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I
Minha mão desce ao coldre e o desabotoa com leveza, o suor escorre e
gruda na madeira da coronha, a mata alta ao meu redor fecha-se deixando a
pouca luz da lua ser tão útil quanto fósforos na ventania, fecho os olhos para
escutar o som daquilo mais claramente, em vão; aquela coisa se esconde
muito bem. Quando abro os olhos a coisa está na minha frente, a boca aberta
em um rosnado e os pelos emaranhados e encardidos respingando a água do
rio próximo, ela repuxa os membros inferiores com rapidez e miro na testa
dela instintivamente, mas a coisa foi mais rápida.
BANG
A arma dispara no nada e a coisa salta na minha direção com os olhos
injetados de fúria cravados em minha retina, a mandíbula se abre e sinto o
bafo quente e fétido me sufocando tanto quanto os dentes se enterrando na
minha garganta. Acordo suando tentando matar um grito enquanto nasce e
olho em volta, o loft está vazio e a luz da cozinha ainda está acesa. Um
grande quadro da caveira desbotada de olhar acusador com um cálice
dourado em uma mão e o relógio de bolso na outra, ela me observa como se
soubesse o que vi, começo a respirar aliviado com o fim do pesadelo, a
televisão ainda está passando um documentário sobre pássaros. Olho
novamente em volta e sinto um frio subindo pela minha espinha.
Embora eu more no decimo andar do prédio sempre deixo as janelas
fechadas de noite, e agora, uma delas está aberta.
II
Faz tempo que não dou uma passada na praia e ainda assim não faz tanta
diferença, levanto a persiana da janela e faço minha última refeição antes de
viajar novamente, racho o ovo na quina de mármore e espero a clara cair na
frigideira, a luz da manhã ainda não é tão forte e passa brevemente entre os
espaços dos prédios gigantescos enquanto um gato passa entre os parapeitos
do décimo andar. Meu apartamento é frio e minimalista, a cozinha americana
fica em uma direção em que posso ver todo o resto do apartamento se olhar
para trás, com as cortinas fechadas e luzes desligadas é como se toda a
decoração tivesse tons de azul. Corto um pão francês e o coloco sem
manteiga na frigideira, estouro a gema e o liquido amarelo se espalha
crepitando, pego aleatoriamente um tempero na estante ao lado e o jogo por
cima do ovo, abro a geladeira no final da cozinha e puxo uma garrafa de
suco.
Despejo o suco na taça de vinho enquanto observo a manhã surgir entre os
prédios com janelas parecendo olhos nos observando o tempo todo, mordo
meu pão com ovo temperado com azeite e... páprica e vejo o quanto a mesa
está bagunçada. Por algum motivo minha ideia de assinar as revistas mensais
de design de interiores me faz querer trocar toda a decoração do meu loft
várias vezes ao dia, por sorte hoje tenho que sair em uma visita à praia.
Termino minha refeição e volto para o banheiro.
A luz das lâmpadas reflete com mais força neste lado do apartamento graças
à pintura branca com tons de cinza claro, me olho no espelho e vejo o quanto
pareço acabado, a pele que seria translucida de tanto que tento ficar longe do
grande ultravioleta, meu rosto inchado como se eu tivesse levado uma surra
no ringue dos travesseiros Nasa, os olhos âmbar avermelhados e olheiras
profundas marrons em volta, a barba comprida está perdendo o formato que
fiz semana passada. O cabelo longo não é problema em meu trabalho, mas é
estranho me ver aos vinte e sete com a aparência de um adolescente, pego
minha escova em meio aos potes de remédio e cremes faciais e abro o
chuveiro.
Meu quarto na parte de cima do loft tem a vista ainda melhor para a cidade,
vejo que aquele gato se espreguiça e eu me espreguiço junto deixando
minhas costelas quase aparecerem por baixo da pele, pego a camiseta
Henley e a visto rapidamente, colocando quase um palmo de tecido para
dentro da calça jeans escura e fecho os quatro botões e o medalhão gelado
desce pelo tecido. Tiro um pingente que parece uma pedra de signo todo
esmigalhado e o coloco de volta, seria inútil nesse estado e preciso pedir um
novo; desço as escadas do loft e vejo meu reflexo nas janelas.
Volto ao quarto e tiro o fundo falso da gaveta de baixo, a luz crescente
ilumina o cano prateado e a coronha de madeira, ao lado uma caixa de
munição pela metade, um click e o tambor desce, revelando que faltam duas
balas, não me lembro direito mas sei que atirei bem mais que isso na última
vez. Com a agilidade costumeira recarrego o revólver com as balas restantes
e tiro o coldre da gaveta, passo o couro gasto por trás das costas e acomodo
a arma com algumas balas a mais no cartucho extra abaixo da axila e saco
novamente fazendo pose no espelho.
– Se eu tivesse mais tempo perguntaria se está falando comigo – Digo para
o reflexo – e sua cara tá horrível.
Saio do apartamento com o celular e uma jaqueta acolchoada com bolsos a
mais e um símbolo gigantesco de duas cobras engolindo a cauda uma da
outra, o dia será muito frio e minha mão sua muito dentro do bolso enquanto
pego a chave do carro, isso sempre é mau sinal.
III
O Del Rey segue como uma besta sanguinária na pista quase vazia,
recortando imprudente entre carros de passeio e caminhões, passa
deslizando pela estrada enquanto o som do rádio é abafado pelo ronco do
motor modificado, a lataria preta encerada reflete o sol das dez cada vez
mais firme, bebo mais um gole de água e arrumo os óculos escuros.
Uma música de Desert Rock começa a tocar chiando no rádio, o motor
parece acompanhar a guitarra crescente e aumento a velocidade, o limite da
pista é 80 mas o velocímetro mostra 100.
Sigo pela serra quando um sentimento me invade, sinto minha visão
enturvando e o corpo ficando cada vez mais petrificado, sou forçado a
diminuir a velocidade e parar no acostamento. Me deixo relaxar no banco
enquanto a dor dim...
NOSSA EXISTÊNCIA É O MESMO QUE NADA
VOCÊ OUSA PROFANAR O DOMÍNIO DO REI?! ENTÃO TERÁ UMA
MORTE DOLOROSA
Quase bato a cabeça no volante quando volto, os vultos da ilusão ainda se
dissipam nos meus olhos, aquela coisa ainda parece me olhar de fora do
carro, dentes de tubarão em um sorriso demoníaco e aqueles chapéus de
palha com desenho embaixo, preciso ficar esperto quando chegar lá, das
vezes em que isso aconteceu, essa parecia mais um trem batendo diretamente
na minha cabeça. Enxugo a testa e sigo viagem, saio cantando pneu com a
guitarra em um reverb ensurdecedor, a pista está ainda mais vazia e posso
ver os tuneis daqui de cima, o Del Rey passa detonando poças d'água as
jogando para longe, vejo de relance um casal conversando no acostamento,
não sei se é impressão mas acho que os dois não tinham pupila, mal tenho
tempo de pensar e sou engolido pelo túnel escuro, não faço ideia do que
aconteceu e a luz dos faróis parecem lanternas de brinquedo aqui dentro,
diminuo a velocidade e agora vejo algo no mínimo suspeito, desde que me
conheço por gente esse túnel está com as luzes funcionando e não há
pichações em mais de cem metros, paro o carro e consulto o relógio do
carro, totalmente apagado, sinto o medalhão esquentando por baixo da
camiseta e estico a cabeça para fora do carro, o asfalto molhado está
rachado onde dentes de leão brotaram e pequenas sementes voam para fora
daqui, respiro fundo e agora sei onde estou, um fedor de mofo se espalha
pelo túnel e posso ver aqueles pontilhados de poeira descendo do teto. O
carro começa a balançar e contenho minha vontade de sair correndo serra
abaixo, se isso acontecesse talvez eu nunca veria a luz de novo, como no
treinamento fecho meus olhos e diminuo lentamente o ritmo da minha
respiração, algo muito pesado passa ao lado do carro e me afundo no banco
tentando não reparar nos tremores que isso provoca, suor frio descendo pela
testa. Abro os olhos e estou de volta, as luzes amareladas do túnel mostram
apenas algumas motos paradas pelo acostamento e carros vazios no meio da
rua, azarados que saíram dos veículos ou continuaram de olhos abertos, não
posso fazer nada por eles, e sigo a viagem com o rádio do carro perdendo o
chiado e árvores tentando invadir a pista, esse trabalho promete ser muito
difícil.
IV
– O caso parecia mais fácil do que eu pensava, só mais uma turma da
faculdade saindo e tomando todas, no outro dia sobrou só uma mochila com
os pertences de um dos desaparecidos, as investigações terminaram com os
donos de alguns quiosques verem eles saindo da praia de madrugada, a
última pessoa que os viu foi um ambulante que dizia que eles fediam a
alguma coisa pior que cachaça.
– E onde eles foram vistos pela última vez? – pergunto anotando
mentalmente as informações – o ambulante disse em quantos estavam?
– Disse que estavam em cinco, usavam roupa de turista paulista e não se
incomodavam com o frio de madrugada, ele não chegou a ver aonde iam, só
que ficava na divisa das pedras, bem longe da plataforma de pesca. Algumas
viaturas foram até o local, mas não encontraram vestígios dos turistas.
Colocamos cartazes de desaparecidos em alguns lugares do bairro e algumas
senhoras disseram que viram eles entrando em uma van preta, verificamos e
a história não se sustentava.
– O que tinha de errado? Horários não condizem ou eram só boatos?
– Os dois, primeiro que elas diziam que pareciam drogados de blusa pesada,
estavam em seis e era quase nove da noite, uma disse que eles entraram na
van preta, a outra disse que passaram andando em frente à casa dela e o
cachorro ficou latindo.
– Ok, pode me dar o endereço da rua, o nome do ambulante e de alguns dos
vendedores dos quiosques. Ah, quase ia me esquecendo, vocês usaram cães
farejadores?
– Sim, e eles perderam o rastro depois de passarem algumas ruas pra perto
da linha de trem.
– Eu preciso pegar um copo de água.
– Pode ficar à vontade, preciso revirar a papelada.
Saio pela porta do escritório com ar condicionado e a temperatura da
delegacia me deixa levemente nauseado, ajeito o relógio no pulso e sigo
para o bebedouro tateando o bolso em busca do celular, a minha mão treme
enquanto procuro o contato da Clarice na agenda. Pego o copo d’água e
misturo natural com gelada tomando cuidado para não derramar.
– Anda, atende logo essa merda – digo baixo para o apenas o telefone ouvir
– atende antes que eu tenha um treco.
– Sua chamada está sendo encaminhada para caixa post... – termino a
chamada rapidamente e coloco o telefone de volta no bolso.
O seu caso é estranho, nunca vi avançar tão rápido pra esse estágio
depois de o que? Dois meses desde a última consulta? Preciso mudar o
tratamento e começar um acompanhamento mais intenso.
Pego o pequeno frasco de vidro e encaro as capsulas com desdém, não gosto
da sensação de depender dessa coisa pra voltar a pensar direito, abro a
tampa com a mão ainda controlada e despejo dois comprimidos de azul vivo
na minha mão, pego o copo d’água e viro com os comprimidos descendo
minha garganta junto da água gelando meu esôfago. Volto para o escritório
fingindo não estar prestes a ter um ataque de pânico repentino. Me sento na
cadeira de madeira acolchoada e observo a mulher do outro lado, mais alta
do que eu e parece cansada do trabalho, cabelo preso em um coque frouxo e
pequenas olheiras se formando sob olhos avermelhados, sinto um pouco de
pena por ela precisar chamar alguém do meu departamento, talvez ela
devesse ter aceitado ficar fora das ruas mas o dever de pagar as contas a
chamava, enquanto ela mexe no computador vejo uma tatuagem de versículo
no antebraço e na dobra da manga um pedaço de um símbolo de infinito.
– Achei, vou imprimir pra você a ficha com os nomes e fotos, precisa de
mais alguma coisa?
– Não, só isso por enquanto, até o fim do dia vou procurar alguma coisa
nova. – Vejo seu olhar cansado e não me contenho – Não precisa se
preocupar, sou um dos melhores que poderia ter vindo, caso resolvido até
amanhã – finalizo com um sorriso cordial.
A policial do outro lado da mesa me retorna o sorriso e sinto que vou
desmaiar, engulo em seco e aperto a mão dela, sua boca se move mas eu não
consigo prestar atenção no que ela diz, pego as folhas recém impressas e
saio tentando não tropeçar no carpete e a brisa natural não é tão confortável
quanto o ar condicionado. Sigo para o estacionamento tateando os bolsos em
busca das chaves e torço para que o remédio faça efeito logo, abro a porta
com força e me jogo para o banco de couro, sinto o meu coração tentando
rasgar meu peito, a dor pulsante me força para tentar vomitar, tento engolir e
finalmente sinto que posso respirar em paz. A sensação de alivio não dura
tanto quanto espero pois logo em segui...
“As gaivotas voam baixo para poderem pegar suas presas, esperam
pacientemente os peixes pularem para fora da água.”
“As coisas são mais fáceis se olhar por outro ângulo, tenho certeza que
ela fugiu porque ninguém queria ela por perto.”
AS SUAS MÃOS ESTÃO SUJAS DE SANGUE INOCENTE, NÃO SOMOS
TÃO DIFERENTES, MEU CARO.
Grito com o rosto entre as mãos, os olhos ardendo e as mãos tremendo, na
minha frente o interior do carro parece claustrofóbico e distorcido,
realmente minha condição clinica parece piorar com violência a cada dia.
Impulsivamente procuro o maço embaixo do rádio, não tenho o hábito de
fazer isso e só opto por isso em casos extremos, e ainda tenho a impressão
de que terei um dia e tanto.
Giro a chave no contato e abaixo o vidro ao meu lado, o céu mantem a
coloração prateada, irradiando luz mesmo com o sol escondido entre as
nuvens, saio do estacionamento com as poucas viaturas e algumas motos
paradas e sigo pela rua asfaltada até voltar a ser apenas grandes blocos
hexagonais sobre a areia. A brisa do mar se torna presente junto do cheiro de
maresia após eu passar a estrada, viro algumas ruas e vejo ela depois de
anos, nem em minhas memorias mais vividas ela era tão grande. A
plataforma de pesca se ergue da água como a coluna de alguma criatura
antiga encalhada na areia a tantos séculos que seu sangue se tornou crostas
de ostras escuras, apenas a ponta esquerda me lembra que aquilo é apenas
mais uma construção, um pedaço de concreto e vigas de metal enferrujado
solitário antes se ligava ao resto da construção como a outra ponta, mas
agora é apenas um poleiro para os pássaros esperarem pescadores
desatentos deixarem suas iscas nos bancos. Continuo pela rua de asfalto, o
cheiro de maresia se mistura com os peixes e iscas, passo em frente ao
aglomerado de barracas e quiosques, no início do mês teria uma cacofonia
de todas as caixas de som tocando músicas diferentes em busca de fregueses
festeiros ávidos por cerveja superfaturada e gelada.
No banco do carona deixei os papéis das testemunhas, o mais próximo é o
quiosque perto da divisa de pedras, paro o carro e deixo o refrigerante
gelado que comprei antes de chegar à plataforma nos porta copos do Del
Rey, organizo os nomes em ordem alfabética e verifico as fotos, lugares
estranhos e pessoas familiares.
Fico hipnotizado pelas fotos da rua quando o telefone toca, mecanicamente
atendo sem prestar atenção no número da chamada.
– Espero que você tenha um bom motivo pra me ligar do nada, se for outro
filme em preto e branco me esquece.
Dou um sorriso por trás do telefone, tento não conter a risada e quase falho.
– Quem me dera, dessa vez é uma coisa que te interessaria muito, se quiser
vir aqui em Mongaguá eu tenho um pequeno caso pra resolver... e eu acho
que preciso da sua ajuda.
– Aí Arthur, se algum dia você não precisar da minha ajuda eu te juro que
faço uma festa. Anda, diz logo o que é tão interessante nesse caso.
– Desaparecimento sem rastros, vítimas desapareceram de madrugada e
pareciam estar “drogadas”, e eu tive dois daqueles acessos, acho melhor
você vir antes que eu caia apagado de novo.
– Meu Deus, se você não pular da ponte de vez até a tarde eu te vejo por aí,
onde quer se encontrar?
O sorriso me escapa e eu começo a rir sozinho, acho que minhas crises vão
acabar por enquanto, e estarei na melhor companhia possível nesse caso.
– Você se lembra da estátua?
– E tem como esquecer aquela coisa?
V
Espero sentado na mureta comendo um sorvete de flocos alternando entre
olhar meu carro no estacionamento e ver se o carro dela está chegando, o dia
está terminando e eu verifiquei a história dos vendedores, todos diziam que
eles pareciam drogados e fediam a alguma coisa pior que lixo. Não
encontrei as senhoras que disseram ver eles e tampouco sinal do ambulante,
tenho certeza que nenhuma delas realmente viu algo aquela madrugada e o
vendedor deve ser um daqueles que vem da Praia Grande rondando o dia
todo, fui andar na plataforma de pesca relembrar dos velhos tempos, isso me
lembrou uma vez quando Tibo e eu fomos pescar de madrugada, ele me viu
fisgar alguma coisa muito pesada e em seguida ficou sério.
“Acho que você pegou um peixe escuro” ele disse com o olhar de um sábio,
eu fiquei com muito medo imaginando o que seria aquilo, em minha cabeça
apareciam imagens bizarras de monstros marinhos que mal caberiam na
extensão da praia, e um deles havia mordido minha isca. Tibo começou a rir
como um louco assim que viu minha cara de sonso.
“Olha pro outro lado” ele disse pausadamente intercalando com risadas
abafadas, do outro lado da pilastra um senhor com cinco varas que pareciam
invisíveis na madrugada exceto pelas linhas neon dormia com uma das varas
repuxando toda vez que eu mexia a minha, logo eu comecei a rir tanto quanto
ele, e assim ficamos até o sol nascer, nós e uma garrafa de café com leite.
Após os momentos de nostalgia me levantei do banco onde ficamos naquela
madrugada e segui pela extensão gigantesca entre as pontas e a saída, engoli
mais dois comprimidos sem água e caminhei pela calçada até a grande
estatua da Iemanjá, que sempre me pareceu algum tipo de cópia do Cristo
Redentor com os braços quase abertos e aquelas estatuetas grudadas com
espelhos e espadas, se eu andasse pela areia poderia ver alguns prédios que
se destacam na paisagem, nunca entrei lá, o que eles representam é mais
importante, assim como a lembrança da plataforma esta seria mais longa.
Quando tínhamos treze anos Clarice, que morava em Bragança Paulista se
mudou para cá, nos conhecemos durante nosso teste da Academia do Sul e
desde então nos tornamos presença constante, depois de um longo ano
falando sobre como a praia era muito mais interessante que uma cidade
afastada do ABC pedi ao meu pai que convencesse a família dela a se
mudar. A tarefa foi razoavelmente difícil, mesmo eles morando de favor na
casa da avó o pai tinha alguma coisa contra viver em um lugar desconhecido,
visto que as despesas de dois filhos eram pagas pela esposa, mesmo ele
trabalhando em uma forma arcaica de Home office, isso ainda em 2005, não
era pago o suficiente e os lucros pagavam somente as contas de luz e
telefone, caras demais na época. Meu pai, que morava aqui desde 1994 ficou
responsável por encontrar uma casa de aluguel ou pelo menos um bom
apartamento para eles, por sorte algumas semanas depois ele viu algumas
casas em “promoção relâmpago” e alguns meses antes do ano letivo começar
eles vieram para cá. Depois de muita arrumação e telefonemas a mãe dela
foi recolocada em uma filial próxima e o pai conseguiu um emprego na
delegacia onde meu pai trabalhava. Aos poucos as coisas foram se ajustando
e assim começamos uma nova rotina em nossas vidas. Tibo morava perto dos
trilhos de trem, eu morava antes da estrada e Clarice acabou morando na rua
da praia. Desde então nos reuníamos religiosamente às 6 da manhã embaixo
da plataforma e começávamos o dia apostando corrida de bicicleta pela
areia até o prédio amarelo que ficava do outro lado das pedras, e esse foi o
rito que nos levou da infância à adolescência.
O HB20 passa devagar pelo asfalto abarrotado de areia, meu picolé já
acabou há algum tempo e vejo parte da silhueta dela dentro do carro. Me
levanto calmamente, tiro parte da areia da calça e vou até o carro azul, parte
do vidro se abaixa e sinto o frio do ar condicionado lamber meu rosto, ela
parece tão bem apessoada que me sinto um mendigo, o rosto sem linhas de
expressão e um corte curto, ondulado e propositalmente bagunçado, que
estranhamente lhe deixa uns cinco anos mais nova. Ela parece uma pessoa
bem diferente, até mesmo no sorriso.
– Entra, dessa vez sem corridas. E limpa o sapato antes de entrar.
– É pra já madame – dou duas batidinhas na porta e entro pelo outro lado –
temos muito o que conversar.
Depois de um abraço apertado de travar a coluna me arrumo no banco.
– Primeiramente, o que raios você veio fazer aqui em Mongaguá? – o carro
começa a acelerar – Não tinha nenhum caso mais perto?
– Eu até tentei achar alguma coisa mais perto, só que o meu chefe me mandou
esse aqui na semana passada e eu era o único disponível na hora, sorte
grande – eu finjo ânimo e me recosto no banco – e você, como tem passado?
– Você sabe, encontro com pessoas estranhas, ir de um estado pro outro de
vez em quando, semana passada eu tive que “cortar algumas verbas” da
empresa e no sábado um maluco me ligou de madrugada falando que o
apartamento tinha sido invadido. Não imagino quem tenha sido – ela se vira
na minha direção e sinto seus olhos queimando minha alma, me afundo no
banco e ela prossegue – Mas agora estou aqui, na praia em um dia nublado
ajudando meu amigo a procurar gente morta.
– Ou quase isso – adiciono com o indicador levantado – inclusive, você
trouxe o pingente ou alguma arma?
– Que tipo de trabalho você arranjou que precisamos de arma? Mas sim,
pega na minha bolsa, e não toca na necessaire. Tem um cartucho extra no
porta luvas.
Pego a bolsa bege no banco de trás e começo a mexer no conteúdo, entre
coisas de mulher, carregador portátil, algumas canetas, um lenço de pescoço,
carteira e doces, encontro um revólver de oito tiros com o pingente amarrado
em volta. Tiro os dois da bolsa e entrego o revólver para ela, amarro o
pingente no pulso perto do relógio e pego dois doces, abro um.
– Quer um pedaço?
– Se eu comprei eu quero um. – Ela diminui a velocidade e pega a
embalagem da minha mão – por onde quer começar?
– O último lugar que eles foram vistos fica antes da divisa de pedras. Eu dei
uma passada por lá e não encontrei muita coisa, mesmo o chamado sendo de
quatro dias atrás. Acho que sem o pingente sou meio desnorteado.
– Acho que você só não tem mais a capacidade de antes, principalmente
agora que somos obrigados a suprimir nossa magia.
– Isso seria muito mais fácil se eu pudesse fazer dois ou três selos com a
mão e mandar tudo pelos ares – levo a mão ao rosto com visível irritação e
apoio o braço no relevo da porta – maldita nova constituição
– Agora que falou de selos, e aquele seu problema, já foi atrás de um médico
de verdade ou continua insistindo em beber aquele licor colorido igual seu
pai?
– Não, agora eu faço acompanhamento médico, psicólogo e psiquiatra, e
comecei a tomar isso aqui – entrego o frasco de remédio meio cheio e ela
diminui a velocidade – três vezes ao dia.
– Agora sim eu entendo os transes, isso tem morfina demais, tem certeza que
a psiquiatra não fez mestrado em coma induzido? – ela parece tão indignada
que seu rosto está virando uma careta – Nem eu seria maluca de te indicar
isso aqui.
A rua de hexágonos termina em uma pequena trilha no mato que só poderia
atravessar a pé, Clarice parece se esquecer do frasco em sua mão e passa
para a rua na direita entre casas arborizadas e muito maiores desse lado da
praia e deixamos a areia e um pedaço de concreto em formato torto de A
escrito “Mongaguá” afundado, fico hesitante em contar para ela sobre meu
caso, mas ela precisa saber que talvez em breve seu amigo de infância estará
internado por tempo indeterminado.
– Eu tenho um caso avançado de ansiedade misturado com alguma coisa que
meu uso de magia excessivo agravou, a psiquiatra disse que nunca tinha visto
um desses antes, talvez eu tenha que me aposentar em dois meses ou posso
ficar internado em uma clínica até descobrirem como reverter isso.
Ela para o veículo e me sinto mais leve enquanto o local fica mais pesado,
ela solta o volante e o tempo parece desacelerar, os cabelos dela caem para
a frente do rosto e por um segundo parece que os olhos dela marejam. Não
sei se fiz o certo em contar para ela depois de meses que não nos vimos, a
sensação de leveza se torna gigantescos pesos novamente e solto o ar dos
pulmões. Não sei o que fazer agora, apenas me ergo um pouco do assento e
ouço um click. O corpo quente se choca contra o meu em um abraço
apertado, agora sinto as lágrimas dela escorrendo como um sexto sentido
atrás de mim e a voz dela sai embargada e baixa, tento abraçar ela de volta,
mas seus braços estão acima dos meus cotovelos e não consigo me mexer
muito.
– Eu não quero perder mais um, de novo não. Por favor, o que eu conseguir
fazer pra te ajudar é só falar.
Agora me sinto como um grande pedaço de lixo, tanto tempo sem vê-la e
faço uma coisa dessas, que tipo de pessoa o Tibo acharia que eu me tornei?
Não há mais tempo para pensar nisso, precisamos pensar no caso antes que
mais coisas aconteçam.
– No momento só preciso que a gente continue pensando no caso, o que você
acha que pode ter levado eles?
– Acho que não foi alguma coisa no mar ou ninguém teria visto eles andando
– Ela volta ao banco dela se recompondo e limpando algumas lagrimas ainda
brotando, a voz quase não tem mais o tom de choro mas ainda funga um
pouco – o cheiro de lixo poderiam ser criaturas de outro plano mas elas
deixam a pessoa agressiva e não em transe... a não ser que sejam vampiros –
a ideia me soa idiota porque eles são a coisa mais fácil de se matar nesse
mundo, uma estaca os deixam paralisado e um ou dois tiros de prata fazem
monstros seculares virarem poeira de quintal.
– Acho que se forem vampiros é só levar um baseado que fica tudo certo – a
ideia de vampiros drogados ainda me fascina – e a gente aprendeu que
vampiros não tem poder de hipnotizar.
– Vampiros normais não, isso é bem impossível, mas poderia ter um...
Antes que eu possa ouvir os sons ficam aguados e sinto minha consciência
ficando mais distante, o corpo amolecendo rapidamente e antes de perder os
sentidos minha mão esquenta com o cristal, que começa a brilhar muito forte.
“Eu sempre quis ver alguma criatura tipo lobisomem, vampiro ou até um
monstro marinho, mas o máximo que tem por aqui são essas baratonas, do
tamanho do meu pé.” ele diz com a cara avermelhada jogando o baratão
dentro da pá, as tranças substituíram o cabelo raspado e agora ele parece
mais velho, desde que voltei do hospital meu cabelo cresce mais rápido e
pareço o vocalista de uma banda de rock americano, ele se vira com a
vassoura imitando um soldado inglês com chapéu de cotonete. “Seu pai já te
falou da viagem? Minha mãe já arrumou a minha mala e perguntou se vocês
já tinham planos pra quando iam sair” agora ele equilibra o cabo na ponta do
dedo do meio como um circense.
“Não muita coisa” dou de ombros. “Ele disse que seria um passeio bem
longo, talvez durando um mês, acho que vamos pra Minas de novo, igual nas
férias do ano passado”.
“Acho que não, meu pai tá meio estranho, anda deixando de dormir e já
peguei ele assistindo Corujão umas três vezes, acho que ele vai ser
demitido.” Ele solta a vassoura no chão e segue para fora da casa, eu o sigo
e sinto a garoa fina batendo no meu rosto e respingando na minha blusa. Tibo
não parece muito afetado pelo clima e joga o baratão na rua. “Já viu alguém
passar a madrugada vendo Lábios de Sangue? É tipo o fundo do posso, só
que um pouco mais embaixo” Ele abre o portão e vamos saindo rumo à
padaria.
“Ando tendo uns sonhos meio estranhos ultimamente, são meio... reais
demais, em alguns deles estou em uma caverna escura, tinha uma fogueira
mas ela sempre está apagada, você aparece e fica me encarando com o rosto
coberto de tinta escura, você me diz pra tomar cuidado com a lagarta e
depois alguma coisa entra.” sinto calafrios quando relembro do sonho quase
lúcido, não sei se continuo mas a curiosidade dele já foi fisgada. “Uma
mulher bem alta, com um chapéu longo e um vestido arrastando no chão
entrou pela abertura da caverna e eu senti cheiro de peixe morto, ela
começou a andar na nossa direção e eu simplesmente travei, você tinha
desaparecido e tudo ficou escuro, só tinha a luz fraca do lado de fora mas eu
ainda conseguia ver os olhos dela, brilhando como se fosse um monstro e...”
Abro meu olhos e eles parecem inchados, tudo o que me ajuda a enxergar
melhor são velas amontoadas em cera derretida espalhadas em volta da
cadeira onde estou, as frestas entre as madeiras pregadas na janela para
ninguém entrar barram quase por completo alguma luz que tente vir de fora,
não faço ideia de que horas sejam e é muito provável que ainda seja de
noite, tento me levantar e rapidamente percebo que será inútil, meu corpo
inteiro está com pequenos cortes de onde sangue coagulou e mesmo que
conseguisse realizar alguns movimentos corporais seriam limitados a mexer
a cabeça e um pouco dos braços, sinto uma enorme dificuldade de me mover
até mesmo ao mexer um dedo. O odor de carniça e sal parecem uma entidade
onipresente dentro da sala espaçosa cheia de moveis protegidos com capas
de panos velhos coloridos, forço meus olhos e posso ver alguma coisa
agarrada na parede com raízes longas e grossas, no centro há o que parece
ser um embrião ressecado envolto em uma bolha disforme que brilha
internamente. Tento mover o corpo e aquilo entorta a cabeça em minha
direção. Como se um raio caísse em minha cabeça uma voz ecoa chiada e
doente.
– Me alimente, criatura mortal – diz o puro sangue.
As paredes começam a tremer e sinto essa coisa se fortalecendo, as raízes na
parede começam a pulsar e expandir, o brilho na bolha começa a diminuir, o
embrião desgruda os braços do corpo pequeno e deformado, os olhos
começam a se formar em pequenos globos amarelados e a cabeça começa a
se mover frenética. Uma das mãos se estica em minha direção e ao invés da
bolha estourar se estica como uma bexiga em volta do dedo ossudo em minha
direção, sinto a cabeça queimando conforme aquele ser obscuro nasce na
minha frente. A mão se forma como a de um bebê e posso ver pequenas
veias em volta da bolha e partes do corpo crescendo com linhas
avermelhadas separando pequenas crostas de pele no corpo da criatura, os
padrões recortados de biomassa imitando pele humana se expandem e agora
consigo ver o que parece ser uma carapaça de ossos em juntas e na cabeça
da coisa, os dedos repuxam e estalam junto da bolha prestes a se romper. A
bolha rebenta e o cheiro pútrido se espalha junto do liquido gosmento, a
forma das veias diminuem e desgrudam da parede rachando em pequenos
vincos profundos, o pó da parede é rapidamente assimilado pela gosma e a
criatura é envolvida pela biomassa deformada e cai no chão fazendo um som
estranho, a massa avermelhada começa a se reconstruir no que parecem
partes de uma pessoa magra ao ponto de eu conseguir ver os ossos e tendões
se movendo por dentro. Os braços se movem lentamente para trás e uma
cabeça parecida com a de um crânio de cavalo surge descolando da
biomassa, os olhos brilham como o fogo do inferno e olham diretamente para
mim e uma onda de medo percorre o meu corpo.
O puro sangue acabou de nascer.
VII
A mulher ainda está desacordada, é uma pena que tenha que servir de
comida para nós já que é tão bonita, me aproximo dela novamente e o cheiro
de perfume doce é tão bom quanto sangue, a energia mágica vindo dela é
interessante, como se ela fluísse com facilidade e ao mesmo tempo não
pertencesse ao corpo. Uma vez Gustavo me disse que mulheres Magus eram
raras, já que a descendência dos poderes era passada apenas para homens,
acho que essa mulher é na verdade uma bruxa, mais estranho ainda já que os
dois dificilmente trabalhariam em conjunto, também ouvi dizer que eles tem
pequenas coisas que os diferenciam de pessoas normais, eles passam pela
puberdade só depois dos catorze anos e a produção de sangue deles é maior
porque usam ele nas magias e assim eles perdem quase sete litros por dia,
um amigo me disse que eles tem os olhos amarelos e cada um é
extremamente valioso para as pessoas certas, alguns adorariam ter o timo de
um Magus para estudo, já que mesmo na fase adulta ele continua funcionando
e alguns ficam do tamanho de um copo, diferente de pessoas normais que
desaparece depois de alguns anos.
O sangue sobe pelo tubo de silicone lentamente e posso ver a bolsa se
enchendo assim como aos outros cinco turistas enfileirados que estão nas
poltronas no resto da sala. A cabeça dela pende para trás e posso sentir uma
vontade enorme de morder o seu pescoço, há anos que não bebo diretamente
da fonte. Levanto do pufe e subo na poltrona, a respiração leve dela faz
cocegas em meu rosto e seus cabelos macios tocam minha bochecha, torço a
cabeça e abro a boca deixando meus dentes saírem da gengiva, a pele dela
tem um gosto doce como mel, o sangue...O sangue começa a corroer meu
corpo por dentro, sinto meus olhos queimando e toda a sala parece brilham
em uma cor laranja quando a mulher fala alguma coisa que não entendo,
perco a consciência lentamente e meu corpo cai no chão, sinto que quebrei
alguma coisa. Ela se levanta e o sangue da bolsa também brilha, ela tira a
agulha do braço e agora vejo algumas veias de seu corpo saltando,
principalmente perto dos olhos e pescoço. Ela sai andando da sala rumo ao
teatro, ela abre a porta e tento dar risada, mas apenas sorrio e tudo começa a
escurecer.
VIII
O puro sangue se desgruda da massa amorfa de onde seu corpo verdadeiro
começa a surgir, seus olhos seguem meus movimentos como uma cobra
pronta para o bote, meus movimentos ainda são demorados e imprecisos,
olho para o teto e parece que onde essa coisa estava se condensa o mofo,
lentamente se espalhando pelos lençóis e caixas empoeiradas. A criatura
parece ter parado de se mover aquela crosta está ressecando enquanto um
pouco do sol passa pela janela, mexo a cabeça para a direita e ouço o som
de passos vindo de trás da porta, ela se abre rangendo lentamente e a sala
fracamente iluminada contrasta com o corredor totalmente escuro atrás da
porta entreaberta, uma onda de alivio se instaura quando vejo Clarice
passando pelo batente e entrando na sala, o rosto cansado abre um sorriso
melancólico e igualmente exausto.
– Que bom que te encontrei, procurei por ti nesse lugar inteiro, anda, vamos
sair daqui e chamar reforços antes que essa coisa acorde de vez – sinto o
corpo relaxar na poltrona velha quando ouço sua voz – Tu consegue se
levantar ou precisa de ajuda?
– Vou precisar de uma ajudinha – digo com esforço – que horas são?
Levaram meu relógio – tento mostrar o braço, mas ele cai desajeitado sobre
minha perna.
– Vou te ajudar, tenta esticar os braços – ela vem até minha direção e faço
um esforço gigantesco para poder levantar, algo ainda está abstruso nessa
situação – vou te puxar no três. Um, dois, três – ela me puxa e meu corpo é
levantado e sinto um pouco da minha energia vital voltando – eu te ajudo a
levantar, vem cá – ela passa o braço por cima do ombro e agora me sinto
mais firme para andar.
Saímos da sala para o corredor e sinto o ar voltando a ter a característica de
maresia lentamente, firmo o passo mais um pouco e o chão sob meus pés
descalços é incomodo, ainda assim abaixo os dedos mindinho e anelar,
levanto levemente os médios e indicadores de ambas as mãos e o sangue se
move com violência, sei que isso parece suicídio em meu estado mas a
situação exige a tentativa. Não sei se Clarice começa a queimar por causa do
sol das vidraças ou se é pela magia que fiz com muito esforço. Seu corpo
começa a borbulhar e ela grita, me fazendo tremer por dentro, antes que ela
desapareça por completo me esforço para falar.
– Tu imita muito mal hein– digo endireitando o passo e descendo as
escadas.
Acho um corredor que adentra a estrutura e me deparo com o que parece uma
sala onde pacientes recebem soro, mas ao invés disso o sangue é drenado
para bolsas de plástico do tamanho de bolas de basquete, aos pés de uma
cadeira e de um pufe tem o corpo do que parece uma jovem, me aproximo e
viro o corpo com o pé, o que mais me choca é o olhar sereno em seu rosto, a
língua inchada e roxa na boca entreaberta. Os olhos sonolentos com as
pupilas dilatadas e pequenas veias ainda brilhando em um laranja opaco.
Isso parece coisa da Clarice, mesmo ela sendo uma Magus a magia não é tão
potente, ainda assim ela tem mais capacidade para usar magia do que eu, e
isso se comprova no brilho que seu sangue modificado deixou por onde
passou. Sigo o rastro até o final da sala e o que me lembro das imagens dos
turistas batem com as pessoas deitadas nas poltronas, todos adormecidos,
pelo menos uma parte da missão foi concluída, agora falta chamarmos
reforços antes que o puro sangue volte a se mexer. Passo pela porta e vejo
um salão que parece um teatro, vazio e estranhamente familiar, há apenas
alguns móveis descobertos espalhados pelo local e tenho a sensação de que
esse espaço era das crianças, já que todas as paredes estão pintadas de cores
vibrantes e há desenhos rabiscados de giz de cera, o que mais chama a
atenção é o palco, com a frente de madeira aparentemente nova e cortinas
vermelhas pesadas que cobrem quase metade do palco com cordas para
puxá-las em lados opostos. E no meio do palco mal iluminado por alguns
vitrais reformados vejo um jovem sentado em uma cadeira toda enferrujada,
não parece ter mais de vinte anos, não consigo ver muito do rosto, apenas o
nariz que parece o Pinóquio, usa uma camisa florida berrante e bermuda
jeans com chinelo, seus olhos brilhando se movem em minha direção quando
atravesso a porta, o aperto se intensifica quando ele se levanta, certamente
ele é a outra energia que percebi antes de apagar, ele começa a vir em minha
direção e se apoia na ponta do palco.
– Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver – ele diz com
um sorriso cínico e irritante – dedico como saudosa lembrança estas
memórias póstumas – Ele suspira e faz cara de apaixonado – não havia
introdução melhor para este livro, eu o li e reli inúmeras vezes em minha
vida e nunca encontrei algo tão divertido quanto, mesmo lendo livros de
poesia, filosofia e inúmeras peças teatrais este livro ainda me intriga – ele
dá mais um passo em minha direção e pega um livro velho do bolso – talvez
por eu mesmo me considerar um defunto autor, mas nunca tive uma campa, e
você, meu caro? Há algo que lhe representa? Não se acanhe, temos tempo de
sobra para confabular, fiz questão de adormecer a garota e o Puro Sangue
apenas para este momento.
– Você é o que? Algum tipo de psicopata? Acha mesmo que vamos
conversar? – Minha voz sai fria e me esforço para não parecer cansado –
Vou resolver o seu problema da campa – forço o braço para a frente e com
as mãos tremendo um pouco cruzo o anelar com o mindinho e o médio com o
indicador, tento dizer alguma e sai apenas um grito que ecoa pelo salão.
AS SUAS MÃOS ESTÃO SUJAS DE SANGUE INOCENTE, NÃO
SOMOS TÃO DIFERENTES, MEU CARO. AGORA VENHA E
CONVERSE COMO O CIVILIZADO QUE ÉS
O som me atinge como um trovão e apenas caio no chão como um pedaço de
carne mole, ouço os passos dele vindo em minha direção e tenho vontade de
mata-lo, mas infelizmente estou extremamente debilitado para fazer isso, ele
me pega do chão pelo torço e sinto o toque frio por baixo da jaqueta, espero
um ataque oportuno mas ele simplesmente não vem, ele me leva pelo salão
até um divã e consigo ver Clarice desacordada em outro divã, sem marcas
de machucado e parece dormir pesadamente, provavelmente ela caiu no
encanto da sereia muito tempo atrás, tendo o azar de achar que aquela era a
saída. Não consigo fazer mais do que alguns movimentos pequenos com o
corpo, um frio espectral percorre meu corpo quando ele se senta no divã da
Clarice, com a cabeça dela em seu colo ele mexe em seu cabelo como se ela
fosse apenas mais uma parte de sua encenação, um sorriso de tubarão se
forma quando ele nota meu desconforto, deixa o livro velho no espaço em
que o corpo dela se contrai e agora vejo que ela desmaiou com uma das
mãos tentando fazer o mesmo que eu.
– Por que está fazendo isso? Já podia ter acabado com a gente lá fora.
– E qual seria a graça de vencer sem lutar? Eu sabia que vocês viriam assim
que aquela policial veio me procurar de madrugada, eu disse que era um
ambulante e ela acreditou – ele abre um sorriso e solta a risada pelo nariz –
um ambulante voltando sem qualquer mercadoria, com roupas de verão no
meio da semana mais fria de agosto, como tu reagirias a essa cena? Terias
rido? Terias te exaltado ou apenas entraria no personagem?
– O que você fez? – tento falar com esforço – deu uma pista falsa?
– Óbvio que não – ele parece se divertir – apenas entrei no personagem e
disse exatamente onde estavam, as minhas pistas levá-la-iam à sala do outro
lado da porta desde o primeiro dia, mas como tem uma vida agitada, marido
ausente e dois filhos, talvez não goste do trabalho também é uma hipótese –
seu rosto se torna grave de um segundo para o outro – No fim, ela procurou
incessantemente atrás daquela escória no lugar errado, quase cinco quadras
de diferença – ele não sorri, o semblante imita algo perto da preocupação –
E em seguida sabia que alguém como tu e tua amiga viriam, mas não
imaginava que matariam todos, inclusive meus companheiros de mais alta
estima. Mas esse é o preço pelo que terei de pagar para que o plano dê
certo.
– Que tipo de droga andou usando pra simplesmente fazer uma coisa dessas?
Você matou pessoas inocentes simplesmente para se divertir e ainda parece
estar conformado com isso, você brinca com vidas como se fossem nada,
você é a coisa mais maligna que já vi!
– As tuas mãos estão sujas de sangue inocente, não somos tão diferentes,
meu caro. Talvez tu não tenhas notado, mas alguns daqueles vampiros que
morreram lá fora eram crianças, algumas tinham acabado de morrer e eu as
resgatei e dei um lar a elas, mesmo que não pareça eu organizava as coisas
por aqui, tínhamos regras de convivência, tanto aqui quanto lá fora, e a mais
importante era que apenas matávamos pessoas em duas condições: Se elas
fossem desrespeitosas conosco ou com a própria sociedade e caso elas
estivessem à beira da morte. Meu objetivo se tornará realidade logo menos.
E não serão dois Magus que me farão desistir, nem que eu seja o último vivo
entre as pessoas.
– E qual seria esse objetivo tão nobre? Me deixe adivinhar... Dominar o
mundo ou tornar todos os humanos escravos?
A resposta é muito diferente do que imagino, uma risada histérica ecoa pelo
teatro e infelizmente não tenho forças para tapar os ouvidos, mesmo assim
Clarice ainda parece não reagir.
– Se eu te contar estraga, mas tu passaste tão longe... Uma dica – ele levanta
o dedo indicador e posso ver os dedos longos e finos com unhas pontudas –
A realidade flutua entre dezenas de dimensões ao mesmo tempo, a mais
comum de aparecer foi chamada de Limiar, onde estruturas físicas perdem as
leis de espaço naturalmente.
– Legal, mais um que fez o dever de casa – um dia minha língua ainda vai me
matar – Puxar o Limiar para o Físico.
– BINGO – ele grita e acho que perderei a audição se ele gritar novamente –
Isso mesmo, os detalhes você descobrirá assim que tudo der certo, e até lá,
espero que viva muito bem e saudável, porque assim que estiver melhor
exijo uma luta entre velhos adversários, não pouparei esforços para beber
teu sangue e espero que se esforce muito mais do que simplesmente tentando
me prender em uma gaiola mágica mexendo as mãos, quero que tente
arrancar minha cabeça, que inclusive é o único ponto fraco de um vampiro
rei. E antes que o sol apareça quero lhe contar uma última dica, há uma
criatura ancestral que me deu aquele ovo, espero que a encontre antes de me
encontrar, e com estas informações me despeço, fique com essas duas coisas
de recordação – ele se levanta e deixa Clarice sentada com o livro do lado.
– No dia em que nos encontrarmos te devolverei a jaqueta de Ouroboros
assim como me devolverá o livro, assim saberemos quem somos apesar do
tempo.
Pequenos dentes de leão começam a brotar entre as ripas de madeira, um
brilho avermelhado se espalha pelo teatro e no reflexo de um espelho virado
para a porta vejo a verdadeira forma desta casa, dezenas de portas em um
corredor infinito, me esforço para ir atrás dele mas meu corpo simplesmente
não me obedece, como eu queria poder simplesmente mata-lo, nem que isso
levasse toda a minha magia no processo eu queria poder tirar esse mal do
mundo, mas a fogueira que afastava os pesadelos noturnos se apagou,
restando apenas as cinzas do que um dia foi um guerreiro contra aqueles que
tentam invadir nosso mundo e causar a destruição, voltando impunes para
suas dimensões caóticas. Sinto lágrimas quentes brotando de meus olhos e
descendo pelo meu rosto, uma fogueira apagada não serve para nada.
IX