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FOGUEIRA APAGADA

I
Minha mão desce ao coldre e o desabotoa com leveza, o suor escorre e
gruda na madeira da coronha, a mata alta ao meu redor fecha-se deixando a
pouca luz da lua ser tão útil quanto fósforos na ventania, fecho os olhos para
escutar o som daquilo mais claramente, em vão; aquela coisa se esconde
muito bem. Quando abro os olhos a coisa está na minha frente, a boca aberta
em um rosnado e os pelos emaranhados e encardidos respingando a água do
rio próximo, ela repuxa os membros inferiores com rapidez e miro na testa
dela instintivamente, mas a coisa foi mais rápida.
BANG
A arma dispara no nada e a coisa salta na minha direção com os olhos
injetados de fúria cravados em minha retina, a mandíbula se abre e sinto o
bafo quente e fétido me sufocando tanto quanto os dentes se enterrando na
minha garganta. Acordo suando tentando matar um grito enquanto nasce e
olho em volta, o loft está vazio e a luz da cozinha ainda está acesa. Um
grande quadro da caveira desbotada de olhar acusador com um cálice
dourado em uma mão e o relógio de bolso na outra, ela me observa como se
soubesse o que vi, começo a respirar aliviado com o fim do pesadelo, a
televisão ainda está passando um documentário sobre pássaros. Olho
novamente em volta e sinto um frio subindo pela minha espinha.
Embora eu more no decimo andar do prédio sempre deixo as janelas
fechadas de noite, e agora, uma delas está aberta.
II
Faz tempo que não dou uma passada na praia e ainda assim não faz tanta
diferença, levanto a persiana da janela e faço minha última refeição antes de
viajar novamente, racho o ovo na quina de mármore e espero a clara cair na
frigideira, a luz da manhã ainda não é tão forte e passa brevemente entre os
espaços dos prédios gigantescos enquanto um gato passa entre os parapeitos
do décimo andar. Meu apartamento é frio e minimalista, a cozinha americana
fica em uma direção em que posso ver todo o resto do apartamento se olhar
para trás, com as cortinas fechadas e luzes desligadas é como se toda a
decoração tivesse tons de azul. Corto um pão francês e o coloco sem
manteiga na frigideira, estouro a gema e o liquido amarelo se espalha
crepitando, pego aleatoriamente um tempero na estante ao lado e o jogo por
cima do ovo, abro a geladeira no final da cozinha e puxo uma garrafa de
suco.
Despejo o suco na taça de vinho enquanto observo a manhã surgir entre os
prédios com janelas parecendo olhos nos observando o tempo todo, mordo
meu pão com ovo temperado com azeite e... páprica e vejo o quanto a mesa
está bagunçada. Por algum motivo minha ideia de assinar as revistas mensais
de design de interiores me faz querer trocar toda a decoração do meu loft
várias vezes ao dia, por sorte hoje tenho que sair em uma visita à praia.
Termino minha refeição e volto para o banheiro.
A luz das lâmpadas reflete com mais força neste lado do apartamento graças
à pintura branca com tons de cinza claro, me olho no espelho e vejo o quanto
pareço acabado, a pele que seria translucida de tanto que tento ficar longe do
grande ultravioleta, meu rosto inchado como se eu tivesse levado uma surra
no ringue dos travesseiros Nasa, os olhos âmbar avermelhados e olheiras
profundas marrons em volta, a barba comprida está perdendo o formato que
fiz semana passada. O cabelo longo não é problema em meu trabalho, mas é
estranho me ver aos vinte e sete com a aparência de um adolescente, pego
minha escova em meio aos potes de remédio e cremes faciais e abro o
chuveiro.
Meu quarto na parte de cima do loft tem a vista ainda melhor para a cidade,
vejo que aquele gato se espreguiça e eu me espreguiço junto deixando
minhas costelas quase aparecerem por baixo da pele, pego a camiseta
Henley e a visto rapidamente, colocando quase um palmo de tecido para
dentro da calça jeans escura e fecho os quatro botões e o medalhão gelado
desce pelo tecido. Tiro um pingente que parece uma pedra de signo todo
esmigalhado e o coloco de volta, seria inútil nesse estado e preciso pedir um
novo; desço as escadas do loft e vejo meu reflexo nas janelas.
Volto ao quarto e tiro o fundo falso da gaveta de baixo, a luz crescente
ilumina o cano prateado e a coronha de madeira, ao lado uma caixa de
munição pela metade, um click e o tambor desce, revelando que faltam duas
balas, não me lembro direito mas sei que atirei bem mais que isso na última
vez. Com a agilidade costumeira recarrego o revólver com as balas restantes
e tiro o coldre da gaveta, passo o couro gasto por trás das costas e acomodo
a arma com algumas balas a mais no cartucho extra abaixo da axila e saco
novamente fazendo pose no espelho.
– Se eu tivesse mais tempo perguntaria se está falando comigo – Digo para
o reflexo – e sua cara tá horrível.
Saio do apartamento com o celular e uma jaqueta acolchoada com bolsos a
mais e um símbolo gigantesco de duas cobras engolindo a cauda uma da
outra, o dia será muito frio e minha mão sua muito dentro do bolso enquanto
pego a chave do carro, isso sempre é mau sinal.
III
O Del Rey segue como uma besta sanguinária na pista quase vazia,
recortando imprudente entre carros de passeio e caminhões, passa
deslizando pela estrada enquanto o som do rádio é abafado pelo ronco do
motor modificado, a lataria preta encerada reflete o sol das dez cada vez
mais firme, bebo mais um gole de água e arrumo os óculos escuros.
Uma música de Desert Rock começa a tocar chiando no rádio, o motor
parece acompanhar a guitarra crescente e aumento a velocidade, o limite da
pista é 80 mas o velocímetro mostra 100.
Sigo pela serra quando um sentimento me invade, sinto minha visão
enturvando e o corpo ficando cada vez mais petrificado, sou forçado a
diminuir a velocidade e parar no acostamento. Me deixo relaxar no banco
enquanto a dor dim...
NOSSA EXISTÊNCIA É O MESMO QUE NADA
VOCÊ OUSA PROFANAR O DOMÍNIO DO REI?! ENTÃO TERÁ UMA
MORTE DOLOROSA
Quase bato a cabeça no volante quando volto, os vultos da ilusão ainda se
dissipam nos meus olhos, aquela coisa ainda parece me olhar de fora do
carro, dentes de tubarão em um sorriso demoníaco e aqueles chapéus de
palha com desenho embaixo, preciso ficar esperto quando chegar lá, das
vezes em que isso aconteceu, essa parecia mais um trem batendo diretamente
na minha cabeça. Enxugo a testa e sigo viagem, saio cantando pneu com a
guitarra em um reverb ensurdecedor, a pista está ainda mais vazia e posso
ver os tuneis daqui de cima, o Del Rey passa detonando poças d'água as
jogando para longe, vejo de relance um casal conversando no acostamento,
não sei se é impressão mas acho que os dois não tinham pupila, mal tenho
tempo de pensar e sou engolido pelo túnel escuro, não faço ideia do que
aconteceu e a luz dos faróis parecem lanternas de brinquedo aqui dentro,
diminuo a velocidade e agora vejo algo no mínimo suspeito, desde que me
conheço por gente esse túnel está com as luzes funcionando e não há
pichações em mais de cem metros, paro o carro e consulto o relógio do
carro, totalmente apagado, sinto o medalhão esquentando por baixo da
camiseta e estico a cabeça para fora do carro, o asfalto molhado está
rachado onde dentes de leão brotaram e pequenas sementes voam para fora
daqui, respiro fundo e agora sei onde estou, um fedor de mofo se espalha
pelo túnel e posso ver aqueles pontilhados de poeira descendo do teto. O
carro começa a balançar e contenho minha vontade de sair correndo serra
abaixo, se isso acontecesse talvez eu nunca veria a luz de novo, como no
treinamento fecho meus olhos e diminuo lentamente o ritmo da minha
respiração, algo muito pesado passa ao lado do carro e me afundo no banco
tentando não reparar nos tremores que isso provoca, suor frio descendo pela
testa. Abro os olhos e estou de volta, as luzes amareladas do túnel mostram
apenas algumas motos paradas pelo acostamento e carros vazios no meio da
rua, azarados que saíram dos veículos ou continuaram de olhos abertos, não
posso fazer nada por eles, e sigo a viagem com o rádio do carro perdendo o
chiado e árvores tentando invadir a pista, esse trabalho promete ser muito
difícil.
IV
– O caso parecia mais fácil do que eu pensava, só mais uma turma da
faculdade saindo e tomando todas, no outro dia sobrou só uma mochila com
os pertences de um dos desaparecidos, as investigações terminaram com os
donos de alguns quiosques verem eles saindo da praia de madrugada, a
última pessoa que os viu foi um ambulante que dizia que eles fediam a
alguma coisa pior que cachaça.
– E onde eles foram vistos pela última vez? – pergunto anotando
mentalmente as informações – o ambulante disse em quantos estavam?
– Disse que estavam em cinco, usavam roupa de turista paulista e não se
incomodavam com o frio de madrugada, ele não chegou a ver aonde iam, só
que ficava na divisa das pedras, bem longe da plataforma de pesca. Algumas
viaturas foram até o local, mas não encontraram vestígios dos turistas.
Colocamos cartazes de desaparecidos em alguns lugares do bairro e algumas
senhoras disseram que viram eles entrando em uma van preta, verificamos e
a história não se sustentava.
– O que tinha de errado? Horários não condizem ou eram só boatos?
– Os dois, primeiro que elas diziam que pareciam drogados de blusa pesada,
estavam em seis e era quase nove da noite, uma disse que eles entraram na
van preta, a outra disse que passaram andando em frente à casa dela e o
cachorro ficou latindo.
– Ok, pode me dar o endereço da rua, o nome do ambulante e de alguns dos
vendedores dos quiosques. Ah, quase ia me esquecendo, vocês usaram cães
farejadores?
– Sim, e eles perderam o rastro depois de passarem algumas ruas pra perto
da linha de trem.
– Eu preciso pegar um copo de água.
– Pode ficar à vontade, preciso revirar a papelada.
Saio pela porta do escritório com ar condicionado e a temperatura da
delegacia me deixa levemente nauseado, ajeito o relógio no pulso e sigo
para o bebedouro tateando o bolso em busca do celular, a minha mão treme
enquanto procuro o contato da Clarice na agenda. Pego o copo d’água e
misturo natural com gelada tomando cuidado para não derramar.
– Anda, atende logo essa merda – digo baixo para o apenas o telefone ouvir
– atende antes que eu tenha um treco.
– Sua chamada está sendo encaminhada para caixa post... – termino a
chamada rapidamente e coloco o telefone de volta no bolso.
O seu caso é estranho, nunca vi avançar tão rápido pra esse estágio
depois de o que? Dois meses desde a última consulta? Preciso mudar o
tratamento e começar um acompanhamento mais intenso.
Pego o pequeno frasco de vidro e encaro as capsulas com desdém, não gosto
da sensação de depender dessa coisa pra voltar a pensar direito, abro a
tampa com a mão ainda controlada e despejo dois comprimidos de azul vivo
na minha mão, pego o copo d’água e viro com os comprimidos descendo
minha garganta junto da água gelando meu esôfago. Volto para o escritório
fingindo não estar prestes a ter um ataque de pânico repentino. Me sento na
cadeira de madeira acolchoada e observo a mulher do outro lado, mais alta
do que eu e parece cansada do trabalho, cabelo preso em um coque frouxo e
pequenas olheiras se formando sob olhos avermelhados, sinto um pouco de
pena por ela precisar chamar alguém do meu departamento, talvez ela
devesse ter aceitado ficar fora das ruas mas o dever de pagar as contas a
chamava, enquanto ela mexe no computador vejo uma tatuagem de versículo
no antebraço e na dobra da manga um pedaço de um símbolo de infinito.
– Achei, vou imprimir pra você a ficha com os nomes e fotos, precisa de
mais alguma coisa?
– Não, só isso por enquanto, até o fim do dia vou procurar alguma coisa
nova. – Vejo seu olhar cansado e não me contenho – Não precisa se
preocupar, sou um dos melhores que poderia ter vindo, caso resolvido até
amanhã – finalizo com um sorriso cordial.
A policial do outro lado da mesa me retorna o sorriso e sinto que vou
desmaiar, engulo em seco e aperto a mão dela, sua boca se move mas eu não
consigo prestar atenção no que ela diz, pego as folhas recém impressas e
saio tentando não tropeçar no carpete e a brisa natural não é tão confortável
quanto o ar condicionado. Sigo para o estacionamento tateando os bolsos em
busca das chaves e torço para que o remédio faça efeito logo, abro a porta
com força e me jogo para o banco de couro, sinto o meu coração tentando
rasgar meu peito, a dor pulsante me força para tentar vomitar, tento engolir e
finalmente sinto que posso respirar em paz. A sensação de alivio não dura
tanto quanto espero pois logo em segui...
“As gaivotas voam baixo para poderem pegar suas presas, esperam
pacientemente os peixes pularem para fora da água.”
“As coisas são mais fáceis se olhar por outro ângulo, tenho certeza que
ela fugiu porque ninguém queria ela por perto.”
AS SUAS MÃOS ESTÃO SUJAS DE SANGUE INOCENTE, NÃO SOMOS
TÃO DIFERENTES, MEU CARO.
Grito com o rosto entre as mãos, os olhos ardendo e as mãos tremendo, na
minha frente o interior do carro parece claustrofóbico e distorcido,
realmente minha condição clinica parece piorar com violência a cada dia.
Impulsivamente procuro o maço embaixo do rádio, não tenho o hábito de
fazer isso e só opto por isso em casos extremos, e ainda tenho a impressão
de que terei um dia e tanto.
Giro a chave no contato e abaixo o vidro ao meu lado, o céu mantem a
coloração prateada, irradiando luz mesmo com o sol escondido entre as
nuvens, saio do estacionamento com as poucas viaturas e algumas motos
paradas e sigo pela rua asfaltada até voltar a ser apenas grandes blocos
hexagonais sobre a areia. A brisa do mar se torna presente junto do cheiro de
maresia após eu passar a estrada, viro algumas ruas e vejo ela depois de
anos, nem em minhas memorias mais vividas ela era tão grande. A
plataforma de pesca se ergue da água como a coluna de alguma criatura
antiga encalhada na areia a tantos séculos que seu sangue se tornou crostas
de ostras escuras, apenas a ponta esquerda me lembra que aquilo é apenas
mais uma construção, um pedaço de concreto e vigas de metal enferrujado
solitário antes se ligava ao resto da construção como a outra ponta, mas
agora é apenas um poleiro para os pássaros esperarem pescadores
desatentos deixarem suas iscas nos bancos. Continuo pela rua de asfalto, o
cheiro de maresia se mistura com os peixes e iscas, passo em frente ao
aglomerado de barracas e quiosques, no início do mês teria uma cacofonia
de todas as caixas de som tocando músicas diferentes em busca de fregueses
festeiros ávidos por cerveja superfaturada e gelada.
No banco do carona deixei os papéis das testemunhas, o mais próximo é o
quiosque perto da divisa de pedras, paro o carro e deixo o refrigerante
gelado que comprei antes de chegar à plataforma nos porta copos do Del
Rey, organizo os nomes em ordem alfabética e verifico as fotos, lugares
estranhos e pessoas familiares.
Fico hipnotizado pelas fotos da rua quando o telefone toca, mecanicamente
atendo sem prestar atenção no número da chamada.
– Espero que você tenha um bom motivo pra me ligar do nada, se for outro
filme em preto e branco me esquece.
Dou um sorriso por trás do telefone, tento não conter a risada e quase falho.
– Quem me dera, dessa vez é uma coisa que te interessaria muito, se quiser
vir aqui em Mongaguá eu tenho um pequeno caso pra resolver... e eu acho
que preciso da sua ajuda.
– Aí Arthur, se algum dia você não precisar da minha ajuda eu te juro que
faço uma festa. Anda, diz logo o que é tão interessante nesse caso.
– Desaparecimento sem rastros, vítimas desapareceram de madrugada e
pareciam estar “drogadas”, e eu tive dois daqueles acessos, acho melhor
você vir antes que eu caia apagado de novo.
– Meu Deus, se você não pular da ponte de vez até a tarde eu te vejo por aí,
onde quer se encontrar?
O sorriso me escapa e eu começo a rir sozinho, acho que minhas crises vão
acabar por enquanto, e estarei na melhor companhia possível nesse caso.
– Você se lembra da estátua?
– E tem como esquecer aquela coisa?
V
Espero sentado na mureta comendo um sorvete de flocos alternando entre
olhar meu carro no estacionamento e ver se o carro dela está chegando, o dia
está terminando e eu verifiquei a história dos vendedores, todos diziam que
eles pareciam drogados e fediam a alguma coisa pior que lixo. Não
encontrei as senhoras que disseram ver eles e tampouco sinal do ambulante,
tenho certeza que nenhuma delas realmente viu algo aquela madrugada e o
vendedor deve ser um daqueles que vem da Praia Grande rondando o dia
todo, fui andar na plataforma de pesca relembrar dos velhos tempos, isso me
lembrou uma vez quando Tibo e eu fomos pescar de madrugada, ele me viu
fisgar alguma coisa muito pesada e em seguida ficou sério.
“Acho que você pegou um peixe escuro” ele disse com o olhar de um sábio,
eu fiquei com muito medo imaginando o que seria aquilo, em minha cabeça
apareciam imagens bizarras de monstros marinhos que mal caberiam na
extensão da praia, e um deles havia mordido minha isca. Tibo começou a rir
como um louco assim que viu minha cara de sonso.
“Olha pro outro lado” ele disse pausadamente intercalando com risadas
abafadas, do outro lado da pilastra um senhor com cinco varas que pareciam
invisíveis na madrugada exceto pelas linhas neon dormia com uma das varas
repuxando toda vez que eu mexia a minha, logo eu comecei a rir tanto quanto
ele, e assim ficamos até o sol nascer, nós e uma garrafa de café com leite.
Após os momentos de nostalgia me levantei do banco onde ficamos naquela
madrugada e segui pela extensão gigantesca entre as pontas e a saída, engoli
mais dois comprimidos sem água e caminhei pela calçada até a grande
estatua da Iemanjá, que sempre me pareceu algum tipo de cópia do Cristo
Redentor com os braços quase abertos e aquelas estatuetas grudadas com
espelhos e espadas, se eu andasse pela areia poderia ver alguns prédios que
se destacam na paisagem, nunca entrei lá, o que eles representam é mais
importante, assim como a lembrança da plataforma esta seria mais longa.
Quando tínhamos treze anos Clarice, que morava em Bragança Paulista se
mudou para cá, nos conhecemos durante nosso teste da Academia do Sul e
desde então nos tornamos presença constante, depois de um longo ano
falando sobre como a praia era muito mais interessante que uma cidade
afastada do ABC pedi ao meu pai que convencesse a família dela a se
mudar. A tarefa foi razoavelmente difícil, mesmo eles morando de favor na
casa da avó o pai tinha alguma coisa contra viver em um lugar desconhecido,
visto que as despesas de dois filhos eram pagas pela esposa, mesmo ele
trabalhando em uma forma arcaica de Home office, isso ainda em 2005, não
era pago o suficiente e os lucros pagavam somente as contas de luz e
telefone, caras demais na época. Meu pai, que morava aqui desde 1994 ficou
responsável por encontrar uma casa de aluguel ou pelo menos um bom
apartamento para eles, por sorte algumas semanas depois ele viu algumas
casas em “promoção relâmpago” e alguns meses antes do ano letivo começar
eles vieram para cá. Depois de muita arrumação e telefonemas a mãe dela
foi recolocada em uma filial próxima e o pai conseguiu um emprego na
delegacia onde meu pai trabalhava. Aos poucos as coisas foram se ajustando
e assim começamos uma nova rotina em nossas vidas. Tibo morava perto dos
trilhos de trem, eu morava antes da estrada e Clarice acabou morando na rua
da praia. Desde então nos reuníamos religiosamente às 6 da manhã embaixo
da plataforma e começávamos o dia apostando corrida de bicicleta pela
areia até o prédio amarelo que ficava do outro lado das pedras, e esse foi o
rito que nos levou da infância à adolescência.
O HB20 passa devagar pelo asfalto abarrotado de areia, meu picolé já
acabou há algum tempo e vejo parte da silhueta dela dentro do carro. Me
levanto calmamente, tiro parte da areia da calça e vou até o carro azul, parte
do vidro se abaixa e sinto o frio do ar condicionado lamber meu rosto, ela
parece tão bem apessoada que me sinto um mendigo, o rosto sem linhas de
expressão e um corte curto, ondulado e propositalmente bagunçado, que
estranhamente lhe deixa uns cinco anos mais nova. Ela parece uma pessoa
bem diferente, até mesmo no sorriso.
– Entra, dessa vez sem corridas. E limpa o sapato antes de entrar.
– É pra já madame – dou duas batidinhas na porta e entro pelo outro lado –
temos muito o que conversar.
Depois de um abraço apertado de travar a coluna me arrumo no banco.
– Primeiramente, o que raios você veio fazer aqui em Mongaguá? – o carro
começa a acelerar – Não tinha nenhum caso mais perto?
– Eu até tentei achar alguma coisa mais perto, só que o meu chefe me mandou
esse aqui na semana passada e eu era o único disponível na hora, sorte
grande – eu finjo ânimo e me recosto no banco – e você, como tem passado?
– Você sabe, encontro com pessoas estranhas, ir de um estado pro outro de
vez em quando, semana passada eu tive que “cortar algumas verbas” da
empresa e no sábado um maluco me ligou de madrugada falando que o
apartamento tinha sido invadido. Não imagino quem tenha sido – ela se vira
na minha direção e sinto seus olhos queimando minha alma, me afundo no
banco e ela prossegue – Mas agora estou aqui, na praia em um dia nublado
ajudando meu amigo a procurar gente morta.
– Ou quase isso – adiciono com o indicador levantado – inclusive, você
trouxe o pingente ou alguma arma?
– Que tipo de trabalho você arranjou que precisamos de arma? Mas sim,
pega na minha bolsa, e não toca na necessaire. Tem um cartucho extra no
porta luvas.
Pego a bolsa bege no banco de trás e começo a mexer no conteúdo, entre
coisas de mulher, carregador portátil, algumas canetas, um lenço de pescoço,
carteira e doces, encontro um revólver de oito tiros com o pingente amarrado
em volta. Tiro os dois da bolsa e entrego o revólver para ela, amarro o
pingente no pulso perto do relógio e pego dois doces, abro um.
– Quer um pedaço?
– Se eu comprei eu quero um. – Ela diminui a velocidade e pega a
embalagem da minha mão – por onde quer começar?
– O último lugar que eles foram vistos fica antes da divisa de pedras. Eu dei
uma passada por lá e não encontrei muita coisa, mesmo o chamado sendo de
quatro dias atrás. Acho que sem o pingente sou meio desnorteado.
– Acho que você só não tem mais a capacidade de antes, principalmente
agora que somos obrigados a suprimir nossa magia.
– Isso seria muito mais fácil se eu pudesse fazer dois ou três selos com a
mão e mandar tudo pelos ares – levo a mão ao rosto com visível irritação e
apoio o braço no relevo da porta – maldita nova constituição
– Agora que falou de selos, e aquele seu problema, já foi atrás de um médico
de verdade ou continua insistindo em beber aquele licor colorido igual seu
pai?
– Não, agora eu faço acompanhamento médico, psicólogo e psiquiatra, e
comecei a tomar isso aqui – entrego o frasco de remédio meio cheio e ela
diminui a velocidade – três vezes ao dia.
– Agora sim eu entendo os transes, isso tem morfina demais, tem certeza que
a psiquiatra não fez mestrado em coma induzido? – ela parece tão indignada
que seu rosto está virando uma careta – Nem eu seria maluca de te indicar
isso aqui.
A rua de hexágonos termina em uma pequena trilha no mato que só poderia
atravessar a pé, Clarice parece se esquecer do frasco em sua mão e passa
para a rua na direita entre casas arborizadas e muito maiores desse lado da
praia e deixamos a areia e um pedaço de concreto em formato torto de A
escrito “Mongaguá” afundado, fico hesitante em contar para ela sobre meu
caso, mas ela precisa saber que talvez em breve seu amigo de infância estará
internado por tempo indeterminado.
– Eu tenho um caso avançado de ansiedade misturado com alguma coisa que
meu uso de magia excessivo agravou, a psiquiatra disse que nunca tinha visto
um desses antes, talvez eu tenha que me aposentar em dois meses ou posso
ficar internado em uma clínica até descobrirem como reverter isso.
Ela para o veículo e me sinto mais leve enquanto o local fica mais pesado,
ela solta o volante e o tempo parece desacelerar, os cabelos dela caem para
a frente do rosto e por um segundo parece que os olhos dela marejam. Não
sei se fiz o certo em contar para ela depois de meses que não nos vimos, a
sensação de leveza se torna gigantescos pesos novamente e solto o ar dos
pulmões. Não sei o que fazer agora, apenas me ergo um pouco do assento e
ouço um click. O corpo quente se choca contra o meu em um abraço
apertado, agora sinto as lágrimas dela escorrendo como um sexto sentido
atrás de mim e a voz dela sai embargada e baixa, tento abraçar ela de volta,
mas seus braços estão acima dos meus cotovelos e não consigo me mexer
muito.
– Eu não quero perder mais um, de novo não. Por favor, o que eu conseguir
fazer pra te ajudar é só falar.
Agora me sinto como um grande pedaço de lixo, tanto tempo sem vê-la e
faço uma coisa dessas, que tipo de pessoa o Tibo acharia que eu me tornei?
Não há mais tempo para pensar nisso, precisamos pensar no caso antes que
mais coisas aconteçam.
– No momento só preciso que a gente continue pensando no caso, o que você
acha que pode ter levado eles?
– Acho que não foi alguma coisa no mar ou ninguém teria visto eles andando
– Ela volta ao banco dela se recompondo e limpando algumas lagrimas ainda
brotando, a voz quase não tem mais o tom de choro mas ainda funga um
pouco – o cheiro de lixo poderiam ser criaturas de outro plano mas elas
deixam a pessoa agressiva e não em transe... a não ser que sejam vampiros –
a ideia me soa idiota porque eles são a coisa mais fácil de se matar nesse
mundo, uma estaca os deixam paralisado e um ou dois tiros de prata fazem
monstros seculares virarem poeira de quintal.
– Acho que se forem vampiros é só levar um baseado que fica tudo certo – a
ideia de vampiros drogados ainda me fascina – e a gente aprendeu que
vampiros não tem poder de hipnotizar.
– Vampiros normais não, isso é bem impossível, mas poderia ter um...
Antes que eu possa ouvir os sons ficam aguados e sinto minha consciência
ficando mais distante, o corpo amolecendo rapidamente e antes de perder os
sentidos minha mão esquenta com o cristal, que começa a brilhar muito forte.

“Eu sempre quis ver alguma criatura tipo lobisomem, vampiro ou até um
monstro marinho, mas o máximo que tem por aqui são essas baratonas, do
tamanho do meu pé.” ele diz com a cara avermelhada jogando o baratão
dentro da pá, as tranças substituíram o cabelo raspado e agora ele parece
mais velho, desde que voltei do hospital meu cabelo cresce mais rápido e
pareço o vocalista de uma banda de rock americano, ele se vira com a
vassoura imitando um soldado inglês com chapéu de cotonete. “Seu pai já te
falou da viagem? Minha mãe já arrumou a minha mala e perguntou se vocês
já tinham planos pra quando iam sair” agora ele equilibra o cabo na ponta do
dedo do meio como um circense.
“Não muita coisa” dou de ombros. “Ele disse que seria um passeio bem
longo, talvez durando um mês, acho que vamos pra Minas de novo, igual nas
férias do ano passado”.
“Acho que não, meu pai tá meio estranho, anda deixando de dormir e já
peguei ele assistindo Corujão umas três vezes, acho que ele vai ser
demitido.” Ele solta a vassoura no chão e segue para fora da casa, eu o sigo
e sinto a garoa fina batendo no meu rosto e respingando na minha blusa. Tibo
não parece muito afetado pelo clima e joga o baratão na rua. “Já viu alguém
passar a madrugada vendo Lábios de Sangue? É tipo o fundo do posso, só
que um pouco mais embaixo” Ele abre o portão e vamos saindo rumo à
padaria.
“Ando tendo uns sonhos meio estranhos ultimamente, são meio... reais
demais, em alguns deles estou em uma caverna escura, tinha uma fogueira
mas ela sempre está apagada, você aparece e fica me encarando com o rosto
coberto de tinta escura, você me diz pra tomar cuidado com a lagarta e
depois alguma coisa entra.” sinto calafrios quando relembro do sonho quase
lúcido, não sei se continuo mas a curiosidade dele já foi fisgada. “Uma
mulher bem alta, com um chapéu longo e um vestido arrastando no chão
entrou pela abertura da caverna e eu senti cheiro de peixe morto, ela
começou a andar na nossa direção e eu simplesmente travei, você tinha
desaparecido e tudo ficou escuro, só tinha a luz fraca do lado de fora mas eu
ainda conseguia ver os olhos dela, brilhando como se fosse um monstro e...”

“A lagarta sai de seu casulo transformada em borboleta, seu corpo, antes


redondo, dá lugar a uma criatura nova, para alguns, uma peste mortal.”
– ACORDA! – sinto um calor infernal passando por minhas veias e cada
célula do meu corpo começa a queimar – EU MEU NOME TE INVOCO,
REVIVA FILHO DE RAMSÉS.
O calor emanando do meu corpo me desperta como uma ducha de água
fervendo, agulhas de dor se espalham por todo o meu corpo e um grito passa
entre meus dentes colados uns nos outros, a dor começa a diminuir e cessa
como se nunca tivesse existido, na minha frente vejo o rosto de Clarice
pálido como giz com as marcas das lágrimas brilhando, os olhos
completamente pretos e parte das veias no rosto agora estão arroxeadas.
Agora que recobrei a consciência os efeitos do uso de magia começam a
desaparecer de seu corpo, rapidamente ela volta a ter o rosto corado e os
olhos âmbar de sempre, ela solta um suspiro e se recosta no banco.
A garoa do lado de fora torna-se um ruído branco para esse momento, sinto
que minha cabeça quer explodir, pego a garrafa nos porta copos, a água
desce resfriando minha garganta seca e antes que eu beba tudo Clarice tira a
garrafa de mim e bebe a outra metade que restou. Enfim estou apto para falar
alguma coisa.
– Sonhei com o Tibo, acho que no último dia antes irmos pra Academia do
Sul, eu tive uns sonhos com ele mas eu não lembro do que era, mas foi
estranho, estávamos falando tanto de monstros, parece até que ele sabia no
que íamos nos meter depois – dou um sorriso sem graça e assopro a risada
pelo nariz – e acho que precisamos fazer alguma coisa antes de ficar mais
escuro.
Clarice ainda parece estar em estado de choque, eu pego a mão dela, que
está tão fria quanto o ar condicionado, o aperto dela é reconfortante e me
sinto de volta à realidade caótica, me viro para as nossas mão entrelaçadas e
o abismo se intensifica, a pedra verde brilha fraca mas constante.
– Fizemos besteira – ela conclui, ainda olhando para os postes com suas
lâmpadas alaranjadas – acho que sei onde eles estão, vi um pessoal andando
por cima dos telhados indo até aquela casa – ela aponta para uma silhueta
mal iluminada e vejo que realmente tem pessoas em cima daquela casa.
Ela liga o carro e vira para a esquerda com os faróis apagados e a chuva
embaçando os vidros com o limpador de para-brisas desligado, levamos as
mãos aos revólveres.
VI
– Assim como a fruta que cresce na árvore tudo tem um nascimento e uma
morte, nossas vidas se enchem de alegria por apenas alguns segundos e
voltamos ao nulo – ele levanta a sua mão acima de nós com a taça dourada
quase transbordando – esta é a taça da vida, cheia das nossas alegrias e
tristezas, do nosso fluido vital, se continuarmos vivendo nossas vidas apenas
em prol de nossa felicidade e esquecermos o resto deixaremos de ser o que
somos e seremos apenas um fruto podre na arvore, não somos a uva na
parreira, esperando para ser colhida e transformada em vinho. – Ele se
levanta da caixa que serve de assento para todos nós e sua sombra
gigantesca se sobrepõe à luz moribunda vinda dos vitrais coloridos e
quebrados, formando sua silhueta borrada na parede atrás dele – nós somos
a quebra do ciclo, aqueles que caminham entre o céu e o abismo, a diferença
entre nós e sonhos de revolução é que temos rosto e somos feitos de carne.
LEVANTEM-SE IRMÃOS DE BATALHA, SE UNAM AO REI E
BEBAM TODA A VIDA QUE QUISEREM.
A voz do rei ecoa em nossas mentes e corações, me sinto revigorada e
pronta para dar minha vida à causa, meus instintos feéricos se sobrepõem
contra minha racionalidade, minha boca saliva e os dentes crescem da
gengiva como navalhas, o sangue verte e eu me sinto viva novamente.
– Esta noite teremos sangue novo, dois Magus vieram para cá, em busca dos
humanos que trouxemos, e agora, eu e dois discípulos iremos caça-los, hoje
cedo quando vi um deles parecia fraco e longe de parecer uma ameaça.
Nossa plateia com pouco menos de vinte urram e levantam o punho fechado
em saudação ao rei, tenho certeza que aqueles dois não terão chance, só de
chegarmos perto um deles começou a se contorcer dentro do carro. O rei me
entrega a taça agora pela metade, os belos lábios vertem o sangue escuro e
seu sorriso radiante me enche de alegria, Gustavo está junto do rei, o rosto
escondido entre o cabelo longo e as roupas sempre escuras, pego a taça
gentilmente oferecida a mim e bebo o sangue. Minha mente é esmagada pela
sensação de prazer e meus sentidos se tornam mais fortes, me concentro em
ver ao meu redor e vejo todos os vinte vampiros gritando, seus rostos se
tornando distorções com o cheiro de sangue derramado, a voz de meu mestre
se torna mais suave e percebo que o sangue começa a manchar o colar de
pedras, estico a cabeça na direção de seu pescoço e minha língua toca o
líquido vermelho escuro.
– Que tomemos o fruto de nossa caça, esta noite dançaremos no sangue
amaldiçoado. – Ainda estou com a cabeça em seu ombro, mas tenho certeza
que está sorrindo e seus olhos brilham na escuridão.
Observo Gustavo com atenção, ele está distraído olhando o sol desaparecer
no leste e a garoa fraca nos molha como uma gratificação pelo que fizemos
hoje, podemos andar durante o dia, mas a luz nos deixa sonolentos e fracos,
somos presas fáceis abaixo do grande astro, exceto o rei, que parece não
sentir diferença, ele nos ensinou a controlarmos o que chama de nosso
abismo mas ainda nos falta praticar. O cheiro do vapor sabor melancia com
nicotina me deixa enjoada, ele estica o cigarro eletrônico para mim.
– Quer experimentar? peguei essa daqueles babacas, é meio fraca, mas dá
pro gasto – ele tem sempre o semblante sério, mas dessa vez parece mais
descontraído – Eu não conto pro rei que tu andou fumando.
– Babaca – não consigo conter a risada, mas a abafo para o rei poder dormir
em paz.
Entre nós ele repousa com sua camisa florida e o rosto protegido das luzes
da rua pelo meu chapéu floppy, ele sempre dorme como pedra após beber
sangue, essa é sua única fraqueza genuína, Gustavo é seu braço esquerdo e
eu, o direito. De repente ele se ajeita no concreto e desliga o vaporizador, se
vira para minha direção com um pouco menos de apatia.
– Por mais quanto tempo tu acha que essa fantasia de idealismo vai
funcionar pra eles? – Ele finalmente diz e sinto um pequeno choque me
percorrer – Já ando vendo algumas pessoas descontentes com o rumo lento
que estamos tomando, mesmo o rei tendo o que? Cem anos de maldição?
– E no que isso diferencia no fim das contas? Ele é o nosso líder e não é de
agora que temos lidado com problemas, só porque eu estou aqui a menos
tempo não quer dizer que você seja a voz da razão – explodo, o rei já me
disse que preciso ser menos agressiva, mas as vezes isso apenas aflora –
Olha, o que quero dizer é que nós não somos perfeitos e nosso...
– Não foi o que perguntei. Eu quero saber de ti, Sarah, se ainda acha que o
plano de criar uma comunidade baseada nas ideias desse carinha aqui – ele
aponta para o chapéu – ainda daria certo.
– Acredito que sim, e agora tenho ainda mais certeza, depois que aquela tal
de... Qual era o nome dela? Caterina, Camila, acho que ela disse algo
assim, nos deu aquele ovo o rei parece mais disposto com o plano de
expandir nossa legião. Então sim, acredito que elas se tornarão mais que
idealismo muito em breve.
– Mais uma maluca, checado. Fazendo bem ou mal é tu quem decide seguir
até o fim, já decidi que depois dessa missão vou deixar a cidade, talvez eu
vá visitar alguns amigos na Argentina depois de um tempo.
– E se o rei morresse? Acha que eu seria uma boa líder?
– Tu seria tão boa quanto ele – Ele larga de vez as feições apáticas e dá um
sorrisinho – Só espero que aqueles Magus não percebam o que estamos
fazendo e acabem com o plano, então jure para mim, que tu irá proteger
aquele ovo até que o puro sangue cresça. – Seu rosto parece ainda mais
grave do que jamais foi - Pode fazer isso?
– Com certeza, pelo rei e pela legião. – Eu digo com um sorriso orgulhoso
– Não, fará isso por ti, que é maior que a legião e nosso líder. E o nome
daquela mulher era Caterpillar.
O meu companheiro de vigia se deita no concreto já frio do teto de nosso
esconderijo, faço o mesmo e agora posso ver as nuvens se dissipando e parte
da lua nos ilumina, o ar se torna mais leve e agora posso sentir alguma coisa
no ar. Em meio ao cheiro de maresia sinto alguma coisa se aproximando.
Sangue fresco
Preciso conter o abismo saindo de minha essência e me jogando à barbárie,
mas esse cheiro é tão... doce, sutil, convidativo e viciante que me sinto
apenas pulando do topo do esconderijo e em seguida olho meu reflexo nos
vitrais quebrados do outro lado da rua, o brilho laranja dos postes
desapareceu, sobrando apenas a iluminação natural e meus olhos brilham
monstruosamente em meu reflexo estilhaçado e duplicado.
– Essa é a lua do caçador, nas veias da degradação flui o fel – rogo nosso
cântico –Esta noite dançaremos a valsa da morte
O solo treme quando outras duas sombras se unem abaixo do poste.
– Este é o nosso sacrifício aos deuses do fim – Gustavo prossegue
– Que os tambores da batalha venham a nós. – O rei finaliza.
Sinto os dentes crescendo como navalhas ao mesmo tempo que a ponta dos
meus dedos são dilacerados quando as garras saem, os olhos se aguçam e
minha audição se perde nos sons de ondas quebrando e corações batendo.
VII
As luzes dos postes tremem e espero que não apaguem, em vão, elas vão
diminuindo e desaparecem junto da garoa, o chão está com água
transbordando das guias e a lua pálida deixa tudo com o aspecto
fantasmagórico e onírico mortal misturado ao mormaço da chuva querendo
evaporar, minha cabeça parece querer explodir e agora sei o motivo, jogo o
pingente para o banco de trás e tiro a camiseta, no meu pescoço o medalhão
brilha fracamente, o jogo ao lado do cristal, coloco a jaqueta velha e minhas
veias queimam novamente, meu caso clínico foi causado pelo uso excessivo
de magia, como uma contensão de meus poderes latentes me foi entregue um
medalhão. Viro a cabeça para Clarice e ela entende meu recado, saio do
carro e o cheiro de maresia é substituído por sangue, ainda não sei o que está
por perto, mas logo iremos descobrir, ela sai do carro e colocamos as armas
em pose de guarda alta. Ao longe podemos ouvir o som de algumas pessoas
falando baixo, fecho os olhos e me sinto novamente no sonho da floresta,
felizmente dessa vez estarei preparado para quando a criatura chegar, e ent...
DAS CINZAS TU VIESTE E DE LÁ RETORNARÁ, CAIAM
PERANTE TEU REI, RELES MORTAIS!
A voz dessa coisa parece um trovão e me sinto impelido a obedecer, o que
Tibo pensaria se me visse assim? O que ele faria? Eu sei o que quero fazer, e
fugir está fora de cogitação.
Saio correndo na direção da voz e Clarice parece apenas uma lembrança
distante, tudo o que vejo são o que parecem formas humanas opacas e
escuras com pontos brilhantes onde deveriam estar os olhos. Como se fosse
um instinto primitivo repito aquilo que fiz centenas de vezes, jogo a arma
para a mão direita e abaixo a mão esquerda, desço os dedos anelar e
mindinho e dobro levemente o médio e indicador, meu sangue se move
rapidamente ao comando e uma luz alaranjada se forma à minha volta com
pequenas fagulhas, é como se dentro de meu corpo tivesse uma fogueira
acesa, eles jogaram uma tora e agora se tornará um incêndio.
– QUEIMEM – grito do fundo de meus pulmões, e quando o projétil sai da
arma as pequenas fagulhas se intensificam e dezenas de explosões deixam o
chão marcado de fuligem.
BANG BANG BANG
O som da arma detonando é ensurdecedor e vejo aquelas coisas caindo uma
a uma, os corpos se desintegrando em pó. A magia flui como ácido e começo
a sentir o preço da imprudência, minhas mãos começam a suar, só tenho duas
ou três tentativas de acabar com essas coisas antes que eu caia de vez no
chão, minha caminhada para aquelas coisas continua e rapidamente se torna
uma corrida desesperada, aperto o gatilho mais uma vez e vejo o porquê de
terem tantos. De dentro de um casarão caindo aos pedaços saem mais e mais
dessas coisas, e acredito que talvez sejam vampiros, e caso sejam estamos
completamente na merda.
As balas não são escassas, ainda assim temo em precisar usar mais magias
nesse momento, sinto parte da minha visão cansando, me distraio olhando
para Clarice e sem querer uma daquelas coisas escapou da zona segura e
avança rapidamente pela rua em minha direção. Jogo meu corpo com
violência na direção da coisa quando ela vem até mim e a empurro contra o
chão com um pouco de esforço. Aquela coisa se debate como um peixe sob
meu peso e agora posso ver seu rosto, uma distorção do que antes era uma
jovem agora tem olhos leitosos e avermelhados, dentes pontiagudos ferindo
a boca e sua pele parece oleosa, até mesmo se assemelhando a um réptil,
essa visão me causa embrulhos no estomago e em seguida dou um tiro
agourento na testa da coisa, que cai no chão, imóvel e lentamente seu corpo
começa a se decompor, gerando um misto desagradável de repulsa e pena
por essas pessoas. Tento me levantar e outro pula em minha direção, jogo
todo o meu peso nas pernas e me abaixo em uma pose desconfortável quando
as garras passam por cima da minha cabeça, coloco a mão no chão e puxo o
gatilho mirando no torso da criatura.
CLICK
A arma descarregou. Vejo os olhos brilhantes se abaixando lentamente e o
sorriso demoníaco de tubarão me enche de raiva, outra vez as garras descem,
defendo o ataque com o braço e sinto a queimação junto da dor quando as
laminas fincam entre os ossos e atravessam a pele do outro lado, não há
outra alternativa, forço todo o peso nos anelares e médios e os entrelaço,
fechando os outros três das duas mãos, sinto meu corpo chegando no limite e
o sangue respingando começa a cair fervendo no asfalto. Sorrio com a
cabeça levantada e vejo o vampiro se contorcendo preparando um ataque
com o outro braço, meu sangue corrosivo quase desintegra os dedos
pontudos e a coisa começa a gritar estridente, desenlaço o braço e uma
torrente vermelha escorre sujando minha mão, no impulso para subir
novamente agarro o pescoço do vampiro ainda gritando e ele solta longos
fios de fumaça por entre meus dedos e cai no chão, sem vida. As balas
param de chover enquanto Clarice recarrega e faço o mesmo me escondendo
atrás de um poste, levanto a mira até o outro lado da praia e por um breve
segundo vejo três deles agarrados ao topo do poste, onde vejo uma silhueta
mais escura que o céu com as mãos no bolso apenas observando a cena,
quando tento mirar novamente outro tenta agarrar a arma e coloco a mão
sobre sua testa e vejo sua expressão de agonia borbulhando enquanto se
desintegra como carne podre. Tento mirar novamente, mas os três
desapareceram. Saio correndo para o meio da rua em meio aos tiros
brilhando em laranja acertando as cabeças se mexendo e implodindo
rapidamente, jogo alguns respingos na direção de um e outro pula em suas
costas enquanto ele põe as mãos no pescoço e sinto o peso do ar mudando,
em um reflexo jogo a arma para a outra mão e um tiro laranja explode da
arma e acerta o braço e parte do ombro começa a brilhar por dentro e o
sangue colorido voa para parte do meu rosto e queima um pouco da jaqueta,
mais cinco vem em minha direção e atiro rapidamente em dois e os pescoços
pálidos brilham e implodem em uma torrente de sangue corroendo os outros
ao redor, vejo mais uma vampira vindo por trás do outro e chuto o corpo de
um deles para cima e atiro atravessando o torso corroído e a perna dela
começa a borbulhar e todo o corpo desintegra a partir dali. Não há mais
vampiros na rua e tenho um breve descanso para poder respirar.
Me viro para Clarice, que abaixa a arma atrás da porta aberta. Faço uma
mimica agitando a mão com dois dedos apontando para o portão trancado,
Clarice assente com a cabeça e levanta a arma na direção das janelas
quebradas. Respiro fundo e sigo na direção do portão de madeira carcomido
onde três correntes de ancora estão barrando a passagem, o casarão é uma
construção inacabada de concreto velho e tijolos ocres, paredes de concreto
pichado coroadas com vigas enferrujadas que parecem dedos mumificados e
tortos, do lado de fora só consigo ver a construção no segundo andar, o
concreto cheio de sobras escorridas como cera e grandes manchas de mofo e
infiltração na única janela finalizada, provavelmente a coisa mais recente da
construção, com os padrões de vitral verde nas pontas e amarelo no centro
emoldurados no topo que era muito comum décadas atrás na região. O teto
parece ser apenas uma chapa de massa corrida onde colocariam uma caixa
d'água e na abertura onde teria outra janela vejo marcas de mão pretas e
desgaste que termina em rachaduras, talvez tenham tentado fazer uma sacada
de frente para o mar.
Com a arma em guarda baixa e com a sutileza de um coice arrombo o portão
que se esfacela em ripas das dobradiças e as correntes caem junto da
madeira fazendo um estalo e passo por um caminho de terra escura batida
entre o gramado que quase passa dos meus cotovelos, o vento não bate aqui
dentro e nada se move, tudo está silencioso e mal consigo ouvir o mar que
está a poucos metros da casa, entro e o cheiro de maresia e morte exalam da
estrutura como peste. A magia começou a fazer efeito como um estimulante
forte e agora sinto apenas a vontade de matar essas coisas, dessa vez guardo
a arma no coldre, minhas mãos estão suadas e sinto isso mudando
rapidamente quando levanto as duas mãos acima da cabeça e coloco a mão
esquerda na frente da direita e entrelaço os polegares, quando dobro os
indicadores e médios vejo faíscas semelhantes a uma serra cortando metal
saírem da palma da mão e aquilo termina em um grande clarão que deixou a
casa incandescentes por alguns segundos. Já não sinto formas de vida se
movendo entre as paredes daqui... é o que espero. Olho dentro da casa e
pelas fresta de luz que passam da porta de vidro vejo móveis cobertos por
lençóis amarelados e aquelas poeirinhas se movem preguiçosas, me recosto
no batente da porta e pego novamente a arma no coldre para continuar a
investigação, sigo pela sala lentamente, com cada passo acompanhado de
rangidos do assoalho de madeira gorduroso, não encontro manchas secas ou
pegadas para seguir.
O cheiro de morte se dissipa brandamente quando vou subir as escadas sem
corrimão e sinto um aperto gigantesco como se alguém tivesse um laço em
meu pescoço, percebo duas presenças igualmente letais e malignas vindo de
algum lugar nos andares acima, uma delas é uma essência estranha e
condensada das outras que se amontoam na rua, e outra é como um buraco
negro, consumindo todas as vidas ceifadas de uma vez e a cada corpo caído
aquilo cresce, e meu desespero aumenta. A última vez que senti isso foi a
anos atrás, e mesmo assim aquilo foi tão catastrófico que poderia dizer que
seja o suficiente para destruir a cidade quando acordar, aquilo é um Puro
Sangue.
Meu corpo fica dormente e cansado como se eu tivesse corrido uma
maratona e ouço passos se aproximando, infelizmente não posso fazer muita
coisa pois cheguei ao limite que poderia atingir, tento falar e tudo o que sai
parece impossível de entender, meu rosto parece anestesiado contra o chão
de madeira fria e poeirenta, vejo uma silhueta esguia surgindo entre os
vitrais quebrados e sinto novamente a sensação de uma forma condensada
entre aqueles seres moribundos.
– Você ousa profanar os domínios do rei?! Então terá uma morte dolorosa,
junto da sua amiguinha aqui – a voz parece seca e apática, ainda assim sinto
a fúria velada em seu tom – levem-no ao segundo andar, temos uma bela
surpresinha para ambos.
Meu corpo não aguenta o esforço e perco a consciência enquanto sou
levantado do chão e uma voz distante diz “foi muito fácil”.

Abro meu olhos e eles parecem inchados, tudo o que me ajuda a enxergar
melhor são velas amontoadas em cera derretida espalhadas em volta da
cadeira onde estou, as frestas entre as madeiras pregadas na janela para
ninguém entrar barram quase por completo alguma luz que tente vir de fora,
não faço ideia de que horas sejam e é muito provável que ainda seja de
noite, tento me levantar e rapidamente percebo que será inútil, meu corpo
inteiro está com pequenos cortes de onde sangue coagulou e mesmo que
conseguisse realizar alguns movimentos corporais seriam limitados a mexer
a cabeça e um pouco dos braços, sinto uma enorme dificuldade de me mover
até mesmo ao mexer um dedo. O odor de carniça e sal parecem uma entidade
onipresente dentro da sala espaçosa cheia de moveis protegidos com capas
de panos velhos coloridos, forço meus olhos e posso ver alguma coisa
agarrada na parede com raízes longas e grossas, no centro há o que parece
ser um embrião ressecado envolto em uma bolha disforme que brilha
internamente. Tento mover o corpo e aquilo entorta a cabeça em minha
direção. Como se um raio caísse em minha cabeça uma voz ecoa chiada e
doente.
– Me alimente, criatura mortal – diz o puro sangue.
As paredes começam a tremer e sinto essa coisa se fortalecendo, as raízes na
parede começam a pulsar e expandir, o brilho na bolha começa a diminuir, o
embrião desgruda os braços do corpo pequeno e deformado, os olhos
começam a se formar em pequenos globos amarelados e a cabeça começa a
se mover frenética. Uma das mãos se estica em minha direção e ao invés da
bolha estourar se estica como uma bexiga em volta do dedo ossudo em minha
direção, sinto a cabeça queimando conforme aquele ser obscuro nasce na
minha frente. A mão se forma como a de um bebê e posso ver pequenas
veias em volta da bolha e partes do corpo crescendo com linhas
avermelhadas separando pequenas crostas de pele no corpo da criatura, os
padrões recortados de biomassa imitando pele humana se expandem e agora
consigo ver o que parece ser uma carapaça de ossos em juntas e na cabeça
da coisa, os dedos repuxam e estalam junto da bolha prestes a se romper. A
bolha rebenta e o cheiro pútrido se espalha junto do liquido gosmento, a
forma das veias diminuem e desgrudam da parede rachando em pequenos
vincos profundos, o pó da parede é rapidamente assimilado pela gosma e a
criatura é envolvida pela biomassa deformada e cai no chão fazendo um som
estranho, a massa avermelhada começa a se reconstruir no que parecem
partes de uma pessoa magra ao ponto de eu conseguir ver os ossos e tendões
se movendo por dentro. Os braços se movem lentamente para trás e uma
cabeça parecida com a de um crânio de cavalo surge descolando da
biomassa, os olhos brilham como o fogo do inferno e olham diretamente para
mim e uma onda de medo percorre o meu corpo.
O puro sangue acabou de nascer.
VII
A mulher ainda está desacordada, é uma pena que tenha que servir de
comida para nós já que é tão bonita, me aproximo dela novamente e o cheiro
de perfume doce é tão bom quanto sangue, a energia mágica vindo dela é
interessante, como se ela fluísse com facilidade e ao mesmo tempo não
pertencesse ao corpo. Uma vez Gustavo me disse que mulheres Magus eram
raras, já que a descendência dos poderes era passada apenas para homens,
acho que essa mulher é na verdade uma bruxa, mais estranho ainda já que os
dois dificilmente trabalhariam em conjunto, também ouvi dizer que eles tem
pequenas coisas que os diferenciam de pessoas normais, eles passam pela
puberdade só depois dos catorze anos e a produção de sangue deles é maior
porque usam ele nas magias e assim eles perdem quase sete litros por dia,
um amigo me disse que eles tem os olhos amarelos e cada um é
extremamente valioso para as pessoas certas, alguns adorariam ter o timo de
um Magus para estudo, já que mesmo na fase adulta ele continua funcionando
e alguns ficam do tamanho de um copo, diferente de pessoas normais que
desaparece depois de alguns anos.
O sangue sobe pelo tubo de silicone lentamente e posso ver a bolsa se
enchendo assim como aos outros cinco turistas enfileirados que estão nas
poltronas no resto da sala. A cabeça dela pende para trás e posso sentir uma
vontade enorme de morder o seu pescoço, há anos que não bebo diretamente
da fonte. Levanto do pufe e subo na poltrona, a respiração leve dela faz
cocegas em meu rosto e seus cabelos macios tocam minha bochecha, torço a
cabeça e abro a boca deixando meus dentes saírem da gengiva, a pele dela
tem um gosto doce como mel, o sangue...O sangue começa a corroer meu
corpo por dentro, sinto meus olhos queimando e toda a sala parece brilham
em uma cor laranja quando a mulher fala alguma coisa que não entendo,
perco a consciência lentamente e meu corpo cai no chão, sinto que quebrei
alguma coisa. Ela se levanta e o sangue da bolsa também brilha, ela tira a
agulha do braço e agora vejo algumas veias de seu corpo saltando,
principalmente perto dos olhos e pescoço. Ela sai andando da sala rumo ao
teatro, ela abre a porta e tento dar risada, mas apenas sorrio e tudo começa a
escurecer.
VIII
O puro sangue se desgruda da massa amorfa de onde seu corpo verdadeiro
começa a surgir, seus olhos seguem meus movimentos como uma cobra
pronta para o bote, meus movimentos ainda são demorados e imprecisos,
olho para o teto e parece que onde essa coisa estava se condensa o mofo,
lentamente se espalhando pelos lençóis e caixas empoeiradas. A criatura
parece ter parado de se mover aquela crosta está ressecando enquanto um
pouco do sol passa pela janela, mexo a cabeça para a direita e ouço o som
de passos vindo de trás da porta, ela se abre rangendo lentamente e a sala
fracamente iluminada contrasta com o corredor totalmente escuro atrás da
porta entreaberta, uma onda de alivio se instaura quando vejo Clarice
passando pelo batente e entrando na sala, o rosto cansado abre um sorriso
melancólico e igualmente exausto.
– Que bom que te encontrei, procurei por ti nesse lugar inteiro, anda, vamos
sair daqui e chamar reforços antes que essa coisa acorde de vez – sinto o
corpo relaxar na poltrona velha quando ouço sua voz – Tu consegue se
levantar ou precisa de ajuda?
– Vou precisar de uma ajudinha – digo com esforço – que horas são?
Levaram meu relógio – tento mostrar o braço, mas ele cai desajeitado sobre
minha perna.
– Vou te ajudar, tenta esticar os braços – ela vem até minha direção e faço
um esforço gigantesco para poder levantar, algo ainda está abstruso nessa
situação – vou te puxar no três. Um, dois, três – ela me puxa e meu corpo é
levantado e sinto um pouco da minha energia vital voltando – eu te ajudo a
levantar, vem cá – ela passa o braço por cima do ombro e agora me sinto
mais firme para andar.
Saímos da sala para o corredor e sinto o ar voltando a ter a característica de
maresia lentamente, firmo o passo mais um pouco e o chão sob meus pés
descalços é incomodo, ainda assim abaixo os dedos mindinho e anelar,
levanto levemente os médios e indicadores de ambas as mãos e o sangue se
move com violência, sei que isso parece suicídio em meu estado mas a
situação exige a tentativa. Não sei se Clarice começa a queimar por causa do
sol das vidraças ou se é pela magia que fiz com muito esforço. Seu corpo
começa a borbulhar e ela grita, me fazendo tremer por dentro, antes que ela
desapareça por completo me esforço para falar.
– Tu imita muito mal hein– digo endireitando o passo e descendo as
escadas.
Acho um corredor que adentra a estrutura e me deparo com o que parece uma
sala onde pacientes recebem soro, mas ao invés disso o sangue é drenado
para bolsas de plástico do tamanho de bolas de basquete, aos pés de uma
cadeira e de um pufe tem o corpo do que parece uma jovem, me aproximo e
viro o corpo com o pé, o que mais me choca é o olhar sereno em seu rosto, a
língua inchada e roxa na boca entreaberta. Os olhos sonolentos com as
pupilas dilatadas e pequenas veias ainda brilhando em um laranja opaco.
Isso parece coisa da Clarice, mesmo ela sendo uma Magus a magia não é tão
potente, ainda assim ela tem mais capacidade para usar magia do que eu, e
isso se comprova no brilho que seu sangue modificado deixou por onde
passou. Sigo o rastro até o final da sala e o que me lembro das imagens dos
turistas batem com as pessoas deitadas nas poltronas, todos adormecidos,
pelo menos uma parte da missão foi concluída, agora falta chamarmos
reforços antes que o puro sangue volte a se mexer. Passo pela porta e vejo
um salão que parece um teatro, vazio e estranhamente familiar, há apenas
alguns móveis descobertos espalhados pelo local e tenho a sensação de que
esse espaço era das crianças, já que todas as paredes estão pintadas de cores
vibrantes e há desenhos rabiscados de giz de cera, o que mais chama a
atenção é o palco, com a frente de madeira aparentemente nova e cortinas
vermelhas pesadas que cobrem quase metade do palco com cordas para
puxá-las em lados opostos. E no meio do palco mal iluminado por alguns
vitrais reformados vejo um jovem sentado em uma cadeira toda enferrujada,
não parece ter mais de vinte anos, não consigo ver muito do rosto, apenas o
nariz que parece o Pinóquio, usa uma camisa florida berrante e bermuda
jeans com chinelo, seus olhos brilhando se movem em minha direção quando
atravesso a porta, o aperto se intensifica quando ele se levanta, certamente
ele é a outra energia que percebi antes de apagar, ele começa a vir em minha
direção e se apoia na ponta do palco.
– Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver – ele diz com
um sorriso cínico e irritante – dedico como saudosa lembrança estas
memórias póstumas – Ele suspira e faz cara de apaixonado – não havia
introdução melhor para este livro, eu o li e reli inúmeras vezes em minha
vida e nunca encontrei algo tão divertido quanto, mesmo lendo livros de
poesia, filosofia e inúmeras peças teatrais este livro ainda me intriga – ele
dá mais um passo em minha direção e pega um livro velho do bolso – talvez
por eu mesmo me considerar um defunto autor, mas nunca tive uma campa, e
você, meu caro? Há algo que lhe representa? Não se acanhe, temos tempo de
sobra para confabular, fiz questão de adormecer a garota e o Puro Sangue
apenas para este momento.
– Você é o que? Algum tipo de psicopata? Acha mesmo que vamos
conversar? – Minha voz sai fria e me esforço para não parecer cansado –
Vou resolver o seu problema da campa – forço o braço para a frente e com
as mãos tremendo um pouco cruzo o anelar com o mindinho e o médio com o
indicador, tento dizer alguma e sai apenas um grito que ecoa pelo salão.
AS SUAS MÃOS ESTÃO SUJAS DE SANGUE INOCENTE, NÃO
SOMOS TÃO DIFERENTES, MEU CARO. AGORA VENHA E
CONVERSE COMO O CIVILIZADO QUE ÉS
O som me atinge como um trovão e apenas caio no chão como um pedaço de
carne mole, ouço os passos dele vindo em minha direção e tenho vontade de
mata-lo, mas infelizmente estou extremamente debilitado para fazer isso, ele
me pega do chão pelo torço e sinto o toque frio por baixo da jaqueta, espero
um ataque oportuno mas ele simplesmente não vem, ele me leva pelo salão
até um divã e consigo ver Clarice desacordada em outro divã, sem marcas
de machucado e parece dormir pesadamente, provavelmente ela caiu no
encanto da sereia muito tempo atrás, tendo o azar de achar que aquela era a
saída. Não consigo fazer mais do que alguns movimentos pequenos com o
corpo, um frio espectral percorre meu corpo quando ele se senta no divã da
Clarice, com a cabeça dela em seu colo ele mexe em seu cabelo como se ela
fosse apenas mais uma parte de sua encenação, um sorriso de tubarão se
forma quando ele nota meu desconforto, deixa o livro velho no espaço em
que o corpo dela se contrai e agora vejo que ela desmaiou com uma das
mãos tentando fazer o mesmo que eu.
– Por que está fazendo isso? Já podia ter acabado com a gente lá fora.
– E qual seria a graça de vencer sem lutar? Eu sabia que vocês viriam assim
que aquela policial veio me procurar de madrugada, eu disse que era um
ambulante e ela acreditou – ele abre um sorriso e solta a risada pelo nariz –
um ambulante voltando sem qualquer mercadoria, com roupas de verão no
meio da semana mais fria de agosto, como tu reagirias a essa cena? Terias
rido? Terias te exaltado ou apenas entraria no personagem?
– O que você fez? – tento falar com esforço – deu uma pista falsa?
– Óbvio que não – ele parece se divertir – apenas entrei no personagem e
disse exatamente onde estavam, as minhas pistas levá-la-iam à sala do outro
lado da porta desde o primeiro dia, mas como tem uma vida agitada, marido
ausente e dois filhos, talvez não goste do trabalho também é uma hipótese –
seu rosto se torna grave de um segundo para o outro – No fim, ela procurou
incessantemente atrás daquela escória no lugar errado, quase cinco quadras
de diferença – ele não sorri, o semblante imita algo perto da preocupação –
E em seguida sabia que alguém como tu e tua amiga viriam, mas não
imaginava que matariam todos, inclusive meus companheiros de mais alta
estima. Mas esse é o preço pelo que terei de pagar para que o plano dê
certo.
– Que tipo de droga andou usando pra simplesmente fazer uma coisa dessas?
Você matou pessoas inocentes simplesmente para se divertir e ainda parece
estar conformado com isso, você brinca com vidas como se fossem nada,
você é a coisa mais maligna que já vi!
– As tuas mãos estão sujas de sangue inocente, não somos tão diferentes,
meu caro. Talvez tu não tenhas notado, mas alguns daqueles vampiros que
morreram lá fora eram crianças, algumas tinham acabado de morrer e eu as
resgatei e dei um lar a elas, mesmo que não pareça eu organizava as coisas
por aqui, tínhamos regras de convivência, tanto aqui quanto lá fora, e a mais
importante era que apenas matávamos pessoas em duas condições: Se elas
fossem desrespeitosas conosco ou com a própria sociedade e caso elas
estivessem à beira da morte. Meu objetivo se tornará realidade logo menos.
E não serão dois Magus que me farão desistir, nem que eu seja o último vivo
entre as pessoas.
– E qual seria esse objetivo tão nobre? Me deixe adivinhar... Dominar o
mundo ou tornar todos os humanos escravos?
A resposta é muito diferente do que imagino, uma risada histérica ecoa pelo
teatro e infelizmente não tenho forças para tapar os ouvidos, mesmo assim
Clarice ainda parece não reagir.
– Se eu te contar estraga, mas tu passaste tão longe... Uma dica – ele levanta
o dedo indicador e posso ver os dedos longos e finos com unhas pontudas –
A realidade flutua entre dezenas de dimensões ao mesmo tempo, a mais
comum de aparecer foi chamada de Limiar, onde estruturas físicas perdem as
leis de espaço naturalmente.
– Legal, mais um que fez o dever de casa – um dia minha língua ainda vai me
matar – Puxar o Limiar para o Físico.
– BINGO – ele grita e acho que perderei a audição se ele gritar novamente –
Isso mesmo, os detalhes você descobrirá assim que tudo der certo, e até lá,
espero que viva muito bem e saudável, porque assim que estiver melhor
exijo uma luta entre velhos adversários, não pouparei esforços para beber
teu sangue e espero que se esforce muito mais do que simplesmente tentando
me prender em uma gaiola mágica mexendo as mãos, quero que tente
arrancar minha cabeça, que inclusive é o único ponto fraco de um vampiro
rei. E antes que o sol apareça quero lhe contar uma última dica, há uma
criatura ancestral que me deu aquele ovo, espero que a encontre antes de me
encontrar, e com estas informações me despeço, fique com essas duas coisas
de recordação – ele se levanta e deixa Clarice sentada com o livro do lado.
– No dia em que nos encontrarmos te devolverei a jaqueta de Ouroboros
assim como me devolverá o livro, assim saberemos quem somos apesar do
tempo.
Pequenos dentes de leão começam a brotar entre as ripas de madeira, um
brilho avermelhado se espalha pelo teatro e no reflexo de um espelho virado
para a porta vejo a verdadeira forma desta casa, dezenas de portas em um
corredor infinito, me esforço para ir atrás dele mas meu corpo simplesmente
não me obedece, como eu queria poder simplesmente mata-lo, nem que isso
levasse toda a minha magia no processo eu queria poder tirar esse mal do
mundo, mas a fogueira que afastava os pesadelos noturnos se apagou,
restando apenas as cinzas do que um dia foi um guerreiro contra aqueles que
tentam invadir nosso mundo e causar a destruição, voltando impunes para
suas dimensões caóticas. Sinto lágrimas quentes brotando de meus olhos e
descendo pelo meu rosto, uma fogueira apagada não serve para nada.
IX

– O ULTIMO QUE CHEGAR É A MULHER DO PADRE – Grito com as


mãos em concha.
As crianças saem correndo pela praia na direção da água, o sol não surte
efeito nelas e todas parecem se divertir muito, volto com as mãos para trás,
o chapéu floppy se debatendo preso na minha cabeça e a canga florida que
combina com meu biquini mal sai do lugar quando ando, o Rei está
conversando com Gustavo sobre a noite do teatro, ele quer encenar Tristão e
Isolda esse final de semana, estamos fazendo armaduras de papelão e o
Gustavo insiste que usar cocos para imitar cavalos seria divertido. Saio de
trás da sombra do meu gótico favorito, que está usando uma bermuda preta
de caveira e seu bronzeado de giz dói a vista e tento falar alguma coisa, mas
Gustavo me puxa para perto com um sorriso radiante.
– Ela é a prova, esses cocos no lugar de cavalo fazem qualquer um dar
risada – Ele parece mais animado que as crianças na água – vou pegar um ali
e já te mostro – ele mal termina de dizer e sai correndo.
– Finalmente alguém que gosta mais do dia do teatro que eu, e como vais,
cara Sarah? Entusiasmada com nossa nova política de vizinhança? Nada de
matarmos as pessoas próximas de novo.
– Sim, mestre. E quanto ao nosso estoque de sangue? Manteremos dois
meses para cada ou aumentaremos a caçada?
– No momento tenho em mente algumas bolsas novinhas em folha, olhe para
aqueles turistas na areia, próximos das mesas, que trouxeram uma tenda.
– Os que tem a caixa de som e dois coolers?
– Estes mesmos, observe que em volta deles tem um amontoado de areia, e
de dentro dele saem garrafas e latinhas – Ele se aproxima e me segura pelos
ombros, ele se abaixa e o chapéu de palha quase cai – Eles estão aqui desde
o meio dia, chutaram um cachorro e enxotaram dois catadores de latinha,
sem falar na sujeira e no som alto, músicas de tão baixo calão que dariam
nojo em um ninfomaníaco. – Ele se ergue e sinto sua aura aumentando de
raiva, talvez seja sem querer mas sinto suas garras saindo e arranhando meus
braços– Esse tipo de gente é escória, o que nada oferece para a humanidade
a não ser desgosto, aqueles que pedem a porção grande para reclamarem da
demora e falarem mal do garçom, o tipo de gente que tenho prazer em tirar-
lhes a vida com as próprias mãos.
– E como daria cabo deles? Esperar até a noite seria muito arriscado, eles
poderiam ir embora antes.
– Não se preocupe, para isso preciso de uma mecha do seu cabelo e do
Gustavo, iremos lá oferecer bebidas e quem sabe... sedução seria algo
humilhante demais para ti, acho que apenas me acompanharem como sendo
gêmeas já faria o plano funcionar.
– E aí casal vinte, o que foi que eu perdi? – ele diz com duas bandas de coco
cheias d'água.
Após explicarmos o plano para Gustavo ele quase imediatamente engoliu o
meu fio de cabelo e seu rosto foi mudando de forma, até hoje não entendo
como ele pode se transformar em alguém junto com suas roupas, em um
piscar de olhos, primeiro o corpo, a roupa e por último a voz, ele consegue
se manter na forma de outra pessoa por pelo menos meia hora, tempo
suficiente para o plano funcionar.
O Rei soltou dois botões da camisa florida e desceu os óculos escuros até a
metade do nariz, a sombra do chapéu esconde os olhos vermelho vivo em
uma cor castanha comum, é padrão para nós sempre usarmos óculos escuros
para caso o abismo apareça não fique tão aparente. A areia entra pela minha
rasteirinha enquanto saímos da areia branca e fofa para a areia sólida onde a
água passou pela última vez. Gustavo não consegue parar de sorrir e
balançar a cabeça, os cabelos pretos soltos parecendo uma assombração de
filme japonês, o Rei levou dois copos de caipirinha batizada de veneno para
os turistas babacas, um deles se levanta e começa a fumar um vaporizador e
assoprar na cara do mestre, sinto sua fúria ondulando enquanto sua
compostura continua inalterada, quando ele consegue convencer um deles a
beber todos experimentam a caipirinha, em seguida andamos meio
apressadas até o grupo, agora posso ver o quanto parecem pessoas nojentas,
a pele bronzeada artificialmente e músculos de academia, um deles tem
cabelo platinado e as duas mulheres do grupo de cinco parecem ter vindo
diretamente do planeta silicone, o cheiro de maconha e outras coisas é
enjoativo e só consigo pensar em degolar todos eles agora mesmo.
– Caso queiram outra volta no paraíso é só irem até o final daquela rua ali,
primeiro shot por conta da casa, não é mesmo meninas?
– É sim chefinho – falamos ao mesmo tempo e nos abaixamos jogando uma
mecha por trás da orelha – toda noite – Gustavo diz – a noite toda – eu digo
sorrindo me contendo para não os matar.
– É isso mesmo minha gente, é só colar que a festa é garantida – ele pega os
dois copos e coloca na bandeja de plástico com uma marca de cerveja que
não consigo ler o nome de tão velha.
Saímos rumo a plataforma e voltamos discretamente para o nosso guarda-
sol, bebendo a água de coco e esperando a noite chegar.
X
Meu pescoço dói quando acordo, tento entender o que acabou de acontecer,
mas a única coisa que me lembro foi de passar por uma porta e desabar no
chão, meu corpo toma folego lentamente e agora consigo ver onde estou, ao
meu lado tem um livro muito antigo, a capa é toda azul e tem aquelas bordas
douradas, o título provavelmente está na primeira página, o resto da sala
parece iluminada pelo sol diretamente no meu rosto, tento forçar a visão
para enxergar o resto da sala e consigo ver o que parece ser um sofá muito
próximo do meu, se eu der mais alguns passos posso ver o que está sobre
ele, me levanto e as pernas ficam bambas e dormentes, fico alguns segundos
em pé e arrumo o cabelo com os dedos, ando devagar até o divã e quase caio
ao ver quem está deitado.
– Arthur? Arthur, você está bem? – O rosto dele parece cansado, linhas de
lágrimas secas brilham contra as janelas do outro lado, o corpo dele se mexe
e posso ouvir sua respiração – ACORDA! – empurro seu corpo com
violência, mas ele continua sem reação.
Me abaixo e começo a sentir lágrimas querendo sair, as contenho com
dificuldade e tento pensar racionalmente, volto até o sofá que talvez seja um
divã e pego o livro. O interior dele é muito conservado, quase não há marcas
de oxidação e orelhas, as páginas são duras e difíceis de virar, mas o que me
chama a atenção é uma escrita em letra de criança na primeira página, onde
deveria estar o título do livro há um rabisco longo e raivoso.
Memorias de Valentim
Na capa interna há uma assinatura em letra cursiva, com alguns borrões de
tinta no final de cada linha e respingos nas pontuações.
Dedico este livro ao meu novo velho amigo, que vem em minha biblioteca
diariamente mesmo na idade de brincar de peão.
Bartolomeu, 1926
Não há uma única marcação em todas as páginas e no fim há duas escritas
diferentes, ambas com caneta de cor vermelha, preciso me esforçar para ler
a as duas, uma certamente é de uma criança e a outra de alguém mais velho,
talvez do tal Bartolomeu.
– O livro é engraçado, mas não entendi muita coisa – tento abafar a risada,
mas ela sai estridente – Nossa existência é o mesmo que nada, parece que
temos um adolescente revoltado por aqui, Arthur, olha isso aqui – percebo
que ele ainda parece desacordado e não consigo mais me conter e arremesso
o livro no chão causando um estrondo – pelo menos responde quando eu falo
com você – finjo estar brava, mesmo sentindo que ele não vai acordar tão
cedo.
Sinto uma onda de alivio quando vejo seus olhos se abrindo, ando meio
desajeitada sobre o carpete e o aperto com força, sinto sua respiração
tomando mais ritmo e finalmente ele fala alguma coisa.
– Ele fugiu, simplesmente foi embora, e eu não pude fazer nada – percebo a
voz embargando – e ele ainda tem um puro sangue com ele, o que eu deveria
fazer? Ele só sentou ali e ficou conversando como se nada tivesse
acontecido e agora tudo foi por água abaixo.
– Não tem problema, depois a gente vai atrás disso, por enquanto vou
notificar a Academia sobre esse lugar e chamar reforços. E você, vê se vai
lavar esse rosto, parece que até que viu o filme mais triste do mundo – tento
rir, mas quase choro – vamos comigo até meu carro, antes que alguém roube
ele.
O ajudo a levantar e ele parece mais um saco de batatas, a cada passo que
damos ele parece cambalear e precisa firmar os pés, aos poucos consegue
voltar a andar e finalmente chegamos ao carro, ironicamente ele está
estacionado e trancado, a chave está embaixo da roda da frente no lado do
motorista, o sol brilha preguiçosamente entre as nuvens douradas, junto
daqueles vampiros acabaram os últimos vestígios do frio, sorte que vim com
roupas mistas, um shorts que não combina muito comigo, mas estamos na
praia, tênis branco e uma camiseta de manga comprida muito maior que meu
tamanho normal. Abro o carro e Arthur entra pelo outro lado, não
precisamos nos preocupar com os turistas, já que todos estão desacordados e
provavelmente passarão uns bons dias em repouso no hospital, faço uma
ligação rápida, dou partida no carro e voltamos pela via de mão dupla.
A quantidade de carros circulando é baixa mas ainda prefiro seguir as leis
de transito, Arthur veio o caminho todo abatido com a cabeça quase
afundando no encosto do banco, posso até me colocar em seu lugar, mas
desde que Tibo desapareceu e o consideramos como morto, assim como
aconteceu com seus pais, ele vem afundando cada vez mais no poço e temo
que ele realmente precise ficar de repouso depois do que aconteceu. Paro o
carro em frente a padaria que íamos quando jovens, agora reformada e
provavelmente pareça um bistrô de aeroporto, onde o café custa um rim e ai
de você se quiser açúcar, entramos pelas catracas que cospem comandas de
plástico. O interior está bem morto e vazio, com menos de cinco fregueses e
muitas mesas livres, sentamos em uma mesa em que podemos ver a avenida
ao lado e a estrada que corta Mongaguá em uma linha conectada por
passarelas a cada cem metros e mais à frente um trilho de trem impede
bicicletas de passarem sem dificuldade, com detritos de ladrilhos e córregos
lamacentos onde pontes que mal passam duas pessoas servem de travessia
para a praia.
– Pode pedir o que quiser, hoje é por minha conta, só não pede aqueles
lanches gigantes que eu sei que você não come – ele continua em um estado
quase apático – já volto.
Pego minha necessaire que acabou ficando embaixo do livro e saio quase
correndo para o banheiro, ainda estou descrente que essa coisa funcione,
mas quase morri tentando arranjar a matéria prima que aquele relojoeiro
pediu. Tiro de uma caixa de madeira adornada com ferro uma bússola presa
por uma corda, vejo se a porta está mesmo trancada e puxo um pedaço da
flanela no fundo da caixa, tiro o chumaço de cabelo loiro um pouco
queimado e a coloco de volta na bolsa. Abro a tampa da bússola e ela
começa a girar confusa até se acostumar com o ambiente e a presença dos
fios queimados, ela começa a girar devagar e um brilho dourado percorre os
anéis de ouro e a agulha apontando para a letra L.
Uma letra nunca me deu tanto medo em toda a minha vida, e agora sinto que
vou desabar no chão do banheiro, saio como se nada tivesse acontecido e
lavo minhas mãos ainda pensando se devo contar pra alguém sobre o que
aconteceu ou apenas deveria reportar diretamente para a Academia, o que
duvido ser possível, jogo água no rosto e quase perco o equilíbrio, talvez o
Tibo sempre estivesse certo, algum dia veríamos aquele monstro de novo, e
depois de nove anos finalmente achei o rastro, mas antes preciso tomar café.
– E então, o que vai ser? – Arthur me pergunta e sinto que posso desmaiar
novamente, preciso me manter calma – você está bem?
Assim como ele se desfez de seu fardo comigo acho que tenho o mesmo
direito, pelo menos é assim que sempre fizemos.
– Não, eu achei o rastro da Caterpillar – a cabeça dele se contorce e posso
ver uma grande interrogação se formando em sua testa e os olhos quase
saltam da cara, me esforço para não rir – mas te conto isso outra hora, vou
querer um suco e um misto quente.
O sol brilha lá fora, iluminando o estabelecimento como uma congratulação
por tirarmos um pouco da erva daninha em mais um dia de trabalho, assim
como não havia um invasor no loft do Arthur, também não há o que temer
aqui, mesmo que eu esteja tremendo na base sabendo que esse tempo todo a
coisa mais assustadora que já existiu está na dimensão mais fácil de entrar.
Esse assunto se tornou pessoal desde que ela desapareceu com o Tibo e a
família do Arthur alguns anos atrás, só preciso descansar e logo irei atrás
dela, a primeira bruxa, sozinha.

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