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Os frutos da minha mulher

Han Kang

(tradução livre para o português por Erica M Munhoz


a partir da tradução para o inglês de Deborah Smith)

Era fim de maio quando vi pela primeira vez os hematomas no corpo da minha mulher. Um
dia em que as lilases no canteiro ao lado da sala do zelador espalhavam suas pétalas como
línguas cortadas, e o pavimento da entrada da casa de repouso se entupia de flores brancas
apodrecendo, presas nos sapatos dos passantes.
O sol estava quase em seu zênite.
A luz da cor da carne de um pêssego maduro pingava para dentro do chão da sala, vertendo
partículas incontáveis de poeira e pólen.
Aquele brilho morno, grudento e doce escorria sobre as costas do meu robe branco enquanto
minha esposa e eu folheávamos o jornal de domingo.
A semana anterior tinha sido marcada pela mesma exaustão que eu vinha sentindo há meses.
Nos fins de semana eu me permitia dormir até mais tarde, e tinha acordado há apenas alguns
minutos. Deitado de lado, eu ajeitava meu corpo lânguido numa posição mais confortável,
folheando o jornal lentamente.
“Dá uma olhada nisso? Não sei por que esses hematomas não sumiram. ”
Registrei as palavras da minha mulher como mero distúrbio no tecido do silêncio, sem
processar seu sentido. Voltei os olhos a ela distraído.
Endireitei as costas. Marcando o que estava lendo com um dedo, esfreguei os olhos com a
palma da mão. Minha esposa tinha levantado a blusa até o sutiã; hematomas profundos
salpicavam suas costas e abdômen.
“Como você fez isso? ”
Torcendo pela cintura apenas o suficiente para que eu visse as vértebras se enfileirando desde
o zíper da sua saia plissada. Hematomas pálidos do tamanho do punho de um recém-nascido,
visíveis como se tivessem sido impressos em tinta.
“Bem? Como fez isso? ” Meu tom insistente e ríspido rompeu o espaço estático contido no
nosso apartamento de 18 pyeong1.
“Não sei... Eu achei que tinha esbarrado em algo sem perceber, e os hematomas iriam sumir...
mas na verdade eles estão crescendo. ”

1
Unidade de medida de área usada na Coréia. 1 pyeong é igual a aproximadamente 3.3 metros quadrados.
Minha mulher evitou meu olhar como uma criança flagrada fazendo algo errado. Me
arrependendo um pouco de ter parecido repreendê-la, fiz um esforço para suavizar o tom.
“Não dói?”
“Não, nem um pouco. Na verdade, não sinto nada nas partes manchadas. Mas sabe, isso é
ainda mais preocupante.”
A expressão culpada que eu tinha notado alguns momentos antes desapareceu
completamente, substituída por um suave, incoerente sorriso. O sorriso brincava nos lábios
da minha mulher enquanto ela perguntava se deveria ir ao hospital.
Me sentindo estranhamente afastado da situação toda, examinei o rosto da minha mulher
com um olhar frio e objetivo. O rosto com o qual fui confrontado parecia pouco familiar.
Parecia estranho, quase irreal; nada do que se esperaria estando no nosso quarto ano
morando juntos.
Minha esposa era três anos mais nova que eu, tinha feito vinte e nove naquele ano. Seu rosto
costumava fazê-la parecer embaraçosamente jovem quando saíamos juntos, antes de nos
casarmos – frequentemente a confundiam com uma colegial. Agora ele carregava sinais claros
de fadiga, que contrastavam com seu olhar ingênuo. Parecia improvável que alguém a
confundisse com uma colegial agora, ou mesmo uma aluna de faculdade. Na verdade, ela até
parecia mais velha do que a sua idade. Suas bochechas, da cor de maçãs que amadurecem
aos poucos, nas quais o vermelho acaba de começar a surgir, estavam afundadas, como argila
batida. A cintura que tinha sido macia e flexível como a plântula da batata doce, o abdômen
que um dia teve curvas apelativas, eram agora magros de dar dó.
Me esforcei para lembrar da última ocasião em que tinha visto minha esposa nua, com luz
suficiente para vê-la de fato. Não naquele ano, decerto; eu nem tinha certeza se tinha
acontecido no ano anterior.
Como eu podia ter falhado em notar os profundos hematomas no corpo da única pessoa com
quem eu vivia? Tentei contar as finas rugas irradiando dos cantos dos olhos da minha mulher.
Então disse a ela que tirasse toda a roupa. Uma coloração vermelha apareceu na linha dos
ossos da sua bochecha, indecentemente acentuada pela sua perda de peso. Ela tentou
protestar.
“E se alguém estiver vendo ”
Ao contrário da maioria dos apartamentos, cuja sacada é voltada para um jardim ou garagem,
o nosso era virado para a estrada leste principal. Como estávamos há três ruas do bloco de
apartamentos mais próximo, separados pela estrada e o rio Chungnang, seria impossível para
qualquer um espiar sem um telescópio poderoso. Não havia nenhum perigo de alguém
vislumbrar nossa sala de estar de dentro de um dos carros correndo na estrada. Então eu
simplesmente entendi seu protesto como um sinal de vergonha. Aos fins de semana, quando
recém-casados, nessa mesma sala, com a porta da varanda e a janela do outro lado
escancaradas, num esforço de diminuir o calor sufocante de Agosto, costumávamos fazer
amor várias vezes no meio do dia, explorando desajeitados essa coisa que nos era tão nova
até sucumbirmos ao peso da exaustão.
Depois de mais ou menos um ano, já não estávamos tão desacostumados com o nosso amor,
e o fervor daqueles dias gradualmente se dissipou. Minha esposa ia para a cama bem cedo, e
tinha um sono particularmente pesado. Se eu voltasse tarde para casa podia ter certeza que
ela já estaria dormindo. Quando eu virava a chave na fechadura da porta da frente e entrava
no apartamento, sozinho e sem ninguém para me receber, me lavava e entrava no quarto
escuro, a cadência uniforme do seu sono me parecia inexplicavelmente desolada. Se eu a
tomava nos braços, esperando diminuir sua solidão, seus olhos semicerrados não me
indicavam se ela estava rejeitando meu abraço ou o acolhendo carinhosamente. Ela só
passava os dedos silenciosos pelos meus cabelos até os movimentos do meu corpo cessarem.
“Tudo? Você quer que eu tire tudo?”
Com o rosto tenso, se esforçando para segurar as lágrimas, minha esposa amassou a calcinha
que tinha tirado, e cobriu a região púbica.
E ali estava seu corpo nu, totalmente exposto no sol da primavera. Fazia realmente muito
tempo.
Ainda assim, eu era incapaz de sentir o mais leve dos desejos. Vendo os hematomas verdes
amarelados não apenas nas suas nádegas, mas também nas suas costelas e canela, ao longo
inclusive da pele branca no interior de suas coxas, a raiva me tomou, e rapidamente afrouxou
suas garras, deixando em seu lugar uma injustificada melancolia. Para essa mulher cuja mente
tão facilmente se dispersava, teria o sono dissolvido até a memória de, caminhando pela rua
no fim da tarde – os sentidos já entorpecidos pela cortina do sono que descia - esbarrar em
um carro em movimento lento, ou talvez perder o passo e cair pela escada escura do nosso
prédio?
A figura da minha mulher, ali de pé, escondendo seu púbis enquanto o sol do final da
primavera escorria nas suas costas, distraidamente perguntando se deveria ir ao hospital, era
simplesmente deplorável demais, lamentável, triste demais para palavras, de modo que fui
tocado por uma tristeza que eu não sentia há muito tempo. Só consegui segurar seu corpo
magro contra o meu.
2
Eu presumi que tudo ia ficar bem. E foi por isso que tomei o corpo ossudo da minha mulher
nos meus braços naquele dia e disse, “se eles não estão doendo, com certeza os hematomas
vão sumir logo. Você não costumava se meter em confusões assim, não é?” Suavizei a
represália com uma alta risada.
Em uma noite no início do verão, o vento quente esfregava suas bochechas grudentas nas
folhas dos altos sicômoros, e as ruas de olhos vermelhos piscavam da claridade à escuridão.
Minha esposa, sentada à minha frente na mesa enquanto jantávamos, apoiou sua colher
ruidosamente. Eu tinha me esquecido completamente dos seus hematomas.
“Bem, é estranho... dê uma outra olhada.”
Tendo examinado os dois braços finos que saíam de suas mangas curtas, minha esposa
bruscamente tirou a camiseta e sutiã. Um breve gemido me escapou antes que o pudesse
suprimir.
Os hematomas que eram do tamanho do punho de um recém-nascido na primavera anterior
agora se pareciam mais com grandes folhas de taro. Além disso, tinham escurecido. Eram da
cor escura dos galhos de um salgueiro, cujo verde pálido parece tingido de azul no começo
do verão.
Estiquei uma mão trêmula e acariciei o ombro arroxeado da minha mulher, sentindo como se
fosse o corpo de uma estranha que eu tocava. Quão dolorido deve ter sido, para ficar com
hematomas assim?
Agora me lembro que notei também o rosto da minha mulher reluzindo um tom de azul
naquele dia, como se inundado por água plúmbea. Seus cabelos antes sedosos estavam tão
frágeis como folhas secas de rabanete. O branco dos olhos apresentava uma tonalidade anil,
como se a tinta de suas raras pupilas pretas tivesse sangrado neles. Seus olhos brilhavam
úmidos.
“Por que isso está acontecendo comigo? Eu vivo querendo ir lá fora, e assim que eu saio...
assim que eu vejo a luz do sol, na verdade, eu tenho vontade de tirar minhas roupas. É como
se meu corpo quisesse que as tirasse. ” Minha esposa se levantou, me dando a mais plena
visão que eu tinha tido ao longo do ano todo de sua figura nua e murcha. “Antes de ontem
saí à varanda sem nada e fiquei ao lado da máquina de lavar. Sem saber se alguém podia me
ver... e nem sequer tentando me esconder... Como se eu fosse uma louca!” Eu não fiz nada
além de ficar sentado olhando o dorso esquelético da minha mulher enquanto ela se
aproximava, passando os dedos nervosos pelos lados dos palitinhos que eu segurava. “Perdi
o apetite também. Mas estou bebendo mais água do que costumava... Nem consigo comer
metade de uma cumbuca de arroz em um dia inteiro. E porque eu não estou comendo, acho
que meu suco gástrico não deve estar sendo liberado ou algo assim. Mesmo que eu me force
a comer, a comida não é digerida direito e eu só vomito tudo de novo. ” Ela caiu de joelhos
como uma marionete que tivesse os fios cortados e escondeu o rosto nas minhas coxas. Com
certeza ela não estaria chorando? Uma mancha morna e úmida surgiu na minha calça de
moletom.
“Você sabe como é a sensação de vomitar várias vezes por dia? É como estar mareada mesmo
em terra firme; você tem que andar entortada, é impossível ficar reta. Sua cabeça dói como
se ... como se o olho direito estivesse entrando nela. Seus ombros ficam duros como uma
tábua, você saliva, ácido gástrico amarelo na calçada, nas raízes das árvores da beira da
estrada...”
O zunido alto de um inseto vinha da lâmpada fluorescente que fraquejava. Debaixo da sua luz
espessa, minha esposa, um hematoma nas costas do tamanho de uma folha de catalpa,
conseguiu extinguir o som estridente que saía dela.
“Vá ao hospital”, eu disse a ela, olhando em seus olhos. “Amanhã, vá direto ao setor de
medicina interna.”
Seu rosto inchado e úmido era desagradável. Enquanto passava meus dedos abertos pelos
seus cabelos ressecados, dei um sorriso largo. “E preste atenção no caminho. Você não quer
ficar se machucando de novo. Você não é uma criança, para ficar caindo e esbarrando nas
coisas. ”
O rosto molhado da minha mulher tremeu em um sorriso, e uma única lágrima presa aos seus
lábios se esticou e desprendeu.
3
Minha mulher tinha tido desde sempre tanta propensão às lágrimas? Não, não tinha. A
primeira vez que a vi chorar, ela tinha vinte e seis anos.
Quando jovem ela tinha sido mais facilmente levada ao riso, sua voz sempre cheia de um tom
alegre, a risada como um banho de cores. Eu ouvi essa voz, sua maturidade calma sempre
contrastando com a aparência jovial, tremer pela primeira vez quando ela me disse, “Eu odeio
morar nos arranha-céus de Sanggye-dong2.”
“Setecentas pessoas todas abarrotadas, sinto que vou definhar e morrer. Odeio essas
centenas e milhares de prédios idênticos, cozinhas idênticas, tetos idênticos, privadas
idênticas, banheiras, varandas e elevadores, e odeio os parques, as áreas de lazer, as lojas, as
faixas de pedestre. Odeio tudo isso.”
“De onde veio isso agora, hmm?” Eu falei como se consolasse uma criança frágil, tendo
prestado mais atenção à suavidade da voz da minha mulher do que àquilo que ela dizia. “O
que há pra desgostar em uma porção de pessoas vivendo perto umas das outras?”
Eu adotei uma expressão um tanto austera enquanto olhava em seus olhos. Seus vívidos olhos
cintilantes.
“Eu sempre garanti que os quartos que alugava fossem perto do distrito do entretenimento.
Só me mudava para lugares que estavam cheios de pessoas, onde música alta inundava as
ruas e carros entupiam as avenidas e soavam suas buzinas. Não teria aguentado de outro
modo. Eu não teria suportado viver sozinha. ” Enquanto minha esposa afastava as lágrimas
do rosto com as mãos, elas eram substituídas num fluxo contínuo. “E agora, é como se eu
fosse pegar alguma doença crônica e morrer. Como se não fosse poder descer desse décimo
terceiro andar, como se não fosse poder chegar lá fora.”
“Por que você está fazendo tanto drama a respeito disso? Sério, é um pouco excessivo.”
No nosso primeiro ano aqui nos apartamentos de arranha-céus, minha mulher ficou doente
com frequência. Ela estava acostumada ao ambiente natural de um quarto alugado em um
dos distritos mais montanhosos de Seoul, e seu corpo parecia incapaz de se ajustar ao
apartamento pequeno e fechado com aquecimento central. Seu nível de energia logo caiu,
não suportando mais do que uma leve caminhada ladeira acima uma vez por dia para chegar
à pequena editora onde ela trabalhava ganhando uma mixaria.

2
Bairro em Seoul.
Mas não foi por causa do nosso casamento que ela se demitiu. Foi só depois de ela ter se
demitido, não muito tempo depois, aliás, que eu falei de fato em casamento. Ela tinha
retirado todo o dinheiro que tinha, tudo o que tinha economizado do seu salário e pensão,
mais algum extra de bicos aos fins de semana – e estava planejando deixar o país.
“Quero ir encher minhas veias de sangue novo”, ela disse. Isso foi na noite depois de ter
finalmente entregue a carta de resignação ao seu superior. Ela me disse que queria
transfundir o sangue ruim que estava entupindo suas veias como cistos e lavar seus velhos
pulmões cansados com ar fresco. Ela dizia que viver e morrer livre era seu sonho desde
criança; ela tinha adiado porque não era o momento certo, mas agora sentia que tinha
economizado o suficiente para realizar seu sonho. Ela planejava escolher um país, ficar lá por
seis meses, mais ou menos, e então se mudar para outro lugar, e assim por diante. “Quero
fazer isso antes de morrer, sabe,” ela disse, e riu baixo. “Quero ver os limites do mundo. Ir
tão longe quanto possível, aos poucos.”
Mas no fim, ao invés de partir para os limites do mundo, minha mulher colocou todo o seu
mísero dinheiro no depósito para esse apartamento e nos custos do nosso casamento. Ela me
explicou tudo isso numa curta frase, dizendo ter feito isso “porque não é como se eu pudesse
deixar você”. Quão real tinha sido esse seu sonho, esse sonho de liberdade? Considerando
que ela tinha aberto mão dele tão facilmente, eu assumi que não muito. A coisa toda não
devia passar de uma ilusão romântica e irreal, e os planos que tinha feito não eram mais
razoáveis do que aqueles de uma criança para viajar à lua. No fim ela devia ter entendido tudo
isso sozinha, e eu me sentia vagamente comovido e orgulhoso de pensar que tinha sido eu
que a levara a esse entendimento tardio.
Aquilo tudo era provavelmente por causa de suas dores constantes, mas quando vi minha
mulher de pé com o rosto pressionado contra o vidro da varanda, seus ombros finos caídos
como folhas de repolho murchas enquanto olhava os carros lá embaixo, meu coração ficou
apertado. Ela estava tão estática, apenas o som distante da sua respiração confirmava que
ainda estava viva; como se um par de braços invisíveis segurassem seus ombros, como se uma
imensa bola presa a uma invisível corrente a impedisse de flexionar um único músculo.
Na calada da noite e de madrugada, minha esposa acordava com um susto, conturbada pelo
ocasional taxi ou motocicleta que rugia pela rua deserta. “É como se a estrada estivesse
correndo ao invés dos carros, como se esse apartamento estivesse sendo arrebatado pela
estrada,” ela dizia. Mesmo depois do barulho dos motores se distanciar e o sono a tomar de
volta, o rosto adorável da minha esposa ficava mortalmente pálido.
Em uma dessas noites, minha mulher balbuciou como em um sonho, sua voz rouca quase
inaudível: “Essa coisa toda, de onde veio... para onde tudo isso está fugindo?”
4
Na noite seguinte, quando abri a porta da frente e entrei no apartamento, vi que minha
mulher tinha vindo até a porta me receber, provavelmente por ter ouvido meus passos no
corredor. Ela estava descalça e a curva das suas unhas dos pés, que ela não cortava tanto o
quanto deveria, brilhavam brancas.
“O que eles disseram no hospital? ”
Nenhuma resposta. Tendo me estudado em silêncio enquanto removia meus sapatos, minha
esposa se virou, colocando atrás da orelha uma mecha de cabelo que descansava sobre seu
rosto.
Aquele perfil, eu pensei comigo. Eu me lembrava como, quando nos apresentaram pela
primeira vez, um leve silêncio surgiu quando meu chefe – foi ele que nos apresentou –
levantou e nos deixou a sós, e quão desconcertado eu fiquei pela expressão de segredo no
rosto da minha futura mulher. Fazia com que ela parecesse passear em algum lugar distante,
algum local não dito. Naquele rosto, que a princípio parecia apenas alegre e amável, eu
conseguia ler uma solidão não procurada, aparentemente de uma pessoa totalmente
diferente, e foi isso que me deu a convicção momentânea que ela me entendia. Então,
quando essa convicção e o álcool que eu tinha bebido me fizeram deixar escapar uma
confissão, que eu tinha sido solitário a vida toda, a mulher de vinte e seis anos que se tornaria
minha esposa se virou para encarar algum horizonte distante, me fazendo confrontar o
mesmo frio e desolado perfil que eu via agora.
“Você foi ao hospital, certo?” Minha esposa inclinou a cabeça na indicação mais sutil de
afirmação. Ela tinha se virado para esconder uma aparência doente, ou eu tinha feito algo
errado? “Vamos, por favor, fale comigo. O que o médico disse? ”
“Que está tudo bem,” ela disse, mais como uma espiração do que uma frase. Sua voz estava
assustadoramente neutra.
Naquele encontro inicial tinha sido a sua voz o que mais me atraiu nela. Era uma comparação
absurda, mas a sua voz me fazia pensar em uma mesa de chá brilhante e envernizada; um
daqueles móveis que você não quer mostrar para ninguém além do hóspede mais importante,
e onde só parece certo servir o melhor chá, nas melhores xícaras. Naquela noite,
aparentemente nada afetada pela minha confissão, a resposta da minha mulher tinha sido
perfeitamente cotidiana, e dita em seu tom usual de compostura. E eu, ela disse, eu quero
viver a minha vida inteira sem me estabelecer em um único lugar.
Depois disso eu tinha falado de plantas. Contei a ela que tinha um sonho de uma varanda
abarrotada de grandes vasos, cada um deles cheio de alface e perillas. No verão, pequenas
flores desabrochariam nas perillas como flocos de neve. E teria broto de feijão crescendo na
cozinha, acrescentei. Isso finalmente fez minha mulher rir um pouco, depois de me fixar um
olhar cético, como se esse papo de plantas não combinasse com a ideia que ela fazia de mim.
Tentando me segurar nessa frágil risada, eu disse novamente: “Eu fui solitário a minha vida
toda. ”
Depois que casamos, eu coloquei vasos na varanda como dissemos, mas nenhum de nós
pareceu ter o dedo verde. Por algum motivo, até mesmo vegetais resistentes, que eu
imaginava que não precisariam de mais do que regas constantes, murchavam e morriam sem
nos dar uma única colheita.
Uma pessoa disse que nosso apartamento era muito alto e distante da energia do solo; outra
nos disse que as plantas morriam porque o ar e a água eram ruins. Até nos disseram que nos
faltava a força de vontade necessária para criar seres vivos, mas isso simplesmente não era
verdade. A forma sincera como minha mulher se dedicava a cuidar daquelas plantas
ultrapassava todas as expectativas. Se uma alface ou perilla murchava, isso era o suficiente
para deixá-la deprimida por horas, enquanto se alguma delas parecia se prender tenazmente
à vida ela andava por aí murmurando uma canção alegre.
Por algum motivo desconhecido, nada restava agora nos vasos retangulares da varanda além
de solo seco. Para onde tinham ido elas, eu me perguntava, todas aquelas plantas mortas? E
aqueles dias de chuva, quando eu colocava os vasos na janela para molhar suas mãos na água
fria da chuva, para onde tinham ido todos esses jovens dias?
Minha esposa tinha se virado para mim e dito, “Vamos para algum lugar longe daqui, nós
dois.” Ao contrário das plantas, que reviviam pelo menos um pouco à medida que suas folhas
recebiam a chuva revigorante, minha esposa parecia definhar num estado ainda mais
profundo de depressão. “É impossível viver nesse lugar paralisante, ” ela disse, esticando a
mão abatida sobre as folhas de alface para interromper a água da chuva, que ela depois
sacudiu para dentro da varanda. “Essa chuva é imunda, ” ela disse, “preta com ranho e cuspe.”
Seus olhos procuravam o meu consentimento. “Isso não é vida,” ela disse rispidamente, “só
parece.” Sua voz estava cheia de hostilidade, como o discurso de um bêbado, Esse país está
podre! “Não tem como algo crescer aqui, você não vê? preso aqui desse jeito... nesse lugar
sufocante e ensurdecedor! ”
Eu não aguentava mais.
“O que é sufocante?” Eu não aguentava esses ataques cortantes que estilhaçavam minha
felicidade nova e precária, ou o sangue do sofrimento reprimido que as suas palavras
arrancavam de dentro do seu corpo gasto. “Me fala.” Eu derramei a água que tinha coletado
nas minhas mãos em concha sobre os ombros da minha mulher, “O que é sufocante? O que
é ensurdecedor? ”
Um gemido baixo escapou da minha mulher, suas mãos surpresas se agitando sobre o seu
rosto. A chuva fria respingava na vidraça da varanda e no meu rosto. O vaso no parapeito
furou o pé da minha mulher com a sua ponta afiada antes de se quebrar no chão da varanda.
Pedaços de cerâmica e amontoados de terra se prendiam à roupa da minha mulher, seus pés
descalços. Ela se dobrou, segurou o pé machucado, e mordeu os lábios.
Morder os lábios era um hábito antigo dela, desde antes do casamento, ela fazia isso toda vez
que eu ficava bravo ou erguia a voz. Se focar nos lábios parecia ajudá-la a organizar os
pensamentos, e depois de um tempo ela começava a responder o que eu tivesse dito, listando
seus argumentos calma e logicamente. Mas depois daquele incidente na varanda, seu lábio
mordido se tornou a única resposta que eu conseguia tirar dela. Paramos de brigar depois
daquele dia.
“O médico disse que não há nada de errado?” Eu senti uma onda intensa de cansaço e solidão.
Quando eu movi os ombros para tirar o casaco, minha mulher não veio tirá-lo para mim.
“Ele disse que não achou nada de errado,” ela confirmou, seu rosto ainda voltado para o outro
lado.
5
Minha esposa gradualmente perdeu toda a fala que ainda tinha. Ela não falava a menos que
tivesse ouvido uma pergunta, e ainda assim sua única resposta era assentir ou balançar a
cabeça. Se eu levantava a voz, exigindo que ela respondesse, ela só fixava seu olhar equívoco
em algum ponto distante. Sua aparência piorava perceptivelmente agora, mesmo sob a luz
fraca da lâmpada fluorescente.
Dado que o médico disse que não havia encontrado nada de errado, talvez, ao invés de algum
problema físico de estômago ou intestino, fosse simplesmente um caso de anseio. Mas por
que raios ela poderia estar ansiando?
Os últimos três anos tinham sido os mais agradáveis e pacíficos da minha vida. Meu trabalho
não era exigente demais, eu tinha a sorte de ter um proprietário que não tentava aumentar
o valor do aluguel, eu tinha quase terminado de pagar as parcelas para o novo apartamento,
e tinha uma mulher que, apesar de não ser estonteantemente atraente, era tudo o que eu
queria em uma parceira; meu contentamento era como água quente batendo de leve nas
bordas de uma banheira, acariciando meu corpo exausto.
Então qual era o problema da minha mulher? Se ela estava sedenta por algo, eu não podia
imaginar como isso poderia ser grave a ponto de se tornar uma doença física. Cada vez que
eu me questionava se essa mulher tinha mesmo o direito de me causar tanta solidão, eu
sentia como se meu corpo se enchesse de um horror sem limites, me isolando como uma
camada de poeira velha.
No domingo seguinte, o dia antes de uma viagem de uma semana que eu faria a trabalho, eu
assistia minha esposa estendendo a roupa na varanda. Os hematomas agora cobriam tanto
dos seus braços que as partes de pele branca pareciam hematomas invertidos, pequenas
manchas brancas no meio do azul. Eu prendi a respiração. Enquanto ela carregava o cesto
vazio de volta para a sala, eu bloqueei seu caminho e mandei que ela tirasse a roupa. Ela
resistiu, mas eu tirei sua camiseta, revelando um ombro tingido de azul escuro.
Eu tropecei para trás e olhei para o seu corpo. Mais da metade dos pelos um dia grossos das
suas axilas tinham caído, e a cor tinha sumido dos seus mamilos antes amarronzados e
macios.
“As coisas não podem continuar assim. Eu vou ligar para a sua mãe.”
“Não, deixa que eu ligo, ” minha mulher gritou apressada, sua pronúncia estranha como se
mastigasse a língua.
“Vá ao hospital, entendeu? Vá ao dermatologista. Não, vá ao hospital geral.” Ela assentiu,
muda. “Você sabe que eu não tenho tempo de ir com você. Você conhece seu próprio corpo,
então você deve mantê-lo em ordem, não? ” Ela assentiu novamente. “Escuta. Ligue para a
sua mãe.” Minha esposa continuou assentindo, seus lábios apertados. Aquilo significava que
ela estava escutando? Provavelmente minhas palavras entraram por um ouvido e saíram por
outro; eu podia ouvi-las caindo no chão da sala, se esfarelando como biscoitos baratos.
6
As portas do elevador se abriram barulhentas. Eu andava pelo corredor escuro carregando
minha mala pesada, e toquei a campainha. Ninguém respondeu.
Pressionei meu ouvido contra o metal gelado da porta. Continuei apertando a campainha,
duas vezes, três vezes, quatro vezes, checando se estava funcionando; estava, eu ouvia tocar
dentro do apartamento, apesar da porta abafar o som fazendo parecer que vinha de muito
longe. Apoiei a mala e olhei meu relógio. Oito da noite. Tudo bem que minha esposa tivesse
sono pesado, mas isso era um pouco demais.
Eu estava exausto. Eu nem tinha comido. Só dessa vez eu não queria o trabalho de ter que
procurar as minhas chaves.
Talvez minha mulher tivesse ligado para a mãe e ido ao hospital como eu tinha mandado, ou
ido ficar com os pais no interior. Mas não – assim que eu pisei dentro de casa, percebi a
confusão familiar dos seus chinelos e sapatos.
Tirei meus próprios sapatos e coloquei os chinelos, registrando inconscientemente o frio
estranho do apartamento. Antes de dar alguns passos, porém, senti um cheiro nojento. Abri
a geladeira; dentro dela, os pratos de abobrinha e pepino tinham enrugado e se tornado
formas malcheirosas e pegajosas.
Mais ou menos meia cumbuca de arroz tinha sido deixada na panela elétrica; o arroz
claramente estava lá há algum tempo, seco e grudado. Quando abri a tampa, o cheiro de arroz
velho encheu minhas narinas junto com o vapor ainda quente. Havia uma pilha de louça suja
na pia e o cheiro doce de podridão vinha da bacia sobre a máquina de lavar, onde a roupa
suja estava de molho em uma água cinza e ensaboada.
Minha esposa não estava no quarto, no banheiro, ou no quarto extra que usávamos para
diversas coisas. Chamei seu nome; sem resposta. Na sala havia apenas o jornal da manhã,
aberto como eu tinha deixado uma semana antes; um pacote de leite vazio; um copo de vidro
sujo de pingos de leite coalhado; uma meia branca da minha mulher, virada do avesso; e uma
bolsa de couro vermelha; todos espalhados por aí.
O ronco dos motores dos carros que corriam pela estrada fez um corte afiado na sólida massa
do vazio contido no apartamento.
Porque eu estava cansado e faminto, porque a louça estava enferrujando na pia, sem uma
única colher limpa para que eu pegasse um pouco de arroz, eu me senti sozinho. Porque eu
tinha voltado para uma casa vazia depois de viajar longas distâncias, porque eu queria falar
sobre todas essas coisas triviais que acontecem em voos longos, sobre a paisagem que tinha
corrido pela janela em trens estrangeiros, porque não tinha ninguém para perguntar “Você
está cansado?”, me roubando a oportunidade de demonstrar minha resistência com um
estoico “Estou bem,” eu me senti só. E por causa dessa solidão, eu fiquei com raiva. Por causa
do sentimento de que, devido à insignificância do meu corpo, eu era fundamentalmente
incapaz de me enredar no tecido desse mundo, por causa do frio que entrava pelas minhas
roupas de repente finas, e por causa do pensamento de que tudo o que eu conseguira na vida
até agora era criar a ilusão de que eu era valorizado, eu senti raiva. Sozinho, e sem ninguém
para me amar, minha existência poderia ter sido simplesmente apagada.
Naquele momento, eu ouvi uma voz fraca.
Me virei na direção do som. Era a voz da minha esposa. Um murmúrio leve vinha da varanda,
impossível de decifrar.
Instantaneamente, aquela intensa solidão se transformou num sentimento de alívio, e
enquanto me aproximava senti uma irritação que saiu voando da ponta da minha língua. “Por
que você não me respondeu se você estava aqui esse tempo todo? ” Abri com força a porta
da varanda. “Isso é jeito de se cuidar de uma casa? De quê raios você estava vivendo?”
Então eu vi o corpo nu da minha mulher, e parei.
Minha esposa estava ajoelhada, de frente para a grade ao longo da janela, os dois braços
erguidos como se estivesse comemorando. Seu corpo inteiro era verde escuro. Seu rosto
antes de sombras agora brilhava como uma vistosa folha perene. Seus cabelos de folha de
rabanete seca estavam lustrosos como os caules de ervas selvagens.
Seus dois olhos brilhavam pálidos no rosto verde. Virando-se para mim enquanto eu me
encolhia para trás, ela se moveu como se fosse se levantar. Mas espasmos correram inúteis
nas suas pernas. Ela parecia impossibilitada de ficar de pé ou andar.
Sua cintura flexível retorcia dolorosamente. Sua língua atrofiada se movia como uma planta
aquática entre seus lábios azul escuros. Não havia sinal de seus dentes.
Uma única exclamação, pouco mais que um gemido, escapou pelos seus lábios enrugados.
“... água. ”
Eu corri para a pia, abri a torneira ao máximo e enchi a bacia até transbordar. A água
esparramava com cada um dos meus passos apressados, caindo no chão da sala enquanto eu
corria de volta para a varanda. Assim que eu derramei a água sobre o peitoral da minha
mulher, seu corpo inteiro tremeu num processo de renovação, como a folha de uma grande
planta. Eu voltei e re-enchi o balde, retornando para derramá-lo sobre a cabeça da minha
esposa. Seus cabelos brotaram para cima, como se um peso invisível os comprimisse. Eu
assistia seu corpo verde brilhante desabrochar com o meu batismo. Me senti tonto.
Minha mulher nunca tinha sido tão bela.

7
Mãe.
Não consigo mais te escrever cartas. Ou usar a malha que você deixou aqui. Aquela malha de
lã cor de laranja, que esqueceu aqui quando veio visitar no inverno passado.
Eu usei no dia depois que ele partiu para a viagem de trabalho. Você sabe como eu sinto frio.
Ela não tinha sido lavada, então ainda tinha aquele cheiro de comida velha misturado com o
perfume da sua pele. Num outro dia eu provavelmente teria lavado, mas estava muito frio, e
além disso, eu queria continuar respirando aquele cheiro, então fiquei com ela, e até
adormeci com ela. Na manhã seguinte, ainda estava tudo congelado, e talvez fosse porque
eu estava com tanto frio e sede que, quando o sol da manhã eventualmente apareceu na
janela do quarto, aquele grito sufocado brotou de mim: mãe. Querendo ser envolvida por
aquela luz quente, fui até a varanda e tirei minhas roupas. Os raios do sol penetrando a minha
pele pareciam tanto com o seu cheiro, que eu ajoelhei ali e chamei em voz alta mãe, mãe.
Mais nenhuma palavra.
Eu me pergunto quanto tempo se passou. Dias, semanas, meses? Tendo percebido que o ar
não parecia particularmente quente, tudo o que eu notei desde então foi um discreto
aumento de temperatura, seguido de uma queda comparável.
A qualquer momento, as janelas dos apartamentos distantes sobre o rio Chungang vão brilhar
com uma luz laranja.
Será que as pessoas que moram lá podem me ver? E os carros que correm na estrada
principal, a luz brotando dos seus faróis? Qual a minha aparência agora?

Ele tem sido extremamente gentil. Ele comprou um grande vaso e me plantou. Nos domingos,
ele passa a manhã inteira sentado no parapeito da varanda catando pulgões.
Ele, que costumava estar exausto o tempo todo, sobe o morro atrás do nosso quarteirão toda
manhã, retornando com um balde de água mineral para regar as minhas pernas (ele se
lembrou que não gosto da água da pia). Um tempo atrás ele esvaziou meu vazo e trocou
minha terra por uma argila rica. Quando a chuva da noite anterior lava um pouco da fuligem
do ar da cidade, ele abre bem a porta da frente e as janelas para deixar o ar fresco circular.

*
É estranho, mãe. Mesmo sem ver, ouvir, cheirar e sentir gostos, tudo parece mais fresco, mais
vivo. Eu sinto a fricção grossa das rodas dos carros que roçam no asfalto, as ínfimas
reverberações dos seus passos enquanto ele abre a porta e caminha até mim, o ar saturado
de chuva inchando com sonhos férteis, a meia-luz cinza do amanhecer.
Eu sinto brotos despontando e pétalas desabrochando em lugares próximos e distantes,
larvas emergindo de crisálidas, cães e gatos dando à luz seus filhotes, o pulso hesitante do
velho no prédio vizinho, o espinafre escaldando numa panela na cozinha de cima, um maço
de crisântemos arrancados sendo colocados em um vaso ao lado do gramofone no
apartamento de baixo. De dia e de noite, as estrelas descrevem uma calma parábola, e a cada
vez que o sol nasce, os corpos dos sicômoros ao lado da estrada se inclinam desejosos para o
leste. Meu próprio corpo responde de um modo semelhante.
Você entende? Em breve, eu sei, até o pensamento se perderá para mim, mas eu estou bem.
Eu sonhava com isso, com poder viver de nada além de vento, luz do sol, e água, faz muito
tempo.
*
Pensamentos sobre quando eu era jovem: quando eu corria para a cozinha e enterrava o rosto
na sua saia, aquele cheiro delicioso; o cheiro de óleo de gergelim, de sementes de gergelim
fritas. Sempre tive as mãos na terra, sabe. Minha mão suja de terra sujando a barra da sua
saia.
Quantos anos eu tinha? Naquele dia de primavera embaçado de garoa, o pai me levantando
até o trator e nos levando até a costa. A risada despreocupada dos adultos de capa de chuva,
crianças de cabelo molhado grudado na testa, saltando por aí e acenando, seus rostos
girando, enevoados.
Aquela pobre vila na beira do mar era o seu mundo inteiro. Você nasceu lá e cresceu lá. Você
deu à luz lá, trabalhou lá, e envelheceu lá.
Em algum momento você será enterrada lá, aos pés do nosso jazigo familiar, ao lado do pai.
Foi medo de acabar como você, mãe, que me fez colocar tanta distância entre mim e minha
casa. Tendo ido embora de casa aos dezessete, os distritos urbanos de Busan, Daegu,
Gangneung, onde eu vaguei sem rumo mais de um mês, ficaram na minha memória. Mentir
sobre a minha idade em um restaurante japonês, resolver coisas sozinha, noites encolhida
em posição fetal na sala de estudos3 – eu gostava daquele lugar. As luzes ofuscantes dos
distritos urbanos, o glamour brilhante dos seus habitantes.
Não sei quando percebi que acabaria velha e arruinada, vagando por essas ruas cheias de
estranhos. Eu era infeliz em casa, e igualmente infeliz em outro lugar, então me diga, para
onde eu devia ter ido?
Nunca fui feliz. Existe alguma alma torturada presa às minhas costas para sempre, apertando
a minha garganta, meus braços e pernas? Tudo o que eu sempre quis era fugir, um impulso
muito básico, a dor que provoca o choro, o beliscão que provoca um grito. Sentada de joelhos
encolhidos no fundo do ônibus, parecendo que não faria mal a uma mosca, e todo aquele
tempo querendo estilhaçar a janela com o meu punho. Sedenta pelo sangue que escorreria
pela minha palma, eu o teria lambido como um gato faz com o leite. Do que era que eu estava
tentando fugir? O que era que me atormentava tanto que eu queria escapar para o outro lado
do mundo? E o que me segurava, me aleijando e me fazendo mancar? O que eram os grilhões
que me acorrentavam, impedindo o salto que trocaria meu sangue doente?

3
Na Coréia é comum que alunos de colegial passem boa parte do tempo depois das aulas estudando nas “salas
de estudo”, grandes espaços divididos em cubículos que são alugados por hora ou período para estudar.
O médico velho batia no estetoscópio com os dedos sem parar, murmurando que minhas
entranhas eram tão silenciosas como um túmulo. Que os únicos sons eram ecos de lufadas
de um vento distante. Ele apoiou o estetoscópio na mesa e virou o monitor do ultrassom.
Fiquei deitada quieta enquanto ele espalhava um gel viscoso na minha barriga e depois
passava um instrumento na forma de um galho sobre a minha pele, metodicamente
deslocando do meu plexo solar até meu baixo-ventre. Através daquele instrumento, parece
que uma imagem das minhas entranhas era transmitida ao monitor, em preto e branco.
“Está normal”, ele murmurou, estalando a língua. “O que estamos vendo agora é o seu
intestino... não há nada de errado aqui.”
Tudo foi declarado “normal”.
“Estômago, fígado, útero, rins, estão todos bem.”
Como ele não podia ver que esses órgãos estavam atrofiando, e logo iriam desaparecer? Tirei
o gel com alguns lenços de papel, mas quando tentei me levantar ele me disse para deitar
novamente. Ele apertou meu abdômen em alguns lugares diferentes; não foi particularmente
dolorido. Olhei para seu rosto atrás dos óculos enquanto ele dizia casualmente “Dói?”, e
continuei balançando a cabeça.
“Tudo bem aqui?”
“Não dói aqui?”
“Não dói.”
Recebi uma injeção, e no caminho de casa vomitei novamente. Me agachei na estação do
metrô, as costas apoiadas na parede de azulejos. Contei enquanto esperava que a dor
diminuísse. O médico tinha me dito para relaxar, entende, pensar em coisas tranquilas e
acolhedoras. Tudo depende da mente, ele disse, entoando isso como um tipo de mestre
budista. Pensamentos calmos, pensamentos reconfortantes, um, dois, três, quatro, paz
eterna, contando enquanto tentava não vomitar... a dor me trouxe lágrimas aos olhos,
convulsões me tomavam enquanto regurgitava ácido gástrico, de novo e de novo, até que
finalmente não sobrou nada, e pude me deixar afundar no chão. Esperei que o chão parasse,
droga, só parasse de tremer.
Há quanto tempo foi isso?

Mãe, eu sempre tenho o mesmo sonho. Eu sonho que estou ficando alta como um álamo. Eu
furo o teto da varanda e atravesso o andar de cima, o décimo quinto, o décimo sexto, zunindo
para cima, atravessando concreto e vergalhões até quebrar o teto do último andar. Flores
como larvas brancas se contorcem até desabrochar nas minhas mais altas extremidades.
Minha traquéia suga água fresca, tão esticada que parece que vai estourar, meu peito se volta
para o céu e eu me esforço para esticar cada membro ramificado. É assim que eu escapo
desse apartamento. Toda noite, mãe, toda noite o mesmo sonho.
*
Os dias estão ficando mais frios. Hoje mesmo esse mundo terá visto muitas folhas caírem no
chão, muitas serpentes descamarem suas peles, muitos insetos e suas minúsculas vidas, e
muitos sapos começarem sua hibernação de inverno, um pouco adiantados.
Fico pensando na sua malha. A memória do seu cheiro já não é tão clara. Quero pedir que ele
a coloque sobre mim, mas a fala se perdeu para mim agora. O que eu posso fazer? Ele chora
por me ver definhando, e fica bravo também. Como você sabe, eu era toda a família que ele
tinha. Eu detecto suas lágrimas quentes se misturando com a água mineral que ele derrama
em mim. Sinto as moléculas do ar se desorganizando, seus punhos cerrados socando sem um
alvo.
*
Estou com medo, Mãe. Meus membros têm que cair. Esse vaso é apertado demais, suas
paredes muito duras. Dores irradiam das pontas das minhas raízes. Mãe, eu vou morrer antes
do inverno chegar.
E duvido que eu floresça novamente nesse mundo.

8
Mais tarde naquela noite em que cheguei da minha viagem de negócios, depois de molhar a
minha mulher com três bacias de água, ela vomitou um líquido amarelo de ácido gástrico.
Assisti seus lábios se abrirem e rapidamente se costurarem de volta, carne na carne, diante
dos meus olhos. Dedos tremendo, enquanto tentava mexer naqueles lábios pálidos e
enrugados, ouvi finalmente uma voz fraca, tão fraca que eu não conseguia entender o que
ela poderia estar dizendo. Foi a última vez que ouvi a voz da minha mulher. Depois disso, não
havia nada além de um gemido.
Um emaranhado branco de raízes brotou de dentro das suas coxas. Flores escuras
desabrocharam no seu peito. Dois estames idênticos, brancos nas pontas, amarelados e
grossos nas raízes, surgiram dos seus mamilos. Quando suas mãos erguidas ainda conseguiam
fazer uma pequena pressão, minha esposa queria segurar meu pescoço. Olhando aqueles
olhos, em que ainda restava alguma luz, eu me dobrei para o abraço daquelas mãos de pétalas
de camélia. “Você está bem?” eu perguntei. Seus olhos, um par de pêras maduras; brilhando
nas superfícies lisas, o fantasma de um sorriso.
À medida que o outono se adensava, eu percebi uma clara luz laranja aos poucos tomar o
corpo da minha esposa. Quando abria a janela, seus braços levantados balançavam bem de
leve, movendo-se com as correntes de ar.
À medida que o outono acabava, suas folhas passaram a cair duas ou três a cada vez. Seu
corpo aos poucos mudou do antigo laranja para um marrom opaco.
Pensei na última vez que tinha dormido com a minha mulher.
Ao invés do cheiro azedo de fluidos corporais, um cheiro levemente doce e pouco familiar
emanava da sua cintura para baixo. Naquele momento só presumi que ela deveria ter trocado
a marca do sabonete, ou que tinha tido tempo livre e decidido gastá-lo borrifando gotas de
perfume lá embaixo. Há quanto tempo tinha sido isso?
Agora, sua forma mal retém os traços do bípede que ela foi um dia. Suas pupilas, que parecem
ter se metamorfoseado em pêras brilhantes e redondas, estão aos poucos sendo enterradas
em galhos marrons. Minha esposa não pode mais ver. Ela nem pode flexionar as pontas dos
galhos. Mas quando eu vou até a varanda sinto uma sensação nebulosa que supera toda
linguagem, como uma ínfima corrente elétrica, pulsando do seu corpo para o meu. Quando
caíram todas as folhas que um dia tinham sido as mãos e o cabelo da minha mulher, e o lugar
onde seus lábios tinham se fundido se abriu, liberando um punhado de frutos, essa sensação
se acabou como um fio fino que se parte.
Os pequenos frutos transbordaram para fora num amontoado como romãs; eu os juntei nas
minhas mãos e me sentei no limite entre a varanda e a sala. Esses frutos, que eu via pela
primeira vez, eram de um verde amarelado. E eram duros, como as sementes de girassol que
servem junto com pipoca para acompanhar a cerveja.
Eu escolhi um e coloquei na boca. A casca macia não tinha gosto ou cheiro. Mordi. Fruto da
única mulher que já tive nessa terra. A primeira coisa que a minha língua sentiu foi um sabor
ácido, que quase queimava, e o suco que grudava no céu da minha boca tinha um gosto
residual realmente amargo.
No dia seguinte, comprei uma dúzia de pequenos vasos redondos, e depois de os encher de
solo fértil, plantei os frutos neles. Enfileirei os pequenos vasos ao lado do vaso da minha
esposa murcha, e abri a janela. Me debrucei sobre o terraço e fumei um cigarro, saboreando
o cheiro de grama fresca que de repente surgia das partes de baixo da minha mulher. O vento
fresco do fim do outono bagunçava a fumaça do meu cigarro, meus longos cabelos.
Quando viesse a primavera, a minha mulher brotaria novamente? Suas flores desabrochariam
vermelhas? Eu realmente não sabia.

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