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DIA 1
Ah, a primavera.
Quando os canteiros estão repletos das flores mais coloridas. Quando o vento
sopra e todo meu corpo se arrepia. Mas basta o sol tocar em minha pele que
estou em chamas novamente.
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É uma mistura de frio e calor que me deixa bêbada. Só por estar viva.
Balançando alto nessa rede.
Ele está sem camisa, seus ombros largos e sorriso irresistível logo chamam
minha atenção. Só de shorts ele carrega consigo uma tigela com grandes
fatias de carne. Desce as escadas que o leva num extenso gramado. Daqui de
cima, vejo sua silhueta branca em meio à todo esse verde esmeralda.
Há cerca de vinte metros diante dos meus olhos, vejo o grupo de pessoas
conversando animadas ao redor de uma churrasqueira. Grandes e frondosas
árvores cercam à todos.
Enzo acaba de chegar com a picanha, todos celebram com salvas de palmas,
outros dão mais um gole na cerveja. E eu estou aqui observando tudo isso
como uma mera espectadora.
Então ele acena para mim. Faço sinal com a mão que já estou indo.
Desço da rede, e saio da varanda onde às minhas costas fica esse casarão no
meio do nada.
Passo ao lado dos três carros estacionados sob uma alta mangueira, enquanto
aquelas mais maduras já estão no chão.
Sinto o vento úmido vindo do enorme rio à nossa frente, olho mais além e
vejo os ranchos se espalhando nas encostas do Refúgio das Aves.
É o nome desse lugar onde se alugam casarões por temporada.
Cinco lanchas nos esperam além do píer. Cada casal com a sua própria.
De mãos dadas vou com Enzo para mais um fim de semana perfeito.
DIA 5
Os lustres de cristal, o carpete vermelho que se estende por entre as mesas, e
as paredes de madeira brilhante.
“Esse cordeiro tá uma delícia!”
“Esse é o melhor restaurante dos Três Lagos.”
E estou novamente com eles. Conversam sobre investimentos, viagens
européias, enquanto fico encarando a taça de vinho como um patinho feio.
Vez ou outra, os encaro e dou sorrisinhos.
É hora do almoço, e o local está cheio de burburinho e risadas. Numa mesa
próxima de nós, noto duas mulheres negras vestindo terninhos. Observo que
elas estão com seus cabelos presos num coque alto, e sapatos fechados de
salto alto.
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Por um minuto, me vejo ali dentro daquele traje. Encaro o senhor grisalho
que aperta minha mão. De seus lábios leio as palavras: Negócio Fechado.
Como seria ser dona de sua própria empresa?
Dona de seu próprio destino?
DIA 9
Três copos de açaí, três mulheres dando risadas e relembrando o passado.
“Você deixou a gente de lado naquela época.”
“Foi só uma fase, agora estamos juntas de novo,” repito pela décima vez.
“Assim espero.”
São duas amigas que sempre que posso estou me encontrando com elas.
O calor que vem da praça entra dentro da Açaí & Cia.
“Daqui a pouco tenho que voltar.”
“Mas você não tinha duas horas de almoço?” pergunto intrigada.
“Tinha,” ela vira os olhos ao falar. “Meu patrão quer que eu volte mais cedo
hoje.”
Suspiramos decepcionadas.
“E você, Mari, já decidiu seu futuro?” pergunta Michelle, a ruiva.
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E por alguma razão, aquilo me dá uma sensação estranha. Meu estômago fica
gelado. Assim como meus dentes, quando sinto o açaí descer por minha
garganta.
Meia hora depois, um carro preto e luxuoso para a poucos metros de nós.
Abraço minhas amigas, e simplesmente parto. Escuto elas cochichando às
minhas costas. Aceno um adeus, mas obviamente elas não me vêem através
desse vidro escuro.
DIA 10
É uma cozinha espaçosa, e seus móveis são todos planejados.
Ele me abraça, e sinto que seus braços se tornaram algemas.
Enzo está enchendo a tigela de cereais, enquanto brinca com a caixa de leite.
Lavo a louça em silêncio, enquanto ele beija meu pescoço.
“Estava pensando em voltar a trabalhar,” murmuro.
Escuto a risada sarcástica.
“Para quê?” ele pergunta. “Você tem tudo aqui. Tá louca?”
É como se fosse mais forte do que eu:
“Estou farta disso, Enzo.”
Grito com ferocidade, o prato bate no fundo da pia, e ele me olha confuso.
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DIA 11
Dentro do Uber, atravesso as ruas do centro da cidade. Com uma camisa
social, calças jeans, e um saltinho básico, mexo na papelada em meu colo.
É uma pasta amarela repleta de currículos e portfólios.
Meu celular continua vibrando ao meu lado jogado no banco.
E o nome dele continua brilhando na tela.
Fecho meus olhos, e de uma vez aperto o botão vermelho.
DIA 13
O sol escaldante está me deixando ensopada aqui embaixo. Quando vejo
minha sorveteria favorita, logo adentro por suas portas. Suspiro aliviada
quando sinto o ar condicionado.
Para o meu desprazer, Luana acabou de sair do caixa com uma casquinha em
punhos.
“Você por aqui?” ela pergunta quando vêm na minha direção.
“Sim,” respondo com um sorriso amarelo. “Estava na minha terceira
entrevista.”
O semblante da garota logo se fecha.
“Nem vou te falar mais sobre essa tolice.”
“Eu preciso trabalhar,” afirmo com a voz alta. “O que você esperava?”
“Que você fizesse o papel que você escolheu.”
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Franzo a testa e encaro os olhos de Luana, que estão sérios e sem expressão
alguma.
“Você escolheu um namorado rico, não foi à toa, mas para ser bancada.”
Mordo meu lábio e fecho meus punhos com força. Sinto minhas unhas
prestes a cortar a palma da minha mão. Luana sorri enquanto experimenta sua
casquinha.
“Preciso ir, querida,” e assim, ela se despede e sai porta afora.
Enquanto eu continuo parada como uma estátua, sem saber o que me trouxe
aqui de fato.
DIA 14
Como mais um dia qualquer, eu estive implorando para donas de lojas,
cafeterias, e escritórios de contabilidade, em busca de uma vaga.
Passei a manhã e tarde toda enviando currículos, e imprimindo mais uma
dezena deles.
Sentada no sofá com o notebook no colo, me perco nos diversos sites de
empregos. Não sou boa com crianças, e parece que babás são as profissionais
mais procuradas.
“Por que você ainda tá acordada?”
Um Enzo sonolento aparece pela sala.
“Preciso trabalhar, sabia?”
Ele respira fundo e dá de ombros. De esguelha, noto sua silhueta sumir dentro
do corredor escuro. O que eu mais queria era descansar naqueles braços, e
esquecer de tudo, mas não posso.
Não sou fraca e não vou me render. Nunca.
DIA 28
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estão cheios de lágrimas, e sua boca trêmula. “Parecia que até estava
passando fome.”
Noto a correntinha de ouro pendurada no pescoço de Enzo. Me aproximo
dele, que tem os olhos confusos, e toco no dourado que reluz.
“Luana tinha razão, para quê arrumar um emprego quando já se tem tudo?”
“Foi ela quem fez sua cabeça, então?”
“Não, ela só me mostrou a verdade. Que toda escolha tem sua consequência.”
Naquela noite eu dormi na mesma cama que Enzo. Foi uma das piores
sensações que já senti. Era como se sua presença me fizesse sentir doente.
DIA 29
Estou sentada em frente a bancada da cozinha. Bebo o café forte numa xícara
branca de bolinhas pretas. São 7 horas da manhã.
Escuto o barulho dos seus passos às minhas costas.
DIA 30
É domingo, e estou acordada desde as 5 da manhã.
O sol acaba de nascer, e estou digitando furiosamente no computador.
Como um fantasma, ele chega de mansinho como de costume.
“Então você decidiu abrir uma loja de xícaras personalizadas?”
Olho todo o layout rosa e verde claro, e o nome Mari Criativa.
Sinto um orgulho tão grande em me dedicar à algo que realmente gosto.
É como se o universo todo conspirasse ao meu favor.
E ele estava aqui esse tempo todo, pronto para me lembrar de que sou eu a
dona do meu destino. Em todas as situações. Todas.
Ele vive em Sertãozinho, São Paulo, onde escreve desde criança, e possui um
vício particular por açaí.