela ria e tacava sua rryll com um novo nível de entusiasmo e prática
regular evidente. Ela estava menos magra e o olhar cercado por olheiras estava clareando.
Eduin sabia sem precisar perguntar que agora ela dormia profundamente, sonhando
apenas sonhos normais de uma jovem mulher.
Apesar dos dias ficarem mais curtos e os céus mais cinzentos com a aproximação do
inverno, todo o castelo parecia estar mais vivo. A cozinha estava repleta com histórias de
romances e os aromas de refeições festivas. Servos cantavam enquanto realizavam suas
funções.
Lord Brynon enchia Eduin e Saravio com favores. Quando eles se banqueteavam com sua
corte, muitas vezes eles foram colocados sentados em seu lado direito. Ele os presenteou
com bons cavalos, capas forradas de pele e facas com punhos encrustados de jóias. Eduin
aceitou estas honras em nome do Saravio, repetindo que, ver a saúde de Lady Romilla
restaurada era toda a recompensa que desejavam.
- Seu irmão Sandoval fez muito mais do que isso. - Disse Lord Brynon. - Ele devolveu a
esperança à Kirella.
Passados dez dias o tempo se tornou frio já com os primeiros sinais da mudança de
estação.
A cozinheira que dava a Eduin e Saravio o alimento necessário para o intenso trabalho
laran, também o nutria com os rumores recentes na corte. Pelo padrão de aves migratórias
e a rugosidade da pelagem dos cães, seria um longo inverno. O velho ferreiro, não Jake,
mas seu pai, agora aposentado após vinte anos, ou mais, de acordo com sua interpretação
sobre suas articulações ruins disse que as estradas seriam fechadas durante o mês. Eduin
respondeu que não ia a lugar nenhum.
- Há alguns anos todos eles se reúnem em Valeron para o Festival do Solstício de Inverno,
Sua Senhoria e todos os parentes. - A cozinheira disse quando ela preparou uma bandeja
para Eduin levar com ele. - É um grande evento. Ouvi contar várias histórias do encontro
com todos os altos senhores Comyn. Talvez vocês dois vão junto com o Lord. Todos falam
de todo o bem o que seu irmão fez para a jovem damisela.
- Eles não vão este ano, eu imagino. - Eduin disse distraidamente.
Talvez o tempo fosse como o ferreiro disse e nevasse o suficiente para impedir a viagem.
Se não, eles poderiam arriscar. Isso não alarmou Eduin. Com a melhora de Romilla sua
confiança no seu disfarce aumentou.
- Leve agora! - A cozinheira disse quando terminou a montagem da refeição.
Ela tinha guardado o melhor dos bolos doces e uma pequena massa saborosa, carne
misturada com nozes e frutas secas, cozida em vinho e então assada sob uma massa
folheada, e o tinha envolvido, ainda quente, em um pano grosso. Havia também uma meia-
volta de pão e um pote de creme de leite, juntamente com o copo usual de vinho aguado.
Cheirava maravilhosamente bem. Eduin não tinha comido tão bem assim desde seus dias
em Arilinn. O cinto estava começando a apertar confortavelmente. Ele agradeceu-lhe com
cordialidade e pegou a bandeja.
Enquanto eles estavam falando, Dom Rodrigo entrou na cozinha. Ele usava suas habituais
vestes formais, com a boca moldada para baixo em uma expressão de desaprovação
perpétua.
Quando Dom Rodrigo notou ele, Eduin se levantou e inclinou-se ligeiramente. Como ele
não tinha tido mais nenhum episódio desagradável com o médico, ele não sabia
precisamente se aquilo iria ser entendido como uma saudação ou um insulto. Uma polidez
meticulosa seria suficiente para evitar qualquer conflito. Apesar do sucesso de Saravio com
Romilla, a desconfiança e o ciúme ainda existiam.
Rodrigo inclinou a cabeça em resposta, o reconhecimento insolente a alguém de posição
inferior. Talvez, Eduin pensou, o homem esteja tão seguro de sua posição que ele estava
simplesmente à espera de que os usurpadores sejam descobertos e sumariamente expulsos.
Se assim for, deixarei ele pensar assim, o deixarei sonhar com sua própria reintegração.
A cozinheira limpou as mãos no avental e perguntou o que o médico tinha. Eduin
percebeu a partir do ligeiro aumento no tom de sua voz que esta visita era incomum.
Ele não precisava de nada para si mesmo. Ele tinha vindo para perguntar sobre algum
paciente febril.
Dom Rodrigo se inclinou sobre o pacote de ervas secas. Ele fez sua seleção, envolveu-o
num pano e despediu-se.
A cozinheira se voltou para a lareira onde uma panela estava pendurada num gancho
sobre as brasas. Quando ela levantou a tampa um vapor com aroma salgado subiu. Os
aromas misturados de carne, cebola e ervas evocaram uma sensação de conforto
nostálgico. Eduin parou com a bandeja ainda em suas mãos. Uma onda de algo que ele não
podia nomear passou sobre sua pele.
Com uma colher de pau de cabo longo, a cozinheira mexeu o conteúdo da panela, soprou
um pouco no conteúdo da colher e provou. Ela ficou atenta com a testa franzida em
concentração para avaliar o sabor. Em seguida, mergulhou-a mais uma vez e ofereceu a
Eduin.
Ele colocou a bandeja de lado e provou o caldo. Ele era rico e consistente, com um toque
das cebolas douradas. No entanto, algo estava sutilmente faltando ao sabor.
- Precisa de alecrim, você não acha? - A cozinheira perguntou, inclinando a cabeça para
um lado.
Eduin deu de ombros. Ele teria dito sal por que era o ingrediente de culinária que ele
poderia reconhecer. Ele nunca havia preparado nem mesmo os pratos mais simples para si
mesmo, nem em qualquer uma das Torres em que tinha servido, nem nas vielas de
Thendara.
Ela se apressou até as prateleiras abertas, onde fileiras de jarros de cerâmica tampados e
frascos de vidro estavam em fileiras. Abrindo-a, ela olhou e contorceu o nariz.
- Ugh! Traças!
Ela gritou na direção da copa: - Venha aqui, Liam!
Um menino alto apareceu na porta, esfregando um pincel na mão. Seus olhos se
arregalaram quando viram Eduin.
- Pergunte a Dom Rodrigo sobre a chave para a despensa. Ele precisa trazer de volta o
mais rápido possível. Ele estava aqui um momento atrás. Corra e você ainda o encontrará lo
na escada. Vá agora.
O rapaz partiu sem uma palavra. Eduin disse, pensativo: - Como é que o médico tem uma
chave para a despensa e você não?
- Na maioria das vezes tenho o suficiente do que preciso. Eu tenho minhas próprias
fontes de tudo que é necessário para cozinhar e preparar remédios simples. Remédios para
queimaduras, um raminho ou dois de matricária, de olhos-de-ouro para os problemas das
mulheres. Coisas que pessoas comuns podem preparar para nós mesmos, Dom Rodrigo, ele
tende para o mais complexo. Mistura suas próprias poções, todos os tipos de coisas
estranhas. Bicos de Banshee em pó e elixir de sangue de dragão, por exemplo. - Ela riu. - Eu
não toco naquelas coisas. Eu só pego o que eu conheço.
Duas moças com as cordas de seus aventais em volta de seus corpos delgados três vezes,
carregavam em uma enorme cesta cabaças doces e em uma menor pequenas maçãs
verdes. A cozinheira focou imediatamente na triagem e limpeza do conteúdo das cestas.
- Domna Mhari ainda tem a sua chave, eu acho. - A cozinheira falou amigavelmente
enquanto pegava as maçãs. - Muitas vezes em uma noite ela tinha que ir lá buscar cerveja e
até preparar suas próprias misturas quando a jovem damisela ficou doente pela primeira
vez.
- Sim? E quando foi isso?
- Oh, dois ou três anos atrás, quando minha senhora cresceu e deixou de ser uma
menina.
Eduin lembrou seus próprios meses de desorientação e náuseas durante a doença do
limiar. Então Romilla, como tantos outros de sua casta, tinha sofrido a doença do limiar.
Talvez sua depressão fosse um efeito prolongado, desencadeado pela intensa instabilidade
hormonal e psíquica. Mhari, como uma leronis treinada, sabia como destilar kirian para
facilitar a transição. As matérias-primas, flores de kireseth secas, eram psicoativas e muito
perigosas para ser manuseadas por qualquer pessoa não treinada e conhecendo as devidas
precauções. Bloquear o acesso à despensa fazia sentido e Eduin supôs que também era
apropriado para um médico, que tinha seus próprios preparativos a fazer, ter uma chave.
Eduin franziu a testa. Muitas coisas que poderiam curar numa dosagem também podiam
matar. Perguntou-se se a doença de Romilla poderia ter sido agravada dessa forma, mas ele
nunca tinha visto qualquer sinal de uma causa externa.
- Era uma moça doce, eu sempre disse. - A cozinheira tagarelava. - É uma pena que as
coisas estejam indo tão mal para ela. Mas tudo isso mudou agora que seu irmão... Vocês
vão ajudar a resolver isso! - Ela levantou uma maçã coberta de manchas pretas. - Ah, bem,
ninguém nunca morreu de desejo por falta de uma segunda fatia de torta de maçã, embora
haja alguns que estarão querendo mesmo a primeira antes da primavera vir de novo, eu
vou apostar.
O menino voltou com a chave. Por suas bochechas avermelhadas Eduin suspeitou que o
médico não tinha sido gracioso ao emprestá-la. A cozinheira deu um tapinha no ombro do
menino, deu-lhe uma palavra de encorajamento e apressou.
Eduin levou a bandeja para seus aposentos. Saravio estava descansando, assim como ele
o tinha deixado. Saravio tinha a expressão levemente ausente como sempre acontecia após
uma longa sessão. Eduin entregou a Saravio um prato de comida e pediu-lhe para comer.
Saravio pegou na massa da torta de carne. Eduin percebeu o quanto ele ainda estava
magro.
- Você deve repor a energia que você colocou para fora. - Eduin insistiu. Quando viu que
Saravio ainda hesitava ele disse em uma voz mais firme: - É a vontade de Naotalba.
Ele sentiu mais do que viu o arrepio dos ombros finos de Saravio. Depois o outro homem
inclinou-se para a sua refeição com uma determinação concentrada.
Capítulo 22
Dez dias depois o inverno apertou seu cerco em torno de Kirella. Ventos chicoteavam
pelos campos abertos e arrancavam as últimas folhas secas das sebes. As temperaturas
noturnas despencaram. A chuva congelada caía como flechas voando. As estradas se
tornaram lamacentas e depois congeladas. O pequeno mercado aberto na aldeia estava
deserto, embora uma ou duas vezes um agricultor dirigisse um carrinho para o castelo para
oferecer um barril extra de cidra de maçã ou um pedaço de carne seca em troca de sal ou
de agulhas de metal, coisas que ele não poderia conseguir sozinho. As lojas e casas
pareciam se encolher sobre si mesmas, acumulando os frutos de sua colheita e esperando a
primeira nevasca mais intensa. De repente, os ventos foram para longe, deixando o ar frio e
uma onda de expectativa.
Romilla saiu andando algumas vezes com seu pai e voltou animada com suas bochechas
rosadas. Mesmo quando estava frio demais para se aventurar, o solário permanecia
iluminado e quente. Metade das senhoras do castelo lotavam o solário para ouvir a “música
especial” de sua senhora. Mais de uma vez Eduin ouviu Romilla tagarelando sobre a
possível viagem à Valeron para o Festival do Solstício de Inverno, com todas as maravilhas
da dança e da música, homens bonito e novos possíveis entretenimentos.
Durante essa breve pausa no clima, um mensageiro de Valeron chegou. Em poucas
horas, o castelo inteiro soube da sua presença. Eduin, como de costume, conseguiu alguns
detalhes a mais com a cozinheira. Ela tinha conseguido informações com o cavalariço que
tinha recebido a ordem de cuidar do cavalo que tinha sido forçado demais, nada mais.
Valeron. Eduin repetiu o nome em sua mente. Ele sabia que era a principal sede do
Domínio Aillard e que, seguindo a tradição familiar, era governado por uma mulher. A
cozinheira feliz informou a Eduin que a senhora era uma força a ser reconhecida e sua filha
primogênita, sua herdeira, tinha herdado seu temperamento. Lady Julianna Aillard
governava Valeron com mão de ferro, auxiliada por seu irmão, Marzan, que tinha fama de
ser um general experiente e implacável.
- Guarde minhas palavras, - a cozinheira disse enquanto preparava a bandeja costumeira
para Eduin levar para Saravio - haverá guerra na próxima primavera.
Com descanso, boa comida e o conforto do palácio Saravio parecia estar se fortalecendo.
Lentamente ele estava menos magro e as cavidades sob suas bochechas começaram a
sumir. Seus olhos pareciam mais focados, sua expressão muitas vezes se enchia de
interesse em vez da apatia. Ele falava pouco e apenas com Eduin.
No dia seguinte após a chegada do mensageiro, Lord Brynon ainda não tinha feito
qualquer anúncio oficial. Ele permaneceu isolado com seus conselheiros mais confiáveis.
Domna Mhari foi convocada para seus aposentos particulares e lá permaneceu por um
longo tempo. Os rumores aumentavam, cada um mais terrível do que o anterior.
Eduin manteve seus ouvidos atentos à qualquer indício de guerra com Isoldir ou
qualquer menção sobre Varzil Ridenow. Ele planejou algumas ter palavras com Mhari após
uma sessão no solário. Saravio tinha voltado para os seus aposentos, como sempre fazia
depois de uma sessão.
Ela o olhou e disse:
- Meu senhor obrigou-me a lançar o encantamento da verdade, mas o que foi dito depois
disso, eu dei meu juramento como uma leronis de não revelar.
Eduin se inclinou em um gesto de respeito. Se ele pressionasse ela isso só prejudicaria
sua frágil aliança. Ela claramente tinha recuperado muito de seu status.
- Eu não me atreveria a questionar assuntos que não são da minha conta, - disse Eduin -
mas eu gostaria de pedir o seu conselho. Eu não estou a par das deliberações de Lord
Brynon, nem tenho ouvido nada dele. Meu irmão... - Ele baixou os olhos e deixou suas
palavras no ar. - Ele não é exatamente como os outros homens.
- Sim, - ela respondeu com um aceno indulgente que se desvaneceu em um sorriso - eu
tinha notado isso.
- Além de suas outras... habilidades, ele tem o poder de sonhar com coisas que virão. Eu
já vi isso muitas vezes. Na verdade, foi um sonho dele que nos trouxe até aqui. Eu sabia que
ele poderia ajudar uma jovem damisela porque ele tinha visto a si mesmo fazendo isso em
um sonho. Mas talvez você pense que sou um tolo por acreditar nisso.
- Não, você não é tolo. Eduardo, ou qualquer que seja o seu nome, você pode ser capaz
de ocultar-se de todos os outros como um plebeu insignificante, mas você não pode
esconder a sua verdadeira natureza de mim. Eu fui treinada em uma Torre. Eu sei que você
tem laran. Por que você busca para disfarçar a si mesmo provavelmente não é problema
meu... Mas poderia ser... - ela fez uma pausa, apertando os lábios - se você pretendesse
fazer mal a qualquer pessoa sob este teto.
Eduin baixou as barreiras o suficiente para enfatizar suas palavras com um toque mental.
- Já não provamos com nossas atitudes que não queremos prejudicar nem uma única
pessoa aqui? Não trouxemos o bem? Para o menino, para a damisela e para você?
- Sua vinda foi como o fim da noite. Isso eu não posso negar. Mantenha seus segredos
para si mesmo, com o que você tem feito você mostrou-se um verdadeiro aliado de Kirella.
Quanto aos sonhos do seu amigo, estes são presságios não confiáveis. Se eu fosse você, eu
não iria arriscar a posição que eu tenho pela possibilidade incerta de maior influência. Não
procure colocar-se à frente além de suas habilidades. Se contente com o que você tem.
E não faça nada para prejudicar a minha posição na corte de Lord Brynon!
Era exatamente o que Auster, o Guardião de Arilinn na época de Eduin, teria dito. Seja
prudente. Fique no seu lugar. Não procure avançar. Espere por alguém para decidir o curso
de sua vida.
Parecia a Eduin que toda a sua vida tinha sido determinada pelo julgamento de alguém.
Auster em Arilinn, Loryn Ardais em na Torre Hestral, Lord Brynon e sua animal-leronis de
estimação... E seu pai.
A raiva ferveu nele, mas ele manteve-se contido atrás de um sorriso polido com perfeição
conseguida ao longo dos anos. Seu pai, que deveria tê-lo guiado, o apoiado, alimentado
seus talentos... Ao invés disso tinha empenhado sua alma para sua própria busca fanática
de vingança.
Eu vou encontrar uma maneira de me livrar dele. Eu vou viver minha vida em meus
próprios termos, ou eu vou acabar com ela.
- Claro. – Eduin disse para Mhari com um gesto de reverência. - Eu nunca faria nada para
afligir Sua Senhoria. Desejo apenas servir e falo nessa qualidade. Nada mais.
Com um aceno imperioso, ela voltou para seus próprios assuntos. Eduin permaneceu no
solário, tremendo com a emoção reprimida.
Eu vou viver a minha vida em meus próprios termos ou eu vou acabar com ela.
Ele tinha encontrado um refúgio em Kirella, mas ele não tinha encontrado a paz. Onde
quer que ele fosse, uma nova prisão esparava por ele. A posição subserviente que era
forçado a assumir, o dom do canto de Saravio sempre necessário, os esquemas e intrigas
dos cortesãos, as advertências veladas de Mhari, e, pairando como um dossel acima de
tudo, permeando tudo, a imagem de uma mulher de preto, seus olhos como abismos da
escuridão.
Naotalba.
Por enquanto, Eduin não via saída. Mhari estava certa. Aqui ele tinha conforto e tanta
segurança quanto poderia ter encontrado nestes tempos. Certamente, haveria caçadores
de recompensa que poderiam encontrá-lo aqui. Ele estava em território Aillard e depois da
recuperação surpreendente de Romilla, ele não acreditava que Lord Brynon fosse entregá-
lo nem mesmo para Carolin Hastur.
Conforto e segurança. Procurou dizer a si mesmo que ninguém podia esperar mais. Então
por que se sentia como um prisioneiro com as paredes se fechando ao seu redor cada vez
mais rápido?
Um arrepio passou por ele. Para acabar seu humor sombrio ele se dirigiu para a cozinha.
Depois de buscar a bandeja que a cozinheira preparava tantas vezes, ele já podia
permanecer no calor simples do companheirismo. Ele nunca tinha achado estranho a um
laranzu treinado em uma Torre se sentir confortável em um ambiente tão humilde. Talvez
sentisse algo familiar como a casa aconchegante da infância que ele mal conseguia se
lembrar.
Com esses pensamentos, Eduin abriu a porta. Ela se abriu facilmente como se a trava não
tinha sido completamente fechada. O aroma de guisado com ervas estava misturado com o
cheiro do pão cozido de manhã. Houve uma onda de movimento e Dom Rodrigo se
apressou dentro da sala, mexendo com em seu manto esvoaçante. Por um truque de luz,
Eduin teve um vislumbre do objeto na mão do médico, um frasco redondo e inchado sobre
o comprimento da mão. Era uma sombra azul-esverdeada. No instante seguinte, ele
desapareceu em seu bolso interno.
Dom Rodrigo deu um aceno de cabeça simples dado a um servo, de modo que Eduin foi
forçado a responder por educação.
Se ele soubesse quem eu realmente sou, ele não ousaria... Não, eu não devo pensar dessa
forma.
Em todos esses anos desde o cerco à Torre Hestral, ele tinha educado si mesmo para ser
invisível, imperceptível. Agora algo erguia-se das profundezas escuras de sua mente.
Orgulho talvez, ou a fome por muito tempo negada, e ele achou aterrador.
A cozinha estava vazia, exceto pela névoa da luz solar através das janelas distantes. Uma
enorme panela, a fonte dos aromas apetitosos, estava pendurada acima do fogo para
cozinhar. Panelas de cerâmica, profundas e largas, alinhadas com massa folheada, estavam
em uma fileira na mesa de trabalho central, esperando para ser preenchidas.
Um momento depois, a cozinheira saiu apressada pela porta da despensa, carregando
um pote de mel.
- Estava no fundo...
Ela fez uma pausa, vendo a cozinha vazia, exceto por Eduin. Seu rosto se contorceu em
exasperação.
- Agora veja.... Será que você pode me dizer para que o médico diz que ele precisa de mel
temperado, e não pode ser com flores silvestres ou alecrim, e ele precisa disso agora?!
Agora, no meio do preparo das minhas tortas de carne. Claro...justo agora. E claro que isso
está na prateleira mais distante, pois há pouco uso desse mel agora, exceto no Festival do
Solstício de Verão. Então, para atendê-lo, deixo o meu trabalho, arrasto a mais alta
escadinha, encontro o frasco que está até mesmo coberto de poeira e teias de aranha... E
adivinhe só... Ele nem mesmo espera! - Ela colocou o frasco no armário em uma fileira de
outros ingredientes e foi lavar as mãos na bacia. - Bem, eu não vou correndo atrás dele
como uma serva. Se ele quer tanto ele pode voltar para pegar ele mesmo!
Tendo desabafado, a mulher gentilmente virou-se para Eduin com um sorriso.
- Eu tenho Jaco e um bolo ou dois que guardei para você.
Eduin sacudiu a cabeça. Em qualquer outro momento, ele teria apreciado com deleite o
alimento e a companhia. Mas algo o incomodava no fundo de seus pensamentos, uma
inquietação intuitiva. Ele foi até a mesa onde a bandeja de Saravio estava posta em seu
lugar de costume e ajeitou o pano que a cobria.
- Bem, então. - A cozinheira disse depois de ter pedido suas desculpas: - Eu sei que você
tem um trabalho importante, vocês dois. - A voz dela não tinha nenhum traço de
ressentimento ou mesmo de decepção, mas apenas um encorajamento gentil.
Quando Eduin levou a bandeja de volta para seus aposentos, a sensação de desconforto
aumentou. Ele sentiu como se houvesse peças de um quebra-cabeça espalhadas em sua
mente e ele não conseguia distinguir o padrão.
Dom Rodrigo estava sozinha na cozinha, a cozinheira deliberadamente despachada em
uma missão desnecessária. E o pano, que ela sempre colocava com um cuidado meticuloso,
como se fosse devocional, estava torto.
A garrafa. A garrafa azul-esverdeada.
Ele era um idiota por não ter percebido imediatamente. Em um momento de descuido ou
talvez pressa, o médico não tinha escondido adequadamente o recipiente antes de sair da
cozinha.
Eduin parou diante da porta, olhando para a bandeja, e seus aromas tentadores agora
pareciam iscas venenosas. Muitos medicamentos podem matar ou incapacitar, bem como
curar, e Dom Rodrigo tinha todos os motivos para desejar Saravio fora do caminho. À sua
própria maneira, Mhari tinha o advertido.
Na sua câmara, Saravio parecia pálido. Seus lábios se curvaram e ele suspirou quando ele
olhou para a bandeja.
- Não! - Eduin gritou. O que ele poderia dizer? Ele não podia ter certeza da reação de
Saravio, mas ele não podia deixá-lo na ignorância. Podia muito bem ser outra tentativa de
assassinato. Ele recuou, retirando a bandeja do alcance do Saravio, fechou os olhos, e
começou a se balançar.
- Sim... Sim, eu entendo. - Eduin gemeu. - Oh grande Naotalba, vou fazer como você
ordena!
Quando ele parou e abriu os olhos, Saravio estava olhando para ele com exatamente a
expressão que Eduin esperava.
- Ela falou com você? - Saravio disse sem fôlego.
- Ela me avisou, - Eduin respondeu - do perigo neste lugar, de um inimigo oculto. -
Incisivamente ele olhou para a bandeja. - Alguem que deseja destruir aqueles que servem a
ela. Com veneno.
As feições de Saravio endureceram. - Em verdade, há muitos que não ouço seu
chamado... Ou não desejam que eu ouça. Eles poderiam muito bem tentar silenciar seu
mensageiro. Eles não devem prevalecer. - Ele olhou para a bandeja com horror.
- Não, eles não devem. - Eduin respondeu. - Naotalba irá protegê-lo. Ela vai revelar os
vilões. Enquanto isso, nós devemos deixá-los acreditar que eles venceram. Você deve ficar
escondido, como se você tivesse ficado doente. Tirarei este alimento contaminado e vou
preparar um seguro.
Eduin correu de volta para a cozinha, ficando bem longe dos corredores que os
cortesãos, incluindo Dom Rodrigo, usavam. A cozinheira estava dando os últimos toques
decorativos com ervas e folhas de massa folheada sobre as tortas cheias. Ela pareceu
confusa quando ele contou uma história de que Saravio recebera uma visão ordenando-lhe
que se abstesse de carne, e que ela montasse uma refeição de pão, queijo e vegetais
cozidos. Ela hesitou quando Eduin pediu-lhe para salvaguardar a primeira bandeja.
- Por que, o que está errado com a minha cozinha?
Eduin deu de ombros ingenuamente, como se ele também estivesse confuso pelos
caprichos do grande curador.
- Talvez ele vai querer isso mais tarde. É só guardá-la onde não vá ser tocada por
ninguém, não é?
- Sim, não há nenhum problema. Muitas vezes nossa jovem damisela mandou de volta
algum prato, dizendo que não gostava daquilo, e depois mudou de ideia. Eu tenho uma
prateleira na despensa que é agradável e fresca. Lembre-se, o ensopado não vai ficar bom
para sempre.
Naquela noite, Dom Rodrigo se aproximou de Eduin para perguntar sobre a saúde de
Saravio. A culpa do médico estava pendurada sobre ele como uma névoa psíquica.
Eduin assumiu uma expressão de ansiedade.
- O Santíssimo Sandoval não é capaz de deixar seus aposentos hoje.
- Ele está doente? Por acaso posso atendê-lo? - O médico perguntou. - Nós não queremos
que um personagem tão importante fique insatisfeito.
- Não, não. É apenas uma indisposição temporária. - Disse Eduin, elevando o tom de sua
voz para que ele iria soasse preocupado. - Ele estará melhor em breve. Estou certo disso. Se
você me der licença, tenho que ir agora para falar com Domna Mhari.
Quando Eduin se afastou, ele captou a ponta do pensamento de Rodrigo: Sim, vá
procurar o conselho da bruxinha. Ela não pode ajudá-lo, ou mesmo a si mesma, em assuntos
do conselho. E, para o que aflige o seu amigo, já é tarde demais.
Não é para Saravio que já é tarde demais. Eduin pensou com uma diversão obscura.
Capítulo 23
- Sim, eu ainda tenho a minha chave. - Mhari pareceu surpresa quando, após o pequeno
almoço na manhã seguinte, Eduin perguntou se ela poderia mostrar-lhe a despensa. - Eu
não a tenho usado a algum tempo, não desde que eu estava à frente do tratamento de
damisela Romilla. Eu pensei que eu poderia precisar de algumas coisas guardadas lá para o
meu próprio uso, uma vez que não há agora ninguém no castelo em risco com a doença do
limiar.
Eduin não pediu a chave emprestada. Ele queria que Mhari continuasse a ser uma
testemunha incontestável do que ele sabia que iria encontrar lá. Ela podia ter voltado às
graças de Lord Brynon apenas recentemente, mas como a leronis da família, a palavra dela
estava acima de qualquer dúvida.
Na despensa havia a uma curta distância um armário de raízes perfeito com sua câmara
de paredes de pedra para armazenar vários medicamentos. Cachos de flores secas e ervas
estavam pendurados nas vigas e garrafas, frascos e pacotes estavam dispostos em filas nas
prateleiras. Eduin parou, inalando a mistura de aromas, alguns familiares e
tranquilizadores, outros desconhecidos. Ele reconheceu o distintivo, mas muito fraco,
aroma de kireseth.
O que pode curar, também pode matar. Ou levar um homem à loucura.
Só alguém devidamente treinado poderia lidar com as flores secas com segurança, pois o
pólen não refinado era um alucinógeno potente. A partir dele, uma variedade de extratos
poderiam ser preparados para o tratamento da doença do limiar e outras doenças
relacionadas com laran.
Eduin se aproximou do armário tentando tocar nos conteúdos. A porta estava trancada.
- Você está procurando algo em particular? - Mhari perguntou.
Com uma onda de euforia, ele apontou para uma prateleira. O frasco parecia muito com
o que ele se lembrava na mão de Dom Rodrigo. - O que tem nesse recipiente?
Franzindo a testa, Mhari inclinou-se para olhar. - Isso é estranho, não está no lugar de
sempre. Olha, a poeira foi retirada. - Ela se endireitou com os olhos se estreitando. - O que
é que você não está me dizendo? Por que está tão interessado?
- Primeiro, me diga o que é.
- Shallavan. - Ela praticamente cuspiu a palavra para ele.
Eduin sentiu-se mal. Shallavan era uma das destilações mais traiçoeiras conhecidas nas
Torres. Auster, Guardião de Arilinn, havia proibido a sua utilização por ser muito perigoso.
Em quantidades diluídas poderia acabar com as crises do laran recém despertado. Mais
concentrado ele poderia paralisar a mente de um laranzu, deixando-o sem sentidos e
paralisado. Uma dose ainda maior poderia...
Dom Rodrigo, que não era bobo, deve ter percebido que Saravio tinha laran, que tinha
usado seus dons psíquicos para curar Romilla.
- Pegue-o. - Disse Eduin. - Diga-me quem lidou com isso por último.
O gabinete abriu com um pouco de força e uso da chave principal. Mhari pegou o frasco
e segurou com as duas mãos. Eduin sentiu sua mente sondando a superfície do vidro para
captar a impressão persistente de personalidade. Depois de um longo momento, ela
respirou com um assobio. Quando ela falou, sua voz soou como aço.
- Como você sabia?
- Eu vi Dom Rodrigo despejar um pouco disso em uma refeição destinada a Saravio.
Ele percebeu tarde demais que ele tinha usado o verdadeiro nome de Saravio, não o
Santíssimo Sandoval. Mhari pareceu não notar, ou talvez ela estivesse distraída, focada no
quebra-cabeças que se apresentava à ela.
Eduin sentiu sua onda de euforia, viu os dedos brancos em torno do frasco se apertarem.
Ele tinha apenas entregado-lhe um instrumento de vingança contra o homem que tentou
usurpar o seu lugar e Eduin sabia disso. Ela não era uma mulher capaz de perdoar
facilmente.
- E seu amigo? - Ela perguntou.
- Não provou nada do prato.
- O que aconteceu com a comida?
- Eu pedi a cozinheira para mantê-lo em um lugar escondido.
- Mostre-me onde está.
Mhari trancou cuidadosamente o armário, mantendo o frasco azul-esverdeado e
acompanhou Eduin. A cozinheira pela primeira vez não estava ocupada com alguma
preparação. Estava sentada confortavelmente com duas de suas jovens ajudantes,
mexendo mel e jaco em canecas. Levantaram-se quando a leronis entrou, as meninas sendo
liberadas com um sinal. A cozinheira desapareceu no fundo da despensa e surgiu um
momento depois com a bandeja. Ela tinha sido guardada tão bem quanto havia garantido,
pois nem mesmo a cobertura de pano tinha sido mexida. Estava exatamente como Eduin
havia deixado.
A cozinheira estendeu para Domna Mhari como se contivesse um ninho de serpentes
venenosas.
- Coloque aqui. - Disse Mhari, apontando para o fim da mesa de trabalho, que haviam
sido apuradamente limpa. Debruçou-se sobre a bandeja, suas narinas dilatadas muito
ligeiramente, os cantos da boca para baixo e pegou sua pedra-da-estrela que estava em
uma bolsa de seda com um longo cordão trançado em torno do pescoço. - Agora, tire o
pano.
A mulher retirou o pano colocando-o em um canto. Eduin suspeitava que o item muito
provavelmente iria acabar no fogo em vez de ser lavado.
Com os dedos bem abertos, Mhari passou a mão livre ao longo dos pratos cobertos. Ela
fechou os olhos, procurando com seu laran pelos resíduos psíquicos. Eduin não precisava
segui-la com seu laran para saber o que ela iria encontrar.
Agora eu te peguei! O triunfo brilhava dentro de sua mente, filtrado através de um véu
de ressentimento.
Mhari iria fazer o trabalho por ele e ninguém, nem mesmo Lord Brynon, precisariam
saber que fora Eduin e não ela que tinha descoberto a tentativa de envenenamento.
Deixaria ela ficar com todo o crédito. Ele não queria fama. Tudo o que ela teria que dizer
era: Eu descobri que alguém tentou matar Sandoval, o Santíssima Sandoval, o salvador da
herdeira de Kirella, e gostaria de examinar o suspeito sob o encantamento da verdade.
Com olhos brilhantes, Mhari ordenou a cozinheira que guardasse as provas e, em
seguida, saiu da cozinha.
- Bem! - A cozinheira exclamou, depois de guardar a bandeja em seu esconderijo. - O que
você acha que foi isso?
- Eu não sei, - Eduin mentiu - mas espero que em breve possamos descobrir.
Eles não precisaram esperar por muito tempo. Depois de uma hora, o Lord Aillard
ordenou que a cozinheira levasse a bandeja e ao Santíssimo Sandoval, juntamente com seu
assistente, fossem à sua presença. Saravio seguiu Eduin sem comentários, desinteressado
ao acontecimento.
A câmara já estava cheia com todas as pessoas importantes do castelo, de modo que a
atmosfera parecia tensa e curiosa. Mesmo sem laran Eduin teria recuado com a sensação
que a energia negativa mostrava.
Lord Brynon estava sentado em seu lugar habitual, com Romilla em um trono menor ao
seu lado. O rosto da menina estava tão sério e pálido como no primeiro dia em que Eduin a
tinha visto, mas sua expressão era sombria e seus olhos estavam iluminados com um fogo
interior. Domna Mhari estava um pouco de lado, com as mãos em concha entre os seios.
Quando Eduin e Saravio entraram, um cortesão se aproximou e os escoltou para duas
cadeiras perto da frente da sala. Eles tomaram seus lugares e a multidão ficou em silêncio,
exceto por uma tosse nervosa ocasional ou o farfalhar das saias de uma senhora.
Lord Brynon apontou para o capitão da guarda e um momento depois, dois homens
armados trouxeram o médico, cada um segurando em um braço dele. Pararam diante de
Lord Brynon. Dom Rodrigo fez uma reverência formal com a mesma facilidade como se
fosse um convidado bem-vindo e não um prisioneiro. Mesmo assim, o medo subia como
uma névoa escura em sua mente.
- Vai dom! - O médico gritou. - Eu te imploro, me diga por que eu fui trazido de uma
forma tão indecorosa. Não sou um ladrão comum para ser cercado assim por homens
armados. - Ele se afastou dos guardas. - Se há algum descontentamento, se fizeram uma
queixa contra mim, deixe-me ouvir de seus próprios lábios, para que eu possa refutar o
canalha!
- Silêncio! - A voz de Lord Brynon soou acima do ronco do tribunal. – Não quero ouvir
nem uma única palavra até que tudo esteja preparado. - Ele acenou para Domna Mhari -
Faça -nos chegar a fundo dos fatos, apesar do próprio pensamento de tal traição ser
repugnante para mim.
Mhari virou as palmas das mãos para cima. A luz azul-esbranquiçada de sua pedra-da-
estrela brilhou em suas mãos em concha. Ela inclinou a face sobre a gema, como se apirasse
em seu poder.
Eduin se preparou para os primeiros sinais do encantamento da verdade, embora ele não
tivesse motivo para temê-lo. Ele não tinha feito nada para ferir qualquer pessoa dentro
destas paredes.
Velhos hábitos de manter segredo estavam enraizados. Ele tinha guardado segredos por
tanto tempo quanto ele podia se lembrar. Sua verdadeira identidade como o filho do
laranzu foragido, Rumail Deslucido, suas tentativas frustradas de assassinar o príncipe
Carolin Hastur, ele que era agora rei, seu assassinato bem-sucedido de Felicia Leynier, o
círculo ilegalmente reunido para defender a Torre Hestral, seu papel no motim no Lago Hali
Lake... Dependendo de como as perguntas fossem formuladas podia se tornar evidente que
ele estava escondendo algo. Havia tanta coisa a esconder. Se pressionado, ele poderia usar
o laran Deslucido, como tinha feito no passado. Esse era o maior e mais terrível segredo
dentre todos.
A leronis começou as frases rituais que moldavam o feitiço.
- Pelo fogo desta joia, que a verdade ilumine esta sala em que estamos.
Eduin tinha visto o lançamento do encantamento da verdade uma série de vezes, e tinha
sido treinado para fazê-lo sozinho. Ele sabia que só ele possuía a capacidade de anulá-lo e
ainda assim o processo moveu em algum nível profundo e sem palavras. Da pequena joia
azul nas mãos de Mhari, um brilho surgiu, lentamente inundando suas feições. Ele encheu a
sala, arrastando-se lentamente de face a face, como se fosse uma coisa viva com uma
inteligência própria. Ele sentiu que brilhava através de sua pele, fresco como o vidro polido,
iluminar Saravio com um brilho crepuscular.
A luz azul tocou cada um de acordo com sua natureza, aumentando a essência da pessoa.
Romilla parecia como se tivesse sido esculpida de alabastro, seu pai como um pássaro
pronto a atacar sua presa. As características de Dom Rodrigo tornaram-se manchadas, as
dobras e as linhas de seu rosto se parecendo com fendas obscuras.
Mhari levantou a cabeça. Nesse momento, ela parecia mais alta, dignoa de seu próprio
orgulho.
- Está feito, meu senhor. Enquanto esta luz durar só a verdade pode ser falada aqui.
- Agora, teremos a verdade desse assunto. - A voz de Lord Brynon aprofundou, como um
trovão distante. Ao ouvir isso, Eduin lembrou das tempestades não naturais em Thendara, o
crepitar do relâmpago não físico, o som do poder no ar.
- Dom Rodrigo Halloran, fique para trás.
Visivelmente controlando-se, o médico se afastou dos guardas. Ele lambeu os lábios e
curvou-se profundamente ao seu senhor.
- Eu estou aqui e pronto para servir com capacidade total da minha habilidade e
treinamento. - Ele fez uma pausa e depois acrescentou com um traço de sua antiga
arrogância e um olhar de soslaio para Saravio - Como eu sempre tenho feito.
- Você diz que sempre serviu esta casa com habilidade? - Lord Brynon perguntou.
- Eu busquei a saúde e o bem-estar de todos os membros da família real. - A luz azul
permaneceu clara e firme na face de Rodrigo.
- E de todos os que habitam dentro destas paredes?
O médico hesitou antes de responder: - Isso eu não posso jurar com certeza, meu senhor,
porque eu não sei de todos eles. Eu sou limitado pelo juramento de minha profissão a não
prejudicar ninguém, independente dos meus sentimentos pessoais.
- Então, não há ninguém que você não gosta aqui nesta casa?
Dom Rodrigo permaneceu em silêncio.
- Faça-o responder! - Romilla gritou. - Ele não deve se esconder atrás do silêncio!
- Ninguém a quem desejou qualquer doença ou morte? E sobre Sandoval que salvou a
vida do jovem Kevan? Quem conseguiu salvar a mente de Lady Romilla quando você
falhou?
- Meu senhor, eu não posso... - Rodrigo ergueu os braços num gesto comovente. Suas
mãos tremiam.
Lord Brynon lentamente ficou de pé e apontou para Saravio. - Você tentou prejudicar
esse homem?
Dom Rodrigo caiu de joelhos. O único som que saiu de sua boca foi um gaguejar
incoerente.
- Eu ... eu... eu não... - A luz azul em seu rosto vacilou e depois sumiu.
Por um momento um silêncio atordoante pairou sobre a sala. Eduin ficou de pé em um
pulo. - Meu senhor, peço-lhe, em nome do Santíssima Sandoval, permita-me uma ou duas
perguntas antes de pronunciar seu julgamento.
Romilla tocou no braço de seu pai. - Sim, deixe-o falar. Deixe-nos conhecer a vontade de
Sandoval nesse assunto, pois é ele a quem sou grata e ele que foi ferido por esse vilão
traiçoeiro.
Eduin inclinou-se até sua boca ficar próxima da orelha de Saravio. – Ouça com atenção o
que vou dizer e observe as reações deste homem. Lembre-se que é a vontade de Naotalba
que todos os homens a busquem e nós a seu serviço, e que seus inimigos sofram.
Saravio assentiu.
Dando um passo para o médico encolhido, Eduin lançou sua voz de modo que todos na
sala pudessem ouvi-lo claramente. - Dom Rodrigo, no momento vamos deixar de lado a
questão de saber se você agiu sozinho ou a mando de alguém. Em vez disso, eu pergunto,
em nome do homem que você tentou prejudicar: O que você sabe sobre Naotalba?
Em um instante, a expressão de Dom Rodrigo passou da culpa à confusão. A luz azul do
encantamento da verdade cintilou em seus traços mais uma vez.
- Naotalba? Não sei de nada. Não tenho nada a ver com ela. Por que eu teria? Ela nem
sequer existe, exceto como um conto para assustar donzelas tolas.
Eduin curvou-se sobre Saravio novamente, dando a ilusão de o consultar sobre a próxima
pergunta.
- Você ouviu? Ele nega até mesmo a sua existência.
Os olhos de Saravio brilharam em resposta. Os músculos de sua mandíbula ficaram
tensos.
- Mas ele não é o líder. - Eduin continuou. - Temos de descobrir a quem ele serve.
Eduin endireitou-se e perguntou no mesmo tom de voz. - E quanto a Varzil Ridenow?
Você também não sabe nada sobre ele?
- Claro que eu sei! Eu não sou nenhum tolo ignorante! - Recuperando um pouco de
compostura, Dom Rodrigo levantou-se em um pé e depois o outro. Agora, o brilho azul
estabilizou. - Varzil de Neskaya foi treinado primeiro na Torre Arilinn e é talvez o mais
notável Guardião do nosso tempo.
- Então você é a favor dele? Acredita nele? - Enquanto ele dizia essas palavras, Eduin
sentiu um lapso de medo e raiva de Saravio. Romilla se encolheu visivelmente. Mhari
empalideceu dentro da aura de luz azul.
- Que tipo de perguntas são essas? Ao contrário da figura mitológica que você citou
anteriormente, este homem é real e por isso suas realizações são reconhecidas. Juntamente
com Carolin Hastur ele reconstruiu a Torre Neskaya. Agora ele é emissário do Rei Carolin e
seu nome é frequentemente elogiado como uma força para a paz e a justiça. Muitos o
chamam de Varzil O Bom.
- E você? Você o admira também? - Eduin pressionou.
- Ele é honrado e todos vêem isso por onde ele passa.
Mais uma vez a mente de Saravio enviou uma onda de fúria, mais forte desta vez, como
uma substância cáustica sobre a pele nua. Os cortesãos murmuraram inquietos. Várias
vozes se elevaram acima das outras.
- Traidor!
- Ele nos vendeu!
- Os Hasturs? Poderiam eles estar por trás disso?
Um dos principais conselheiros, um homem mais velho com uma postura digna, deu um
passo adiante. - Vai dom, isso precisa continuar? O prisioneiro não passou no teste de
encantamento da verdade.
Lord Brynon estava agitado em sua grande cadeira. O encantamento da verdade revelava
seus aspecto áustero e sombrio. - Eu não entendo essa linha de investigação. Qual é o
ponto?
- Ele ainda não nos disse quem o enviou aqui para destruir a esperança de Kirella para o
futuro. - Disse Eduin. - Nós temos que descobrir toda a verdade.
- Varzil Ridenow? - O antigo conselheiro disse espantado. - Por que ele iria preocupar-se
com os assuntos do Domínio Aillard? Você não pode estar falando sério...
- Silêncio! - Lord Brynon o cortou. Parecendo agora com um predador prestes a atacar,
ele disse: - Dom Rodrigo Halloran, você colocou veneno na comida de Sandoval?
O médico ficou como um animal na baía. Com uma dignidade ímpar, ele levantou a
cabeça para que todos pudessem ver o encantamento da verdade.
- Eu coloquei uma substância na refeição destinada a este charlatão. Não era veneno e
não teria causado nenhum dano a qualquer homem comum. Mas eu não acreditava que ele
fosse um homem comum. Como pode qualquer homem comum intervir com o tratamento
de uma jovem damisela? Desde o momento da sua chegada eu suspeitava que esse
Sandoval era um selvagem com talento laran destreinado, falta até mesmo os rudimentos
de disciplina, é errático e imprevisível. Em suma, ele é perigoso ao extremo. Além do mais
ele poderia ter subornado Lady Mhari, uma legítima leronis e a recrutado para ser sua
aliada para fazer algum mal. Ele pode ter seduzido todo este tribunal, especialmente a
jovem Lady Romilla que, em sua doença e confusão, foi vítima de seus enganos. Eu apenas
tentei revelar a sua verdadeira natureza...
- Você admite então? - Romilla gritou, sua voz afiada e dura como o grito de um falcão de
caça. - Você admite que tentou envenená-lo? Ou pelo menos incapacitar o único homem
que poderia trazer a luz à minha escuridão?
- Você não sabe o que diz, damisela. - Dom Rodrigo respondeu com sua voz agora calma.
- Sandoval poderia parecer primeiro para ajudar, mas no final, a sua falta de formação teria
certamente lhe carregado ainda mais para a doença. O que são seus efeitos, eu não posso
dizer, além de seu próprio avanço nesta audiência através do controle ilícito sobre sua
mente suscetível. Eu, por outro lado, tenho sido sempre o seu verdadeiro médico,
desejando nada mais do que sua felicidade e bem-estar, e sempre procurei usar o meu
conhecimento e habilidade em seu serviço.
Ao longo do discurso do médico, a luz do encantamento da verdade permaneceu em seu
rosto. Ele realmente acreditava no que ele dizia. Pomposo e arrogante ele podia ser, mas
não estava mentindo. Ele tinha de fato servido à Kirella por longos anos.
O discurso de Dom Rodrigo, calmo e razoável, se espalhou como um bálsamo sobre a
multidão inquieta. Eduin viu em seus rostos que muitos acreditavam que ele e até agora
estava pensando que o que ele tinha feito não era tão terrível. Muitos na plateia da corte
tinham sido beneficiados por sua habilidade. Sandoval, como o chamavam, era um
estranho cuja indiferença tinha lhe rendido pouca amizade fora do círculo de Romilla. Mais
alguns minutos e alguns poderiam até começar a se perguntar se ele poderia ser mais útil.
Eram capazes de propor que Sandoval fosse descartado e o médico continuasse em seu
antigo lugar.
- Meu Senhor! - Sabendo que tinha que agir rapidamente, Eduin falou. - Este homem é
culpado por suas próprias palavras, mas ele ainda não revelou a extensão dessa
conspiração. Devemos descobrir quem o enviou, que poder está por trás dessa trama
covarde. Pelo amor de Romilla, pelo bem de todos em Kirella, devemos saber.
- Que absurdo é esse? - Recuperando a confiança, Dom Rodrigo girou para Eduin. - Quem
falou em uma trama? Eu agi na defesa de Kirella e sua jovem damisela, nada mais!
- Mas você admite que admira Varzil Ridenow, o agente insidioso dos Hasturs? - Eduin
continuou. - Você pode negar que procuram difundir sua influência aqui nas terras Aillard e
colocar-nos sob o domínio do Rei Carolin?
- Isso é ultrajante! Um absurdo!
Suas palavras foram cortadas como se estivesse sob uma explosão renovada de dor e
raiva de Saravio, Romilla gritou: - O fogo! O fogo! Sandoval, salva-nos!
Lord Brynon observava com uma expressão de horror quando sua filha, que ele pensou
estar curada, gritou e estremeceu.
O público cresceu como uma fera lutando contra uma gaiola. Lord Brynon, com o rosto
banhado em escuridão, pôs-se de pé, dando ordens. Seus guardas empurraram a multidão
para trás. Aço entraram em confronto. Uma mulher gritou. Domna Mhari vacilou e caiu em
um desmaio. A luz azul pálida do encantamento da verdade desapareceu.
Eduin levou Saravio pelos ombros e obrigou o outro homem a encontrar seu olhar. - Você
tem que acalmá-los. Chame Naotalba neste lugar e peça pra ela dar paz para eles. Só então
poderemos derrotar seu inimigo.
Embora ele mal pudesse ouvir suas próprias palavras acima do alvoroço, Eduin viu a luz
do reconhecimento no rosto de Saravio. Saravio levantou-se e entrou no meio da câmara. A
multidão se separara para ele. Guardas abaixaram suas armas. Cortesãos caíram para trás.
Dom Rodrigo, que vinha lutando nas garras de um guarda de um lado e um jovem fidalgo
do outro, abruptamente parou sua resistência. Saravio levantou os braços e começou a
cantar.

Oh, senhora da noite sem estrelas,


Traga-nos a sua sombra.
Nós damos a você.
Leve-nos agora, levar-nos rapidamente agora...

Por um instante, a visão de Eduin ficou branca quando a onda familiar de prazer tomou
conta dele. É demais, pensou ele, e então eu não posso pensar em tudo.
Ele entrou mais uma vez na floresta cinzenta, onde as árvores esguias erguiam seus
ramos pálidos para o céu. A música soou, suave e distante, despertando uma vibração de
ressonância nos seus ossos. Chieris moveram-se através do bosque na complexidade serena
de uma dança. Eles o rodearam, abraçando-o com os seus olhos luminosos, acariciando-o
com os seus dedos ou os fios de seus cabelos longos, soltos. Moveu-se pelo meio deles,
capturado no fluxo e refluxo do movimento. O próprio tempo parecia suspenso. A tristeza e
a beleza da música entraram em seu íntimo com doçura. Uma figura estava no centro dos
dançarinos, cercada em um manto negro.
Quando abriu os olhos, viu a ordem emergindo do caos. Armas foram guardadas. Alguns
tinham caído no chão com as cabeças jogadas para trás. Romilla tinha se jogado aos pés de
Saravio, soluçando. Mhari se levantou e foi até a sua senhora, ajudando-a a se levantar.
Lord Brynon ordenou que Dom Rodrigo fosse levado e mantido sob vigilância. A câmara
rapidamente foi esvaziada. Eduin sabia que dentro de uma hora, a história do que tinha
acontecido aqui não só se espalharia por todo o castelo e aldeias vizinhas, mas também
chegaria a Valeron.
Quando ele se virou para sair, Lord Brynon gesticulou para Eduin e Saravio. – Vamos
conversar em particular. Com vocês dois.
Poucos minutos depois eles estavam diante dele em uma sala de estar pequena, mais
adequada a uma reunião familiar íntima do que a um assunto desagradável. Uma pequena
fogueira emanava um calor fraco. Um criado colocou mais lenha às pressas, acendeu uma
gama de velas e retirou-se.
- Depois do que eu vi e ouvi, - Lord Brynon disse, pensativo - agora tenho motivos para
suspeitar que a perfídia do médico não é apenas ideia dele. Apesar de suas negativas, eu
não consigo acreditar que ele agiu sozinho. Sua mão pode ser a que colocava o veneno, mas
não a vontade. Ele pensou que estava fazendo nada mais do que o seu dever. Alguém deve
ter usado sua lealdade para os seus próprios fins.
Eduin esperou por um momento, então disse: - Eu acredito que nós podemos dizer quem
foi.
Franzindo a testa, Lord Brynon caminhou até a cadeira ao lado da lareira e sentou-se
nela. - Você foi o único a trazer os nomes de Varzil Ridenow e do Rei Carolin Hastur. Até os
acontecimentos de hoje, eu teria dito que eles não tinham nada a ver com a gente. Agora,
eu tenho dúvidas. Por que você falou deles? O que mais você sabe?
- Varzil, o Maldito há muito se opõe à vontade de Naotalba. - Disse Saravio.
- O que ele quer dizer, - Eduin disse - é que, juntos, esses dois homens procuram alterar o
equilíbrio de poder com a sua conversa de um Pacto, persuadindo reis e lords a entregar
seus mais poderosos meios de defesa. Que propósito eles podem ter, exceto para traçar o
eventual domínio sobre toda Darkover?
Quando Eduin falou, Lord Brynon balançou a cabeça, olhos baixos e pensativo.
- O reino de Hastur tem de fato crescido e se tornado poderoso. Agora que Carolin tem o
seu trono de volta e não há ninguém para ficar contra ele...
- Como você disse, meu senhor, sem ninguém para ficar contra ele, quanto tempo pode
até mesmo o melhor rei permanecer livre de ambição? Carolin pode ter começado o seu
reinado com intenções nobres, mas nem mesmo ele deve sucumbir às tentações do poder e
da conquista. Ele tem o mais poderoso laranzu de Darkover, o grande tenerezu Varzil
Ridenow, para ajudar a tramar o poder total. Juntos, eles vão desarmar qualquer um que
poderia se opor a ele. Se não agirmos logo, será tarde demais para qualquer poder mortal
derrubar ele. Darkover ficará unida sob um rei: Carolin Hastur!
A carranca de Lord Brynon obscureceu. - Se o que você diz é verdade... Eu não posso
decidir estas questões sozinho, pois Kirella é apenas uma pequena parte de Aillard. Assim
que puder, temos que falar com a Lady de Valeron e os conselheiros sábios de lá. Eu
espero... Eu gostaria que você e o Santíssimo Sandoval estejam prontos para me
acompanhar.
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LIVRO IV

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Capítulo 24
Dyannis Ridenow não deixou a Torre Cedestri até quase a primavera seguinte. No início,
havia muito trabalho a fazer, cuidando dos ferimentos urgentes dos trabalhadores da
matriz e dos moradores. Alguns foram tão gravemente queimados que para a cura e
reconstrução eram necessárias muitas sessões. Mais e mais, ela agradecia aos deuses pelos
Aillards terem usado bombas incendiárias comuns e não fogo aderente. Além disso, a carga
de cristais do pó derrete-osso tinha sido devolvido à Torre depois que Varzil convenceu os
pilotos a abortar sua missão. Alguns dos recipientes de armazenamento haviam sido
destruídos no ataque. Cada partícula teve que ser encontrada e destruída, uma tarefa
meticulosa e exaustiva. Dyannis pensou irônica que o experimento de Cedestri provou ser
um perigo maior para si do que para seus inimigos.
Depois veio o trabalho de reconstrução das telas de matriz, particularmente das Hellers.
Poucos viajantes tinham visitado Cedestri desde o bombardeio incendiário, desde que a
Torre ficou sem notícias. A estrada principal parecia estar bloqueada, mas não foi problema
para Varzil que, trabalhando com uma tela parcialmente construída e sua própria pedra da
estrela, era capaz de chegar a Torre Hali e descobrir o que estava acontecendo. O único
carro aéreo que tinha continuado, recusando-se a ser atender ao pedido de Varzil, tinha
sido atacado por forças de Valeron e seu conteúdo mortal fora espalhado. A estrada da
paisagem circundante foi contaminada e ninguém sabia quanto tempo o veneno iria
persistir. Se ele se carregava o pó derrete-osso, como parecia, poderia durar uma geração
ou mais. Varzil enviou uma mensagem para que qualquer um que tivesse viajado por ali
deveria procurar ajuda em uma Torre.
- Eu não tenho muita esperança de que a mensagem seja capaz de alcançar a todos, -
Disse Dyannis - com a guerra entre Aillard e Isoldir pela fabricação de cerveja, mais uma
vez, as pessoas fogem buscando segurança onde quer que imaginem que ela se encontra.
Uma pena que em tal conflito não há nenhuma segurança.
Quando disse isso, eles estavam de pé juntos na janela da maior casa na aldeia, a
habitação do chefe, entregue à sua utilização, até que a Torre fosse reconstruída. Da sua
varanda, uma grade de madeira simples, eles podiam ver as paredes caídas de uma Torre
outrora graciosa. O sol nascente lançava com uma luz oxidada sobre a cena como se
também sangrasse.
Dyannis pensou nas vidas que estavam fora de seu alcance, com ferimentos no corpo ou
no espírito.
Quantas dessas mortes são culpa minha? Quantos ainda estariam vivos se eu tivesse
tomado uma decisão diferente?
- Chiya. - Varzil a tocou suavemente com as pontas dos dedos em na parte de trás de seu
pulso. - Você não deve levar esse fardo sobre si mesma. No passado você agiu
precipitadamente, mas seus instintos sempre foram bons.
- Talvez, mas minha disciplina não era boa. Se apenas...
- Há quanto tempo você está carregando esse único lapso como um saco cheio de pedras
sobre suas costas? Você foi julgada pelo seu próprio Guardião e ele está satisfeito.
- Você diminui meu crime chamando-o de um “único lapso”. No entanto, eu quase repeti
isso na estrada.
Ela a janela e retirou-se para seu quarto. No início do dia a única luz que vinha
naturalmente era através das persianas abertas. Cera de vela e laran estavam muito
escassos para serem desperdiçados para iluminar quartos onde as pessoas não estavam
trabalhando.
Varzil está tentando me animar, pensou, para aliviar a culpa que retumba como um
trovão distante em minha mente. Ele era tão bom, tão verdadeiro e amoroso, que ele não
podia ver as deficiências em outras pessoas. Nada do que ele disse apagou de sua memória
aquelas mentes morrendo, os corações e as almas que sua própria impetuosidade tinham
destruído.
Eu nunca ficarei livre do que eu fiz.
- Agora você está sendo intencionalmente auto-indulgente. - Ele disse em uma voz mais
severa.
Dyannis virou-se afetada. Algo na voz de Varzil, ou talvez um truque de iluminação ou um
lampejo de poder laran, fazia ele parecer mais alto. Ele já não era apenas seu irmão mais
velho, mas o mais poderoso Guardião em Darkover.
- Se você realmente deseja compensar, - continuou ele, - considere seus atos agora. As
ações do passado ficam para atrás e nada que você possa fazer vai mudar isso. O futuro não
pode ser conhecido. Se você realmente sente que deve algo àqueles que você feriu, você
não tem direito de fechar-se em ociosa auto-recriminação. Seus talentos não pertencem a
você sozinha, mas às pessoas que você pode ajudar. Você diz que aceita a responsabilidade,
mas quando se trata de honrar esta obrigação, você se comporta como uma criança
mimada!
O calor subiu para suas bochechas. A última vez que Dyannis se sentiu assim foi quando
eles se enfrentaram sobre seu primeiro caso de amor. Na época ela tinha pensado que
Varzil havia sido teimoso, dominador e estava interferindo demais. Ele não tinha o direito
de mandar nela contra seus próprios desejos. Ela faria o que quisesse, o que seu coração
tinha ordenado. Agora, ele não era apenas seu irmão, mas o Guardião mais poderoso na
Torre Cedestri, e, por enquanto, Guardião dela. Ele tinha todo o direito de a censurar.
Dyannis queria atacar ele, gritar que ele deveria manter sua mente em seus próprios
assuntos, mas ao fazê-lo ela só iria revelar o quanto sua acusação tinha fundamento. Uma
criança mimada, de fato! Parte de sua expiação deveria, portanto, ser a aceitação de
qualquer censura que ele achasse por bem infringi-la. Ela juntou os pedaços de sua
dignidade e levantou a cabeça.
- Eu não vou fazer isso nunca mais.
- Essa é uma resposta justa. - Disse ele.
Trabalhando em conjunto com os habitantes da cidade, Dyannis e Varzil, junto com os
leronis de Cedestri que tinham condições de trabalhar, limparam a área dos escombros.
Grandes seções das paredes, tanto no exterior como no interior, estavam de pé, apesar de
algumas das pedras terem rachado pelo calor intenso e devessem ser substituídas.
Francisco ainda não era capaz de fazer este trabalho, pois estava fraco ainda.
Uma tarde, de pé na sombra da Torre, Dyannis olhou para cima, seus olhos seguindo o
contorno quebrado, as linhas negras ainda manchando a anteriormente bela pedra. Sua
primeira impressão da estrutura física tinha sido que ela estava destruída, condenada e ela
nunca tinha perdido esse sentimento.
Os outros membros do seu círculo improvisado eram dois homens e uma mulher
pertencentes à Cedestri. Duas outras mulheres, incluindo a jovem monitora que Dyannis
conhecera quando chegou, ficou na cidade para cuidar dos feridos mais graves.
- Bom dia. - Disse Earnan, balançando a cabeça. Ele era o mais jovem dos três
trabalhadores de Cedestri, de rosto doce e ansioso para experimentar coisas novas.
Ela sorriu para ele e também para Niall e Bianca, embora ela não gostasse de nenhum
deles pessoalmente. Niall detestava autoridade e precisava ter seus esforços
constantemente lisonjeados, e Bianca, embora sóbria mesmo com o ataque Aillard, não era
melhor, sendo mais próxima dos ressentimentos que da paciência. Eles acenaram para
Dyannis, reservados, mas impecavelmente educados.
Hoje eles estavam indo levantar as pedras maiores para completar uma câmara
adequada para um laboratório de matriz. Isso seria um longo e desgastante trabalho, com
pouca energia de sobra para pequenas irritações.
A Torre Cedestri tinha tido por muito tempo uma tradição de unir as mãos quando
estavam formando um círculo. Dyannis achou o contato físico um pouco perturbador no
início, mas acostumou-se a ele. Essas pessoas tinham sido traumatizadas o suficiente, não
precisavam da rejeição a uma coisa simples e que ajudaria com o conforto da familiaridade.
Varzil, como Guardião do círculo, não parecia importar-se de qualquer forma.
Dyannis fechou os olhos, concentrando-se interiormente na imagem de um céu aberto.
Ela sabia por uma longa experiência que esta era a melhor maneira de colocar de lado
irritações insignificantes que poderiam formar uma barreira no círculo. Em vez disso, ela
via-se como um falcão de asas abertas sentindo as correntes de ar mais fracas.
O vento a pegou, sustentou ela, levou-a para cima...
Seu coração saltou em sua garganta com o puro prazer de voar. De uma pulsação a
outra, ela sentiu-se cair no relacionamento com o resto do círculo sob o controle mental
impecável de Varzil.
A sensação de aperto e ordem impregnou ela. Se ela se tornasse uma Guardião teria que
fazer esse trabalho.
Ela sentiu Varzil recolher o poder laran combinado no círculo, moldando-o sutilmente,
habilmente, sentiu a granularidade grosseira da primeira pedra, o zumbido persistente e
forma da sua confecção, o sabor intrínseco e o peso.
Ar ... pedra ... respirar ... para dentro e para fora ... e para cima ... Era tão natural como o
ritmo do seu próprio corpo. Ela derramou a sua força na ligação psíquica.
Lentamente, a pedra rosa. Sua mente sentiu isso como uma série de imagens
sobrepostas, de minúsculos grãos moldando através do vazio, de esferas de poder cintilante
formando e reformando dentro do maior campo de laran. Ela segurou a pedra e guiou-a
para a sua posição correta. Levou nenhum esforço de todos. Nenhum peso e tamanho
importava mais, apenas o poder fluindo através de sua mente. Nesse momento, sentiu-se
tão forte quanto um pico das Hellers, seu toque tão firme, e ainda assim tão fluido como
água limpa.
Ar ... pedra ... fogo ... água .. . Cada elemento complementado e equilibrado como partes
de um todo perfeito. Ar e pedra podiam mudar de lugar, como bailarinos em movimento
através de uma figura complexa, mas era tudo a mesma coisa. Nada foi acrescentado ou
retirado, nada foi sobrecarregado ou tensionado. Tudo estava como deveria ser.
A próxima pedra rosa em seu comando surgiu. Ela perdeu toda a noção da passagem do
tempo, flutuando entre o céu e a terra, dando forma a ligação entre eles. Uma hora poderia
ter passado ou uma eternidade. Parecia não haver fim para a energia que fluía.
Houve um momento, no entanto, quando ela sentiu o deslizamento da última pedra no
lugar certo. O edifício inteiro zumbia como uma rryl voltando à vida nas mãos de um músico
talentoso. A torre tinha sido originalmente construída com laran, e sua marca de energia
permaneceu. O físico e o psíquico ressoaram em harmonia.
É o suficiente. Voltem agora.
As palavras ecoaram em sua mente em uma voz que não era a dela. Ela estremeceu
repentinamente ciente de sua individualidade, a casa frágil carne, a humana. Em torno dela,
a unidade do círculo se dissolveu.
Dyannis prendeu a respiração e piscou algumas vezes os olhos abertos. Seus dedos duros
segurando sua mão. Varzil de um lado e Earnan do outro. Quando ela levantou o olhar viu o
telhado da Torre concluído formando um arco acima de sua cabeça.
Earnan soltou um grito de alegria. Varzil virou-se para Dyannis com um sorriso
iluminando seus olhos cinzentos. O mundo pareceu borrar, tudo ficou enevoado. Ela
inclinou-se temendo que ela pudesse se desonrar com um tolo desmaio. Alguém correu
com um prato de comida, um preparo de nozes, pêssegos secos e mel. Ela colocou um
pedaço na boca e deixou a doçura dissolver em sua língua. Sua visão se estabilizou e as
náuseas diminuíram.
- Todos precisamos de comida e descanso. - Disse Varzil. - Hoje realizamos um grande
feito. Em breve vamos começar trazer os habitantes de Cedestri de volta para sua casa.
Dyannis começou a voltar do sono com um som como se seixos em cascata estivessem
sobre o telhado. Ela compartilhava o quarto do segundo andar na casa da aldeia do chefe
com dois dos leronis de Cedestri, os três dormindo juntos na própria cama do chefe, pois
havia pouco espaço para ainda trazer uma esteira. A casa era coberta com telhas de argila
aquecida em vez de palha. Uma luz pálida entrava através da única janela do outro lado da
sala. Ela estremeceu, puxando as cobertas sobre os ombros enquanto se sentava.
Bianca abriu a porta com um cotovelo e se esgueirou para dentro, carregando uma
bandeja. Ela usava um xale grosso cruzado sobre o peito e preso debaixo do seu cinto. Ela
colocou a bandeja sobre a cama, remexeu numa pilha de roupas na única cadeira de
encosto reto, e entregou outro xale para Dyannis.
- Mandaram buscar lá fora, pode acreditar? A tempestade cai a noite toda com esse
barulho. – Pelo seu tom de voz parecia que algum habitante vingativo de uma Torre tinha
enviado a tempestade precisamente para irritá-la.
- É o final da temporada de granizo. - Disse Dyannis. Ela olhou para a bandeja, um pouco
intrigada porque parecia estar destinada a ela. Bianca sempre agiu como se seus talentos
laran a colocassem acima do trabalho de um servo.
- Pode ser. - A outra mulher respondeu. – Vamos. Se você não comer seu pequeno
almoço ele vai ficar frio, isso é certo.
Dyannis pegou um pedaço de pão de nozes com mel e desejou que o trabalho com laran
não exigisse tantos alimentos doces. Ainda ontem ela tinha comido mais do que ela
comeria em um mês. Uma mordida levava a outra como se seu corpo ainda desejasse
aquela energia concentrada. Ela acabou com três pedaços antes de se voltar para os potes
de coalhada de queijo e frutas em conserva.
Dyannis nunca tinha sido do tipo que voltava a deitar depois de levantar, embora, por
um segundo fugaz, tenha tido um doce fascínio por essa indolência. Assim que seu apetite
foi satisfeito, ela colocou uma vestimenta de lã grossa e começou seus exercícios de
alongamento. Seu corpo parecia tão rígido como se tivesse dormido por dez dias.
Eventualmente, os movimentos rítmicos afrouxaram seus músculos. Ela terminou de se
vestir e saiu para ver o que tinha que fazer nesse dia.
Ela encontrou Varzil conversando com Francisco, sentados juntos na câmara única da
Torre que praticamente não tinha sido tocada pelo fogo do bombardeio. Ficava no piso
térreo, uma sala confortável pequena antes utilizada para o ensino, mas agora era o
coração da comunidade da Torre. Mapas e diagramas cobriam a mesa central.
Varzil sorriu quando ela entrou. - Você se antecipou. Eu ia convoca você.
- Bom dia para você, irmão. - Respondeu ela, sentindo-se um pouco travessa. - Dom
Francisco, estou contente de vê-lo bem.
- Já estamos a algumas horas na tarde e você tem dormido por dois dias. - Disse Varzil. -
Nós já inspecionamos os reparos e criamos planos para a restauração interior da Torre.
- Dois dias! Não admira que eu estivesse com tanta fome. - Dyannis sentou-se. - Vou
trabalhar alegremente para recuperar o atraso com você. Qual o trabalho para hoje?
Francisco fez uma pausa antes de responder. A luz solar que fluía através das janelas
acentuavam as linhas profundas em seu rosto e ressaltando a sombra projetada da
mandíbula e maxilar. A quase destruição de sua Torre e seus próprios ferimentos o tinha
abalado a ponto de parecer mais velho do que seus anos de vida diziam. Quando falou, no
entanto, sua voz era firme.
- Diz-se que o que os deuses concedem, eles também podem tirar, - disse ele - e eu
acredito que o inverso também deve ser verdade. Antes dessa catástrofe nós de Cedestri e
nossos mestres em Isoldir vivíamos em constante estado de desespero. Como poderíamos
nos defender contra o poderio de Valeron que parecia ameaçar a nossa própria existência?
Não pela força das armas comuns com certeza. - Como você sabe, - ele continuou com uma
ligeira inclinação de cabeça para Varzil - nós nunca aceitamos a imposição de quaisquer
restrições externas sobre nossas ações. Nos últimos anos, fomos abordados por
trabalhadores descontentes de outras Torres que poderiam não respeitar o Pacto do Rei
Carolin. Eles nos viram como uma alternativa digna e legítima e congratulamo-nos pelas
suas ações e trabalho. Às vezes, havia outras razões pelas quais um laranzu sentia-se
indesejado em sua antiga comunidade. - Seja como for, - Francisco continuou - quando
descobrimos uma fonte de energia desconhecida, inexplorada e de imensa magnitude, nos
alegramos. Nós mesmos não possuíamos laran insuficiente para produzir os tipos de armas
necessárias para Isoldir equilibrar a sua força menor contra a potente Valeron. Ao
aproveitar este fluxo de energia o nosso único círculo tornou-se equivalente a três ou
quatro.
Dyannis sentiu a emoção da memória do Guardião ante essa descoberta, a onda de
triunfo. Isso a assustava tanto quanto a ideia de um frouxo novato em um laboratório de
matrizes de ordem XII. Dado o desespero de Isoldir, todas as considerações de segurança,
todo o medo de consequências seriam deixadas de lado pela esperança. Ela sabia onde isso
os tinha levado. Ela tinha visto o moinho que Cedestri tinha construído no Mundo Superior,
tinha estado sob os carros aéreos Isoldir em seu caminho e a chuva veneno sobre terras
Aillards. Ela tinha visto Cedestri queimar.
Varzil sentou-se calmamente ao lado de Francisco deixando o outro homem manter o
foco na história.
- Quando Aillard retaliou, eu vi o quão vão o nosso orgulho tinha sido. - A voz de
Francisco caiu um tom. - Eu os amaldiçoou e amaldiçoei você também, Varzil, por ter
interferido com o nosso ataque. Eu pensei... - ele deu uma gargalhada - que, se tivéssemos
conseguido, haveria um fim a isso. Não teria havido retaliação, nenhum fogo chovendo dos
carros aéreos Aillards. Valeron teria se tornado um deserto até o tempo das crianças de
nossas crianças. Teríamos conseguido dar segurança para Isoldir porque quem mais se
atreveria a nos ameaçar sabendo que estávamos armados assim?
Como eu estava errado! Eu devo ter tido uma febre cerebral para me fazer pensar dessa
forma. Agora vejo que poderia ter sido apenas um dos muitos possíveis resultados de
nossas ações. Mesmo que por algum milagre nós tivéssemos triunfado, teria nos trazido
apenas uma paz temporária. Mais cedo ou mais tarde, algum outro reino, dirigido por esse
mesmo medo desesperado, teria lançado um ataque contra nós ou teriamos encontrado
um novo inimigo. Da próxima vez nosso inimigo pode não ser tão misericordioso como
Valeron. Sim, eu chamo isso misericordioso. - Ele apontou para a Torre parcialmente
restaurada ao seu redor. - Misericordioso porque eles usaram fogo comum em vez do fogo
aderente. Nos deixaram algo para reconstruir, algumas poucas vidas preciosas poupadas
e.... - sua voz falhou - ... e tivemos ajuda além de qualquer direito ou expectativa.
- Fizemos apenas o que qualquer pessoa de boa vontade teria feito. - Varzil disse
suavemente.
Agora está sendo excessivamente modesto? Dyannis disparou contra ele.
- Se você tivesse vindo até nós mais cedo, com belos discursos e nos pedindo para assinar
o seu Pacto, eu teria te mandado embora e depois riria de você pelas costas. - Disse
Francisco. - Eu teria pensado que você era tolo e covarde.
Varzil deu um sorriso irônico. – Isso já aconteceu antes e vai acontecer novamente. Não é
motivo para parar de tentar.
- Ah, mas neste caso, seus atos precederam suas palavras e deu-lhes força. Você colocou
em prática sua doutrina de comunhão e de compaixão. Sei perfeitamente que o Rei Carolin
Hastur não tem nada a ganhar com a minha gratidão. Eu, por outro lado, vi o preço de
continuar no caminho que estávamos. Meus mestres de Isoldir concordam, porém pode-se
dizer que eles têm pouca escolha sem uma Torre em funcionamento para defendê-los. Eles
não teriam nem mesmo o pouco que restou de nossos serviços se fosse não por sua ajuda. -
Seu olhar voltou-se para Dyannis e Varzil.
Ela começou a dizer que não tinha havido nenhuma hipótese de recusar ajuda. O que
importa quando seus companheiros leronyn estavam sofrendo? A perda de uma Torre
afetava a todos eles. As palavras que surgiram à sua mente pareciam ecos pálidos ante seu
irmão. Ela segurou a língua.
- Portanto, com nossa insistência, Isoldir concordou em respeitar o Pacto. Um
mensageiro trouxe a mensagem formal esta manhã e Varzil deverá levar o juramento
assinado de volta a Thendara. - A alegria de Francisco irradiava como uma auréola de luz
em torno de suas feições cansadas.
Varzil estava em franca alegria e Dyannis sentiu seus corações pular de felicidade. Então
você vê, ela quase podia ouvir Varzil dizer, o que parecia ser um desastre no final trouxe
boas novas não só para esta pobre terra, mas também para todos em Darkover.
- Isso tudo é muito bom, - disse Dyannis com seus pensamentos girando em uma direção
mais prática - mas se você for voltar a Thendara, Varzil, como vamos continuar o nosso
trabalho aqui?
- A reconstrução física da Torre está em grande parte completa. - Francisco respondeu. -
Isoldir enviará pedreiros e carpinteiros para ajudar com o interior. Graças a seus esforços,
estou forte o suficiente agora para retomar muitas funções limitadas.
Dyannis conteve-se para não dizer que a partida de Varzil privaria o círculo de Cedestri
não apenas de seu Guardião temporário, mas também de seu extraordinário laran.
- Nós realmente diminuiremos em força com tantas tarefas à nossa frente. - Francisco
disse gentilmente.
Dyannis corou, percebendo que ele devia ter captado seu pensamento. - Por favor, me
perdoe, vai tenerezu. Eu não quis insultá-lo.
- Eu não tomei como um insulto, vai leronis. - Ele respondeu com um eco lúdico do título
honorífico. - Na verdade, eu e todos em Cedestri estaremos profundamente em dívida com
você se você permanecer conosco por um tempo, pois você é a mais forte dentre os leronyn
restantes e a única capaz de atuar como sub-Guardiã.
- O quê? - Ela piscou atordoada. - Perdoe-me, creio ter sofrido apenas um lapso
momentâneo de consciência. Devo estar mais cansada do que imaginei. Pensei que você
tinha se referido a mim como uma sub-Guardiã, mas isso é impossível. Eu não tenho essa
formação.
Minha querida irmã, você tem trabalhado como minha sub-Guardiã a 10 dias. A voz
mental de Varzil tinha um toque de diversão.
Dyannis lembrou do jeito que ela parecia levantar as pedras que formavam as mesmas
paredes que agora os rodeavam. Na época, ela tinha se perdido na felicidade flutuante do
círculo. Agora ela percebeu que em vez de ser um fio em um todo entrelaçado, ela tinha
sido a única a canalizar e orientar as energias mentais combinadas do círculo. De alguma
forma, com um toque tão suave quanto imperceptível, Varzil direcionou-a para a posição
centripolar.
Se você não parar de manter boca aberta enquanto me observa como se eu fosse um
coelho de chifre de três cabeças, Varzil disse, você vai acabar com nossa imagem.
Ela fechou a boca prometendo a si mesma que, na primeira oportunidade, ela iria fazer
Varzil lamentar ele ter feito uma coisa dessas sem a sua permissão. Para Francisco, ela
disse, com toda a dignidade que pôde reunir:
- Se meu Guardião em Hali permitir, eu permanecerei aqui enquanto houver necessidade
de meus serviços.
Capítulo 25
Dyannis seguiu Varzil até a pequena câmara. Varzil parou para falar com Earnan que
estava supervisionando uma equipe de trabalhadores da cidade. Eles faziam a triagem de
uma pilha de escombros para recuperar material comum e pedras-da-estrela. Ela esperou
pacientemente fingindo interesse. A notícia da aprovação do Pacto por Isoldir já tinha se
espalhado por toda a comunidade da Torre e, provavelmente, pela cidade também. Os
olhos de Earnan brilhavam e ele olhava como se quisesse beijar os pés de Varzil.
- Alguns dos outros ainda estão inseguros, mas todos nós concordamos que não
podemos continuar como antes. Você nos trouxe um grande benefício, Dom Varzil, e eu
fervorosamente acredito que o Pacto vai nos trazer mais benefícios ainda.
Varzil desculpou-se e saiu tão rapidamente quanto podia sem ser rude. Ele correu até a
estrada que levava à cidade antes que alguém pudesse se aproximar dele e sobre o assunto.
Dyannis captou seu desconforto, sua relutância em aceitar o crédito por algo que ia tão
além da criação de qualquer homem na história de Darkover. Para Dyannis de repente sua
própria indignação pareceu pequena e fugaz.
Mas ela estava irritada. Ela tinha sido manobrada em um papel para o qual ela se sentia
tão indigna. Assim que eles estavam fora do alcance da Torre, ela disse a Varzil. - Como você
se atreveu? Como você ousou fazer isso comigo!
- E como você se atreve a agir como uma criança maldosa, segurando para si o seu dom
quando ele é tão necessário? - Ele atirou de volta. - Você não pode dizer que você é incapaz
ou não é confiável, pois você já demonstrou o contrário.
- Sem o meu conhecimento!
- Você sabe agora. - Disse ele.
- Você me enganou!
Varzil sorriu. - De maneira alguma eu vou violar meu juramento de Guardião. Eu
simplesmente exerci a função de um Guardião, que é moldar o círculo da forma que
considero melhor. Para se opor à verdade que lhe foi revelada você precisa examinar seus
próprios motivos.
- Você teria que primeiro me dar o treinamento de uma Guardiã para depois dizer se eu
vou ou não seguir nessa função.... Se estou apta ou não!
- Não exatamente. Eu teria que fazer uma escolha livre de prejulgamentos fundamentada
na prática em vez de em uma culpa equivocada.
Dyannis ficou em silêncio com sua réplica morrendo em sua língua. Ela se sentia como
uma criança petulante, lançando uma acusação irritada após a outra.
Ela inclinou a cabeça. - Perdoe-me. Tenho sido perversa e mal-humorada. Eu imploro que
não me pressione ainda mais, pelo menos até que eu saiba o que o meu próprio coração
diz. Não vamos estragar todo o bom trabalho que fizemos juntos com brigas.
Para sua surpresa, ele sorriu. - Quando chegamos a Cedestri você nunca teria aceitado a
minha censura com tanta graça. Você aprendeu muito sobre auto-controle através de seu
trabalho aqui.
- Eu não tive muita escolha. - Ela respondeu. Então, como se uma parede dentro dela
cedesse de repente, ela continuou. - Eu nunca tive que trabalhar tão duro em minha vida,
nem mesmo quando eu era uma novata em Hali. Tudo veio muito facilmente para mim.
Mesmo quando eu deixei meu temperamento maldito me dominar, eu escapei apenas com
punições mais leves porque eu também tinha realizado algo brilhante.
Lembrou-se de como ela tinha descoberto a fonte de alimentação na parte interior do
lago e ela corou ao lembrar como tinha sido imprudente e indisciplinada. – Realizações
brilhantes têm seus limites. - Acrescentou ironicamente.
- Sim, eu também acho. - Ele deu uma risadinha. - Por outro lado, quando você realizou
tais feitos precisou aceitar as consequências de suas ações, bem como a obediência ao seu
Guardião. Isso a levou a uma maior maturidade da sua parte.
- Não zombe de mim. - Disse ela. - Eu sei quem eu sou.
- Você sabe? - Seu olhar se abateu sobre ela. Ele repetiu em um tom ainda mais
penetrante e suave. Você sabe?
Em um flash ela percebeu a direção de seus pensamentos.
Talvez quando nós viemos aqui para Cedestri você fosse muito impulsiva, precipitada e
imprudente demais para ser considerada para a formação de Guardiã. Você sempre deu
espetáculos para todos ao seu redor com seus acessos de rebeldia e, como você disse, o
sucesso veio muito fácil para você. Para reconstruir Cedestri foi necessário que você cavasse
mais profundamente em si mesma e você se provou ser capaz de humildade, bem como de
iniciativa.
Ela baixou os olhos e disse mentalmente: Eu sei dos meus limites.
Exatamente. A formação de um Guardião requer apenas essa honestidade. Você já sabia
como agir, como confiar em seus próprios recursos. Aqui você também aprendeu a controlar
esses impulsos para um bem maior. Digo-vos que não há melhor prova de sua aptidão como
uma candidata Guardiã. Você não vai reconsiderar?
Por um longo momento ela olhou fixamente para ele, deixando o entendimento total de
seus pensamentos afundarem em sua mente. Toda a sua vida tinha havido algum pedaço
importante faltando, como um guisado sem sal. Sem perceber ela havia se jogado de
cabeça em cada nova possibilidade, como se estivesse procurando por algo. Sempre ela
tinha saído insatisfeita sem ser capaz de dizer o porquê. O único verdadeiro desafio tinha
sido escapar às consequências inevitáveis da sua imprudência.
Era esse o problema? Ela nunca tinha encontrado qualquer tarefa muito difícil para
realizar? Ela estava destinada a ser uma Guardiã, com toda a disciplina e exigências do
cargo?
- Eu vou considerar. - Disse ela, inclinando a cabeça.
Na véspera da partida de Varzil estava excepcionalmente claro, mesmo com a última luz
do sol vermelho já há muito tendo se posto. Uma brisa fresca da noite moveu os grãos que
amadurecia no campo, carregado sua doçura no ar. Dyannis subiu a pequena elevação para
além dos campos de cevada procurando por Varzil.
Encontrou-o sentado de pernas cruzadas em cima de um manto dobrado. Suas mãos
estavam vagamente sobre suas coxas embalando um anel. A pedra brilhava como se
iluminada por dentro. Lembrava-lhe uma pedra-da-estrela, mas de tamanho e forma
incomum, sem a tonalidade azul característica. Ele segurava o anel como se fosse uma coisa
viva, preciosa e frágil que não devia ser tocada com muita força, uma forma estranha para
tratar uma coisa de metal e cristal.
Ele virou a cabeça ligeiramente quando ela se abaixou ao lado dele, ao mesmo tempo os
traços familiares de seu irmão mais velho pareceram de um estranho. Por seu silêncio ela
sabia que ele tinha estado meditando.
- Sinto muito por incomodá-lo. Há poucos momentos de paz para qualquer um de nós
nos dias de hoje. - Disse ela.
Ele não disse nada, só cobriu o anel com a outra mão. Sensibilizada depois das horas
trabalho laran, Dyannis entrou em comunhão psíquica com ele. Ela percebeu que ele estava
solitário, que dava boas-vindas à sua companhia, uma presença familiar para aliviar algum
sofrimento secreto.
Um arrepio percorreu seu espírito ao invés do corpo.
- Alguma vez você conheceu Felicia Leynier? - Ele perguntou, sua voz áspera com a
emoção escondida. - Ela trabalhou por um tempo em Arilinn antes de ir para a Torre
Hestral. - Uma pausa seguiu como o silêncio entre um batimento cardíaco e o próximo. - Ela
treinou lá como sub-Guardiã.
Dyannis ficou imóvel. Havia mais por baixo das palavras de seu irmão do que a desculpa
de falar sobre treinar as mulheres como Guardiãs. Ouvindo a ressonância de sua voz, ela viu
amor... E perda.
- Eu soube sobre ela. - Disse ela gentilmente.
- Ela estava na Torre Hestral quando Rakhal Hastur atacou. Quando ele ordenou que Hali
a destruísse.
E ela morreu lá. Pensou Dyannis, cuidadosamente ocultando isso. - Você não podia salvá-
la, como você salvou Harald quando ele foi capturado pelos homens-gatos há muito tempo,
e como você salvou tantos outros. - Ela colocou as pontas dos dedos na parte de trás do seu
pulso. O toque familiar entre telepatas.
Bredu, ela falou telepaticamente, eu não participei nessa batalha, embora eu estivesse
em Hali então.
- Eu não culparia você se tivesse participado. - Disse ele em voz alta. - Eu culpo nenhum
homem, ou mulher, por seguir as ordens legais de seu rei. Felicia mesmo nunca iria querer
que os membros de uma Torre desobedecessem a seu rei ou seu Guardião. Ela teria ficado
feliz em ver a Torre Hali hoje, unida em honra ao Pacto. Ela acreditava nele. Ela...
Varzil interrompeu-se, apertando o anel. Dyannis colocou a mão sobre seu punho,
pensando em aliviar aquele nó de angústia. Sua mão ficou aberta debaixo da dela e ela
sentiu a superfície facetada e lisa do cristal. Para sua surpresa, ele estava quente, mais
quente do que deveria ter estar. Está vivo! Sentiu uma fragrância doce como o sol sobre
flores silvestres...
Ela puxou a mão de volta. - O que... O que é isso?
- Felicia colocou sua consciência e sua personalidade nesta pedra. Pelo menos, eu sinto
sua presença nele de vez em quando.
- Como isso é possivel? - Dyannis perguntou. - A pedra-da-estrela amplifica o laran de seu
proprietário, mas não tem poder próprio.
- Durante a Era do Caos, houve alguma pesquisa no uso de cristais psicoativos para
preservar uma personalidade separada do corpo físico. Talvez esta pedra seja uma relíquia
dos primeiros experimentos, esperando para ser impressa por uma mente morrendo.
Dyannis estremeceu. Imagens surgiram espontaneamente à sua mente, pois ela tinha
visto o desespero e loucura do poder nas mãos de um homem insano. Rakhal o Usurpador
e, antes de seu tempo, o laranzu fora da lei, Rumail Deslucido. E se algum Guardião,
enlouquecido pelo medo de sua morte iminente tiver encontrado uma maneira de colocar
sua consciência, e seu poder psíquico, em uma pedra-da-estrela? E se alguém encontrasse
uma maneira de controlar os outros, dirigir um círculo, ofuscar as mentes vulneráveis?
Acalme seus medos. Varzil enviou uma onda de confiança. Eu não conheço nenhuma
abominação deste tipo em toda a história. - Quanto a Felicia, - continuou ele em voz alta -
ela ficaria feliz em sumir da existência ao invés de usar seu dom para prejudicar quem quer
que fosse. O que eu sinto neste anel é conforto e memória. - Ele deu de ombros, endireitou
sua postura e colocar o anel de volta.
- Você a amava muito. - Disse Dyannis.
- Eu nunca pensei que encontraria outro ser humano que me fizesse sentir que era a
outra metade de minha alma, Dyannis. Eu tenho evitado falar sobre isso com você por
causa de seus sentimentos. Mas agora estou prestes a deixar Cedestri e não sabemos
quando vamos nos ver novamente. Eu não queria partir sem contar a você.
- Somos irmãos e companheiros leronyn. - Ela disse com uma certeza que não sentia.
Alguma coisa estava vindo, ela não sabia o que e ela tremia por dentro. - Certamente não
devemos ter segredos um com o outro.
- Muito bem. A morte de Felicia não foi o resultado do ataque de Hali. Ela já tinha sido
mortalmente ferida e estava apenas preservada em um... Um campo de êxtase moldado
com laran e eu temo que... Não. Eu tenho certeza que a pessoa responsável por esse
ataque foi Eduin MacEarn.
Dyannis se encolheu. Não, não podia ser. Não o seu Eduin. Não o menino doce que
ganhou seu coração no Festival do Solstício de Inverno quando ela era uma recém-chegada
em Hali. Ela tinha dificuldades em aceitar isso, mesmo após o banimento dele depois de ter
sido flagrado em desobediência à seu Guardião durante as batalhas em Hestral.
E ainda assim, anos antes da queda de Hestral, ele tinha ido para a Torre Hali por um
curto período de tempo e ele tinha estado tão estranho... Ficara reticente, isolado e
sigiloso. Ele havia mudado.
Um conspirador, talvez. Um pária, certamente. Mas um assassino? Ela não podia
acreditar.
Varzil levantou uma mão, como se para evitar suas objeções. - Eu nunca teria trazido essa
informação para você se ele não estivesse presente naquele dia no Lago Hali. - Sua mente
roçou a dela. Como você mesma sabe muito bem. - Dyannis. - Ele virou-se para encará-la de
frente, tomando-lhe as mãos, um gesto que era praticamente um confronto entre
telepatas, chocante em sua franqueza. - Há uma ligação entre o motim no Lago Hali Lake e
a morte de Felicia. Eu não sei o que é e nem sei como proceder para descobrir. Eu só sei que
essa ligação existe.
Dyannis encontrou sua voz com dificuldade. - Você diz isso só porque você não gosta do
Eduin desde o início!
- Eu tentei não odiá-lo quando éramos meninos em Arilinn. - Varzil disse em voz baixa. -
Eu tentei muito. Carolin sempre fez sua parte para nos unir porque Eduin era pobre e
talentoso e não tinha outros amigos. Eu sempre consegui ver a melhor parte nas pessoas,
mas não em Eduin. Eu nunca entendi o porquê. Eu suspeitava dele, com ou sem razão. Eu
nunca entendi como, mas sempre soube que ele pretendia destruir Carolin.
- Destruir Carolin? - Dyannis perguntou assustada. - Como?
Varzil arrumou seu cabelo para trás de seu rosto com uma mão. - Houve uma série de
“acidentes” durante esses anos, antes de Carolin subir ao trono. Ele se recusou a levá-los a
sério, dizendo que ele não poderia viver em uma gaiola de seda. Um incidente, porém, foi
uma tentativa de assassinato clara. Nós estávamos no caminho para Lago Azul em férias. -
Ele fez uma pausa enquanto revia essas imagens em sua mente.
Dyannis, em união clara com seu irmão, observou dois jovens andando despreocupados
em uma floresta iluminada. Uma lasca de metal mortal irrompeu da vegetação rasteira
através do ar...
...Varzil segurando-o dentro das dobras de alguma peça de roupa sua...
...Carolin lutando com um homem barbudo nas margens lamacentas de um rio...
...Uma voz furiosa atingindo sua mente em pura raiva e urgência...
– Morte aos Hasturs! Nós seremos vingados!
- O que isso significa? - Ela se perguntou em voz alta. - Quem será vingado? Certamente
isso prova que há algum outro agente no trabalho, algum ressentimento feroz responsável
por essa conspiração, se de fato existe. Mesmo um rei amado faz inimigos. Nada disso
prova nada contra Eduin.
- A história toda não faz sentido, a menos que você saiba quem Felicia é... Era. - Disse
Varzil. - Embora ela tenha feito o seu melhor para manter isso em segredo, ela era a filha
nedestra de Taniquel Hastur-Acosta e, portanto, parente Carolin.
- Como Eduin poderia saber isso? - Ela retrucou.
- Como, de fato?
Ela tremeu por dentro lembrando como Eduin tinha procurado os arquivos na Torre Hali,
especialmente os registros genealógicos. Como ele tinha se assustado, como se fosse
culpado de algo, quando ela o encontrou lá... Ela presumiu na época que estava exercendo
alguma tarefa para os Guardiões. Ele estava usando trabalho legítimo para mascarar uma
busca pessoal na linhagem Hastur?
Algo pairou na borda de sua memória, escuro como as asas de um kyorebni.
- Você está apenas procurando uma desculpa para culpar Eduin por coisas que não têm
nada a ver com ele. – Ela disse irritada.
- Você não está pensando claramente. - Disse Varzil com exasperante paciência. - Felicia
era uma Hastur. Eduin tentou matá-la. Eu mesmo presenciei quando Eduin tentou matar
Carolin, outro Hastur, e falhou. Motivo pelo qual ele provavelmente me odeia ainda mais. O
que o assassino do Lago Azul tem a ver com Eduin, eu não sei. Mas quando Eduin mostrou-
se com uma multidão armada em Hali, no coração do território Hastur, eu suspeitei de toda
essa ligação. Eu suspeito muito sobre o que têm causado isso tudo.
- Você está muito errado! - Dyannis chorou. - Você tem algum rancor infância contra
Eduin e inventou um monte de suposições para se convencer de que ele é culpado! O
mundo já não é difícil o bastante sem criar conspirações imaginárias e culpar os menos
afortunados?
Com esforço, ela freou sua língua. Ambos estavam esgotados, tanto mental quanto
fisicamente. Ele tinha trabalhado por dias sem nenhum descanso, dando o máximo de si
mesmo. Qualquer outro homem teria ficado em Neskaya, seguro e confortável atrás de
suas paredes reconstruídas. Se inseguranças de velhos inimigos o afligiam ele podia ser
perdoado.
- Eu sinto muito por dizer todas essas coisas. - Disse ela. - Eu sempre tive essa falha em
meu temperamento. Mas eu acredito que você fala sem qualquer prova do assunto. A vida
de Eduin foi destruída em Hestral. Eu não sei onde ele está agora ou como está, mas não
pode ser assim como você diz. Ele merece sua compaixão, não sua censura.
- Isso é verdade. - Disse Varzil depois de uma pausa. - Algumas coisas nunca saberemos e
é assim que deve ser. Por agora, o caminho está claro para mim, a missão que jurei cumprir.
Eu agradeço a sua ajuda e desejo que cada um de nós, até mesmo para Eduin, paz em
nossas almas.
Com isso, ele levantou-se e deixou-a, caminhando de volta para a Torre, preparando o
caminho para o trabalho da noite. Dyannis o observou ir sentindo pesar e admiração. Ele
tinha sofrido muito mais em sua vida do que ela e ainda assim ele usava o manto de seu
cargo com uma clareza tranquila na mente. Ela não podia deixar de sentir uma ponta de
inveja.
Um arrepio a percorreu. Sou uma pessoa melhor quando estou com ele.
Ela simplesmente teria que aprender o que ele havia ensinado a ela e concentrar-se em
melhorar, como se fosse sua própria Guardiã. O pensamento a assustava.
O inverno chegou com apenas uma interrupção breve no trabalho. O Lord Isoldir enviou
os pedreiros e carpinteiros prometidos, junto com vagões de suprimentos para ajudar a
Torre e o povo da cidade durante os longos meses escuros.
No Festival do Solstício de Inverno ficou claro que Francisco nunca iria se recuperar o
suficiente para retomar suas funções completas como Guardião. Ele apenas poderia gerir
pequenos círculos de dois ou três, o suficiente para tarefas simples. Vários dos
trabalhadores morreram de seus ferimentos remanescentes. Dyannis sabia que ela não
tinha o treinamento para assumir todo o círculo de cinco em uma base permanente e
Francisco não pediu isso a ela.
Com o degelo da primavera as viagens se tornaram possíveis mais uma vez. Com alguma
trepidação, Dyannis tinha planos de voltar para Hali. O contingente de soldados que ela e
Varzil tinham acompanhado havia partido quando ele foi embora, prevendo as ordens de
Carolin. Era impensável para Dyannis viajar desacompanhada, mesmo com Lady Helaina
como acompanhante. O Lord Isoldir se ofereceu para levá-la a Arilinn para a reunião do
Conselho Comyn e de lá ela poderia viajar para Hali, juntamente com o contingente de
Carolin Hastur. A reunião, ela notou, não seria realizada até o outono. Suspeitava que a
generosidade de Isoldir ocultava seu desejo de manter seus serviços pelo maior tempo
possível.
Será que ela queria ficar tanto tempo? Pelo estado de Francisco estava aumentando a
pressão sobre ela para trabalhar como uma Guardiã. Com suas fortes habilidades
telepáticas, ela não teve nenhum problema em unir outros leronis e sintonizar suas unidas
para as tarefas. Aos poucos, tornou-se o círculo de um ou dois tornou-se de dois a três. Ela
aprendeu a submergir as antipatias, encontrando maneiras de apreciar e aproveitar ao
máximo os pontos fortes de cada trabalhador.
Varzil estava certo. Ela tinha tanto a força quanto a aptidão para fazer o trabalho de uma
Guardiã. Mas se ela devia assumir tal responsabilidade era outra questão. Seus
pensamentos novamente se inclinaram para o incidente no Lago Hali, o dragão monstruoso
que havia infligido sobre as mentes desprotegidas da turba, as mortes que resultaram
disso. Varzil tinha insistido que sua dívida já havia sido paga, que seu perdão foi alcançado.
Até mesmo seu próprio Guardião, Raimon de Hali, disse isso. Quando Varzil tinha apontado
para o céu na estrada ela conteve-se para não lançar feitiço semelhante quando se
depararam com os carros aéreos de Cedestri.
O que há comigo então? O que? Noite após noite, depois que seu trabalho no círculo
terminava, ela observava os limites da sala da Torre que tinha sido entregue, recentemente
remodelada, para seu uso. O instinto lhe dizia que uma vez que ela provara sua capacidade,
os Lords de Isoldir iriam encontrar uma desculpa para mantê-la aqui. Para ela não estava
claro em sua mente se ela poderia cumprir as responsabilidades de um Guardião, que era
perigoso permanecer sob tais condições.
Se Isoldir não iria fornecer uma escolta oportuna, então ela devia ir até Hali sozinha.
Certamente Carolin, a pedido de Raimon, poderia enviar um punhado de homens para leva-
la para casa. Apesar de estar perto do amanhecer, o frio da noite estava intenso mesmo
dentro das paredes de pedra. Ela jogou um xale sobre seus robes de trabalho e fez seu
caminho para a câmara das Hellers.
Dyannis sentou-se no banco na frente da tela e se recompôs. Ela própria tinha reparado
muito do dano ao dispositivo de matriz. A rede de pedras-da-estrela se iluminou, vibrou em
ressonância. Ela fechou os olhos e a familiar sensação de flutuação a engolfou. Todos os
trabalhadores sentiam a comunicação das Hellers de uma maneira diferente. Como seu
dom era mais forte com imagens visuais, ela via o firmamento psíquico como um vazio
imenso, enevoado, como o céu antes do amanhecer.
Hali... Ela pensou e viu como a luz pálida se moveu e se condensou em um ponto de luz.
Hali está aqui. Dyannis, é você? A voz mental de Rone soou forte e clara.
Dyannis sentiu uma corrente absurda de alegria.
Rapidamente, ele se moveu.Há algo errado? Algum novo problema em Cedestri? Você
está bem?
Sim, eu estou muito bem. Ela respondeu rapidamente. Cedestri continua com sua
recuperação e não houve novos sinais de guerra. Na verdade, as coisas estão indo tão bem
aqui que temo que eles não desejem me deixar ir.
Ela sentiu seu sorriso. Isso é porque você ainda está em seu melhor comportamento, sua
menina levada.
É sério, Rorie, eu estou me sentindo criar raízes aqu. Vou acabar roubando um cavalo no
meio da noite. Estou tentando mante uma decência mínima aqui para não fazer uma
loucura. Você seria amável e pediria a Raimon para providenciar uma escolta para mim?
Com prazer. A vida aqui é muito, muito chata sem você. Você é sábia em não viajar sem
uma escolta armada.
Porque? Há algum novo problema? Dyannis perguntou.
Não em Thendara, mas nas Asturias. Você não sabia disso?
Dyannis sentiu seu coração dar um salto. O pequeno reino das Asturias há muito
ameaçara as terras Ridenow e ela tinha ouvido falar que seu novo general era implacável, o
Lobo de Kilghard.
Carolin quer o fim das hostilidades, Rorie disse, então eu não acho que ele vai ser
facilmente levado ao combate.
Eles conversaram por um tempo longo sobre notícias menos importantes, como as idas e
vindas dos trabalhadores da Torre. Ellimara Aillard tinha ido para Neskaya para ser treinada
como sub-Guardiã.
Eu lhe desejo felicidades. Dyannis respondeu, com um arrepio estranho. Ela não sabia se
vinha de algum pesar, um ciúme ou um alívio por Varzil ter encontrado alguma outra
mulher disposta a assumir tal responsabilidade. Ellimara era mais jovem, mais flexível. Foi
melhor assim.
Dez dias mais tarde, a mensagem veio de Hali avisando que uma escolta tinha sido
providenciada e, dentro de um mês, uma companhia de soldados, vestidos com o azul e
prata dos Hasturs, chegariam para levar Dyannis para casa. Se Francisco e o Lord Isoldir
ficaram tristes com sua partida, eles não deram nenhum sinal, mas a encheram com
expressões de gratidão e pequenos presentes. Ela devolveu as moedas de cobre e joias,
dizendo que como uma leronis, a riqueza tinha pouca utilidade para ela. Quanto a ela, não
respiraria verdadeiramente livre até que ela já não pudesse ver as terras Isoldir no
horizonte atrás dela.
Capítulo 26
Voltando a Hali, Dyannis sentiu-se como uma estranha, embora ela tivesse vivido lá a
maior parte de sua vida adulta. Quando ela chegou na Torre a primeira vez tinha apenas 14
anos, apenas uma menina. Tinha se recuperado de um ataque da doença do limiar a pouco
tempo. A mesma doença que causou a morte de alguns de seus irmãos mais velhos. Ela
tinha visto o medo nos olhos de seu pai que ela também fosse morrer daquela loucura
convulsiva. Ela não sabia o que teria acontecido se Varzil não conseguisse entrar na Torre
Arilinn, e, com esse argumento, abriu a mente de seu pai para a possibilidade. Assim que foi
seguro para ela viajar, ela segiu seu caminho.
A Torre Hali tinha sido um lar como nenhum outro. O leronyn a acolheu por seus dons
ainda não desenvolvidos. Mas mais do que isso, eles a tratavam como uma mulher adulta,
capaz de gerir sua própria vida e assumir a responsabilidade por suas próprias ações. Como
ela tinha se sentido orgulhosa de sua força psíquica, ansiosa para praticar suas novas
habilidades. Onde quer que olhasse, alguma nova oportunidade maravilhosa surgia em sua
vida como uma leronis de uma das torres de maior prestígio em Darkover. O rhu fead com
seus mistérios e antigas coisas santas, o lago com sua nuvem-água, a cidade, o cintilante
tribunal... Saber que ela pertencia a esse mundo e que tinha uma parte em tudo isso a
fascinava.
Varzil tinha chegado ao tribunal Hastur para o primeiro Festival do Solstício do Inverno,
juntamente com Carolin, que estava retornando de sua temporada de treinamento em
Arilinn... E Eduin.
Dyannis voltou sua visão para dentro, em direção a memória. O corpo dela tremeu com a
lembrança de como ele andava naquele dia, cercado pela escolta do Rei Carolin, ao longo
do comprimento Lago Hali até a Torre.
Eduin.
Quando eles tinham dançado, ele a segurou em seus braços como se fosse a coisa mais
preciosa do mundo. Ela não tinha nenhuma experiência anterior com os sentimentos que
surgiram nela, cada onda mais suave e tempestuosa do que a anterior. Algo nele tocou seu
coração, talvez a vulnerabilidade que ela sentiu sob sua elegância. A proibição de Varzil com
relação a Eduin só fez tudo aflorar ainda mais.
Será que eu teria feito algo se não fosse a interferência de Varzil? Ela não podia ter
certeza. Com toda a honestidade, ela sabia que não reagia bem quando recebia ordens.
Independentemente da instigação, ela acabou na cama de Eduin, e foi bom que os
monitores em Hali já a tinham ensinado como evitar a concepção, pois ela tinha ido embora
sem quaisquer complicações permanentes.
No devido tempo, Eduin havia retornou para Arilinn e ela para sua vida em Hali. Ela tinha
se aplicado em seus estudos e trabalho. Até amou novamente, mas nunca com aquela
intensidade febril de seu tempo com Eduin.
É uma coisa boa que o primeiro amor não surja mais de uma vez ou nenhum de nós iria
fazer mais nada na vida. Seu primeiro Guardião, Dougal DiAsturien, havia dito.
A Torre Hali erguia-se como alabastro brilhando e alcançando o céu acima das correntes
mutáveis do lago. Sua beleza emocianava no seu coração. Sua visão ficou turva. Ela
conhecia todos os quartos, cada degrau, cada parapeito de cada janela, cada canto da
cozinha, cada ponto de vista, e ainda agora ela se sentia ausente.
Era um absurdo, é claro. Hali era o seu lar. Eles estavam esperando por ela. Ela tinha
perdido o Festival do Solstício de Inverno, mas não foi sem um motivo justo.
O que ela estava esperando? Por que esses pensamentos estranhos, essa hesitação?
Havia muito trabalho a ser feito.
Os acontecimentos no motim no lago tinham cobrado seu preço. Ela tinha mudado e
nunca mais ela poderia ficar próxima do lago, andar pelos corredores da Torre, sentar-se
em um laboratório de matriz ou focar sua mente para as telas das Hellers como se nada
tivesse acontecido. Esses eventos a levaram a uma crise com sua própria mente e trouxe
Eduin de volta a sua vida.
Eduin tinha chegado a Hali alguns anos atrás, antes de ir para a Torre Hestral. Antes de
Felicia Leynier ter morrido em circunstâncias misteriosas e antes dele montar um círculo
ilegal para um contra-ataque brutal contra exército sitiante de Rakhal Hastur. Ela colocou
esse pensamento de lado e voltou a si.
Ele tinha sido tão distante, quase frio. Ela poderia jurar que ele nunca tinha amado nada
nem ninguém se suas próprias memórias não mostrassem o contrário. Ele disse que tinha
vindo à Hali para servir como arquivista e fazer pesquisas genealógicas. Ela tinha presumido
que fora por ordem de Dougal ou Barak, que era Guardião em Arilinn. Nunca lhe ocorrera
que ele poderia estar procurando por algum alvo.
O que ele estava procurando nas linhagens Hastur? Ele achou algo? Alguém o obrigou a
alguma coisa?
Dyannis disse a si mesma com firmeza que devia parar com isso. O passado não podia ser
alterado e Varzil estava certo.... Havia algumas coisas que ela nunca conseguiria saber.
Devo esquecê-lo, deixa-lo sozinho até em meus pensamentos.
Subiram o último trecho da estrada, quase às portas da Torre. Rorie e Alderic saíram para
cumprimentá-la. Ela levou seu cavalo cansado para frente.
Estou em casa, pensou Dyannis, apesar de não acreditar realmente nisso.
Dyannis se acomodou em seus antigos aposentos, desarrumou sua bolsa e enviou sua
roupa de viagem para ser limpa. Ela passou a noite fofocando com seus velhos amigos e
depois imersa em uma banheira fumegante, algo que ela não tinha desfrutado desde que
deixou Hali. Cedestri obviamente não tinha sido capaz de oferecer tais luxos e ela estava
cansada de tomar banho com uma esponja e uma bacia de água fria.
Raimon sugeriu que ela descansasse um pouco antes de retomar suas funções habituais,
mas Dyannis não quis. Ela insistiu em se juntar ao círculo naquela mesma noite.
- Eu não sou uma boneca mimada que não pode viajar algumas léguas sem descansar por
dez dias. - Ela disse a ele com mais acidez do que pretendia.
Essa sim é nossa Dyannis!, ele respondeu mentalmente. Em voz alta, ele disse: - Estamos
muito felizes por ter você de volta entre nós.
Ela se posicionou em seu banco habitual no laboratório que era tão familiar quanto seu
próprio quarto. A tarefa desta noite era simples, apenas deviam moldar os medicamentos
para a febre muscular que assolava a zona do lago. Estava atingindo mais as crianças e,
aqueles que não morriam, ficavam aleijados, às vezes mudos também. O círculo em
Neskaya tinha inventado um método de usar laran para aumentar a potência dos remédios
à base de plantas e Carolin tinha pedido a Hali para produzir um suprimento.
Dyannis olhou para os frascos e copos de tinturas espalhados em cima da mesa. Uma vez
esta mesma câmara, como tantas outras em tantas Torres, tinham visto a fabricação de
fogo aderente e coisas piores, mas agora estava focada na medicina para curar crianças.
Sem pensar, ela estendeu as mãos em ambos os lados, mas rapidamente puxou-as de
volta. O círculo em Hali fazia contato físico. Após a sensação inicial de estranheza, ela tinha
se acostumado a isso em Cedestri.
Dyannis baixou suas barreiras, incidindo sobre a estrutura da matriz, no centro da mesa.
Habilmente, Raimon uniu suas mentes. O processo era ao mesmo tempo familiar e
estranho. Ela percebeu que estava fora do processo, resistindo ao seu controle.
Eu me acostumei a ter o meu próprio caminho, ela pensou.
Não é um grande problema. Raimon respondeu-lhe com uma bondade inesperada.
Vamos acomodar-nos um ao outro. Varzil nos disse que você tinha trabalhado como sub-
Guardiã em Cedestri.
Varzil de novo!
Bem, isso não é um segredo de Estado. Ele também disse que você queria voltar ao
trabalho normal do círculo. Eu estava apenas lhe mostrando que desistir da autonomia de
uma Guardiã é tão difícil quanto adquiri-la.
É verdade. Ela concordou com tristeza. Nem todos os ferreiros da Forja de Zandru podem
colocar aquela garota de volta em seu ovo.
Dyannis controlou sua vontade para conseguir submergir seus pensamentos na unidade
do círculo. Não sendo familiarizada com o método, ela seguiu o comando da mente de
Raimon e se concentrou em cada etapa. Embora o trabalho não fosse difícil, ela se manteve
cuidadosa. Os ingredientes, tinturas de ervas, vinho destilado, mel, extratos de flores e osso
em pó, estavam frescos e limpos, ainda com as assinaturas energéticas dos seres vivos. O
trabalho a ajudou a focar sua energia em vez de drenar ela.
Dyannis ficou surpresa quando Raimon dissolveu os laços do círculo. Ela percebeu a pela
rigidez de suas articulações que algumas horas se passaram e ainda assim ela sentia pouca
fadiga. Sabendo o quão arriscado era confiar em seu senso de bem-estar, ela foi com os
outros para comer e descansar.
- Por Aldones, como você está forte! - Rorie comentou. - O que você tem feito, bebido
leite de banshee?
Ela balançou a cabeça. – Foi a construção das paredes de pedra.
- Fizemos isso quase o tempo todo.
Ele jogou-se em uma cadeira e ela percebeu que ele ainda estava puxando o ombro que
tinha sido acertado por uma flecha no motim do lago. Como era fácil esquecer eventos
quando não tinha que viver com as suas consequências.
Vendo-a pensativo, ele estendeu a mão e tocou-lhe levemente nas costas de sua mão,
traçando uma linha do pulso para a ponta do dedo.
- É bom ter você de volta.
Ela sabia que ele queria dizer como era bom para ele e não apenas para comunidade.
Abençoada Cassilda! Ela cortou o pensamento e, tão graciosamente quanto pôde, saiu
correndo em direção aposentos das mulheres. Só quando estava dentro dos limites de seu
próprio quarto ela deixou-se terminar o pensamento. Ele é apaixonado por mim. Como eu
não percebi?
Dyannis abaixou-se à beira da cama. Talvez o próprio Rorie não soubesse até agora. Às
vezes, quando as pessoas se encontravam novamente depois de uma ausência, eles se viam
de forma diferente.
Quando e como eram perguntas infrutíferas cujas respostas não mudariam nada. Muito
mais importante era como ela se sentia sobre ele. Uma dúzia de imagens surgiram em sua
mente... Rorie rindo de alguma piada, provocando-a, chamando de Peste, correndo ao seu
encontro... Sua mente como o aço afiado, forte e flexível, acolhendo os contatos mentais.
Sobre cada uma dessas memórias veio uma série de pensamentos muito mais
perturbadores.
Eduin tirando os olhos do pergaminho que estava sendo examinando nos arquivos em
Hali...
Ela procurou-o finalmente cansada por ele evitar tanto ela. Ele estava absorto em uma
pilha de pergaminhos, alguns deles em tal condição de fragilidade que não sobreviveriam
mais de um inverno ou dois.

-Trabalho... – Ele começara a dizer.


-Você tem ficado aqui por mais tempo do que qualquer um e não os arquivos não estão
prestes a brotar pernas e ir a qualquer lugar. Mas você deve agradar a si mesmo. – Ele
começou a se virar para puxar um banquinho para ela se sentar, apenas para não ser
inominavelmente grosseiro. -O que você tanto analisa?
-Registros de genealogia.
Isso era óbvio. -Oh. De quem?
-Ramos obscuros dos Hasturs. - Ele respondeu e acrescentou que estava pesquisando
características genéticas recessivas letais da Era do Caos.
Dyannis estremeceu, pois, como a maioria dos jovens modernos, ela lembrou da
endogamia usada para manipular traços laran de modo absolutamente repugnante.
-Abençoado Aldones, nós não fazemos isso a muito tempo. – Ela dissera. -Eu acho que nós
estamos vivendo em uma grande era de progresso. Você deve ouvir o meu irmão falar, ele é
tão cheio de novas ideias Um fim para a guerra de laran, novas formas de tratar doenças
que até mesmo os plebeus sem formação que têm algum talento fariam... você acredita? E
algum dia poderemos aceitar as mulheres como Guardiãs!
Eduin tinha demonstrado insatisfação com a possibilidade na época.

Varzil tinha visitado Hali há algum tempo para um funeral. Na época, Dyannis tinha pouco
interesse nele. Ela ficou muito triste ao saber da morte da Rainha Taniquel Hastur-Acosta,
de quem tantas baladas foram cantadas, mas ela nunca tinha conhecido a heroína lendária.
A Rainha Taniquel tinha montado ao lado de seu tio, Rafael Hastur II, aquele que detinha o
trono de Thendara antes que de passar para o tio de Carolin, e até mesmo desafiou o poder
do Conselho Comyn. Se metade das histórias eram verdadeiras, Taniquel tinha sido um
instrumento essencial na vitória de Hastur sobre o tirano Damian Deslucido. Sem sua
determinação, o mundo atual teria tomado uma forma muito diferente. Não haveria
nenhuma ascendência Hastur, não haveria as guerras sangrentas de sucessão, nenhum Rei
Carolin, nenhuma reconstrução das Torres Neskaya e Tramontana... Não haveria o Pacto.
Depois do funeral, Dyannis tinha ficado feliz ao ver seu irmão novamente e intrigada com
o seu amor silencioso, mas óbvio para os leronis em Arilinn, Felicia, recém chegada da Torre
Nevarsin.
Todos nós éramos tão jovens na época. Dyannis pensou com um traço de nostalgia. Ela
captou instintivamente as emoções desprotegidas de Varzil e sentiu-as como um conto de
romance. Ele não tinha nenhuma intenção de ser indiscreta, é claro, mas sua proximidade
de sangue e simpatia concedeu-lhe uma sensibilidade excepcional para captar seus
pensamentos. Quando ela soube que a mulher que ele era tão apaixonado, essa Felicia de
Arilinn, era na verdade a filha nedestra da mesma lendária Rainha Taniquel, ela pensou que
a coisa era mais maravilhosa que se podia imaginar.
Mas Felicia tinha morrido em meio aos destroços da Torre Hestral e Dyannis não podia
deixar de se perguntar se alguma parte do coração de Varzil tinha morrido com ela. Ele
ainda era ingênuo o suficiente para pensar que esse amor, essa paixão, só surgia uma vez na
vida.
E assim, ele carrega sua memória em seu coração. E assim, ele olha para Eduin como
culpado por ser seu velho adversário.
Essa explicação, embora razoável, trouxe pouco conforto. Se fosse verdade, por que a
sugestão da culpa de Eduin a corroía como um câncer terrível? Por que ela não deixava
tudo isso de lado no passado? Ela não conseguia afastar a sensação de que ela tinha
esquecido de algo crucial.
Ela não teria futuro aqui em Hali, nem qualquer chance de resolver seus sentimentos por
Rorie, até que ela descobriusse a verdade.
Raimon havia liberado o círculo para descansar por alguns dias, embora vários membros
tivessem outras tarefas. Dyannis alegou fadiga por sua viagem e foi para a parte da Torre
dedicada ao armazenamento de registros antigos. Ela encontrou o quarto em que ela tinha
falado com Eduin sem qualquer dificuldade. Era um dos vários reservados para o estudo e a
cópia de manuscritos.
Ela abaixou-se no banco colocado em uma mesa de leitura ao lado de uma janela alta.
Era o início da tarde, pois ela tinha dormido longa e irregularmente. A barra de brilho sobre
a mesa brilhava, forte o suficiente para ler ou escrever. Ela colocou as mãos nele como se
conjurasse um feitiço que iria queimar toda a falsidade, toda a confusão, deixando apenas a
aridez da verdade.
Ela fechou os olhos e a imagem de brilho permaneceu por um tempo atrás de seus olhos.
Uma memória respondeu a ela. A luz ficou mais grisalha e o céu nublado lá fora. Talvez ela
se lembrasse dessa forma porque sua vida tinha sido pintada com cores vívidas, o calor de
sua impetuosidade, sua inocência, sua inabalável autoconfiança.
O que Varzil tinha dito quando ele falou a ela que ele acreditava que Eduin teve um papel
na morte de Felicia? Que Felicia tinha morrido porque ela era uma Hastur e Carolin tinha
quase sido assassinado por essa mesma razão.
Morte aos Hasturs! Nós seremos vingados! Esses eram os pensamentos na hora da morte
do assassino que tinha atacado Carolin e Varzil em seu caminho para Lago Azul tantos anos
atrás.
Então, alguém tinha uma rixa de morte contra os Hasturs, que durava cerca de uma
geração. Carolin era um alvo óbvio, afinal era o herdeiro do trono. Mas por que Felicia?
Ninguém além de alguns amigos íntimos sabiam da sua linhagem. E por que isso importava?
Ela não tinha pretensões de chegar ao poder, apenas tinha procurado usar seus dons a
serviço das Torres.
Felicia também foi a primeira mulher a treinar abertamente como uma Guardiã.
Será que isso tem alguma coisa a ver com a morte dela? Alguém estaria tão indignado
por uma mulher desafiar toda a tradição e vestir o vermelho? Estaria Ellimara Aillard em
perigo também? Ou eu mesma?
Suspirando, Dyannis levantou-se da mesa e começou a andar. Seu movimento agitado
levantou finos turbilhões de poeira. Esses rolos eram muito antigos, remontavam à Era do
Caos e ela duvidava que tinha sido encerrado no último século. Que maravilhas da
tecnologia de matriz podem ser encontradas lá, perguntou-se, e que horrores?
Ela passou os dedos ao longo das ligações costuradas de vários pergaminhos, estudando
as etiquetas. Percebeu que os pergaminhos estavam quebradiços ao toque como se
pudessem se desintegrar na primeira tentativa de os abrir.
Eu não vou encontrar respostas aqui. Ela pensou. Eu não acredito que encontre sobre
Eduin também.
Ela conjurou uma memória de Eduin de quando ela veio em sua direção. Sim... Detalhes
surgiram no lugar. Um pergaminho tinham sido aberto nesta mesma mesa. Não poderia ser
muito antigo então. Ela não tinha memória sobre o que era o pergaminho, mas lembrava
que Eduin o havia colocado de lado. O pergaminho era flexível, tinha um tom mais escuro
do que o creme branco de um recém-fabricado.
Eram registros mais recentes, então...
Ela aumentou o ritmo de sua caminhada como se, dessa maneira, ela pudesse captar um
pouco do rastro de sua presença e de suas intenções. Seus movimentos levaram-na para as
prateleiras, para baixo e de volta para o corredor central. Os registos ali eram mais
recentes. Quando ela procurou com seu laran, ela pegou os vestígios dos artesãos que
tinham confeccionado o pergaminho e suas ligações, os escribas que tinham mergulhado a
pena na tinta, o arquivista que os tinha arrumado de tal forma meticulosa. Quem quer que
fosse o responsável tinha padrões excepcionalmente organizados. Cada rolo foi colocado
em alinhamento exato com os seus vizinhos.
Não... Um estava ligeiramente torto, como se tivesse sido retirado e, em seguida,
colocado de volta às pressas.
Dyannis passou os dedos em toda a borda. Mentalmente o sondou mergulhando na
memória do objeto. O pergaminho enrolado ainda tinha traços de animais cuja pele tinham
sido utilizadas em sua fabricação. Entrelaçado nesses traços ela sentiu uma grande
seriedade, uma sombra, um peso, e sabia que era da mente do escriba. Ele era dotado de
laran, disso ela tinha certeza, e ele tinha deixado para trás sinais disso, como impressões
digitais, alguma medida de suas emoções quando ele escreveu.
Num impulso, Dyannis deslizou o obejto de seu lugar e levou-o de volta para a mesa.
Imaginou Eduin fazendo a mesma coisa naquele dia, talvez da mesma forma. Ele teria
levado-o assim e o colocado assim, sobre a superfície.
Dyannis sentiu uma ressonância responder quando ela abriu o pergaminho. Era tão fraca
que se ela não tivesse pensado especificamente nele, ela teria perdido. Ele tinha
manipulado o pergaminho.
Ela sentou-se na cadeira e cuidadosamente abriu o pergaminho. Era uma crônica
histórica, mas enquanto lia linha após linha daquela caligrafia dolorosamente precisa, ela
não pôde deixar de sentir que havia acontecido muito mais do que tinha sido registrado.
Havia muitas frases vagas, muitas lacunas. Algo tinha sido deliberadamente ocultado. Algo
perigoso demais que precisava ser suprimido, escondido? Ela imaginou.
Em sua superfície, o pergaminho documentava os eventos de uma geração atrás, às
vezes chamado de Rebelião Hastur ou as Guerras dos Hasturs, porque o então rei, Rafael II,
havia desafiado a vontade do Conselho Comyn, tomado de sua sobrinha, Taniquel Hastur-
Acosta e, sozinho estava em oposição Damian Deslucido de Ambervale. Dyannis pensou na
racionalidade política complicada que levara ao conflito. Deslucido tinha aparentemente
reivindicado certas terras Hastur com base em um casamento entre seu filho e a Rainha
Taniquel. Rafael, falando em seu nome, negou a validade do casamento, dizendo que
Taniquel, recém-enviuvada pela conquista sangrenta de Deslucido de Acosta, tinha
recusado o casamento.
Ela não seria a primeira mulher de posição a ser forçado a tal casamento. Dyannis
pensou furiosamente. E quando ela aceitasse tal destino e agradasse seu novo senhor, logo
que o primeiro filho nascesse dessa união, e seu direito ao trono estivesse assegurado, ela
desapareceria misteriosamente.
O Conselho ainda possuía um domínio considerável e até mesmo o Rei Carolin precisou
obter a sua aprovação antes de se casar com Lady Maura Elhalyn, mas Dyannis nunca tinha
ouvido falar deles forçando um casamento abominável.
Os dois reis se enfrentaram em Drycreek, que até agora não era seguro para o homem ou
animal, graças ao irmão feiticeiro de Damian Deslucido, o laranzu renegado, Rumail, que
usou o pó derrete-osso na batalha, sendo ironicamente atingido por ela depois. No final, no
entanto, o Rei Rafael tinha saído vitorioso.
...E o terrível flagelo foi eliminado para sempre...
É uma maneira estranha de descrever uma vitória militar. Pensou Dyannis. Ela pressumiu
que Deslucido e seu filho tinham sido mortos em batalha ou então ido para o exílio. O
irmão, um laranzu fora da lei, foi dado como morto por sua própria vilania, pois nenhum
traço dele nunca foi encontrado. Reis vencidos e rainhas viúvas tendem a desaparecer.
Dyannis trouxe seus pensamentos de volta ao presente, fechou o pergaminho, o colocou
em sua capa e devolveu para a prateleira. Fosse o que fosse, o historiador tinha se dedicado
a esconder algo e manter enterrado. Ela não descobriu nada nesses registros.
O pergaminho claramente não tinha nada a ver com as antigas linhagens Hastur. A única
explicação para o interesse de Eduin era que ele estava procurando informações sobre as
vidas do Rei Rafael ou da Rainha Taniquel.
O que significava que Varzil podia ter alguma razão. Eduin tinha algum motivo para odiar
Carolin Hastur, mesmo quando eles ainda eram adolescentes em Arilinn. Eduin tinha
realmente tentado matar Carolin? Dyannis não conseguia acreditar totalmente, pois ela
sentiu o amor de Eduin por Carolin, mas decidiu aceitar essa premissa para ver onde ela
levaria.
Se o alvo era Carolin, então por que atacar Felicia? Ao que tudo indica, ela e Eduin
haviam trabalhado juntos em perfeita amizade na Torre Hestral.
Eduin não poderia saberá que ela era uma Hastur. Varzil disse quão cuidadosamente ela
guardava seu segredo. Eduin não tinha nenhuma maneira de descobrir...
Ou tinha?
A sala ficou subitamente fria. Dyannis oscilou sobre os seus pés e teve que agarrar-se a
um poste de um dos suportes de armazenamento para não cair. Como uma erupção
vulcânica monstruosa, a verdade veio à tona, quente e cáustica, em sua memória.
Ele sabia. Ele sabia porque eu disse a ele.
Dyannis abaixou-se até o chão, sem se importar com a poeira. Seu coração batia como
um animal selvagem contra a prisão de sua caixa torácica. Ácido subiu em sua garganta e
ela engoliu em seco para não vomitar.
- Uma Torre insignificante não deve ter ninguém pretendente ao cargo. – Foi o que Eduin
havia dito quando ela lhe disse que a Torre Hestral ia treinar Felicia como sub-Guardiã. E
depois...
Eu lhe disse.
Varzil nunca teria traído o segredo de Felicia. Varzil teria deixado o insulto passar sem
atenção, mas ela em seu orgulho tinha soltado o segredo da filha de Taniquel.
Não importava que ela não tivesse nenhuma razão para desconfiar de Eduin. Não
importava que ele tivesse seus próprios segredos guardados com maestria em suas
barreiras psíquicas poderosas.
Em um momento de descuido intencional, ela tinha destruído a vida de uma das mais
brilhantes e corajosas leronis de sua geração, e de seu amado irmão.
A culpa foi minha!
Em algum nível, em algum lugar nas profundezas do fundo do seu coração, ela sempre
soube o que ela tinha feito. Não foram suas ações precipitadas no motim do lago que a
levaram a uma culpa tão tenaz, mas essa transgressão muito mais profunda.
Pelo o que eu fiz não posso me tornar uma Guardiã. Eu nem sequer mereço viver.
Lentamente, Dyannis voltou a si. Quanto tempo ela tinha ficado ali, enrolado em uma
bola torturada no chão dos arquivos, ela só podia imaginar. A barra inclinada de luz se foi, e
fora da janela havia um céu escuro. Ela tremeu quando levantou, embora o quarto não
estivesse frio. O frio vinha de dentro dela. Seus músculos sacudiam como se tivesse
trabalhado sem uma pausa para dez dias, e sua barriga tremia.
Varzil a teria criticado por essa histeria emocional, tão dramática, extravagante e auto-
indulgente. Ele estava certo. Se eu tenho ou não culpa pela morte de Felicia, não tenho o
direito de mergulhar na auto piedade. Ou, ela acrescentou com tristeza, de deixar meu
cadáver para um pobre iniciante encontrar.
Eu sempre faço as coisas da maneira mais difícil.
Com dificuldade, ela foi para a porta. Seu corpo pedia por água, comida e descanso. Sua
mente precisava de calma para raciocinar sobre seu próximo passo. Seu espírito...
A doença que afligia seu espírito estava além da cura de qualquer monitor ou médico. Ela
não era particularmente religiosa. Os santuários de Cassilda ou da escura Avarra não lhe
ofereciam nenhum consolo. Havia apenas um lugar onde ela poderia encontrar uma
medida de pausa, de silêncio para decidir o que ela deveria fazer a seguir. Ela mal tinha
pensado nisso por muitos longos anos.
Eu não posso sair sem dizer nada. Raimon, como seu Guardião, e Rorie, pelo menos,
mereciam alguma palavra de onde ela estava indo, se não o porquê.
Ela fez seu caminho, lenta e dolorosamente, de volta para as áreas de estar da Torre Hali
e os viu reunidos. Ela não queria encontrar qualquer um dos seus colegas, que certamente
sentiriam, mesmo antes de ver o rosto dela, que ela tinha passado por uma provação
terrível.
Ela parou na cozinha, onde os cozinheiros pensaram que ela tinha acabado de vir de
algum trabalho laran, com sua energia drenada e lhe deram pratos conhecidos pela ação
restaurativa. Pelo menos eles não faziam perguntas, embora eles parecessem preocupados
e a sondassem enquanto ela lutava para comer um pouco da comida rica em nutrientes.
Por fim, ela sentiu o aumento de energia suficiente para fazer o seu caminho de volta para
seus próprios aposentos, onde ela caiu sobre sua cama em um sono sem sonhos.
Acordar foi mais fácil. Seu corpo, com a capacidade de resistência da juventude, tinha-se
restabelecido. Se ela não tinha remédio para a angústia que tomou conta de sua alma, pelo
menos ela tinha um plano. Ela se lavou na bacia de água com pétalas perfumadas que tinha
sido colocada para ela, colocou um vestido solto em verde e ouro, as cores de Ridenow, e
foi em busca de uma última audiência com seu Guardião.
Raimon tinha claramente sentido sua agitação interna. Ele ficou pensativo, mas não fez
qualquer tentativa para chegar tocar a mente dela com a sua. Ela tinha escolhido
deliberadamente expressar formalmente seu pedido em voz alta como uma expressão de
sua separação da Torre.
Dyannis recusou sua oferta de uma cadeira, preferindo ficar de pé.
- Eu gostaria de uma permissão para voltar para minha casa. - Disse ela depois dos
cumprimentos habituais.
- Você também está pedindo para ser liberada do serviço aqui? - Ele perguntou.
Ela hesitou. Uma parte de sua mente disse: Sim, e outra disse: Não, eu não quero fechar
a porta até que eu tenha certeza. E ainda um terceiro argumentou de que, embora
tecnicamente Raimon como seu Guardião pudesse libertá-la de seu juramento, na prática
ele não o faria sem conferir com o Rei Carolin, e ela não queria enfrentar o melhor amigo de
seu irmão.
- Isso pode ser decidido mais tarde. - Raimon disse suavemente. - Vamos considerar esta
uma visita única. Todos nós precisamos retornar para nossas casas e famílias. Você não fez
isso antes e talvez seja a hora.
Ela baixou a cabeça, grata pela sua aceitação pouco exigente. Havia muito mais em ser
um Guardião do que simplesmente organizar um grupo de mentes dotadas em um círculo.
- Vou arranjar uma escolta adequada assim que possível. - Ele continuou. - Até então,
você está dispensada do trabalho no círculo e, se você quiser, você pode tomar suas
refeições em seu quarto. Vou falar com os outros em seu nome, assim você não precisa ser
incomodada.
Era muito fácil. Apesar do seu sentimento de alívio, ela sentiu uma decepção estranha na
ausência de um confronto.
- Eu não estou desinteressado como parece. - Disse Raimon quando ele se levantou em
sinal de que sua audiência estava terminada. - Eu só desejo acelerar seu retorno à
normalidade. Claramente, há questões que você deve decidir por si mesma. Ninguém pode
escolher por você.
Ele acha que depois de um tempo, eu vou sentir falta de minha vida aqui e meu trabalho
como leronis. Mas eu nunca poderei voltar ao que eu era.
Capítulo 27
Dyannis e sua escolta chegaram ao topo da última colina e pararam, deixando seus
cavalos respirar. Abaixo estava o vale Água Doce, parecendo uma xícara de veludo
esmeralda. Era apenas alguns minutos após o meio-dia no início da primavera, pois eles
haviam parado em uma pousada na tarde anterior. Dyannis mesma tinha insistido
argumentando que era melhor adiar um dia do que para chegar tarde e exaustos.
Ela não tinha tanta certeza sobre suas próprias motivações. No início ela tinha estado
desesperada para deixar Hali. Se ela tinha perdido a Torre e todos os que pertenciam a essa
vida, era melhor partir de uma vez, em vez de ficar olhando como se houvesse salvação.
Tendo estabelecido um curso de ação, ela não podia suportar a ociosidade.
À medida que os dias passavam, no entanto, o pensamento do que ela estava deixando
para trás, toda a dor e alegria, a comunhão, a obra profundamente gratificante, a dúvida se
instalou. Ela foi deixada para contemplar o que estava à sua frente.
Água Doce. Casa.
Ela não tinha dado muita atenção ao que ela faria quando chegasse. Ela tinha crescido
em uma propriedade rural e não no palácio de um rei. Todos trabalhavam, do próprio
Senhor ao mais humilde menino. Mesmo quando era uma criança ela tinha tarefas a
cumprir. Ela tinha apenas uma pequena medida do dom Ridenow, a empatia com os não-
humanos, mas como uma leronis treinada certamente haveria alguma utilidade para os
seus talentos.
Será que ela tinha o direito de usá-los depois do que ela tinha feito?
Eu tenho o direito de jogar todo o meu treinamento fora?
Ah, isso era uma questão que Varzil teria levantado.
Varzil...
Por mais que tentasse tirá-lo de seus pensamentos, ela não conseguia escapar da dura
verdade de que ela tinha, em certa medida, causado a morte de sua amada. Tinha-o ferido
além de qualquer reparação, além da esperança de perdão.
Dyannis cutucou seu cavalo com os calcanhares e eles começaram a descer o morro. A
mansão abaixo, os celeiros e galpões de armazenamento, os currais de gado, a lagoa com
suas árvores de salgueiro, eram todos muito parecido como ela tinha visto pela última vez.
Neste mundo de cavalos e gado, de madeira resistente e antiga, a grama alta ondulando ao
vento, as guerras de homens e Torres pareciam muito distantes.
Ela lembrou que, apesar da aparência de tranquilidade pastoral, Água Doce era tanto
uma parte do mundo como Hali. Quando seu pai morreu, alguns anos atrás, nem ela nem
Varzil tinham sido capazes de voltar para casa porque as estradas estavam muito perigosas.
Agora todas as terras Ridenow estavam à beira de um sangrento conflito com seus vizinhos.
O novo general das Asturias, apelidado de Lobo de Kilghard, estava construindo uma
reputação de ousadia implacável.
Pelo menos, Asturias não tem fogo aderente para fazer chover sobre nós, ela pensou.
Pelo menos ainda não.
Eles foram vistos antes que pudessem descer muito e um punhado de cavaleiros vieram
para cumprimentá-los. Dyannis reconheceu Black Eiric, agora mais cinza do que escuro.
Muitos dos homens que conhecera quando criança, velho Raul o cavaleiro e o próprio filho
de Eiric Kevan, foram embora, alguns pela velhice e outros mortos em ataques por
bandidos durante os tempos incertos de exílio do Rei Carolin. As leronis domésticas que
tinham sido a sua primeira fonte de informações sobre a formação de seu laran tinham
morrido da mesma febre pulmonar que levara seu pai.
Black Eiric sorriu para ela. - Ah, é a damisela que volta para nós novamente. O Senhor
Harald está fora com o rebanho de cavalos, nós não esperávamos por você pelos próximos
dez dias ainda.
Dyannis se percebeu sorrindo e voltando ao seu espírito brincalhão. - O que eu sou
agora? Uma senhora das planícies que não pode viajar uns metros além de sua porta que já
precisa parar e descansar por três dias?
Black Eiric revirou os olhos e piscou. Ela mudou, mas pouco, ainda é a nossa Dyannis.
Dyannis pensou em responder e só então percebeu que ela não tinha a intenção de ouvir
o seu pensamento. Black Eiric era um primo Ridenow, com uma boa medida do dom da
família com animais, mas nenhum interesse em treinamento formal. Ele havia tomado sua
decisão a muito tempo de trabalhar aqui como escudeiro, primeiro para Dom Felix e agora
para seu filho, Harald.
Os cavalos aumentaram o ritmo quando se aproximavam dos estaleiros. Black Eiric
ocupou-se em arranjar o cuidado dos animais e alojamento para os homens.
Dyannis subiu para casa. Os largos degraus de madeira conduziam a uma ampla varanda
onde ela se lembrou de brincar com bonecas e soldadinhos de chumbo nas longas noites de
verão. Ela parou por um momento na câmara exterior. Aqui botas e roupas externas
encharcadas ou cheias de lama seriam trocadas por uma roupa interior. Este tinha sido um
costume de sua mãe e parecia que Harald ainda mantinha o costume. Dyannis sentiu a
chegada de lágrimas, algo totalmente inesperado. Ela mal conseguia se lembrar de sua mãe,
pois ela era a mais jovem dos filhos.
O que ela pensaria sobre mim, sobre Varzil e sobre esses tempos em que vivemos?
Dyannis respirou fundo e abriu a porta interna. A esposa de Harald, Rohanne, que agora
era senhora de Água Doce, correu para encontrá-la em meio a exclamações e beijos.
Dyannis, cujos nervos já estavam à flor da pele, recuou contra a exibição efusiva de afeto.
Os anos passados em Hali entre telepatas, para quem até mesmo um toque físico ocasional
podia ser visto como uma invasão, a tinham deixado com poucas defesas contra tais
intrusões bem-intencionadas. Usou sua disciplina para não empurrar a mulher para longe.
Dyannis recorreu à desculpa da fadiga.
- Mas é claro, minha querida, você deve estar absolutamente esgotada! Tantos dias sem
descanso com aqueles homens rudes. - Rohanne não falou a última parte, mas pensou tão
alto que Dyannis não pôde deixar de ouvir - Seu cabelo! Sua tez! O seu traje! Tudo precisa
ser alinhado.
Dyannis usava um casaco confortável e largo, botas e uma saia dividida de forma
adequada para montar a cavalo, em vez de um vestido de dama.
Por fim, Dyannis escapou para seu antigo quarto. Ele parecia ter encolhido em tamanho
desde que ela era uma criança, com apenas alguns passos ela foi de um canto para o outro.
Uma hera branca com flores tinha crescido em torno da janela, filtrando a luz. Ela se sentou
na cama e bateu na velha colcha. Os remendos tinham sido feitos com flanela dando uma
deliciosa suavidade.
Uma vez no passado eu mal podia esperar para ficar longe deste lugar e ir para Hali.
Agora eu mal pude esperar para sair de lá e voltar para casa. Agora ela não tinha certeza de
nada, a não ser que ela não pertencia mais a qualquer lugar.
Suspirando, ela se enrolou na lateral da cama. A cama rangia suavemente sob o seu peso.
Alguém tinha dobrado uma saqueta de flores secas sob o travesseiro. O cheiro agitava as
memórias de uma mulher alta com cabelo louro e longo, braços fortes e seios macios,
suavemente no conforto simples desta mesma cama. Algo dentro dela afrouxou.
Suspirando, ela fechou os olhos. Tudo o que ela precisava era de um pouco de descanso...
Dyannis acordara assustada ao som de uma comoção abaixo. Apenas uma luz fraca
entrava pela janela coberta de hera e a leve brisa tinha virado frio. Ela esfregou seus olhos.
Eu devo ter cuidado com este lugar ou eu vou começar a agir como aquela garotinha que
eu era. Na pior das hipóteses, Rohanne iria tratar ela como uma galinha no celeiro cuidado
do seu pintinho rebelde.
Alguém tinha entrado no quarto enquanto ela dormia. Sua bagagem tinha sido
desarrumada, seus vestidos colocado perfeitamente arrumados. Dispostas sobre a mesa,
suas escovas de cabelo estavam limpas e em uma fileira ao lado da pequena caixa esculpida
que continha seus grampos de cabelo e algumas peças de joias. Bacia, jarro de água, toalha
e um pequeno pedaço de sabão também tinham sido colocados arrumados.
Ela ajeitou a saia de montar amarrotada, arrumou o cabelo, verificou o resultado no
pequeno espelho muito riscado sobre a mesa, e desceu.
Harald sempre foi um homem ativo e os anos só tinham firmado isso. A barba dourada
agora estava um bronze prateado, a cintura engrossou, mas não ficou flácida, a pele do seu
rosto estava bronzeada. Ele gritava ordens e perguntas com uma voz mais adequada para
os campos abertos do que para os limites de uma grande casa.
Eles nunca tinham sido companheiros, pois ele era o mais velho de cinco irmãos, e ela a
mais nova. Ele já era um jovem adolescente quando ela nasceu e ela não conseguia se
lembrar de uma época em que ele tinha sido nada além de seu irmão mais velho e
arrogante. Já fazia muito tempo que qualquer homem, além de seu Guardião, tivera o
direito de comandar ela.
- Você é bem vinda em casa, breda! - Ele disse com um prazer genuíno. – Faz muito
tempo desde a última vez que te vi.
- Eu agradeço por sua hospitalidade. - Ela respondeu. - Eu realmente sinto muito que os
meus deveres tenham evitado uma visita antes.
- Sim, mas agora estamos juntos novamente como uma família. - Disse ele. - Vamos
festejar esta noite em honra ao seu retorno. Rohanne!
A senhora já tinha se aproximado silenciosamente do seu lado. - O que é isso, meu
marido?
- Será que minha irmã tem tudo o que precisa?
- Estou confortavelmente instalada no meu antigo quarto. - Dyannis respondeu.
- Isso não pode ser. Aquele é um quarto de criança, não de uma dama adulta. Temos de
encontrar algo mais adequado para ela. E coisas... - Harald fez um gesto com as mãos -
...vestidos e tudo mais que uma mulher precisa.
Dyannis começou a rir, mas rapidamente controlou-se ao ver a expressão chocada de
Rohanne. - Lamento se minha rouba de viagem o ofende, irmão. Na Torre damos pouca
atenção a essas coisas quando estamos trabalhando. Quanto ao meu quarto, eu ficaria
ofendida se não fosse mais meu ambiente familiar. Se eu quisesse um conjunto de câmaras
finas e servos em todos os lugares, eu teria ido para Thendara e visitado Carolin!
Harald bufou e disse que estava tudo bem, mas como comynara e Ridenow, ela merecia
o melhor.
Meu pobre irmão. Ele não sabe o que fazer comigo!
Dyannis passou o braço através de sua cunhada. - Então eu devo ficar especialmente
elegante esta noite ou o meu irmão vai pensar que somos selvagens em Hali. Você vai me
ajudar a escolher um vestido para o jantar?
Rohanne parecia duvidosa, mas acompanhou. Ela recuperou a compostura quando
Dyannis pegou o único vestido elegante que tinha trazido, talhado em lã cinza e verde,
primorosamente macio. O decote era talvez um pouco baixo para modos do país. Ela tinha
usado atravessada por um tartan com as cores de Ridenow de ouro e verde, para assuntos
informais na corte de Carolin. Rohanne assoviou ante a obra, a delicadeza da tecelagem, os
bordados geométricos elegantes ao longo das mangas e o corte das saias.
- Vou enviar minha própria serva para arrumar seu cabelo. - Disse Rohanne enquanto
afastava uma mecha da testa de Dyannis. - E não diga que você pode fazer isso sozinha, pois
eu não posso acreditar que, mesmo a feitiçaria pode organizar esses cachos sem auxílio.
Você tem um cabelo bonito, embora não esteja no seu melhor depois de uma viagem tão
longa. Uma vez que definirmos uma serva para você, ela irá mantê-los arrumados.
- Eu não estou acostumado a precisar de ajuda com minha roupa ou meu cabelo. -
Dyannis não queria ofender Rohanne, justamente quando a atmosfera emocional entre elas
estava tão doce. Se ela tivesse uma serva pairando sobre ela o tempo todo nunca poderia
ter um momento de paz.
Rohanne lançou-lhe um olhar. - Agora que você está aqui, você deve tomar o seu lugar de
direito como uma comynara Ridenow, como Harald disse. Suponho que seja difícil se
acostumar com as responsabilidades e também com os privilégios, mas você deixou para
trás sua vida na Torre.
- Eu ... eu não estou certa de que você compreendem um ou outro. - Disse Dyannis.
Rohanne tinha um modo de falar que, com toda a sua polidez superficial, ela a viu de forma
intrusiva ao ponto da descortesia. - Você fala como se eu fosse ficar aqui
permanentemente.
Rohanne arqueou as sobrancelhas perfeitamente cuidadas. - Isso não cabe a mim decidir.
É melhor você falar com Dom Harald sobre tais assuntos já que ele é o chefe da família.
Dyannis franziu a testa. Se ela mesma não sabia suas próprias intenções, como ela
poderia falar com seu irmão? Como ela poderia começar a explicar todas as coisas que ela
tinha experimentado, do dia em que ela ficou em primeiro lugar em um círculo de trabalho,
do dragão que ela tinha convocado no Lago Hali, da reconstrução da Torre Cedestri? A onda
de poder laran, a bem-aventurança de submergir sua consciência em um círculo, o choque
de uma mente morrendo na dela? Como alguém poderia fora de uma Torre realmente
entender seu dilema?
Quanto a Harald, ele podia ter apenas um mínimo de laran e nenhum treinamento
formal, mas com certeza ele iria respeitar qualquer decisão que ela tomasse. Ele tinha visto
por si mesmo o que o laran poderia realizar quando Varzil tinha feito o impossível,
negociando psiquicamente com os homens-gatos que mantinham Harald cativo.
Eu irei lhe dizer quando chegar a hora. Dyannis decidiu. Enquanto isso era melhor não
dizer mais nada.
Pouco tempo depois, Rohanne desculpou-se. Dyannis começou a lavar o rosto e as mãos.
O sabão era tão bom quanto qualquer outro que já tinha visto, e deixou um aroma doce e
fraco em sua pele. Ela gostaria de poder tão facilmente lavar sua própria indecisão em sua
mente. A verdade, ela admitiu a contragosto para si mesma, era que ela não tinha ideia de
quanto tempo ela pretendia ficar ali. Ela tinha fugido de Hali sem pensar em nada além de
sua própria culpa desesperada. Seria Água Doce um refúgio ou um exílio? Só o tempo iria
revelar a resposta.
Ela se sentou na beira da cama e soltou os cabelos do fecho da madeira simples.
Começando nas extremidades, ela atacou os emaranhados que tanto ofenderam Rohanne.
Esta era a parte da viagem que ela não gostava. No campo a preocupação era com o tempo
ou em que pousada jantar, a última coisa que ela queria era entrar em uma luta por uma
hora com seus cachos. Ela estremeceu quando os dentes do pente pegaram um nó
particularmente apertado.
Uma batida rápida soou na porta. Após ela mandar entrar, uma mulher de idade próxima
a sua, vestindo um avental limpo sobre um vestido cinza, entrou. Ela largou a cesta coberta
ao entrar e fez uma reverência.
- Rella! - Dyannis exclamou. - Eu não tinha ideia de que Rohanne falava de você!
- Faz muito tempo, domna Dyannis. - Rella disse, radiante. - Eu não achava que você se
lembraria de mim depois de tanto tempo, principalmente depois de estar em tais lugares
finos como Hali e Thendara. - Seus olhos brilhavam e Dyannis percebeu sua curiosidade
ansiosa.
- Hali é realmente bom, mas eu vi pouco de Thendara, além das poucas vezes que Carolin
nos convidou para a sua corte. Eu trabalho duro e quase inteiramente à noite. Trabalhos de
matrix podem soar glamourosos, mas é muito mais tedioso.
Exceto, ela refletiu, quando as pessoas estão correndo para você com machados e
flechas, empenhados em matá-lo. Ou você se encontra no meio de uma Torre em chamas.
- Você conheceu o Rei Carolin! Ele é bonito?
- Sim, muito, mas eu não o conheço bem. Ele e Varzil... Você se lembra de meu irmão? Se
tornaram amigos íntimos quando eles estavam em Arilinn. Certamente você já ouviu falar
como eles reconstruíram a Torre Neskaya, onde Varzil é o Guardião agora, não é mesmo?
- Oh, sim! Os menestréis cantam sobre ele!
Dyannis refletiu que a balada e a realidade muitas vezes não eram exatamente iguais. -
Então você que vai arrumar meu cabelo? Você pode dar alguma ordem nisso?
Rella colocou Dyannis em um banquinho no meio da sala, observando que ela precisava
de uma penteadeira apropriada, e começou a pentear o cabelo com hábeis gestos de forma
que Dyannis mal sentiu sequer um puxão. Ela entrançou os cabelos e o enrolou baixo no
pescoço, em seguida, acrescentou uma coroa de fitas trançadas e pequenos sinos de prata.
- Agora você está tão bonita quanto a própria Rainha Maura! - Rella exclamou se
voltando para admirar seu trabalho.
- Oh, quase isso. - Dyannis olhou-se no espelho. O reflexo riscado parecia mais jovem e
inocente. Ela usava sinos em seu cabelo como na noite fatídica do Festival do Solstício de
Inverno quando ela conheceu Eduin.
- Você não gostou? - Rella perguntou. - Talvez uma cor diferente de fita...
- Deixe. - Dyannis fez um gesto de desprezo, que pareceu aumentar a agitação de Rella.
- Eu devo vesti-la bem. Eu trouxe rouge e pó.
Suspirando, Dyannis permitiu a Rella ajudá-la no vestido verde. Ela tinha escolhido a peça
porque não havia cordões ou botões até a volta que exigia um outro par de mãos era
simples, mas ela não queria mandar a menina de volta para sua senhora sem as tarefas
feitas.
- Eu sou como os deuses me fizeram. - Disse para a serva. - E se isso não agradar a esposa
do meu irmão, ela deve levar suas queixas para ele.
Harald viu quando Dyannis chegou. Ele era a própria elegância, usava até a pesada
corrente de prata que tinha sido do avô deles dada de presente para a posse de Dom Felix.
Seus filhos, dois meninos e uma menina, correram para saudar Dyannis.
O menino mais velho iria atingir a puberdade em breve e Dyannis sentiu o despertar de
seu laran. Ela deveria falar com Harald sobre as precauções apropriadas, pois o menino
também enfrentaria a doença do limiar. Náuseas e desorientação, por vezes com
irritabilidade e distúrbios visuais, poderiam levar, se não fosse tratada, a convulsões fatais.
Antes de Dyannis nascer seu próprio irmão e irmã mais velhos, gêmeos, tinham morrido
durante os levantes psíquicos da adolescência. Ela tinha ouvido a história uma centena de
vezes, principalmente como um aviso quando ela era impertinente. Varzil, que tinha mais
laran do que todos da família juntos, tinha passado tão suavemente através de sua própria
juventude, que por um tempo, seu pai teve dificuldade em acreditar na força do seu
talento.
Ou a família jantava muito mais elegante do que Dyannis lembrava em sua infância, ou
então o cozinheiro tinha se superado na preparação de uma festa em tão curto prazo. Havia
tanta carne, e Harald a pressionou várias vezes a comer mais, que ela comeu muito mais do
que normalmente faria. A cozinheira de Hali tendia a ser econômica com carne. Alguns
leronyn se recusavam a comer qualquer carne animal e outros se restringiam aos peixes,
alegando que a carne afetava seus poderes. Dyannis nunca tinha notado qualquer
diferença.
Não que eu tenha qualquer necessidade de laran aqui. Dyannis pensou quando aceitou
uma terceira porção de carne mergulhada em seus próprios sucos ricos.
- Então você finalmente se cansou da vida na Torre? – Harald perguntou. - Eu nunca
esperei que você suportasse isso por muito tempo por você ter um temperamento forte.
Pensar em você enclausurada longe como algum monge cristoforo sempre me causou
estranheza! Mas eles não enviaram você de volta. - Sua voz tinha um toque de uma
pergunta.
- Não. Voltar para casa foi minha própria escolha. Não importa o que você ouviu falar,
não estamos enclausurados. - Dyannis respondeu pensando na liberdade com que as
mulheres Torre tinham seus amantes, ganhavam seu próprio dinheiro e tomavam decisões
sobre suas vidas, coisas que teria sido escandaloso em qualquer outro lugar. - Desde meu
primeiro dia como uma novata em Hali eu adorei o trabalho.
- Mesmo estando sob o comando do seu Guardião? - Harald levantou uma sobrancelha
em descrença.
- Sim. - Respondeu ela sorrindo. - Mesmo assim. Se você tivesse conhecido Dougal ou
Raimon, você não precisaria nem perguntar. Oh, eu reclamei tanto quanto qualquer novato,
mas no final, eu aceitei de bom grado a disciplina, assim como você apresentou-se ao Pai,
quando ele ensinou você usar uma espada. - Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras
seguintes com cuidado. - Mesmo o trabalho mais gratificante se torna um fardo, quando a
mente e o espírito são forçados demais. Depois de Isoldir, eu precisava de um descanso.
Dyannis passou a contar brevemente os eventos em Cedestri, pois sua família pouco
tinha ouvido falar sobre isso.
- Eu simplesmente não posso acreditar que você viajou através de tal país perigoso e no
meio de uma guerra! - Rohanne exclamou. - O que Varzil estava pensando para colocá-la
em tal perigo? Você não ficou aterrorizada?
Dyannis se pegou sorrindo gentilmente. - Irmã, eu estava ocupada demais para ter medo.
Chegamos na Torre Cedestri logo após o bombardeio e haviam muitos feridos para atender.
Após o pior deles serem atendidos, eu e Varzil, junto com os leronyn que ainda podiam
trabalhar, começamos a reparar as telas de Hellers e reconstruir as paredes com nosso
laran. Caso contrário, isso poderia ter demorado uma geração ou mais.
Rohanne franziu as sobrancelhas. - Não é apropriado enviar as mulheres bem-nascidas
para tais situações. É o instinto natural dos homens protegê-las em vez de colocá-las no
meio de seus deveres.
- Eu não sou uma flor de estufa, mas sim uma leronis treinada. - Dyannis respondeu
pacientemente. - Eu lhe asseguro que eu trabalhei tão duro como qualquer um dos
homens.
- Tudo isso agora é passado. - Disse Rohanne. - Estamos felizes em ter você aqui entre
nós, onde você é seguro.
- Estou feliz em saber que você até tem agora sido poupada dos horrores da guerra. -
Disse Dyannis. - Pode ser sempre assim. Se Carolin e Varzil tiverem sucesso em convencer
os outros a renegar suas mais terríveis armas laran, seus filhos podem de fato ver uma
nova e gloriosa era de paz.
- O que você sabe de tais coisas? - Harald perguntava de forma retórica e pareceu
surpreso quando Dyannis respondeu-lhe a sério.
- A Torre Hali agora age de acordo com o Pacto e se comprometeu a não criar mais armas
de laran e não tomar parte em qualquer luta. - Disse ela. - Mas durante o reinado de
Rakhal, o Usurpador, meu companheiro leronyn o levou para o campo de batalha. Eu ajudei
a fazer o fogo aderente e tive a sorte de passar por essa provação sem o cerco, o que não
foi o caso de Hestral.
Dyannis estremeceu, pois ela já tinha tido a oportunidade de cortar a carne queimada de
um trabalhador de Hali quando um dos recipientes de vidro quebrou durante a destilação
do material cáustico. Ela também lembrou da devastação que ela tinha visto em Cedestri,
os corpos carbonizados manchados de sangue, da multidão frenética no lago, de Rorie com
uma flecha no peito...
Não, ela não iria falar dessas memórias.
Rohanne estava olhando para ela com a boca aberta e, pela primeira vez, sem palavras.
Harald olhou para sua esposa, sua preocupação era claramente mostrada no contorno de
sua mandíbula e o sulco entre as sobrancelhas. - As mulheres não deveriam ter que pensar
em coisas como armas de laran.
- É um dever! - Vendo seu olhar afiado, Dyannis desejou ter segurado a língua. Ele era
seu anfitrião, bem como seu irmão mais velho, e foi indelicado de sua parte provocá-lo com
conversas sobre política. Mais gentilmente, ela acrescentou, - Se for a vontade dos deuses,
vamos ver esse sonho se tornar realidade. Certamente isso é algo que todas as pessoas de
boa vontade desejam.
Visivelmente aliviado, ele levantou a taça e ordenou mais uma rodada de vinho. - Vamos
beber por esse dia.
Capítulo 28
Em sua jornada de Hali até Água Doce Dyannis tinha se acostumado a acordar cedo.
Apesar do jantar pesado com carnes e vinho na noite anterior, ela desceu as escadas
quando os servos ainda começavam a sua jornada de trabalho. Ela encontrou o desjejum
recém preparado já a postos. Os pratos de ovos cozidos, salsichas e pão fresco ainda
estavam quentes.
Ela serviu-se de maçãs com especiarias, uma fatia de pão perfumado e um pedaço de
queijo macio. Assim que ela se sentou à mesa, uma das criadas, uma menina jovem que ela
não reconheceu, trazendo um jarro com jaco.
- Sabe algo sobre meu irmão?
A menina fez uma reverência. - Sim, damisela. Ele já saiu com os homens e não vai voltar
até o jantar.
- Sim, claro. - Não havia nenhuma palavra que mostrasse isso claramente, mas pelo tom
da serva o que ela quis dizer foi que ele estava em um “trabalho de homens" e não devia
preocupar as senhoras.
- E Lady Rohanne?
- Ela toma seu café da manhã no andar de cima. - A menina tinha covinhas com um traço
de malícia. – Sempre muito tarde.
- Oh, sim. - Tal languidez era moda entre as senhoras da corte de Carolin. Dyannis se
perguntou se Rohanne esperava que ela fizesse o mesmo. Ela deixou o fruto, o queijo sobre
o pão, e saiu para o quintal.
Os estábulos estavam vazios, exceto por uma égua branca calma, provavelmente a
montaria de Rohanne. No curral, alguns cavalos de pêlo duro voltados ao trabalho,
observavam Dyannis com olhos curiosos. Ela pensou em pegar um falcão das cavalariças,
mas não havia nenhuma necessidade para carne extra e como todos os Ridenow eram
empáticos, ela não gostava de matar as coisas, mesmo as pequenas aves, sem justa causa.
Não tendo nada para ocupar seu tempo, Dyannis foi em busca de sua sobrinha e
sobrinhos. Os dois mais jovens estavam ocupados no viveiro, mas ela encontrou Lerrys, o
menino mais velho, em um de seus próprios lugares favoritos de infância, o loft acima da
sala de aderência. O cheiro familiar de couro oleado, feno e cavalos trouxe um sorriso aos
seus lábios.
- Posso me juntar a você? - Ela disse já com um pé na escada.
- Você quer vir aqui? - Sua voz falhou um pouco.
Dyannis riu e subiu. Exceto pela mesa improvisada, o lugar parecia exatamente como ela
tinha visto quando ela foi até ali para se esconder há tantos anos. Ela pegou um cavalo de
madeira e examinou sua barriga. A pintura tinha sido desgastada, deixando a madeira em
um tom de ouro claro, mas ela encontrou suas iniciais onde ela tinha riscado com uma faca
roubada da cozinha.
- Como você o chama? - Ela perguntou, colocando o cavalo de volta ao lado dos outros
animais de madeira, veados e chervines, outros dois cavalos que obviamente tinham sido
repintados e um oudrakhi das Cidades Secas com apenas três pernas.
- Pacer.
- Oh? - Dyannis acomodou-se em um dos travesseiros esfarrapados, enfiando suas saias
debaixo dela. Isso tinha sido o nome que Varzil dera quando o brinquedo tinha sido feito
para ele. Eles quase tinha chegado às vias de fato quando ela tentou renomeá-lo de
Sunshine. Ela se perguntou se o menino poderia ter captado algum resíduo psíquico do
cavalo. Varzil tinha um poderoso laran mesmo quando era ainda uma criança, o suficiente
para deixar um rastro invisível para qualquer pessoa sensível o suficiente lê-lo.
Lerrys desviou o olhar, corando.
- É um nome tão bom quanto qualquer outro. – Ela disse descuidadamente. - Venha,
diga-me o que os outros estão fazendo. Você arranjou-os de uma forma tão interessante.
Parece que eles estão falando um com o outro.
Em resposta, ele começou a colocar os brinquedos dentro de um saco de lona. O último,
a oudrakhi, ele segurou por um momento, como se o pesasse. Seus olhos brilharam para
ela, em seguida, ele colocou-a junto com os outros.
O mesmo que Varzil fez. Ele aprendeu a esconder seus sentimentos, especialmente
aqueles que seu pai não consegue entender.
- Eu costumava brincar com esses mesmos animais quando eu era uma menina, você
sabia? - Ela ressaltou com um toque psíquico suave.
Ele encolheu os ombros. - Imaginei que pertencia a alguém. Meu pai ou tio Varzil.
- Oh, sim, era dele antes de mim, mas tudo o que tinha, eu queria, você vê? Então,
mesmo antes de partir para Arilinn, eu vinha aqui e brincar com eles.
- Minha irmã é assim também. - Disse Lerrys. - Ela estaria aqui agora, mas minha mãe
quer que ela comece a agir como uma pequena dama.
Dyannis fez uma careta. – Coitada. Você acha que ela está aprendendo a prática do
bordado com ela? Eu odiava bordado. Sempre tinha q fazer furos com coisas que não
cabem no espaço. Ugh! Eu prefiro estar aqui em cima ou em um cavalo. Você já saiu para
aquelas cavernas além dos pastos dos carneiros?
- Onde tio Varzil resgatou o pai? - Os olhos do menino se arregalaram. - Papai iria me
matar se eu fosse lá para fora!
- Deixe-me lhe dizer uma coisa: meu pai não ficava muito feliz com isso também. Mas eu
fui, de qualquer maneira.
- Você foi?
Ela assentiu, reprimindo uma onda de excitação. Ele tinha ouvido seu pensamento não
dito e respondeu, em um momento de descuido. - Lerrys, eu posso tocar em você?
Ele parecia confuso, mas estendeu a mão suja para ela. Ela tomou-a entre as suas, um
contato perfeito, e estendeu a mão com seu laran...
Quando Dyannis fechou os olhos, o padrão de nós e canais energéticos do menino
brilhavam como uma constelação de esferas de cores vivas unidas por cordões de ouro
branco. Ela buscou ainda mais à procura de um congestionamento, uma mudança para tons
vermelhos e marrons enlameados, alguma interrupção do fluxo. Sim, ao longo das vias que
conduzem à parte inferior do corpo, ela encontrou os sinais de alerta. Enquanto ela
observava, as cores escurecidas pulsavam.
A mão do rapaz tremia entre a dela. Quando ela o soltou, ele corou novamente. Ela
pegou uma onda de constrangimento, de consciência sexual. Ali estava ele, sozinho com
sua tia jovem e bonita, de mãos dadas.
- Lerrys, quantos anos você tem?
- Quatorze.
- Hmmm. - Ela teria imaginado doze por seu tamanho, mas Varzil sempre tinha sido
delgado também. - Eu não consigo lembrar de quem nasceu quando.
- Está tudo bem.
- Você está sempre mal do estômago sem uma boa razão? Ou com mudanças rápidas de
temperamento? Ou seus olhos parecem pregar truques em você?
- Você acha que eu sou louco? - Ele recuou assustado. Ela sabia pela veemência de sua
negação quão profundamente perturbado ele tinha sido por estes sintomas.
Ela balançou a cabeça. - Eu sou uma leronis treinada em Hali. Eu não estou fazendo essas
perguntas levianamente ou como um insulto. O quanto é que esse menino sabe? Será que
ele conhece o risco? Você tem uma pedra da estrela? Posso vê-la?
Se Lerrys mantinha sua pedra da estrela no fundo de um baú de brinquedos, ou algum
outro local separado dele, seu laran poderia estar ainda adormecido. Ele mexeu em sua
cintura, por baixo da camisa, onde ele usava uma tira de pano dobrado para fazer uma
faixa. Ele tirou um pequeno cristal azulado e ergueu-o. O interior ainda estava fraco,
intocado pelo fogo interior.
- Aqui. - Sem aviso, ele jogou-a em sua direção.
Por reflexo, Dyannis pegou o cristal, árido, em seguida, com horror percebeu o que tinha
feito. Ela empurrou a pedra de volta em suas mãos e cruzou os dedos em torno dela.
Nunca mais faça isso!
Embora ela não fosse hábil no uso da voz de comando como Varzil era, Dyannis era
poderosa o suficiente para reforçar suas palavras telepaticamente. O menino se encolheu
visivelmente assustado.
- Você pode pensar que este é apenas um brinquedo bonito, uma bugiganga, - ela
mergulhou seus olhos nos dele - mas depois de ter o sintonizado à sua mente, ele é a sua
própria vida. Você me entende? Ninguém mais deve tocar ser autorizados a manipular -la, a
não ser um Guardião.
Exceto um Guardião.
O mundo caiu abaixo dela.
- Você não entende. - Disse Lerrys, claramente infeliz. - Eu não posso ter laran. Oh, só o
suficiente para que o Pai me apresente ao Conselho. Mas nada mais. Só traria problemas.
Dyannis se puxou de volta ao presente. - Nós somos como os deuses nos fazem, chiyu, e
não como nossos pais, ou irmãos, desejam. Se tiver sido dado o talento, nada que alguém
diga que vai mudar isso. Não é nenhuma surpresa, considerando como muitos dos seus
parentes têm forte laran.
Ele parecia infeliz. - Tia Dyannis, eu sei que você quer o meu bem, mas, na verdade, seria
melhor não dizer nada ao Pai. Você não sabe como ele fica quando toma uma decisão.
- Seu avô, Dom Felix, era igual. Harald é muito parecido com ele. - No início, seu pai tinha
se recusado a permitir que Varzil fosse treinar em Arilinn. Dyannis esperava que Lerrys não
tivesse as mesmas dificuldades. Se necessário, ela poderia apelar para Varzil. Afinal, Harald
lhe devia sua vida.
Harald não voltou naquela noite até bem depois que o resto da família já tinha jantado. A
falta de preocupação de Rohanne, Dyannis percebeu que isso era regra durante as estações
de trabalho. O jantar honrando seu retorno tinha sido uma ocasião especial.
Ela retirou-se para seu quarto, em vez de ser deixada sozinha com Rohanne. Embora ela
tentasse meditar, sua mente não se acalmava. Quando ela começou a andar, a sensação de
sufocação só se intensificou. A proximidade das paredes, os lembretes constantes de uma
época em que ela era pequena e sujeita às ordens de homens mais velhos, a pressionavam-
se sobre ela como as barras de um calabouço.
Deuses, como se ela nunca sentiu isso? Como Varzil tinha, com seu poderoso despertar
do laran ainda tão jovem, se sentiu?
Lembrou-se de estar de pé diante de seu pai, Dom Felix, meio atordoado com a saída
antecipada dela de casa. Uma mudança havia acontecido desde que ele tinha dado sua
bênção para Varzil fazer seu treinamento na Torre Arilinn. Antes disso, ele nunca teria
concordado em deixá-la ir, nem mesmo quando a leronis da família insistiu com ele.

- Dyannis estará em grave risco se permanecer aqui e você sabe disso.


Dyannis, em seguida, com a mesma idade que Lerrys tem agora, havia sentido as
palavras da antiga leronis mesmo aqui, em seu próprio quarto. Elas pareciam pairar no ar,
mesmo agora, tantos anos depois....
- O perigo não vem da doença do limiar que levou Anndra e Sylvie, mas desse poder, do
seu dom. Eu lhe digo que se você mantê-la enjaulada como um pássaro ou casá-la com
algum imbecil cego telepático que a fará ter um pirralho após o outro, ou tentar destruir o
espírito indomável dela, será mais piedoso você cortar a garganta dela agora!
Ela havia se arrastou pelo corredor até ouvir o ressoar de sua resposta.
- Perdi muitos que eu amava. Minha esposa, dois dos meus pequeninos e agora Varzil
partiu.
Gentilmente veio a resposta da mulher: - Sua única esperança de conseguir tê-la de volta
é deixá-la ir.

E assim, Dyannis pensou, agora eu tenho um círculo cheio de minha própria vontade.
Com sua sensibilidade ela percebeu o retorno de Harald. Parecia que ela estava
revivendo o passado de novo, fazendo o seu caminho para baixo nesse mesmo corredor
para a câmara que uma vez tinha sido seu pai e agora pertencia a seu irmão mais velho. Ela
bateu na porta e ouviu o seu convite para entrar.
Ao entrar ela não conseguia se livrar da sensação de se mover para o passado. A câmara
externa ainda tinha os mesmos traços, cadeiras de madeira escura polida, a mesa com o
seu prato de nozes polvilhados de açúcar, a grelha na lareira. Harald estava de lado,
mexendo os gravetos. Por um instante, ela não viu ele, mas sim seu pai. Em seguida, ele se
mexeu e a ilusão desapareceu.
Ela aprumou-se como a leronis qualificada que ela era e sentou-se perto do fogo.
- Eu preciso falar com você sobre Lerrys. Ele está muito perto do tempo quando seu laran
vai despertar e eu acredito que vai ser forte. Você deve tomar precauções, ele irá
desenvolver a doença do limiar.
- Certamente, ele é muito jovem e nós não tivemos tais problemas em um longo tempo.
- Ele não é muito jovem. - Ela disse sem rodeios. - Eu já vi isso antes em Hali, onde um
atraso da puberdade produz convulsões excepcionalmente poderosas, tanto em energia
sexual quanto em laran. Acredite em mim, ele é...
- Basta! Silêncio! - Harald se virou para ela. - Você pode ser minha irmã, mas eu não vou
permitir que qualquer mulher na minha casa fale de forma suja.
Dyannis estava tão atordoada que ela só conseguia olhar para ele. Na Torre, fisiologia e
saúde, assim como sexualidade, eram discutidos francamente, sem qualquer indício de
vergonha.
- Você não pode mencionar tais coisas novamente! Não é apropriado, nem é modesto,
não é digno de uma mulher decente.
Ela chegou mais perto. - Eu estou falando da saúde do seu filho, talvez até mesmo sua
vida. O que poderia ser mais decente do que isso?
- Não há nenhum problema. Ele é um menino forte e saudável.
- Sim, mas ele logo se tornará um homem e é aí que reside o perigo. Você esqueceu o
que aconteceu com Anndra e Sylvie?
- Lembro melhor que você! - Por um instante, parecia que ele iria bater nela, mas depois
ele suavizou o tom. - Ele é meu filho e herdeiro. Eu não vou mandá-lo para longe de Água
Doce. Como Varzil foi enviado e depois ficou perdido para nós. Ele não voltou para casa nem
mesmo quando o pai morreu.
Seu coração doeu por ele. - Talvez isso não seja necessário. Você não está sem recursos.
Eu treinei inicialmente como monitora em Hali e sei como lidar com muitos aspectos da
doença do limiar. Se você permitir, eu irei fazer tudo o que eu puder.
Harald inclinou a cabeça. - Diz o ditado que quem não tem irmãos está com as costas
nuas. Nestes tempos perigosos, devemos todos nós, irmãs e irmãos, ficarmos juntos.
Dyannis assentiu, já planejando o que ela precisaria. - Você tem um estoque de kirian,
talvez armazenado com outros produtos medicinais?
- Eu duvido. - Harald respondeu coçando a cabeça. - A menos que haja alguma sobra de
sua infância. Não houve necessidade desde que você partiu.
O destilado psicoactivo fora de uma Torre não era tão comum, exceto para o tratamento
da doença do limiar. Dyannis conhecia uma dúzia de outros usos para ele, mas apenas para
distúrbios associados com laran.
Ela sentou-se novamente tamborilando os dedos no braço da cadeira de madeira.
- A menos que ele tenha sido selado com cera e sem perturbações do tempo em todos
esses anos, ele terá perdido sua potência. É melhor eu fazer um pouco fresco. - Ela olhou
para fora da janela onde as nuvens, movidas pelos ventos, cruzavam o céu. Seu corpo se
lembrava do ritmo das estações aqui. A primavera mal tinha começado e ainda haveria
neve nas alturas e mais tempestades por vir.
- Teremos mais um mês, eu acho, antes que eu possa colher a kireseth. - Ela comentou.
Harald fez uma careta.
- Não olhe para mim desse jeito. - Dyannis disse levemente. - Eu fiz isso antes. Todos em
Hali são treinados na preparação de algo tão necessário como kirian.
- Eu não duvido da sua competência. - Ele disse. - É o seu trabalho como uma leronis
saber essas coisas. Mas não há nenhuma kireseth em uma distância de um dia de viagem.
Você terá que viajar até o alto das colinas, o que é muito perigoso.
- Harald, eu sou uma Ridenow. Eu aprendi a montar antes que eu pudesse andar, assim
como você também.
Ele balançou sua cabeça. - Mas não a empunhar uma espada. Asturias está cada vez mais
beligerante a cada temporada que passa, e todas as terras entre nós está repleta de
homens sem lei. Até agora, Água Doce conseguiu evitar o ataque, mas com o fim do
inverno, eu não posso dizer o quanto a paz vai durar. Como chefe desta família, eu sou
responsável por seu bem-estar. A única forma de que eu permita você ir tão longe é com
uma escolta armada.
- Eu não acho que isso seja sábio. - Disse Dyannis. O pólen das flores podiam ser
perigosos causando alucinações imprevisíveis em homens e animais. - Eu sou treinada para
lidar com o pólen da kireseth, mas eu não quero a responsabilidade de cuidar de outra
pessoa durante o trabalho. Espadas não podem proteger homens comuns contra uma
exposição inadvertida assim.
Ela não queria provocar uma confusão onde o maior prejudicado seria Lerrys. Harald
estava apenas pensando em seu bem-estar, como seu irmão e senhor de Água Doce.
Lembrou-se que nenhum dos homens aqui eram estranhos aos perigos naturais. Alguns
deles podiam até ter resistido um vento fantasma do pólen da kireseth.
- Eu vou respeitar os seus desejos, - ela disse - contanto que eu possa julgar sobre os
riscos naturais.
Harald consentiu, embora ele estivesse claramente infeliz em deixá-la ir tão longe de
casa. Dyannis despediu-se logo depois. Ela sabia que deveria estar satisfeita, pois a
concessão havia sido mais agradável do que ela esperava, mas ela não conseguia se livrar da
sensação de que havia algo importante que ela tinha perdido.
Quando a primavera se firmou na terra, os dias ficaram mais longos, o ar mais suave, o
cheiro das árvores florescendo e a terra úmida tornou-se mais forte. Dyannis acordou,
totalmente alerta e descansada, duas horas antes do amanhecer. Empurrando as cobertas
de lado, levantou-se e foi até a janela. Seu corpo doía pela inatividade. Ela estava em Água
Doce agora por um mês completo e não tinha tido a oportunidade de andar muito para
além do quintal. Seu acompanhante havia retornado para Thendara após o descanso de
alguns dias. Após a primeira onda de boas-vindas, a propriedade continuou em seu ritmo
normal. Rohanne repetidamente pedia a ela para se sentar e bordar, mas Dyannis tinha
encontrado até agora uma desculpa atrás da outra para declinar do convite. O resto do
tempo ela tinha sido deixada livre ao seu próprio entretenimento com a garantia constante
de que ela não precisava apressar si mesma.
Apressar mim mesmo? Devem estar loucos!
Lá fora, os jardins e o quintal eram banhados em tons pastéis e uma luz multicolorida.
Esticando o pescoço, ela viu três das quatro luas espalhados como pedras preciosas no céu.
Ela quase podia as ouvir chamando-a.
Num impulso, ela calçou as botas e roupas de viagem. Lá embaixo, os servos já estavam
em seu trabalho e o cheiro de pão cozinhando na cozinha invadia todo o andar.
Nos estábulos, homens fortes arrumavam os estábulos e transportavam forragens e
baldes de água. Cavalos estavam inquietos em suas baias. Dyannis, não querendo explicar-
se, foi para a sala de aderência, desviou e saiu para o curral onde os cavalos de trabalho
aproveitavam os restos da ração matinal no feno. Estes eram difíceis, montarias mal-
humoradas, não eram como a égua dócil que Rohanne usava. Eles bufaram e saltaram
quando ela entrou no recinto.
Dyannis estendeu a mão com seu laran, acalmando os animais nervosos. Eles
observavam com olhos curiosos e cautelosos, mas permitiram que ela se movesse entre
eles. Ela escolheu um pequeno, um roan robusto castrado, que ela poderia montar sem sela
e sem muita dificuldade.
Você me leva, irmãozinho? Perguntou ela, acariciando a juba cinza grosseira.
Em resposta, o cavalo abaixou a cabeça e esfregou seu ombro. Ele ficou em silêncio
enquanto ela colocou as rédeas em sua boca e a alça atrás das orelhas. Falando baixinho,
ela levou-o para fora do curral. Um dos trabalhadores a chamou, mas ela acenou para ele e
enviou uma sugestão mental de que tudo estava como deveria ser e ele voltou para o seu
trabalho.
Uma vez fora do quintal, ela deslizou as rédeas sobre a cabeça do cavalo, segurou um
punhado duplo de juba e alçou-se para suas costas. Sua coluna era mais ossuda do que ela
esperava e ficaria dolorida no dia seguinte, mas ela não se importava. Estalou para o cavalo
e bateu-lhe com os calcanhares, colocando-o na direção das pastagens montanhosas. Ele
saiu de bom grado e uma vez que eles estavam bem longe da casa, passaram de uma
caminhada para um trote e, em seguida, em um galope de balanço leve.
Dyannis com as mãos presas na crina do cavalo, sentia prazeirosamente os músculos do
animal entre as pernas. O vento tocava suas bochechas e bagunçava seu cabelo. Ela inalou
o cheiro do cavalo, a doçura da grama e a umidade da vinda do amanhecer.
O cavalo, sentindo seu humor, seguia para a frente alegremente. Nesse instante ela não
sentia mais nada, apenas o ar correndo sobre, a força dos musculos debaixo dela, via o céu
leitoso acima e o aumento dos montes verdes acinzentados. Ela e o cavalo tornaram-se
uma única criatura, mergulhando entre a terra e o céu. Juntos, eles inalaram o calor do sol e
exalavam novamente, forçando os limites da carne. Ela sentiu sol e vento, grama e pedra, o
impulso de ossos e músculos.
Fugir... Ir para longe... As palavras surgiam em sua mente ao ritmo dos cascos e o galope
do cavalo.
Ela inclinou-se sobre o seu pescoço, como se pudesse fundir-se com o animal deixando
para trás todos os pensamentos humanos, toda a memória, todo o desejo. Acima dela, além
do céu se iluminando, as luas dançavam através de um campo de estrelas. Criaturas
distantes lutavam e acasalavam, nadavam e dançavam, gritavam sua angústia solitária sob
àquelas mesmas estrelas.
Dyannis saiu de seu devaneio tão drasticamente que o cavalo recuou sentindo a ruptura
abrupta de seu vínculo. O roan mergulhou para o lado, baixando a cabeça como se tentasse
resistir.
Ela tinha ouvido... Não... Ela sentiu alguma coisa. Só uma mente em sintonia com o
mundo natural poderia ter captado o fraco, mas muito harmônico toque.
Os homens-ya sob as luas. Varzil havia dito que os ouviu quando era um menino, mas
ninguém acreditou nele na época. Seu pai tinha pensado que ele estava fantasiando, iludido
e certamente era desprovido de qualquer laran respeitável. E Varzil acabou por ser o mais
poderoso Guardião em Darkover. Talvez sua história tenha sido verdade.
Ela abrandou sua respiração ofegante, acalmou o cavalo suado. O grande sol vermelho
estava acima do horizonte agora. O roan puxou-a um pouco, claramente querendo
continuar a correr. O calor irradiava de seu corpo.
Dyannis olhou para trás para ver a que distância eles tinham vindo. Eles haviam vindo
próximo às colinas, além da vista da casa. Algo dentro dela relaxou. Pela primeira vez em
mais do que ela podia se lembrar, ela estava sozinha, verdadeiramente sozinha. Ela abriu
sua mente e sentiu apenas as emoções simples dos animais... O cavalo debaixo dela, o
coelho-chifres com seus novos bebês se escondendo em suas tocas, um falcão circulando
no céu, ratos e pássaros, o contentamento distante de ovelhas além do cume dos montes. E
ali, escondido em suas fortalezas, os homens-ya e sua canção.
E ela tinha o laran para ouvi-los.
Ela não podia correr mais do que ela era, mais ela poderia enterrar-se na consciência de
um cavalo de corrida.
Água Doce foi um refúgio, não um destino.
Capítulo 29
Dyannis foi recolher a kireseth para a preparação do kirian, acompanhada pela escolta de
Harald. Ela encontrou os cachos de flores em forma de sino, carregadas de pólen, no alto
das colinas. Por insistência dela, os homens permaneceram a uma distância segura. A
colheita seguiu sem incidentes já que o dia ainda estava quase sem ventos e o pólen leigo
como pó de ouro sobre as pétalas. Ela colocou as flores cuidadosamente arrumadas em
uma bolsa de couro selada e as levou até a casa ainda com paredes de pedra.
Ela moveu-se sobre o quarto que tinha arrumado como um laboratório com tudo
preparado para enxaguar, medir e preparar para destilação. Com as mangas arregaçadas, o
cabelo coberto com um lenço antigo e um avental amarrado ao redor da cintura, ela
novamente se sentiu como uma leronis trabalhando e não uma senhora mimada e inútil. O
trabalho a fez lembrar das habilidades que ela tinha treinado tão duro para adquirir.
Dyannis percebeu-se a cantar, mas a melodia era triste, cravada com a perda. Quanto
mais o tempo passava, a cada dez dias em média, maior era o seu desejo de voltar para a
vida na Torre. Ela desejou que Varzil também estivesse lá, ou Ellimara, ou mesmo Rorie,
para que ela tivesse alguém com quem conversar sobre as coisas que Harald não
entenderia, e não havia nenhuma esperança para uma conversa séria sobre qualquer
assunto com Rohanne. Além disso, Harald tinha todas as preocupações da gestão de uma
grande propriedade para enfrentar. Dyannis decidiu que era melhor manter suas palavras
para si mesma.
Ela tinha pólen suficiente apenas para uma única garrafa de kirian, mas isso seria mais do
que suficiente para evitar o pior para Lerrys. Talvez o menino tivesse uma transição suave
ou só precisasse de um pouco de cuidado. Alguns adolescentes aprendiam a controlar os
sintomas mais leves de doença do limiar com técnicas simples de meditação. Dyannis já
tinha começado a trabalhar com Lerrys ensinando-lhe exercícios de concentração
elementares, quando ele permitia. Não era fácil manter seu interesse. Muitas vezes ela teve
que interromper uma sessão que mal tinha começado quando Harald enviava para o
menino de alguma outra tarefa. Lerrys tinha idade suficiente para estar aprendendo a
gestão da propriedade que um dia seria sua.
- Eu sei que há pouco para você fazer aqui em casa. - Disse Harald para Dyannis com uma
percepção inesperada. - Se você quer fazer algo útil, a esposa de um dos meus rendeiros,
Braulio, está perto de sua hora de dar à luz. Talvez você possa ajudá-la, como não temos
parteira neste momento.
Dyannis concordou com alguma hesitação. Se ela não fosse cuidadosa, Harald iria
planejar um futuro para ela, talvez até casá-la antes que ela ficasse muito velha.
Depois de uma apresentação adequada para o marido, ela montou em seu roan castrado
favorito e partiu para encontrar a mulher grávida. Ela encontrou Annalise, um ser um ativo,
agradável com sua barriga enorme e arredondada de seu segundo filho. Sua casa, uma
grande casa de campo com três quartos, parecia bem feita, uma trama de vegetais
abundante. Annalise olhou para cima em uma cesta com as primeiras verduras do verão.
Um rapaz robusto, de cabelos dourados de três ou quatro anos correu atrás dela, rindo.
Quando Dyannis se ofereceu para ajudar no nascimento, a mulher corou e balbuciou: -
Ah, mas você é uma grande dama e uma leronis de Hali. Não sei se devo ter tanta honra...
- Muitas vezes atendi pessoas comuns, até mesmo mendigos, quando havia necessidade.
- Dyannis disse a ela.
- A velha Kyra ainda estava conosco quando meu primeiro bebê veio. - Disse Annalise,
chutando para longe seus tamancos quando ela atravessou o limiar e fez um gesto para
Dyannis para entrar. - Eu acho que ele nunca vai nascer. Nunca tive um filho que demorasse
tanto. Agora que eu sei o caminho dele, eu não tenho tanta pressa. - Ela moveu-se
desajeitadamente na cozinha, colocando os legumes em uma panela de água.
Dyannis pensou na primeira esposa do Rei Carolin que tinha morrido no parto de seu
terceiro bebê. Uma gravidez bem sucedida não garantia a seguinte e vida de uma mulher
em trabalho de parto tinha sempre algum risco, mas seria insensível dizer isso. Talvez a
confiança em suas próprias habilidades fosse a maior força de uma mulher.
Ela disse: - Eu ficarei feliz ajudar por um tempo, mesmo que você não precise de mim. É
o trabalho das mulheres, você não acha?
Neste ponto, Annalise riu.
- Sim e é melhor manter os homens da família bem longe dele. A velha Kyra teve de
ordenar que meu Braulio ficasse fora de casa!
Dyannis sentou-se à mesa limpa e bem esfregada, enquanto bebia cidra de maçã do
outono passado e assistia o jogo da criança com uma pilha de blocos de madeira
lindamente esculpidas. Isto é tudo o que qualquer mulher deve querer, pensou. Um bom
marido, um filho saudável, uma casa própria e um jardim para cuidar.
Então, como se para responder a si mesma, pensou: Eu não sou qualquer mulher. Eu sou
Dyannis de Hali.
Cerca de dez dias depois, Braulio correu para a mansão no meio da noite. Annalise tinha
entrado em trabalho de parto. Dyannis vestiu um velho vestido de Rella, um que ela não se
importaria de sujar, e correu para a casa de campo. A primeira coisa que fez ao chegar foi
mandar Braulio sair da casa.
- Vá cortar madeira, - ela disse a ele, - colocar água para ferver e me traga uma lanterna.
E panos limpos! Lotes de panos limpos!
Annalise gritou de alívio quando Dyannis entrou no quarto. Ela estava ofegante e
suando. A noite estava excepcionalmente quente, mesmo para uma noite de início do
verão. Ela tinha jogado para trás seu turno e leigos seminua na cama em cima de uma
colcha muito velha e remendada. Utilizando ambas as mãos e seu laran, Dyannis verificou a
posição do bebê. Até onde ela podia dizer, pois ela tinha assistido a apenas um par de
nascimentos, a cabeça do bebê estava quase no canal de parto.
- Não vai demorar muito agora. - Disse a Annalise. - Uma filha forte e saudável. – Algo
que ela tinha sido capaz de determinar facilmente.
- Oh! - O corpo de Annalise ficou tenso e por um tempo, ela não podia falar. - Tão cedo?
- Sim, muitas vezes é assim, depois do primeiro. - Disse Dyannis. - Aqui, deixe-me limpar
seu rosto. Você deve segurar minha mão quando suas dores vierem. - Imediatamente,
Annalise agarrou a mão dela. - Respire agora. - Dyannis pediu. – Seja uma boa menina.
- Eu... eu quero empurrar!
Dyannis sentiu a mudança na energia do corpo da mulher, a necessidade exigente de
empurrar para baixo. Ela segurou a mão de Annalise e estendeu a mão com seu laran para
o bebê. A posição estava boa, a melhor que ela podia ver através da intensa pressão da
passagem de nascimento. Então, no auge da dor do parto, Dyannis sentiu uma ondulação,
uma gagueira. Ele desapareceu quando a dor diminuiu, como se nunca tivesse existido.
Tinha certeza de que ela não tinha imaginado. Um momento depois, Annalise forçou
novamente, esforçando-se e segurando a respiração. Dyannis conseguiu deixar as duas
mãos livres para que ela pudesse sondar a barriga esticada. Ela usou o contato físico direto
para atingir o bebê... Sentiu o batimento cardíaco lento, depois uma pausa...
Depois acelerar, uma luz oscilar quando os músculos tensos se afrouxaram e a mãe em
trabalho de parto respirou fundo.
Mesmo com seu laran reforçado pelo toque, Dyannis não conseguia ler claramente a
condição do bebê. Nada como isso tinha acontecido nos nascimentos que ela tinha
assistido. Sob suas mãos, o corpo da mulher tensionou.
- Empurre! - Dyannis disse, confiando em seu próprio instinto para colocar o bebê para
fora o mais rápido possível. – Empurre agora!
Atrás dela, Braulio bateu na porta. - Eu trouxe a água... quente...
- Mais tarde! - Dyannis gritou. - Vamos, Annalise, empurre!
Com um estranho grito sufocado, Annalise dobrou-se para frente, agarrando os joelhos,
queixo pressionado e o rosto congestionado pelo esforço. Ela não emitiu mais nenhum som
por um longo momento, mas cada fibra do seu corpo tremia. Dyannis sentiu o bebê mexer
com lentidão agonizante.
- AH! - Annalise gritou. Sua cabeça tombou de costas na cama. Dyannis chegou bem a
tempo para embalar a pequena cabeça molhada quando ela surgiu. Um segundo depois,
um ombro seguido do outro e o recém-nascido deslizou em suas mãos. O cordão umbilical
estava enrolado firmemente em torno do pescoço do bebê. Dyannis cortou-o o mais rápido
possível. O bebê estava ali, ainda quente.
Oh, Abençoada Cassilda!
Braulio, que tinha ficado em silêncio na sala, jogou um pano dobrado em Dyannis. Não
sabendo mais o que fazer, ela esfregou o tecido grosso sobre a forma minúscula. De
repente, o bebê deu uma contração convulsiva e começou a chorar. Dyannis sentiu as
lágrimas quando ela colocou a menina em um segundo pano e entregou-lhe a sua mãe. Em
seguida, ela deu um passo para trás enquanto Braulio abraçava sua esposa e sua nova filha.
Ela esperou até que tivesse certeza de que a mãe e a criança estavam bem. Havia pouco
para ela fazer, além de limpar as coisas. Annalise colocou a bebê para mamar e, pouco
depois, ambas caíram no sono.
Braulio agradeceu a Dyannis efusivamente, como se tivesse feito algo maravilhoso.
Dyannis pensou que a única maravilha tinha sido o processo natural do nascimento. Na
verdade, qualquer outra mulher com um mínimo de experiência ou o senso comum poderia
ter feito tão bem quanto ela. Dyannis não saberia o que fazer se algo verdadeiramente
tivesse dado errado.
Dyannis andava de volta para a mansão, sombria e pensativa. Seu cavalo balançava a
cabeça, reconhecendo sozinho o caminho. Ele pertencia a este lugar, diferente dela. Ela
poderia enviar uma mensagem através de centenas de léguas, reconstruir uma parede de
pedra com sua mente, invocar um dragão ou caminhar no Mundo Superior. No entanto,
agora ela se sentia pequena ante aquele nascimento, as colinas, as alturas distantes, a
firmeza sólida de sua montaria.
Eu devo seguir o que eu sou: uma leronis de uma Torre. Ela iria esquecer o que ela tinha
feito como sub-Guardiã. Deixe algum outro, mais digno, tomar aquele lugar. Havia bastante
trabalho no círculo onde eram necessárias a sua força e experiência.
Enquanto ela considerava seu retorno à Torre e à comunidade de leronyn, um peso
invisível foi tirado de seus ombros. Ela arqueou as costas e se esticou, inalando o ar da
noite úmida. O cavalo acelerou o passo, como se para apressá-la em seu caminho.
Até o momento Dyannis em que chegou em casa, ela sabia que tinha tomado a decisão
certa. Ela ficaria em Água Doce um pouco mais até que Lerrys passasse pelo despertar de
seu laran. Com certeza seria em breve dado a sua irritabilidade crescente. Em seguida, ela
iria fazer a viagem de volta para Hali, talvez até mesmo a tempo para o Verão.
Muito contente, ela montou até o quintal, desceu do cavalo e levou-o até seu descanso.
Ela entrou na casa em silêncio desejando um merecido descanso.
O Verão chegou e Lerrys ainda não tinha passado pelo limiar. O Festival em si foi
subjugado naquele ano pelo humor da família. Cada membro da família parecia a Dyannis
estar carregando alguma reclamação ou irritabilidade. Lerrys, como muitos dos
adolescentes que tinha conhecido em Hali, alternava entre a solidão emburrada e o
temperamento agressivo, às vezes desafiando seus pais. Rohanne insistia em tentar induzir
Dyannis a se juntar a ela nos bordados e fofocas, duas coisas que Dyannis detestava.
Quando Dyannis educadamente, mas com firmeza recusava, isso pareceu irritar sua irmã-
de-lei.
O temperamento de Harald não estava melhor. No dia anterior à véspera do Festival,
uma mensagem tinha vindo de Serrais, a capital Ridenow. Dom Eiric Ridenow, após ter
determinado que um ataque ofensivo contra Asturias era necessário, tinha encomendado à
Harald o envio de mais vinte homens e cavalos. Harald mal podia se dar ao luxo de poupá-
los, e Dyannis via como doía a ele o envio de homens que ele conhecia de toda a vida para
a batalha. Assim, embora o hall central estivesse enfeitado com guirlandas de flores e as
mesas estivessem carregadas com travessas de cordeiro assado, galinhas, potes enfeitados
para o verão, potes de frutas com mel e cestas transbordando com os pães-de-ovo
trançados, uma sombra pairava no ar.
Durante o jantar festivo, Harald e Lerrys quase chegaram às vias de fato quando o
menino declarou a sua intenção de aderir ao partido da guerra. Harald, com o rosto
vermelho em seu ornamento do feriado, respondeu que estava fora de questão.
Lerrys olhou desafiadoramente para seu pai. - Siann está indo e ele é apenas um ano
mais velho do que eu! Além disso, ele está montando Socks! – O animal castanho, marcado
por três manchas brancas semelhantes a meias e uma chama em sua testa, tinha sido o seu
cavalo favorito quando criança.
Rohanne gritou: - Você não deve dizer essas coisas, Lerrys! Harald, diga-lhe que não! Ele é
apenas uma criança!
- Ele é quase um homem, - Harald respondeu, - mas ele é herdeiro de Água Doce e eu
não vou arriscar sua vida desnecessariamente.
- Tia Dyannis! - Lerrys virou-se para Dyannis com os olhos brilhantes e suplicantes. - Diga
a ele que eu posso fazer isso, eu tenho praticado. Estou pronto!
Dyannis sacudiu a cabeça com um pequeno tremor de tristeza. – Lord Harald tem direito
de proibir sua ida, chiyu. Nenhum de nós, nem você, nem seu amigo Siann, não eu, estamos
preparados para enfrentar tais horrores batalha. A batalha por si só é terrível o suficiente,
mas quando clingfire e outras armas de laran são usadas, não há honra e nem glória, só a
morte. - Sua garganta fechou e ela não conseguiu continuar. Ela se perguntou se os
sortudos eram aqueles mortos na primeira luta. Ela pensou em Francisco e o povo de
Cedestri, os agricultores refugiados e soldados que ela atendia em Hali. Ninguém, pensou,
deve viver com essas memórias que vi nas mentes dos sobreviventes.
- Vocês todos estão contra mim! - Lerrys gritou e saiu correndo da mesa. Rohanne
começou a se levantar, mas Harald a deteve com um gesto, dizendo: - Que ele vá. Ele vai
superar isso quando seu amigo e os outros estiverem longe.
Rohanne olhou para Dyannis como se a rebeldia do rapaz fosse sua culpa.
Harald suspirou. - No final, podemos ter pouca escolha, uma vez que a guerra está em
cima de nós. Dom Eiric enviou seus próprios filhos para a batalha e todos devemos estar
preparados para defender nossas casas.
Depois disso, a alegria das festividades acabou. Ninguém queria dançar. Harald e
Rohanne se retiraram cedo para que os servos que quisessem pudessem continuar suas
próprias celebrações sem restrições.
Dyannis decidiu que o tempo de solidão adequado para refletir tinha passado e resolveu
procurar Lerrys. Seu quarto ficava no final do corredor do quarto de Dyannis. Quando ela
bateu, ouviu sons de briga, o tilintar de metal e a tampa de uma caixa se fechando. Parando
com seu punho na porta, pronta para bater de novo, ela sorriu e balançou a cabeça. O
menino tinha uma boa dose de Varzil quando era jovem.
Lerrys abriu uma fresta da porta. Uma única vela estava acessa em uma borda na parede
distante iluminando o quarto.
- Não vai funcionar, você sabe. - Ela disse.
Lerrys franziu as sobrancelhas, muito parecido como seu pai fazia quando era
confrontado. Embora ela não tivesse usado seu laran para sentir a espada emprestada, a
capa de chuva, e a outra engrenagem na parte inferior do peito, ela captou seu
pensamento oculto.
Ela leu a minha mente!
- Você vai me entregar? - Ele perguntou.
- Não, eu não vejo utilidade nisso. Mas eu gostaria de falar com você.
- Você quer dizer que você vai falar e eu vou ouvir. - Com um suspiro cansado, ele deu um
passo atrás dando passagem para ela entrar.
Ela se sentou na cama, empurrando-se para trás para que seus pés balançassem livres. - E
eu vou tentar convencer você à concordar com o seu pai, como uma boa tia deve fazer, é
isso o que quer dizer? Não parece muito divertido, mas se você insiste, eu vou tentar. - Ela
riu até que notou sua expressão indignada.
- O que é tão engraçado?
Ah, a juventude. Ela tinha sido tão mortalmente séria na sua idade? - Eu não estava rindo
de você. Mas do todos nós Ridenow. Nós nunca fazemos as coisas da maneira mais fácil. Eu
sou muito jovem para lembrar o que quer Harald fez na sua idade, mas Varzil... Oh, meu
querido. Quando ele quis ir para a Torre Arilinn e nosso pai recusou, foi uma enorme
confusão!
O humor do menino aliviou um pouco. Ele deu um passo para mais perto, embora sua
postura continuasse desconfiada.
- Varzil fugiu logo depois que ele tinha sido apresentado ao Conselho Comyn, - Dyannis
continuou, - e nosso pai ficou desesperado sem saber onde ele estava. Suponho que Harald
lhe contou tudo isso, não?
Lerrys sentou ao lado dela, ouvindo atenciosamente. - Meu pai me disse uma vez, mas a
mãe disse que não deveria mencionar isso novamente. Ela pensou que iria me dar ideias.
- Oh, sim! Varzil deu ideias às pessoas em toda a sua vida! - Dyannis riu novamente, e
desta vez, Lerrys riu com ela. - Foi ruim e estranho quando Varzil tentou ser admitido na
Torre Arilinn por conta própria, mas nós também não estávamos em bons termos com os
Hasturs e os Guardiões não aceitariam Varzil sem a permissão de seu pai. Politicamente era
muito perigoso, você sabe. Então o que você acha que ele fez?
Os olhos escuros de Lerrys brilharam. - Ele encontrou uma maneira de entrar de
qualquer forma. Obviamente.
- Não, ele não fez isso. - Ela balançou a cabeça. - O que você deve entender sobre Varzil é
que em toda a sua vida ele foi diferente. Ele teria morrido aqui nessa vida de reunir o gado
e os cavalos, andando por Água Doce junto com Harald. Seu laran o distinguia demais. Ele
nasceu para ser um Guardião e ele sentiu isso em seus ossos. Ele queria treinar em uma
Torre e nada mais. Qualquer outra coisa não seria honrado.
- Onde você quer chegar com tudo isso?
Ela observou-o. A luz fraca da vela o fazia parecer ainda mais jovem. Ele não era uma
criança, nem era um homem completo ainda. No entanto, ele agora passava pelas escolhas
difíceis de um homem.
- Você vê, - ela continuou, - se ele fosse contra a vontade do nosso pai e escapasse para
algum lugar como Cedestri, onde eles o admitissem talvez sob um nome falso ou sem
necessitar da permissão, ele estaria transformando toda a sua vida em uma mentira, em
vez de manter a fé em quem ele era.
Lerrys parecia incerto. Ele era grande o suficiente para entender a importância da
integridade, mas claramente não tinha pensado que ficar em casa e obedecer a vontade de
seu pai poderia ser uma atitude honrosa. Gentilmente, ela disse: - A coisa mais difícil para
Varzil fazer era ceder e deixar Arilinn com nosso pai. Mas ele fez isso. Acho que essa decisão
ajudou a tornar-lhe o homem que ele é hoje, um homem que molda os nossos tempos. Ele
não apenas fez o que ele queria, ele fez a coisa certa.
Lerrys não estava pronto para desistir. - Mas ele voltou para Arilinn. Ele encontrou uma
maneira.
- Só depois que nosso pai concordou. Na verdade, foi Harald que mudou a decisão de
nosso pai, depois do incidente com os homens-gatos. Harald não é tão e irracional quanto
você pensa. É o curso natural de todos os filhos desafiar seus pais. Pode não parecer às
vezes, mas ele te ama. Ele quer que você cresça forte e sábio para governar Água Doce
depois dele. Como você poderá fazer isso se você não conseguir nem governar a si mesmo?
Lerrys olhou para longe. Seu peito subia e descia fortemente. Ela quase podia ouvir as
batidas do seu coração. Seus desejos por aventura e glória, pela aprovação de seu pai, pela
honra, tudo apertava em seu peito.
- Não é fácil, não é? - Ela disse em voz baixa.
Ele balançou sua cabeça negativamente. - O que devo fazer? Eu não posso simplesmente
desistir.
Ela tocou as costas de sua mão, roçando sua mente com seu laran. - Basta ir sobre o seu
curso escolhido. Duvido Harald vá dizer algo. Sua mãe vai sentir, mas, em seguida, ela faria
isso, não importa o que você decida.
Ele sorriu e ela sabia que ele tinha realmente compreendido. Dois dias depois, os homens
saíram para se juntar a Dom Eiric no ataque às Asturias.
Capítulo 30
Dez dias mais tarde, voltando de seu passeio de manhã cedo, Dyannis sentiu que algo
estava errado quando ela virou a última curva da colina de volta para Água Doce. Harald
ainda não estava feliz com seu hábito de sair sozinha, mas desde que ela voltasse no meio
da manhã, ele mantinha suas objeções para si mesmo. Era uma das muitas coisas que
tacitamente decidiram não discutir.
Como de costume, ela montava o roan castrado. Afrouxando a rédea, ele seguiu um
ritmo acelerado de volta para seu estábulo e seu merecido alimento. Não havia nenhum
sinal particular de alarme, no entanto, mesmo quando a casa e os estábulos ficaram à vista,
algo gritou como uma explosão de fogo de ácido ao longo de seus nervos. Ela pegou uma
imagem visual de cores manchadas em conjunto como a pintura de uma criança, coberta
com o arrepio prateado quente de terror.
Lerrys!
Ela cravou os calcanhares nos lados de seu cavalo. O animal bufou em surpresa, em
seguida, mudou-se para um trote com um ranger óssea. Eles seguiram para baixo na parte
mais íngreme da trilha. O cavalo perdeu o equilíbrio em uma pedra solta, derrapando com
as patas dianteiras. No instante seguinte, ele se virou para o lado e arqueou as costas, e
mudou o peso de seu traseiro. Bufando e soprando, o roan castrado chegou a um impasse.
Dyannis cutucou para continuar a descer, mas ele curvara as orelhas e curvara suas costas
ameaçadoramente.
Sem aviso o alerta de urgência retornou. As luzes coloridas retorciam e se fundiram por
trás de seus olhos. Seu estômago se rebelou. Bile subiu para a garganta. Ela vomitou,
balançando na sela. Em torno dela, o horizonte em um amontoado nauseante de terra e
céu. Ela pegou as rédeas, cravou os joelhos nos flancos do cavalo e puxou sua cabeça para
frente e para baixo. O cavalo deu um passo e depois outro, escolhendo seu caminho. Sua
cauda chicoteava em protesto.
Sem pensar, ela enviou um comando psíquico com todo o poder de seu laran treinado e
sua empatia Ridenow...
VÁ!
O cavalo desceu a última encosta. Dyannis se agarrou a seu pescoço, usando todas as
suas habilidades para se segurar. Ele caiu ruidosamente no chão e ela pulou antes mesmo
que ele chegou a um impasse. Uma das mãos estáveis correu em direção a ela, com as mãos
levantadas para pegar as rédeas que se soltaram. O animal recuou e o homem correu atrás
dele.
- Lerrys! Onde ele está? - Ela falou quase engasgando.
O homem estava muito ocupado xingando e tentando controlar o cavalo e não prestou
atenção ao que Dyannis falara.
- ONDE ELE ESTÁ? - A voz de comando veio rugindo para fora de sua garganta,
reverberando através do quintal. Cada animal virou-se na direção dela, olhos e ouvidos
focados unicamente nela.
O homem se voltou estático e de queixo caído.
- Está... na casa. Damisela...
Dyannis saiu correndo do quintal. Sua respiração saía como fogo através de seus
pulmões. Seus pés batiam nas escadas de madeira com violência. Ela empurrou a grande
porta pesada como se fosse papel.
Lerrys! Um uivo silencioso respondeu a ela.
Uma vez dentro da entrada sombreada, Dyannis sabia exatamente onde ele estava. Ela
irrompeu no hall central em uma corrida desenfreada, sua saia de montar batendo sobre
suas pernas. Os servos no salão pulavam para o lado, exceto uma empregada carregando
um jarro em uma bandeja. Dyannis desviou, mas não a tempo. Ela esbarrou no ombro da
garota e a bandeja com o jarro caíram no chão, levantando vapor e espirrando jaco em
todas as direções. Rohanne, parando no meio da escada, gritou.
Dyannis atravessou o corredor enquanto Rohanne respirava pronta para dar um segundo
grito. Ela subiu as escadas, dois degraus de cada vez, escorregando algumas vezes.
A mente do menino estava em silêncio.
O corredor pareceu um borrão. Dyannis ouviu gritos atrás dela. Ela abriu a porta do
solário e no mesmo instante viu a cadeira virada e o corpo firmemente enrolado no tapete
ao lado dela. A cadeira ainda vibrava com a força de sua primeira convulsão. O ar cheirava
com afluência, um laran caótico. Dyannis atirou-se de joelhos ao lado Lerrys. Ela sabia
mesmo antes de tocar em seu ombro que ele tinha parado de respirar.
Lerrys!
Ela usou seus anos de formação em Hali e moldou seu pensamento para penetrar na
turbulência psíquica. Segurando as mãos dele para amplificar o contato, ela se colocou
abaixo do nível do pensamento.
Quando era novata e mais tarde como uma leronis, Dyannis havia monitorado muitos
outros, seus colegas e plebeus. Nunca tinha feito isso sob tal pressão e com tal velocidade.
Lerrys tinha parado de respirar um minuto ou dois antes de sua chegada. Seu coração já
tinha começado a vacilar e seus canais de energia estavam tão congestionados que eles
pareciam quase pretos.
Com um movimento instintivo, ela abriu o medalhão com sua pedra da estrela e sentiu o
brilho sob seu toque. Como ela tinha feito tantas vezes, ela usou a gema para amplificar e
direcionar seu laran natural.
Respire! Lerrys, respire!
Ela sentiu os nós dos canais de laran entupidos logo abaixo do diafragma, pressionando
seu plexo solar, pulsando com uma energia escura. Levaria tempo para drenar esse
bloqueio, mas Lerrys não tinha tempo. Cada movimento enfraquecia ainda mais sua
vitalidade. Trabalhando com pacientes criticamente feridos em Hali e depois em Cedestri,
Dyannis tinha aprendido a manter temporariamente os processos da vida. Ao seu comando,
os músculos apertados e as costelas moveram-se, o ar correu ao longo dos canais
respiratórios, a escuridão diminuiu. Ela sentiu a faísca de vida se fortalecendo.
Dyannis deu força ao coração do menino, estimulando as fibras. O coração respondeu,
batendo uma vez, duas vezes, cada vez com mais força.
- O que você está fazendo? - Gritou uma voz de mulher, quase não reconhecendo como
sendo de Rohanne. - Fique longe dele!
Dyannis virou a cabeça para vislumbrar sua irmã-de-lei com o rosto lívido. Além dela,
servos estavam parados e a mesma empregada que Dyannis tinha derrubado e estava
agora torcendo as mãos.
- Eu preciso de kirian! - Dyannis gritou. – Na garrafa azul perto do alecrim. Agora!
A súbita mudança na energia do menino chamou sua atenção mais uma vez. Ela mal
ouviu os passos e as vozes femininas ao redor. Lerrys ainda respirava e seu coração ainda
batia, mas em sua mente outra reviravolta estava crescendo. Ele iria irromper em uma
convulsão em questão de minutos. Seus músculos iriam bloquear com os espasmos, seu
coração iria vacilar e as próprias células do seu cérebro poderiam queimar com a
sobrecarga. O que ela ia fazer? Não havia ninguém a quem recorrer, ninguém mais para agir
por ele.
Dyannis só conseguia pensar em coisa. Estava tão desesperada pelo risco da vida do
menino que não tinha conseguido pensar nisso ainda. Ela deveria pegar a pedra da estrela
dele em suas próprias mãos. O risco era alto. Desde seus primeiros dias como uma novata
ela tinha sido advertida sobre as consequências nefastas mesmo de um contato casual com
pedra da estrela de outra pessoa. Ela poderia jogá-lo na mesma crise que esperava evitar.
No entanto, se, pela conexão física, ela pudesse de alguma forma chegar em sua mente, ela
poderia ter uma chance de salvá-lo.
Lerrys tinha se enrolado em uma bola e seus músculos já estavam tremendo. Dyannis
soltou a bolsinha com sua pedra da estrela do cinto do menino e com ambas as mãos soltou
a camisa dele. Dyannis agradeu a todos os deuses pelo garoto ainda usar a faixa de tecido
debaixo de sua roupa com a pedra da estrela. Ela sentiu um nó dentro de suas dobras. Seus
dedos tremiam quando ela puxou as dobras. Por um momento irritante, a peça pareceu
resistir a ela. Tudo o que ela fazia parecia emaranhar ainda mais o tecido.
A matriz de cristal, brilhando com sua luz interior, caiu na palma da sua mão. Ela sentiu a
rápida resposta da energia como uma explosão de calor a partir de sua própria da pedra.
Fechando os olhos, ela sentiu-se suspensa em um oceano brilhante. Como sóis gêmeos, as
duas pedras da estrela enchiam o firmamento psíquico. Raios azul e branco entraram em
confronto, um tentando se sobrepor aos padrões do outro. Ela tornou-se um barco dentro
da tempestade, dilacerado por ventos fortes invisíveis, à beira de ser ter suas amarras
soltas a qualquer momento. Se ela cedesse, se ela não conseguisse ser rápida, então Lerrys
certamente iria perecer e ela junto com ele.
Em um lampejo de compreensão, ela viu a luz não como duas fontes distintas, mas uma
única entidade fragmentada. Usando o poder da sua mente, amplificado através de ambas
as pedras da estrela, ela começou a mudar a luz dentro delas, para orientar e remodelá-la.
Lentamente, colocou as cores sintonizadas em harmonia. As imagens sobrepostas agora
estavam em um único foco luminoso.
Cuidadosamente, Dyannis permitiu que os dois padrões se separassem. Um permaneceu
como ela sempre conheceu, o brilho facetado de sua própria pedra da estrela. O segundo,
pertencente a Lerrys, imediatamente começou a deriva, escurecendo e assumindo um azul
em tom mais escuro. A configuração era mais um toque de cores suaves do que um padrão
de energia em forma de estrela de sua própria matriz. Este foi um momento crucial, ela
sabia, uma vez libertado da ordem imposta por sua própria pedra, a outra podia reverter
para o caos. Mas isso não aconteceu. Ainda não, pelo menos.
Dyannis voltou sua consciência agora para o corpo do menino.
Ele estava respirando lenta, mas regularmente. Seu coração batia de forma constante, o
sangue circulava e os órgãos funcionavam normalmente. O vermelho escuro dos nós nos
canais congestionados de laran tinham aliviado. O fluxo normal voltou para os canais.
Sua mente, no entanto... Como teria se saído?
Lerrys...
Uma resposta veio como o som de um sino distante, desaparecendo rapidamente. Desta
vez, o silêncio não carregava o vazio mortal. Dyannis sentiu que o menino tinha deslizado
além de sua capacidade de ouvir. Com cada momento que passava, sua pedra da estrela
ficava mais escura. De certa forma, isso parecia uma pedra trancada, uma que nunca tinha
sido colocada em ressonância com uma mente dotada de laran.
Como isso era possível? Lerrys tinha segurado sua pedra da estrela tão fortemente que
as tempestades de luz e poder se alastrara através de sua estrutura cristalina e o tecido de
sua própria mente. Dyannis tinha pouca experiência com essas coisas, mas ela se perguntou
se as convulsões haviam danificado os centros de laran de seu cérebro. Raimon em Hali
seria capaz de dizer.
Ela abriu os olhos e estudou a pedra em sua mão. Parecia suave, quase extinta, com
apenas um raio de luz azul em seu núcleo. Ela não confiava nessa calmaria, não até que ela
provasse para si mesma que nenhuma tempestade invisível ainda se escondia dentro de
seus limites facetados, um espelho para a mente do rapaz.
Um tremor a percorreu anunciando o cansaço nos ossos e a fome. Ela não se sentia tão
esgotada desde que ela tinha erguido as pedras para reconstruir a Torre Cedestri.
Alguém gritou:
- Ele está acordado! Ele vive!
- Oh meu bebê! - Rohanne soluçou.
- Não, minha senhora, acalme-se. Veja, ele está despertando.
Lerrys gemeu, abrindo os olhos. Dyannis firmou-se o suficiente para levantar a cabeça.
Alguém, a mesma serva que havia falado com Rohanne, empurrou a garrafa de vidro com
kirian em suas mãos. Dyannis arrancou a rolha e segurou a garrafa nos lábios do rapaz. O
fraco psicoativo suco destilado semelhante limão fez seu efeito. O corpo da própria Dyannis
recuperou-se apenas com o aroma do kirian.
Lerrys engoliu dois goles, suspirou, murmurou alguma coisa e caiu em um sono profundo
e calmo. Dyannis captou uma imagem de sua mente de um jovem, rosto corado de emoção,
galopando em um cavalo castanho com três pernas brancas.
- Leve-o. - Disse Dyannis, levantando a cabeça para o círculo de rostos preocupados. –
Alguém estendeu os braços para levantá-lo. - Leve-o para a cama. A melhor coisa para ele
agora é descansar. Vou ver como ele está daqui a pouco. Eu devo...
Ela quis dizer “eu devo falar com seu pai”, mas não conseguiu. Enquanto tentava se
levantar outra onda de cansaço a invadiu. A breve onda de energia do kirian havia
desaparecido, deixando-a ainda mais esgotada do que antes.
- Vai domna. – A serva que tinha entregado a ela o kirian, uma idosa, falou. Dyannis
lembrava dela desde sua infância, embora Nialla trabalhasse na cozinha. Ela correu para
Nialla algumas vezes desde o seu retorno. Agora que estavam sozinhos no solário. Lerrys
tinha sido levado por sua mãe em uma onda de exclamações. Agora que estavam sozinhas
no solário, Nialla perguntou: - Como posso servi-la?
Pelo menos não está me pedindo para ficar de pé, pensou Dyannis. Ela aceitou o apoio
surpreendentemente forte da velha, o suficiente para acomodar-se em uma cadeira. Ela
sentiu o desejo de simplesmente cair no sono onde ela estava. Em seguida, náuseas e as
dores apertaram sua barriga. Anos de experiência lhe ensinaram que isso era um sinal de
quão perigosamente esgotada ela estava.
- Traga-me algo doce. Doces ou bolos de frutas e uma taça de água com mel, não vinho.
Eu só vou... Fechar os olhos.
Dyannis acordou assustada quando Nialla colocou um prato de nozes açucaradas, pão de
especiarias regada com o conteúdo de uma compota de maçã e peras e com mel em seu
colo. Apesar de sua aversão, Dyannis forçou-se a comer. A comida estava deliciosa o
suficiente para seduzir até mesmo alguém sem apetite. Seu tremor diminuiu assim que
reabasteceu suas energias gastas.
- Era sempre assim com o Mestre Varzil. - Nialla disse, balançando a cabeça. - Sempre
querendo doces depois de ter ficado fora no mundo da mente.
Dyannis concordou, inesperadamente emocionada. O trabalho intenso com laran às
vezes a deixava muito sentimental, mas o caso agora tinha algo a mais. Esta mulher de bom
coração se lembrava de seu irmão como uma criança.
Dyannis sentiu o tumulto da chegada de Harald antes mesmo de ouvir sua potente voz
chamando por seu filho. Embora ela ainda estivesse dolorida de cansaço em todas as
articulações e músculos, a comida tinha restaurado ela o suficiente para falar com ele.
- Fique sentada, minha senhora. - Disse a velha. - Deixe ele vir até você.
Harald irrompeu no solário pouco tempo depois. As esporas tilintaram quando ele
atravessou a sala. Ele cheirava a suor de cavalo, ervas selvagens e couro. Seu medo encheu
a sala.
- Lerrys...
- Ele está bem. - Dyannis o cortou. Por ora. – Foi como eu temia. Ele sofreu uma crise
violenta, um episódio inicial intenso da doença do limiar. Eu não sei o que desencadeou,
mas foi pela misericórdia de Cassilda que eu estava nas proximidades. Caso contrário, não
acho que ele teria sobrevivido.
Ela fez uma pausa para deixar suas palavras serem compreendidas completamente.
Harald empalideceu. Ele passou uma mão sobre o rosto avermelhado e suado. – Eu... Eu lhe
sou grato, irmã.
Dyannis mal ouviu suas palavras. Ela tinha avisado a Harald e lhe pedido para enviar
Lerrys para Hali. Mas ela realmente fez tudo que podia? Ela tinha falhado porque ela estava
preocupada com suas próprias perguntas sem resposta? Ela sentia como se uma névoa
tivesse se erguido ante seus olhos com a própria decisão. Sim, ela tinha contribuído para o
perigo do menino por não agir de acordo com o seu melhor julgamento. E sim, ele devia ter
tido uma formação adequada antes da crise começar, mas com toda a verdade, ela não
poderia ter evitado a crise.
- Ele está estável no momento. - Disse ela. - Eu vou examiná-lo enquanto ele dorme, e
depois quando ele estiver acordado. Enquanto isso, temos de fazer os preparativos para o
seu cuidado.
- Eu pensei que você havia dite que ele estava bem.
- Eu quis dizer que ele está vivo. Eu não sei se a sua mente e corpo tiveram qualquer
dano permanente. Eu não posso dizer como seus centros de laran estão ainda. E ele pode
sofrer outra crise tão ruim quanto esta ou pior.
- Sagrado Aldones, Senhor da Luz, tem misericórdia de nós! - Em um par de passos largos,
Harald atirou-se em uma cadeira. - O que eu devo fazer?
Dyannis sentiu memórias de Anndra e Sylvie, que morreu com a mesma idade de Lerrys,
apesar dos melhores esforços das leronis da família, atingirem Harald. Conta-se que,
durante a Era do Caos, quando as grandes famílias praticavam o Programa de
Melhoramento Genético que praticava a endogamia seletiva para corrigir traços genéticos,
aumentar e criar laran’s mais fortes, essas mortes eram comuns.
O que teria acontecido se tal coisa tivesse afetado Varzil quando era uma criança? Ela
imaginou. Ou a Raimon ou a ela mesma? O destino de seu mundo virou em cima de um
eixo tão frágil.
Lerrys permaneceu inconsciente por dois dias. Rohanne mexia nele e torcia as mãos,
Harald parecia tenso e ansioso. Dyannis, depois que ela tinha descansado, examinou o
menino várias vezes e foi capaz de oferecer a garantia de que, por enquanto, ele parecia
estar fora de perigo.
Lerrys sempre foi um menino ativo e saudável. Logo ele estaria bem o suficiente para sair
da cama. Seu apetite voltou e ele rapidamente começou a ficar inquieto em casa. Seu laran
permaneceu nublado, a sua pedra da estrela com uma luz azul maçante. Dyannis pensou
que não era seguro tentar qualquer contato psíquico no momento, a não ser dentro da
segurança de uma Torre.
Dyannis continuou incitando o pensamento em Harald para enviar Lerrys para Hali. O
menino logo estaria em condições de viajar. Ela mesma iria retornar à Torre, embora ela
ainda não tivesse encontrado uma oportunidade ou uma maneira de dizer isso a sua
família. Na primeira oportunidade ela estava muito cansada e Harald claramente muito
angustiado para discutir algo tão sensível como enviar o menino para longe. Ela decidiu
esperar até que ambos estivessem descansados e com a mente clara.
Quando Dyannis estava prestes a abordar o assunto com Harald, um cavaleiro chegou de
Serrais, seu cavalo estava à beira da exaustão. Ele permaneceu trancado no escritório com
Harald por metade de um dia. Em seguida, Harald reuniu toda a família e os líderes de seus
homens, das propriedades e fazendas distantes.
- Más notícias vieram de Asturias. - Anunciou. – O descendente nedestro do Rei Rafael,
que Zandru o açoite com formigas-escorpiões, a quem os homens chamam de o Lobo de
Kilghard, foi levado para o campo. Serrais teve que recuar, todo o exército em desordem, e
Dom Eiric encontra-se agora no calabouço de Asturias.
- Não! - Um dos homens gritou e uma onda de consternação passou pelo grupo. – Esses
canalhas! Como ousam!
- Bruxaria! Deve ter sido uma bruxaria maldita!
Rohanne deu um gritinho e pareceu que iria desmaiar. Lerrys, de pé ao lado Dyannis, se
encolheu.
- Quando isso aconteceu? - Dyannis levantou a voz. Quando Harald disse respondeu, seu
coração se apertou. Foi o momento exato em que Lerrys tinha sofrido sua crise. Ela se virou
para ele e viu os ecos de um horror grande demais para sua mente jovem suportar. Com
seu despertar do laran, ele tinha, de alguma forma, unindo-se ao seu amigo Siann, aquele
que tinha ido lutar ao lado de Serrais. Esta não tinha sido uma batalha comum. Ela captou
imagens fragmentadas das mentes de homens e cavalos, e um garoto ferido caído em
poças de sangue... O fedor de fogo aderente... O terror rasgando as mentes dos homens...
Espadas... Flechas...
Dyannis viu o exército Ridenow deitado e cortado em pedaços, a confusão na fuga dos
remanescentes. O coração de algum deles tinha saído do peito com o primeiro ataque,
sendo atacado pela retaguarda. Ondas de clingfire explodiram em chamas fazendo os
cavalos fugirem em pânico. Homens brilharam, sua carne sumindo no fogo, morrendo aos
gritos. Então tudo acabou, ficando apenas o abate de misericórdia dos feridos e a rendição.
Os homens armados dentro do castelo, atingiram seus inimigos com uso dos arqueiros
posicionados nas paredes e, no final, os leronyn das Astúrias espalharam o terror entre o
exército Ridenow que fugiram gritando como se todos os demônios de todos os infernos
congelados de Zandru estivessem atrás deles.
Através da mente do menino, Dyannis sentiu cada morte, cada grito, cada gota de fogo
fundido na carne. Esses eram seu povo, seus parentes e seus vassalos, agora dispersos no
campo encharcado de sangue com kyorebnis circulando silenciosamente em cima deles.
Havia cavalos entre eles, alguns se debatendo em agonia ainda vivos, mas mortalmente
feridos. Vendo através dos olhos mentais de Lerrys ela reconheceu o cavalo castanho com
três patas brancas parecendo meias que tinha sido o seu favorito, agora apenas um pedaço
de carne inerte. Em baixo do cavalo estava a forma amassada de um homem com as cores
de Ridenow usando a insígnia de Água Doce. Lerrys, unido à eles com seu laran telepático
despertando, sentiu a morte de ambos.
Varzil estava certo. Essa loucura deve acabar.
Lerrys tinha estado à beira da loucura. Este não era um simples caso de doença do limiar
a ser tratada com kirian e uma formação básica. O menino precisava desesperadamente de
ajuda especializada. Tal conexão o fez presenciar e sentir a morte de dois seres amados em
uma fase intensa e instável. Ela não conhecia nenhum outro lugar onde ele pudesse achar
consolo e cura, exceto em uma Torre.
Ela não podia mais atrasar sua partida. Ela devia retornar para Hali, assim que Lerrys
estivesse forte o suficiente, para assumir seu lugar como leronis e trabalhar para realizar o
sonho de Varzil.
Capítulo 31
Desde o final da primavera, mensageiros precisaram correr entre Água Doce e as outras
grandes propriedades Ridenow e Thendara. Agora não passava um dia em que não
houvesse alguma notícia. Tendo escapado de volta para Serrais, os filhos de Dom Eiric
esperavam ansiosamente por uma mensagem das Astúrias, um pedido de resgate ou
notícias sobre sua execução. Emissários também foram enviados ao Rei Carolin e outros
governantes poderosos para ver se alguma aliança poderia ser feita.
Por enquanto, no entanto, havia uma calmaria na luta. Mesmo os vencedores, Dyannis
pensou ironicamente, precisam de tempo para lamber suas feridas.
Uma noite, logo após a notícia da derrota em Asturias, Dyannis organizou uma reunião
com Harald na câmara privada que usava como escritório e biblioteca. O quarto era
pequeno e um pouco sombrio com o seu coração vazio e possuía vidros escurecidos. O
Verão estava quase no fim, mas a noite ainda não estava suficientemente fria para acender
uma lareira. O frio, Dyannis pensou, aqui vem do espírito. Ela sentiu um pesar por ter que
deixar sua família nesse momento difícil, mas ela já tinha adiado sua partida por muito
tempo.
Harald jogou-se na cadeira de madeira ao lado da mesa. Ele tinha levantado desde antes
do amanhecer, pois era alto verão. Com a chegada da época da colheita, Água Doce sentiria
a perda de tantos homens, mas por agora, eles conseguiam dar conta. Lerrys estava mais
forte a cada dia e Dyannis muitas vezes ia com os outros para as pastagens. Ela colocado
um vestido simples para o jantar, principalmente para agradar Rohanne, mas Harald ainda
usava suas roupas de trabalho.
Ele lhe ofereceu vinho e um prato de pequenos bolos de frutas polvilhados com mel
cristalizado. Esse tinha sido um prazer infância, talvez uma lembrança de seu passado em
comum. Ela recusou ambos, a menos que ela estivesse fazendo trabalho laran, ela não
gostava de doces. Ela acomodou-se na segunda cadeira, com a mesa entre eles, enquanto
ele encheu uma taça para si mesmo.
Depois de alguns comentários superficiais sobre o dia de trabalho e o tempo que tinha
sido muito bom, Dyannis começou a conversa mais séria.
- As estradas estão seguras o suficiente no momento, pelo menos entre aqui e Thendara.
Não podemos saber quanto tempo a paz vai durar, por isso, não devemos esperar. Lerrys
deve vir comigo para Hali enquanto ainda podemos.
- Certamente não há razão para Lerrys percorrer todo o caminho até Hali. - Disse ele. - O
menino está ficando mais forte a cada dia e, além disso, ele é necessário aqui em Água
Doce.
- Ele não está bem e você sabe disso. Harald, ele quase não sobreviveu a crise e, embora
ele não tenha tido um outro episódio, não podemos ter certeza de que este é o fim de tudo.
Se ele tiver outro pode ser fatal. - Ela se inclinou para a frente, tentando colocar as
complexas interações entre mente e corpo em termos simples. - Seu laran estava apenas
despertando quando ele se uniu com o amigo na batalha no Castelo Astúrias. Eu acho que
sua empatia com o cavalo, seu laran Ridenow, tornou essa ligação forte o bastante para
que ele sentisse o abate, a dor, o terror e a morte daqui como se ele tivesse estado lá.
Harald ouviu, seus olhos pareciam cobertos por uma sombra. Dyannis sentiu seu amor
por seu filho e seu medo.
- É possível a experiência tenha bloqueado seu laran ou o danificado, tanto que ele
nunca seja capaz de usá-lo. - Disse ela. - Mas isso é apenas uma parte do problema. Você
sabe que os homens, mesmo adultos que vivem uma tragédia semelhante mudam. Às
vezes, eles nunca conseguem voltar para suas casas e famílias. Eles vagam pelas estradas
ou viram foras da lei. Eu os vi em Thendara, bêbados e mendigos. Eu não quero que isso
aconteça com Lerrys que é tão jovem e despreparado.
Harald assentiu. - Eu entendo o perigo, mas Lerrys parece estar bem. Ele não disse nada
disso para mim.
- Eu não acho que ele vá falar sobre isso, se ele ainda se lembrar. Mas ainda está em sua
mente, disso estou certa, e vai agir sobre ele como um tumor se não for drenado. Embora
ele pareça bem, ele não se sente bem. Harald, eu sou uma leronis treinada. Eu sei muito
sobre isso e digo-vos, isso está além da minha capacidade. Se Lerrys fosse um homem
comum, sem laran, eu poderia tratá-lo normalmente. Mas, com o seu laran e o que ele
passou, ele precisa de um ambiente protegido e cuidados especializados, o que eu não
posso dar-lhe aqui.
Harald estremeceu visivelmente com suas palavras. Ele falou com uma voz cheia de
emoção. - E o leronyn na Torre Hali pode ajudá-lo? Você tem certeza disso?
Dyannis assentiu. - Já vi homens e mulheres chegar com pesadelos piores e se curarem. -
Ela não acrescentou que alguns eram resultado de seu próprio comportamento impulsivo e
que ela mesma tinha trabalhado para desfazer o dano que tinha causado. Raimon estava
certo. Ela tinha feito o que podia. Agora ela tinha a chance de usar o que tinha aprendido
para ajudar seu sobrinho.
- Rohanne vai ficar furiosa, mas acho que você está certa. - Disse Harald depois de uma
pausa. - Devemos fazer tudo o que é necessário para a recuperação do meu filho. Você, eu e
Lerrys devemos ir juntos para as terras Hastur. Vamos nos preparar.
Dyannis recostou-se na cadeira com um pequeno suspiro. A conversa tinha sido muito
mais fácil do que ela esperava. Ela esperava resistência e em vez disso tinha encontrado
cooperação. Harald não era Dom Felix e ele realmente amava seu filho.
- Eu tenho uma outra razão para viajar a Thendara, além de suas preocupações. - Disse
Harald com uma expressão levemente satisfeita. - Estou feliz que você tenha me procurado
para conversar, ou eu teria que procura-la.
- Do que você quer falar? - Ela perguntou.
- Do seu futuro. Depois que Lerrys estiver em Hali ele não precisará mais de você. Você é
uma mulher adulta e deve ter sua casa própria. Mais do que isso, estes são tempos de
desespero. Ridenow precisa de amigos poderosos. Laços de sangue são o mais forte laço de
todos e o casamento é ainda uma maneira potente para fazer aliados.
Seu estômago deu uma guinada. Ela fez não gostou do rumo dessa conversa. - O que?
Como assim?
- Eu organizei o seu noivado com Dom Tiavan Harryl e a cerimónia será em Thendara...
- O QUE!? – Dyannis explodiu em um grito que lembrou o de um cervo ferido. Ela mal
podia respirar.
- É um bom arranjo, breda. Dom Tiavan é um homem cortês e honrado. Ele é um parente
da jovem recém casada com Geremy Hastur, filho do Senhor Istvan de Carcosa, e, portanto,
parente do próprio Rei Carolin. Além disso, Dom Geremy foi nomeado regente para o
herdeiro exilado de Asturias.
Dyannis sentiu como se tivesse sido mergulhada na vida de outra pessoa. Isso não
poderia estar acontecendo. Seu próprio irmão não poderia ter feito isso com ela.
Embora sua mente cambaleasse, Dyannis também compreendeu as implicações políticas
das palavras de seu irmão. Harald estava dentro de seus direitos de usar seu casamento
para uma aliança. Tais acordos eram comuns. A maioria das mulheres do Comyn nunca
esperavam qualquer outra coisa e, se os deuses sorrissem para elas, seus maridos iriam
tratá-las com cortesia e, talvez, com o tempo, o amor viria. Se não, havia sempre o consolo
dos filhos, da posição e do conhecimento de que tinha servido às suas famílias da única
maneira que a maioria das mulheres podia.
Eu não sou a maioria das mulheres. Eu sou Dyannis de Hali!
- Ele não tem qualquer objeção quanto à sua idade. - Harald continuou, alheio à sua
reação. - Você não está velha demais para lhe dar filhos, mas no caso de você não conseguir,
suas terras serão revertidas para os Hasturs, que são senhores do clã Harryl, assim, no final,
todos ficarão satisfeitos. Você vai ter um bom casamento e tornar-se amante de um nobre
próximo ao Rei Carolin, em vez de continuar aqui como uma solteirona dependente e sua
família vai ganhar grande vantagem do acordo.
- Eu... - Dyannis abriu a boca e, em seguida, fechou. Eu não posso desviar-me do destino
que os deuses me impõem. Ela não via como ela poderia tornar-se a esposa de alguém e
ainda fazer o trabalho que amava, usando o dom com o qual ela nasceu. Ela queria pôr um
fim à conversa, antes que Harald entendesse seu silêncio como um consentimento.
- Eu agradeço por seus esforços em meu nome, irmão, - ela disse, - mas o que me propõe
é impossível. Eu gostaria que você tivesse me consultado antes de entrar em qualquer
acordo deste tipo.
As sobrancelhas de Harald franziram-se e os músculos dos ombros ficaram tensos. - Você
se prometeu a algum outro? Se assim for, por que o manteve em segredo? Ou há alguma
razão que torne este casamento desagradável para você?
- Eu não tenho absolutamente nenhum desejo de me casar com ninguém! Me propus a
acompanhar Lerrys para Hali a fim de retomar minhas funções como leronis na Torre Hali.
Harald ficou pálido. - O que quer dizer? Você ficou aqui todos esses meses desde o início
da primavera e nenhuma vez mencionou que desejava voltar para a Torre. Achei que você
tinha desistido disso. Você disse tão pouco de sua vida anterior que eu presumi que era um
assunto doloroso para você. O que mais eu poderia pensar? Como Lord de Água Doce
tornei-me responsável por arrumar um bom casamento para você. Eu que você estava
infeliz e frustrada vivendo sob o mesmo teto que Rohanne, sem um lugar só seu. Eu vi a
oportunidade de beneficiar a nossa família e ao mesmo tempo garantir a sua felicidade.
- Você deveria ter me perguntado em primeiro lugar!
Harald levantou-se e começou a andar. - Se ao menos eu tivesse a menor ideia... Porque
você não disse alguma coisa?
Que tola ela tinha sido, tão preocupada com seus problemas pessoais que ela nunca
percebeu o que estava acontecendo ao seu redor. Uma dúzia de pistas vieram-lhe à mente,
frases casualmente ditas por Harald ou Rohanne.
Devemos todos nós, irmãs e irmãos, estar juntos ... À medida que você deixar para trás
sua vida na Torre ... Tudo isso agora é passado...
- Vim para casa apenas para uma visita. - Disse ela. - Eu deveria ter deixado isso bem
claro. Não só isso, eu não fui liberada do meu juramento, e até o meu Guardião conceder
essa liberação, eu não estou tecnicamente livre para aceitar qualquer proposta de
casamento. Há tão poucos telepatas treinados atualmente...
Harald caminhou até sua cadeira e segurou o encosto alto. - Isso cria uma dificuldade. A
oferta foi feita em nome de Ridenow e foi aceita. Estamos comprometidos. Nós não
podemos voltar atrás na nossa palavra ou nos retirarmos com honra.
Dyannis sentiu um súbito arrepio percorrer todo seu corpo. Ela inclinou a cabeça
tentando se acalmar. Abençoada Cassilda, concede-me a graça. Mostre-me o que devo
fazer.
Havia apenas uma resposta possível e Dyannis não queria enfrentá-la.
- Como pode qualquer um de nós saber o que somos capazes de fazer, até que sejamos
postos à prova? - Disse em voz alta.
Harald a olhou com curiosidade, como se ele não esperasse essa resposta.
- Varzil tem tentado me convencer a treinar como um Guardiã já há algum tempo, - ela
disse, - mas eu não me achava digna até Lerrys entrou em crise. Eu não sei que destino os
deuses criaram para mim. Eu só sei que eu não posso descobri-lo, insistindo sobre a minha
própria vontade. Meu talento - e Varzil está certo, eu poderia ser uma Guardiã - leva-me em
uma direção, mas a minha obediência a você e ao bem-estar da nossa família me leva a
outra.
- Varzil...
- Não, por favor, deixe-me terminar, ou eu posso nunca mais encontrar coragem. Toda a
minha vida eu fiz o que eu quis, submetendo-me à disciplina e à autoridade apenas como
um meio para conseguir o que eu queria. Eu pensei que meu talento fosse apenas meu para
usar como eu quisesse. Em vez disso, agora vejo que é o contrário, que eu sou apenas um
veículo para ele que me foi confiado para ajudar a quem precise. Como eu não sei. Eu só sei
que qualquer atitude que eu tomar, ou deixar de tomar, deve ser feita com honra.
Por um longo momento nenhum dos dois disse nada. Ela sentiu o turbilhão de emoções
de Harald, determinação e raiva, medo e amor. Ele era o irmão dela, sangue do seu sangue
e ele acreditava totalmente em suas ações. Ele viu sua terra cercado por inimigos e o
casamento dela como uma esperança para a sua sobrevivência.
- Assim seja. - Disse ele. - Eu sei que isto não é o que escolheria livremente para si
mesma. Eu gostaria que tivéssemos alguma outra escolha.
- Eu também. - Ela respondeu com um pequeno sorriso. - Mas o que está feito, está feito.
Eu não vou trazer desonra para você ou para nossa família. Muitas vezes na minha vida, eu
tenho agido por um impulso egoísta e, em seguida, lamento as consequências . Eu tenho
feito coisas que trouxeram um grande sofrimento e dor para os outros. Eu não vou
conscientemente fazê-lo novamente. Portanto, eu irei com você para Hali, vou pedir a
Raimon para libertar-me do meu juramento, e vou cumprir a promessa que você fizeram
em meu nome.
Capítulo 32
Em outras circunstâncias, Dyannis teria apreciado a viagem para Thendara. As estradas
estavam secas e o tempo claro. Ela montou o mesmo roan que tinha sido sua montaria
favorita em Água Doce, e todo mundo estava de bom humor. Na companhia de seus
parentes, ela não precisava de nenhuma outra serva ou acompanhante, mesmo assim Rella
tinha sido nomeada para esse posto. Dyannis teria preferido Nialla, mas ela estava muito
velha para fazer a viagem.
Para Lerrys, a viagem era claramente uma aventura. Ele tinha ido a Serrais antes, mas
nunca para além de terras Ridenow. Quanto a Harald, ele parecia estar fazendo tudo o que
podia para tornar a viagem agradável. Ele prestou especial atenção à Dyannis e muitas
vezes questionou sobre seu conforto até que ela ficou irritada com ele. Ela suspeitava que
ele estava tentando se livrar da sensação de culpa por suas ações. Ele não viu que, no final,
ela tinha escolhido livremente honrar a obrigação com sua família. Ela entendeu que ele só
estava fazendo o que ele achava que era certo.
Eles encontraram uma caravana de comerciantes da fronteira Marenji que estavam
aproveitando a trégua nas hostilidades para fazer negócios, e partilharam uma refeição
agradável juntos. Harald tinha claramente pensado em onde eles parariam, nas pousadas
mais confortáveis, e tinha enviado mensagens, tanto quanto à Thendara. Dyannis lembrou
como ela e Varzil tinham viajado para Cedestri, como tinham acampado ao longo da
estrada e comido quando havia tempo, como seu trabalho havia sido posto acima de todo o
resto. Ela disse a Harald que ele estava fazendo muito barulho por camas macias e refeições
quentes.
- Acho que devo me acostumar com isso, pois é provável que seja meu futuro uma vez
que eu serei a esposa de Dom Tiavan. - Acrescentou com tristeza.
- Não tenha medo, você nunca se será como Rohanne, - disse ele, - com nada mais
importante para ocupar seu tempo do que se preocupar com vestidos e penteados. Muito
ainda pode acontecer para o melhor.
Agora que ela se reconciliou com sua decisão, Dyannis sentiu um alívio sutil no espírito
quando eles desceram o último trecho suavemente ondulado das colinas Venza para as
Planícies. Atravessaram pastagens onde o sol da tarde iluminava como um véu de mel e o
gado levantavam suas cabeças para piscar sonolentamente para os viajantes, ao lado de
pomares já pesados com maçãs e pêras, e aldeias com chalés confortavelmente feitos com
palha e toras bem presas.
- Eu cresci em uma aldeia como esta. - Rella comentou.
Crianças apontavam para os estranhos, exclamando sobre as cores desconhecidas de
verde e ouro, antes de suas mães os silenciar. - Eles são Ridenow e não são nossos inimigos.
- Uma mulher repreendeu seu filho. - Varzil O Bom, o bredu do Rei, é Ridenow, você não
sabia?
- É do tio Varzil que estão falando. - Disse Lerrys a seu pai. Eles estavam andando perto o
suficiente para Dyannis ouvir.
Dyannis conhecia a história da inimizade entre as duas grandes casas de Ridenow e
Hastur, mas Harald tinha idade suficiente para ter crescido nela. Mesmo muito tempo
depois da paz de Allart Hastur, que tinha posto fim à pior das brigas, as suspeitas entre eles
demoravam a desaparecer. Agora, com a amizade duradoura entre Varzil e o Rei Carolin,
mesmo o povo mais simples sentiam uma nova esperança nessa relação.
Nova esperança, ela pensou, mas não nova paz. Ridenow e Astúrias agora eram amargos
inimigos. Pouco antes de eles deixarem Água Doce, um dos mensageiros de Harald chegou
com uma notícia de que Varzil havia retornado da capital Asturias como representante de
Carolin para convencê-los a assinar o Pacto. Carolin tinha até se oferecido para reconhecer
a afirmação de Dom Rafael, irmão do último rei legítimo, de que ele iria se abster de utilizar
armas laran na guerra.
Então, quer queira ou não, Carolin está envolvido neste conflito. Hastur podia estar unida
com Ridenow contra Asturias, mas Asturias também tinha uniões poderosas. E se formos
arrastados para uma guerra mais intensa, cada lado convidando seus aliados, o mundo
todo ficará em chamas?
E onde ela estaria? Não em um círculo, e não reconstruindo uma Torre ou curando
corpos feridos e mentes destruídas. Estaria trancada, segura e ociosa, talvez grávida do
herdeiro de Dom Tiavan, incapaz de usar os talentos que havia treinado tão duro para se
tornar mestre...
Uma imagem passou por sua mente... Uma Torre iluminada pelo fogo, relâmpagos
descendo do céu, corpos humanos ardendo como tochas vivas... Cheiro de carne queimada
... Gritos...
Ela piscou e a visão desapareceu. À sua frente, além da base das colinas, Thendara
brilhava ao sol da tarde. Lerrys exclamou e apontou, mas ainda estava muito longe de
distinguir quaisquer edifícios individualmente, nem mesmo grande castelo do rei.
Hali ficava além da colina seguinte, a cidade onde ela conheceu o príncipe Carolin, a
Torre que tinha sido sua casa por tanto tempo e o lago sombrio. Raimon esperava por ela
com prazer e Rorie com esperança. Alderic, que também tinha sido seu amigo, tinha
acabado o seu tempo lá e ido se casar com Romilly MacAran, como ela faria em breve com
Dom Tiavan.
Às portas de Thendara os guardas vestidos com o azul e prata dos Hastur’s
educadamente, mas com firmeza, perguntaram sua razão para entrar na cidade. Harald
respondeu: - Nosso assunto é com o rei. Nós temos a licença para viajar aqui e isso é tudo
que você precisa saber.
- Sem ofensa, bom lord, - disse o guarda, sem o menor toque de servilismo - mas é o meu
trabalho me certificar de que ninguém, exceto um amigo de Hastur, passe por aqui.
Um velho guarda que estava de pé a uma certa distância se aproximou para investigar.
Dyannis o reconheceu e viu nos olhos dele que ele também a reconhecera. Ele curvou-se e
depois disse, um pouco bruscamente, ao seu companheiro: - Por acaso não reconheces a
Lady Dyannis de Hali? Pelos deuses homem! O que está pensando... Questionar a leronis da
Torre como se ela fosse ralé?
Os olhos de Harald se arregalaram, mas Dyannis não podia ler sua expressão. Com tantas
pessoas ao redor ela ergueu as barreiras de laran. Lerrys virou-se na sela para olhar para
ela. Os guardas se curvaram enquanto eles passavam.
Dyannis encontrou Thendara muito parecida como a ela se lembrava de quando ela tinha
deixado a metade de um ano atrás. Uma grande cidade murada, com palácios e torres,
praças e mansões. Aqui, o Comyn tinha governado durante incontáveis séculos desde antes
da Era do Caos.
Eles passaram por lojas, pousadas, quadros sobre os paralelepípedos, carrinhos
carregados de tapetes enrolados, carruagens, outros montados em cavalos ou chervines e
liteiras com cortinas meio abertas exalando perfumes caros. O barulho e os aromas se
misturavam ao redor de Dyannis. Eles quase pararam enquanto vários enormes vagões
carregados de móveis moviam-se em uma virada difícil.
Por fim, chegaram às portas do Castelo Hastur, uma fortaleza dentro de uma fortaleza.
Os guardas aqui usavam a insígnia da casa do rei e se qualquer um deles reconheceu
Dyannis, não deram nenhum sinal. Eles procuraram em todos por armas, exceto em
Dyannis. Teria sido impensável para qualquer plebeu colocar as mãos em cima de uma
comynara, mesmo se ela não fosse também uma leronis. Apesar de não ter sido solicitado,
Dyannis entregou a pequena faca que ela carregava em sua bota. Em seguida, ela
acompanhou Harald e Lerrys para dentro, deixando seus servos no pátio para cuidar dos
animais.
Harald havia planejado organizar uma audiência com o Rei Carolin, como convinha a sua
posição como Comyn, e, em seguida, conseguir hospedagem em uma pousada de nível
adequado. Enquanto esperavam no hall de entrada exterior onde outros peticionários
estavam reunidos, um cortesão apareceu e imediatamente os conduziu para dentro da
câmara na presença de Carolin.
Dyannis lembrou de ter sido apresentada ao velho rei Felix em uma câmara semelhante
logo depois que ela tinha chegado em Hali. O príncipe Carolin tinha acabado de voltar de
Arilinn, junto com Varzil e Eduin. Felix Hastur, com mais de um século de idade, ocupava o
trono com a presença solícita de seu sobrinho, Rakhal.
O mundo tinha mudado muito desde a morte do rei Felix. A traição de Rakhal, o exílio de
Carolin, a batalha entre eles, a retomada do trono e muitos outros eventos aconteceram
nesse tempo. Esta câmara era muito parecida com o ar em Hali, com seu rico mobiliário,
servos, pássaros extravagantes, penas em suas vestes dispendiosas e ornamentos de cobre
e ouro.
Pararam onde o cortesão os indicou e anunciou-os. Carolin, sorrindo calorosamente,
indicou para que se aproximassem.
- Dom Harald, tenho o prazer de acolher o irmão do meu amigo Varzil em Thendara. Lady
Dyannis, é bom vê-la novamente.
- O prazer é todo meu, Vossa Majestade. - Respondeu ela.
- E quem é esse belo rapaz? - Carolin perguntou.
Harald inclinou-se com firmeza e dignidade, e puxou Lerrys um pouco para frente. Ele
tinha aguardado por dias para ser apresentado formalmente ao grande rei, e certamente
não desejava ser apresentado com poeira da estrada presa em suas botas.
Lerrys manteve-se firme, embora o seu espanto e alegria fossem óbvios.
Carolin, com sua graciosidade característica, disse: - Vocês três devem jantar conosco
esta noite. Maura terá o prazer de vê-la novamente. Enquanto isso, fiquem à vontade no
Castelo Hastur. Meu coridom vai encontrar câmaras adequadas para vocês, seus servos e
estábulos para os seus animais. Depois de ter resolvido isso, Dom Harald, vou enviar uma
mensagem para Varzil sobre sua chegada. Eu acredito que ele tem esperado ansiosamente
para ver você.
- Para servirte, vai Dom. - Harald respondeu formalmente em casta.
Um homem de meia-idade em um traje de alto escalão, o coridom, deu um passo à
frente e fez uma profunda reverência. Dyannis o reconheceu de anos antes, embora tivesse
um posto muito menor então. Depois de receber as ordens de Carolin, o coridom guiou o
trio para fora da câmara.
- Mestre Ruival, não é? - Dyannis perguntou quando eles seguiram o coridom para baixo
nos longos corredores com tapetes cor de vinho. - Como está sua família?
- Muito bem, vai leronis. Obrigado por seu interesse bondoso.
Ela riu. - A bondade é sua marca porque eu acho que todos nós teríamos passado fome
sem você na primeira temporada do Solstício de Inverno.
- Se vocês puderem me seguir até seus aposentos acredito qua vão acha-los muito
apropriados. - Sem esperar por uma resposta, ele levou-os a um conjunto de quartos
luxuosos.
A mobília era confortável, mas não excessivamente ornamentada, a madeira oleada com
um brilho acetinado, o ar estava perfumado com tigelas de Rosalys e lilias, tapetes grossos
amorteciam seus passos. Várias câmaras estavam ligadas a uma sala de estar central.
Harald e Lerrys foram para à sua.
A indicada para Dyannis foi claramente decorada para uma comynara com servas. Rella
já estava arrumando suas roupas. O rosto da menina estava corado com a excitação. A
viagem para Thendara tinha sido uma aventura além do que ela tinha conhecido em sua
curta vida e ela nunca havia sonhado em se hospedar no castelo real.
Dyannis fechou a porta e abaixou-se para a cadeira almofadada ao lado da lareira. Ele
ainda não tinha sido acesa, mas o quarto estava quente o suficiente. Ela podia ouvir o som
fraco da voz de Harald em sua suíte. Ela não tinha percebido até agora o quão perto ela
estava de deixá-lo para sempre, como ela iria perder seu irmão. O pensamento de ver Varzil
novamente só aumentou sua tristeza, pois ela iria frustrar todas as suas esperanças para
ela. Eles nunca uniriam suas mentes em um círculo novamente.
Dyannis nunca considerou contar a Harald que mudara de ideia. Ela tinha dado sua
palavra, como Ridenow, como comynara, e, por último, como leronis.
Com o coração pesado, ela permitiu que Rella lavasse seu rosto e suas mãos, a vestisse e
arrumasse o cabelo dela para o jantar com o Rei.
Dyannis seguiu Harald e a serva de olhos brilhantes enviada para convocá-los para a ala
real. Na câmara central, uma mesa tinha sido colocada para uma refeição íntima de família.
Castiçais com velas lançavam um brilho cor de mel suave em toda a madeira polida, os
ornamentos de ouro e branco. Maura Hastur Elhalyn, que havia sido leronis de Hali e
Tramontana e agora era a rainha, adiantou-se para cumprimentá-los. Ela não tinha
trabalhado em uma Torre desde seu casamento com Carolin, mas ela ainda se mantinha
com aquela tranquilidade dos leronis. Seu cabelo como chamas brilhantes estava arrumado
de forma simples e vestia suas cores favoritas, verde-mar e cinza.
Como é bom vê-la novamente! Ela falou mentalmente para Dyannis.
Dyannis teve apenas um momento ou dois, enquanto Harald ainda estava se curvando.
Por um momento ela pensou em compartilhar sua dor com Maura, de uma leronis para
outra. Maura, de todas as pessoas presentes, era a única que entenderia sua situação. Mas
se Maura, em seguida, falasse com Carolin em seu nome, ele poderia intervir...
Não, pensou Dyannis, é perigoso pensar nessas coisas. Ela esperava não fraquejar em sua
resolução, que sua aceitação crescesse. Seu destino estava nas mãos dos deuses.
A força de sua resoluçao desapareceu tão rapidamente como tinha chegado, deixando
uma onda de saudade. Abençoada Cassilda, dá-me força!
O que que aflige você, minha querida?
Varzil!
Pela clareza do seu pensamento ele devia estar muito próximo. Ela ficou tão focada em
seu dilema, sentindo-se tão isolada, que ela não percebeu sua aproximação.
No instante seguinte, a porta na extremidade oposta da sala se abriu e Carolin entrou
juntamente com Varzil. Varzil e Harald se cumprimentaram e, divertidamente para todos
que observavam, Varzil comportava-se como um tio coruja observando como Lerrys tinha
crescido.
- Eu vi seu pai uma vez, Dom Harald. - Carolin disse quando se sentaram à mesa e os
servos começaram a trazer a refeição. - Ele estava em Arilinn para a reunião do Conselho
Comyn, enquanto eu era um estudante lá. Você se parece muito com ele.
- Eu não sabia que você o conhecera. - Disse Harald. - Ele nunca falou sobre isso.
- Ele não me conheceu como Carolin Hastur, mas apenas como o mensageiro sem nome
que o perseguiu em seu caminho para Água Doce.
- Nosso pai tinha acabado de se recusar a me deixar estudar na Torre. - Varzil disse
sorrindo. - Tudo mudou quando chegaram notícias de que Harald tinha sido levado por
homens-gato. Nós só estávamos a meio-dia de Arilinn e não havia maneira possível de
conseguir alojamento por cerca de dez dias. Carolin preparou um carro aéreo e, em
seguida, insistiu que o pai me levasse de volta.
- Então, você é responsável por Varzil estar lá para negociar com os homens-gato como
nenhum outro homem poderia ter feito. - Disse Harald, inclinando a cabeça. - Por isso, vai
dom, eu devo minha vida a você também.
- Na época, - disse Carolin, - eu só pensei que alguém com o talento de Varzil devia ter
uma chance na Torre. Eu não acho que qualquer um de nós percebeu o que viria dele no
futuro. O Pacto, a reconstrução de Neskaya...
- Não é sensato reivindicar o crédito pessoal por aquelas coisas que são o produto da
dedicação e boa vontade de muitos homens. - Disse Varzil.
- E das mulheres. - Disse Maura.
- De fato. - Carolin respondeu a ela. - Às vezes eu acho que as mulheres fazem mais para
remodelar nosso mundo do que nós, mas tão habilmente e modestamente que ninguém
percebe.
- Ninguém percebe? - Maura brincou. - Como você pode não perceber Lady Liriel, sua
parenta? Ou a Rainha Taniquel, ou Romilly MacAran, ou mesmo Jandria em seu colete
vermelho, lutando bravamente como qualquer homem?
Varzil tinha voltado para a Torre Hali por uma temporada.
- Pelo menos, - disse ele levemente, - eu acho que sim. Tenho viajado tanto que às vezes
eu acordo e não tem certeza de onde estou.
Carolin riu. - Foi egoísta da minha parte tirá-lo de Neskaya para atuar como meu
emissário para Asturias, mas não havia mais ninguém que pudesse fazer esse trabalho.
- Um assunto difícil. - Varzil respondeu, enquanto os outros o olhavam ansiosos para
ouvir a história. - Foi uma troca de reféns educadamente disfarçada, durante a tentativa de
espalhar o Pacto. Eu disse tentar. Para os lords das Astúrias não haveria nenhuma vantagem
no Pacto. Acho que eles estão com muito medo de desistir de suas armas de laran.
- O que os torna ainda mais perigosos. - Harald disse firmemente. - Eles não vão viver em
paz com seus vizinhos, como o povo de Marenji aprenderam com sua tristeza.
- Eles levaram nosso parente, Dom Eiric, antes que eu pudesse entrevistá-lo, - disse Varzil
- e ele está sob juramento trégua não para atacá-los por mais meio ano, assim algo de bom
pode ainda vir a partir desse trimestre.
- Amigos, - Carolin interrompeu, - não vamos diminuir a alegria de nossa reunião falando
sobre guerra. Há tempo suficiente para tristeza. Aqui nós temos ocasião para celebrar.
Temos convidados de honra e amigos queridos. Eu não acredito que nós quatro não nos
reunimos desde aquele primeiro Solstício de Inverno em Hali.
- Verdade! - Maura riu. – Passou muito tempo... Viramos um grupo selvagem naqueles
dias... Orain estava conosco, e Jandria que ela perfurou sua orelha e se juntou a Irmandade
da Espada. E quanto a seu outro amigo de Arilinn? O que aconteceu com ele, Carlo?
- Oh, você fala de Eduin? - Carolin sacudiu a cabeça ligeiramente. – Faz muito tempo, não
é? Eu ouvi dizer que ele teve um fim muito ruim. Ele não foi mais visto depois da batalha da
Torre Hestral.
Dyannis baixou os olhos e fingiu estar concentrada em sua sopa. Eles cuidadosamente
evitaram mencionar Rakhal ou Lyondri, os primos que haviam usurpado o trono de Carolin
e instituido um reinado de terror em toda parte. Por que eles não esqueceram de Eduin,
também?
- Mas nesta noite, no entanto, que todos os corações sejam felizes. - Carolin levantou a
taça de vinho. - Que venha rapidamente esse tempo quando as pessoas de boa vontade em
todos os lugares terão motivos para comemorar.
- Temos ainda uma outra ocasião para comemorar. - Disse Maura. - Dyannis está
novamente entre nós. O povo em Hali se alegrará com seu retorno.
Dyannis sentiu o sangue do rosto, deixando-a de repente gelada. Ela levantou a voz
acima do murmúrio e do tilintar de taças e facas contra as pelas de porcelana fina. – Vossa
Majestade. - Ela disse formalmente. - Lamento. Isso não é verdade. Na verdade, é o oposto
disso. Eu vim aqui com meu irmão para ser desposada por um parente do primo da esposa
do Rei Carolin, Geremy Hastur. Tudo o que resta é a permissão do meu Guardião e a bênção
de Carolin, como seu senhor.
Ela não podia voltar atrás agora. Mesmo sabendo que ela tinha feito a única coisa
honrosa que podia, Dyannis sentiu dor no coração.
O silêncio caiu como um cobertor grosso sobre a mesa. Varzil ficou imóvel. Então ele
irrompeu em um enorme sorriso. Ao lado dele, Carolin e Maura mal reprimiam seus
próprios sorrisos.
- Hali vai realmente ter motivos para se alegrar. - Disse Harald.
- Por favor, não zombe de mim! - Dyannis disse.
- Você conta a ela, Harald. - Disse Varzil.
Harald virou-se para Dyannis. Seus olhos brilhavam como se o sol tivesse surgido dentro
deles. - Minha querida irmã, você realmente acredita que eu iria deixá-la entrar em um
casamento que não era o seu desejo? Quando eu percebi o que eu tinha feito, enviei uma
mensagem para Varzil no dia seguinte para pedir sua ajuda para encontrar uma maneira de
sair do nosso dilema.
- Mas... Mas foi feito um acordo. - Dyannis gaguejou. – A família de Dom Tiavan... A
aliança...
- O que não é tão importante quanto ter você, uma poderosa leronis, atendendo a todos
em Darkover. - Disse Varzil. - Quanto ao seu pretenso esposo, a própria Rainha Maura
surgiu com uma solução.
Maura descreveu como, enquanto Dyannis estava na estrada para Thendara, ela tinha
arranjado um acordo igualmente vantajoso entre Dom Tiavan Harryl e a irmã mais nova de
Rohanne, que não tinha nada, mas sua doce disposição para recomendar-la. Todo mundo
tinha presumido que, como a última de seis filhas de uma família pobre, mas nobre, sem
dote ou conexões, a irmã iria morrer uma solteirona. Após a sua chegada, Harald tinha
concordado em dar-lhe a renda de um bom trecho de pastagens para a sua vida, com a
própria terra para ir para todas as crianças. Ele tinha certeza de que com tal dote e a
bênção do Rei Carolin, o Harryl teria muita vantagem.
Dyannis ouviu com espanto. Ela se virou para Harald. - Como pode ser isso?
- Você não deseja voltar para a Torre Hali? Se não for assim for, eu dolorosamente não a
compreendi de novo.
- Oh, sim! Mas...
- Breda, você pensa mesmo que seus irmãos não te amam? - Varzil interrompeu. – Que
nós não cuidaríamos de sua felicidade? Como você pode ser útil em qualquer lugar, além de
uma Torre, usando seus talentos? Quando Harald contou o que tinha acontecido, como
poderíamos não fazer tudo ao nosso alcance para ajudá-la?
Por um longo momento, Dyannis não conseguia falar. Sua garganta fechou-se com a
chegada das lágrimas. Apenas o auto-controle alcançado por anos de treinamento a
mantinha em seu assento com a cabeça erguida. Ela respirou fundo, estremecendo. Mesmo
assim, sua voz saiu num sussurro. - Eu não tenho palavras para agradecer a vocês.
- Você pode me agradecer usando seu laran ao máximo. - Disse Varzil. Pode agradecer
sendo quem você é, na verdade: uma Guardiã.
- Nós não agimos apenas para o seu benefício, vai leronis, - disse Carolin, - mas para o
bem de todos. A Torre precisa de você. Você não vai reconsiderar a proposta de Varzil de
você treinar como um Guardiã?
- Você e os deuses têm claramente conspirado contra mim! - Dyannis disse, recuperando
uma pequena medida de compostura. - Eu vim para Thendara, preparada para defender a
honra da minha família e servir a um propósito maior do que meus próprios desejos
pessoais. Na época, eu pensei que meu destino era o casamento que Harald tinha arranjado
para mim. Agora eu vejo outro destino ao seu serviço na Torre Hali, talvez para toda a
Darkover. - Ela se virou para Varzil e sua voz saiu um pouco trêmula. - Se você e Raimon,
que são meus Guardiões, disserem que estou em condições, então eu vou me comprometer
a treinar como uma Guardiã com toda a minha força e vontade.
Por um longo momento, ninguém falou, e ela percebeu tal silêncio representava um
profundo respeito por sua escolha. Então Carolin ergueu a taça para ela. - Este é um
momento que iremos contar aos nossos filhos. - Ele disse solenemente. - O dia em que
Dyannis de Hali se juntou às fileiras das primeiras mulheres Guardiãs.
Dyannis ficou muito mais profundamente tocada pela dignidade silenciosa do momento
do que por quaisquer expressões de alegria.
Após um momento, Carolin virou-se para Lerrys. - E você, chiyu? Ouvi dizer que você irá
passar uma temporada na Torre Hali, e que você vai aprender muito lá. Você vai seguir os
passos de seu tio e tia, e se tornar um laranzu?
O menino abaixou a cabeça. - Perdão, vai dom, mas meu lugar é em Água Doce. Eu vou
para a Torre Hali, se for o desejo do meu pai, mas eu vou estar contando os dias até que eu
volte para casa.
- É bom. - Disse Carolin. - Pois sem homens para lavrar a terra e aumentar as famílias
com belos filhos, não haveria ninguém para as Torres para servirem.
Ele então convocou todos para um outro brinde e Dyannis juntou-se a esse com todo o
coração.
Capítulo 33
O jantar foi celebrado com bom humor e expressões de comunhão. Dyannis disse pouco,
pois ela estava emocionalmente esgotada com a reversão repentina de sua sorte. Enquanto
se dirigiam de volta para seus quartos, no entanto, ela reuniu toda a sua força e pediu para
conversar com Harald. Ela ainda não entendia por que ele tinha mudado seu pensamento e
feito tanto para preservar sua liberdade. Embora já fosse tarde, ele dispensou seus servos e
ficaram sozinhos na câmara. Uma pequena lareira foi acesa e Dyannis foi até ela, embora
não sentisse frio.
- Eu vi percebi não importava o quão vantajoso a aliança fosse, o custo seria muito maior.
- Disse ele. - No começo, eu achei que você tinha desistido de seu lugar em uma Torre, que
não importava o que você fez, não queria mais usar o seu laran. Mas então, quando eu
verdadeiramente entendi...
Ele foi até ela e tomou-lhe as mãos. Dyannis sentiu a intenção no seu toque. Ele queria
que ela lesse sua mente. Entre a luz do fogo e a fileira de velas acima, as feições dele
tinham uma semelhança notável com o seu pai. Mas Dom Felix Ridenow nunca teria falado
com ela como Harald fez agora.
- Eu dentre todos os homens sei o quão importante, e o quão raro e precioso, o laran é
para o nosso mundo e as pessoas. - Sua voz era baixa e rouca. Em sua mente, ela viu as
imagens, em camadas umas sobre as outras...
Luz lunar em espadas, o fedor de mofo dos homens-gatos, corpos peludos retorcendo e
cortando, fogo perfurando sua lateral, o jorro de sangue quente... A fuga desesperada
através das colinas, entrando de cabeça em uma caverna, a queda em uma série de túneis,
a tocha apagando, calafrios de febre fazendo seu corpo estremecer, luzes piscando em sua
mente, uma ferida ficando pior...
- HARALD! A voz mental de Varzil chamando-o de volta do delírio, tochas à distância,
homens-gato, uma espada em sua garganta...
- Sem esperança, sem esperança, dar fim...
Varzil dando um passo à frente das equipes de resgate, os olhos brilhando como se
iluminados por dentro, olhando para o líder dos homens-gato, falando sem palavras,
estendendo a mão para a mente aterrorizada, desumana...
A espada caindo, os homens-gato indo para a escuridão...
O que aconteceu depois era parte conhecida da história da família. Harald havia
convencido Dom Felix a permitir que Varzil para voltasse para Arilinn para treinar seu
notável laran.
- Ele fez o que nenhum de nós imaginou ser possível. - Harald tinha argumentado. - Ele
fez uma barganha com os homens-gato. Certamente um dom como este deve ser
desenvolvido em sua plenitude. Fazer qualquer coisa menos seria jogá-lo de volta para os
dentes dos deuses que o concedeu em sinal de pura ingratidão.
Agora Harald olhava para Dyannis com uma expressão de espanto e determinação. E se
Varzil tivesse aceitado o veredito de nosso pai, se ele aceitasse que ele não tinha laran
suficiente? E se ele tivesse desistido, ido junto para o destino que se esperava dele? Como eu
agora poderia pedir o mesmo a você, Dyannis?
Um silêncio caiu sobre a sala, quebrado apenas pela queda suave de brasas dentro do
fogo.
- Eu nunca poderia pedir isso a você. - Ele repetiu em voz alta.
Ela inclinou a cabeça emocionada.
- Eu não posso dizer que tenho muita fé em mulheres servindi como Guardiãs, mesmo
sendo uma ideia de Varzil. Mas uma coisa eu sei: Você deve retornar para Hali qualquer que
seja o destino que espera por você lá. Forçá-la a um casamento, não importa o quão
vantajoso fosse para nossa família, seria tão errado e, suspeito eu, tão perigoso como um
dragão enviado para assar a minha carne.
Harald partiu dois dias depois. Mesmo seu pajem, Black Eiric, não podia ficar longe de
Água Doce, não com o outono se aproximando rapidamente. Lerrys foi diretamente para
Hali. Dyannis estava pronta para seguir seu sobrinho. Ela estava farta da vida na corte em
Thendara. O castelo tinha sido a sede de muitas gerações de reis Hastur’s e o peso de
séculos de elegância e riqueza ostensiva abateu-se sobre ela. Onde quer que olhasse,
veludos e cetins cravejado de pedras preciosas competiam com laços de prata ou
ornamentos de cobre brilhante. Havia perfume sempre no ar como um miasma. Depois de
uma hora que havia chegado, parecia que todo mundo sabia quem ela era, de quem ela era
irmã. Depois de um dia da sua chegada, Thendara estava empolvorosa com a notícia da
presença de Varzil.
- Como Carolin aguenta de estar nesse meio e se manter o mesmo? - Ela perguntou a
Varzil enquanto cavalgavam ao longo da estrada para Hali.
Eles haviam saído no início da manhã bem cedo. O tilintar do aneis das esporas soavam
no ar húmido e orvalhado quando os cavalos desviavam um pouco a direção.
- Talvez, se ele não fosse quem ele é, seria difícil permanecer inalterado. - Disse Varzil. -
Esses cortesãos fidalgos podem parecer como os piores bajuladores, mas eles exercem
influência além da sua esfera pessoal. É em suas terras e inquilinos que os exércitos são
criados e alimentados, que grãos e carnes são criados e enviados para as cidades, além dos
impostos para o tesouro, é claro. Carolin concede-lhes o prestígio do tribunal, mas ele tem
o cuidado de ser imparcial em seus favores. Assim, ele os mantém lutando um contra o
outro, cada um ansioso para ganhar alguma pequena vantagem.
Dyannis se lembrava de ter vindo para o tribunal em Hali em seu primeiro Festival do
Solstício de Inverno e como ela tinha ficado admirada pelas damas e cortesãos em seus
trajes de férias. Em comparação com o simples conforto de Água Doce e a austeridade da
Torre, o palácio parecia um lindo sonho. Ela se perguntou se o lugar em si não tinha
imbuído Eduin com um glamour romântico. Afinal, ela tinha se jogado de cabeça em seus
braços contra todas as regras do decoro.
À medida que ia passando, Dyannis e Varzil desfrutavam de alguma privacidade com os
dois guardas que Carolin tinha enviado para acompanha-los ficando a alguma distância a
frente, e os animais de carga e servos se arrastavam mais atrás. Mesmo sabendo que ela
deveria aproveitar a oportunidade, ela hesitou.
- O que é, chiya? - Ele perguntou delicadamente.
Ela respirou fundo. - Eu tinha tanta certeza de que você tinha se enganado sobre Eduin
ter desempenhado um papel na morte de Felicia e os ataques à Carolin. Tentei me lembrar
de cada pedaço de cada conversa, cada nuance, apenas para provar que você estava
errado.
Varzil virou-se ligeiramente na sela. Seu corpo esbelto moveu-se facilmente com o passo
do cavalo. Com os olhos sombreados e o rosto impassível, ele esperou que ela continuasse.
Quando ela mudou para o discurso mental, ela mostrou como havia revelado a
identidade de Felicia a Eduin.
Eu não sei o que eu estava pensando, ela concluiu. Se você quisesse me contar quem ela
era, certamente você teria dito alguma coisa. Foi errado de minha parte escutar seus
pensamentos, mas mais errado ainda foi eu revelar isso. Você estava muito apaixonado por
ela.
- Varzil. - Ela o encarou diretamente. - Eu daria qualquer coisa para desdizer essas
palavras descuidadas. Se, sabendo agora o que eu fiz, sentir que sou incapaz de trabalhar
como uma Guardiã ou em qualquer outra posição em uma Torre, eu vou aceitar sua
decisão.
Ele olhava para a frente para a estrada sombreada por uma linha de salgueiros. Ela não
podia ler um único fragmento de emoção dele. Por fim, ele quebrou o silêncio.
- Uma coisa é certa. Essa Dyannis que falava de forma impetuosa, que agia de forma
precipitada, nunca poderia ter se comportado com tanta dignidade e contenção como você
fez ao aceitar suas obrigações, em primeiro lugar com sua família, depois com o futuro das
Torres e a própria Darkover. Sua aptidão como Guardiã é demonstrada por suas ações no
presente, não por um erro tolo no passado.
Mesmo com a compaixão de seu irmão, Dyannis não podia deixar o assunto passar.
- No entanto, ainda sou responsável por esses 'erros tolos' quando resultam em danos
terríveis aos outros, não é? Eu ainda sou culpado de uma ação que acabou levando a... a
morte da mulher que você amava, uma companheira leronis, uma pessoa que tinha tanto
direito de cumprir sua missão quanto eu. Como posso então aspirar tornar-me o que ela foi,
uma mulher Guardiã, com seu sangue em minhas mãos?
- Não vamos falar de culpa e castigo, - ele respondeu-a gentilmente, - ou, pelo menos,
não em seu caso. Será que você colocu uma faca na garganta de Eduin e o forçou a matar
Felicia ou a comandar o ataque de Hali sobre Hestral? Você não está sendo sensata ao se
responsabilizar por tais ações.
- Falei sem cuidado, sem me importar com as consequências. - Dyannis disse
miseravelmente. - Se eu não a tivesse traído, Eduin poderia nunca ter descoberto quem era
ela.
- Você não sabe disso. Ele era engenhoso e tenaz. Eu acredito que ele teria descoberto
eventualmente. Além disso, como você poderia saber que ele não era confiável? Vocês
tinham sido amantes uma vez e ele ainda era um laranzu. Não, vamos deixá-lo sozinho com
a responsabilidade por aquilo que ele escolheu fazer. Você tem compensado muito mais do
que qualquer dano causado.
Por um longo tempo, eles montaram em silêncio. A terra começou a se elevar, mas não
era íngreme. Orvalho levantou-se da terra quando o grande Sol Sangrento ergueu-se mais
alto. Pássaros cantavam nas sebes e depois ficaram em silêncio, apenas para começar de
novamente.
A vida é assim, Dyannis pensou, cheia de começos e finais. Uma alegria se ergueu dentro
dela, bem como a emoção pela nova vida que a esperava.
Havia um aspecto da morte de Felicia que ainda corroía sua mente. Bem antes de chegar
à Torre, ela falou disso com Varzil.
- Por que Eduin quer prejudicar tanto Felicia e Carolin? Carolin certamente deve ter feito
inimigos, primeiro como príncipe e depois como rei. Talvez ele tenha ferido Eduin de
alguma forma e ele fingiu ser seu amigo até que ele pudesse contra-atacar.
- Já me perguntei isso também. - Respondeu Varzil. - Na época, eu acreditava que Eduin
tinha inveja de minha amizade com Carolin, mas ele pode me odiar também por ter ficado
no caminho entre ele e sua vítima."
- Isso não explica o ataque de Eduin sobre Felicia. - Dyannis apontou.
Varzil suspirou, um sussurro quase inaudível de ar. - Antes de Felicia vir para Arilinn, ela e
Eduin nunca tinham se encontrado. Estou certo disso. Mais do que isso, eu não posso
acreditar que ele a odiava pessoalmente.
Dyannis franziu a testa. - Não faz sentido. Felicia e Carolin vieram de diferentes ramos da
família Hastur, e, tanto quanto eu sei, agora não existe nenhum remanescente da linhagem
da Rainha Taniquel. Por isso, a coroa passou para Felix de Carcosa, quando o rei Rafael II
morreu. Você vê. - Ela acrescentou com um sorriso. - Eu tenho estudado história. Se você
está certo, Eduin matou Felicia não por causa de qualquer coisa que ela mesma tenha feito,
mas porque ela era a última criança restante da Rainha Taniquel.
- Há isso também. - Varzil continuou. - Enquanto eu seguia o traço mental do assassino
no Lago Azul eu peguei um vislumbre de um castelo cujas bandeiras tinham um diamante
branco e preto.
Dyannis franziu a testa. - Eu não estou familiarizada com isso.
- Isso é porque ele não existe mais. Pertenceu à família Deslucido.
- Deslucido das baladas? - Lembrou-se das histórias de sua infância, embora alguns
harpistas ainda cantassem essas canções atualmente. O Rei Damian Deslucido tinha
invadido seus vizinhos menores, incluindo Acosta, casa da famosa Rainha Taniquel. Ela
fugiu do abate e, com a ajuda de seu tio, o Rei Rafael Hastur II, voltou com um exército em
suas costas. - Como isso poderia ser a conexão? Foi a uma geração atrás.
- Você de todas as pessoas, uma Ridenow entre os Hasturs, deveria saber que o ódio e a
suspeita não se resolvem do dia para a noite.
- O que quero dizer é que a família Deslucido está extinta. Não deve haver ninguém para
continuar a disputa. - Um pensamento a fez estremecer. – Eduin poderia ter alguma ligação
com eles?
Eduin nunca tinha falado de sua infância ou suas relações familiares. Dyannis supunha
que ele tinha vergonha por vir de família pobre ou ignóbil, e ela estava muito preso no
romance com ele na época para pensar nisso.
- Eu acredito que sim. - Varzil disse. - Embora nós podemos nunca saber que ligação era
essa. Se Eduin estava envolvido nos ataques a Carolin, incluindo a tentativa no Lago Azul, o
motivo era algo além de um ódio pessoal ou ressentimento. A palavra exata que o assassino
tinha em mente quando morreu era vingança.
Varzil e Dyannis ficou brevemente na cidade de Hali, no antigo palácio dos Hasturs. Eles
desejavam passar por ele e seguir logo para a Torre, mas os assuntos de Varzil os atrasou.
Quando Dyannis teve um pouco de tempo livre, ela entrou na biblioteca do palácio para
ver o que podia descobrir sobre a guerra com a família Deslucido. Ela esperava encontrar
algum registro dos seguidores do Rei Damian que haviam sobrevivido, talvez até mesmo o
nome MacEarn. Se tal registro existia devia estar descatalogado e esquecido, pois ela nunca
encontrou qualquer vestígio dele. Na verdade, toda a vitória parecia envolta em relatos tão
vagos, floridos e de linguagem poética, que ela tinha certeza de que o cronista nunca tinha
visto a batalha com seus próprios olhos. Metade do que ela leu pareciam ser descrições
tradicionais que poderiam ser aplicadas a quase qualquer batalha, e a outra metade
estavam preenchidos com detalhes estranhamente incompletos. Assim como nos arquivos
de Hali, esses registros pareciam ser uma tentativa deliberada de enganar por omissão.
O que, Dyannis se perguntava, eles estão tentando esconder?
Dyannis decidiu fazer uma pequena investigação por conta própria. Talvez houvesse
algum cortesão idoso que pudesse se lembrar do Rei Rafael ou da própria Rainha Taniquel.
Se ela pudesse encontrar essa pessoa, ela poderia descobrir alguma ligação, alguma queixa
esquecido nunca foi lembrada nas crônicas.
Lembrou-se do palácio de sua primeira visita, no Festival do Solstício de Inverno quando
ela tinha conhecido Eduin. Embora ainda em uso, os quartos pareciam gastos em torno das
bordas. A madeira tinha perdido o brilho sem o rígido polimento diário, e as tapeçarias que
suavizaram as paredes de pedra agora estavam empoeiradas com os anos. Ainda assim, ela
encontrou seus aposentos confortáveis, a lareira da noite forte, o colchão de penas macio,
e a comida bem preparada.
Enquanto Varzil estava em alguma missão para o Rei Carolin, Dyannis fez seus inquéritos.
A maioria dos cortesãos mais velhos há muito haviam desaparecido, e os poucos que
permaneceram viviam em Thendara. Lady Bronwyn já era muito idosa no primeiro Festival
do Solstício do Inverno que Dyannis compareceu e ela já imaginava ouvir que a velha
senhora tinha morrido.
- Oh, não, vai leronis. - Disse a empregada, fazendo uma reverência pela quarta ou quinta
vez. - Embora agora os únicos que a vêem é seu próprio companheiro pessoal e, por vezes,
Dom Raimon, quando ele vem da Torre. Ela não tem outros visitantes e não acho que ela
tenha deixado seus próprios aposentes nestes cinco anos.
Dyannis enviou uma mensagem para saber se a senhora poderia se encontrar com ela.
Poucas horas depois, ela recebeu um convite. A mensagem a guiou para a antiga ala real.
Os aposentos de Lady Bronwyn deviam ter sido construídos para alguma princesa ainda
criança, pois a entrada, esculpida como duas árvores em arco, era estreita e quase
demasiadamente pequena para uma mulher normal.
Dyannis levantou o trinco e entrou. A sala octogonal lindamente proporcional foi era
ladeada por janelas e assentos profundamente almofadadas. Uma pequena lareira ardia no
mármore, com donzelas do mar esculpidas à direita e pérolas reais inseridas em suas longas
madeixas entrelaçadas. Linhas finas de pedra azul translúcido erguiam-se para unir-se em
um padrão de estrela no teto.
Uma mulher idosa estava em um divã ao lado da lareira, sua forma estava escondida sob
os cobertores de renda. A visão parecia um tampão de gaze emoldurando um rosto branco
como a neve. Ela levantou uma mão, os dedos grandes retorcidos pela idade, e acenou para
Dyannis se aproximar.
Dyannis sentia como se devesse fazer uma reverência, assim como a empregada tinha
feito. Então ela sentiu a presença do espírito da mulher mais velha, uma onda de sinos
prateados.
Perdoe-me, eu não tinha percebido que você, também, é uma leronis.
- Oh, sim, embora o meu poder seja agora apenas uma sombra do que já foi. - A voz era
fina e incerta, as palavras quebradas por pausas para respirar. - Eu não posso falar para a
sua mente agora, por isso, é você que deve me perdoar.
Dyannis ocupou um estrado que lhe foi oferecido. Este fim, a cara da idosa como uma
flor murcha, a pele plissada em uma centena de pequenas rugas, cada uma refletindo um
momento de sua vida, de dor, de alegria, de força a causavam admiração. Logo elas
estavam conversando levemente.
- Então você é a irmã da jovem Varzil, que era o amor de Felicia. Menino muito
interessante esse Varzil. Ele e Carlo estão nessa idade, você sabe, quando eles pensam que
podem mudar o mundo inteiro. - Lady Bronwyn com certeza tinha visto várias gerações de
jovens cheios de idealismo.
- Conte-me sobre Felicia. – Dyannis pediu. - Eu acredito que você sabia que sua mãe era a
Rainha Taniquel.
- Tani? Você me faz lembrar ela. Não é o cabelo, o dela era negro, você sabe, mas algo na
maneira como você se porta. Não, foi Coryn melhor dizendo, o conheci quando ele era um
menino. Eu estava escoltando Liane Storn para Tramontana... Que estava ali antes de ser
destruída... E eu me lembro essa clareza de voz. - Ela parou um pouco. - Essa força. Eu
pensei que metade das Hellers devia ter acordado com seu chamado. - Lady Bronwyn ficou
em silêncio e seu olhar ficou ofuscado, como os olhos voltados para dentro, para um
passado que só ela podia ver.
Gentilmente, Dyannis disse: - Coryn ajudou Taniquel a derrotar o Rei Deslucido. Você se
lembra disso?
- Lembro-me de Deslucido e as coisas terríveis que ele fez, colocando uma Torre contra a
outra. - Um arrepio percorreu o corpo da velha visivelmente. - Assim, muitos talentosos
leronyn perderam suas vidas e alguns viveram aleijados. Bernardo, a quem eu amava como
um irmão, nunca conseguiu ficar bom novamente depois disso. Seu coração estava muito
danificado, assim os curandeiros disseram, mas acho que a pior dor não era no corpo, mas
sim no espírito.
- Poderia qualquer membro da família Deslucido ter sobrevivido? - Dyannis perguntou,
inclinando-se para a frente.
- Eu não sei. Rafael enforcou ambos, pai e filho, após a última batalha. Estranho porque
ele não era de tomar uma medida tão dura, e muito menos quando a vitória já era dele,
mas ele deve ter tido suas razões. Os homens nem sempre se comportam honradamente
na batalha. Ainda assim, o que precisava ser conquistado? O exército de Deslucido foi
destruído. Rafael nunca tinha sido cruel e nunca foi novamente. Fiquei triste quando ele
morreu.
- Eu pensei que o rei Damian tinha um irmão. Um laranzu que comandou Tramontana na
batalha que destruiu as Torres.
- Ah, sim. Rumail. Ele era nedestro, mas nunca teve qualquer ambição para o trono pelo
que eu ouvi falar. Tinha uma reputação de ser um tipo ruim. Neskaya o expulsou por uso
antiético de laran e receio que ele nunca esqueceu o insulto.
- O que aconteceu com ele?
- Oh, ele certamente pereceu quando Tramontana foi queimada, pois ele nunca mais foi
visto. - A cabeça de Lady Bronwyn balaçou em concordância e o companheiro que tinha
parado na parte de trás deu um passo à frente.
- Ela deve descansar agora.
Dyannis pediu desculpas e retirou-se, não tento certeza se ela tinha descoberto algo de
valor ou não. Embora parecesse pouco provável, a própria família de Eduin devia ter sido
uma das poucas que permaneceram fiéis aos Deslucidos. Ela estava preocupada com o
relato de Rafael Hastur e a lendária Taniquel como vingativos, matando um impotente e
derrotado adversário. O que quer que Damian tivesse feito, ele já havia sido retirado do
poder. Ele poderia ter sido exilado e seu filho mantido como refém, como era a prática
habitual.
Por que matar os dois? O que era tão mau ou tão perigoso que ambos devessem morrer?
Ou Rafael e sua sobrinha teriam agido por maldade e exercido o poder já que não havia
ninguém para se opor a eles?
Dyannis não tinha dado muita atenção ao seu retorno à Torre Hali, até que seu desejo de
assumir o trabalho que ela amava entre as pessoas que tinham sido seus amigos mais
queridos surgiu com maior força dentro dela. Desde que ela tinha chegado a Hali como uma
mulher muito jovem, ela nunca tinha ficado afastada por tanto tempo. A Torre e sua
comunidade tinha permanecido inalterada em sua mente, enquanto sua própria vida tinha
mudado tanto. Rapidamente ela percebeu que sua própria ausência tinha criado uma
mudança. Ela foi recebida com calor, mas seu lugar no círculo tinha sido tomado por
outros, seus aposentos haviam sido ocupados por outra pessoa. As relações haviam
mudado, o trabalho tinha sido concluído, as mensagens tinham sido enviadas e recebidas.
Quando Rorie comentou sobre como ela tinha mudado, ela deu de ombros. Ele quis dizer
que ela estava fria e distante. Ela evitou suas propostas, pois não queria causar dor a ele.
Ao vê-lo, ouvir sua voz, ela se sentia mais confusa do que antes e ela não podia viver com a
distração de tais emoções, não quando toda a sua concentração devia ser focada em sua
formação.
Noite após noite, Dyannis trabalhou dentro do círculo, aprendendo as habilidades de um
sub-Guardião. Não era diferente do papel que ela tinha feito na reconstrução dos muros da
Torre Cedestri, só que desta vez ela estava completamente ciente do que ela fazia. Quando
não estava trabalhando no círculo, ela estudava com Raimon ou Varzil. Ela caía na cama
exausto demais para fazer qualquer outra coisa. Mesmo se ela quisesse um relacionamento
com Rorie, ela não tinha nem o tempo nem a energia.
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LIVRO V

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Capítulo 34
A comitiva de Lord Brynon Aillard desceu as encostas suaves de Kirella no coração das
planícies Valeron. Ventos desciam sobre eles, afiados com a poeira que vinha dos vastos
campos de trigo e grama alta. Quando pararam para descansar seus cavalos, Eduin em pé
nos estribos, olhou em todas as direções admirando aquela visão. Valeron era diferente de
qualquer lugar que ele já tinha visto. Sem montanhas ou florestas para delinear o horizonte,
o céu parecia enorme. Ele sentiu como se ele estivesse suspenso entre o céu e a terra.
Às vezes, eles viam um relâmpago seco na distância. O vento mudou, tendo o aroma acre
do ozônio. Eduin olhou para o norte, em direção das distantes Hellers e Aldaran, cujos
membros tinham a fama de invocar tempestades mesmo em um céu claro. Lembrou-se do
tempo estranho que tinha afligido Thendara nos dias antes do motim no Lago Hali.
Parece que foi há muito tempo, pensou ele, e tantas coisas aconteceram desde então.
Aqui, na grande planície de Valeron a natureza dominava superando as preocupações
humanas mesquinhas.
Ele sentiu uma mudança no ar alguns dias antes da cidade de Valeron ficar à vista. A
altura e a textura das gramas mudaram e ficaram mais verdes do que o cinzento e às vezes
amarelado das planícies. Os cavalos pareciam animados e aumentaram seu ritmo. O ar
parecia mais fresco, mais húmido, repleto com os aromas de coisas que cresciam ali e ele
não conhecia, mas que provocavam-lhe uma ressonância sutil.
Eduin avistou pela primeira vez a cidade de Valeron no pôr do sol, quando, por um
momento, a luz do grande Sol Sangrento banhou suas torres. No horizonte distante, na
curva do rio, a cidade brilhava como cobre e latão, prata e aço. Eduin prendeu a respiração,
lutando contra a luminosidade que fazia seus olhos doerem ao olhar diretamente para ele.
Saravio, cavalgando logo atrás dele disse algo, mas Eduin mal ouviu suas palavras.
Quando ele olhou de volta para a cidade, a luz tinha mudado, deixando apenas pedras
comuns ao sol poente.
No dia seguinte, eles alcançaram as muralhas da cidade e o Castelo Aillard. Atrás deles
estavam as Planícies e diante deles uma extensão de pântanos cortados pelo rio Valeron.
Passaram por acampamentos do exército e um campo onde três carros aéreos estavam
parados, suas laterais estavam marcadas com linhas de fumaça gordurosa.
Nos portões os guardas exigiram seus nomes e ordenou-lhes que esperassem enquanto
informavam de sua presença no castelo. Eles seguiram por uma cidade agitada com os
preparativos para o Festival de Verão. Guirlandas e pendões brilhantes, muitos nas cores
dos Aillards, escarlate e cinza, pendiam de cada porta e varanda. Vendedores ambulantes e
comerciantes se aglomeravam nas ruas vendendo flores, frutas e as cestas alegremente
decoradas que eram os presentes tradicionais para parentes do sexo feminino.
O castelo estava no lugar mais alto da região. Suas muralhas, também enfeitadas com
elegância para o feriado, tinha uma visão de todas as direções. Uma torre, em particular, se
erguia acima das outras, separada da estrutura principal. Eduin soube por um dos guardas
de Kirella que era a casa de uma pequena Torre.
Eduin baixou as barreiras de laran um pouco para captar qualquer atividade mental na
Torre. Ele sentiu várias treliças de matriz do tipo usadas para carregar baterias para os
carros aéreos, aparelho para fazer fogo aderente , bem como o tipo mais comum de
bombas incendiárias, e telas das Hellers para enviar mensagens para outras Torres. Ele
sentiu que as poucas mentes estavam em sono profundo ou então tão focadas em outros
assuntos como não prestara atenção à sua presença. Os governantes de Valeron estavam
claramente confiantes de sua invulnerabilidade a ataques. Ele devia persuadi-los de que
eles tinham um poderoso inimigo.
Uma vez no interior das muralhas do castelo, um mordomo saiu para dar orientações
sobre o acondicionamento de bagagens, a alimentação e os cuidados com seus animais, o
alojamento, tanto para a família nobre e como para seus servos. Os guardas de Kirella
foram encaminhados para o quartel em outra área da cidade, todos, exceto aqueles poucos
que Lord Brynon mantinha para seu uso pessoal.
- Vamos encontrar a Lady hoje à noite. - Lord Brynon disse a Eduin pouco antes de se
separarem. - Esteja pronto para vir comigo. Mesmo que seja o Festival do Verão, temos
assuntos sérios para discutir.
Eduin assentiu, satisfeito que Lord Brynon estava preparado para introduzir a questão da
conspiração de Varzil na primeira oportunidade. Com o poder de Valeron visando a sua
destruição, nem mesmo o lendário Guardião de Neskaya poderia escapar. Cedo ou tarde,
Varzil teria que deixar sua fortaleza na Torre, talvez em alguma missão para Carolin.
E então... Então vou ter minha chance e, com a sua morte, Carolin Hastur vai cair. O
fantasma de meu pai vai ser apaziguado e eu vou finalmente ser livre.
Os Aillards eram um clã matriarcal e a Rainha Julianna tinha plenos direitos no Conselho
Comyn, tanto quanto qualquer Lord. Eduin tinha conhecido grandes damas antes, embora a
maioria delas devessem sua posição à parentes importantes. Em seus últimos anos em
Arilinn, e depois em Hali e Hestral, ele tinha sido apresentado a Lady Liriel Hastur e Maura
Elhalyn, que era agora era a Rainha e esposa Carolin. A câmara de audiência era pequena
com mobiliário áustero. O estilo era desconhecido, as cadeiras de madeiras cinzas ou
douradas, simplesmente eram decoradas com linhas crescentes e puras, as almofadas e
tapeçarias tinham cores pálidas contrastando com a escura e rica ornamentação do tribunal
em Hali.
Esta noite apenas alguns conselheiros estavam presentes. Eduin sentiu o laran treinado
de um deles, uma leronis, uma mulher que parecia ser apenas alguns anos mais velha do
que Romilla. Mantinha-se além dos outros, com a serenidade e um ar um pouco distraído o
fez lembrar de Maura Elhalyn quando a conheceu.
Eduin voltou sua atenção para Julianna Aillard. Com seu corpo forte, vestido preto sem
adornos e a boca esticada, ela tinha pouco da suavidade de uma senhora da corte. O cabelo
castanho fosco com mechas brancas estava enrolado baixo em seu pescoço em um estilo
antiquado e grave. Seu trono era alto e de espaldar também alto, esculpido em madeira
polida com um brilho levemente iridescente. Atrás dela e a um lado estava uma mulher
mais jovem, semelhante à ela, mas com o brilho intocado de seu cabelo e a figura forte e
fina como o aço.
Lord Brynon adiantou-se quando o arauto anunciou ele, mantendo uma distância
respeitosa ante a Rainha Julianna, e se curvou. Ela o observou com sua expressão ilegível.
Então fez um gesto para que ele se levantasse e, vindo para a frente, estendeu as mãos em
saudação de um parente.
- Lamento que você não estar conosco no Solstício de Inverno passado, como tem sido
nosso costume. - Disse Julianna. Sua voz tinha uma qualidade rouca estranha, menor em
altura do que a maioria das mulheres. - A alegria diminuiu em um festival e foi aumentada
em outro. Seja muito bem-vindo à Valeron.
- Estou honrado por estar aqui, parenta, - respondeu ele, - mas a nossa alegria deve ser
nublada com a consideração dos acontecimentos recentes. Eu vim não só para comemorar,
mas para me aconselhar com você.
- Se você se refere aos eventos terríveis em Isoldir, tenha certeza de que, no momento
adequado, vamos falar deles. Por esta noite, no entanto, sintam-se à vontade. - A Senhora
de Valeron mudou seu foco do único homem de pé diante dela para observar todo o seu
séquito. - Que esta seja uma temporada para iluminar todos os seus corações. Vamos
festejar juntos e, no devido tempo, ouvirei as suas preocupações.
Lord Brynon curvou-se e preparou-se para se retirar. Ele claramente tinha sido
dispensado e deveria esperar o chamado da Rainha. Qualquer oposição poderia destruir
sua boa recepção.
Os dias seguintes seguiram com os preparativos para as festividades, Romilla
descansando com suas damas e os cuidados com os homens e animais. Embora Eduin se
irritasse com a demora, ele estava impotente e não tinha apressar uma audiência com a
rainha.
Eduin usou o tempo para se familiarizar com os servos domésticos. Ele não tinha
percebido antes as vantagens de uma posição inferior. Criados e subordinados estavam
dispostos a falar com ele com uma franqueza que eles nunca teriam mostrado a qualquer
um cortesão ou um laranzu.
A experiência de Eduin trabalhando nos estábulos em Thendara deu-lhe uma facilidade
de contato com aqueles que atendiam os cavalos. Ele logo encontrou um trabalhador
ansioso para notícias e troca de fofocas.
- Pouco mais de um ano atrás, - disse o homem, inclinando-se sobre o seu tridente
enquanto fazia uma pausa na limpeza das tendas para a palafrém1 de Romilla, - o povo em
Isoldir enviou um carro aéreo para nós, transportando todos os tipos de feitiçaria vis. A
relação entre nós não era exatamente amigável, mas não havia nenhuma necessidade de
fazer uma coisa dessas. Um bando de covardes sorrateiros! Porém, a própria sorte de
Zandru estava conosco. A Rainha enviou a nossos carros aéreos com bombas incendiárias
comuns e atacou seus carros aéreos. Eles ficaram em pedaços, espalhados por léguas ao
redor deles e todo o seu veneno com ele.
Eduin concordou que era de fato um golpe de sorte.
- Então o que será feito? Deixaremos que tenham outra chance de nos atacar? - O
cavalariço sacudiu a cabeça, cravando os dentes do garfo profundamente no feno para
dispersá-lo sobre o piso de madeira.
- Como podemos aceitar isso? - Eduin disse, dando ênfase em seu sotaque. - Deixaremos
um ninho de formigas-escorpião crescer esperando que eles atinjam nosso lar?

1
Tipo de cavalo manso usado para os nobres montarem, especialmente as senhoras. (N.T.)
- É exatamente o que eu penso. Mas a rainha não deseja atacar. Ela enviou bombas
incendiárias para a Torre deles para que eles não pudessem fazer armas mais terríveis e
isso está certo. Mas ela deixou o castelo, aldeias e o resto em pé.
- Por que ela se conteve? Ela não teme que Isoldir se erga contra ela mais uma vez?
- Ah, mas qualquer um que acha isso é porque não conhece a nossa Rainha. Ela é
resistente como sal. Além disso, há muitos homens, tanto aqui como lá, que preferem
passar as noites dormindo em sua própria casa com sua família do que ser carne para
kyorebni no inverno. - O homem cuspiu no canto e se inclinou mais uma vez para seu
trabalho.
Naquela mesma noite, Julianna Aillard realizou um conselho informal com Lord Brynon,
Lady Romilla e seus conselheiros de maior confiança. Seu irmão, Marzan de Valeron,
participou junto com dois de seus tenentes. Eles se sentaram em torno de uma mesa em
uma câmara que era claramente um escritório de trabalho, talvez o mesmo a partir do qual
o contra-ataque sobre Isoldir havia sido planejado. A filha da rainha, Marelie, ficou atrás de
sua cadeira, observando e ouvindo, seguindo cada gesto e nuance com um toque de laran.
Após a sua chegada à Valeron, Saravio tinha afundado em sua letargia e ainda não estava
suficientemente recuperado para participar. Eduin viu-se relegado a ficar de pé atrás de
Lord Brynon, como um servo comum. Além de Marelie, que usou seu destreinado laran sem
qualquer consciência do que estava fazendo e provavelmente pensou que era apenas
intuição, ninguém do conselho tinha quaisquer habilidades psíquicas. Rainha Julianna e sua
herdeira tinham talento latente suficiente para serem aceitas pelo Conselho Comyn, mas
não tinham passado algum tempo em uma Torre. Valentina Aillard, a quem Eduin tinha
conhecido em seus anos em Arilinn, era filha de um ramo diferente. Ele também conheceu
sua prima, Ellimara, em Hali. O talento era profundo na linhagem Aillard, mas nesta
geração, pelo menos, os talentos psíquicos era menor.
Julianna, rainha de Valeron, parecia ter uma alma inocente e fraca de espírito, mas era
uma mulher perspicaz acostumada às intrigas e usos de energia. Ela ouviu a informação de
Lord Brynon com tranquilidade controlada. Eduin sentiu o funcionamento de sua mente,
avaliando, pesando cada ponto.
Quando a discussão avançou, uma imagem surgiu de dois terrenos, um poderoso, o
outro pequeno, mas orgulhoso. Valeron e Isoldir tinham estado com adagas na garganta
um do outro muitas vezes ao longo das últimas três gerações. O ataque do carro aéreo da
Torre Cedestri podia ter sido em resposta à uma provocação, mas foi quase sem causa.
Confrontado com as ambições políticas de Julianna, os senhores de Isoldir certamente
deviam ter aproveitado todas as armas que tinham ao seu alcance. Foi somente através da
intercepção rápida de Valeron que uma devastação ainda maior foi evitada, pois o carro
aéreo de Cedestri carregava uma forma particularmente virulenta de pó derrete-osso.
Lord Brynon respondeu a esta notícia com um gesto de repulsa e Romilla parecia
visivelmente abalada.
- Nós não acreditávamos que Cedestri era capaz de tal coisa. - Julianna comentou.
Eduin não achou que Julliana teria quaisquer escrúpulos sobre o uso de qualquer arma
que tivesse à mão. Sua preocupação era apenas por um vizinho mais fraco ter o controle de
tal arma.
Como o trabalhador tinha descrito, o carro aéreo de Cedestri tinha sido destruído, mas
não antes de sua carga ter sido espalhada ao longo de centenas de léguas, tornando a terra
inabitável por gerações. Pela descrição de Julianna, Eduin percebeu que a trupe de músicos
de Fort de Robardin deviam ter passado por uma das regiões contaminadas antes das
estradas serem marcadas. Lembrou-se dos grãos de escuridão venenosa nos corpos de seus
amigos.
A voz de Raynita cantarolando baixinho na parte de trás de sua mente, subindo e
descendo como o vôo de um pássaro selvagem. Ela não se importou com sua origem ou
identificação, apenas ofereceu o simples conforto de sua amizade.
Eu viajei com eles, comi seu pão, cantei suas canções, pensou Eduin.
Ultraje e piedade sussurraram através dele. O eco da voz de seu pai lhe ordenando para
descartar tais pensamentos fracos e inúteis. Se alguns menestréis insignificantes pereceram
porque eles se aventuraram onde não deveriam, isso não fazia diferença na necessidade
imperiosa de sua vingança.
- Isoldir tem sido um espinho em nossa vida por mais tempo do que podemos lembrar, -
o General Marzan disse, - mas não é sábio um espinho se transformar em uma espada.
Portanto, nós não os destruímos, pois não é possível matar cada um e qualquer um que
permanecesse após um ataque tão avassalador estaria obcecado por sua vingança até o
túmulo.
Sim, e além. Eduin estremeceu interiormente, como se tocado por uma faca de fria e
dura vindo direto de Forge mais frio de Zandru. Ele sentiu como se ele fosse duas pessoas
ouvindo o conselho. Um deles, o filho de Rumail Deslucido, sempre procurando qualquer
brecha, qualquer influência que ele pudesse usar para moldar os medos e ódios dessas
pessoas em uma arma contra Varzil Ridenow e, através dele, Carolin Hastur.
Ao mesmo tempo, outra parte dele entendia o que tinha sido com ele, mas não era capaz
de se libertar do seu destino.
A injustiça tinha gerado a vingança e a vingança alimentava-se de tudo até que não
houvesse mais nada - nem seus irmãos, nem os seus sonhos de uma vida na Torre, nem a
sua amizade com Carolin Hastur, nem seu amor por Dyannis... Nada. Nesse instante, ele viu
como se estivesse em um sonho lúcido, a figura de uma mulher envolta em sombras, com
os olhos brilhando como gelo, voltando-se para ele, estendendo os dedos esqueléticos em
direção ao seu coração...
- Nós preferimos torná-los incapazes de um segundo ataque. - Julianna continuou. -
Deixamos-lhes com força suficiente para manter a ordem dentro de seus próprios limites.
Uma terra atormentada pelo caos rapidamente se torna um perigo para todos os seus
vizinhos. Bandidos aumentam e descontentes de todo tipo surgem.
E se Rafael Hastur e sua maldita sobrinha, a Rainha Taniquel, tivessem pensado dessa
maneira? E se seu pai não tivesse sido forçado ao exílio? E se seu tio e primo tivessem tido
suas vidas poupada e com um pingo de dignidade? E se ele tivesse sido livre para seguir os
ditames do seu coração e seu laran?
- No entanto, - disse Julianna - não consideramos a intervenção de uma ajuda externa. A
Torre Cedestri já foi reconstruída com a ajuda de Varzil de Neskaya.
- Varzil! - Lord Brynon exclamou, como se estivesse ecoando o pensamento de Eduin. -
Por que um Guardião tão poderosa viria para um pequeno reino inconsequente como
Isoldir?
Marelie inclinou-se para o ouvido de sua mãe. Eduin não conseguiu ouvir suas palavras,
mas entendeu o seu sentido. Porque Cedestri foi de alguma forma capaz de fazer uma
grande arma de laran, o que é contra o precioso Pacto do Rei Carolin.
- Carolin Hastur queria ter certeza de que Cedestri seria reconstruída como ele desejava,
- disse Julianna, - da mesma forma que ele reconstruiu a Torre Neskaya. Para esse fim, ele
enviou o seu emissário, Varzil de Neskaya, sabendo que tudo o que o círculo da Torre
poderia fazer seria dar as boas-vindas e gratidão por sua ajuda sem pedir algo em troca.
- O poder dos Hasturs vem crescendo a muito tempo. - Disse Lord Brynon. - A sombra de
sua ambição recai sobre toda a terra. Por que mais ele procuraria desarmar todo mundo
que pode estar contra ele?
Rosto da rainha Julianna ficou sombrio com os olhos brilhando como lascas de obsidiana.
- Carolin enviou um emissário aqui há dois verões, pedindo-me para assinar o seu Pacto. Eu
lhe disse que não queria nada com ele. Durante a última temporada na reunião do Conselho
Comyn, foi aberto espaço para que pudessem falar a favor ou contra. É fácil entrar em tal
conversa fiada quando não há carros aéreos com clingfire nos ameaçando. Só então, muito
tarde, se percebe que sua única proteção é a ameaça de uma retaliação esmagadora ao
inimigo.
Bom, Eduin pensou quando o fantasma de seu pai despertou como se farejando sangue.
A Senhora de Valeron já está disposta a desconfiar Carolin e seu lacaio, Varzil. Agora é hora
de transformar essa suspeita em hostilidade aberta...
Julianna balançou a cabeça, como se estivesse secretamente concordando com ela
mesma. - Com o tempo, essa loucura vai passar. Os grandes lord’s perceberão a verdade
eterna de que o único caminho para a paz é através do equilíbrio de poder.
Eduin sentiu-se ainda mais afastado da conversa. Ele teria argumentado que não só eram
armas poderosas como fogo aderente e pó derrete-osso que eram necessárias, mas elas
também deviam ser controladas pelas pessoas que os criavam: as Torres. Agora, esses
argumentos pareciam tão frágeis como moscas. Já não importava se Arilinn, Hali ou Cedestri
permaneciam de pé e quem governava lá. Ele ficou sozinho nas cinzas de seus sonhos.
Julianna habilmente virou a conversa para essas cortesias que davam um fim à reunião.
Eduin sentiu uma sensação de frustração, de expectativa não cumprida, já que Lord Brynon
não tinha feito suas acusações contra Varzil Ridenow.
Em vez disso, Lord Brynon parecia dominado pela presença da Rainha Julianna. Talvez,
Eduin tranquilizou-se, ele só esteja à espera de uma oportunidade adequada. Eles eram
recém-chegados em Valeron e havia muito a ser feito ali, além dos preparativos para o
Festival do Solstício de Verão.
Capítulo 35
Eduin e Saravio, bem como os outros membros da companhia de Lord Brynon, tinham
recebido quartos na ala reservada para os homens do pessoal da casa em uma das partes
mais antigas do castelo, uma fileira de pequenas salas em um corredor não tão aquecido. A
sua câmara era geralmente reservada para os servos pessoais de visitas da nobreza e era de
melhor qualidade do que os outros. Apesar de ser apertado e ter apenas uma única janela,
havia um pequeno braseiro para aquecer o ambiente e um tapete grosso, não de
Ardcarran, mas de alguma tecelagem local. O melhor de tudo é que eles tinham uma
câmara só para eles, em vez de compartilhá-la com dois ou três outros servos.
A torre em Valeron ficava à parte do resto do castelo, tanto física quanto psiquicamente.
Nenhum dos servos das famílias com quem Eduin fizera amizade já tinha visto o Guardião.
O laranzu'in que cuidavam dos carros aéreos levavam suas vidas em silêncio. Somente os
jovens leronis que serviam no tribunal, como Callina Mallory, apareciam em público.
Callina tinha visitado Romilla em sua primeira noite no castelo Aillard como cortesia e
para perguntar se ela precisava de cuidados. Elas rapidamente entraram em uma rotina em
que passavam a maior parte de suas horas diárias juntas. Quando Eduin trouxe Saravio aos
aposentos de Romilla na manhã seguinte, ele encontrou as duas meninas rindo juntas.
Eduin curvou-se. - Vai leronis, vai damisela, bom dia.
Callina levantou-se do assento perto da janela onde ela e Romilla tinham observado os
soldados no pátio abaixo. Seu cabelo vermelho-dourado, puxado para trás num estilo
simples, sem adornos, brilhou sob a luz da manhã.
Eduin esperava que Callina fosse como Domna Mhari de Kirella, mas ela era muito
diferente. Mhari tinha um senso natural de política e tinha se tornado mais experiente por
suas próprias lutas. Callina era muito mais jovem, vinda de uma das pequenas famílias
Comyn perto Temora. Ela tinha treinado na Torre de lá, mas nenhum dos servos sabia por
que ela tinha vindo assumir um posto tão longe de casa.
- Sandoval! - Romilla gritou, indo para Saravio e pegando sua mão. - Como estou feliz por
você ter vindo! Eu estava dizendo a Callina como você me ajudou. Ela disse que nunca ouviu
canto como o seu.
Saravio olhou para a jovem leronis e parecia realmente vê-la. Eduin sentiu a auto-
confiança da menina como um escudo frágil. Uma sombra pairava sobre ela, uma que nem
mesmo seu tempo em uma Torre tinha dissipado. Talvez, pensou Eduin, ela simplesmente
não tenha a determinação para superá-la. Agora, ele sentiu a percepção de Saravio sobre a
ferida emocional não curada de Callina.
Callina virou-se para Eduin. Apesar de sua aparência jovem e cabelos brilhantes, ela
parecia simples, quase extinta em si mesma. Os olhos escuros que encontraram os seus
eram ao mesmo tempo inocentes e misteriosos. Ela estava o sondando.
Eu sentir o laran em você, ela falou silenciosamente. Você pode me ouvir? Seu discurso
mental era lento e cuidadoso, como se ela tivesse usado a maior parte de um pequeno
talento para a telepatia.
Eduin formulou sua resposta para parecer desajeitado, inábil. Ele expressou surpresa e
humildes graças pela atenção de uma leronis de uma Torre. Eu... Foi foi dito que meu pai
tinha sangue nedestro de Comyn. Ele gaguejou, deixando a sensação de uma verdade
atingir a menina. Seu pai, Rumail Deslucido, era de fato o irmão ilegítimo de Damian
Deslucido, e recebeu o um laran muito maior que o de seu irmão. Ele tinha treinado e
trabalhado na Torre Neskaya antes de ser banido, e deveria ter sido um poderoso Guardião.
Teria sido se apenas... Se apenas...
Sim. Callina respondeu. Eduin viu que ela sentiu seus pensamentos, mas mal não pôde
interpretar seu pensamento de que se o seu pai tivesse sido reconhecido e recebido
formação adequada de Guardião, ele próprio teria tido um lugar no mundo.
- Agora eu sirvo ao meu irmão, Sandoval Santíssimo. - Disse Eduin. – Com a maior honra.
Habilmente, Eduin colocou Saravio no centro do quarto e as mulheres em posições
subalternas. Romilla conversava sobre sua antiga melancolia, aumentando a expectativa da
outra garota.
Eduin murmurou para Saravio: - Traga a alegria de Naotalba para estas mulheres.
O simples ato de falar do nome de Naotalba era suficiente. Saravio começou a
cantarolar, quase muito baixo para se ouvir, mas com o impacto total do seu laran.
Eduin sentiu as notas de abertura como uma emoção prateada ao longo da espinha. Sua
respiração ficou presa na garganta. Romilla fechou os olhos para focar sua audição abrindo
seu coração para o que ela sabia que viria.

Oh, a cotovia de manhã,


Ela nasce no oeste.
E chega em casa à noite,
com sangue sobre seu peito...

As palavras atingiram Eduin de forma familiar e ainda assim sutilmente alteradas. Em


apenas um piscar de olhos, ele lutou para permanecer alerta. A sensação começou como
uma vibração baixa através do núcleo de seu corpo, tão sutil que era quase imperceptível
pelos cinco sentidos. Prometendo a si mesmo que seria apenas por um momento, desligou-
se do mundo exterior e entregou-se ao prazer crescente.
O mundo da carne e do tempo sumiu. Já não sentia seu corpo físico. Ele flutuava em uma
névoa prateada. Uma paisagem formava-se em torno dele com árvores graciosas que
balançavam em uma dança secreta. Figuras se moviam entre elas, suas vozes entrelaçadas
com as harmonias lentas do céu, da árvore e da chuva. Eles voltaram os olhos luminosos na
direção dele...
A visão foi obscurecida, como a queda súbita da noite. A última coisa que viu foram os
olhos brilhantes e então, também, desapareceram. Ele estava de volta em seu corpo, seu
estômago se apertou. A sede arranhou a parte de trás de sua garganta, mas não era uma
bebida física que ele desejava.
Saravio havia se calado enquanto as últimas reverberações de suas manipulações
mentais desapareciam das mentes dos seus ouvintes. Eduin amaldiçoou-se por se render
tão completamente.
Os olhos de Romilla ainda estavam fechados e ele sentiu sua persistência, evitando sair,
saboreando a paz e euforia em sua memória.
Callina era outra questão. Embora suscetível, ela ainda achava algo suspeito. Eduin
cutucou sua mente com seu laran. Como esperava, muito pouco restou de suas barreiras
psíquicas no momento. Era uma questão simples. Apenas implantar uma sugestão de que o
efeito de prazer e relaxamento era devido apenas à beleza do canto, nada mais. Era
totalmente natural ela reagir dessa maneira.
Sandoval o Santíssimo e seu assistente dizem apenas a verdade. Eles estavam são
confiáveis.
Um momento depois, Eduin soltou a ligação. Suas bochechas coraram. Ela piscou. Um
arrepio percorreu os ombros magros, então ela se recompôs. – Obrigada. - Ela disse para
Saravio. - Isso foi muito interessante... - Ela hesitou um pouco para dizer a palavra "música".
- As canções de meu irmão nos ajuda a olhar para dentro de nós mesmos. - Disse Eduin. -
Pois é lá, pela graça dos deuses, que encontramos a verdadeira cura. Você tem a vantagem
do treinamento em uma Torre. Diga-me, estou enganado nisto?
- Não, não. - Ela respondeu rapidamente. - Você está certo. Sandoval é extraordinário e
tem ajudado na condição de Lady Romilla. Não vejo por que Lord Brynon não falou de você.
Eduin inclinou a cabeça. - Servimos da maneira que podemos. Eu acredito que é uma
coisa boa, e a vontade dos deuses, termos vindo a Valeron neste momento.
- É realmente um mundo conturbado em que vivemos. - Disse Callina, levantando-se. -
Qualquer fragmento de esperança é bem-vindo.
- No começo, quando eu estava doente, eu não conseguia ver além do dia seguinte ou da
próxima hora. Com a cura de Sandoval, como você pode ver, estou bem e forte. - Romilla
disse ansiosamente.
- Então você logo irá sentar-se no Conselho com Sua Majestade, como é seu direito. -
Disse Eduin.
- Sim, claro. - Romilla disse claramente satisfeita. - Se eu não tivesse ficado doente eu
certamente teria feito isso. Vou tomar o meu lugar esta noite.
Callina parecia duvidosa. - Será que o senhor seu pai não terá objeção a sua tomada de
precedência?
Romilla sacudiu a cabeça.
- Tenho certeza de que ele vai ficar feliz por ver que sou capaz de fazê-lo. O Santíssimo
Sandoval não concorda?
- Certamente, vai domna, - Eduin apressou-se a responder, - pois só desta forma você
pode se opor a influência pérfida de certas pessoas.
- Você viu isso?
Saravio naquele momento pareceu entoar ao invés de falar: - É a vontade de Naotalba.
- Naotalba. - Callina repetiu em voz sonhadora. - Eu lembro de ter ouvido esse nome
quando era criança, em histórias destinadas a nos assustar. Eu sempre imaginei-a como
uma figura trágica, a Noiva de Zandru dos Sete Infernos Congelado. Agora ela parece ser tão
reconfortante.
- Muito do que nos ensinam quando crianças mudam sob a luz da verdade. - Disse
Romilla. - Se Naotalba representa uma descida aos Sete Infernos Congelados, então ela
também traz-nos a esperança, pois ela é uma ponte entre o humano e o divino.
- Mas ela não existe, não de verdade. - Callina protestou.
- Para Sandoval ela existe. - Disse Eduin. - Talvez ela seja apenas um símbolo que lhe
permite concentrar sua visão e percepção, pois não há dúvida de que ele pode ver muitas
coisas além do alcance de um homem comum.
- Ele tem o dom de Allart Hastur para ver no futuro? - Callina perguntou.
- A visão de Saravio não vem de uma herança dos estranhos programas de
melhoramento genético de laran durante a Era do Caos. - Eduin apressou-se a dizer porque
Callina tinha chegado desconfortavelmente perto da verdade. Apresentar Saravio como um
homem tocado pelos deuses era uma coisa, fossem eles quais fossem. Outra inteiramente
diferente era despertar a suspeita de que ele poderia ser um laranzu renegado. - No fim das
contas, que diferença faz o que Naotalba é, contanto que ela nos proteja contra os nossos
inimigos?
- Devemos estar juntos nestes tempos perigosos, Kirella lado a lado com Valeron. -
Romilla disse emocionada. Ela deslizou sua mão como sinal de confidencialidade no
cotovelo de Callina. - Você deve nos ajudar.
Callina corou e pareceu confusa, pois ela era, afinal, muito jovem. - Jurei estar sempre ao
serviço da rainha, mas o que eu puder fazer, eu farei.
Durante os dias que se seguiram, Eduin teve muitas oportunidades para interagir com
Callina e outros do conselho. Cortesãos aqui, como em outros lugares, estavam sempre
alerta para o mais recente rumor ou sugestão de favoritismo, possibilidade de avanço ou
influência. Depois de algumas horas de sua chegada, Eduin sentiu os primeiros tentáculos
da curiosidade. O cavalariço sussurrava para seus amigos, assim como as camareiras que
serviam Romilla e Callina.
Uma palavra aqui e ali, acompanhado por um toque psíquico, era o suficiente para
alimentar a crescente fascinação por Saravio. Eduin logo ouviu falar de curas milagrosas, de
transes de clarividência, de halos de luz que cercavam o homem santo.
Em pouco tempo, as histórias do “Bem Aventurado Sandoval" extrapolaram os quartos
dos servos. Uma manhã, uma pagem bateu na porta do quarto de Eduin e Saravio. Uma das
damas-de-companhia da Rainha tinha uma dor de cabeça e, depois de ouvir como Romilla
tinha sido curada de uma doença terrível, pediu-lhe para ir em seu auxílio.
Eduin duvidou que a senhora tivesse qualquer doença, além daquelas geradas pelo tédio,
alimentos ricos em doces e gorduras.
- Venha, - disse Eduin, - os descrentes nos convidam mais uma vez para provar o poder
de Naotalba.
Ao ouvir estas palavras, como a cada menção do nome da semideusa, os olhos de Saravio
se iluminou. - Eles também a conhecerão e irão servi-la. Leva-me a eles.
A senhora e seus servos os receberam em uma sala surpreendentemente confortável na
ala real. Como grande parte do Castelo em Valeron, suas paredes eram de pedras de grãos
finos polidos em um brilho suave, a mobília era de madeira pálida, almofadas e cortinas em
um tom pastel de verde-acinzentado e tigelas de Rosalys brancas perfumavam o ar.
A matrona de rosto cheio, envolto em camadas de rendas pratas sobre as cores de
Aillard, escarlate e cinza, sentou-se gemendo e enxugando a testa com um lenço bordado.
Sua cadeira, uma peça graciosa, parecia mais adequada para uma jovem damisela do que
para alguém com seu corpo. Ao lado dela, uma mesa igualmente elegante tinha uma
bandeja de iguarias, o tipo de alimentos doces concentrados que Eduin tinha comido
frequentemente depois do trabalho extenuante em um círculo nas Torres.
Ele curvou-se quando a pagem os anunciou e ela pronunciou o nome da senhora. Eduin
percebeu que ela era Linella Marzan, a esposa do general formidável de Lady Julianna.
- Oh, minha cabeça está doendo muito. - A mulher choramingou para Saravio. - Eu tenho
palpitações no peito e não tenho facilidade para fazer nenhuma tarefa. Eu não acho que
nenhum poder possa me curar, mas a doce Romilla, minha querida menina, disse que o seu
canto trouxe tanta ajuda à ela. O ele pode machucar?
Ela fez uma pausa para pegar um punhado de nozes açucaradas.
- É para os meus nervos. - Disse ela, notando o olhar de Eduin. - Estou tão sensível que
qualquer coisinha me devasta. Você vê que estou me esvaindo. Sinto até a menor
perturbação na aura etérica! Eu deveria ter sido treinada em uma Torre, mas minha saúde
não permitiu. Eu nunca poderia suportar o estresse.
Ela fez uma breve pausa para comer mais e abanar-se com o lenço mole. Eduin
murmurou como Sua Majestade tinha sorte por ter uma dama de companhia tão talentosa.
- Oh, sim, ela depende muito de mim. E agora você sabe como é importante. Como é
essencial... Que é que eu cuide da minha saúde. Minha cabeça me atormenta mais
cruelmente agora. Não creio que haja qualquer ajuda para mim. Eu nunca reclamo, mas
disfarço a minha aflição da melhor forma possível. É o preço do talento como o meu
suportar tais encargos. Aaaah! - Ela soltou um enorme suspiro.
Eduin fez alguns comentários tranquilizadores e, em seguida, começou a arrumar o
quarto, colocando cadeiras para Saravio e os servo da lady e habilmente retirou a mesa de
alimentos. Ele não queria nenhum prazer concorrente uma vez que Saravio começasse a
cantar. Um dos servos, uma menina bonita de uma das casas nobres menores, trouxe uma
pequena rryl, curvou-se e sentou-se em um banquinho aos pés da lady. Claramente, uma de
suas funções era tocar e cantar para sua senhora.
Lady Linella continuou a lamentar seus sofrimentos, mesmo quando Saravio começou a
cantar. Ela não tinha força de vontade ou personalidade para resistir, mas escorregou
facilmente para o estado de euforia. A menina com rryl fornecia uma harmonia simples. Ela
se inclinou sobre o instrumento com as faces coradas e os olhos sonhadores.
Quando a senhora estava pronta, Eduin entrou na superfície de seus pensamentos. Ele
procurou por alguma memória ou fragmento de conversa, procurando algo que pudesse
dizer-lhe quanto era a influência que ela exercia sobre seu marido, ou mesmo as coisas que
ele lhe confiava. Talvez o general falasse com ela na cama ou quando ele estava cansado
das responsabilidades de sua posição. Mesmo uma velha tola poderia ser uma ouvinte
simpática.
Eduin encontrou pouca coisa de utilidade imediata. Ele poderia induzi-la a soltar uma
frase ou duas, uma pergunta aguçada, uma menção de Varzil em um contexto negativo. Ele
decidiu que o melhor caminho era criar uma dependência à Saravio. Seria simples dada a
sua susceptibilidade natural. Ele iria deixá-la com uma sugestão mental de garantias de
bem-estar e que estava ao seu serviço.
Ela poderia pensar no canto de Saravio como um passatempo agradável que não podia
dispensar. Depois o desejo começaria. Ela poderia lutar contra isso por um tempo, se ela
tivesse o bom senso de perceber o que era, mas no final, ela perderia.
Então você vai fazer qualquer coisa para ouvir Sandoval Santíssimo cantar para você
novamente.
Lady Linella não notou nada, ela iria dizer sobre esse dia a seus amigos. Mais viriam para
ouvir a música da cura e alguns deles poderiam ter influência sobre homens poderosos.
Talvez isso chegaria a própria rainha...
Na noite do Festival de Verão, Romilla e seu pai sentaram-se nos lugares de honra na
mesa real. O salão estava enfeitado com grinaldas de palha e flores do campo. Mesas
rangiam sob o peso dos alimentos. Aves assadas e travessas de vegetais artisticamente
arrumados, mel ao lado da caçarola de cogumelos e queijos cortados como flores. A peça
central era uma escultura de uma águia em pêssegos e damascos cobertos com folhas
prateadas, suas asas com cerejas vermelhas para reproduzir as cores do Domínio de Aillard.
As janelas estavam abertas, de modo que o crepúsculo prolongado encheu o ar com um
brilho perolado. As senhoras, mesmo a Rainha Julianna, usavam guirlandas de flores e
pequenas cestas de frutas tinham sido colocadas ao lado do lugar de cada mulher.
Eduin e Saravio tinham sido colocados em uma mesa menor, junto com as pessoas
indignas da visão real.
Acima do murmúrio da multidão, Eduin ouviu Romilla exclamar em uma voz alta juvenil: -
Eu, que sou a herdeira de Kirella, caí doente com melancolia alguns invernos atrás. Nem a
nossa leronis e nem o médico conseguiram me curar. Não fui curada até que este homem,
Sandoval O Santíssimo... - ela apontou para as mesas mais baixas, onde Saravio e Eduin
estavam - veio a nós e saí da escuridão. Não só isso. Meu pai assistiu com seus próprios
olhos quando Sandoval curou uma ferida mortal.
- Extraordinário! - Um dos conselheiros de Lady Julianna disse.
A voz da rainha ergueu-se acima das outras. - Vamos ver isso. É o homem sentado à
mesa inferior com seu servo?
Saravio, como se sentisse sua atenção, começou a se levantar de seu assento. Eduin
agarrou o braço de Saravio e puxou-o para baixo, mas foi tarde demais. A Rainha fez um
gesto para que ele se aproximasse.
- Venham cá, rapaz, para que eu possa vê-los melhor.
Eduin se curvou profundamente, fazendo o seu melhor para imitar o comportamento de
um homem pobre entre seus superiores. Saravio manteve-se orgulhosamente firme, com o
olhar sempre ao nível do da rainha. Ela podia ser a Senhora de Valeron, mas aos olhos de
Saravio, ela não era páreo para Naotalba.
Lord Brynon ficou agitado. - Vai domna, você vai ouvir este homem? Na verdade, ele
restaurou a saúde e força de minha filha, quando todos os outros tinham falhado. Ao fazer
isso, ele próprio tornou-se alvo de um plano infame que, mesmo agora estende seu alcance
para todos em Valeron.
Esperança e exultação ferveram na mente de Eduin. A forma precipitada como um tema
tão sério foi introduzido em uma refeição festiva por Lord Brynon era perfeita. Dessa
maneira nenhuma suspeita de influência poderia cair sobre Saravio ou Eduin.
- Continue. - Lady Julianna ergueu uma sobrancelha.
- Foi feita uma tentativa contra a vida de Sandoval Santíssimo pelo mesmo médico que
falhou tão miseravelmente em curar a minha filha. Na verdade, eu tenho desde então a
suspeita de que seus cuidados contribuíram para a piora dela.
- E porque você acha que esse médico era parte de um plano maior? - Lady Julianna
perguntou.
Zandru, ela estava alerta! O coração de Eduin batia mais rápido e ele se inclinou para
frente com os músculos tensos. As palmas das suas mãos suavam frio. Vá em frente, diga!
Ele silenciosamente pediu ao Lord Aillard.
- Sob interrogatório, o médico revelou a sua filiação com ninguém menos que o Guardião,
Varzil Ridenow. - Lord Brynon anunciou.
- E esta é a base sobre a qual você acha que há uma trama?
- Certamente você deve ver o padrão. As maquinações de Varzil estão em toda parte,
desde as praias de Hali até a Torre Cedestri. Ele já pode ter se infiltrado neste mesmo
castelo e subornado o seu próprio povo, como ele fez com o meu...
A rainha o cortou com uma risada aguda, sem senso de humor que fez Eduin estremecer.
- Realmente, Lord Brynon, você não deve ficar imaginando esquemas e planos em toda
parte, simplesmente porque você tem um médico incompetente. Claro, homens assim
podem inventar tais acusações, a fim de avançar em sua posição. Tais homens podem ter
considerável poder de persuasão . Eles podem conseguir iludir os jovens, mas ninguém com
o mínimo de força de caráter os levaria a sério. Lembre-se que a sua influência não vai
aumentar além do poder das senhoras Aillard’s ou o resultado será a sua desgraça.
Lord Brynon controlou-se arduamente. A raiva brilhava como uma aura em torno dele.
Eduin pensou que se Julianna fosse um homem, mesmo um nobre, ele a teria golpeado.
Julianna continuou: - Eu acho que é melhor que nem ele nem seu companheiro sejam
autorizados a participar de quaisquer conselhos, já que eles procuram usar o que tudo em
sua própria vantagem. Eles são servos. Deixe-os em seu, enquanto eles estiverem dentro
das fronteiras de Valeron. Quanto aos seus encargos, você não pode esperar que eu leve
essas coisas a sério. Há poucas coisas mais patéticas do que um senhor que não pode
manter seus servos na linha.
Com um esforço visível, Lord Brynon controlou seu temperamento e, curvando-se, fez
outra tentativa.
- O que você diz é verdade e uma vergonha para mim, se não fosse o testemunho dado
sob juramento. Sob o encantamento da verdade. O traidor admitiu sua reverência a Varzil O
Bom e o que ele fez não pode ser explicado por mera inveja.
Por um momento, Lady Julianna pareceu pensativa. - O Guardião da Torre Neskaya pode
ser muitas coisas, mas um tolo ele não é, e apenas um tolo usaria um instrumento tão fraco
como o seu médico parece ser. Não, eu acho que você devia olhar melhor para as causas
mais comuns para essa agitação em sua casa.
Quando parecia que Lord Brynon iria tentar novamente, ela disse: - Não vamos mais falar
disso, parente.
Quando Lord Brynon murmurou suas desculpas, Eduin puxou Saravio de volta aos seus
lugares na mesa inferior. Ele percebeu que influenciar Lady Julianna seria mais difícil do que
ele pensava.
As festividades do Festival do Verão continuaram até tarde da noite. As janelas do grande
salão tinham sido abertas, e a luz multicolorida de três das quatro luas de Darkover
inundava o ambiente e misturava-se com o brilho das tochas e a luz azul fria de algumas
luminárias caras a base de laran. Dançarinos profissionais, trovadores e malabaristas
enchiam o salão com mais entusiasmo do que talento. Toda mulher presente recebeu a
tradicional cesta de frutas e flores, em memória dos presentes que Hastur, filho de Aldones,
Senhor da Luz, entregou para sua amada Cassilda. Uma pilha de cestas, muitas delas
douradas, transbordaram ao pé do trono de Lady Julianna. Romilla recebeu um grande
número de seu pai, do filho do general Marzan e de vários admiradores masculinos.
Fazia muito tempo desde Eduin teve qualquer mulher para quem dar um presente do
Festival do Verão. Ele não tinha irmãs e nunca tinha conhecido sua mãe. A única cesta que
havia preparado com todo o prazer foi para Dyannis, e ela era melhor esquecer. Ele poderia
ter, seguindo o costume mais antigo, deixado um cesto para Romilla ou Callina para que o
encontrassem fora de suas portas, mas ele tinha perdido o hábito de pensar nessas coisas.
Fazia muito tempo desde que ele tinha sentido quaisquer laços de amor.
Eduin e Saravio se arrastaram para longe, enquanto a dança começou serenamente com
os casais mais velhos que levam os promenas, virou-se mais selvagem e mais licenciosa.
Lord Brynon, depois de dançar uma rodada obrigatória ou duas com Lady Julianna e sua
filha, tinha se retirado para um canto onde ele passou a ficar completamente bêbado. O
cheiro do vinho, combinado com as flores inebriantes e faixa de luar, era tanto inebriante
quanto enjoativo para Eduin. Havia muita tentação, muito perigo nos redemoinhos de
tartan’s e vestidos, as bochechas brilhantes das senhoras, o tilintar de taças e vozes na
canção estridente.
Qual é o velho provérbio? Que nada do que acontece sob as quatro luas precisa ser
lamentado? Ou é o contrário, que muito do que acontece na celebração selvagem de tais
luas segue por toda a vida?
Não havia quatro luas no céu sobre este Festival de Verão. Os deuses tinham retido essa
bênção afinal. O que acontecesse agora seria inteiramente da responsabilidade dos
homens.
Não havia ninguém a quem pedir para que pudesse se retirar. Certamente não a Lord
Brynon. Romilla estava dançando com o filho do general Marzan. A dança e o vinho fizeram
suas bochechas corar e ela riu quando ele a segurou mais perto do que era conveniente
para alguém a quem ela não era prometida. A visão enojou Eduin. Ele pegou Saravio pelo
braço e conduziu-o de volta para seus aposentos.
Quando Eduin levou Saravio de volta ao seu quarto ele já estava extremamente irritado.
Ele não podia contar com Lord Brynon ou qualquer outra pessoa para convencer a Rainha
de Valeron a procurar e destruir seus inimigos. Lady Julianna era muito astuta e tinha muita
força de vontade para ser influenciada por qualquer homem. Ela nunca iria iniciar uma
guerra com Carolin, mas ela poderia ser persuadida a eliminar Varzil se ela acreditasse que
ele era uma verdadeira ameaça. Agora, mais do que nunca, Eduin precisaria de Saravio.
Saravio deitou-se sobre uma das camas. Seus olhos estavam abertos, mas era como se
estivesse em transe. Parecia um mau agouro. E se Saravio voltasse a cair em um coma,
como tinha feito na chegada a Kirella? Ou, pior ainda, sofresse um ataque onde ele pudesse
ser visto?
- A tempestade está mais perto agora. - Saravio sussurrou. - Você não pode sentir isso?
Eduin baixou as barreiras de laran para sondar os pensamentos de Saravio. Ele pegou a
imagem fugaz de fogo subindo contra o céu e o movimento de um manto sombrio.
Ótimo, ele pensou. Esse sentimento de pavor, de desgraça iminente, era algo que ele
poderia usar.
Ele foi para a cama e sentou-se ao lado de Saravio.
- Eu tenho uma notícia terrível. – Ele disse tocando em sua garganta, fazendo sua voz
soar mais rouca e áspera.
Arregalando os olhos, Saravio ergueu a cabeça.
- Eu descobri que o nosso inimigo, Varzil Ridenow, está em movimento. A Torre
Cedestri... - Eduin parou sentindo o reconhecimento. Então foi nessa Torre que Saravio
tinha sido treinado. Eduin continuou – enviou um violento ataque contra os nossos amigos
aqui. Você se lembra? Aquele que nós ouvimos no Forte de Robardin. Em retaliação,
Cedestri foi destruída.
- À destruição que merecia!
- De fato. - Eduin continuou. - Mas o que eu não sabia é que o próprio Varzil foi
reconstruir a Torre.
- Varzil? Reconstruiu Cedestri? - Balançando a cabeça, Saravio sentou-se. - Por que ele
faria isso? Eles não eram do tipo que vale a pena salvar depois que se afastaram de
Naotalba.
- Porque, não é mesmo? - Disse Eduin. - Que proveito Varzil poderia colher para si
mesmo, a não ser o de fazer uma aliança com a nova Torre? Você não vê? Desta forma, os
malfeitores vão unir forças com Varzil contra os servos leais de Naotalba. Você sabe que
Varzil visa pôr fim a qualquer um que a siga. Ele está rastejando acima de nós, estendendo
seu poder sobre uma terra após a outra. - Eduin esperou que o impacto de suas palavras
fizesse seu trabalho.
- Varzil...ele traz o fogo? - Saravio perguntou.
- Sim! Ele traz o fogo! - Eduin respondeu e sentiu a crescente angústia em Saravio. Ele
para a mente de Saravio, intensificando o ódio e o medo.
- Ele não deve cumprir sua missão... - Saravio tropeçou em suas palavras, quase
balbuciando em terror. - Não deve...
- Naotalba não abandonará seus fiéis. - Eduin falou com uma voz reconfortante. – Mas
nós temos que fazer a nossa parte. Temos que ficar contra Varzil e os membros de Cedestri
que se voltaram contra Naotalba e expulsaram seu escolhido. Aqui em Valeron há a força
para fazê-lo, mesmo que ainda não exista a vontade.
- Temos que convencê-los! - Saravio disse. - Mas como? O que devemos fazer?
Eduin abaixou a cabeça num gesto de reverência e se manteve assim por um longo
tempo.
- Devemos orar para receber sua orientação. Talvez ela diga para nós em sonhos ou
visões, como ela fez tantas vezes antes. Descanse agora e você pode receber sua
mensagem.
- Receber sua mensagem. - Saravio ecoou. - Descansar.
Eduin levou o outro homem para a cama e ajudou-o a ficar em uma posição confortável.
Ele passou os dedos sobre as pálpebras de Saravio para fechá-los. A breve agitação da
energia de Saravio desapareceu, deixando-o em um estado ainda mais profundo do que o
de cansaço.
- Durma. - Eduin sussurrou, reforçando o comando com sua mente. - Durma.
Em pouco tempo, Saravio caiu em um sono profundo. Eduin sentiu a mudança na
respiração de Saravio agora mais profunda e lenta. A mente de Saravio estava aberta e
vulnerável. Ele não iria resistir. Ele estava disposto a se entregar voluntariamente.
Eduin levantou-se e começou a andar, usando o movimento para firmar sua resolução.
Bile subia em sua garganta só de pensar no que ele devia fazer. Em desespero, ele se
perguntou se havia alguma outra maneira, se ele não podia simplesmente deixar que os
acontecimentos seguissem seu curso natural. Cedo ou tarde, a rainha Julianna ou algum
outro poderoso governante se cansaria da interferência de Varzil, ou talvez algum bandido
tentasse atingi-lo quando ele estivesse vulnerável.
Por que correr o risco e a dificuldade para forçar a crise? Ele poderia voltar para Kirella e
viver confortavelmente lá, exceto pelo sussurro na parte de trás de sua mente.
Por que não rastejar de volta? Ou viver com um escravo ao canto de Saravio? É isso ou
cumprir a ordem de meu pai.
Eduin tinha chegado ao outro extremo da sala, de costas para Saravio. Suas mãos se
fecharam em punhos, tão duro e apertado que os músculos em seus antebraços tiveram
cãibras. Seu corpo tremia.
Palavras surgiram em sua mente, os pensamentos de outro momento de desespero, mas
agora, ao que parece, parecia se encaixar mais perfeitamente em sua vida. Ele não tinha
percebido como tais palavras eram verdade.
Eu vou viver a vida em meus próprios termos ou eu vou acabar com ela.
O tremor parou sendo substituído por uma determinação implacável. Ele mordeu com
força, apertando sua mandíbula fechada, e se virou.
Saravio continuava imóvel como se estivesse em seu próprio caixão, com as pernas
estendidas e as mãos cruzadas sobre o peito. Sua cabeça virou para um lado, expondo sua
garganta.
Eduin atravessou a sala a passos largos. Ele abaixou-se para a cama, relaxando seu corpo
como ele tinha aprendido a fazer em Arilinn. Respirando profundamente, ele encontrou
uma posição em que ele pudesse ficar confortável enquanto sua mente estivesse livre. Ele
fechou os olhos e toda a consciência de seu corpo físico diminuiu. Ao longe, ele sentiu os
campos de energia vindos dos canais de energia do outro homem.
A primeira preocupação de Eduin foi para vasculhar os arredores. Callina ou um dos
laranzu'in que cuidavam dos carros aéreos abaixo poderiam sentir o que ele estava
fazendo. Não havia nenhum indício de uma mente treinada, nem mesmo a presença do
Guardião da Torre.
Ele sentiu apenas o murmúrio das mentes comuns preocupadas com coisas como a
direção de uma fraca corrente sobre as rochas. Facilmente Eduin bloqueou tais mentes da
sua e moldou seus pensamentos como a ponta de uma lança. Era a sua imagem favorita,
uma ponta perfurante para atingir o núcleo do problema, com apenas um único objetivo,
nunca vacilando ou virando de lado. Então ele atirou-se para o redemoinho do espírito
adormecido de Saravio.
A última vez que Eduin forçou tal relacionamento, ele tinha encontrado um lugar
sombrio e estranhamente familiar. Um céu e rochas devastados pela tempestade. Agora,
ele via uma paisagem em ruínas, em parte pelo excesso de trabalho. Era um caos pálido,
uma torção de luz e forma. A mente de Saravio havia se desintegrado quase totalmente.
Não admira que ele passasse tanto tempo em um estado de transe, apenas levemente
consciente do mundo ao seu redor.
Naotalba! Eduin chamado silenciosamente. Ele usou o nome como um ponto focal. Se
alguma coisa poderia trazer ordem nesta desordem retorcida, seria essa figura, a paixão
central da mente delirante de Saravio.
NA-O-TAL-BA...
Ventos invisíveis rasgaram a palavra a sílabas e enviou-os girando, espalhando nas
correntes cambiantes de luz.
Eduin sentiu uma agitação distante como um reconhecimento. Deve haver uma marca da
imagem de Naotalba em algum lugar, que ele poderia evocar e usar.
Olhando em volta, Eduin ficou impressionado com a semelhança deste lugar mental com
o Mundo Superior. Era como se Saravio tivesse copiado um pouco dessa dimensão estranha
dentro de si mesmo ou talvez este fosse um resíduo de sua loucura.
Em seus anos de treinamento na Torre, Eduin tinha aprendido a usar a energia primordial
que compunha o Mundo Superior. Um homem dotado de laran e disciplinado na sua
utilização, como era o seu caso, poderia impor formas e como uma imitação da realidade
física.
No Mundo Superior, Eduin tinha visto Torres erguidas, reflexos de suas verdadeiras
formas, tinha encontrado outra leronyn tão sólida e vívida como quando era em vida. Ele
estremeceu interiormente, lembrando aqueles momentos em que havia encontrado
homens que só existiam nesse plano sobrenatural. Por um momento doentio, ele viu a
forma evanescente de seu pai como ele o tinha visto no Mundo Superior, um espelho
fantasmagórico de sua forma.
A boca vaporosa abriu mais uma vez, exalando um ar que não era sinal de vida, mas era
assustador e fez o sangue dentro das veias de Eduin gelar. Os lábios se curvaram, formando
palavras.
- Você jurou... Você jurou...
Seu coração bateu dolorosamente e Eduin congelou. Os tentáculos gelados do comando
de seu pai enrolavam-se ao redor de seu coração. Suas têmporas latejavam com o medo.
Ele sabia o que tinha sido feito com ele e por quê. Ele nunca tinha tido uma vida própria,
nunca tinha sido nada além de um instrumento da obsessão de seu pai pela vingança.
Quando ele tentou resistir pelo amor por Carolin, por compaixão, por decência, por sua
própria vontade que tinha sido arrancada dele.
Assim como ele estava prestes a fazer agora com este homem impotente diante dele.
Que escolha ele tinha? Ele não conseguia sequer fugir para sua própria morte. Se ele
tentasse, a sombra de seu pai iria persegui-lo por toda a eternidade.
Perdoe-me. Ele sussurrou nos confins de seus próprios pensamentos mais íntimos e sabia
que não iria haver nenhuma clemência para o que ele estava prestes a fazer.
Eduin começou a trabalhar. Ele se inclinou para recolher punhados de nuvens de
pensamento para esculpi-las como se fossem argila. Ele não era bom artista, mas ele não
precisava ser. Uma vez que a forma básica foi criada ele precisaria apenas imaginar suas
características.
Ele estava condenado de qualquer forma a ser atormentado e viver em desespero se ele
não cumprisse seu juramento ou às consequências de suas ações com a violação dos
princípios morais mais básicos do trabalho laran. Ele tinha jurado nunca mais entrar na
mente de outra pessoa, na mente consciente de um adulto, não como a obediência
inquestionável de uma criança, sem ser convidado. Quantas vezes ele já havia quebrado
esse juramento?
Eu prefiro ser condenado pelo que faço do que pelo que eu deixo de fazer.
De qualquer maneira, ele era perjuro, além de qualquer redenção.
Enquanto Eduin trabalhava ele não pensou em quem Naotalba poderia ter sido, uma
mulher que se tornou uma lenda, ou uma entidade espiritual que carregava alguma
emoção primordial profunda, mas apenas no que ela representava para ele.
Em sua forma emergente, ele derramou toda a sua própria maldade desesperada, seus
anos de ressentimento contra Varzil e aqueles que estavam com ele. Desde os primeiros
Guardiãos em Arilinn que se recusaram a treiná-lo como um Guardião, passando por Carolin
Hastur com seus sonhos de paz e de fraternidade, a ferida ainda crua de sua separação de
Dyannis, os anos de embriaguez miserável... Ele pegou cada momento de dor, de ódio, de
vingança e usou-os na formação dos traços de Naotalba.
Quando Eduin fez isso ele se tornou ciente de um poder ainda mais obscuro que fluía
através dele, uma amargura que estremecia através de seus ossos, tão frio e congelado que
ironicamente queimava tudo o que tocava. Não foi apenas o seu ódio pessoal contra Varzil
e sua determinação de ser livre através da destruição do homem que tinha estado tantas
vezes em seu caminho, mas também pela vingança de seu pai. Aquilo que ele tinha criado,
retorcendo sua própria vida e fazendo dele o que ele era, agora corria por ele e para a
estátua de Naotalba.
Quando a Eduin terminou, ele se afastou para olhar seu trabalho. Ela era novamente a
mulher que ele tinha visto inicialmente: humana, desolada e belíssima. Ele viu quando ela
se virou para ele com aqueles olhos cinzentos luminosos vendo tudo de uma só vez.
Naotalba! Ele chamou e viu como ela inclinou sua cabeça em reconhecimento.
A voz tremeu através da fibra do seu ser.
Eu estou aqui. O que você busca de mim?
Um tremor atravessou o firmamento da mente adormecida de Saravio. Admiração,
reconhecimento... Terror.
Eduin enfrentou a deusa que ele havia criado e respondeu a ela. Liberdade.
Os lábios incolores curvaram-se num sorriso que não tinha nenhum traço de alegria.
Olhos brilharam como aço congelado. Sua capa ondulava como se fosse viva, estendendo
suas dobras sombreadas. Instintivamente, ele se afastou dela.
Liberdade? Naotalba perguntou. Eu vejo em seu coração tudo o que deve acontecer para
você estar finalmente livre. Deseja uma morte.
Sim.
A morte, você diz, mas vai exigir muitas mortes para tornar o mundo certo novamente.
Você ainda deseja isso?
O erro foi cometido antes de que eu fosse concebido no ventre de minha mãe! O grito
saiu espontaneamente dos locais mais profundos de sua mente. Eu não tenho escolha a não
ser continuar! Não há outro caminho. Essa busca, mesmo sendo tão terrível, não foi
escolhida por mim e não é minha própria criação.
Depois de ter colocar o seu pé neste caminho, você não poderá voltar atrás. A voz de
Naotalba saiu ressonante como o badalar de um sino da morte.
Embora ele tremesse como se estivesse sobre à beira de um abismo, Eduin inclinou a
cabeça em concordância. Eu quero sim. Não importa a que custo.
Muito bem, você terá a sua morte.
Ela me livrará de Varzil O Maldito e eu serei livre.
Capítulo 36
A escuridão se apoderou dele. Por um tempo ele não sabia nada, não sentia nada.
Gradualmente, como a infiltração de brilho do leste em uma manhã nevoenta, ele voltou a
si.
Eduin flutuou em um lugar que não era nem o Mundo Superior, nem o reino físico e nem
a estranha consciência que era a mente adormecida de Saravio. Em torno dele, dentro dele,
havia um mundo sem visão, sem audiência, sem gosto ou movimento. Espalhados por um
campo invisível diante dele, viu os nós de energia do pensamento e sabia que cada um era
a consciência mais íntima de uma pessoa viva. Saravio era o mais próximo, com Romilla e a
leronis do castelo um pouco mais longe. Haviam outros que não reconheceu ou então
descartou por sua de pouca utilidade. A presença de Lord Brynon era tão fraca a ponto de
ser apenas acessível. A Rainha Julianna não estava presente ali.
Eduin sentiu outra presença, desta vez atrás dele, como se alguém estivesse cuidando de
seu ombro. Ele quase podia sentir a agitação de ar ao longo da parte de trás do seu
pescoço, o calor de outro corpo um fio de cabelo, o pulsar do coração de outro.
É desta forma que é feito, uma voz silenciosa sussurrou em sua mente. Ele reconheceu a
voz de seu pai e deixou ondulações de dor familiares passarem. Você move assim, torce
assim e deixa indelével com a marca de sua própria vontade.
Isso tinha sido feito à ele. Então ele iria fazer em seu próprio companheiro de viagens.
Naotalba, a figura que ele tinha criado a partir de seu próprio ódio, estava de um lado, e à
sombra de seu pai, por outro. A determinação implacável e malevolência surgiu através dele
e parecia que esses sentimentos não eram só dele. Ele entregou-se a eles abdicando de
todos os vestígios de generosidade, bondade ou compaixão. Ninguém nunca tinha
oferecido isso para ele. Certamente, seus inimigos mereciam as ferramentas que ele teria
que usar para atingi-los.
Desta forma... O sussurro era duplicado agora, como se duas vozes falassem com um
único pensamento.
Eduin estendeu a sua mente para a de Saravio. Desta vez, seus pensamentos não tinham
a forma de ponta de lança, mas sim de um ferro farpado como ganchos ou garras. Ele
colocou-o profundamente dentro da mente de Saravio.
Sempre que Naotalba for mencionada, em palavra ou pensamento, haverá alegria, ele
comandou. Mas sempre que o nome de Varzil Ridenow de Neskaya, aquele que é chamado
Varzil O Bom, surgir nas mentes ou nos lábios dos homens, haverá dor. Dor, medo e ódio.
Por um longo momento não houve resposta e ele se perguntou se a consciência de
Saravio estava muito desordenada para aceitar o comando. Então ele viu como a mente do
outro homem surgiu e ficou em torno da figura da vingativa Naotalba. Saravio tinha ficado
quieto, travado entre temor e terror, esperando apenas para a ordem que traria sua missão
de vida mais uma vez.
Mate! A figura disse, mas desta vez não falou com a voz de seu pai, mas com a sua
própria. Mate Varzil!
Eduin observou por tempo suficiente para ter certeza de que Saravio iria servi-lo, da
mesma forma que ele tinha servido à compulsão de seu pai, com o pensamento, ação e
usando seu laran. Quando abriu os olhos, viu que Saravio também estava se mexendo.
Os olhos de Saravio brilhavam contra a palidez de sua pele.
Seus lábios se moveram sem som por um tempo até que ele conseguiu emitir sons.
- Você estava certo, Eduin. Naotalba respondeu às nossas orações. Ela falou comigo e me
mostrou como derrotar seu inimigo. Eu tenho que ir para fora entre essas pessoas e
procurar todos os vestígios de sua vil influência. Vai me ajudar nesta obra sagrada?
Lentamente, Eduin sorriu. - Eu estou agora, como sempre, ao seu serviço.
Uma hora depois, uma batida, leve e hesitante soou na porta de sua câmara. Eduin abriu
a porta e viu Callina parada. Ela tinha mudado seu vestido para um de um cinza pálido,
bordado com lírios de neve ao longo mangas e um decote modesto, com uma túnica solta
como as usadas para o trabalho nas Torres. Qualquer outra mulher, aparecendo na porta
de um homem no meio da noite teria ocasionado um escândalo irrecuperável. Callina usava
sua inocência como uma armadura.
Eduin curvou-se e deu um passo atrás para ela entrar.
- Sinto muito incomodá-lo, mas eu procurei por Sandoval Santíssimo no grande salão e
não o encontrei. - Seu olhar encontrou o rosto de Saravio. Dor e esperança irradiavam dela.
- Minha filha. - Eduin murmurou, tomando-lhe a mão.
Apesar do calor da noite, os dedos estavam frios como o gelo. Embora ele não tivesse a
intenção de ler os pensamentos dela, o toque físico catalisou uma ligação telepática entre
eles. Tão vividamente como se ela tivesse desenhado o retrato com tintas, viu o rosto de
um jovem, sério e rindo, sua brilhante espada no sol da manhã, com características que
espelhavam a sua própria. Na imagem, o homem tomou Callina em seus braços e Eduin
sabia que era a última vez que ela tinha visto seu irmão gêmeo vivo.
Eduin sentiu uma sombra erguendo-se como uma maré. Com a ligação dupla
aumentando o poder de sua visão telepática, ela tinha montado com ele, tinha sentido o
cheiro do sangue e cinzas do campo de batalha, sentiu a barra espada através de sua lateral
como se tivesse sido atingida. Enrolada sozinha em seu quarto na Torre, ela havia sofrido
cada momento de sua longa morte.
Em seguida, fragmentos de outras memórias o atingiram, frágil como asas de mariposa.
Ele sentiu o toque da mente de seu Guardião, a preocupação paternal.

Coitada, ter visto a batalha com sua mente ainda virgem de tais horrores... As mulheres
são muito sensíveis para esse trabalho.
A mesma voz, agora falando em voz alta, explicou que ela deve deixar Temora para um
posto mais fácil, para viver entre as senhoras e executar tarefas não mais difíceis do que
preparar poções para dormir ou testar o laran das crianças. Com o tempo e descanso, sua
mente iria se recuperar.
Então veio a doença dormente de deslocamento, a solidão que comeu como um câncer
em seus ossos...
- Você não precisa explicar. - Eduin disse com uma onda de compaixão. - Sandoval
Santíssimo entende que algumas tristezas não podem ser ditas em voz alta. Ele sabe que
você veio para o conforto cicatrizante de Naotalba.
- Oh! - Ela chorou com um soluço.
Agora, convocado por um apelo que não podia desafiar, uma energia nova impregnava
os dons de Saravio. Seus olhos brilhavam.
- Vem. - Eduin disse, apontando para as duas cadeiras dispostas em frente à pequena
lareira. Nenhum fogo tinha sido aceso, pois, embora a temperatura já estivesse caindo,
ninguém era esperado para passar esta noite em sua própria cama.
Eduin colocou cada um em uma cadeira. Dentro de alguns minutos, Saravio começou a
cantar. Eduin sentiu a resposta instantânea dentro de seu próprio corpo, o pulso e salto de
prazer.
Ele sofria para não se entregar a ele, apenas por um momento de tranqüilidade, uma ilha
na tempestade de eventos.
Certamente um breve descanso iria ajudá-lo... Um momento entre as árvores
prateadas... A saudade o atingiu, doce e amarga ao mesmo tempo. Ele tinha fechado os
olhos, balançando com a melodia silenciosa, as ondas de laran estimulando. Não havia a
antiga floresta, nem o eco de da canção chieri. Em vez disso, sombras dançavam e o fogo
surgiu. Uma voz sussurrou para as chamas, alimentando-os com a sua substância e pelo
espírito permaneceu até nada sobrar, apenas sombras e cinzas.
Não! O grito rasgou de algum lugar dentro dele. Ele não podia desistir, não agora, não
depois de tudo o que ele passou. Varzil e a paz a sua morte aconteceria, ainda não estava
ao seu alcance, mas aconteceria e rápido.
Eduin focou sua atenção na jovem leronis. Por baixo da aparência jovem, o corpo de
menina esguia carregava um núcleo de poder. Seu laran brilhava como um espelho de aço.
Ela foi treinada na Torre.
Mas ele, ele era Eduin Deslucido e o sangue de feiticeiros e reis corriam em suas veias. Se
ele pôde esconder seus segredos dos membros de Arilinn e Hali, duas das Torres mais
poderosas que Darkover já tinha conhecido, se infiltrar na mente de uma leronis treinada
devia ser fácil. Ele suavizou sua presença psíquica a um sussurro, um brilho suave. Ela tinha
apenas barreiras mais frágeis no local, apenas o suficiente para filtrar as conversas
psíquicas em outras partes do castelo. Sob a influência de Saravio, ela tinha suavizado todas
as outras defesas.
Como a névoa, ou uma seda, ele enroscou-se através das camadas exteriores da sua
mente.
Nesse momento a mente de Callina estava aberta, receptiva e desprotegida. Eduin podia
controlá-la, moldar sua animosidade contra Varzil, fazer ela usar sua influência sobre a
rainha sem entender o porquê. Mas ele tinha um uso diferente para ela, não só para seus
talentos, mas também para sua posição. Ao contrário dos outros habitantes do Castelo
Valeron, ela tinha acesso à Torre e todas as suas instalações, mais particularmente as telas
de retransmissão que os ligavam a qualquer outro círculo ativo.
Um arrepio subiu nele, frio como o vento da Forja de Zandru. Através dela, ele poderia
procurar no mundo das Torres a localização de Varzil. Então, quando o tempo chegasse, ele
saberia onde atacar. Ou talvez alguma oportunidade se apresentasse, alguma circunstância
em que Varzil estivesse em alguma missão, longe da proteção da Torre ou dos guardas de
Carolin.
Encontre Varzil... O comando reverberou através da mente da menina.
Encontrar Varzil... Ela respondeu com toda a solenidade de um juramento.
Capítulo 37
Dez dias após a Noite de Verão, arautos sinalizaram a aproximação de uma companhia
diplomática de Isoldir, viajando sob uma bandeira de trégua. Lady Julianna colocou suas
próprias forças em prontidão para que Isoldir encontrasse uma recepção da guarda
devidamente preparada para agir com força.
Após a chegada de Isoldir, Eduin e Saravio foram para o hall central, atrás da massa de
cortesãos e servos. Romilla estava perto da frente, ao lado do pai. De Julianna, Eduin só
podia ver a curva do cinza pálido que era o seu trono e uma cortina de vestido de brocado
azul-gelo. Ele não conseguia ouvir nada acima da tagarelice dos cortesãos, nem mesmo
quando o enviado Isoldir começou a falar. Frustrado, ele tentou empurrar passado um
homem armado, alto e musculoso.
- Mantenha-se para trás ou você vai encontrar-se com os porcos. - O homem rosnou,
acrescentando uma frase indicando que Eduin não era mais que um brinquedo de senhoras.
Eduin reprimiu uma resposta. Saravio tocou sua manga e se inclinou em direção a ele.
- Naotalba está agindo aqui. Eu posso sentir sua presença.
Em vez de tentar ouvir e ver, Eduin estendeu seu laran. Ele não se atreveu a deixar cair
suas barreiras psíquicas inteiramente, pois isso o deixaria aberto para a onda de emoções
da multidão. Em vez disso, ele se concentrou estritamente em Romilla. Ele conhecia o
padrão de seus pensamentos, a marca de suas visões de Naotalba e fogo. O desespero que
já a tinha estimulado a procurar libertação na morte tinha diminuído a uma sombra
adormecida.
Imagens formaram-se no fundo da mente de Eduin, obscuras e indistintas, mas, sem
dúvida, via com os de olhos de Romilla. Ele ouviu uma frase ou duas até conseguir
acostumar-se com o padrão auditivo da menina.
As apresentações estavam chegando ao fim. Eduin ouviu o bastante dos discursos para
entender que o emissário era Dom Ronal, Senhor do Isoldir. As exclamações de surpresa e
desconfiança abafaram o que veio a seguir e abalou a relação telepática tênue de Eduin
com Romilla.
Fervendo de frustração, ele tentou restabelecer o vínculo, mas havia muita confusão,
muitos pensamentos agitados. Um pandemônio o atingiu. Ele se encolheu sob o ataque,
seus sentidos laran cambalearam. Ele ergueu as barreiras no lugar, tão duras e firmes como
se estivesse de volta em Arilinn. Por um longo momento, sua visão ficou escura, tão intensa
era a sua concentração interior.
Seu vizinho, um homem corpulento o empurrou, grunhindo: - Cuidado!
Eduin se desculpou. A proximidade de tantas pessoas afetaram seus nervos. Na maior
parte de sua vida adulta ele tinha ou vivido em uma Torre, onde era proibido o contato
físico casual, ou ele tinha ficado muito bêbado para se preocupar com isso. Nem mesmo
suas barreiras de laran poderiam protegê-lo de ser empurrado de todas as direções, do
cheiro e o calor de tantos corpos. Nessa comoção, ele não se atrevia a arriscar mais uma
tentativa de contato mental.
Com tal luta para manter seu auto controle, Eduin preferiu focar nos sentidos ordinários.
Não havia muito para entender, embora ele não tivesse problemas em captar poucos dos
murmúrios daqueles mais próximos do trono.
Dom Ronal havia de fato se apresentado a Lady Julianna sob bandeira de trégua. Ela tinha
lhe oferecido as boas-vindas e mostrado a proteção pela postura da guarda adequada para
aquele que tinha sido um inimigo e cujas intenções atuais não eram claras. Ele e seus
homens tinham passado por suas terras com guardas que, embora sem dúvida estivessem
fortemente preparado, eram, no entanto, apropriados devido seu posto.
Lady Julianna levantou-se, indicando que a audiência estava no fim. O mensageiro de
Isoldir curvou-se profundamente e retirou-se sob sua escolta. Com a sua partida e a da
Rainha, o resto da multidão começou a se dispersar.
- O que eles querem? - Um dos servos da casa perto de Eduin perguntou. - Você acha que
eles já aprenderam a lição.
O outro, o homem corpulento que tinha empurrado Eduin, balançou a cabeça,
respondendo: - Eles vieram sob trégua, você não ouviu? Seja o que for, vamos saber quando
a senhora tiver lidado com eles.
Eduin, tendo deixado Saravio em segurança em seus aposentos, passeou pelos
corredores públicos onde cortesãos estavam reunidos e muitas fofocas podiam ser ouvidas.
Ele tinha descoberto a muito tempo que ele era, como qualquer outro servo, considerado
invisível, mas ouviu pouco. Um velho insistia que Lady Julianna devia torturar Dom Ronal,
ou pelo menos forçá-lo a assistir a tortura de seus parentes, a fim de obter conhecimento
de sua verdadeira missão em Valeron. Outros insistiam que o grupo de Isoldir tinha vindo
para organizar um acordo com o casamento de damisela Marelie, herdeira de Julianna, com
um dos filhos de Dom Ronal ou possivelmente para o próprio senhor de Isoldir.
Eduin tinha conquistado a confiança dos servos mais bajuladores. Ele desceu para os
estábulos, colocou um avental de lona e pegou emprestado um carinho mão para ir até os
cavalos de Isoldir. Lady Julianna não queria correr riscos e tinha ordenado que os animais
fossem colocados sob seu controle.
- Agora, por que a senhora quer jogar fora essa vantagem, e sobre um homem que ela
poderia ter jogado ao chão? - O cavalariço bufou. Ele se inclinou para examinar o próximo
casco traseiro do animal. - Você vê isso? Pobres criaturas, têm uma rachadura direita
através da estrutura. É mau trabalho do ferreiro. Vou falar com o nosso ferreiro para fazer
um trabalho melhor.
O cavalariço endireitou-se para olhar as patas do cavalo seguinte. Nem a montagem era
da qualidade que seria de esperar de um Lord, mesmo de um pequeno reino como Isoldir.
Qualquer nobre que podia possuir mesmo um único carro aéreo certamente poderia pagar
por cavalos melhores. Não era o único com o casco danificado. Este estava balançando para
trás com os jarretes tortos, e o seguinte tinha um olho opaco, esbranquiçado. Nenhum
deles estavam aptos para a batalha, mas eles eram provavelmente os melhores ao alcance
de Isoldir no momento. Ele disse em voz alta que, dado o estado de suas montarias, ele
duvidava que a companhia de Isoldir estivesse em posição de negociar qualquer coisa.
O cavalariço deu um tapa na garupa do seu cavalo que virou a cabeça e começou a
brincar mordiscando o cabelo do homem. Rindo, o cavalariço passou para o outro, a égua
cega de um olho.
- Se você me entende, Isoldir deve ter vindo para negociar já que a Rainha os deixou aqui,
mas eu não consigo imaginar o que eles poderiam oferecer a ela que ela não pudesse tomar
por si mesma.
- Particularmente, eu também acho. - Eduin disse em um tom relaxado.
- De qualquer forma, mesmo que viessem espionar, de que serviria permitir que os seus
cavalos fossem guardados por nós?
Eduin inclinou-se para o seu trabalho, escovando a lama seca nas patas do cavalo, e
refletiu que o cavalariço sabia mais dos assuntos de Estado do que dez cortesãos juntos.
Em seu caminho de volta para seus aposentos, ele parou para conversar com um dos
assistentes do cozinheiro, uma menina de nariz arrebitado cujas faces sardentas sugeriam
que ela podia ter sangue Comyn. Ela equilibrava uma cesta de vegetais de raiz em um
quadril, muito feliz em compartilhar o que ela tinha descoberto.
O partido de Isoldir tinha trazido notícias da estrada. Uma nova praga, chamada de
doença mascarada por causa das feridas pretas que cobre suas vítimas, tinha surgido nos
países do norte. Os atritos entre Ridenow e o reino das Astúrias haviam se intensificado, e
Varzil tinha ido para a capital das Astúrias para negociar em nome do Rei Carolin Hastur.
Eu espero que eles o prendam como um espião!
- Quem te disse isso? - Eduin perguntou. - Os homens de Isoldir?
- Oh, não. Eles só falaram sobre a doença mascarada. Pepita, que auxilia Lady Romilla,
ouviu damisela Callina falando de Varzil O Bom. Eles estão dizendo que, a menos que Dom
Varzil possa acertar um tratado, a Rainha Ariel irá para a guerra . Oh, isso vai ser um
momento terrível, quando parentes precisam pegar em armas uns contra os outros!
- Sim, de fato. - Eduin disse enquanto acariciou seu ombro e lhe ajudou em seu caminho.
Então Varzil tinha ido para Astúrias. Eduin sabia pouco sobre essa briga. Asturias era
defendida por um general implacável conhecido como o Lobo de Kilghard, e recentemente
ocupara o reino vizinho de Marenji. Tal homem podia não ser amável com um homem de
palavras e amante da paz, ou estar disposto a entregar sua vantagem militar pelo Pacto de
Carolin.
Não havia nada que Eduin pudesse fazer, nem via alguma maneira de usar a notícia para
intensificar suspeitas contra Varzil. Não havia nenhum ponto para ajudar a criar novas
hostilidades com Isoldir. A única coisa a ser feita era observar e esperar.
Capítulo 38
Na noite após a chegada do emissário de Isoldir, Eduin e Saravio encontraram Romilla em
seus aposentos. Ela enviou um servo para chamá-los. A notícia de que a rainha Julianna e
seus assessores já tinham se reunido em segredo com Dom Ronal voou pelo castelo. Eduin
esperava que Romilla tivesse participado da reunião. Se assim fosse, ele pretendia utilizar
todos os meios disponíveis para saber o que tinha acontecido.
Quando chegaram aos aposentos de Romilla, eles encontraram um aconchegante e
iluminada sala de estar. Fileiras de velas caras de cera de abelha preenchiam a câmara com
luz dourada iluminando divinamente o polimento dos móveis de prata incrustada. Alguns
incensos com aroma de bosque tinham sido adicionados ao fogo. Um dos servos de Romilla
estava segurando uma taça e uma garrafa de vinho cor de âmbar.
Romilla sentou-se, arrumando suas saias com um maneirismo que ela tinha copiado de
Julianna. - Tire isso. - Disse ao servo. - Eu não vou precisar disso agora que Sandoval está
aqui.
- Naotalba já sabe o que perturba seu coração. - Disse Eduin e observou o lampejo da
reação em seus olhos. - Ela vai responder a você através de Sandoval Santíssimo...
- É claro. - Romilla interrompeu. - Devo preparar a mim mesma. - Ela se sentou muito
quieta, mas o ritmo inquieto de seu discurso denunciou sua agitação.
Com a menção à Naotalba, Saravio começou a cantarolar em voz baixa. Eduin, mesmo
com suas barreiras de laran erguidas, sentiu o pulso das emanações psíquicas. O efeito
sobre Romilla foi imediato. Suas pálpebras se suavizaram, sua respiração ficou presa e
depois diminuiu. A cor em suas bochechas intensificou minuciosamente.
- Tudo vai ficar bem. - Eduin murmurou. - Fale em voz alta o que a incomoda para que
Naotalba possa derramar o bálsamo de sua cura sobre de você.
- É... Certamente é apenas loucura... Nascida dos meus velhos medos. Eu não deveria ter
tais... Tais dúvidas...
Sua voz foi sumindo, as frases confusas acalmando, e naquele momento ela parecia
muito jovem, seu orgulho e auto-confiança apenas uma casca frágil sobre a menina
assombrada por pesadelos que Eduin tinha conhecido no início. Lembrou-se da primeira
vez que a viu em Kirella, a escuridão manchando seus olhos, seus dedos puxando as
ataduras brancas em seus pulsos.
Ela tinha sido assim no passado e ela poderia voltar ser novamente, se houvesse
qualquer vantagem nisso para ele.
- Eu pensei que seria tão fácil sentar-me em um conselho, - continuou ela - o julgamento
sobre tudo seria tão claro.
- Você está sob os cuidados de Naotalba - disse ele com uma voz suave - e é por ela que
você vai tomar o seu lugar de direito como herdeira de Kirella. Contanto que você
permaneça fiel a ela e submeta-se a sua orientação, ela não vai abandoná-la.
Romilla fechou os olhos, uma expressão de alívio tomou suas feições e deu um longo
suspiro. O rubor nas faces intensificou-se, juntamente com som de Saravio.
- Eu sabia que eu iria ver as coisas mais claramente na presença de Sandoval Santíssimo.
Sim, vejo melhor.
- Descanse com os olhos fechados. - Disse Eduin, mudando o tom de tranquilidade para a
voz de comando. - Sandoval vai cantar para você agora e deixará a bênção de Naotalba fluir
em você. Através dele, você nunca estará sozinha.
Com outro suspiro, Romilla se acomodou em sua cadeira. Eduin se voltou o olhar para o
servo que, tendo colocado de lado o vinho medicinal, tinha tomado um banquinho no canto
e agora estava ouvindo com os olhos semicerrados.

O a cotovia no crepúsculo
Ela sobe a partir do oeste...

Saravio levantou a voz, mais forte a cada frase.

E ela voa sobre o campo de batalha


com sangue sobre seu peito...

Uma onda de energia laran varreu as barreiras mentais de Eduin. Ele sentiu seu poder,
escuro e inebriante. Tudo o que ele tinha a fazer era abrir-se e deixar a inundação de prazer
orgástico levá-lo. Os esquemas de grandes lord’s já não importavam para ele, ou a
amargura da vingança não cumprida e sonhos arruinados. Ele ia a pé entre as árvores
escuras e ouvia a música dos chieris, eterna e imutável.
Mas a necessidade o deteve. Ele precisava permanecer vigilante ou a oportunidade iria
passar. A boca de Romilla tinha caído aberta e suas mãos estavam descansando sobre o
braço da cadeira, os dedos se contraindo. Sua mente no momento estava alheia a tudo o
mais, exceto a sua própria felicidade interior.
Eduin gesticulou para Saravio parar de cantar.
- Naotalba falou comigo e deu-me uma mensagem para entregar à damisela. Ela está
bem satisfeita com você.
Saravio inclinou a cabeça, aceitando o elogio, como se tivesse acabado de sair das
Cidades Secas e tivesse sido oferecido à ele um copo de água de nascente. Tal como
aconteceu muitas vezes depois que Saravio tinha usado suas habilidades psíquicas, Eduin
sentiu a languidez que escoava através dele, pesando seus membros, embotando a sua
consciência. Em um curto espaço de tempo, Saravio iria cair em uma lassidão com a mente
e o corpo se recuperando do gasto de energia.
Eduin estendeu seu laran para a mente adormecida de Romilla. Seus sonhos estavam
mais vivos do que antes e as sombras, embora ainda presentes, tinham recuado a uma boa
distância. Ele viu os olhares dos jovens que haviam colocados cestos de flores aos seus pés
ou tinham se curvado diante dela no baile. Ele sentiu a emoção inebriante de estar ao lado
Julianna no Conselho.
Mais, mostre-me mais...
Ele empurrou contra as barreiras que cercavam suas memórias. Dor queimando-o, era a
proteção instintiva contra a invasão psíquica, mas ele inspirou-se em seu próprio poder
para superá-la. Ele precisava de mais do que sonhos fragmentados e as reações emocionais
de uma jovem inexperiente em assuntos de guerra e política. Se o partido de Isoldir tinha
falado o nome de Varzil Ridenow, ou tinha sido manchado por sua influência, Eduin
precisava saber.
O toque semelhante a uma formiga-escorpião que era o comando de seu pai despertou.
Encontre... Encontre-o...
Fragmentos de pensamento e de cor surgiram. Aos poucos, como se emergindo de uma
névoa, Eduin tornou-se consciente de seu entorno como Romilla os tinha visto. As
memórias eram nebulosas, tendo pouco senso de distância ou solidez. Ele podia ver e ouvir,
embora de uma forma distorcida. A sala à sua volta era estreita e escuro, sem janelas para o
exterior. Uma radiação branca e fria era difundida a partir de quatro brilhos emitidos com
laran, lançando sombras borradas nos rostos das pessoas que tomaram os seus lugares em
um círculo. O olhar de Romilla passou da rainha Julianna para o homem à sua frente. Eduin
podia ver pouca coisa, mas ele supôs Lord Brynon estava presente, bem como o Geral
Marzan e os outros conselheiros chefes.
A reunião começou aos trancos e barrancos, como se Romilla não conseguisse prestar a
devida atenção. Suas emoções, ansiedade e euforia predominavam a oprimindo. Em
momentos, Eduin pegou trechos do discurso, o suficiente para reconhecer as formalidades
de abertura. De repente, as palavras e visão surgiram claramente.
Dom Ronal fez menção de se aproximar Julianna, mas um par de guardas Aillards
avançaram. Ele parou e curvou-se profundamente.
- Sua Majestade, rainha graciosa, chegou o momento de pôr fim às hostilidades entre os
nossos dois reinos. Desde antes do tempo de nossos pais, temos desconfiado e tentado
ferir um ao outro. A suspeita e medo nos levaram a buscar cada vez mais métodos terríveis
de destruição. Em vez de aumentar a segurança das nossas terras, o resultado foi o oposto.
- Como você aprendeu com sua tristeza. - Julianna comentou secamente.
O Lord de Isoldir inclinou a cabeça. - Eu não tenho nenhuma justificação para minhas
ações, exceto perguntar com todo o respeito se você não teria feito o mesmo, caso nossas
situações fossem invertidas.
- Você se atreve a dizer tal coisa, quando é pela própria boa vontade da Senhora que seu
castelo ainda está de pé? - A voz de Lord Brynon veio do lado.
Julianna fez-lhe sinal para calar-se. - Deixe o homem falar. Gostaria de ouvir o que o
trouxe aqui. Eu suponho, - ela agora dirigiu suas palavras ao Lord Isoldir, - que você tenha
vindo pedir pela paz.
- Se isso é o que eu preciso fazer para trazer um fim à inimizade entre nós, então sim. -
Dom Ronal respondeu. - Só um tolo se agarra a garganta de seu inimigo quando sua casa
está queimando. Lord Brynon fala a verdade. Vai Domna tem sido misericordiosa para
conosco, mais do que nós teríamos sido com vocês. No entanto, se o nosso ataque tivesse
sido realizado como o planejado, seriam vocês quem estariam agora de joelhos em Isoldir.
Um dos conselheiros gritou em indignação e um guarda avançou com a mão sobre punho
da espada. A visão de Romilla desapareceu em uma onda de emoções, mas apenas por um
momento.
- Três carros aéreos partiram da Torre Cedestri naquele dia, - Dom Ronal continuou, - mas
apenas um continuou em seu curso, apenas um para você se defender. Os outros pilotos
voltaram por vontade própria porque eles tinham se convencido da loucura sobre as armas
de laran.
- Três carros aéreos carregando essa nova forma hedionda de pó derrete-osso? - Disse o
general Marzan. - Vimos dois na Torre Cedestri, mas não sabia que eles tinham participado
no ataque. Se soubéssemos, não teríamos deixado uma única pedra erguida ou um único
laranzu capaz de respirar. Sua Majestade, se mesmo um deles tivesse conseguido, todas as
nossas terras e castelos teriam sido devastadas até a era dos filhos de seus filhos.
- Então, - Lord Brynon disse em uma voz que só Romilla podia ouvir, - Dom Ronal teria
uma vitória vazia, uma terra que ele não poderia usar devido a retaliação e aquelas poucas
almas deixadas vivas agora estariam prontas para a vingança. Sim, elas, seus filhos e os
filhos de seus filhos.
- Por que? O que eles podem então fazer contra Valeron, exceto nos desejar o mal? -
Romilla murmurou em resposta.
Em sua memória sonhadora as características de seu pai apareceram, sobrancelhas
juntas, boca tensionada. - Não subestime o ódio, minha filha, ou as consequências de uma
lesão tão terrível. Os homens caídos nem sempre permanecem impotentes e a injustiça
tem uma maneira de voltar sobre si mesma.
- Pai, como pode ser errado se defender contra um ataque não provocado? Será que não
iria pôr fim à briga?
Antes que Lord Brynon pudesse responder, Julianna retomou o interrogatório.
- Você veio até aqui apenas para nos dizer que você quis nos prejudicar ainda mais do
que você fez? Por que não devo arrancar sua cabeça de seus ombros, neste exato instante,
em vez de deixar um inimigo vivo para atacar novamente?
Mesmo através das imagens borradas da memória sonhadora de Romilla, Eduin viu o
rosto do Lord Isoldir empalidecer e suas mãos tremerem.
- Porque, - Dom Ronal disse em uma voz abalada com emoção, - eu não sou mais seu
inimigo. Gostaria de ver a paz entre nós e estas terras.
Os olhos de Julianna se estreitaram. - A única maneira disso acontecer é com a sua
rendição imediata.
O silêncio, um silêncio pesado, envolveu o cômodo. Lentamente, como se o movimento
fosse profundamente doloroso, Dom Ronal se abaixou em um joelho e depois o outro.
- Então eu me rendo, não só eu e Isoldir, mas o nosso um carro aéreo restante, pois o
outro foi destruído durante a sua retaliação estamos à sua disposição. Peço... Peço-lhe para
usá-lo com mais sabedoria do que eu fiz.
- O que ele está fazendo? - Lord Brynon disse baixinho para Romilla. - Isto deve ser algum
artifício para abaixarmos a guarda, nos acalmar com complacência e depois nos atacar.
Ninguém se rende incondicionalmente a não ser que a única outra opção seja a destruição.
Dom Ronal, ainda de joelhos, virou a cabeça para enfrentar Lord Brynon. Eduin, vendo
através dos olhos de Romilla, viu a expressão do governante de Isoldir. Ele não era o de um
homem derrotado, mas de alguém que reuniu toda a sua coragem em suas duas mãos. A
rendição não foi um ato de desespero, mas sim de fé.
Se ao menos eu estivesse lá! Eduin pensou. Eu poderia ter sido capaz de ler seus
verdadeiros motivos! Em vez disso, ele devia se contentar com as memórias esparsas de
Romilla.
- Eu, claro, prefiro uma aliança de casamento ou troca vantajosa para ambos. - Dom
Ronal disse. – Mas tais laços muitas vezes exigem a mais profunda compreensão e respeito
mútuos. Estou aqui para fazer o que puder para colocar os velhos ressentimentos no
passado. Se eu devo dar o meu reino... - e aqui sua voz vacilou, - ...e deixar as terras e as
pessoas que têm estado sob os cuidados de minha família desde a Era do Caos, então assim
seja.
- Que condições você coloca nesta rendição? - General Marzan perguntou.
- Nada, exceto a ressalva de que Sua Majestade jure ser uma rainha boa e justa para o
meu povo, bem como, aceitar a nossa fidelidade e não para exigir que tenhamos que
renegar nossos outros juramentos.
Mesmo através dos olhos de Romilla, Eduin viu o salto de tensão no corpo de Julianna.
- Exatamente o que poderiam ser esses outros juramentos?
- Vai domna, nós juramos respeitar o Pacto de Honra que nos foi apresentado por Varzil,
O Bom. É por sua insistência que eu me apresento aqui hoje.
Varzil! Eu sabia! Varzil enviou-lhe aqui! Eduin se enfureceu por dentro.
Varzil teria descoberto sua localização e agora procurava estender seu poder sobre a
corte em Valeron? Ou ele estava simplesmente fazendo o que sempre fazia, se imiscuindo
nos assuntos que não eram dele?
- Você me trouxe um grande negócio, Ronal de Isoldir. - Disse Julianna.
- Por que ele se apresenta sem qualquer ameaça? - Perguntou o general. - Ele se rendeu,
e não está em posição de exigir nada.
A senhora suspirou, quase imperceptivelmente. Eduin não teria notado, exceto pelo
própriol suspiro de Romilla. A menina tinha conhecimento político suficiente para ver o que
o general pretendia. Aceitar a rendição de Isoldir equivaleria a concordar com o Pacto. Se
Valeron tentasse usar os homens de Isoldir ou algum leronyn da Torre Cedestri em qualquer
batalha, poderia muito bem enfrentar uma rebelião em suas próprias terras.
- Melhor teria sido ficar em casa usando sandálias. - O general Marzan praguejou
baixinho.
Julianna o silenciou com erguendo uma mão.
- Eu aceito, mas sob estas condições. Valeron e Isoldir não farão mais guerras uns contra
os outros. Você e tudo o que resta de seus exércitos irão jurar fidelidade a mim. Em troca,
Valeron vai estender sua proteção a vocês. Qualquer ameaça à Isoldir será defendida por
Valeron e todos os soldados Isoldir vão lutar sob o meu comando. Você, como Lord Isoldir,
pode continuar a gerir os seus próprios assuntos locais, e eu vou nomeá-lo governador sob
lealdade pessoal a mim. Seja qual for o juramento que você já tenha dado ele pode
continuar, desde que não anule o seu juramento primário feito a mim. Este será empossado
por cada um de nós, sob o encantamento da verdade, a ligação a nós mesmos e nossos
descendentes. Você concorda?
- Senhora, eu não esperava uma resposta tão justa e generosa. Invoque seus leronis e eu
prestarei juramento.
Com um sorriso sem graça de soslaio, Julianna apontou para um servo. - Se minha oferta
é justa e generosa tanto faz. Você não vai ter nenhuma outra melhor de mim.
Poucos minutos depois, Callina entrou na sala. Em vez de seu habitual vestido cinzento,
ela usava um manto encapuzado. Nele ela parecia mais velha, mais sombria. Ela parou no
centro do quarto e tirou sua pedra da estrela de um cordão de seda no pescoço. Eduin
observou que a pedra já havia sido libertada do seu medalhão de costume, como se ela
estivesse esperando por essa intimação.
- Lance o encantamento da verdade, - disse Julianna - e vamos provar que Lord Isoldir
está falando sério e se não se atreveu a vir diante de nós com pensamentos de traição em
seu coração.
- Sob a luz desta joia... - Callina começou a entoar o encantamento ritual invocando a luz
da verdade com sua voz de menina. Mesmo ouvindo as palavras através da memória
sonhadora de Romilla, Eduin sentiu um arrepio em resposta ao encantamento. Ele próprio
tinha lançado e estado sob esse mesmo encantamento no qual nenhum homem poderia
dizer senão a verdade ou a luz da pedra iria desaparecer de seu rosto. Mas ele também
tinha estado a salvo protegido pela manipulação psíquica que seu pai tinha chamado de o
Dom Deslucido.
A pedra da estrela de Callina emitia uma luz azul pálida, espalhando-se de um rosto para
o outro e tomando toda a câmara. Ela brilhou nas lágrimas não derramadas nos olhos de
Dom Ronal, no firme rosto da rainha que se parecia com uma escultura de mármore e nas
características escarpadas do general Marzan que tinha o aspecto de um raptor gigante.
O quarto se tornou abafado com a expectativa de todos quando Ronal de Isoldir pôs-se
de pé e começou a recitar suas intenções e o juramento para Lady Julianna. Ele levantou o
rosto, embora em um ponto suas lágrimas tivessem caído sobre suas pálidas bochechas, o
azul pálido estava firme em seu rosto para que todos pudessem ver. Não havia a menor
oscilação no encantamento da verdade.
Enquanto ele falava, uma onda quase palpável de alívio espalhou-se por todo o
ambiente. Até mesmo Lady Julianna suavizou. Por mais impossível que parecesse, o homem
tinha dito a verdade.
Pergunte sobre Varzil! Eduin disse em silêncio. Em seguida, lembrou-se que esses
eventos não estavam realmente ocorrendo, eles eram apenas memórias, vistos
imperfeitamente através da mente sonhadora de Romilla.
Você é uma idiota, Julianna, com todos os seus juramentos e tratados. Se você só
soubesse como é fácil mentir sob o feitiço da verdade, dizer uma coisa mantendo outra em
seu coração... A única maneira de acabar com isso é cortar a garganta de cada homem que
possa estar contra você.
Mas ela não sabia e ele não se atreveria a dizer a ela. O segredo deveria morrer com ele.
As imagens oníricas rasgaram-se como uma gaze fina em um vento com Romilla agitada,
inquieta. Eduin pegou fragmentos do rosto de Julianna quando ela prometeu, por sua vez,
tratar Isoldir com honra.
Tal sucesso dessa reunião atingiu Eduin com violência. Mesmo quando os farrapos da
memória do Romilla caíram, ele viu Lady Julianna ter um olhar mais admirado para Varzil, o
homem que tinha trazido um fim ao conflito com Isoldir. Talvez ela pudesse até considerar
uma aliança com os Hasturs. Ele, Eduin, seria cercado por seus inimigos. Desesperado, ele
se perguntou se ele poderia convencer o general Marzan a agir por conta própria, para
tomar um ataque preventivo contra Varzil nas Astúrias. Talvez através da esposa do
general... Não! Marzan nunca desafiaria Lady Julianna.
Eduin não podia confiar em ninguém. De alguma forma, ele deveria encontrar uma
maneira de convencer a rainha de que Varzil não só era perigoso, mas também traiçoeiro,
que deveria ser destruído antes que seu veneno insidioso pudesse se espalhar.
Empurrando-se profundamente na consciência de sonolenta de Romilla, Eduin usou toda
a sua formação laran. Ele despertou o lugar dentro de sua própria mente onde a voz de seu
pai ainda sussurrava.
Julianna deve saber a verdade e só Sandoval O Abençoado, falando através de seu
intérprete, pode dizer a ela.
Eu o ouço... Veio o leve rastro do pensamento de Romilla. Eu ouço e obedeço.
Então diga isso a Rainha... Que você acredita que Varzil esconde seu verdadeiro propósito
por trás de um véu de mentiras e aparências. Que, mesmo agora, ele estende a mão a uma
terrível arma de laran. Muito pior do que fogo aderente ou mesmo pó derrete-osso. Foi por
isso que ele ajudou a reconstruir a Torre Cedestri. É por isso ele viajou para Astúrias, para
forjar uma aliança entre eles e o Rei Carolin. Diga-lhe que você teme que Carolin Hastur
planeje atacar Valeron, o centro do território Aillard. Diga a ela que Sandoval Santíssimo
testemunhou a potência da nova arma de Varzil. Vimos uma prova no motim do Lago Hali.
Ela deve ouvir-nos para que ela possa julgar por si mesma!
Sim, ela deve julgar por si mesma...
Capítulo 39
- Meus senhores! Meus senhores! - O pagem se encontrava no limiar da câmara de Eduin
e Saravio. Ele era um dos mais jovens, não tendo mais do que seis ou sete anos. Seu rosto
redondo estava corado. Ele devia ter corrido todo o caminho do outro lado do castelo até
ali.
- Ora, qual é o problema? - Eduin perguntou.
- Sua Majestade...ela me enviou... para você... para vir... Imediatamente.
- E você nos levará até lá agora? - Eduin franziu a testa. Ele teria preferido deixar Saravio
dormir um pouco mais. Os períodos de descanso para a recuperação estavam crescendo
cada vez mais. Cada sessão de "cura" parecia drenar mais e mais da energia dele.
- Nós vamos em um momento. - Disse Eduin, acenando de forma tranquilizadora. -
Espere aqui.
Saravio despertou lentamente de seu quase estupor. Eduin podia sentir o quão baixo
suas energias vitais tinha mergulhado. Ele tocou a mente do outro homem e encontrou a
imagem da Naotalba envolta em nuvens de tempestade. Teias de relâmpago a envolviam
como uma auréola, uma fumaça cinzenta tingia a atmosfera psíquica. Eduin poderia
sobrepor alguma aproximação de ordem sobre a mente de Saravio mais uma vez, mas que
iria se desintegrar assim como seus últimos esforços. Ele temia que Saravio estivesse perto
do ponto onde ninguém poderia alcançá-lo, e o pensamento de Eduin se encheu com um
misto de tristeza e raiva. Por um momento, ele pensou em aparecer sozinho perante Lady
Julianna, em vez de arriscar um dano maior a Saravio.
Felizmente, Saravio foi capaz de ficar de pé. Seus olhos focados, embora não houvesse
nenhuma maneira de saber o que ele realmente viu. Ele não esboçou nenhuma resposta
quando Eduin falou com ele, embora com a menção de Naotalba, ele estendeu uma onda
de prazer. Sua consciência podia estar prejudicada, mas os comandos mentais que Eduin
tinha colocado ainda o mantinha em suas garras.
Mais forte do que a carne, talvez mais forte do que a própria vida...
Eduin fez uma pausa antes de abrir a porta, pego por um momento com uma sentido de
parentesco com este pobre homem infeliz. Ele se perguntou se, quando ele próprio
estivesse finalmente morto, a voz do pai permaneceria, sussurrando seus comandos.
Eles passaram pelo corredor, seguindo o pagem. Ao passarem pelos quartos dos
empregados, Eduin procurou mentalmente por qualquer dica sobre o que seria tão urgente.
Ele não encontrou nada mais do que as preocupações diárias comuns. Talvez eles não
soubessem de nada.
Logo, ele encontrou-se na câmara de recepção privada da rainha Julianna. General
Marzan ao lado ela com o rosto profundamente franzido. Marelie sentou-se do outro lado
de Julianna, friamente enigmática, e ao lado dela, Romilla com as mãos cruzadas sobre a
mesa à sua frente com tanta força que os nós dos dedos brilhavam como mármores, suas
bochechas brancas como gelo. Lord Brynon não estava presente.
Eduin inclinou-se com a deferência apropriada. Como de costume, Saravio parecia
esquecido do que se esperava dele.
A rainha se inclinou para frente com cotovelos apoiados na mesa. Seus olhos brilhavam
como ônix ilegíveis. Ela ficou um momento observando Eduin e Saravio como um falcão
pairando sobre um coelho de chifres.
Não, pensou Eduin. Não é um falcão, mas um lobo faminto circulando a carne fresca, com
medo de uma armadilha. Ele viu o padrão de seus pensamentos, uma dúzia de pequenos
fragmentos, finalmente se unindo.
Varzil e a reconstrução da Torre Cedestri, onde as armas terríveis tinham sido criadas...
Varzil e conspirações distantes, influenciando a ação de lords menores... Varzil escondendo-
se atrás de uma máscara de bondade e a favor do Rei Carolin... Varzil agora em Asturias,
ostensivamente negociando a paz em nome de Hastur, mas talvez em alguma outra missão,
muito mais mortal...
- Parece que você pode ter algo a nos dizer, no fim das contas. – Lady Julianna disse.
Eduin reprimiu um sorriso. Naquele breve momento, ela tinha perdido sua capacidade
para intimidá-lo. Na verdade, era ela que estava sob seu poder. Eduin curvou-se novamente
e murmurou que era um prazer servir a Sua Majestade.
- Eu não quis dizer você. Eu me referi a ele. - Ela indicou Saravio.
Saravio permaneceu impassível e sem reação. Romilla apertou as mãos com tanta força,
os nós dos dedos estalaram.
- Eu devo servir para responder por ele. - Disse Eduin. - É sempre dessa forma. O que Sua
Majestade deseja saber?
- Eu acredito que você e seu irmão estavam em Thendara no momento do motim no Lago
Hali.
Ah, Romilla fez bem o seu trabalho.
A notícia sobre o motim certamente deve ter se espalhado através das Torres para todos
os cantos de Darkover. Cada monarca competente devia se manter alerta a essas revoltas
populistas, ou corriam o risco de ser pego de surpresa quando a maré se voltasse contra
suas próprias terras. Foi apenas um pequeno levante de um punhado de refugiados sem
dinheiro, uivando em protesto contra as guerras que atingiram suas terras e famílias, com
uma inclinação sutil a uma vingança contra seus governantes Comyn.
Julianna estava de guarda, farejando uma ameaça. Do jeito que ela estava olhando para
Eduin, era muito provável que ela deduzia que ele estava entre os desordeiros.
- Infelizmente, Sandoval Santíssimo e eu estávamos presentes na beira do lago naquele
dia fatídico. - Disse Eduin. A declaração, com a sua insinuação de inocência, não enganaria
Lady Julianna, mas esse não era o seu objetivo. Ele queria que ela fizesse mais perguntas.
- Você estava entre aqueles que atacaram o círculo da Torre Hali quando eles se
reuniram às margens do lago?
- Vai domna, juro-lhe que não estávamos.
Ela fez uma pausa, olhando-o com aqueles brilhantes olhos negros, pesando suas
palavras. Eduin viu o aperto de sua boca, o silêncio sobrenatural de suas mãos.
Então, o que você estava fazendo lá? Ela lhe perguntou silenciosamente. E você vai me
dizer a verdade!
Julianna fez um gesto para o guarda de pé ao lado da porta do outro lado da sala. Um
instante depois, Callina deslizou para o quarto. Ela usava o manto com cinto usado por um
trabalhador da Torre e sua pedra da estrela pendurada, sem blindagem, por sua corda de
seda no pescoço. Evitando cuidadosamente olhar para Eduin ou Saravio, ela parou de
frente para a rainha.
- Lance o feitiço, criança. - Disse Lady Julianna.
Callina segurou sua pedra da estrela que brilhava em azul pálido entre seus dedos. Ela
começou a cantar em voz baixa. Embora Eduin mal pudesse ouvir suas palavras, ele
observou enquanto a pedra ficou mais brilhante com cada frase.
Em primeiro lugar, a luz brilhou sobre o rosto de Callina, em seguida, ele envolveu-a em
um cone de brilho azul-branco. No meio do ritual o quarto já brilhava como se travado no
crepúsculo perpétuo, uma vez mais brilhante e mais escura do que qualquer encantamento
da verdade que ele já tinha visto. Por um longo momento, ninguém se atreveu a falar, ou
mesmo respirar.
- Agora - disse Lady Julianna. - vamos ver a verdade sobre este assunto.
- Sandoval o cantor, chamado de Santíssimo, aproxime-se. - General Marzan chamou.
Quando Saravio não se moveu, Eduin o cutucou para a frente.
- Não interfira! - A voz do general retumbou como um trovão sobre os picos. = Cada
homem deve responder apenas por si mesmo.
Eduin deixou sua mão cair.
- Você estava no Lago Hali? O que aconteceu? - Várias vezes o general Marzan formulou
perguntas para Saravio, sem nenhuma reação visível. Finalmente, o general levantou as
mãos, como se desistisse, e se virou para Lady Julianna.
- Dizem que ele só fala sob o seu comando. - Ela disse para Eduin. - Mande-o responder.
- Você deve dizer a essas pessoas boas sobre o motim na costa do lago. - Disse Eduin,
enunciando cada palavra com cuidado para que não houvesse mal-entendido. - Você se
lembra como nós fomos para lá? Nós vimos o círculo, o Lago de nuvens e Varzil Ridenow
tinha ido para baixo em suas profundezas.
Com a menção de Varzil, o reconhecimento brilhou nos olhos de Saravio. Ele enviou um
pulso de angústia através da sala. Eduin manteve suas barreiras de laran firmes no lugar.
- Varzil estava lá. - Saravio murmurou. - Dragões vieram do céu. O lago estava agitado. O
ar ficou escuro. As pessoas fugiram. Os que ficaram... morreram.
- Varzil O Bom? – Lady Julianna repetiu. - Então ele estava lá realmente. Mas ele é amado
em Hali, ou assim me foi dito. Eu me pergunto por que ele não falou com as pessoas para
acalmar-las.
- Vamos continuar com o interrogatório, - disse o general Marzan, - agora que Sandoval
recuperou sua língua. O que quis dizer com dragões vieram do céu? E onde estava Varzil O
Bom quando isso aconteceu?
Saravio corou de emoção. Ele gritou, sua voz como o grito estridente de um kyorebni. -
Varzil ... ele traz o fogo, ele traz o fogo! AH! Naotalba tenha misericórdia! - Ele atirou-se de
joelhos, enterrando o rosto nas mãos.
O terror e a dor de sua mente engoliram o quarto. Romilla soltou um grito como um
pássaro morrendo rapidamente sufocado.
- Tenha misericórdia ou vamos todos perecer! – Saravio gritou.
- Sua Majestade, grande rainha, senhores dignos. - Eduin estendeu as mãos suplicantes. -
Você vê como meu irmão está. Esse questionamento é muito duro para sua alma sens[ivel.
A tragédia no Lago Hali quase o destruiu. Peço-lhe que deixe-me levá-lo embora antes que
ele desmaie.
- O fogo! Naotalba, salva-nos! - Saravio explodiu em pranto e batia nas laterais de sua
cabeça com os punhos.
Mesmo através de suas barreiras firmemente levantadas, Eduin sentiu onda após onda
do medo que emana de Saravio. Romilla empalideceu e parecia estar à beira do desmaio.
Mesmo o tom avermelhado da pele do general desapareceu. Lady Julianna ficou imóvel.
Callina tremia como uma folha em uma nevasca nas Hellers, mas não quebrou sua
concentração. O encantamento da verdade permaneceu, inabalável.
- Levem-no. - Disse Lady Julianna. - Não você, Eduardo. Você fica aqui. – Ela completou
falando com Eduin
Dois guardas levantaram Saravio que mal podia ficar de pé, e o levaram tropeçando e
ainda gemendo. O resíduo de suas emanações psíquicas gradualmente sumiram.
- Eu não sei o quanto podemos confiar nele. – Lady Julianna comentou com o general
Marzan. - Certamente, o próprio homem acredita em cada palavra do que ele falou. Quanto
a confiabilidade da testemunha que ele é, isso é outra questão inteiramente diferente. - Ela
voltou sua atenção para Eduin. - Espero sinceramente que você seja capaz de dar uma
descrição mais coerente.
- Senhora, eu só sei o que vi e o que foi dito para mim. - Ele respondeu.
- Prossiga, então.
Eduin deu um passo à frente, colocando-se de modo a que o encantamento da verdade
de Callina iluminasse diretamente seu rosto. Ninguém podia mentir sob o encantamento da
verdade, ou assim todos acreditavam.
- Sandoval Santíssimo e eu estávamos vivendo em Thendara quando ouvimos que havia
um grande trabalho de feitiçaria no Lago Hali. – Eduin começou. Até agora era tudo
verdade. - Alguns disseram que um feitiço tinha sido colocado sobre os céus. Eu ouvi um
homem dizer que os Aldarans tinham feito algo poderoso no tempo, mas eu não sei se isso
era verdade. Então fomos para o lago e vimos muitas outras pessoas lá. Disseram-me que
Varzil, aquele que é Guardião em Neskaya, tinha ido para dentro do próprio lago, sob as
nuvens-água. O que ele fez lá, eu não posso dizer, mas ouvi dizer que o dispositivo infernal
que causou o Cataclismo, trocando a água pela névoa há muito tempo, ainda estava lá
embaixo, e ele tinha ido procurá-lo.
Eduin sentiu mais do que viu a onda de resposta. Ele balançou a cabeça, como se ele
próprio estivesse incerto e pensando. Algo sussurrou no fundo de sua mente, um eco
fantasmagórico...
Sim... Prepare a armadilha para Varzil.
- Nós não estávamos lá a muito tempo. - Ele continuou. - Quando olhei acima do círculo,
viu um... Eu não sei.... Era como uma longa serpente com asas hediondas. Ela mergulhou
em cima de nós, cortando e golpeando. Muitos homens engasgaram com o próprio sangue
e morreram. Não havia nenhum lugar para se esconder ou para onde correr.
- Como é que você conseguiu escapar? - O general perguntou.
- Oh, foi terrível! - Eduin deixou o desespero daquele momento tingir sua voz. Tinha sido
realmente terrível quando seus planos se voltaram contra eles e o exército de Naotalba,
formado para levar-lhes a vitória, fora dissolvido em uma fuga frenética. - Nenhum homem
poderia ficar contra a coisa. Eu não sei quantos morreram. Os sortudos fugiram. Nos
escondemos e ele perdeu a gente. Só então, quando parecia que todos estavam mortos, o
dragão desapareceu. Eu olhei em direção ao lago e vi Varzil com meus próprios olhos.
- Varzil? Você realmente o viu?
- Ele estava caminhando para fora da água, como se nada tivesse acontecido, e ele estava
sorrindo. - Eduin conjurou uma imagem em sua própria mente, a metade verdadeira,
metade nascida de uma visão de seu ódio. Sobre ele, derramou que forma única de laran, o
Dom Deslucido, que seu pai lhe tinha mostrado anos atrás. Ele podia ouvir a voz mental de
seu pai ainda hoje:
Agora que eu estou completamente certo de sua lealdade, vou ensiná-lo a derrotar o
encantamento da verdade. Você será capaz de jurar que o que quer que serve o nosso
propósito mais elevado, e nenhuma laranzu em Darkover será capaz de dizer a diferença.
Nenhum laranzu em Darkover... E tudo o que ele dissesse seria tão absolutamente
confiável que os homens dariam suas vidas para defender o que ele dissesse, reis iriam para
a guerra ou trariam a paz, tudo com base em uma simples palavra sua.
Quantas vezes seu pai usou esse laran e observou uma certeza dissolver-se em confusão,
acusadores tornando-se acusados, homens e exércitos se desviando de suas missões e
tornarem-se instrumentos de outra vontade? Seu tio, o Rei Damian, teria se submetido à
luz azul do encantamento da verdade, mentido e mesmo assim acreditaram em sua
palavra? Ou seu primo, Belisar?
Um tremor passou por Eduin quando ele percebeu que esta era a razão pela qual Damian
e Belisar tinham morrido, esse era o terrível segredo de suas mortes. Não a ambição, não o
erro de julgamento, não a falta de poder militar. Apenas um truque do destino havia
poupado seu pai que tinha vivido como um fugitivo aleijado e obcecado pela vingança.
O Dom Deslucido era uma arma terrível demais para empunhar, muito mais do que o pó
derrete-osso cristalino ou mesmo qualquer terrível arma de laran ou máquinas que criaram
o Cataclismo no Lago Hali. Essas coisas destruíam o corpo de um homem, talvez até mesmo
sua mente. O Dom Deslucido atacava a confiança que unia os homens e os tornavam mais
do que bestas selvagens.
Apenas os homens cantam, apenas os homens dançam, apenas os homens choram.
Eduin lembrou do antigo provérbio. Apenas os homens colocam suas vidas e honra na mão
de outro.
Tudo isso, ele poderia desfazer com uma palavra. Ele tremia com tal conhecimento.
Ninguém parecia ter notado, embora o cômodo estivesse em silêncio. O general Marzan
olhou para Lady Julianna como se a perguntasse se ela estava satisfeita. Depois de um
longo momento, ela balançou a cabeça, descartando Eduin para voltar aos seus aposentos.
Quando ouviu a porta de seu quarto logo atrás dele, Eduin sentiu um estranho júbilo
obscuro. Varzil agora estava condenado aos olhos da rainha Julianna. Ela nunca iria
acreditar que Varzil havia tido motivos inocentes para descer ao lago. Sua mente sagaz
imaginaria que ele desejava montar o dispositivo do Cataclismo e o papel de Varzil na
reconstrução da Torre Cedestri tinha razões obscuras. Na verdade, ela iria ver a sombra de
Varzil sobre Kirella, das Astúrias para o norte, atingindo agora a própria Valeron...
Eduin encontrou Saravio caído quase inconsciente em uma cadeira. As mãos de Saravio
se contraíam como se choques de energia circulassem por entre seus dedos. Seus olhos
tinham se voltado para dentro de seu crânio, mostrando crescentes brancas entre as
pálpebras entreabertas. Os guardas de Lady Julianna deve tê-lo deixado ali sem nenhuma
empatia, apenas preocupados em não ter mais nada a ver com ele. Muitos soldados tinham
medo da loucura como se fosse alguma doença que poderia infectá-las também. Talvez eles
vissem a marca dos deuses como azar.
- Pobres tolos. - Eduin murmurou e puxou o braço de Saravio sobre seus ombros e
ergueu o outro homem.
Saravio mantinha apenas fragmentos de consciência suficientes para tropeçar até sua
cama. Como ele tinha feito tantas vezes antes, Eduin afrouxou sua roupa e arrumou seus
braços e pernas. Num impulso, ele colocou uma das mãos ao longo do lado do pescoço de
Saravio. Ele sentiu a pele, úmida de suor e o pulsar da artéria.
Com o toque físico veio uma onda de imagens mentais. Uma figura se movendo
lentamente em uma paisagem cor de cinza. Por um momento, Eduin não reconheceu
Naotalba, sua forma estava tão incolor e translúcida. Mesmo a sobrecarga de luz foi
enfraquecendo lentamente, extinguindo-se, exausta.
Eduin estendeu sua mente para a forma fantasmática, mas quando seus dedos roçaram o
contorno, ela desapareceu. Pobre Saravio, ele não tinha sequer energia mental suficiente
para preservar a imagem de sua deusa.
Sob os dedos de Eduin, o pulso de Saravio vacilou. Uma ou duas vezes, ele pensou que
tinha parado totalmente, mas continuou, preso em uma dança irregular. Ele não sabia se
Saravio iria acordar novamente ou, se acordasse, se ele sequer saberia o próprio nome ou
de onde ele vinha.
Vá em paz, ele orou. Você me serviu bem. Não há nada mais que você possa fazer.
Embora gelasse até os ossos ao fazer isso, ele já estava pensando no uso que ele poderia
fazer da morte de Saravio, como ele poderia fazer parecer que tinha uma mão de Varzil
nela. Lady Julianna ficaria furiosa porque o agente do Rei Carolin pudesse chegar em seu
próprio castelo e tirar a vida de um homem. Mas, neste momento, ele se sentia com o
coração muito apertado para pensar nisso.
Uma batida suave na porta despertou Eduin de suas reflexões. Ele deixou Saravio deitado
e foi ver quem era, mas antes que ele alcançasse a porta, ela se abriu e Callina entrou. Ela
carregava uma pequena caixa escura que ele reconheceu instantaneamente como um
amortecedor telepático.
- Sinto muito por incomodá-lo. Ele está dormindo? - Callina inclinou a cabeça em direção
à cama onde Saravio estava. - Que provação terrível ele deve ter passado! Quem teria
pensado que por trás da máscara de bondade havia um monstro? Me refiro a Varzil. -
Acrescentou rapidamente.
- Você está convencida, então, que o protetor de Neskaya se move com um propósito mal
contra Valeron?
- Como alguém pode duvidar disso? Não poderia ser mais óbvio. É o que eu entenderia
se estivesse lá no Lago Hali e visto a cena com meus próprios olhos! Mas eu estava me
esquecendo. Aqui, eu lhe trouxe isto. - Ela estendeu o amortecedor telepático.
- Eu sei que Sandoval Santíssimo tem laran, - disse Callina, - e que é, em parte, como ele
realiza seu trabalho de cura. Agora é ele que necessita de repouso e sossego. Este
amortecedor irá o isolar de quaisquer energias mentais exteriores. É também tornará mais
difícil, se não impossível, para ele usar suas próprias habilidades. Portanto, sua mente pode
descansar completamente, o que deve ajuda-lo a se recuperar.
Eduin escutou com uma expressão cuidadosamente respeitosa enquanto ela explicou o
que era e como operá-lo. Ele tinha muita experiência com tais dispositivos. Desde seus
primeiros anos na Torre Arilinn ele tinha usado um em seu próprio quarto durante a noite
para evitar qualquer pensamento inadvertido ou fragmentos de sonhos que pudessem traí-
lo. Mais tarde ele descobriu que o isolamento era benéfica demais dando-lhe uma trégua
abençoada na contínua necessidade de ocultar-se. Sob sua influência ele finalmente
conseguia relaxar. Só com Dyannis ele tinha conhecido tal paz.
- Eu agradeço por sua preocupação, vai leronis, - Eduin disse, - mas temo que nem
mesmo sua magia possa ajudá-lo.
Um lampejo de medo passou sobre suas feições e foi rapidamente controlada. - Então eu
tenho que vê-lo imediatamente.
Callina se inclinou sobre o adormecido Saravio. Ela começou a monitorar sua condição de
forma cuidadosa e competente, apesar de claramente essa não ser sua habilidade principal.
Não havia perigo se ela descobrisse algum traço persistente de Naotalba, se tal ainda
existisse no vazio da mente de Saravio, pois ele havia falado muitas vezes da Noiva de
Zandru. Quanto ao que Eduin tinha feito, ele não temia. Afinal de contas, os Guardiões das
Torres Hestral e Hali, muito mais hábeis do que essa jovem leronis, não conseguiram
detectar o que seu pai tinha feito com ele. Ele estava seguro sobre isso.
Callina trabalhou devagar e com cuidado, muitas vezes parando para procurar mais
profundamente. Por fim, ela suspirou e recuou.
- Infelizmente, temo que você esteja certo. Eu iria enviar Tomaso, nosso monitor na Torre
aqui, mas eu não acho que há alguma coisa que ele possa fazer, ou qualquer um.
- Você não vai insistir em um médico? - Eduin perguntou, franzindo a testa.
Ela sorriu um pouco triste e sacudiu a cabeça.
- Não, eu entendo por que você não iria querer isso. Com sua permissão, no entanto, vou
informar à Lady Romilla para que ela possa se preparar.
Eduin acenou concordando. Antes de ir embora Callina colocou o amortecedor telepático
ao lado da cama de Saravio e o ligou. Eduin sentiu o silêncio telepático familiar. Depois de
viver tanto tempo sem tal dispositivo ele agora se sentia como se estivesse de repente meio
cego e meio surdo.
Capítulo 40
Eduin acordou suando muito. Ele pensou que tinha sonhado ou vagado no Mundo
Superior, embora ele não conseguisse lembrar de nada. Chamas, cinzas e uma terrível
sensação de asfixia o envolveu. Ele lutou para se sentar, afastando as cobertas retorcidas.
Quando encheu os pulmões de ar sua respiração estava ofegante, parecia que seu peito era
algo frágil como uma gaiola feita de galhos, e que as batidas do seu coração poderiam
quebrá-lo a qualquer momento.
O pesadelo devia ser o resultado de dormir dentro do campo de um amortecedor
telepático. Afinal, ele tinha vivido tanto tempo sem o aparelho que naturalmente levaria
tempo para sua mente e seu corpo se reajustar. Disse a si mesmo que os efeitos
desagradáveis logo passariam.
Pela luz fluindo através da única janela estreita não era muito cedo. Ele tinha dormido
mais do que pretendia, mas nesta temporada de longos dias e crepúsculos remanescentes,
o corpo ainda se habituava. Haveria tempo de sobra para fazer o que deveria ser feito
nesse dia.
Ele se vestiu bocejando. Durante a noite, um dos servos tinha tirado sua roupa, lavado, a
dobrado e colocado cuidadosamente sobre a mesa pequena. A camisa tinha cheiro de ervas
aromáticas. Ele segurou-a em seu rosto por um momento, lembrando-se de quando ele
tinha tido tais prazeres com uma simples roupa limpo, uma cama quente, alimentos bem
cozidos. Às vezes, nos longos anos de clandestinidade, um pedaço de pão bolorento e um
abrigo exíguo com pelo menos uma parede se desintegrando parecia luxo.
Varzil, foi Varzil que tirou tudo de bom e brilhante em minha vida.
Eu sobrevivi. Isso é tudo que importa. Uma vez que Varzil estiver morto e o reinado de
Carolin arruinado, eu nunca mais terei que pensar sobre aqueles anos novamente.
Saravio ainda estava vivo, embora em tão um sono tão profundo que seria quase
impossível ele despertar, nem mesmo quando Eduin colocou uma mão em seu ombro e
sacudiu-o suavemente. Eduin não tinha certeza se ele esperava o contrário.
Ele fez seu trabalho. Eu já não preciso dele.
Eduin deslizou as pontas dos dedos sobre a testa de Saravio antes de sair. Ele não sentiu
nenhum contato mental, mesmo porque isso era impossível dentro do campo de um
amortecedor telepático, apenas uma tristeza profunda. Certamente o homem que o havia
retirado das calhas Thendara, alimentado e o abrigado, merecia alguma dor em seu coração
por estar tal estado. Saravio tinha lhe dado muito mais. Eles tinham compartilhado as
alegrias e as privações da estrada, tinham entendido um ao outro, dois laranzu'in exilados
que eram. Mais do que isso, Saravio tinha sido seu único amigo ou o mais próximo que
alguém poderia ser.
O amortecedor telepático estava ao lado da porta próximo da bacia usada para lavar as
mãos e o rosto. Eduin sentiu seu efeito como um zumbido fraco ao longo de seus nervos.
Como Saravio estava claramente além de qualquer ajuda de tal dispositivo, Eduin o
desligou.
A mudança na atmosfera psíquica do ambiente no castelo quase o fez ficar de joelhos.
Foi-se a sensação de folia e férias, bem como as ansiedades da situação com Isoldir. Em vez
disso, havia o murmúrio fragmentado das mentes comuns, sentiu uma singeleza de
propósito, uma mudança como um rio na cheia.
Algo tinha acontecido, mas ele não podia discernir o que.
Um frio percorreu o fundo de sua barriga. Uma voz sussurrou no fundo de sua mente,
Mate!... Ele percebeu com uma terrível certeza de que já não era apenas a voz de seu pai.
Eduin correu pelo corredor. Uma empregada carregando uma cesta de roupas sujas abriu
caminho para ele. Ele diminuiu o ritmo.
- O que aconteceu? - Ele gritou.
Em resposta, ela encolheu-se contra a parede, sacudindo a cabeça. - Eu ... eu não sei de
nada. Não me machuque!
O cavalariço certamente saberia de qualquer novidade. Eduin correu pela escada, dois
degraus de cada vez. Um par de agentes de Valeron pularam para o lado. O que eles
sabem? Ele não tinha tempo para respostas inúteis. A urgência o estimulava. Corredores
passaram voando por sua visão e finalmente invadiu o pátio.
Tudo parecia normal, os servos domésticos terminavam seus trabalhos matinais. Eduin
encontrou o cavalariço líder guiando a égua favorita de Lady Marelie ao bebedouro.
- O que aconteceu? - Eduin perguntou. Seu coração batia forte e sua respiração raspou
em sua garganta. Ele sabia que parecia um louco, correndo em uma bela manhã de final do
verão, como se metade dos demônios dos Sete Infernos de Zandru estivessem em seus
calcanhares. Como ele explicaria a sensação de desastre que queimavam seus nervos?
O cavalariço virou-se para olhar para ele. - Oh, eles saíram antes do amanhecer e isso é
tudo que qualquer um de nós sabe.
- Saíram? Quem? Para onde?
O cavalariço acariciou o pescoço da égua. Ela tinha enterrado seu focinho na água
esverdeada e estava bebendo ruidosamente. Então ela levantou a cabeça e soltou espuma,
balançando a cabeça em gotículas que dispersaram em todas as direções. O cavalariço riu.
- Para onde? - Eduin repetido.
- Oh, vamos ser descobrir em breve. Seja qual for o plano de nossa Lady ela vai manter
apenas para seus conselheiros até que tudo esteja feito. Em tempos como estes, com
tantas festas, as pessoas vêm e vão, e você nunca sabe que língua pode entregar seus
planos.
Com um esforço, Eduin controlou-se. - Alguém foi em algum lugar. Isso é o que você
sabe.
- Saíram quietos da Torre em direção ao campo. Esta pequena dama, - ele indicou a égua,
- estava sendo preparada para levar uma mulher, mas esteve prestes a derrubá-la, então eu
acordei com o barulho.
- Saíram da Torre... Do pátio onde ficam os carros aéreos?
- Exato...
Eduin não ficou para ouvir mais. Ele correu para a porta que conduzia ao pátio externo,
onde os carros aéreos eram mantidos.
O pátio estava vazio, exceto por um velho servo de blusa simples limpando o pátio.
- Você aí! Parado! - Uma voz masculina soou atrás dele.
Eduin se virou para ver três soldados de Valeron se apressando em direção a ele. O mais
importante e carrancudo usava a insígnia de um capitão.
- Quem é você e o que você está fazendo aqui?
Eduin balbuciou o nome falso que usava, acrescentando que servia a Lord Brynon, antes
de deixar escapar: - O que aconteceu? Para onde eles foram?
- É melhor buscar suas respostas diretas com seu mestre. - Disse o capitão. – Mas acho
que não há nenhum mal em dizer-lhe que os carros aéreos decolaram duas horas antes do
amanhecer. Eles estão a uma distância segura agora. Não há nada que qualquer homem
possa fazer para detê-los agora.
Duas horas antes do amanhecer! Enquanto eu dormia...
Poderia ser um passeio perfeitamente inocente, mas ele sabia que não era. Ele sentia em
cada partícula de ar ao seu redor, cada batida de seu coração. Uma missão pacífica teria
partido à luz do dia, sem qualquer necessidade de discrição. Tinha que ser um ataque
planejado em segredo.
Os pensamentos do laranzu'in pilotando os carros aéreos pairavam no ar.
Nós não temos escolha. Devemos aproveitar a oportunidade... Mas se nós estivermos
errados?...
- Eu agradeço. - Eduin gaguejou, fazendo sua retirada. - Estou certo de que meu Senhor
irá me dizer o que quiser que eu saiba.
Ele correu de volta para o castelo a um ritmo mais decoroso para as câmaras de Lord
Brynon. Para sua surpresa sua entrada foi recusada. Lord Brynon não estava lá dentro, mas
sim trancado no quarto com a rainha.
O intestino de Eduin parecia se retorcer. Frustrado e furioso, ele estendeu a mão com
seu laran e mergulhou através das defesas frágeis do assessor. Enquanto ele dormia,
exausto e entorpecido pelo amortecedor telepático, a Rainha se reuniu com seus
assessores. General Marzan tinha sido convocado, assim como vários dos seus oficiais de
maior confiança, Lord Brynon... E o laranzu'in da Torre Valeron.
Obrigando-se a acalmar, Eduin curvou-se e despediu-se. A rainha tinha convocado um
conselho de guerra, isso era fato. Ela tinha ordenado ao laranzu'in que levantasse os carros
aéreos. Sem dúvida, eles foram carregados com fogo aderente ou alguma outra poderosa
arma de laran. A velocidade, o sigilo do ataque e a falta de mvimento de soldados comuns
sugeriam que esse seria um ataque decisivo.
Contra Isoldir? Eduin franziu a testa, fazendo uma pausa para permitir que um dos sub-
coridoms passasse agitado por ele. Lady Julianna duvida da sinceridade do juramento de
Dom Ronal? Ela suspeita que ele possa ter traído um juramento feito sob o encantamento
da verdade?
Ele estremeceu. Em seguida, outro pensamento se ergueu em seu coração. Ela também
poderia ter finalmente visto a mão de Varzil Ridenow em Isoldir e enviou os carros aéreos
para destruir a Torre recém-reconstruída.
Qualquer que fosse a missão, ficou claro que ele não iria conseguir nenhuma informação
pelos servos. Ele não se atrevia a abordar qualquer um dos habitantes da Torre por medo
de ser descoberto. Mas Callina poderia saber de algo. A esta hora muitas vezes ela ia ao
pavilhão de Romilla. Ele acelerou o passo nessa direção.
Ele recebeu permissão para entrar e encontrou Callina sentada com Romilla servidas com
xícaras de jaco e pequenos bolos decorados com flores. Callina parecia pálida, a pele
delicada ao redor dos olhos estava escura e sua energia frágil. Romilla, no entanto, parecia
mais viva do que nunca. Seus olhos brilhavam com um fogo interior.
- Bom dia. - Disse Romilla olhando para cima. - Onde está Sandoval Santíssimo? Espero
que ele não tenha se esgotado após a audiência na noite passada. Callina disse que ele
precisava de descanso e sossego.
Eduin tinha esquecido de Saravio em sua necessidade de descobrir o que tinha
acontecido.
- Eu temo que ele esteja, vai damiseia, pior do que nunca.
- Se ele não se recuperou sob o amortecedor, não há muito mais que eu possa fazer. -
Disse Callina. - Eu não acho que qualquer um de vocês aceitariam ministrações de um
médico. Devo enviar alguém da Torre para o monitorar?
Essa era a última coisa Eduin queria, embora não acreditasse que o que ele tinha feito
com Saravio fosse detectável mesmo por um curador treinado com laran. Ele curvou-se e
disse que, se o Santíssimo Sandoval não reagisse, ele deixaria o próximo passo a critério da
Callina.
- E eu rogarei ao Evanda por sua recuperação. - Disse Romilla.
- Se você deve orar, faça isso para Naotalba, que é a sua padroeira especial. - Disse Eduin.
Ela se virou para ele com um olhar de triunfo radiante.
- Os avisos de Sandoval não passaram despercebidos. Esta mesma manhã a rainha
Julianna enviou uma força de ataque para destruir Varzil Ridenow.
Exultação e temor se apertaram ao redor da garganta de Eduin.
- Domna Romilla! - Callina disse bruscamente. - É prudente falar de tais coisas a alguém
que não esteja sob a confiança da Rainha?
- Que absurdo! - Romilla respondeu. - Eduardo tem falado por seu irmão, Sandoval
Santissimo, desde a primeira vez que chegou em Kirella. Sandoval não nos trouxe nada além
de coisas boas... Para mim e para todos em Kirella. Foi ele quem primeiro nos alertou para
intenções pérfidas de Varzil Ridenow. Agora a sombra da influência de Varzil estende a mão
para Valeron. Foi em seu próprio testemunho que este homem deu à rainha a evidência que
precisava para agir. Por que ele não poderia conhecer o resultado e a eliminação desse
implacável inimigo?
Os pensamentos de Eduin estavam agitados. Nada fazia qualquer sentido. Varzil já não
estava na Torre Cedestri. Todo mundo sabia disso. - Ela atacou Varzil em Asturias?
- Eu acho que você está certa, Romilla. - Disse Callina. - Esses homens foram os primeiros
a dar o alerta e eles têm sido amigos constantes ao trono de Aillard. Senti a ameaça
crescendo dia a dia, assim como a rainha. Cada nova notícia ra como uma pedra no túmulo
de Valeron .
- O Pacto é apenas uma diversão, um ardil para desarmar a todos, exceto seus próprios
Guardiões. - Disse Romilla franzindo a testa. Enquanto ela falava, ela andou alguns passos,
em seguida, parou. - Eu não ficaria surpresa ao saber que a Torre Cedestri mais uma vez
está fabricando terríveis armas de laran. Só que desta vez, eles não servem a Isoldir, mas
sim a Hastur. Se nós não pararmos Varzil agora, enquanto ele está vulnerável, nós podemos
nunca ter outra oportunidade. Valeron vai se curvar ao jugo dos Hasturs ou então será
destruído.
Eduin, atordoado demais para formular uma pergunta, se levantou e ouviu. As mulheres
continuaram, como se ele não estivesse ali, a discutir os acontecimentos da noite.
- Você vê... Eu senti essa necessidade de saber aonde Varzil ia, o onde poderia ser sua
próxima aliança. - Disse Callina com uma expressão de satisfação.
- Ele está tão seguro de si mesmo que ele não voltou para Neskaya. - Disse Romilla. –
Seria um alvo difícil para os carros aéreos estando em tal terreno montanhoso. Eu não acho
que Sua Majestade iria arriscar uma revolta lá. Ela tem esta oportunidade antes que perca a
vantagem da surpresa. Além disso, se desviássemos nossas forças para Neskaya,
deixaríamos a Torre Hali intacta e totalmente capaz de retaliar.
O que resolveria para nós eliminar Varzil e deixar uma força tão poderosa como nossa
inimiga?
- Você acredita que a Torre Hali não respeitaria o Pacto que assinou? - Callina perguntou.
Eduin também foi surpreendido pela afirmação de Romilla. A herdeira de Kirella nunca
tinha falado mente-a-mente ao longo das Hellers. Ela sabia apenas o tipo de promessas
faladas que podem ser facilmente quebradas.
- Eu não testemunhei seu juramento sob o encantamento da verdade. - Romilla disse. -
Eu não tenho certeza que eles tenham jurado sob o encanto da verdade e não posso
garantir que eles não o quebrariam, que falaram sério ou que secretamente não
continuariam a desenvolver armas ainda mais poderosas. Eu acredito que Varzil busca
colocar toda Darkover sob sua influência, e pobre daquele que atravessar seu caminho.
- Você fala como se você o odiasse. - Disse Callina. - Eu não sabia que você o conhecia.
Romilla parou com os lábios trêmulos. Eduin sentiu nela os efeitos prolongados das
manipulações emocionais de Saravio pelos quais ele mesmo tinha sido responsável. Romilla
já estava em sintonia com a euforia que o canto de Saravio produzia. Ela tinha sido
igualmente vulnerável ao medo e à raiva que se seguiam a qualquer menção de Varzil.
- Eu não preciso conhecer o homem pessoalmente para ver o que ele é. - Romilla
replicou. - Quando eu digo que Varzil é uma ameaça eu não estou me baseando em
preconceito sem base. Esta é uma questão de Estado, não de um mesquinho gosto pessoal.
Eu certamente não tenho nenhuma razão para pensar mal das pessoas na Torre Hali. Contra
eles tenho apenas o fato de que eles caíram sob sua influência. Pelo que sei, eles estão
agora mesmo ativando o dispositivo do Cataclismo para que Varzil possa usá-lo para
esmagar qualquer um que se atreva a enfrentá-lo.
Ela fez uma pausa. Eduin viu lágrimas brilharem nos olhos de Callina por um instante.
- Eu... Eu tenho falado com muitos deles através das telas das Hellers. - Callina disse
suavemente. - Eu vou lamentar sua passagem.
A visão de Eduin saltou em foco cristalino. - Varzil está na Torre Hali? Vocês enviaram
carros aéreos para incendiar a Torre Hali?
- Acalme-se. - Romilla disse a ele. - Não há nada a temer. Eles não vão suspeitar de um
ataque antes da hora. Callina nos assegurou que a cerca de dois dias atrás, Varzil Ridenow
estava dentro das paredes da Torre e, como você sabe, a Torre está a alguma distância da
cidade. As pessoas inocentes não serão afetadas. Assim como Lady Julianna poupou Dom
Ronal na destruição da Torre Cedestri, ela vai deixar a cidade de Hali de pé, com o rhu fead
e todos os seus esplendores antigos. Sem o seu Guardião e animal de estimação, os
recursos de laran da Torre Hali Torre , o Rei Carolin não se atreverá a atacar. O círculo em
Neskaya ficará sem o seu Guardião, então eles também não poderão ajudar Carolin. É uma
jogada brilhante, pois vai acabar com uma terrível ameaça com tão pouca perda de vida.
Ela sorriu com seus lábios avermelhados. Eduin não tinha notado as linhas cruéis de sua
boca, a inclinação arrogante de seu queixo. Abençoada Cassilda, ele tinha pensado que
controlava uma criança atormentada e, ao invés disso, ele tinha criado um monstro.
Na Torre Hali!
Imagens atravessaram sua mente, apagando o quarto em que ele estava. As duas
mulheres se desvaneceram como fantasmas, enquanto observava os carros aéreos, os
motores de prata elegantes carregando a morte para Hali logo abaixo. A Torre estava na
extremidade do lago de nuvens, com sua brancura delgada indo em direção ao céu,
brilhando na claridade da manhã. A luz chamou a extravagância da pedra azul translúcida
que, por um instante, fez toda a Torre brilhar como um cristal matriz. Ele sentiu as mentes
dos leronyn lá dentro, homens e mulheres que viviam juntos, trabalhavam juntos, mentes
ligadas através das Hellers. A Torre estava psiquicamente quieta agora já que os círculos
descansavam após o trabalho de uma noite.
Em sua imaginação, esferas de incandescência laranja e vermelha queimando formaram
um arco no céu, em direção a Torre azul e branca. Ele sentiu o fogo não natural dentro
delas, esforçando-se para o lançamento, com fome de carne e osso...
Gritos... Carbonização por calor... Fumaça escura enchendo o céu... O corpo de uma
mulher queimando...
- Não, isso não pode ser! - As palavras saíram dele. - Devemos parar com isso, chamá-los
de volta!
- Por que? O que quer parar? - disse Romilla.
- Qual é o problema? - Exclamou Callina. Ela tinha sentido seu terror. Seu rosto
empalideceu.
Dyannis está na Torre Hali!
Callina levantou-se e estendeu a mão como se quisesse tocá-lo. - Você não pode salvá-la,
ou qualquer um deles. Enquanto falamos, os carros aéreos aproximam-se de seu alvo. É
tarde demais.
- Não! Você não entende! - Uma emoção que não tinha nome veio rugindo para fora das
profundezas da sua alma.
Nesse momento, Eduin viu Dyannis como uma jovem envolta em um brilho prateado, a
personificação de tudo de bom e nobre em sua própria vida. Ela própria tinha dado amor a
ele livremente, e, pela primeira vez, ele se viu refletido nos olhos de sua amada como
alguém digno de honra e amor. Seu tempo tinha sido breve e há muito tempo, mas alguns
sentimentos da glória desse contato tinham se aninhado profundamente em seu coração
em um lugar que nem mesmo os sussurros do fantasma de seu pai poderiam alcançar.
Certamente, ela tinha esquecido dele. Mas isso não fazia diferença, desde que ela
vivesse.
- Temos de enviar uma mensagem aos pilotos dos carros aéreos! - Ele gaguejou. - Use as
telas de matriz da Torre! Diga-lhes que houve um erro terrível. Eles devem retornar
urgentemente!
- Você não pode alcançá-los nem mesmo com o poder de um círculo completo. - Disse
Callina. – A Rainha Julianna temia que Varzil pudesse sentir o ataque e usasse seus poderes
para convencer os pilotos a mudar seu curso. Para protegê-los ela equipou cada carro aéreo
com um talismã de mascaramento. É como a pedra matriz em um amortecedor telepático
que só permite o uso de laran dentro de seu campo. Ele simplesmente isola os pilotos de
qualquer influência externa. Eles estão surdos a qualquer investida psíquica externa.
- Deve haver alguma outra maneira então. Há outro carro aéreo que possamos enviar
atrás deles?
Antes que Callina pudesse responder, Romilla disse: - Você está mostrando um grau
incomum de interesse por essa expedição. - Ela estreitou os olhos. - Por que você deseja
parar o ataque? Você mesmo nos avisou sobre Varzil Ridenow. Você mudou sua percepção?
Talvez você tenha se vendido para ele?
- Eu não me importo se Varzil escapar neste momento. Sempre haverá outra chance. –
Eduin disse. – Mas você não deve atacar a Torre Hali!
- Não devo? Eduardo, você esqueceu o seu lugar como servo e convidado. Quem é você
para dizer o que Lady Julianna Aillard, Senhora de Valeron, deve ou não deve fazer?
Atrás dos olhos de Eduin, o fantasma de seu pai se contorceu em fúria.
Você jurou... Mate Varzil!
Eduin cambaleou sob o ataque. A dor atravessou sua cabeça. Ele se dobrou, segurando a
barriga. Silenciosa e desesperadamente, ele lutou contra a compulsão do feitiço que
serpenteava por toda sua coragem, grudando em sua alma. Ele agarrou-se a única arma
que ele tinha, o único pingo de sanidade em sua vida...
Dyannis deve viver, não importa o que o custo!
- Romilla não nada disso... - Callina começou.
- Não há tempo a perder! - Eduin disse ofegante, arrastando-se para ficar de pé. -
Enquanto estamos aqui discutindo o ataque pode já ter começado. Pelo menos deixe-me
tentar trazê-los de volta!
- Eu te falei, - disse Callina com uma voz como o badalar de um sino - não há nada que
você, eu ou qualquer um de nós possa fazer. - Seus olhar se suavizou e ele viu em seus
olhos a dor que carregava desde que ela viu como seu irmão gêmeo morreu em batalha,
essa terrível impotência. Ela não podia calar a memória mais do que ela poderia queimar
seu próprio laran.
Se Dyannis morrer, eu morro com ela.
Ele sentiu as mãos do esqueleto de seu pai chegar perto dele com carne podre e
mortalha.
Ele agarrou Callina tão bruscamente que ela soltou um grito. - A Torre... As telas de
Hellers... Me leve lá agora!
- Solte-a neste instante! - Romilla ordenou. - Como se atreve a colocar as mãos em cima
de uma leronis! E para dar-lhe ordens... Isso é inaceitável! Você será chicoteado por tal
comportamento!
Callina ficou rígida olhando para Eduin. A proximidade física criou um vínculo psíquico.
Quem é você? Ela perguntou.
Por um instante ele hesitou. Anos de clandestinidade, das máscaras que moldou sobre si,
tudo caiu por terra. Ela não iria leva-lo sem que ele ao menos lhe dissesse seu verdadeiro
nome.
Eu sou um laranzu, treinado na Torre Arilinn e depois na Torre Haili. Não importava agora
tudo o que tinha acontecido em Hestral, como ele havia planejado e provocado a morte de
Felicia, como ele tinha atacado psiquicamente os soldados Hastur e depois fugido da
destruição de Hestral . Eu busco apenas salvar a vida de uma leronis em Hali. Para isso vou
atacar sua própria Torre aqui, vou mentir, vou matar alguém até mesmo você se ficar no
meu caminho.
Você vai morrer. As palavras fluíram de sua mente com uma certeza tranquila. Atrás dela,
uma outra mulher se espalhava seu manto sombrio.
Eu não me importo, contanto que ela viva!
Callina arrancou os dedos de seus ombros.
- Vou levá-lo mesmo que não traga nenhum benefício a você. Todos nós estamos presos
nesse destino e isso não seremos libertados até que tenha seguido seu curso."
Ela abriu caminho para a porta. Romilla assistiu horrorizada por um momento, em
seguida, correu atrás deles.
- Eu não vou deixá-la sozinha com esse louco!
- Vamos ver. - Callina respondeu por cima do ombro sem diminuir nem um passo. –
Veremos se ele é verdadeiramente louco.
Corredores e escadarias passaram como um borrão. Callina os levou por uma via interna
e não através do pátio, onde eles poderiam ser questionados por soldados armados. Ela
usou seu laran para projetar uma parede de força, abrindo caminho à sua frente. Seu passo
estava tão determinado e sua expressão tão feroz que ninguém, nem mesmo os guardas
domésticos, os incomodou. Alguns se curvaram correndo para fora do caminho. Se alguém
falou algo, Eduin não lhes deu nenhuma atenção.
Cruzaram ao longo de um pequeno estaleiro para e entraram na Torre. Um servo libré de
Aillard apressou-se para abrir as portas maciças exteriores. A madeira estava escura, quase
preta e era incrustada com fios de cobre fino com o emblema de uma águia gigantesca de
asas estendidas. Quando passou entre as portas, Eduin lembrou o velho provérbio sobre a
presa que caminha da armadilha para a panela.
- Rápido! - Eduin pediu a Callina. Ela seguiu em diante, com ele logo atrás e Romilla por
último. Romilla tinha desistido de fazer perguntas.
No interior, a sala central da Torre era menor do que ele esperava. Devia abrigar apenas
um único e pequeno círculo ali, talvez uma meia dúzia de membros.
Onde está o Guardião? - Ele perguntou a Callina.
Você não vai vê-lo. Ela respondeu com tal frio em sua voz mental que ele se perguntou
por um instante se o Guardião não era mais vivo. Ele não teve tempo para perguntar como
um círculo poderia funcionar sem um Guardião. Callina atravessou a sala, segurou suas
saias, e foi para um lance de escadas circulares.
Em cada Torre que Eduin já tinha conhecido, as câmaras de trabalho eram colocadas nos
níveis mais altos. Esta estando perto de um castelo e de uma movimentada cidade, o
círculo precisava de cada grau de isolamento possível. Enquanto subia, tentando evitar
pisar em cima de saias de Callina, ele sentiu como se estivesse deixando o mundo comum
para trás.
Algo esperava no topo da escada, em uma câmara circular no topo da Torre. Por um
instante, Eduin lamentou suas palavras precipitadas. Era tarde demais para recuar agora.
Ele estava consciente dele, puxando-o. Seus pés voaram sobre as escadas. Atrás dele,
Romilla começou a soluçar.
As escadas levaram a uma aterragem rasa, com uma janela da largura de uma fenda de
um lado e uma porta em outro. Callina com o peito arfando, pegou o trinco. A porta se
abriu com suas dobradiças silenciosas. Callina ficou para trás e fez um gesto para Eduin
entrar.
- Entre.
- As telas... Hellers...
- Estão dentro.
E o que mais?
Ele não tinha escolha. Ele havia chegado longe demais para voltar atrás.
Capítulo 41
A primeira impressão de Eduin ao entrar na câmara superior foi de muita luz e espaço,
embora o chão não poderia ter mais do que cinco ou seis passos a frente. O quarto era
redondo, suas paredes sem adornos seguindo os contornos da própria Torre. Do outro lado,
uma tela de Hellers estava sobre uma mesa estreita. Um banco acolchoado foi colocado ao
lado, pronto para o uso.
Uma armadura metálica dominava o centro da sala. Uma malha com fios de prata
formava uma base de cinco patas para cima. A divisão e combinação formavam o efeito de
uma cachoeira congelada. Eduin reconheceu como um alojamento para um dispositivo de
matriz. Ele havia projetado e construído estruturas semelhantes, matrizes de pedras da
estrela integradas em matrizes de ordem superior. Ele sabia como ligar pedras individuais,
para amplificar seus poderes, para sintoniza-las para um uso particular. Foi um dispositivo
semelhante que ele tinha usado para assassinar Felicia Hastur-Acosta.
Ele nunca tinha visto nada como isso antes. Em vez de descansar sobre uma mesa, ele
estava sozinho, alcançando a altura de seu peito. Perto do topo, rodeado por uma malha de
fibras finas, uma única pedra da estrela tinha sido colocada. Ela pulsava em azul claro como
o bater de um coração, enchendo a toda câmara com o seu brilho. Instintivamente, ele
recuou.
Callina o segurou antes que ele pudesse recuar. Seus dedos cravaram em seus braços
como ganchos. Com uma força sobrenatural e rapidez, ela girou em torno dele para
enfrentar a matriz.
Como podia ter sido tão crédulo a ponto de pensar que ela era uma donzela fraca ainda
em luto pela morte de seu irmão. Neste momento, ele percebeu que ela era capaz de
qualquer coisa.
Uma vez que ele tinha visto árvores de resina, capturadas em um incêndio, envie faíscas
como uma horda de olhos brilhantes no céu noturno antes que as chamas de ouro branco
tomou conta deles. Então agora sua mente, todo o seu ser, queimava mais do que o forno
de qualquer ferraria.
A luz azul da pedra da estrela se intensificou. Em seu brilho se deslocando, ele sentiu
uma agitação, parte cristal psicoativo, parte inteligência e... parte fome. Ele lutou contra o
aperto de Callina, mas foi inútil. Sua pele tinha ficado pesada e dormente.
O que... O que é essa coisa? E o que ele quer?
Atrás dele, Romilla choramingou: - O que você está fazendo? O que está acontecendo?
- Silêncio! - A voz de Callina saiu estridente como o grito de um kyorebni. Ela levou sua
boca para perto do ouvido de Eduin. - Você sabe o que é. Você sabe o que quer.
Se o espírito de seu pai tivesse se colocado em uma pedra da estrela e condensado toda
a sua determinação em uma estrutura de cristal, poderia ter se assemelhado a esse
dispositivo que Eduin agora confrontava. Só que este não era um mero habitat de ódios do
passado. Ele sentia.
Agora ele sabia por que ninguém tinha visto o Guardião da Torre Valeron, porque os
poucos leronyn mantinham silêncio sobre suas funções.
O cristal do Guardião brilhava. Era notável sua proximidade e sua presença. Dentro das
profundezas de sua mente, o comando compulsivo deixado por seu pai gritou em
advertência. O cristal vibrava com desejo. Como uma imagem dupla brilhante, uma figura
envolta em sombra estendeu os dedos etéreos.
Você sente isso, não é? A maldição sobre este lugar? O pensamento de Callina agitou
todo o caos turbulento de sua mente. Eles me mandaram para cá por preocupação com a
minha saúde ou assim me disseram. Um lugar de segurança foi o que prometeram! Eles me
disseram que seria uma posição fácil com nada mais preocupante do que fazer poções para
bebês com cólica. A senhora de Valeron vivia em paz. Não haveriam mais batalhas
sangrentas nem mais mortes! Eu poderia descansar e recuperar a minha força e ainda
prestando meus serviços.
Sua mente se chocou com a dele e por um instante, viu uma menina, a morte de seu
irmão ainda crua e fresca em sua memória, subindo as escadas para conhecer seu novo
Guardião. Ela seguiu um laranzu de manto cinza, seu cabelo branco, com o rosto com rugas
que ela presumiu serem causadas pelo sofrimento. Ela pensou que sua ausência de
abertura telepática era um gesto de respeito pelo seu sofrimento. Ela ainda não sabia o
quanto estava errada.
Callina tinha estado até agora olhando para a pedra da estrela em seu manto de prata e
se perguntando onde o operador foi. A confusão desapareceu quando ela sentiu o mineral
envolto em cristal, a profundidade da peça e sua engenhosidade.
O Guardião estava ali, não em corpo, mas em mente, preservado e mantido no
dispositivo de matriz. Callina não tinha ideia de quanto tempo ele tinha estado ali, talvez
desde a Era do Caos. Não tinha havido nenhum limite para os experimentos com laran
naquele tempo. Talvez alguns leronyn extraordinariamente poderosos tivessem conseguido
enganar a morte desta forma. Fascinada e horrorizada, ela havia se aproximado da matriz
cristalina e observou a matriz se iluminar com sua aproximação.
A consciência do Guardião, parte humana, parte outra coisa qualquer, tinha notado ela.
Anos, décadas, séculos passados se desenrolavam à sua frente.
Uma vida longa e sangue chieri tinham dado ao antigo Guardião o conhecimento de
muitas coisas que agora eram apenas lendas. Ele estava vivo um milênio pelo menos, ele
vira épocas em que os homens sonhavam em chegar nas profundezas do espaço com seu
laran, investigar os germes que compunham a vida e a morte, a criação de talismãs para
controlar o fogo.
Seu corpo a muito o tinha abandonado, mas ele permanecia no crepúsculo de morte
como um Guardião que haviam sobrevivido e superado seu próprio nome. Ele esperou por
um sucessor, alguém para levar adiante sua visão, talvez até alguém cuja mente ele
possuísse, dando-lhe uma nova chance de viver. A sabedoria que ele tinha ganho a esse
custo difícil não deveria ser esquecida.
Os homens que o acompanhavam eram demasiado frágeis. Suas mentes não iriam
resistir sob a tensão. Mais e mais, ele retirou-se para sua pedra da estrela, buscando a
perfeição de sua estrutura imutável com a inanimação. Seu círculo se reunia e com a pedra
ele comandava suas mentes unidas.
Por fim, ele soube que não poderia adiar sua própria morte por muito mais tempo. Ele
estava muito decrépito a ponto de ser difícil até mesmo falar. Comandando seu círculo
através de sua pedra da estrela, ele dirigiu a construção de uma estrutura para amplificar
seus padrões mentais. Todos estavam acostumados à obediência cega e se apressaram a
cumprir suas ordens. Quando ele sentiu sua energia de vida diminuir, o Guardião observou
o dispositivo de sua imortalidade. Isso iria sustentá-lo até que ele pudesse encontrar uma
outra mente viva para tomar para si mesmo.
O velho leronyn morreu ou se afastou e os mais jovens, menos a cada ano, nunca
questionaram sua ausência. Em sua direção, eles voluntariamente entregavam suas
energias mentais para o carregamento das baterias de laran para carros aéreos e
luminárias.
Inimagináveis anos depois, Callina, recém-chegada em Valeron, havia encontrado a pedra
da estrela do Guardião. Em seu padrão, ela sentiu um desespero e virou-se para tal
desespero. Ele tinha finalmente encontrado uma mente com a força e a flexibilidade
necessária, mas a mente pertencia a uma mulher!
Uma mulher inútil! Disso mentalmente o Guardião. No entanto, ela poderia servir para
alguma coisa. Pouco antes de desistir dela, ele reconsiderou. Ela podia não ser capaz de
servir como Guardiã, mas sua força de vida poderia alimentar a dele.
Em seus sonhos, ele se mantinha sobre ela como uma sanguessuga medonha,
alimentando-se de sua vitalidade. Daquele dia em diante, ela não era nada além de uma
prisioneira acorrentada. A mente do Guardião lhe permitia ir longe no castelo, mas não
além dele. Enquanto ela dormia, ele vasculhava sua memória. Em particular, suas memórias
de batalha, dor, medo, raiva assassina e sangue.
Às vezes, ela pensava que ia enlouquecer. Ela considerou a tirar a própria vida, mas
quando ela pegou sua adaga, ela sabia que não conseguiria. Se ao menos... Se ao menos ela
pudesse dar ao Guardião o que ele queria ele poderia soltá-la.
Foi então que dois estranhos chegaram na comitiva de um lord Aillard menor. Rumores
tinham chegado antes deles com histórias sobre milagres de cura. Ela tinha zombado de tais
contos, até que ela sentiu o toque de euforia do Santíssimo Sandoval. Pela primeira vez
desde que ela tinha vindo para Valeron, ela sentiu uma pequena esperança.
Em um momento de descuido, ela sentiu uma mente treinada na dela, com potência
suficiente para mascarar suas próprias percepções por um tempo. O laran de Sandoval era
soporífero, um bálsamo para seus nervos em frangalhos. Seu canto podiam mesmo ter feito
sua vida mais suportável. Mas Eduardo, que se disfarçava como seu irmão, era algo mais.
Ela não se importava com o motivo pelo qual ele escondia quem ele realmente era, o crime
que ele pudesse ter cometido, ou porque ele vagava por toda Darkover em tal companhia
estranha.
Aqui está ele! Ela gritou mentalmente para a coisa no cristal. O Guardião que você tem
estado à espera! Leve-o e deixe-me ir!
Tarde demais, Eduin percebeu o quanto estava em perigo. Como ele poderia ter sido
pego em um erro desses?
Ninguém jamais viu o Guardião... Ele nunca deixou a Torre...
Ele tinha sido apanhado em meio a sua própria missão de montar uma intriga contra
Varzil.
Sempre Varzil, sempre.... Mate! A voz sussurrante de seu pai disse.
Eu devia entregar-me a esta coisa e deixá-los lutar entre eles. Eduin pensou
furiosamente.
Ele não poderia fazer isso. Entregar sua mente e coração em um campo de batalha a
partir do qual jamais poderia sair vitorioso. Ele não estava pronto para cortar a própria
garganta, não quando a Torre Hali, e Dyannis, dependiam dele.
A tela de Hellers estava apenas a poucos passos de distância. Ele zumbia baixinho em
resposta à presença de duas mentes talentosas. Ele olhou para ela tirando arduamente os
olhos da armadura de prata. Ele poderia alcançá-la em um instante, mas ele precisaria de
uma distração, algo para ocupar o Guardião.
Eduin torceu as mãos de Callina, usando seu peso e o poder de seus músculos
fortalecidos com as horas de trabalho pesado nos estábulos. Suas unhas fincaram em sua
carne fazendo ele soltá-la o que o quase o fez cair. Ela deu um gritinho quando ele a
agarrou de novo. Seus braços eram tão finos que suas mãos quase circulavam eles. Ele
girou-a e fez ela encarar o dispositivo matriz. O cristal brilhou, mais branca agora do que
azul.
Leve-a em vez disso!
Idiota! Rugiu através de sua mente. Uma mulher não pode se tornar um Guardião!
Uma mulher pode!
Uma onda de incredulidade veio em resposta.
Eduin convocou suas próprias memórias para ajuda-lo nessa batalha. Quando ele tinha
ido para a Torre Hestral em busca da filha da Rainha Taniquel, Felicia já tinha começado a
sua formação como sub-Guardiã. A Torre Arilinn recusou-se a treiná-la, apesar do fato de
que ela tinha, em condições de emergência, tomado a função de uma Guardiã. Apenas
Hestral, pequena e conhecida por estar sempre experimentando, se atreveu a deixá-la
desenvolver suas habilidades extraordinárias. Eduin tinha sentado em seu círculo, sentiu a
segurança do toque mental quando ela recolheu as energias psíquicas reunidas de cada
trabalhador. Na posição centripolar, canalizando imenso poder, ela nunca tinha falhado. O
que ela poderia ter se tornado, o que ela poderia ter conseguido se não tivesse acabado
com ela, ele nunca saberia. Mas ela tinha trabalhado como Guardiã e tão poderosa quanto
qualquer homem. Tudo isso ele convocou para enviar ao cristalino Guardião.
Um uivo silencioso reverberou na câmara. Eduin empurrou Callina para o dispositivo. Ela
caiu aos pés dele e desceu em uma onda de saias e fio de prata. Romilla gritou, mas ele não
tinha tempo para ela. Ele saltou para a tela de Hellers.
Mesmo quando Eduin se inclinou sobre a tela, trazendo-o para a vida com um toque de
sua mente, ele ouviu Callina lutando para se libertar. Ele olhou em volta. Romilla tinha se
apoiado contra a parede, com as mãos sobre a boca, olhos fixos e arregalado. O impacto da
queda de Callina tinha derrubado o dispositivo de matriz, mas o cristal central ainda ardia.
Uma fúria incandescente cauterizara sua visão por um momento.
Callina rolou no chão, gritando como um animal atacado. O pânico reverberou pela sala.
Ele virou-se para a tela. Ela estava sintonizada em um padrão mental diferente, mas ele
não tinha tempo para fazer ajustes. Ele teria que enviar sua mensagem através do poder
mental puro.
Alto! Ele jogou toda a força de seu laran na chamada. Através das ligas, depois de tantos
anos, ele gritou. Torre Hali! Vocês podem me ouvir?
Era dia, ele percebeu com um choque nauseante, e, portanto, pouco provável que um
trabalhador estivesse sentado perante a tela. Quase todas as mensagens de retransmissão
eram enviadas durante a noite para evitar a vibração psíquica de baixo nível das mentes
comuns.
Atrás dele, o som da luta de Callina mudou. Ele ouviu o guincho de metal na pedra
quando ela empurrou a armadura de lado, em seguida, o farfalhar de suas saias.
HALI! Oh, pelos deuses, pode me ouvir! Me respondam!
E se já fosse tarde demais? E se o silêncio de Hali não fosse apenas por ser dia, mas sim
pela ausência de todas as mentes treinadas e dotadas de laran na Torre que já tinham
virado fumaça e cinzas ou estavam em chamas e gritando?
Não, certamente ele teria percebido se Dyannis tivesse sofrido tal destino. Ele saberia,
porque uma parte dele teria morrido com ela.
Um zumbido alcançou sua audição, tão cru e baixo que mal reconheceu como humano.
Sem olhar, ele sabia que Callina agora estava de pé, segurando a pedra do Guardião,
incapaz de desviar o olhar. O brilho do dia empalideceu no esplendor pulsante de luz azul
fria. Ao lado, Romilla soluçava incoerentemente.
HALI!
Eduin cambaleou com o esforço. Sua visão borrou. Ele sentiu uma leve sugestão de
resposta, um agitação distante como o relâmpago no leste antes do amanhecer. Os leronyn
de Hali eram tão poderosos, tão sensíveis e altamente treinados como qualquer um em
Darkover. Não era impossível que ele tivesse alcançado qualquer um deles.
Quando Eduin reuniu sua força para chamar mais uma vez, um rugido silencioso rodou
em sua mente. Era como comando de seu pai quando estava morrende, e ainda assim era
diferente. Não haviam palavras atingindo ele, nenhuma compulsão para agir ou para matar.
Um tipo de fome, como uma besta voraz, estendeu a mão para ele.
Eduin virou no banco. Callina tinha se virado para ele segurando o cristal que agora ardia
como um olho brilhante com uma luz incolor. Sua boca estava num ricto de caveira, suas
feições distorcidas e quase irreconhecíveis.
Reflexivamente, Eduin levantou uma mão para proteger os olhos. Lágrimas surgiram. Sua
visão física falhou com a brancura ofuscante, a crescente presença laran.
Viu então a coisa na qual o Guardião havia se tornado. Tinha sido uma mente poderosa, e
sua única motivação tinha sido se aperfeiçoar durante anos, décadas, uma vida e muito
mais. Ele não tinha motivação para qualquer um ou qualquer outra coisa. Não havia nada
humano, nenhum indício de compaixão, alegria ou lealdade, sem vínculos com algum rei ou
parentes, nem para com uma ama que cuidara dele na infância, ou algum bredin morto a
séculos. Nada além de um único ser imperativo voltado a possuir uma mente viva.
Eduin cambaleou sob o ataque. Seus pensamentos se desintegraram. Toda a consciência
do seu corpo, da sala em que estava, a tela de revezamento, a mensagem que ele devia
enviar, tudo sumiu.
Como seria simples apenas se deixar partir. Ele não iria sentir nenhuma dor, nenhuma
indecisão ou arrependimento, nenhum dos tormentos que tinham sido frequentes em sua
vida. Seu corpo, sua mente, seus próprios pensamentos pertenceriam a outro, teriam
outros propósitos.
Ao sentir sua fraqueza, o Guardião cristalino se tornou ainda mais brilhante. Dentro dele,
a compulsão angustiante que foi o legado de seu pai explodiu em chamas. Ele nunca tinha
sido atacado antes e depois daquele dia na casa de campo de seu pai, ele nunca mais tinha
tido vontade de resistir a qualquer coisa. Agora, como um animal selvagem, ele sentiu a
ameaça à sua própria existência. Tudo o que restava de seu pai era a necessidade de
conduzir uma vingança. Tudo o que restava do Guardião era uma necessidade igualmente
desesperada pela sobrevivência. Eles eram imagens refletidas um do outro.
E ele, preso entre ambos, o que era?
Toda a sua vida, Eduin tinha sido uma ferramenta de outra pessoa. Ele nunca tinha sido
autorizado a seguir seus desejos ou mesmo de saber que desejos ele tinha. Ele havia
sacrificado o amor de Carolin, um lugar nas Torres, a comunhão bizarra que ele poderia ter
tido com Saravio, tudo. Apenas com Dyannis encontrou uma pequena amostra de
felicidade. Para seu pai, ele era uma coisa para ser usada, recolhida e descartada ou refeita
em um molde mais útil, mais obediente. Mas aos olhos de Dyannis ele tinha visto a si
mesmo como algo mais, alguém digno de amor. Ele nunca iria vê-la novamente, ou tomá-la
em seus braços, mas se ele pudesse impedir sua morte, mesmo à custa de sua própria vida,
mesmo que isso significasse deixar Varzil viver, então ele iria fazê-lo.
A angústia atravessou o peito de Eduin.
Eu vou viver a minha vida em meus próprios termos ou eu vou acabar com ela! Eduin se
enfureceu contra ambos, os fantasmas gêmeos de seu pai e do Guardião, ele jogou toda a
paixão e raiva em um grito.
O mundo físico moveu-se em torno dele. Seus olhos focou na parede e janela, o
emaranhado de metal brilhante, a mulher pálida em pé diante dele como um punhado de
pedras preciosas brilhando ao sol.
Ele atirou-se para Callina. O Guardião percebeu que sua intenção tarde demais. Callina
caiu para trás como um boneco, mas não antes de Eduin a alcançar. Ele não se atreveu a
tentar tirar o cristal dela. De alguma forma iria trabalhar com ela. Ele deu um longo passo,
virando para o lado, e virou um soco com as costas da mão. Seu golpe a fez girar em torno
de si mesma. No instante em que a pedra da estrela deixou sua mão, sentiu-se uma
diminuição do ataque mental do Guardião.
Callina cambaleou, mas manteve-se de pé. Ela gritou uma maldição em cahuenga. O
cristal rolou pelo sem proteção em direção à porta. Ela se lançou para ele.
Eduin agarrou Callina pela cintura e puxou-a de volta. Era como tentar segurar um
leopardo furioso. Ela se contorceu e chutava histericamente. Suas unhas arranhou a lateral
do rosto de Eduin fazendo-o sangrar. Ela cuspiu em seu rosto cegando-o por um momento.
Eduin se desequilibrou e tombou para trás, caindo contra algo baixo e duro.
Ambos desabaram sobre algo que virou um amontoado de madeira e vidro quebrado.
Tarde demais, Eduin percebeu que tinham caído em cima da mesa da tela de Hellers.
Estava tudo no chão destruído agora. Callina continuava arranhando ele, tentando
alcançar seus os olhos. Eduin tentou agarrar seus pulsos, mas ela deu uma joelhada em sua
coxa com força suficiente para anestesiar o nervo. E então ele a soltou.
Ela ficou de mãos e joelhos apoiados no chão e ele rapidamente rolou para cima dela e
acertou-a com um soco. Ele não era um bom lutador, mas ele tinha aprendido algumas
coisas nas ruas de Thendara. Ele a atingiu novamente e ela se afastou um pouco,
mancando.
Eduin voltou-se para a tela de Hellers, mas ele já sabia o que iria encontrar. O mecanismo
delicado estava quebrado. Sua mente não alcançou nenhum indício de ressonância.
Cristal do Guardião ainda brilhava, embora não tão fortemente como quando a mente de
Callina o havia alimentado. Severamente, Eduin arrastou-se a seus pés. Em poucos passos
ele se dirigiu para onde a pedra estava caída no chão de pedra e com uma bota pisou sobre
ele. Ela quebrou com um gemido quase humano que permaneceu por um longo momento
no ar e, em seguida, extinguiu.
Eduin ficou de pé com o peito arfando. Seus músculos tremiam e seu estômago estava
revirado. O sangue escorria pelo rosto onde Callina tinha o arrancado.
Dyannis...
Ele tinha falhado. Não havia nenhuma maneira de enviar uma mensagem para a Torre
Hali, mesmo se não já não fosse tarde demais. Nem mesmo Varzil poderia chegar tão longe
com sua mente sem ajuda.
Eduin tombou de joelhos em desespero. O piso de pedra machucou seus joelhos. Ele se
inclinou, enrolando-se em posição fetal em um misto de dor e angústia. Momento a
momento, um batimento cardíaco após o outro, ele se contorceu até que ele não era mais
do que um corpo em pura agonia. Se tivesse havido um punhal ou qualquer arma ao
alcance de suas mãos, ele teria terminado com a própria vida ali.
Nesse vasto e imutável Mundo Superior, ele se perguntava, será que eu irei encontrar
algum alívio? Será que minha alma irá vagar, sempre atormentado, para sempre rasgado
em dor, até que o próprio tempo chegue ao fim?
Uma ideia tomou forma em sua mente, tão fantástica que ele não teria que se ele não
estivesse tão perturbado. No Mundo Superior, nem o tempo e nem a distância tinha
qualquer significado. Um laranzu poderia viajar para qualquer Torre em Darkover, poderia
moldar o pensamento e torná-lo realidade. Ele tinha sido avisado muitas vezes sobre o
perigo das terras dos mortos que faziam fronteira com o Mundo Superior.
E se eu pudesse viajar através do Mundo Superior para alcançar Dyannis? Só porque isso
nunca foi feito antes não significava que é impossível. A pior coisa que poderia acontecer
era ele permanecer lá, sem esperança, lar ou significado de existência, muito tempo depois
que seu corpo tivesse se transformado em pó.
O que isso importa, afinal? Eu já fui condenado. Eu não tenho nada a perder.
Eduin sentiu o corpo se mover suavemente no chão quando sua mente estendeu a mão
para o Mundo Superior.
Ele já deve ter ido parcialmente para o Mundo Superior sem perceber, pois ele nunca
tinha feito essa transição de forma tão suave antes, nem mesmo com um Guardião treinado
para guiá-lo. Talvez o seu próprio desespero tivesse alimentado o salto.
Um céu cinzento sem traços arqueava-se acima de uma planície igualmente ininterrupta.
Eduin virou-se lentamente observando todo o horizonte distante, mas não viu nada. A luz
era difusa, sem direção e uma brisa fria roçou seu rosto. Ele olhou para baixo e viu-se
vestido com uma túnica cinza, com um cinto simples. Um tremor passou por ele, pois ele
não tinha usado tal peça de vestuário desde que havia trabalhado pela última vez na Torre
Hestral. Ele se perguntou se ele poderia encontrar Felicia neste reino e o que ele poderia
dizer para ela. Seria melhor o seu espírito fugir dela.
A Torre Valeron não tinha nenhuma estrutura psíquica para marcar sua localização ali.
Isso era surpreendente e parecia que seus trabalhadores nunca tinham se aventurado no
Mundo Superior. Sem essa âncora, ele poderia ser incapaz de voltar para o mundo físico e
seu próprio corpo, mas, neste momento, ele não se importava.
Ele não tinha ideia em que direção a Torre Hali psíquica estava, mas isso não fazia
diferença. No Mundo Superior apenas o pensamento tinha qualquer significado. Ele devia
se lembrar de Hali como tinha conhecido, seu interior, a essência do lugar, as assinaturas
mentais dos operadores do círculo. Haviam se passado muitos anos desde que ele viveu e
trabalhou lá, mas essas comunidades tinham a sua própria estabilidade. Trabalhadores
podiam ir e vir, noviços completarem sua formação, e Guardiões serem substituídos, mas o
espírito do lugar, os modos de pensar e trabalhar em conjunto, isso mudava muito
lentamente, quando mudava.
Acima de tudo, Dyannis ainda estava lá. Ela devia ter crescido. Certamente, ela havia
aumentado em força e habilidade. Seu desempenho surpreendente no Lago Hali provou
isso. No entanto, ele sentiu que a reconheceria em qualquer lugar.
Dyannis...
O silêncio sobrenatural do Mundo Superior engoliu o seu grito. Mais uma vez ele
chamou, despejando todo o seu amor, seu desejo, sua angústia na esperança perdida, tudo
em seu nome...
Dyannis!
Gradualmente, uma mudança no ar foi sentida. Ele não podia julgar as distâncias de
acordo com essa planície, mas sentiu uma ondulação como se o espaço dobrasse sobre si
mesmo. A luz mudou, carregada agora com uma energia elevada, uma iminência.
Uma figura se formou de pé diante dele como se fosse feita de névoa. Sua primeira
reação foi de alegria e alívio, mas desapareceu quando o contorno ficou claro. Era muito
grande, muito forte para ser Dyannis.
Seu pai estava diante dele, oscilando e indistinto, mas inconfundível. Seu rosto pálido e
repleto de rugas parecia uma mortalha funerária esfarrapada. Esferas como mármore
cinzento preenchia as cavidades oculares. Seus lábios escuros se moveram silenciosamente
e uma mão esquelética apontou um dedo ossudo para Eduin.
Aquela voz tirana sussurrou mais uma vez através de seu crânio.
Você jurou... Vingança...
Por um instante, o velho hábito da obediência paralisou Eduin. Ele ouviu sua própria voz
de quando era jovem mesclada com a atual de homem, suplicando e pedindo misericórdia.
Eu não vou deixar você, Pai! Eu não vou deixar!
Por favor, não morra! Eu farei qualquer coisa...
Não... Por favor, não!
Mas essas palavras tinham sido ditas há muito tempo em um momento distante no
tempo e no espaço.
- Saia do meu caminho! - Ele gritou. – Ou, por Zandru e todos os demônios em seus Sete
Infernos Congelados, vou destruir você!
A barriga de Eduin apertou-se. Ele sabia que seu corpo aqui era apenas uma invenção
mental, mas ele sentiu a torção como uma agonia física. A raiva ardeu em resposta,
espalhando-se como um incêndio através de um bosque de pinheiros. Com os punhos
cerrados e os dentes trincando, ele caminhou em direção à figura fantasmagórica.
Zandru? Mas é à noiva de Zandru que você serve agora!
A figura brilhou, como se a própria luz se contorcesse. Em vez dos contornos de um
homem velho, curvado e barbudo, um manto foi puxado para trás revelando as
características ósseas e pálidas de Naotalba. Ela ergueu o queixo. Sua garganta branca
brilhava sob a luz cinza.
A morte você desejou, mas você não disse de quem.
- Não a dela! Eu nunca quis a morte dela!
Tolo mortal! Você acha que pode barganhar comigo agora? Naotalba disse, e ele sentiu
todas as legiões de demônios congelados em suas costas. A respiração dela o tocou, gelada
como a sepultura mais fria.
Eduin recuou. Ele percebeu o que tinha feito. Ele tinha derramado todo o seu ódio, toda
a sua raiva, toda a necessidade de seu pai por a vingança na figura de Naotalba. Ela era tão
bonita como quando ele a viu pela primeira vez na mente de Saravio, uma mulher humana
com o poder de agitar os corações dos homens. Mas não havia piedade nela. Ela era tão
dura e insensível como uma pedra.
Porque ele tinha feito isso?!
No passado Eduin tinha sido inocente, cheio de esperança e confiança. Seu pai o
carregou em sua loucura mudando sua personalidade, aleijando sua vontade. Ele não
escolheu ser o que ele havia se tornado e, ainda assim, ele ainda era terrivelmente
responsável por seus atos.
Ele nunca poderia desfazer o que tinha feito, as coisas que ele tinha colocado em
movimento, as vidas que ele tinha arruinado. Mas ele podia escolher o que fazer dali em
diante.
Eduin firmou sua mandíbula e mergulhou através da figura sombria. Um clarão o atingiu.
Ele não conseguia ver, sentir ou respirar. Foi muito pior do que passar através do véu
reluzente de laran que guardava a Torre Arilinn.
No instante seguinte, Eduin estava livre.
A torre estava ali, esguia e brilhante. Uma mulher em vestes carmesin, a cor usada
apenas por um Guardião, correu em direção a ele. Seus cachos brilhantes como chamas
voavam em suas costas. Seu olhar era firme e ele percebeu que ela o havia reconhecido.
Dyannis.
Capítulo 42
Dyannis passou do sono para o mundo acordado no espaço de um batimento cardíaco.
Ela se sentou jogando de lado as cobertas. O quarto dela na Torre Hali e o corredor além
dele estavam quietos. Com seu laran, ela sentiu os ritmos lentos do espírito dos que
dormiam e, mais distante, o zumbido de atividade na cozinha e no quintal. A luz láctea
antes do amanhecer era filtrada através das cortinas parcialmente fechadas. Uma brisa
suave, fresca e perfumada com flores regadas pelo orvalho da noite enchia o ar.
Fragmentos de seus sonhos sumiram, deixando apenas uma sensação de desconforto.
Ela tinha trabalhado durante toda a noite até que Raimon pediu para ela relaxar mais, para
ter tempo para a comunhão com outros trabalhadores e exercitar o corpo.
- Você não vai ser de qualquer utilidade para si mesma ou para o círculo se você estiver
exausta demais para funcionar corretamente. - Disse Raimon. - Conhecer seus limites e
respeitar suas próprias necessidades são tanto parte da formação de um Guardião da
mesma forma que qualquer coisa que você precise aprender a fazer em um círculo.
Varzil tinha observado ela sem críticas, com uma simpatia na mente, uma compreensão
profunda. Ele era o único na Torre Hali que realmente podia entender por que ela não se
atrevia ainda a segurar o círculo antes que ela pudesse provar a si mesma que era capaz.
Não era porque ela era uma mulher. Ellimara Aillard, que Varzil estava treinando como
Guardiã assim que voltou a Neskaya, não sentia nenhuma compulsão em trabalhar mais e
melhor do que qualquer grupo de cinco homens.
Se eu estou tendo o poder e a autoridade sobre um operador, então eu também devo ter
a disciplina para usá-lo com sabedoria. Nunca mais os dragões voariam, nascidos da sua
raiva impensada. Nunca mais uma palavra descuidada causaria a morte de outra pessoa.
Sua estratégia estava funcionando por que, conforme ela ganhava habilidade, seus
medos tinham diminuído. Pouco a pouco, ela começou a confiar em si mesma. A chegada
de Varzil na Torre Hali havia fortalecido sua fé em si mesma. Em sua visão clara, ela
vislumbrou sua própria bondade.
Varzil nunca disse a ela que não era tão difícil ou tentou acalmá-la com esperanças. Ele se
recusou a lhe dar conselhos e ela sabia o por que. Se ele dissesse a ela o que fazer, ele se
tornaria então responsável pelas consequências. Se ela quisesse confiar em si mesma como
Guardiã então ela devia ser livre para tomar suas próprias decisões.
Varzil...
Descalça, sem se preocupar com um xale, apressou-se através de sua sala de estar e
abriu a porta exterior. Seu irmão estava ali, segurando uma luz acobreada de laran. Sob tal
luz seus olhos cinzentos brilhavam.
Ela colocou as mãos nos quadris. - Você tem alguma ideia de que horas são?
- É hora de dizer adeus.
- No meio da noite?
- Sim.
Por um longo momento, ela olhou para ele não tendo certeza de que ela o tinha
compreendido.
- Então nós precisamos conversar.
Varzil baixou a cabeça e entrou. Dyannis se desculpou e foi para o cômodo onde poderia
se trocar. Como um sub-Guardiã, ela tinha um quarto maior do que como uma mera
trabalhadora de um círculo. Quando ela se opôs dizendo que não tinha necessidade de dois
quartos separados, Raimon apontou para todas as vezes que ela tinha amontoadas em seus
aposentos. Agora ela estava feliz de poder manter uma conversa privada em algum lugar
diferente do seu quarto.
Levou apenas alguns minutos para lavar o rosto e as mãos e colocar uma túnica sem
mangas sobre um vestido simples, o tipo de roupa solta e confortável que ela gostava. Seu
cabelo ainda estava trançado para dormir em uma única trança quase atingindo a cintura.
Varzil estava ao lado da janela com vista para o pátio. Ele tinha acendido várias velas, o
suficiente para que eles vissem o rosto um do outro. Voltou-se para ela e se acomodaram
nas duas cadeiras almofadadas ao lado da lareira.
- Agora, - ela começou - me diga o que é isso tudo. Pensei que você fosse ficar aqui até o
fim do outono.
- Eu também.
Aquilo confirmou sua suspeita de que sua partida era para ser mantida em segredo.
- É uma missão para Carolin?
- Você é muito astuta, irmã. Como eu disse uma vez, você tem um instinto para a política.
Ela encolheu os ombros.
- Foi apenas um palpite de sorte. Não foi difícil. Você nos trouxe boas notícias de Isoldir
de que Dom Ronal estava preparado para fazer as pazes com a Senhora de Valeron, mas
estes são tempos de mudança e até mesmo as melhores intenções não podem ser
suficientes. E isso não é a única tempestade que ronda nosso tempo. Asturias ainda ameaça
nossos próprios parentes em Serrais. De tudo o que ouvi, seu general, o homem conhecido
como o Lobo de Kilghard, não é confiável. E...
Varzil ergueu as mãos em um gesto de rendição.
- Você não precisa continuar mais. Apesar de todo o reino ou Torre que jurou unir-se ao
Pacto, há outros que estão prontos para derramar todas as chamas sobre o assunto.
Dyannis assentiu. Isso devia ser algum assunto que tinha a ver com o Pacto e, portanto,
exigia sigilo. Se a missão de Varzil fosse conhecida, os rumores chegariam ao destino antes
dele, possivelmente colocando sua causa em perigo. Varzil já tinha adquirido uma
reputação considerável entre os Lords Comyn tanto como um salvador quanto como um
louco. Suas ideias revolucionárias tinham feito dele um traidor de sua classe aos olhos de
alguns membros do Conselho.
Ela perguntou se havia alguma maneira que ela pudesse ajudar na sua missão.
- Não. Carolin tem um cavalo me esperando à beira do lago e de lá vou viajar com um
grupo de comerciantes de sal e peles.
Dyannis assentiu. A carga não era rica o suficiente para seduzir bandidos a arriscar um
ataque contra um grupo de comerciantes. Com roupas simples, montado em um animal
sem brilho, Varzil poderia facilmente evitar qualquer ataque particular. Isto é, se ninguém
estivesse focado nele.
E ninguém vai focar se todo mundo acredita que você ainda está aqui em Hali.
Ele acenou confirmando. Não admira que ele tenha sido recebido com um espetáculo tão
público. O próprio rei tinha ido à Torre para visitá-lo.
- Hali cresceu bastante. Agora que temos dois círculos completos de trabalho, os dias, até
mesmo cerca de dez dias, poderiam passar sem alguém encontrar todas as outras pessoas
aqui. - Ela comentou.
- Você pode ouvir alguém mencionar uma pessoa e isso seria o bastante para acreditar
que ela permanecia aqui como se você a tivesse visto. - Disse Varzil.
- Isso é verdade. Eu poderia deixar escapar “Varzil disse isso” ou “Varzil fez isso" como se
eu tivesse o encontrado. Eu não preciso dizer quando você teria dito ou feito alguma coisa.
Varzil riu suavemente. - Você sempre foi uma conspiradora. Se tivéssemos tido mais
proximidade de idade quando crianças, acho que o pai teria sofrido para lidar com nós dois.
- Infelizmente, - ela disse com a voz inesperadamente suave - você, sendo o mais velho,
tomou o peso da responsabilidade que ele impunha.
Eu acho que não teria sido autorizada a vir para Hali se você não tivesse tomado a
iniciativa da fuga, depois intercedido com o Pai por mim e depois com Harald.
- Você estaria casada, com cinco filhos saudáveis e nunca saberia a diferença. - Ele
brincou.
- Eu teria conhecido a diferença. Acredite em mim, eu saberia. – Ela disse olhando
firmemente em seus olhos.
- Eu sei bem disso. - Admitiu. - Quando eu era menino eu só pensava em meu próprio
infortúnio. Eu sabia que se tivesse que ficar em casa e ser o segundo filho obediente que o
nosso pai queria eu ficaria louco. Desde então eu tenho aprendido que as mulheres, ricas
ou pobres, sofrem um confinamento ainda mais implacável em as suas vidas e muitas
precisam abdicar de seus dons sem nenhuma maneira de usá-los de forma útil depois. Se
isso não é um inferno, eu não sei o que é.
- Falamos de Zandru como o Senhor dos Sete Infernos Congelados, mas acho que ele não
comanda todos eles. - Disse ela. - Eu acho que há uma terra especial de tormento para as
mulheres, na sombra da noiva de Zandru, Naotalba A Amaldiçoada. Ela foi humana uma
vez, ou assim as histórias contam, e assim só ela pode saber o que uma mulher perde e o
que uma mulher poderia ter sido. - Sua garganta se fechou.
Por que esse pensamento a afetava tão profundamente se ela já tinha tudo o que
queria? Ela tinha o treinamento para usar seu laran, uma vida útil e independente, a
posição, o privilégio e o poder de se tornar uma Guardiã. Por que então os pensamentos de
fracasso da esperança e sonhos não cumpridos a enchiam com tanta dor?
Um momento passou, uma névoa parecia levantar-se perante sua visão e ela viu um
espelho de sua própria tristeza nos olhos de seu irmão. Lembrou-se de como ele tinha
falado sobre seu amor perdido, Felicia.
Um tremor sacudiu seus ombros. Ela se levantou, esfregando os braços. – É madrugada e
você deve ir para a estrada. Vou fazer o que puder e o manterei sempre em meus
pensamentos.
- Da mesma forma que você estará nos meus.
Num impulso, Dyannis lançou-se para ele, abraçando-o como se ela não pudesse
suportar a ideia de deixá-lo ir. Ele era uma das poucas pessoas que ela podia abraçar sem
perigo. Seu vínculo como irmãos e como companheiros telepatas, fez o contato físico mais
forte, mais próximo.
Ela não sabia se a dor em seu coração vinha das emoções agitadas pela sua conversa ou
alguma premonição terrível. Mesmo disfarçado, mesmo discreto como ele era, as estradas
poderiam ser perigosas. No entanto, não havia nada a ser feito. Ela não podia segurá-lo ali,
não com Darkover prestes a ser libertada dos horrores do fogo aderente, pó derrete-osso e
tantas outras armas de laran.
Ela se afastou. - Estarei com você, então. Caminhe com os deuses e volte para nós em
segurança.
- Adelandeyo! - Ele respondeu e saiu desaparecendo na noite.
Vários dias depois, Dyannis sentou-se na frente da janela de sua câmara exterior,
segurando uma caneca e assistindo os primeiros raios de luz no céu oriental. Ela sabia que
deveria estar descansando em vez de beber jaco que certamente iria mantê-la acordada
metade da manhã. A sensação de desconforto, de iminência, vinha crescendo em seu
interior desde que ela dissolveu o círculo na noite passada. O trabalho de recarregar as
baterias de laran tinha corrido bem, sem intercorrências. O que, então, a perturbava?
Ela se perguntou se Varzil estava com alguma dificuldade ao longo da estrada. Desde sua
separação, uma ligação forte tinha permanecido entre eles. A conexão era mais profunda
do que a de irmã e irmão. Era semelhante a uma ligação dupla, forte e profunda como a
que acontece em um círculo entre operadores e seus Guardiões.
Não, ela certamente teria percebido se Varzil estivesse em perigo. Ela estava cansada e a
ansiedade geral do mundo exterior devia ter atravessado seus escudos laran. Ela deveria
ter mais cuidado no futuro.
Uma batida na porta a assustou lhe tirando de suas reflexões internas.
Rorie.
Prazer e tristeza surgiram dentro dela. Ela disse a si mesma que ela não podia ter certeza
de seus sentimentos por ele até que ela resolvesse seu relacionamento com Eduin. Agora
algo estava errado. Outros Guardiões podiam ter amantes e manter relações quando não
estavam trabalhando ativamente e deviam permanecer apenas como companheiros
amorosos celibatários no resto do tempo. Eram todos homens e os corações e corpos,
talvez, funcionassem diferente das mulheres. Seja qual fosse a causa, ela sabia que não era
capaz de viver assim. Toda a sua vida tinha mantido um único foco. Se ela fosse uma
Guardiã, e agora ela irrevogavelmente era, ela não sabia se podia ser outra coisa para
qualquer homem.
Ela não queria machucá-lo e temia muito fazer isso. Então, ela respirou fundo e tomou
um gole de sua caneca de jaco antes de mandá-lo entrar.
Ele sabia. Sua consciência irradiava ao longo de sua aura psíquica, a forma como ele se
portava, a expressão em seus olhos o denunciava.
Dyannis conseguiu dar um pequeno sorriso e fez um gesto para ele se sentar. As duas
cadeiras tinha sido arrumadas ao lado de uma pequena mesa alta onde jazia uma bandeja
com o cântaro de jaco e uma segunda caneca.
Quando Rorie olhou como se ele fosse recusar, ela disse em voz alta: - Por favor, vamos
sentar juntos como amigos.
- Como amigos. - Ele abaixou-se para a outra cadeira, como se suas articulações
doessem.
Eu esperava que pudéssemos nos tornar mais. Seu pensamento roçou delicadamente a
mente dela.
Eu sei.
Ela o observou em silêncio, pensando que o mundo e eles mesmos tinham mudado. Ela
não era a mesma menina que tinha fugido na roupa de um servo para dançar ao longo das
praias do Lago Hali, nem ele era o menino despreocupado que tinha sido seu companheiro
desde que ela tinha chegado à Torre. Tanta coisa havia acontecido, desde a descoberta da
traição da Torre Cedestri e sua reconstrução.
Seu mundo estava mudando, o papel das Torres, a propagação do Pacto, o final de uma
Era. O tempo dos Cem Reinos estava quase no fim, e ninguém sabia o que o novo mundo
seria. No lugar de um grande número de pequenos reinos, novos e poderosos Domínios,
Hastur o principal entre eles, se estabeleceriam. A natureza dai coisas afinal era mesmo
mudar com o tempo. Ela mesma jamais poderia prever o quanto ela mudaria.
Eu não sabia. Quando eu coloquei meu pé neste caminho eu não tinha ideia de onde ele
poder me conduzir, o que realmente significava tornar-se um Guardião.
O custo de se tornar Guardião. Disse ele.
Dyannis assentiu. Seus olhos doíam, seu coração doía. Então ela viu como essas lágrimas
não derramadas o afetavam. Ela havia lhe dado muito em troca, pelo menos.
- Eu não sei o que fazer. - Rorie disse simplesmente. - Podemos ir em frente como se eu
nunca tivesse tido quaisquer sentimentos por você?
- Não, eu não acho que isso seja possível. – Ela suspirou. Ela queria deixá-lo ir, como ao
libertar um pássaro cativo. - A questão prática é se podemos trabalhar juntos em um
círculo. Se tal intimidade de espírito será difícil para você."
- Para mim? E que tal para você?

Ela balançou a cabeça, mais uma vez sentindo uma onda de tristeza, o peso da solidão.
Então ela se acalmou e assumiu uma calma desapaixonada. - Eu sou uma Guardiã. Cada
membro do meu círculo é único e precioso para mim, mas não mais do que qualquer outro.
- Entendo. - Ele baixou o olhar e minutos se passaram em silêncio.
- Se houver qualquer dúvida, seria melhor você trabalhar apenas com Raimon. - Disse ela
notando a dureza em sua voz.
- Você já mudou. - Disse ele firmemente. - Eu vou lamentar a perda do que poderíamos
ter sido, mas não essa mulher além do meu alcance. Aquela Dyannis não existe mais.
Dyannis olhou-o de forma firme. Era verdade que ela tinha sido cruel. Mas ela não sabia
de que outra maneira poderia ser.
- Eu não quero feri-lo. - Disse ela.
- Eu sei. - Ele respondeu com mais delicadeza. - Era apenas um sonho, de qualquer
maneira. Eu poderia muito bem ter perdido você para algum cego telepático em um
casamento arranjado por seu irmão.
Isso quase aconteceu. Ela estendeu a mão para tocar a parte de trás de seu pulso com a
ponta dos dedos, o contato de típico entre telepatas. - Nós sempre fomos amigos, Rorie.
Ele assentiu. - Isso é verdade. Eu acho que eu iria realmente ajudar trabalhando em seu
círculo, por que isso vai ajudar a tornar tudo mais real para mim, para que eu veja que a
menina que eu conheci cresceu e se transformou. Se você fosse a esposa de outro homem,
ou uma virgem prometida, então eu também iria ter que mudar meus pensamentos e
afastá-los de você.
Dyannis se acalmou quando ele se despediu dela. O encontro tinha ido melhor do que
ela esperava, mas o sentimento de inquietação permaneceu. Ela pensou novamente em
Varzil, desta vez deliberadamente à procura da energia psíquica para achar qualquer
vestígio de sua presença. Um sinal de resposta, como a ondulação fraca de um coração
batendo, distante, mas forte, respondeu a ela. Ele estava bem, mas fora do alcance da
telepatia.
A lembrança de Eduin surgiu em seus pensamentos e o sentimento de desconforto se
intensificou. Talvez ela tivesse razão em pensar que ela precisava resolver seus sentimentos
sobre ele antes de ser realmente livre para seguir em frente com sua vida. Ela pegou sua
caneca, percebeu que o jaco estava frio e abaixou a caneca.
Era tudo tão irritante. Ela esteve com Eduin apenas por um curto período de tempo,
quando ela ainda era uma menina impulsiva. A intensidade que rodeava suas memórias
vinham de sua própria inexperiência com o amor, se é que aquilo tinha realmente sido
amor. Dyannis levantou-se e começou a andar. Ela tinha o amado, com intensidade e
alegria, de uma forma que jamais havia se repetido, como se fosse um despertar para tal
sentimento. O que poderia ter acontecido se tal relação tivesse sido autorizada, ela nunca
saberia. Provavelmente, eles teriam passado da paixão à desilusão e daí, talvez, a uma
afeição.
Quando ele tinha vindo para a Torre Hali, anos mais tarde, ele tinha mudado. Uma
sombra estava sobre ele, mascarando o coração que uma vez parecera tão transparente,
tão infinitamente conturbado.
E então, novamente, no lago Hali...
Claro que ele tinha se tornado um homem diferente então. Ele tinha sido banido, estava
sempre se escondendo na companhia de outros homens desesperados. Ela pensou com a
auto honestidade cruel de um Guardião, que ela não queria se render àqueles memórias,
admitir que o menino que ela já havia acalentado em seus braços havia se tornado um
criminoso, ou a possibilidade de Varzil estar certo e ele ser o pior tipo de assassino. Devia
ser por isso que ele a perseguia, como uma energia pairando além do alcance de seus
sentidos. E se ela estivesse errada sobre ele o tempo todo? Se apenas estivesse de
lembrando dele como ela queria que ele fosse e não como quem ele realmente era?
Deixe-o ir, disse a si mesma. Deixe-o no passado.
Resolvendo fazer exatamente isso, ela fortificou suas barreiras de laran e tentou voltar a
dormir. Ela ficou assim pelo que pareceram horas, marcando a passagem do tempo pelo
bater do seu próprio coração. Eventualmente, ela entrou em um amontoado inquieto de
sonhos, mal definidos e inquietos. Ela não conseguia afastar a sensação de que alguém
estava falando, dizendo coisas importantes além de sua audição. Embora ela empurrasse e
tentasse moldar e focar melhor, ela não conseguia distinguir as palavras.
A sensação de medo se intensificou quando seus sonhos mudaram. Sangue escorria do
céu esfumaçado, rochas gritavam em agonia, pessoas que ela deveria saber quem eram,
mas não podia lembrar os nomes correram gritando por ela, com serpentes no lugar dos
cabelos. Ela parecia estar em alguma versão bizarra do Mundo Superior, delimitada por
todos os lados por paredes de fogo que aumentavam e estreitavam cada vez mais.
Dyannis acordou e sentou trêmula em sua cama. Era dia alto agora e estava
excepcionalmente quente, mas ela suava frio. Ela estremeceu como se estivesse com febre.
Envolvendo os braços em torno de si mesma, ela balançava para frente e para trás, até que
finalmente o tremor diminuiu. Ela desejou que Varzil ainda estivesse em Hali, para que ela
pudesse falar sobre isso com ele, mas ele havia partido em sua missão há vários dias.
Com dificuldade ela conseguiu sair da cama, lavar o rosto e as mãos, e chamar um servo
para ajudá-la a pentear o cabelo e se vestir.
Assim que ela se recompôs, Dyannis procurou Raimon. Ela estava trabalhando muito
bem diariamente como uma Guardiã formada, mas ela ainda estava sob seu cuidado e
comando.
Quando eu serei verdadeiramente uma Guardiã então? Perguntou-se enquanto esperava
sentada nos aposentos de Raimon. Quem é o Guardião do Guardião então?
Ele ouviu sério enquanto ela descrevia seus pesadelos.
- Sinto muito que tenha chegado a isso. - Ele suspirou. - Eu tenho visto um aumento
semelhante na sensibilidade de outros Guardiões à medida que progridem em sua
formação. É claro que nenhum deles é tão duro consigo mesmo, tão cruel eu devo dizer,
como você tem sido.
São todos homens.
- O que isso? - Ele respondeu ao seu pensamento não dito. - Se Varzil estiver certo, há
tantas diferenças entre uma Guardiã e um Guardião como existem entre os homens e
mulheres como um todo. Cada um de nós tem nossa própria compreensão e aceitação da
disciplina, assim como não há dois de nós iguais nas mentes de nosso círculo unido que
funcionem da mesma maneira.
Dyannis admitiu que ele estava certo. - Então você acha que o que aconteceu comigo é o
resultado do excesso de trabalho e preocupações?
- Esse é meu primeiro pensamento sim. - Ele sentou-se na cadeira para olhá-la com esse
nível de olhar quase transparente, sondando e absteve-se de lembrá-la como tinha lhe
pedido para descansar, para não esforçar-se tanto.
- É tudo para dizer-me que devo ficar algum tempo fora! - Ela disse. Sua voz ressoou com
um calor que a surpreendeu. - Seu círculo vai continuar a fazer o trabalho necessário. Mas o
que aconteceria se não houvesse dois de nós? E se eu fosse sozinha a única Guardiã da
Torre Hali? O que eu faria, então?
Os olhos de Raimon escureceram.
- Eu entendo o que você teme, que o tempo em que haja tão poucos de nó que cada
Torre terá apenas um Guardião possa de fato vir. É esse mesmo destino que Varzil está
tentando evitar com a formação de mulheres no mesmo nível dos homens. Por enquanto ,
vamos esquecer esse assunto. Há poucas coisas menos produtivas do que se preocupar
com um futuro que pode ou não acontecer. Eu a conheço Dyannis, e não vou permitir que
você me distraia para que eu não diga o que você não deseja ouvir. Se você não vai aceitar
um conselho então eu devo dar-lhe uma ordem. Você deve ter descanso e sossego. Estes
pesadelos são apenas uma advertência. Se você não prestar atenção, eles só irão piorar.
Você vai arriscar seu círculo, bem como a si mesma, continuando a trabalhar quando é
impróprio?
- Eu não vou aprender se eu não for capaz de trabalhar corretamente. - Disse ela
teimosamente. Mesmo quando ela disse essas palavras, ela sabia que ele estava certo. - Eu
não vou voltar para casa, se é isso que você quer dizer. Esta é a minha casa, o lugar a que eu
pertenço.
- Você poderia passar dez dias lá ou em Thendara com o Rei Carolin e a Rainha Maura. -
Sugeriu ele. - Acredito que você e Maura eram amigas quando ela estava aqui em Hali.
Isso era verdade. Maura sempre tinha sido gentil com ela e ela iria entender as
demandas de sua responsabilidade. No entanto, algo a impedia de sair da Torre Hali. O
melhor que conseguiu foi chegar a um acordo de que iria pensar nisso.
Raimon sabia que isso era melhor do que pressioná-la. - Enquanto isso, você pode
considerar o uso de um amortecedor telepático enquanto você dorme. Não é confortável,
mas irá protegê-la dos pensamentos e emoções daqueles ao seu redor. Você pode dormir
melhor com ele.
Dyannis franziu a testa. Tinha trabalhado com amortecedores como parte de sua
formação e nunca gostou deles. - Parece que enchem minha cabeça com lã e cobrem meus
olhos e ouvidos com gaze. Mas, - ela suspirou, - pelo menos eu conseguirei dormir um
pouco.
Raimon enviou um servo para procurar um amortecedor. – Faz um longo tempo desde
que qualquer um de nós precisou de tal dispositivo. Anos atrás, quando Eduin MacEarn
trabalhou entre nós, ele pediu um.
Eduin precisava de um amortecedor telepático? Um arrepio correu através de seus
ombros. Claro, ele precisava para guardar seus pensamentos para dormir, para evitar que
algum pensamento o entregasse. Ela não sabia se devia sentir raiva, tristeza ou pena.
Tudo isso junto, eu acho. Raimon respondeu-lhe com doçura inesperada. De que outra
forma qualquer de nós pode responder a tal tragédia?
Você chama o que Eduin fez, como ele traiu nossa confiança nele, de uma tragédia?
Sim. E assim você e qualquer um que viu o potencial nele devia chamar. Não irrite sua
memória dele com recriminações, Dyannis. Deixe o passado no passado e descanse com
toda a alegria e fé que você sentiu uma vez por ele.
Mas...
Você não foi enganada. O bem que você viu nele realmente existia. E se o que ele tornou-
se não é uma tragédia, eu não sei o que essa palavra significa então.
Capítulo 43
Toc! Toc! Toc!
As batidas não sumiam, embora Dyannis murmurou maldições contra elas. Ela se enrolou
em uma bola de costas para a porta e puxou o travesseiro sobre seus ouvidos. Sentia o
corpo pesado como se sua carne tivesse se transformado em barro. Algo agudo, como o
zumbido de insetos, zumbia ao longo de seus nervos. Ela não sabia dizer por quanto tempo
tinha dormido. Seu corpo ainda ansiava por descanso, mas a batida do outro lado da sala
continuou, mais alto e mais rápido do que antes.
TOC! TOC! TOC!
- Deuses... - Ela murmurou, empurrando o travesseiro de lado. A sala ao seu redor estava
escura como seu sono sem sonhos. Não havia claridade na direção da janela, mas ela
poderia ter soltado as cortinas antes de cair na cama. Ela não conseguia se lembrar.
- Estou indo. - Sua voz soou como o coaxar de um sapo.
TOC! TOC! TOC!
Forçando seus músculos rígidos a se mover, Dyannis se levantou. Ela fez o gesto para
chamar a luz azul com seu laran , mas nada aconteceu. Ela estava tão lerda que ela não
conseguia realizar nem esse simples encantamento de iniciantes? Suas têmporas latejavam
e sua cabeça parecia um saco cheio de queijo coalho.
O amortecedor telepático ainda estava ligado. Ah, isso explica tudo. Ela tropeçou em
direção a ele, tateando seu caminho. Seus dedos alcançaram o mecanismo de controle. No
instante seguinte, o zumbido quase inaudível desapareceu.
Ela sentiu a dureza mineral imóvel das paredes, o brilho dos painéis de pedra translúcida
e pálidas, a intensa concentração de um círculo de trabalho, suas mentes como explosões
de joias iluminadas em seu interior, o murmúrio distante da nuvem-água do Lago Hali, o
enorme mover das nuvens da noite acima.
Era quase a hora do amanhecer. Ela já podia sentir a luz crescente, a mudança de
temperatura e umidade. Ela dormira apenas algumas horas sob a influência do
amortecedor.
Movendo-se com confiança agora através de seu quarto escuro, Dyannis foi até a porta e
abriu-a. Um dos jovens noviços, um menino Elhalyn, estava com o punho erguido para
bater novamente. Ele carregava um castiçal simples na outra mão e seus olhos se
arregalaram ligeiramente.
- Domna, eu não sei o que fazer! - A criança tremia visivelmente. - Raimon ainda está
trabalhando no círculo com os outros e não me atrevo a perturbá-lo.
Dyannis sabia que o trabalho da noite envolvia a síntese de produtos químicos de
combate a incêndios, destinado a Verdanta e Alto Kinally. Havia uma série de etapas no
processo quando os elementos tornavam-se instáveis, manuseados com segurança apenas
através da inabalável concentração de laran.
- Não há nada a temer. O que está acontecendo? – Ela disse gentilmente.
- Três carros aéreos estão chegando rapidamente e eles não nos respondem, nem mesmo
a Dom Rorie. Ele enviou-me para lhe pedir que venha comigo.
Dyannis franziu a testa. Rorie era um telepata forte, qualificado e experiente, e só um
leronyn treinado podia guiar um carro aéreo. Se Rorie não conseguia alcançá-los com a sua
mente, algo terrível devia estar acontecendo. Os pilotos estavam mortos ou inconscientes
por algum feitiço ou doença? Isso não parecia provável. Os carros aéreos, com o corte de
energia motriz e orientação, certamente teriam caído do céu e não continuado seu curso.
- Onde ele está?
- No segundo laboratório, juntamente com todos os outros que não estão trabalhando no
círculo de Raimon esta noite.
Rorie?
Dyannis sentiu a mente de Rorie preocupada com a concentração sobre os carros aéreos
que se aproximavam, mas não iria pressioná-lo por uma resposta. Eles deviam fazer os
preparativos para o caso dos pilotos dos carros aéreos estarem feridas.
- Convoque todos com formação de monitor e me encontrem lá.
O menino correu visivelmente aliviado de ter alguma tarefa definida.
Eu não vou fazer bem a ninguém se eu me apressar com pensamentos dispersos daqui até
as Hellers, emoções dispersas em todas as direções e ainda vestida em minha camisola!
Apressadamente, Dyannis vestiu-se com um robe de trabalho, colocou um cinto, um par
de sandálias de camurça desgastadas, enquanto colocava seus pensamentos em ordem. A
disciplina e a calma que havia praticado em todas as horas desde o início da sua formação
de Guardiã facilitou seu controle.
Ela tirou sua pedra da estrela para ver o que ela podia perceber sobre os carros aéreos.
Por perto, o círculo de Raimon brilhou com a energia como um anel de fogo azul. Ela sentiu
Rorie e vários outros, suas mentes também em chamas. A Torre, que não era apenas uma
estrutura física, mas psíquica também, rodeava todos eles. Ela sondou através de suas
paredes e para cima.
Deuses doces, os carros aéreos estavam quase em cima deles!
Apenas a uma curta distância da Torre Hali, três objetos sem energia psíquica como se
estivessem encapsulados estavam cada vez mais perto. Certamente não era algo comum
carros aéreos. Voavam causando os característicos distúrbios nas correntes de ar e apenas
as mais fracas auras de energia psíquica.
Carros aéreos se aproximando da Torre Hali, respondam! Ela gritou.
O silêncio respondeu. Ela parecia estar gritando para um céu vazio.
Vocês precisam de ajuda?
Se os carros aéreos não mudassem de curso, eles voariam sobre as partes mais altas da
Torre em apenas alguns minutos. Tão perto assim ela calculou que eles estavam altos
demais para colidir com a Torre. Mesmo não guiado, a sua dinâmica os levaria além. Eles
poderiam colidir com a paisagem circundante ou.... Sua respiração ficou presa na
garganta... Eles poderiam estar indo para o lago.
O lago e o dispositivo do Cataclsmo abaixo dele?
Não. Varzil tinha selado a fenda barrando para sempre o acesso a essa terrível máquina
laran. Talvez esses invasores não soubessem disso. No processo de tentar recuperar o
dispositivo Cataclismo, que desastre poderia resultar disso? A nuvem-água do lago matinha
o padrão de vibração de sua transformação. Dyannis sabia muito bem quão rápido ela
poderia transmitir energia psíquica.
Uma série de respirações aumentou seu transe, liberando sua mente para uma busca
mais profunda. Talvez se ela procurasse em uma faixa mais ampla, não apenas no modo
usual de telepatia, ela poderia descobrir algo sobre os invasores. Ela não poderia ter feito
isso há um ano, antes do início de sua formação como sub-Guardiã, mas ela tinha crescido
em habilidade, bem como em força e confiança.
Ao mudar seu próprio modo de audição mental, ela foi capaz de vislumbrar os padrões
de vidro inanimado e de metal que compunham os carros aéreos. Energia laran chiava
como pequenos relâmpagos ao longo dos mecanismos que controlam o vôo dos aparelhos,
asas e as aletas estabilizadoras. As máquinas estavam funcionando bem e... não estavam
abandonadas. Por que ela não conseguia contactar os pilotos?
Dyannis aprofundou a procura e tocou uma vibração peculiar. Imediatamente ela
reconheceu um padrão de interferência como à gerada por um amortecedor telepático. Eles
devem ter encontrado uma maneira de cercar-se com uma barreira impenetrável ao laran e
ainda serem capazes de guiar os carros aéreos com suas mentes. Não era impossível,
apenas intrigante.
Porque se dar a esse trabalho para criar um muro impedindo qualquer possível
comunicação ou influência psíquica exterior? Não seria apenas para impedir a interferência
das pessoas comuns já que todos nós telepatas treinamos para impedir sua influência desde
cedo...
Algo surgiu dos níveis mais ocultos de sua mente, uma ondulação, uma dor, uma
informação. Ela fez uma pausa em suas reflexões.
Vinha do Mundo Superior. Alguém estava gritando para ela com uma urgência que
transcendia a separação habitual entre o reino físico comum e que vasta região disforme do
Mundo Superior.
Não faria sentido um dos pilotos estar tentando alcançá-la. Este não era um sinal comum
de ajuda, mas sim um envio destinado ao padrão mental específico dela, o que significava
uma íntima familiaridade. Não poderia ser um dos pilotos.
A chamada veio de novo, muito fraca e ainda assim imbuída de uma necessidade
desesperada. Um calafrio passou por ela, como se algum demônio dos Inferno de Zandru
passassem suas garras ao longo de sua espinha.
Dyannis convocou a imagem da Torre Hali no Mundo Superior, a contrapartida psíquica
que ela tinha ajudado a estabelecer e manter. Essa seria sua âncora, como fôra tantas vezes
no passado. Em forma e cor, se assemelhava à sua contraparte física, uma estrutura
delgada do conjunto branco com painéis de pedra translúcida, um dedo brilhante
estendendo-se para os céus.
No instante seguinte, ela estava na paisagem definida sentindo a temperatura e o odor
no ar. Ela piscou, esperando o horizonte cinzento distante entrar em foco. O céu era
nublado, sem traços característicos e luz difusa. A planície se estendia em todas as
direções, até que algo se formasse ali.
Em vez de uma sobrecarga monótona cinzenta, uma escuridão em ebulição enorme
corria em direção a ela, cada vez maior e mais perto a cada momento. Ela nunca tinha visto
nada parecido.
Em suas sombras agitadas, ela vislumbrou a forma de uma mulher, o rosto branco como
um crânio polido e uma capa esvoaçante.
Dyannis!
Um homem corria em direção a ela, ultrapassando a tempestade. Embora ela não
conseguisse distinguir suas feições, ela imediatamente reconheceu o toque de sua mente.
Doce Cassilda, é Eduin! O que você está fazendo aqui?
Nem o tempo e a distância tinha qualquer significado no Mundo Superior. Em um piscar
de olhos Eduin estava diante dela. Se ela não tivesse reconhecido seu toque mental, ela
nunca teria reconhecido o homem que tropeçou para parar diante dela, mal capaz de se
manter de pé, com o cabelo pendurado em mechas encharcadas ao redor de um rosto
desfigurado, marcado com linhas de sofrimento. Ele vestia trapos imundos do que podia ter
sido uma vez o manto de um laranzu, e ele aparentava desgaste como se um grande
predador, uma fada talvez, tivesse lhe destroçado. Uma ferida mutilada na barriga pingava
sangue. Através dos farrapos de suas roupas, vergões e arranhões marcavam seu corpo.
No entanto, era inegavelmente Eduin e por um instante ela não queria nada mais do que
coloca-lo em seus braços. Os olhos que brilhavam nas órbitas machucadas encontraram os
dela e ela pôde ver o quão resoluto e suplicante eles estavam.
- Dyannis, não há tempo! Corra! Saia de lá! A qualquer momento vocês serão atacados!
- Eduin o que você está falando. Que...
Ele virou-se para olhar para a tempestade que se aproximava. O manto da mulher
espectral explodiu no alto e Dyannis viu que ela segurava em suas mãos estendidas três
bolas de fogo e se preparava para lançá-las na Torre Hali.
- Você não pode pará-los! - Eduin chorou. - Eles estão protegidos contra qualquer
contato. Por favor, você PRECISA salvar a si mesma!
A primeira chama saiu das mãos do mulher-fantasma e moveu-se mais rápido do que
Dyannis poderia seguir com o olhar, mais rápido do que se pensava.
Eduin gritou:
- Não! - E lutou para esculpir no Mundo Superior um objeto psíquico para parar o míssil
de fogo.
Gritos encheram a cabeça de Dyannis que foi empurrada de volta para seu quarto na
Torre. As pedras ao redor dela vibraram. Os gritos silenciosos sumiram e ela ouviu a voz
mental clara de Rorie.
ATAQUE! Rorie gritou. Qualquer pessoa que esteja ouvindo isso no ajude! Raimon, me
responda!
Dyannis abriu a porta e correu pelo corredor. Apenas alguns dos habitantes de Hali
estavam dormindo a esta hora, estivessem trabalhando no círculo de Raimon ou não.
Alguns estavam terminando outras tarefas com laran ou mantinham a sua programação de
sono durante o dia. Ela passou por um servo trazendo água quente e toalhas.
- Oh, Domna Dyannis, o que aconteceu? É um acidente?
- Eu não sei! - Dyannis não diminuiu o passo. Em sua mente, as chamas cercavam o
laboratório em que Raimon trabalhava. Um dos trabalhadores estava ferido e sua mente
estava enviando ondas de dor. O círculo tinha fraturado. Tudo estava em completo caos.
Ela alcançou a escadaria. Sem aviso, algo explodiu a parede do lado de fora logo acima
dela. Pedras caíram com um ruído horrível. Chamas laranja claras desceram através da
abertura. Poeira e fragmentos choveram sobre ela. Ela abaixou, instintivamente cobrindo
sua cabeça com os braços e sentiu o fedor acre de fogo aderente.
A substância cáustica mortal pulverizava a escadaria. Ela atirou-se para trás, evitando por
pouco uma das gotas maiores. Tropeçando ela escapou de volta para o corredor que levava
aos quartos. Fumaça e chamas enchiam o ar, a cada momento mais quente e denso.
Ela foi cortada de ambos os laboratórios e sua única saída.
Uma das mulheres mais velhas, uma mecânica de matriz chamada Javanne, correu até
ela.
- Abençoada Cassilda, estamos sob ataque!
Dyannis sentiu mais do que ouviu suas palavras acima do barulho da chama das
rachaduras na pedra que se fragmentava.
Em outro lugar na Torre, outra explosão estremeceu as paredes de pedra. Ela ouviu
alguém gritando com a voz distante e abafada.
- Venha comigo. - Com a firmeza do toque entre telepatas, Dyannis agarrou a mão da
outra mulher e puxou-a de volta ao longo do corredor. O fogo aderente iria destruir o
caminho até eles e, eventualmente, a Torre entraria em colapso. Entretanto, eles deviam
encontrar um lugar bastante tranquilo para criar um círculo.
Nós duas?
Dyannis fechou a porta do quarto o atrás delas. Sua dona estava trabalhando no círculo
de Raimon. Dyannis não sabia se a mulher ainda estava viva.
Ela foi até a janela e olhou para baixo. Como a maioria dos quartos nessa ala, ele tinha
paredes rochosas. Não havia possibilidade de saltar para a segurança.
Segurança. O que ela estava pensando? Não haveria nenhuma fuga para qualquer um
deles.
Dyannis puxou a outra mulher para baixo para sentar-se de frente para ela na cama e
segurou as duas mãos no estilo de Cedestri. Os olhos de Javanne estavam vidrados de
medo.
Gentilmente, com a confiança tranquila de uma Guardiã, Dyannis tocou a mente de
Javanne com a sua.
Juntas podemos alcançar Raimon e fortalecer seu círculo. Nossa única esperança é conter
o fogo com nossos larans juntos.
Javanne acalmou-se sob o contato mental. Ela tinha passado muitos anos em uma ou
outra Torre, estava acostumada com a obediência a um Guardião.
O fogo aderente se arrastou ao longo do corredor, ganhando intensidade à medida que
se movia. Dyannis pôde senti-lo através de suas pálpebras fechadas, um calor sobre a sua
mente.
Javanne alimentava o poder mental com Dyannis. Dyannis agarrou-o, teceu-o junto com
o seu próprio e estendeu a mão para Raimon e seu círculo. Dyannis pensou que com a
adição de sua força, Raimon poderia ser capaz de reunir o círculo novamente e moldar
algum tipo de abrigo psíquico em torno deles.
Raimon!
Por um momento terrível, ela não conseguiu localizar sua assinatura mental em lugar
algum. Então ela viu o laboratório através de seus olhos, o piso de madeira e a mobília em
chamas. Uma figura estava se contorcendo, esboçada no olho queimando em laranja claro.
Uma figura tentou alcançá-la, mas não conseguiu penetrar no fogo. Raimon estava de face
para baixo no chão. Lewis-Mikhail soluçou quando ele cortou fora um músculo na parte
superior das costas de Raimon, tirando o monte de fogo aderente.
Dyannis! Lewis-Mikhail gritou, reconhecendo-a.
Eu estou aqui e ilesa, embora não por muito tempo. O que eu posso fazer?
Salve-se, irmã, pois não há esperança aqui. Aldones guarde a todos nós! Quem fez esta
coisa e por quê?
Eu não sei. Ela respondeu e depois sacudiu a cabeça. Mas eu sei quem causou.
Uma explosão acima empurrou Dyannis de volta em seu corpo físico. Ela olhou para cima
vendo quando o teto abriu-se e rochas flamejantes caíram sobre ela.
Capítulo 44
Dyannis se atirou para o trabalho! Seu único pensamento era que Eduin sabia sobre o
ataque antes dele começar, portanto, de alguma forma, ele e a terrível mulher fantasma
estavam ligados a isso.
Ela estava agora fora de uma Torre em chamas e parecia-lhe que as chamas eram
alimentadas não apenas pela estrutura física, mas pelas mentes das pessoas dentro da
Torre. A Torre translúcida em si estava desaparecendo. Sua forma conseguiria persistir por
um tempo, mesmo depois que aqueles que a criaram tivessem perecido.
Uma sombra caiu sobre ela, uma mancha obscura. Ela se virou para ver a mulher
fantasmagórica com aquele rosto semelhante a uma máscara, encolhida agora a um
tamanho quase humano.
Alguém estava com a mulher. Eduin havia se colocado entre ela e a Torre. Eles lutavam
silenciosamente, uma luta que pendia para um lado e depois o outro. O manto movia-se
como uma coisa viva, procurando envolver-se em torno de seu adversário. De alguma
forma, Eduin conseguiu manter livre de seu entrelaçamento, ou talvez fosse porque ele
lutava com tanta determinação. Passo a passo, ele forçou a figura para trás.
Eles saltaram se distanciando e a mulher moldou-se à sua altura máxima. Seus olhos
brilhavam como brasas.
- Você fez um acordo, Eduin Deslucido. - Disse ela, levantando uma mão esquelética para
apontar para a Torre. - Você agora que me negar meu prêmio?
Deslucido? Dyannis perguntou.
- Eu nunca disse que você poderia ter ela. - Ele respondeu com voz rouca.
- A morte, você disse, e eu concordei. Você tem a sua morte e vou cumprir a finalidade
para a qual fui criada.
Eduin sacudiu a cabeça.
- Que todos os deuses me perdoem por ter dado poder para você ser quem é. O que eu
fiz, eu agora irei desfazer!
A figura virou e um lampejo de emoção humana passou em sua face-crânio pálida. - Você
não vai livrá-la tão fácil. Algumas coisas, uma vez postas em movimento, não podem ser
interrompidas.
- Se você precisa de uma morte, leve-me então, mas deixe-a viver. Deixe-os viver, até
mesmo ele.
- Você fez um juramento tantas vezes que ele está gravado em sua alma.
- Então eu serei um perjuro! - Sua voz soou com determinação, e, ao mesmo tempo,
desespero. - Eu retiro minha palavra agora e para sempre!
- Ah! - A mulher com o manto estremeceu como se estivesse ferida. No mesmo
momento, os céus pareciam entrar em convulsão. Ventos surgiram, rapidamente ganhando
ferocidade.
Dyannis rastejou para frente. Ela reconhecia a figura agora. Era Naotalba, a Noiva de
Zandru, por vezes considerada como um símbolo de sacrifício nobre, mas muitas vezes
como um mau presságio. Como Eduin tinha ido parar no contato a semi-deusa?
Eu dei poder a você, ele tinha dito. Aqui a realidade era moldada pelo pensamento e uma
vez ele tinha sido um poderoso laranzu. Ele de fato evocou uma imagem mítica e deu-lhe
poder e forma para seus próprios fins?
Ele agora estava de pé em uma postura de confronto. Dyannis não se atrevia a quebrar
sua concentração, embora mil perguntas fervessem em sua mente. Em uma mudança
ímpar de visão, ela viu o que unia Eduin e Naotalba. Fios de material psíquico, alguns tão
finos como seda de aranha, outros grosseiros e firmes, firmava a união entre eles. Alguns
pulsavam em cor de sangue coagulado, como canais de laran congestionados. Em alguns
lugares eles formavam teias e nós obscuros.
Todos os fios surgiam de uma ferida horrível na barriga de Eduin e convergiam para um
único ponto no fundo da forma de Naotalba. Instintivamente, Dyannis soube que cada um
havia nascido de algum momento de amargura, de ressentimento feroz, de ódio, dos
pesadelos e medos.
Obscura Avarra, o que poderia ter acontecido para transformar o menino radiante, ou
qualquer homem, em uma fonte de tamanho mal?
Isoladamente e em punhados, Eduin arrancou os fios de seu próprio corpo. Sangue
incolor saía das feridas frescas. Se ele gritou, Dyannis não pôde ouvi-lo acima do barulho da
tempestade. As pontas soltas chicotearam livres ao vento. depois murcharam e se
transformaram em pó que voou ao vento.
Quando ele pegou o último e mais grosso, o fio se contorceu em suas mãos. Ele
cambaleou, quase perdendo o equilíbrio. Dyannis tinha ouvido falar de homens que, sob
períodos de loucura do laran, tinham enfiado facas em seus próprios ventres estripando a si
mesmos. Ela tinha ouvido falar que Eduin tinha usado magias com laran para defender a
Torre Hestral contra os exércitos sitiantes de Rakhal Hastur. Ela s perguntou se, em alguma
versão distorcida de justiça e realidade, ele não estaria infligindo a mesma lesão terrível
sobre si mesmo.
Eduin conseguiu soltar o último fio. Dyannis não podia ver seu rosto, mas ela sentiu a
desolação que o atingiu, a terrível solidão, a ausência da força que havia moldado sua vida
inteira.
A tempestade sumiu tão rapidamente como tinha surgido. Naotalba ergueu o rosto, não
mais suave e pálido, mas como quem havia caído em si mesmo. Seja qual fosse a força de
propósito que Eduin tinha dado à ela havia ido embora.
- Você fez uma coisa corajosa e tola, Eduin Deslucido.
Deslucido... Dyannis repetiu em sua mente. Essa era a segunda vez que Naotalba tinha
chamado Eduin por esse nome.
- Eu vi o mundo dos deuses, assim como o dos homens, - Naotalba continuou, - e eu não
conheço nenhum outro que teria escolhido isso. Voltarei agora para o reino de meu noivo.
Nós nos encontraremos lá em breve.
Naotalba virou-se e as dobras de seu manto rodearam-na fazendo ela sumir logo depois.
Com um grito Eduin caiu de joelhos. Dyannis correu para seu lado. Ele pressionou ambas
as mãos sobre sua barriga, como se tentasse estancar o fluxo de sangue. Quando ela se
aproximou, ele ergueu as mãos, revelando a pele intacta sob a camisa rasgada. Ele olhou
para ela, seus olhos se encheram de espanto. Sua boca se moveu, mas as palavras não
saíram.
Dyannis não sentia pena dele sentia apenas fúria. - Você sabia sobre o ataque antes que
ele nunca começasse. Você... Você é quem deve ter o enviado!
Ele se encolheu com as palavras dela, mas não se afastou seu olhar. Nesse momento, ela
leu a amargura de anos que remontavam a muito antes da época que ela o tinha conhecido.
Ela percebeu, mas não conseguia entender sua obsessão. Uma cadeia de ações, como
contas repugnantes unidas em uma fita de seda, chegava ao passado. Ela ouviu uma voz
como o deslizar de escalas sobre a rocha, sussurrando:
Você jurou matar! Mate!...
Ela viu uma rainha em seu trono, com um olhar absorto, uma menina de olhos escuros,
pálida, a paisagem atormentada pela tempestade de uma mente que fora dotada de laran,
um homem idoso em vestes de médico preso... E, um pouco mais no passado, o lago Hali
com um exército de mendigos prestes a atacar...
- Por quê? - Ela chorou. - Por que você faria uma coisa dessas? Por que destruir uma
Torre inteira?
- Eu não tive intenção de destruir a Torre Hali, apenas uma pessoa dentro de suas
paredes. - Sua voz era indescritivelmente triste.
Seu coração gelou. Teria ele a odiado tanto por todos esses anos?
- Não, não você! - Eduin chorou. – Você nunca! Foi a morte de Varzil que planejei e, para
minha condenação, eu causei a sua também.
- Mas Varzil não está aqui! - Disse Dyannis. - Ele saiu em uma missão secreta alguns dias
atrás.
- Então tudo foi em vão.
- Por que matar Varzil? O que ele fez para prejudicá-lo?
Certamente não eram pelas tentativas de seu irmão em evitar seu romance há tantos
anos. Ela havia se rebelado contra as ordens de Varzil e mergulhando de cabeça naquela
união. O tempo, a distância e alguma mudança misteriosa dentro de Eduin tinha os
afastado, não interferência de Varzil.
Um pensamento gelado escorria por sua mente. Lembrou-se de Varzil estar com ela fora
das ruínas da Torre Cedestri, lembrando de seu amor perdido. Ela quase podia ouvir suas
palavras como quando elas foram ditas.
”Felicia era uma Hastur. Eduin tentou matá-la. Eu mesmo presenciei quando Eduin
tentou matar Carolin, outro Hastur, e falhou. Motivo pelo qual ele provavelmente me odeia
ainda mais.”
- Você odeia Varzil porque ele estava em seu caminho de destruir primeiro Carolin Hastur
e depois Felicia da Torre Hestral. - Disse Dyannis. Em seus olhos, ela leu a verdade de suas
palavras.
Ela deu um passo na direção dele e notou que ele estava tremendo. Ela queria avançar
para atingi-lo, para feri-lo. No entanto, ele não fez nenhum movimento para se defender
com palavras ou ação. Ele via-se como um total condenado, irremediavelmente perdido, e
ela, por quem ele estava preparado para sacrificar tudo, seria o seu juiz e carrasco.
Ela abaixou-se na frente dele. Sua raiva foi drenada.
- Por quê? - Ela repetiu. - Por que você odeia tanto os Hasturs?
- Felicia era a filha da bruxa-Rainha Taniquel. - Disse ele. - E Carlo, que os deuses me
perdoem, eu tentei matá-lo, mesmo mesmo o amando, porque ele era o herdeiro do trono
do Rei Rafael. Eles destruíram minha família.
- Claro! Naotalba o chamou de Deslucido e não MacEarn. Como pode ser isso? Todos
acreditamos que a família Deslucido estava extinta. Vejo agora que todos estavam errados.
Mas a guerra contra o Rei Damian terminou anos antes de qualquer um de nascer.
Ele assentiu.
- Como você deve ter adivinhado, eu sou o único membro sobrevivente daquela outrora
grande família. Após a última batalha, o meu tio e seu filho Belisar, foram executados, mas
não o meu pai, o laranzu Rumail Deslucido.
- Eu ouvi falar dele. - Disse Dyannis. E como ele foi responsável por usar pó derrete-osso
na Batalha de Drycreek. - Eu pensei que ele tivesse morrido na queda da Torre Neskaya.
- Não. Ele fugiu para as terras selvagens além do Kadarin. Ele se casou com uma mulher
de lá, adotou o nome dela e colocou meus irmãos e eu sob juramento em um único
propósito.
Vingança.
Dyannis estremeceu, tanto pela obsessão que tinha conduzido o pai de Eduin quanto
pela crueldade na vitória do Rei Rafael. Tais coisas ocorriam normalmente na guerra, ela
supunha, embora muitas vezes o lord conquistado fosse enviado para o exílio e seus filhos
eram mantidos como reféns para garantir uma paz duradoura. Talvez Rafael tivesse uma
razão imperiosa para tratar seu inimigo com tanta crueldade.
- Mesmo se o Rei Rafael tiver agido com crueldade, esse conflito devia ter terminado lá. -
Ela disse em voz alta. - Ele não teve filhos, de modo que o trono passou para a linha lateral
e daí para Carolin. Certamente isso é justiça suficiente.
- Não pode haver justiça para um crime como seu, a não ser completa destruição da sua
linhagem e da dela. - Eduin disse friamente. - Afinal de contas, foi isso que eles fizeram a
nós. Sem suas habilidades de laranzu meu pai teria sido morto também e o fim dos
Deslucidos teria sido completo. Eu não digo que a vingança de meu pai estava certa, só que
foi justificada.
Tantas vidas perdidas e destruídas, Dyannis pensou, trechos inteiros de terras
envenenadas por gerações, aldeias devastadas, famílias desprovidos de seus entes
queridos... E para quê? Para saciar a ganância de alguns ao poder de um rei?
No entanto, tudo o que sabia sobre Rafael Hastur e a Rainha Taniquel sugeria que eles
não tinham sido cruéis sem motivo.
Sua forma astral estremeceu e ela sabia que no reino físico uma chuva de pedras e
madeiras queimando tinha caído sobre ela e Javanne. Gotículas de fogo aderente
atingiram-a em uma dúzia de lugares. Seu cabelo e vestido pegaram fogo. Ela olhou para
sua forma psíquica para ver as chamas pálidas subindo. Em outro momento ela iria sentir a
agonia das queimaduras. No entanto, no Mundo Superior ela podia retardar a passagem do
tempo pelo menos o suficiente para saber por que ela e tantos outros deviam morrer.
Ela estendeu a mão para Eduin, segurando seus braços. - Por quê? O que começou tudo
isso? O que causou tanto ódio para que homens se tratem um ao outro de forma tão
monstruosa?
- Eles poderiam executá-los ou não. - A voz de Eduin vacilou. – Mas eles temiam nos
deixar viver.
- Por quê? O que sua família fez?
- Não foi o que fizemos. - Ele parecia mais desolado do que nunca. - Foi o que éramos. Foi
por causa do Dom Deslucido.
- E o que é isso? Alguma relíquia da Era do Caos?
- Eu não sei como começou, se por manipulação ou algum acidente de reprodução. Só
que se alguém descobrisse, seria a morte de todos nós.
- O que é esse dom que o Rei Rafael Hastur e a Rainha Taniquel chegassem ao ponto
cometer tal barbaridade apenas para eliminá-lo?
Eduin olhou para ela por um longo momento. O segredo de uma vida enraizada
manifestou-se atrás de seus olhos, mantendo-o imóvel.
Gritos estremeceram através do Mundo Superior. As chamas aumentavam e ficavam
mais brilhantes, tingidas agora com o laranja claro do fogo aderente.
- Pelo menos me diga antes de morrer! - Ela clamou.
Ele deixou escapar: - Nós podemos derrotar o encantamento da verdade.
- O quê? Isso não é possível!
- Acredite em mim, carya, é mais possível do que você imagina. Eu fiz isso algumas vezes.
Mesmo sob a luz azul disse coisas que eu sabia serem falsas.
A bile subiu em sua garganta. Como Varzil dissera, ela tinha um instinto para ver as
implicações políticas das coisas. Ela percebeu imediatamente o que significaria se não fosse
possível confiar no encantamento da verdade. Sem essa garantia, nenhum pacto ou tratado
iria permanecer intacto, e até mesmo a honra de um rei seria suspeita. A única certeza
estaria no poder e a chave para o poder era o armamento laran. O Pacro de Varzil e
qualquer esperança de uma paz duradoura, seriam destruídas como moscas em uma
tempestade nas Hellers.
- Este dom, - ela disse, - todos em sua família possuíam?
- Só o meu pai e eu o tínhamos na medida ideal. Meu tio, o Rei Damian e o Príncipe
Belisar poderiam usá-lo apenas com a ajuda do meu pai.
- Assim, os Hasturs...
- De alguma forma, o Rei Rafael e a Rainha Taniquel devem ter descoberto. Mas eles
pensavam que Damian e Belisar eram os únicos vivos. Eles não sabiam que meu pai havia
sobrevivido. Ou mesmo que ele era o responsável pela capacidade de Damian em anular o
encantamento da verdade.
- Ah! - O grito explodiu dela. Ela finalmente soube por que Rafael e Taniquel haviam
matado seus inimigos conquistados. Era o medo de que todo o seu mundo fragmentasse.
Quanto valia as vidas de dois homens ou algumas duas dúzias, contra os próprios
fundamentos da verdade?
Os Hasturs, Rafael e Taniquel, mataram os homens errados. Esse único ato de injustiça
deu origem a uma vingança que consumiu a vida de tantos. Nem ele poderia impedir agora
a destruição da Torre Hali.
Sua visão ficou escura quando ela olhou em uma paisagem carbonizada e cheia de
fumaça.
Carolin não descansaria até que descobrir quem lançou o ataque e todas as terras desses
agressores seriam incendiadas. Homens usariam suas armas mais poderosas em nome da
justiça. O fogo aderente que agora consumia a carne dela seria apenas o começo.
Capítulo 45
Apenas o começo...
O pensamento também ecoou pela mente de Eduin. Ele observou Dyannis afundar-se,
derrotada. Suas vestes brilhavam como chamas vermelhas. Em instantes o fogo aderente
iria consumi-la. Ele estendeu a mão, rezando para que sua própria carne sem substância
pudesse inflamar e queimar junto com a dela.
Dyannis olhou para cima e ele viu em seus olhos uma onda de força de vontade
indomável. Ela sempre teve um temperamento forte, mas agora parecia mais auto
controlada.
- Isso não pode acontecer. - Ela disse com firmeza. - E isso não vai acontecer. Eduin a
importância da minha morte é igual a de todos os outros na Torre Hali. Não devemos
desperdiçar nossas mortes.
O que ela pretende fazer? Alcançar o dispositivo do Cataclismo no lago e arrastar todos
em Darkover para a conflagração?
- A única maneira de garantir que não haverá mais armas de laran que sempre serão
usadas por motivos alegadamente justos é impedir a sua criação. As únicas pessoas que
podem fazer isso somos nós mesmos, os leronyn. Pense, Eduin! Você, eu ou qualquer um de
nós estariamos dispostos a fazer fogo aderente ou pó derrete-osso se realmente
soubéssemos, ou víssemos, o que ele causa com suas vítimas? E se nós estivessemos
ligados, mente a mente, com os nossos companheiros leronyn enquanto eles morrem?
Eduin sacudiu a cabeça. Uma vez que ele tinha acreditado que aqueles que criavam o
terrível poder das armas de laran deveriam ser os únicos que decidissem como elas deviam
ser usadas. O que Dyannis propunha, no entanto, era um absurdo. Ela pretendia usar a
agonia de sua própria mente morrendo e de seus colegas na Torre Hali, para convencer
qualquer um com laran do horror do que eles tinham feito ou poderiam fazer. Mesmo
maravilhado com sua coragem, ele sabia que era em vão.
- É impossível. - Ele disse. - Mesmo com as telas de Hellers, você não pode alcançar
tantas pessoas.
Dyannis agarrou ambas as mãos dele e falou com uma tranquila certeza. – Sozinha eu
não posso. Mas juntos, unidos com o círculo em Hali, nós podemos.
Ela já não era a novata inexperiente com quem ele tinha sentido o amor pela primeira
vez. Não era mais a trabalhadora de matriz com um lugar subordinado no círculo, nem
mesmo a leronis que convocou o dragão sobre o Lago Hali dominada por sua raiva.
Dyannis havia se tornado uma Guardiã poderosa e hábil, mas ela também via nele essa
mesma força. Ele não sabia se ela estava certa, ou se ele poderia atender a confiança
depositada nele. Ele só sabia que ele tinha que tentar com um empenho que ele nunca
tinha experimentado antes.
Eduin sentiu Dyannis moldar a sua mente em plena harmonia com a dela. Seu toque
mental era diferente de qualquer Guardião que ele já tinha conhecido, ainda mais flexível e
intensa. Ela usou suas forças e estendeu a mão para o círculo na Torre Hali.
...Uma mulher mais velha, com o rosto banhado em chamas...
...Um homem inclinado sobre uma tela de Hellers...
...Uma criança com o seu talento ainda cru e novo...
...A voz de um Guardião: Deixe-me ir, Lewis-Mikhail, pois não há esperança para qualquer
um...
...E então um súbito aumento no poder quando, um após o outro, um círculo de mentes
treinadas uniram-se a eles...
Dyannis recolheu a força mental, concentrada e transferiu a sua ressonância. Como a
água, como a nuvem-água do Lago Hali, tornou-se um meio extremamente sensível para
transmitir impressões laran. Só então ela abriu suas mentes combinadas para sensação
física e emoções.
A dor surgiu através da unidade. Eduin cambaleou com ela, mas se segurou. Em Hali
outros estavam fazendo o mesmo, derramando tudo o que sentiam nas mãos de sua
Guardiã. Mesmo quando o fogo comeu sua própria carne, Dyannis segurou firme. A
intensidade montado com o círculo tornou-se um cadinho, um pote guardando em
segurança todas essas impressões.
Em um único movimento Dyannis liberou as forças reprimidas.
Clarão queimando... Dor lancinante onde cada chama toca... Chamas que sobem e
penetram consumindo... Fogo crescendo, ardendo, fumaça... Paredes desmoronando e
caindo... Vozes erguidas em gritos... Lamentações selvagens... Morte chovendo do céu... O
corpo de uma mulher ardendo como uma tocha, o cheiro de cabelo queimando e osso
carbonizado...
O círculo enviou a informação psíquica como uma bola de fogo de dor e terror
explodindo em todas as direções. Eduin seguiu ela sentindo seu impacto sobre cada mente
vulnerável.
Na cidade de Hali e por toda as Colinas Venza, cada pessoa com uma gota de laran,
homens, mulheres e crianças, gritaram em angústia. Em Thendara, a Rainha Maura
desabou gritando nos braços de um Carolin atordoado. Ao longo de uma trilha, uma leronis
em um manto verde forçou seu cavalo para uma parada violenta, com o rosto contorcido.
Através das planícies de Arilinn, os trabalhadores estremeceram, momentaneamente cegos
de pânico. Alguém soluçou:
Morte, morte caindo do céu... O fogo... Os gritos...
Uma sensação de triunfo ergueu-se em Eduin e logo vacilou. Várias mentes eram
tocadas, mas haviam ainda mais além do seu alcance. A transmissão inicial tinha alcançado
muitos, mas os Cem Reinos eram enormes e distantes. O círculo criado por Dyannis estava
começando a desmoronar. A mente de Raimon ficou em silêncio, um vazio doloroso. Outros
ainda estavam vivos, mas rapidamente perdiam a capacidade de concentração necessária
para manter suas mentes abertas. Corações fraquejavam, os pulmões se engasgavam com a
fumaça, a consciência se desvanecia.
Eles nunca chegariam a Dalereuth, casa dos círculos ilegais que faziam fogo aderente e
coisas piores para qualquer fidalgo que pudesse pagar, ou até Temora na costa do mar, ou
ainda na distante Aldaran. Esses reinos não seriam afetados, não seriam impedidos pelo
Pacto ou quaisquer escrúpulos, sobre as Planícies. O reinado Hastur podia chegar ao um fim
por seus leronyn serem impotentes para defender seu lord, e em seu lugar poderia vir uma
tirania muito mais terrível.
Ele se negou a aceitar isso. Por tudo o que ele tinha feito para causar esse desastre ele
tinha o dever de desfazer isso, de fazer muito mais do que estava fazendo.
No Mundo Superior ele se levantou e se afastou de Dyannis. Ela o seguiu com os olhos
tristes, pois ela estava se aproximando do fim de sua própria vida.
Havia uma fonte de poder que ele poderia recorrer. Ele não podia comandá-la, só pedir.
No instante seguinte, Naotalba estava diante dele em uma névoa, um vento ondulante
através de sua capa. Ele reconheceu sua pele pálida, o cabelo de ébano passando de um
pico de viúva, usando o vestido da cor de um céu sem luas.
Sem palavras, ele se ajoelhou diante dela.
- O que você quer de mim, Eduin Deslucido? - A voz não tinha nenhum traço de sua
antiga crueldade. Em vez disso, Naotalba soava cansada, quase como se desaparecesse.
Tudo o que ela havia sido, aquela versãocruel, ele a é que havia transformado em uma
criatura de ódio e destruição. Ele tinha arrancado seu coração humano, deixando apenas a
amargura e vingança. Então, ele tinha se afastado do caminho definido por seu pai há
muitos anos, mas os eventos que ele tinha colocado em movimento ainda se desenrolavam.
Ela era tão prisioneira desse destino quanto ele. Ele não tinha o direito de pedir, nada que
ele pudesse usar para obriga-la a ajuda-lo.
Redenção. Ele pensou.
- Ah! - Ela exclamou tremendo e ele percebeu que ela tinha entendido que significava
para ela também.
- Ajude-me. - Suplicou ele. - Ajude-me a desfazer o mal que eu fiz.
Um vislumbre de um sorriso passou sobre os lábios de Naotalba e suas bochechas
ficaram levemente coradas. Ela estendeu os braços. Sua capa levantou-se e se tornou larga,
dissolvendo nas bordas. Ela cresceu cobrindo o céu e a terra, mas sua sombra não era mais
o frio gelado do reino de Zandru. Em vez disso era um calor, doce como um amanhecer de
verão que impregnou todo o ambiente.
No instante seguinte, ele foi mais uma vez ligado a Dyannis e os dois formaram o coração
do círculo em expansão. Sua unidade incluiu não só os trabalhadores em Hali, mas toda
mente que tocava. Todos em ressonância para o mesmo fim. Todos queimavam e
choravam.
Das margens de Temora, aos confins das Hellers e às fronteiras das Cidades Secas, todos
os telepatas em Darkover se uniram por um momento breve e brilhante.
Nunca mais! As palavras passaram de uma mente para a seguinte, na construção de uma
ondulação, em seguida, um coro, depois, um rugido. O grito surgiu a partir dos corações
mais íntimos de leronyn em toda Darkover.
Armas terríveis nunca mais!
Nunca mais larans serão escravizados para a destruição!
Não à guerra sob o comando de homens que se escondem em segurança por trás de suas
paredes!
O momento passou e Eduin percebeu que Dyannis também estava partindo. Ela já não
ardia em chamas laranja claro. A luz em seus olhos esmaecia. Ele estendeu a mão para as
mãos dela. Seus dedos passaram por sua carne como se fosse água.
Os deuses eram tão sem misericórdia? Ele havia chegado tão longe para encontra-la
finalmente e agora a perderia depois de tão pouco tempo!
Eu não vou deixar você.
Eduin não podia ter certeza que um deles tinha falado em voz alta porque suas mentes
ainda estavam ligadas.
Onde quer que vá, irei também.
Como o sol saindo de trás de uma nuvem, a sua imagem fortaleceu. A cor voltou aos
lábios e ela estava com o manto púrpura de Guardião. Ele sentiu a pele quente, os osso
fortes, a pele lisa sob seus dedos. Um cheiro de flores silvestres encheu suas narinas.
Eu trouxe você de volta. Ele pensou maravilhado.
Não, querido amor. Você veio aqui comigo.
Ele olhou para trás e viu não o cinza imutável familiar do Mundo Superior, mas um verde
subindo para encostar um céu dourado, e, ao longe, um horizonte prateado. Dentro da
névoa árvores balançavam. Figuras esbeltas moviam-se em uma dança secreta com seus
olhos luminosos e acenando as mãos. A música, como o repicar de sinos fracos, ondulava
no ar.
O último pensamento consciente de Eduin foi de uma figura não sombria, mas de
luminosa, quando ele se inclinou para recolher Dyannis e a criatura luminosa em seu
abraço.
EPÍLOGO
Lentamente, Varzil Ridenow subiu as escadas que levavam aos aposentos privados de
seu irmão jurado, Carolin Hastur. Os guardas de libré azul e prata ficaram olhando. Alguns
deles inclinaram a cabeça em sinal de respeito pelo seu sofrimento. Um ou dois tinham
lágrimas nos olhos.
Ele não conseguia se lembrar de uma época em que ele sentira tão completamente vazio,
e ainda tão cheio de dor. Quando Felicia morreu, tinha sido como se metade de seu coração
tivesse sido arrancado. A Torre Hestral tinha sido sitiada e toda a sua vida dependia de suas
ações rápidas. Não tinha havido tempo para sentir a perda. Mais do que isso, ele não
sentira a morte de Felicia como se fosse a sua própria.
Ele tinha sentido a morte de Dyannis. Sua mente se fundiu com a dela. Sentira a dor de
forma tão real e vívida como se tivesse se sua própria carne tivesse sido queimada. Sua
garganta tinha ficado nua, depois entorpecida com gritos até que já não podia respirar por
causa da fumaça e a gordura de sua própria pele. Seus próprios ossos tinham se derretido
no calor.
Aldones, Senhor da Luz, me permita não lembrar disso a cada momento! Ele fez uma
pausa, momentaneamente incapaz de seguir em frente, e colocou uma mão sobre os olhos.
Deixe-me esquecer por um momento.
Cada telepata em toda a face de Darkover, treinado ou não, tinha ouvido as vozes
reunidas dos trabalhadores de Hali. Mesmo em suas agonias de morte, eles tinham de
alguma forma deixado suas mentes abertas. Não parecia humanamente possível e, ainda
assim, eles tinham conseguido fazer isso. Nos dias seguintes, as telas de Hellers ficaram em
silêncio, seus operadores atordoados demais para conseguir operá-las. Pela graça dos
deuses, Varzil já havia completado a sua missão diplomática para Carolin quando o golpe o
atingiu. Ele tinha corrido de volta para Thendara, temendo o que iria encontrar.
A Torre Hali estava em ruínas. Apenas o rhu fead com seus artefatos sagrados, alojados
em um local separado sob camadas de campos de isolamento lacrados com laran, e parte
da fundação tinham sobrevivido. Levaria uma geração para remontar um círculo de
trabalho e reconstruir a estrutura física. Ele ia oferecer a Carolin os serviços da Torre
Neskaya na cura e reconstrução, bem como voluntários para criar o cerne de um novo
círculo. Coroa e Torre deveriam se unir ainda mais para recuperar o que foi perdido e isso
exigia uma oferta e aceitação formais. Talvez ele enviasse Ellimara Aillard que havia quase
completado seu treinamento de Guardiã.
Varzil alcançou o topo das escadas e o paxman de Carolin, que havia liderado o caminho,
parou para deixá-lo recuperar o fôlego. Varzil conseguiu dar um meio sorriso e fez um gesto
para o homem continuar. Alguns momentos depois, ele foi escoltado até a presença de seu
amigo.
Carolin tinha envelhecido visivelmente desde Varzil o vira pela última vez, embora fosse
apenas a cerca de dez dias atrás. Carolin tinha apenas um laran modesto, a telepatia era o
menor de seus talentos, mas é evidente que ele tinha sido pego na explosão psíquica do
círculo morrendo de Hali. Mais do que isso, a perda de tantos homens e mulheres
talentosos sob seu domínio e cuidados lhe tinha ferido até os ossos.
Eles se cumprimentaram formalmente e depois o paxman retirou-se. Carolin cruzou o
espaço entre eles e estendeu os braços no abraço de um irmão.
Embora o contato físico fosse difícil para a maioria dos telepatas, Carolin era uma das
poucas pessoas Varzil conseguia ter tal intimidade. Eles tinham compartilhado tanto sonhos
e lutas, risos e traições, e agora esta tristeza esmagadora.
Varzil sentiu a força do aperto de Carolin, os músculos endurecidos por anos de prática
regular com a espada, a respiração rápida, a firmeza de espírito. Não houve necessidade de
falar. A compreensão entre eles era mais profunda do que o uso das palavras. Ele
encontrou no silêncio muito mais conforto do que em quaisquer frases vazias.
Por fim, eles se separaram. Varzil sentiu um energia, um raio de luz em seu coração,
como se alguma parte da força de seu bredu tivesse escoado para dentro dele.
Carolin levou a duas cadeiras almofadadas para perto de uma pequena lareira. O dia
estava quente o suficiente para torná-la desnecessária, mas Varzil saudou o conforto
caseiro. Ele afundou nos travesseiros com gratidão.
À pergunta de Carolin de como ele estava, Varzil respondeu que ainda não estava
recuperado, mas que ele estava indo tão bem quanto se podia esperar. Todos eles se
recuperariam com o tempo.
- De fato. - Carolin disse com uma grave aceno. - Tal acontecimento não deve ser
esquecido rapidamente.
- Diz-se que quando um ano morre, outro nasce das cinzas. Eu acredito que nós estamos
vivendo em um tempo de renascimento. - Varzil passou a apresentar a sua oferta formal de
assistência.
Carolin aceitou com frases de gratidão.
- Assim, depois de tudo, finalmente teremos uma mulher Guardiã em Hali. Logo nosso
mundo terá mudado tanto que nossos pais não o reconheceriam. No entanto, não é por isso
o que temos sonhado e lutado tanto? Nós não previmos como isso viria, a que terrível
custo, mas a realidade pode exceder as nossas expectativas.
- Isso é verdade. - Disse Varzil. - Nenhum de nós poderia ter previsto uma mudança tão
cataclísmica.
Carolin gesticulou para a mesa no outro extremo da sala, empilhada com pergaminhos.
- Mensageiros continuam vindo de todos os cantos de Darkover, mesmo tão longe
quanto Dalereuth e as Hellers. Todos eles têm jurado respeitar o Pacto e muitos pequenos
reinos tem abandonado suas armas e buscado a paz com seus vizinhos. - Ele balançou a
cabeça. - Na verdade, este é o início de uma nova era.
Carolin se levantou e foi até a mesa. Ele pegou um livro e o leu por alto. - Esta é talvez a
mais estranha notícia de todas. Valeron assinou o Pacto, mas também enviou informações
de sua própria tragédia. Dentro de sua pequena Torre, vários leronyn foram encontrados
mortos, as suas mentes aparentemente queimaram no incêndio.
Ele olhou para cima, franzindo a testa. - Um deles era o nosso velho amigo, Eduin.
- Eduin! O que ele estava fazendo em Valeron?
- A mensagem de Lady Aillard diz apenas que ele e um companheiro tinham chegado
com uma companhia de Kirella, uma de suas províncias. Talvez ele tenha encontrado algum
emprego útil lá. Ele aparentemente escondeu o seu nome entre eles. Lady Aillard não
suspeitou de nada, mas foi o companheiro de Eduin, uma espécie de beato, que revelou o
suficiente para esclarecer sua verdadeira identidade.
- Eu não sabia Eduin estava em Valeron, - Varzil disse, seguindo cuidadosamente o seu
caminho através do emaranhado de verdades e suspeitas, - mas ele era parte do círculo de
Hali que nos mostrou suas mortes. Como ele foi capaz de se juntar a eles com essa
distância, eu não sei. Seu talento pelo visto era incrível. Ele poderia ter sido um Guardião.
Ele estava com Dyannis no final...
- Eu me lembro de como eles se apaixonaram a tantos anos atrás. - Carolin murmurou.
- Nos últimos momentos eu descobri a verdade sobre Eduin. Carlo, isso é difícil para mim
dizer, mas ele era de fato responsável pela morte de Felicia, e quase foi responsável pela
sua.
- Éramos amigos. Ele me amou, eu tenho certeza disso.
Varzil disse a Carolin quem Eduin realmente era, como tinha sido moldado em um
instrumento de vingança, como ele tinha tentado desfazer o mal que havia causado. Ele
não mencionou por que os Deslucidos tinham sido executados. O segredo devia morrer
com ele, finalmente, terminando o ciclo de retaliação.
Carolin parecia pensativo.
- De certa forma, cada um de nós estava certo sobre Eduin. Ele era o bem e o mal, e no
final ele escolheu o bem. Que os deuses lhe concedam a paz.
- Assim termina uma outra era. - Disse Varzil.
Eles deviam agora olhar para o futuro com a nova forma que seu mundo tomava em
torno deles. Realizar o que muitos tinham perecido para tornar possível era um fardo
pesado e ele não teria que fazê-lo sozinho. Nem precisaria. Carolin estava ao seu lado. Em
toda parte, homens e mulheres de boa vontade se uniram para acabar com a ameaça do
armamento laran para sempre.
O anel em sua mão direita, com a pedra branca que guardava a marca da mente de
Felicia, brilhava suavemente. Seu coração estava mais leve e ele quase podia sentir seu
sorriso, seu calor, sua esperança duradoura.
Em um momento de vislumbre, ele viu círculos dedicados à cura em vez de morte, tanto
mulheres como homens vestindo o vermelho do Guardião, uma poderosa união reis no
Conselho em vez de batalhas com terras envenenadas impedindo crescimento verde e
fértil, e crianças rindo sob o grande Sol vermelho.
Felicia teria se alegrado com essa visão. Talvez ela, Dyannis e todos os outros que tinham
dado suas vidas pudessem ver o que ele via também. De repente Varzil notou o olhar fixo
de Carolin e sabia que, juntos, eles iriam transformar essa visão em realidade.
Carolin estaria sempre ao seu lado.

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